METAFILOSOFIA Lutas simbólicas, sensibilidade e sinergia intelectual
Murilo Seabra
2a Edição Revista e Ampliada
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METAFILOSOFIA Lutas simbólicas, sensibilidade e sinergia intelectual
Murilo Seabra
2a Edição Revista e Ampliada
Brasília, 2014
Diagramação: Éric Seabra e Murilo Seabra
Seabra, Murilo 6P 0HWD¿ORVR¿DOXWDVVLPEyOLFDVVHQVLELOLGDGHHVLQHUJLD LQWHOHFWXDO0XULOR6HDEUD%UDVtOLD%LEOLRIRQWH S ISBN
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SUMÁRIO
Principais conceitos 7 Prefácio 9 Apresentação 45 Bloco 1: A arte de analisar poeira 49 Bloco 2: Originalidade 69 Bloco 3: Estética da austeridade 83 Bloco 4: A filosofia acadêmica não teve século XX 103 Bloco 5: Estar à vontade 135 Bloco 6: Placas e definições 173
Bloco 7: Implementação e impacto 195 Bloco 8: O senhor Quita 227 Bloco 9: Cordas vocais 247 Bloco 10: Trilhos 265 Carta aos estudantes 285 Créditos das ideias 305 Mais conceitos 309 Obras citadas 317
PRINCIPAIS CONCEITOS
Estar à vontade §§40, 203, 204, 215, 229, 237, 259, 266, 417 Iemanjá e Nossa Senhora §§43, 44, 52, 415, 417 Luta §§105, 120, 121, 124, 166, 253, 279, 300, 305, 318, 319, 321, 324, 372, 473, 474 Metafísicas da inovação e da repetição §§429, 430, 434, 435 Originalidade §§2, 3, 52, 53, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 64, 69, 70, 71, 72, 73, 88, 103, 195, 196, 261, 334, 338, 366, 379, 382, 418, 429, 437, 438, 479, 494, 500 Retina §§91, 92, 136, 339, 350, 369, 423 Sensibilidade §§59, 91, 98, 105, 453, 471
Prefácio
Comenta-me ou te devoro: O que um filósofo vê quando abre a janela Julio Cabrera (Universidade de Brasília) I – Entrando numa escrita: a insurgência de Murilo Seabra A melhor coisa que se pode dizer sobre este livro é que ele foi escrito “à vontade”. O “estar à vontade” ou “pensar à vontade” é uma das categorias que Murilo Seabra usa neste pequeno metalivro, que corre na contramão de certas convicções acadêmicas enraizadas. Para Murilo, os pensamentos fluem de maneira autêntica, espontânea e genuína quando filosofamos entre amigos e para amigos, para pessoas que não nos intimidam. Os pensamentos, pelo contrário, travam e ficam falsos quando somos obrigados a pensar para um meio acadêmico impessoal e anônimo. Sabe-se que a “qualidade” de um trabalho filosófico mede-se, nas universidades, precisamente pelo fato de ser ele julgado – fria e objetivamente – por pessoas que não constam entre nossos amigos. A filosofia universitária não apenas não nos deixa “à vontade”, mas faz questão de nos deixar tão constrangidos quanto possível. Mas isto marca também o paradoxo da publicação deste livro, que cairá fatalmente nas mãos de inimigos, de pessoas para as quais não estava destinado. Parece um destino inglório dos filósofos latino-americanos o fato de que seus textos tenham que ser, por um bom tempo,
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metafilosóficos. Já faz algo em torno de 20 anos que outro pensador solitário, Edson Andrade, escreveu no Rio Grande do Sul uma obra-prima metafilosófica, Da arte de criar mundos, e Gonzalo Armijos, um equatoriano radicado no Brasil, inventou outra obra deste tipo, mencionada várias vezes por Murilo, De como ser filósofo sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Mas não somos metafilósofos por paixão. Somos metafilósofos por imperiosa necessidade de sobrevivência. Quando não nos deixam filosofar, nosso pensar tem que falar sobre si mesmo num movimento de insurgência. Um pensamento genuíno não pode, em nosso meio atual, apenas “surgir”, ele tem que “insurgir-se”, surgir apesar das ameaças e travas, vir a existir contra tudo o que quer abortá-lo e impedi-lo de se manifestar. Em tempos melhores, não haveria necessidade de explicar ao leitor a maneira como a filosofia se instaurou e como ela agora impede o pensar ao invés de estimular a reflexão. Vivemos num tempo em que somos obrigados a ensinar, em meio a expressões de animosidade, como retomar a trilha do pensamento num ambiente não interessado em filósofos. Para dizer tudo isto é preciso ser metafilósofo, gastar tempo escrevendo livros como este. Este livro seria perfeitamente inútil se a filosofia pudesse se manifestar de maneira exuberante. Em bons tempos filosóficos, a metafilosofia deveria ser inócua; um termômetro das coisas estarem tão mal para a filosofia desde a América Latina é a nossa imperiosa necessidade de metafilosofar. Que livros como o de Murilo sejam indispensáveis é um sintoma dos nossos tempos. Que não se diga, em todo caso, que Murilo Seabra seja autor de um livro único, e que só faz metafilosofia por ser incapaz de filosofar. Isto seria redondamente falso. Desde o final da década de 90, quando era um jovem aluno da graduação, Murilo escreve textos curtos numa espécie de aprendizado fantasma, paralelo a seus penosos estudos acadêmicos (aqueles nos quais você 12
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nunca está “à vontade”). Na minha mesa de trabalho encontro “O ataque do mal”, um texto com o qual Murilo se debate há muitos anos; “Lutas simbólicas”, um texto que acabou de ser publicado numa coletânea da Revista de Artes da UnB, e que é aproveitado dentro da arguição do presente livro; e milhares de textos curtos, alguns deles montados de maneiras insólitas, em pequenas encadernações cheias de becos sem saída (e muitas vezes sem entrada). Menciono alguns: “Eletroencefalograma de um louco”, “Morfeio”, “Filosofia da música: notas sobre o processo de composição musical”, “Entalhes sobre a linguagem”, “Notas sobre o processo de endoculturação”, “Fim dos tempos”, “O desaparecimento dos diálogos, das cartas, dos aforismos, dos desenhos, dos poemas, dos ensaios, das confissões autobiográficas e dos diários da filosofia”, “Regras para a geração de mundos”, “O mundo interno e seu vocabulário externo”, “Pano de fundo”, “O racionalista medieval”, “Cores”, “A contradição e a dor”, “Mawatwa”. Existem muitos outros, alguns sem título ou mesmo com títulos sem graça (“Algumas observações”), como se a reflexão estivesse, às vezes, tão à solta que não fosse mais possível titulá-la. Tampouco é Murilo um produtor compulsivo de textos; ele só escreve quando algo queima dentro dele. Como em todo filósofo, é difícil definir claramente o seu estilo (“literário”? “filosófico”?) ou a “área” de reflexão destes escritos: filosofia da mente, filosofia da linguagem, ética, ontologia – tudo isso e algumas outras áreas inventadas (filosofia das miudezas? filosofia das falas de rua?) vêm à tona quando você “está à vontade”, quando simplesmente pensa em lugar de redigir papers para revistas especializadas. É claro que Murilo teve que se habilitar (teve mesmo ou foi escolha?). Tentou mestrado na UnB várias vezes e não conseguiu; tentou a USP, mas tampouco conseguiu ter seu modo de trabalhar admitido; voltando a Brasília, tentou novamente e esta vez foi aceito – eu fazendo parte da banca de seleção – com 13
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um projeto sobre um autor europeu (Wittgenstein), condição necessária, como se sabe, para a aceitação em qualquer instituição latino-americana séria. Poucos perceberam, no entanto, que a dissertação de Murilo, “Porque não se devem interpretar as Investigações Filosóficas de Wittgenstein”, foi, do ponto de vista metodológico, uma devoração oswaldiana das ferramentas conceituais do filósofo austríaco aplicadas a questões que jamais passaram pela cabeça de Wittgenstein, e, do ponto de vista temático, uma violenta crítica ao modo acadêmico de filosofar. Durante a convulsionada defesa da dissertação, houve tumultos e incômodos, o que provou que a dissertação, apesar de tudo, atingiu o seu alvo em cheio. Foi dessa forma que um belo dia, depois de sonhos agitados, Murilo acordou transformado num Mestre em Filosofia. II – Final dos tempos filosóficos: Murilo pisa em cadáveres cercado por um ódio profundo Qual é, afinal, a situação contra a qual Murilo Seabra se insurge? Uma situação muito grave, não apenas pela sua intrínseca relevância, mas também porque ela não é sequer percebida como problemática, sendo, pelo contrário, tomada como uma situação extraordinariamente positiva. Trata-se do que denomino de “crise do autoral”. A formação de um “filósofo” (talvez seria melhor falar numa “formatação”) passa hoje, nas universidades, pelo estudo aprimorado e rigoroso da tradição filosófica europeia (e norte-americana). O que se espera de um “filósofo” é que ele conheça perfeitamente algum setor desta tradição, se especialize nela, publique papers e livros dentro da mesma, atinja certa “excelência” no domínio das suas fontes – com o necessário domínio das línguas estrangeiras relevantes –, publique em revistas indexadas e tenha uma agenda cheia de viagens nacionais e internacionais para expor seus trabalhos 14
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exegéticos, históricos ou de comentários, explicativos ou críticos (passar a vida acadêmica inteira “lendo criticamente” uma tradição filosófica é outra maneira de ficar totalmente atrelado a ela). Não existe neste esquema nenhum espaço para alguém que pretenda expor seus pensamentos, aquilo que provém das suas próprias tradições e entranhas existenciais (latino-americana, brasileira, comunal, familiar, pessoal). Qualquer tentativa neste sentido produzirá o efeito dos professores enviarem essa pessoa para estudar os autores da tradição europeia, para ali encontrar subsídios que, em algum dia longínquo, lhe permitirão talvez apresentar algum pensamento próprio. Mas o pensador é um ente singular, com uma breve vida filosófica pela frente; ele quer filosofar agora. Há pessoas – não muitas talvez – que não querem ser comentadores, exegetas ou historiadores; eles querem ser autores, pensadores, mesmo que pensadores menores. A situação contra a qual Murilo se insurge é aquela em que não existe qualquer espaço para o autoral. Pior ainda: onde o autoral é considerado pouco sério, diletante, improvisado, autodidata, não profissional e até moralmente reprovável. O filósofo autor virou incompetente, ridículo e amoral. A questão da autoralidade é muito grave porque os atuais produtores de filosofia, tal como a conhecemos, são cegos para qualquer criação filosófica alternativa sem qualificá-la simplesmente de diletante, não profissional ou de “filosofismo” improvisado e “sem rigor”. Propositalmente falo em criação e não em produção, que é o termo mercadológico usualmente utilizado, termo que convém perfeitamente ao tipo de filosofia que se produz nas universidades. Gerações e gerações de estudantes foram perdendo esta capacidade ótica e não conseguem mais ver a filosofia a não ser pelos olhos institucionais, o que era, precisamente, o objetivo almejado. Quando o pensador autoral, depois de muitas hesitações e
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temores, ousa escrever e apresentar suas ideias, a sua criação será desqualificada se medida com a vara acadêmica. Para apreciarem a criação filosófica alternativa e autoral, os leitores de filosofia teriam que ser capazes, depois de anos e anos de “formatação” acadêmica, de mudar os critérios usuais de avaliação. Se aplicarem os critérios vigentes, qualquer produção autoral será vista como “má filosofia” e rejeitada. Se um “bom texto filosófico” deve estar construído tomando como base a história do pensamento europeu, citando interminavelmente seus autores, definindo perfeitamente seus conceitos, argumentando logicamente, não se permitindo nenhuma narrativa ou intuição norteadora, perseguindo um objetivo perfeitamente claro que não possa mudar no meio do percurso, não tocando em temas cotidianos e não se permitindo rupturas de estilo, então um livro autoral não será jamais considerado como um “bom texto filosófico”. Este é o problema inicial, não um problema conceitual, mas, eu diria, quase um problema perceptivo. Não é que o autoral pareça de má qualidade; ele é realmente de má qualidade, se medido com os critérios vigentes. Se for realmente autoral, parecerá inevitavelmente não ter “qualidade”. Fugir da “excelência” se torna um requisito do autoral. Neste sentido, talvez seja ainda otimista o primeiro aforismo de Murilo neste livro, onde se apresenta o comentador como ainda desejando ser filósofo, e até tendo inveja de quem é capaz de sê-lo (“No âmago do comentador fermenta uma dor indizível: ‘Eu queria ter tido essa ideia’”). Seria bom se as coisas fossem assim, a situação não seria tão dramática. Na verdade, porém, o comentador se convenceu totalmente de que a filosofia se resume em comentar; ele não se permite mais fermentar qualquer “dor indizível”; ele nem sabe mais que ele “queria ter tido essa ideia”. Murilo matiza seu aforismo §1 com o §366: na verdade, já não aparece na consciência do
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comentador qualquer visão do original, porque simplesmente não há, para ele, o original; portanto, não há nada a invejar ou fermentar. Em outros aforismos, como §315 e §353, Murilo tem aguda consciência deste problema da autovisualização do comentador, que já aprendeu a identificar a filosofia com o que ele faz, sem qualquer aceno para um dever ser pelo qual ainda valeria a pena lutar. Na situação atual, há uma espécie de cegueira (não de nascimento; doença adquirida) para perceber que o autoral é uma ruptura, algo que provém do vivido, escutado e sofrido, das entranhas do filósofo em seu ambiente (ambiente do qual é afastado em seus estudos de pensamentos alheios em línguas e raízes estranhas). Trinta anos de estudos eruditos não gerarão jamais um filósofo, assim como o melhor casal de gatos jamais gerará um filhote de cachorro. Trata-se de algo de outra natureza, não há uma continuidade. À medida em que se tornar mais talentoso e aprimorado, o comentador de filosofia, pelo contrário, ficará mais e mais acanhado para expor as suas ideias, ficará cada vez mais cauteloso, até abandonar totalmente a ideia de pensar algo que seja seu. Não há nada que prepare alguém para a filosofia; o filósofo poderá ter muitos conhecimentos, mas no momento de pensar, já os terá superado. Terá feito com eles o que os filósofos costumam fazer com o que leem: dar uma olhada rápida e interesseira, interpretar mal, utilizar inescrupulosamente o que leu para a própria escrita. Murilo aponta, já no início de seu livro, que a primeira reação contra estas ideias será de “ódio profundo”. Isto é compreensível. Pense numa pessoa que trabalhou durante anos para constituir toda a sua existência intelectual em cima de uma certa competência (por exemplo, a de conhecer e comentar a obra de Kant ou de Wittgenstein ou de Aristóteles) e vem uma pessoa – de menos idade, talvez com menos conhecimentos 17
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– e lhe diz que o que ele faz carece de valor, que ele não está fazendo filosofia genuína. Pode-se imaginar outra reação a não ser a de “ódio profundo”? Contra o que pensam as metafísicas da “pessoa”, os animais humanos são seres sem nenhum “valor intrínseco”; portanto, temos constantemente que nos dar valor, precisamos avidamente de reconhecimento; não somos reconhecidos por termos valor, mas temos valor por sermos reconhecidos. Ideias como as de Murilo ou as minhas ou as de Gonzalo Armijos devem abalar profundamente os mecanismos de autovaloração dessas pessoas e gerarem um ódio arrasador contra os responsáveis pelo abalo. Ideias como as deste livro são como flechas que você deve atirar no alvo e sair correndo, pois a reação será aterrorizadora. Mas não é apenas o ódio profundo explícito que estas ideias provocam numa comunidade como a nossa, avessa a qualquer tipo de autoralidade, e que identificou a filosofia com o pensamento institucional, técnico e produtivo. Elas também disparam outras atitudes que Murilo não considera, talvez mais amedrontadoras que o ódio profundo manifesto; refiro-me ao cinismo, à dissimulação, à falsa cordialidade e, inclusive, ao total acordo no plano das ideias. Já falei com comentadores de Kant que me cumprimentavam pela minha defesa da autoralidade, declarando-se totalmente de acordo com a afirmação de que o Brasil precisa estimular a exposição de ideias próprias. Esta é uma vicissitude psicológica do ódio profundo (porque o ódio continua ali dentro) que pode tornar-se muito complicada, porque ela gera a impressão de que estamos todos lutando pelas mesmas causas, e o inimigo está sempre em outro lugar. Este ódio tem algo de emocional e não racionalmente justificado nas ideias ou seu modo de exposição. Murilo e eu discordamos em muitas coisas – como explicarei melhor na seção IV deste prefácio – mas principalmente num ponto fundamental: enquanto eu penso que o comentário e a exegese 18
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histórica e temática constituem uma forma perfeitamente legítima de se fazer filosofia, e que o que deve ser criticado é o fato de terem se transformado em uma opção exclusiva, Murilo pensa, pura e simplesmente, que o comentário é antifilosófico, e que quem desenvolve esse tipo de atividade não faz realmente filosofia. O caso é que tanto a minha postura mais tolerante quanto a postura mais radical de Murilo são habitualmente recebidas com exatamente o mesmo tipo de ódio profundo (e de cinismo, dissimulação e falsa cordialidade), sem qualquer distinção. Isto me leva a pensar que a reação do ódio profundo é totalmente emocional e não racionalmente sustentada. III – Contra a filosofia teórica, técnica e europeia: Murilo entre a arte, a história, a geografia e a filosofia O que foi falado até aqui constitui a parte mais críticonegativa da questão. Indo para as partes mais positivas, Murilo Seabra propõe neste livro três linhas de ação contra a situação antes exposta. Possivelmente não lhe agradará muito esta classificação que eu faço, já que, em seu escrito, todas estas linhas estão imbricadas, embora algumas recebam mais desenvolvimento que outras. Eu as chamo: (1) A questão empírica (contra a ideia da filosofia ser uma atividade puramente teórica); (2) A questão linguística (contra a ideia de que a filosofia precisa ser técnica); (3) A questão geopolítica (contra a ideia de que a filosofia é exclusivamente europeia). A filosofia institucional perdeu totalmente de vista a dimensão “de campo” da filosofia, abraçando a suposição de que o filósofo trata exclusivamente de ideias e não de fatos; quem lida com fatos é antropólogo ou sociólogo, não filósofo. Assim, quando o filósofo profissional abre a janela de seu quarto de manhã, ele não mais vê o brilho do sol; ele vê um texto (em alemão?) que fala do brilho do sol. (Como 19
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naquela cena do início de Zabriskie Point, de Antonioni, onde os letreiros e cartazes à beira da estrada cobrem a totalidade da paisagem). O filósofo apenas lida com textos, seu último contato com o real é a citação. Frequentemente vemos textos filosóficos que já começam com uma citação (“Em Benjamim (2001) encontramos a ideia de que...”). A ideia de Murilo é que a filosofia, numa das fases da sua libertação, deveria começar a atender seriamente para este aspecto “etnográfico” do pensamento, e tentar pensar sobre as coisas em lugar de limitar-se a citar. É claro que um texto pode virar coisa para o filósofo etnógrafo (os comentários, por exemplo), mas isto já está num registro diferente da citação; em lugar de ser citado, o texto vira objeto de curiosidade. A questão não é apenas metodológica, mas também substantiva, pois se esta dimensão empírica da atividade filosófica for suprimida, então, realmente, como foi dito a Murilo certa vez, não há diferença entre filosofar e interpretar (§29 e §317). Se, em última instância, só há textos, não há tanta diferença entre um texto original e um texto sobre um texto. O filósofo acadêmico concebe a investigação filosófica como algo que consiste em sentar-se e ler; não há saída para o exterior nesta remissão incansável de textos a outros textos (como a menina Alice presa em labirintos, conseguindo fugir de um somente para cair em outro e outro e outro). Quando o filósofo acadêmico caminha pelas ruas, e, aparentemente, “observa” o mundo ao seu redor, ele não pensa estar recolhendo material para seu trabalho. Na verdade, ele “olha sem ver”, pensando no que acabou de ler e no que ainda vai ler. Com isto, um imenso acervo de problemas filosóficos lhe escapa totalmente; para ele, o depoimento de um morador de rua sobre a morte de um colega não tem nada a ver com a filosofia; para ele, um problema filosófico é um enigma colocado por algum escritor europeu, talvez vinte e cinco séculos atrás (§142). Mas apesar 20
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da sua recusa ao empírico, quando um filósofo lê Platão ou Heidegger, a sua leitura pode ser vista também como uma empreitada empírica (§143, §148). E os próprios filósofos fizeram pesquisas empíricas, como quando Platão registrou as falas dos sofistas (§152). Para fazer filosofia, e não meros comentários, esta dimensão etnográfica do pensamento deveria ser utilizada e desenvolvida; ela foi muito importante, segundo Murilo, para outras manifestações da cultura, tais como a arte, a história e a geografia, atividades humanas em contato com o mundo e não com meras representações do mundo. Por que temos hoje uma arte brasileira admirada no planeta inteiro, mas não temos – e, se seguirmos pelo caminho atual, não teremos – uma filosofia brasileira admirada no planeta inteiro? Questão de genes? Murilo pensa que não, e isto nos leva para a segunda questão positiva, a questão linguística, e ao que Murilo chama “lutas simbólicas”. Pois para a filosofia assumir a sua dimensão etnográfica, para se debruçar sobre o cotidiano e fugir do domínio exclusivo dos livros, tem que haver uma espécie de “conversão” das pessoas e comunidades a um novo vocabulário, e as expressões cruciais tem que começar a ser entendidas de outro modo. Nesse viés, Murilo considera a filosofia enormemente atrasada em comparação com as artes, a história e a geografia. Nestes outros âmbitos culturais, durante o século XX, houve renovações extraordinárias do que tinha sido até então entendido como arte, história ou geografia, até o ponto que mentes tradicionais e conservadoras geravam invariavelmente frases como: “Isto não é arte”, “Isso não é história”, “Isto não é geografia”. Quando surge uma renovação profunda de estruturas, há uma luta pelos símbolos, pelas próprias palavras que definiram até então a atividade humana em questão (“filosofia”, “arte”, etc.) (Na Argentina, um exemplo muito apropriado disto é a discussão sobre o “tango” após o 21
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surgimento de Astor Piazzola, diante do qual os admiradores de Carlos Gardel diziam: “Pero eso no es tango!”). A história das mudanças nessas atividades humanas pode contar-se, segundo Murilo, de duas maneiras antagônicas: como a história da degradação de uma forma pura, de uma essência, ou como a história de uma ampliação de fronteiras (§102 e seguintes). A primeira impressão da nova pintura, da nova música, etc., foi que ela sofria de extrema fealdade, desproporção e desagrado, na medida em que se continuava vendo os produtos novos com os olhos antigos: há uma luta entre a visão como degradação e a visão como ampliação; se a nova visão ganhar, as coisas passarão a ser vistas da nova maneira: “As opiniões que vencem a guerra deixam de ser opiniões... Deixam de parecer performativas para parecerem puramente descritivas” (§111). O mesmo aconteceu com a história quando se passou da concepção meramente política para a concepção plural, que permitia, por exemplo, falar de uma história do meio ambiente ou de uma história das drogas (§116, §120, §300). Mas enquanto a arte, a história e a geografia se renovaram de maneira radical, a filosofia, segundo Murilo, não teve seu século XX, não houve renovação, os filósofos continuaram filosofando como faziam no século XIX (§131). Não adianta mencionar obras filosóficas renovadoras, em estilo e temática (como, digamos, A caminho da linguagem de Heidegger ou O cartão postal de Derrida), que são sempre casos excepcionais; fala-se aqui do que é produzido em massa pelos departamentos de filosofia de todo o mundo (§132). Precisamente, neste livro de Murilo Seabra se declara oficialmente a luta simbólica que deveria acontecer dentro da filosofia, a luta pelos símbolos “filosofia”, “qualidade”, “originalidade”, etc. (§315, §318, §319, §324), luta que deveria permitir o alargamento das fronteiras da filosofia, como aconteceu nessas outras áreas. Mas na 22
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situação atual de marasmo, conformismo e rotina acadêmica, a filosofia não renova seu campo de trabalho e não enriquece suas possibilidades de investigação. A questão linguística não se exaure na questão das lutas simbólicas. Segundo Murilo, não pode haver filosofia a não ser através de uma liberação da linguagem; o pensamento fluído e natural, pensado entre amigos, precisa lançar mão da linguagem cotidiana, com todas as suas “imperfeições”, suas gírias e deselegâncias, precisa fugir como da peste de qualquer “terminologia filosófica”, de qualquer jargão especializado, de qualquer linguagem empostada na qual nos sintamos na obrigação de sermos reconhecidos por algo que não somos, substituindo nossa persona filosófica por um vocabulário elegante (um traje à rigor filosófico). Já na primeira página da apresentação do seu livro, Murilo escreve: “Não temos uma sacada a expressar”. O leitor tradicional de filosofia ficará chocado com esta palavra, que mais tarde será tematizada em contraste com “insight”; quem fala e pensa academicamente terá insights, quem pensa solto e “à vontade” terá sacadas (§196). “Sem o destronamento do dialeto acadêmico, a filosofia não tem chance alguma de vir à existência” (§166). A universidade combate e exclui a linguagem local e comunal e procura substituí-la por um jargão especificamente filosófico (§169). “Se você quiser filosofar, use a linguagem que você usa quando está descontraído” (§193, §222). Pelo contrário: “(...) quem só sabe falar de forma institucional, só sabe pensar de forma institucional” (§195) A “linguagem comunal” é aquela que falamos quando estamos à vontade; aí é quando nosso pensamento dispara. Quando filosofamos livres e à vontade, a linguagem se torna uma parte inseparável de nós mesmos, enquanto que, quando filosofamos para a academia, a linguagem transforma-se num “curioso código de etiqueta” (§257). 23
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A terceira linha de ataque é a que chamo de geopolítica; além da filosofia ser puramente teórica (sem nada de empírico) e técnica em sua linguagem (sem nada de comunal ou cotidiano), ela está ligada exclusivamente com uma tradição, a ocidental europeia. A partir daí, detecta-se uma persistente assimetria entre as atitudes diante do pensamento supraequatorial e do pensamento subequatorial; a linha do Equador não é meramente geográfica. Há uma supervalorização do primeiro e uma subvalorização do segundo, o que provoca nos subequatoriais “uma sede profunda de europeidade” (§25). Os julgamentos a respeito destes dois grupos não são objetivos, mas curiosamente “rígidos”: mesmo as excelências dos subequatoriais são depreciadas, enquanto os erros e ingenuidades dos supraequatoriais são perdoados e explicados (§53). Há hipercondescendência com os supraequatoriais, nenhuma boa vontade com africanos e sulamericanos (§73, §326, §338). Não são, pois, apenas os traços internos dos textos o que conta, mas também a nacionalidade do autor (§64). As coisas estão colocadas de modo que o pensamento subequatorial se mostra sempre deficiente, diante de exigências que não podem, por definição, ser atendidas (§83). O anseio pelo europeu baseia-se mais num componente estético do que estritamente epistêmico (§91, §96). O pior é que esta assimetria é assumida, especialmente, pelos subequatoriais, e não pelos supraequatoriais: “Os esforços críticos da metafilosofia devem ser dirigidos mais contra a mentalidade dos subequatoriais do que contra a mentalidade dos supraequatoriais: não são os supraequatoriais que subestimam o pensamento subequatorial – são os subequatoriais” (§489). O movimento de resistência a isto seria, por exemplo, começar a questionar a real relevância do pensamento supraequatorial para os subequatoriais: “Não são apenas perguntas do tipo ‘O que Kant entende por juízo sintético a priori?’ e ‘O que 24
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Wittgenstein entende por ‘norma de expressão’?’ que deveriam importar aos artesãos da filosofia. Eles também deveriam fazer perguntas do tipo: ‘Qual é a verdadeira importância de saber o que Kant entende por ‘juízo sintético a priori’?’ e ‘Qual é a verdadeira importância de saber o que Wittgenstein entende por ‘norma de expressão’?’” (§275). “Kant foi um filósofo em Königsberg. Mas aqui no hemisfério sul, ele nunca foi um filósofo” (§389). IV – Murilo contra Cabrera: afinal, o que fazer com os comentadores? Até aqui tentei expor tudo aquilo com o qual concordo plenamente, aquilo que me deixa jubiloso neste metalivro. Mas nem tudo são concordâncias. Sem dúvida, não acusarei Murilo de “simplificar demasiado as coisas”. Ele escreve: “Escrever é simplificar!” e faz notar que os supraequatoriais também simplificam (§22). Penso que Murilo se dá a si mesmo o direito de simplificar porque seu protesto é necessário e premente. Gerações de jovens pensadores serão ainda sacrificadas em nome da “excelência” da obra exegética, histórica e eurocentrada. Diante da gravidade da situação, a simplificação se torna necessária. Outros talvez o acusem de criar “falsas dicotomias” (ou filósofo ou comentador), insistindo que se pode filosofar através do comentário. Já muito cedo, na apresentação, Murilo escreve: “(...) ao contrário do que muitos professores apregoam, longe de ser necessário ser um bom comentador para ser um bom filósofo, é preciso antes ser um bom filósofo para ser um bom comentador. Você precisa ter algo a dizer para ter algo a dizer sobre o que os outros têm a dizer (...)”. E ao longo do livro, ele irá arguindo de que forma aquilo que o filósofo faz é estruturalmente diferente do que o comentador faz; isto é certamente uma dicotomia, mas não uma falsa dicotomia. De
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maneira que as minhas linhas críticas não vão por aí. Há algumas questões pontuais com as quais discordo. Jamais poderia assinar embaixo do ingênuo e autobenevolente aforismo §462: “Ninguém sabe mais sobre as suas capacidades do que você mesmo”. Creio que ninguém sabe menos. Sou muito menos esperançoso do que Murilo no que se refere a “filósofos de rua” (§144, §154). Tenho bastante experiência nisto e posso dizer que as pretensas “filosofias” dessas pessoas são monótonas e desinteressantes, mistura de crenças religiosas, ressentimento social e preconceitos incutidos pelas classes dominantes. O senhor Quita (§157) poderá ser filósofo graças ao fato de que Murilo estava por perto para recolher e sublimar reflexivamente o que esse senhor disse; qualquer morador de rua se transformará num filósofo interessante se algum filósofo interessante (como Murilo) estiver por perto com uma pena na mão. Outra discordância pontual é com a questão das gírias; não creio que as gírias sejam mais criativas do que as linguagens comuns sem gírias (embora eu concorde com Murilo que as gírias sejam mais criativas do que os linguajares acadêmicos); pessoalmente, consigo pensar completamente “à vontade” sem usar gírias, mas também sem utilizar jargões incompreensíveis. Por outro lado, as gírias também se institucionalizam e passam a nivelar discursos: para dizer que algo está ótimo, sou hoje (fevereiro de 2014) obrigado a dizer: “Só ouro!”; mas não sou livre para inventar outra gíria sem ser punido com olhares reprovadores ou de incompreensão. Há, pois, uma ditadura das gírias. Creio que esta questão fica, em definitivo, no plano das preferências: Murilo sente-se à vontade com elas enquanto eu nunca senti a menor falta delas. Mas nada disto é importante. O realmente importante, a discordância crucial, está na utilização que Murilo faz da minha famosa frase: “É impossível não ser original”, dizendo que esta ideia mantém uma tolerância indesejável com os comentadores,
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que fariam “filosofia desde” em meu sentido sem qualquer problema. Então, temos que começar por recuperar o sentido primitivo dessa frase. Ela aparece em meu texto: “Descobrindo a pólvora: o caso René Descartes”, incluído em meu Diário de um filósofo no Brasil. Sua intenção original contra o comentador era dizer a ele: “Você se insurge contra a nossa pretensão de originalidade e afirma que é impossível ser original; mas, na verdade, o ser humano está feito de tal forma que nunca pode simplesmente aceitar o dado; ele sempre está além do dado e o transforma; mesmo você, comentador juramentado, que pretende ficar no frio e objetivo distanciamento do puramente descritivo, mesmo você também deturpa os autores aos quais você quer permanecer totalmente fiel. Nesse sentido, até você é original sem querê-lo, no meio da sua reverência servil ao autor (europeu)”. Esta era a intenção original. (Ver Diário, 2ª edição, p.179). Aqui Murilo se incomoda porque eu estaria com isto conferindo originalidade ao comentador e apagando as diferenças gritantes entre filósofos e comentadores. Mas a originalidade do comentador é apenas aquela que ele ganha de presente pelo fato de ser um ser humano, pelo fato de ser um ser que, inevitavelmente, transcende tudo o que toca, algo que já pode ser observado em crianças (e podia ser observado muito antes do existencialismo francês). Resta fazer as diferenças indispensáveis entre esta originalidade elementar que caracteriza o humano e as peculiaridades muito mais complexas da originalidade de um filósofo. A originalidade do filósofo não se limita ao mero transcender o dado, é um transcender criativo e perturbador. A originalidade do filósofo decorre de algo que ele fez com aquele transcender, e não do mero transcender, também presente no comentador. De maneira que as enormes, abissais diferenças que Murilo quer – e eu também quero – manter entre o filósofo e o comentador, 27
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continuarão a valer perfeitamente mesmo se a minha frase (“É impossível não ser original”) for aceita como verdadeira. Murilo entende mal a minha noção de “filosofar desde”, também apresentada no Diário, ao alegar que o comentador seria, só pelo fato de transcender o texto comentado, um filósofo-desde. Eu explico cuidadosamente a diferença entre filosofar em X e filosofar desde X; os comentadores brasileiros fazem filosofia no Brasil quando apresentam seus trabalhos em congressos; é inegável que eles estão fazendo filosofia no Brasil; mas eles não fazem filosofia desde o Brasil, no sentido de tecerem comentários impessoais e anônimos, não autorais, que poderiam perfeitamente serem feitos desde Berlim, Londres ou da Escandinávia. Não há nenhum cuidado em situar os pensamentos, em ver as peculiaridades da origem de uma reflexão, pois rapidamente – como Murilo mostra bem – é imposta uma situação reflexiva que não é a nossa (e é isso o que torna Kant um filósofo em Königsberg mas não em Brasília, com o que concordo plenamente). Mas então é totalmente falso dizer que um comentador consegue ser um “filósofo desde” na minha perspectiva. Pelo fato de comentar europeus exclusivamente, e com o “desde” dos europeus, ele já está radicalmente excluído do âmbito do que chamo um “filosofar desde”. Portanto, é totalmente absurdo sugerir que a noção de “desde” compactua com a manutenção do eurocentrismo (§377). Mas como Murilo é um filósofo e não um comentador, ele deturpa a minha ideia de “desde” em lugar de estudá-la e compreendê-la pacientemente, como faria um bom comentador. Afinal de contas, Murilo vai além da minha frase, como acontece sempre, mas de uma maneira criativa que o comentador é incapaz de executar. Já numa nota de rodapé da segunda edição do meu Diário (p.180), eu menciono a observação de Murilo de que isto concederia originalidade ao comentador; eu respondo 28
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dizendo que sim, que não tenho o menor problema com isso; para fazer a diferença que nos interessa, ainda seria necessário levar em conta qual tipo de transcender o dado caracteriza o comentador e qual tipo de transcender o dado caracteriza o genuíno filósofo, e aqui as enormes e abissais diferenças que Murilo quer manter apareceriam novamente. Mas dizer que um comentador consegue permanecer totalmente fiel ao que comenta, seria afirmar não que o comentador é um mal sujeito, um ser humano errado, maldoso ou incompetente; seria afirmar que o comentador é uma máquina; seria despojar o comentador da sua característica de humano; é isso o que queremos? Fazer com o comentador o que os espanhóis e portugueses fizeram com os indígenas da América, negar-lhe a mera humanidade? Devemos considerá-lo um monstro para poder combatê-lo? Vejamos em detalhe o que Murilo fez com a famosa frase. O que primariamente lhe incomoda é que o comentador não é atacado com o devido vigor: “As ideias de Cabrera me parecem bem formuladas e convincentes. O meu coração, porém, hesita entre abraçá-las integralmente ou reprová-las por não golpearem com o devido vigor o filosofar do tipo ‘a’” (§377). O filosofar do tipo ‘a’ é o do comentador: “consiste em ensinar e discutir a filosofia produzida na Europa e nos Estados Unidos com um grau moderadíssimo de consciência crítica (...)”, §374). Ele acha que o fato de hoje estarmos imersos numa terrível tirania do filosofar de tipo ‘a’ habilita – e inclusive exige – assumir diante dela uma atitude de total rejeição. Segundo ele, não se negocia com uma tirania: se derruba; não há mesa de negociações, apenas revolução armada. No mesmo aforismo, ele propõe a noção de “impacto” para tentar desempatar a situação. Uma obra filosófica deve ter impacto pelo menos no local onde ela nasce. E é esse impacto o que a genuína obra filosófica teria, e o comentário não (apesar 29
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de ambos serem “originais” no sentido de transcenderem o dado). Os textos “filosóficos” produzidos pelas universidades não têm impacto na comunidade extra-universitária e nem mesmo dentro da universidade (§382). No que considero um erro de leitura, ele afirma que muitos destes textos poderiam “até estar de acordo com o ‘filosofar desde’ de Cabrera”, o que é falso; minha noção de “desde” deixa de fora todo transcender do dado meramente exegético e centrado na Europa. Aqui Murilo inventou uma controvérsia entre nós que não existe (e não viu outra que existe, da que falarei logo a seguir). Ele pensa que porque se concedeu ao comentador o mero transcender humano do dado, se concedeu ao comentador o caráter de filósofo original pleno; falta sutileza de análise aqui: o bisturi tem que entrar na carne e distinguir nitidamente os tipos de transcendências, a do filósofo e a do comentador. O mero fato de transcender o dado não transforma o comentador magicamente em filósofo, como Murilo acredita em todo o longo e apaixonado aforismo §382. Ele desafia a encontrar então quais seriam as ideias originais de um comentador de Wittgenstein; você não vai encontrá-las (para tranquilidade de Murilo). Você só vai encontrar frases, termos e proposições do comentador que não estavam no texto original de Wittgenstein; ao tentar reescrever o autor comentado, ele o colocou de outra maneira (e é isso o que dá pé às intermináveis discussões nos congressos de filosofia: cada um dos comentadores defende a sua exegese como sendo a mais fiel ao autor, o que mostra que eles se afastaram da fonte de uma maneira perceptível). Tudo isso é muito pouco para tornar filósofo um comentador; nem todo ir além é criativo e autoral. E é por isso que você não entrará num mestrado com um projeto sobre as ideias de um comentador de Wittgenstein; mas nada disto derruba a ideia de que é impossível não ser
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original no sentido do inevitável transcender do dado, que parece ser uma característica do humano. O ponto controverso é que enquanto para mim o problema do comentarismo consiste na sua pretensão à exclusividade e unicidade, para Murilo o comentário constitui uma forma de filosofar intrinsecamente problemática. Ele é, pois, contra a minha ideia de considerar o comentário como uma das formas que a filosofia pode legitimamente adotar (§405). Ele admite que o comentário seja uma forma de codificar nossos pensamentos, mas isto fica muito aquém de um genuíno filosofar. Seu argumento é bom: em comentários, o comentador não pode expressar livremente seu pensamento, como o filósofo pode fazer em diálogos, aforismos ou cartas. Um bom comentário implica que seu autor ficou em segundo plano, e isso não é filosofar; filosofar é expressar os próprios pensamentos livremente (§414). “Infelizmente”, diz ele, “trata-se da única forma admitida nos departamentos de filosofia brasileiros. (...) Então, será que os departamentos de filosofia brasileiros estão na verdade cheios de filósofos, cheios de gênios?” (§405). Suponho que a resposta negativa a isto ficou clara pelo anterior. Na verdade, os comentadores não se disfarçam de filósofos; apenas os transcendem em mudanças de expressão, e depois ficam anos e anos discutindo sobre elas. Os seus disfarces nem chegam a ser disfarces. Realmente, este mero transcender de expressões (o que Murilo chama, em outros lugares, de reescrever o que já foi escrito), continua contribuindo para a canonização dos filósofos europeus. Concordo plenamente com o aforismo §407: se o comentário é apenas uma das formas de filosofar, já não passou da hora de experimentar as outras? Este é o ponto! Por isso, o §410 vai novamente na direção errada: é claro que a academia não está justificada em exigir que os estudantes desenvolvam os pensamentos dos filósofos
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canônicos, se é isso a única coisa que eles podem fazer; mas não vejo o que haveria de errado em deixar os estudantes que querem comentar filosóficos canônicos comentá-los. Os aforismos §418 e seguintes são um tanto equívocos; parece-me que eles são fortemente ditados por uma maneira de filosofar que Murilo, em certos momentos do seu livro, denomina de “geométrica” (§393, §463), e que não é certamente a minha. Ele coloca exemplos de triângulos e quadrados, problemas que possuem uma objetividade esmagadora, que a imensa maioria dos problemas filosóficos não possuem: é mais fácil alguém reproduzir um triângulo azul diante de um triângulo azul do que alguém reproduzir, digamos, a ideia da morte da arte em Hegel exatamente nos mesmos termos de Hegel; de maneira que os exemplos colocados em §418 podem cometer a falácia da falsa analogia. Mas eu diria que mesmo diante de figuras de cores, já à criança humana custa muito reproduzir as figuras tal qual as vê; sempre há uma subjetividade em jogo (este é um termo que não aparece no livro num viés hermenêutico-existencial) que enfeita, aumenta, diminui, acentua, escamoteia, etc. Murilo debocha aqui da ideia de que é impossível não inovar, mas trata-se de uma ideia perfeitamente compreensível: os humanos tem problemas em simplesmente repetir o dado. Talvez a concepção geométrica de filosofia seja herdada de Wittgenstein, que tampouco fala em subjetividade e excessos existenciais; o próprio Murilo admite que pode ter “incorporado” Wittgenstein ao tentar enfrentar a ideia cabreriana da impossibilidade de não inovar. Os resumos da situação expostos em §429 e §434 são completamente geométricos, e não considera mediações: é claro que a “metafísica da inovação” autoriza o comentar; apenas desautoriza a exclusividade do comentar. Portanto, o “então vamos comentar!” de §429 não decorre, assim como não decorre o “(...) não precisamos nos 32
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entregar à tarefa de filosofar, visto que, de um jeito ou de outro, ela será inevitavelmente realizada”. O raciocínio mais correto seria dizer: “A ‘metafísica da inovação’ autoriza o comentário como uma forma entre outras de filosofar; mas essa forma é extremamente limitada e pobre; vamos então explorar as outras!” Ou dizer: “Mesmo que, inevitavelmente, iremos além do dado, tentemos ir além do dado de maneiras mais criativas do que o comentar”. Parece-me que, neste ponto, as diferenças entre Murilo e Cabrera são políticas, e não estritamente conceituais. Ambos concordamos que o comentador faz algo que empobrece enormemente as possibilidades da filosofia, e que ele obstaculiza o desenvolvimento de outras formas de filosofar. Mas enquanto eu não tenho problemas em manter o comentar como uma forma entre outras de se fazer filosofia, Murilo quer destruí-lo, quer tomar o poder que ele possui e substituí-lo por outro, norteado por outros valores. O erro consiste em passar da crítica ao transcender comentador como insuficiente (concordância) para a atitude da destruição do comentador. Concordamos plenamente com o diagnóstico, mas não com o procedimento. Se o comentador está hoje armado de metralhadora e os filósofos autorais apenas com pedras, é preciso desarmar o comentador; não se trata de pronunciarse em seu favor ou colocar-se ao seu lado (§414). Realmente, o comentador-tirano deve ser derrotado. Entretanto, o saldo dessa luta deveria ser que autores e comentadores, ambos desarmados, façam filosofia como quiserem. Para o autoral, fazer filosofia consiste em expressar os próprios pensamentos livremente; para o comentador, filosofia é percorrer autores e tentar parafraseá-los. Para cada um deles, o outro não estará fazendo genuína filosofia. Talvez eu queira utilizar o tempo que Murilo gasta em destruir comentadores para construir as formas de filosofia que o comentador ignora. O grande 33
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problema do comentador não é que ele comenta; o grande problema do comentador consiste nas forças políticas que ele é capaz de mobilizar para impedir que se faça outra coisa além de comentar, que é só o que ele sabe fazer. A dificuldade do comentarismo é a mesma de qualquer outro dogmatismo: a sua incapacidade para se reconhecer como um entre muitos, e o querer reivindicar unicidade e exclusividade. Mas não há nada intrinsecamente perverso no comentar. O ódio profundo de Murilo pelos comentadores deixase ver em alguns aforismos que estão além da contundência e mais perto da simples agressividade; por exemplo, segundo ele, qualquer trabalho universitário constitui um “deverzinho de casa” (§7, §59); qualquer estudioso transforma-se num “espanador” (§9), que remove a poeira dos livros em lugar de pensar; os comentários são “sempre rasos e sempre risíveis” (§59); e: “Quem ainda quiser defender que nos departamentos de filosofia se faz história da filosofia, precisará estar preparado para defender que a revista de celebridades Caras é uma revista de sociologia” (§123). Ou: “O único que se pode fazer é somente jogar uma chave inglesa nas engrenagens que mantêm os departamentos de filosofia brasileiros funcionando a todo vapor – e atrapalhar um pouco o seu ininterrupto processo de fabricação de comentadores” (§323); ou: “Para se fazer filosofia, é preciso tomar aquilo que se faz nos departamentos brasileiros de hoje como um modelo do que não se deve fazer” (§443); ou: “Quem se protege atrás de autores cujo mérito não está em questão não é nada mais e nada menos do que um covarde: os comentadores fazem pouco exteriormente por serem pouco interiormente” (§457). No curioso epílogo autobiográfico, um tanto ficcional, achamos frases como “O crime organizado está no poder”, assim como louvores incondicionais a Theodore Kackzynski. Às vezes, a mira da arma está mais cuidadosamente focada em alguém, como, por exemplo, Marilena Chauí. 34
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O comentador almeja “encontrar o seu próprio Spinoza e tornar-se mais uma Marilena Chauí” (§2); os departamentos de filosofia assumem como óbvio “que fazer filosofia é fazer o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do real (expor os pensamentos de outrem)” (§324; ver também: §344, §352, §354, §355, §358, §361, §406, onde Chauí e Spinoza são focados mais como fenômenos sociais e institucionais usados para veicular a ideologia do comentarismo, do que propriamente como filósofos, como o próprio Murilo o coloca na Apresentação). Meu problema aqui é o seguinte: se o comentador tem que ser destruído como comentador, e não apenas como tirano (ou seja, como alguém que não deixa filosofar de outra maneira a não ser comentando), o ideal de Murilo é a substituição de uma tirania por outra. Porque eu suponho que na república de Murilo estará proibido comentar por considerar-se oficialmente que se trata de uma maneira empobrecedora de filosofar (algo com o qual concordamos); os estudantes serão obrigados a criar filosofia autoral própria e quem quiser meramente comentar autores será excluído, mesmo que seja de maneiras sutis e indiretas (de maneira semelhante a como, na situação atual, são excluídos estudos sobre filósofos latino-americanos, sem proibições explícitas, mas de maneira sorrateira: não tem orientadores, não há linhas de pesquisa sobre esses temas, etc.). Se o comentar tem algum “vício intrínseco” que deva ser eliminado, ele não pode ser deixado como uma forma entre outras de filosofar, mas deve ser radicalmente extirpado como uma erva daninha. Bom, isto eu não posso aceitar, porque não consigo descobrir qual seria o argumento que me serviria para excluir a tirania comentarista e me permitiria admitir a tirania autoral. Assim como uma sociedade livre não é uma sociedade sem submetidos, mas uma sociedade onde alguém possa decidir se quer ou não se submeter a outro, uma sociedade
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filosófica livre não é uma sociedade sem comentadores, mas uma sociedade onde alguém possa decidir se quer ou não ser comentador; em nossa situação atual, isso não pode ser decidido; isso está imposto. Aqui realmente a questão toda se assume como uma luta (não apenas simbólica) em termos de vencedores e vencidos; não há nada para entender ou analisar; trata-se de ocupar belicamente um terreno ocupado pelo inimigo. Os aforismos 473 e 474 afirmam isto claramente. Ao referir-se às lutas na arte, na história e na geografia do século XX, Murilo diz que se pode assumir duas posturas diante delas: engajar-se num dos lados erguendo uma bandeira ou “(...) sair do campo de batalha para examiná-la através de uma lente de aumento”, “colocá-la em perspectiva”. “De fato, mais interessante do que torcer para um time e entrincheirar-se contra o time adversário, é ver a profunda necessidade que um tem do outro (...)”. E ainda: “(...) torna-se claro que as partes litigantes numa luta simbólica tentam sempre solidificar as opiniões que defendem, e volatizar as opiniões que atacam...”. No aforismo seguinte, Murilo descarta a segunda postura: “Não existem critérios que possamos usar para observar as lutas simbólicas confortavelmente sentados do lado de fora da arena, critérios que possamos usar para determinar quem está com a razão independentemente de quem vence a disputa (...)” (§474). Mas precisamente porque não temos nenhum critério externo para julgar quem está certo ou errado, o mais sensato seria aceitar todas as posturas sem transformar nenhuma delas no padrão geral e obrigatório. A primeira coisa a ser feita seria destruir a atual hegemonia do comentarismo; o segundo passo consistiria em dar um lugar para o comentário na nova ordem; de hegemônico, o comentário passaria a ser um entre muitos. Caso contrário, o autoritarismo terá simplesmente mudado de lugar.
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O manifesto metafilosófico está escrito e era preciso escrevê-lo. Curiosamente, foi uma pura contingência (a hegemonia do comentarismo) que tornou necessário este livro. Mas a necessidade deste Metafilosofia tornou agora necessário que Murilo escreva, no futuro, seus livros filosóficos mais contingentes. Que mostre o que deve ser feito após ter mostrado, com tanta lucidez, o que não deve ser feito.
Julio Cabrera. Brasília, fevereiro de 2014.
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METAFILOSOFIA Lutas simbólicas, sensibilidade e sinergia intelectual
Murilo Seabra
“Parece também que a organização do cérebro é menos perfeita nos dois extremos. Nem os negros nem os lapões têm a inteligência dos europeus.” Jean-Jacques Rousseau
“Mansidão e indiferença, humildade e submissão perante um crioulo, e mais ainda perante um europeu, são as principais características dos americanos do sul, e ainda custará muito até que europeus lá cheguem para incutir-lhes uma dignidade própria. A inferioridade desses indivíduos, sob todos os aspectos, até mesmo o da estatura, é fácil de se reconhecer.” Georg W. Hegel
“O bom desempenho numa disciplina ou série de disciplinas pode ser a mais coerente decorrência da apatia de um estudante. Da mesma maneira, o mau desempenho pode ser o atestado mais significativo de envolvimento com os estudos. Somente para quem não filosofa o desempenho é uma questão crucial para a filosofia.” Gabriel Antunes
“Antes de mais nada, quero dizer que a vitória extraordinária do Brasil foi a vitória do futebol. Do futebol que o Brasil joga, sem copiar de ninguém, fazendo da arte de seus jogadores a sua força maior e impondo ao mundo futebolístico o seu padrão, que não precisa seguir esquemas dos outros, pois tem sua personalidade, a sua filosofia e jamais deverá sair dela.” João Saldanha
Apresentação
É quando escrevemos para as pessoas que fazem parte do nosso círculo de amizades – e não para a academia – e não para receber uma nota numa disciplina – que os nossos dedos se sentem realmente à vontade para correr livremente sobre o teclado. No primeiro caso, escrevemos praticamente sem pensar. Ou melhor, o ato de escrever e o ato de pensar se fundem numa unidade: pensamos à medida que escrevemos, e escrevemos à medida que pensamos. Tudo é natural. Não escrevemos tentando passar a impressão de que somos o que não somos. Não nos preocupamos em ser sérios e empostados, muito menos esnobes e empolados. Não substituímos as nossas palavras de uso diário por palavras de uso exclusivamente universitário. Não substituímos a nossa forma natural de expressão por uma forma artificial que visa gerar a impressão de que realmente sabemos do que estamos falando. Não escrevemos preocupados com a estética do saber. No segundo caso, também escrevemos praticamente sem pensar. Mas agora é porque todo o pensamento foi elaborado antes de sentarmos para escrever – ou porque simplesmente não foi elaborado. Não temos uma sacada a expressar. Não temos realmente nada a expressar. O ato de escrever e o ato de pensar se apartam, se distanciam – um some da vista do outro. Tudo é artificial. Escrevemos tentando passar a impressão de que somos o que não somos: preocupamo-nos em ser sérios e empostados, bem como esnobes e empolados:
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substituímos as nossas palavras de uso diário por palavras de uso exclusivamente universitário: substituímos a nossa forma natural de expressão por uma forma artificial que visa gerar a impressão de que realmente sabemos do que estamos falando. Em poucas palavras, escrevemos preocupados com a estética do saber. A adoção da estética da austeridade como uma tática para gerar a impressão de conhecimento é extremamente infeliz. Do ponto de vista estilístico, a filosofia andou na contramão da literatura do século XX. A primeira se enrijeceu e se mediocrizou, e o seu apequenamento estético não foi compensado por nenhum ganho epistêmico; pelo contrário, é justamente por causa dessa clausura estética que vastos territórios reflexivos permanecem ainda completamente inexplorados. Já a segunda ampliou não apenas os seus horizontes temáticos, como também os seus recursos expressivos. Enquanto a literatura usa fartamente a linguagem coloquial, já não distinguindo mais entre os termos cultos e as gírias, enquanto a literatura torce ferozmente a gramática e a ortografia, admitindo dentro dos seus domínios o que era antes terminantemente proibido, a filosofia continua humilde e obedientemente na era do narrador onisciente. Eu não fui ousado do ponto de vista estilístico neste livro. Eu apenas escrevi sem pensar. De fato, uma parte considerável das reflexões reunidas aqui foram originalmente formuladas em e-mails enviados aos meus amigos. E o que elas carregam em comum é a expressão de um desejo bem simples: abrir espaço para o florescimento da filosofia. Por mais que divulgar e comentar as obras dos filósofos supraequatoriais tenha lá o seu valor, comentar nunca foi, não é e nunca será igual a filosofar. Além do mais, ao contrário do que muitos professores apregoam, longe de ser necessário ser um bom comentador para ser um bom filósofo, é preciso antes ser um bom filósofo
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para ser um bom comentador. Você precisa ter algo a dizer para ter algo a dizer sobre o que os outros têm a dizer. Relendo hoje as notas reunidas aqui, fiquei com a impressão de que fui várias vezes mais agressivo do que o necessário e do que o desejável. Mas acho que não há razão alguma para suprimir a minha cólera e abrandar o meu tom agora. Este livro é acima de tudo um registro da minha indignação com a situação a qual os estudantes dos departamentos de filosofia brasileiros estão sujeitos. Acho que preciso esclarecer um ponto. Em vários momentos, eu menciono a professora Marilena Chauí, a maior especialista brasileira em Spinoza, para ilustrar as minhas críticas. Mas eu uso o nome de Marilena Chauí como uma entidade cultural. O meu objetivo não é de modo algum criticála e sim criticar a insistência da maior parte dos professores dos departamentos de filosofia brasileiros de que se deve comentar e não filosofar, o que pode ser expresso por “O que se deve fazer é o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do real, não o que Spinoza fez quando escreveu a Ética”. Portanto, o que pode parecer à primeira vista uma crítica à Marilena Chauí é na verdade uma crítica à mentalidade reinante nos departamentos de filosofia brasileiros. É lamentável o fato de que ela conquistou respeito e admiração dentro da comunidade acadêmica não por suas próprias ideias, mas por seus comentários a Spinoza. Naturalmente, o problema não foi que ela escreveu uma obra monumental sobre um pensador clássico: ela tem direito de fazer o que quiser com o tempo de que dispõe para escrever. O problema é que se ela tivesse escrito uma obra monumental com os seus próprios pensamentos, ela muito provavelmente teria sido ridicularizada pela comunidade filosófica brasileira. O problema não está nos interesses teóricos particulares da Marilena Chauí (embora seja, sim, relevante perguntar como eles se constituíram), mas 47
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na mentalidade reinante nos departamentos de filosofia, que lutam tanto no plano institucional quanto no plano simbólico para literalmente massacrar qualquer movimento em direção à originalidade. E as mesmas observações valem, sem dúvida, para o professor Roberto Machado. As minhas críticas se dirigem à mentalidade que o louva não como pensador, mas como comentador. É inadmissível o fato de que um projeto de pós-graduação sobre as suas ideias não tem a mínima chance de ser aceito nos departamentos de filosofia brasileiros. É inadmissível o fato de que as suas obras só podem figurar na seção da bibliografia reservada para a literatura secundária, não na seção reservada para a literatura primária. Não tive a ajuda de um revisor. Também não domino bem a nova ortografia da língua portuguesa, que me pegou de surpresa. Então, espero que os meus erros de português sejam perdoados (achei melhor publicar logo este livro do que aguardar até que todos eles fossem corrigidos). De qualquer maneira, a melhor forma de ler este livro não é com as pontas dos dedos – é com os órgãos internos. Murilo Seabra.
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A arte de analisar poeira BLOCO 1
A arte de analisar poeira
1 No âmago do comentador fermenta uma dor indizível: “Eu queria ter tido essa ideia”. 2 Como os comentadores odeiam quem se atreve a sair do território do reescrever para entrar no território do escrever, quem se atreve a sair do território do repensar para entrar no território do pensar, quem se atreve a sair do território da repetição para entrar no território da inovação! Como eles odeiam quem se atreve a sair do território do comentar para entrar no território do filosofar! Como eles odeiam! Como eles odeiam! Trata-se de um ódio profundo... Trata-se de um ódio descomunal... Que fica muito bem escondido atrás de um ar de superioridade: “Você acha que está sendo original? Você só está repetindo o que outros filósofos já disseram! Você está apenas reinventando a roda!”, atrás de conselhos aparentemente responsáveis: “Você deveria estudar mais a fundo a história da filosofia! Sim, você deveria estudá-la mais a fundo! É preciso primeiro conhecer o que já foi feito! Só depois você terá condições de saber se as suas ideias são realmente novas! Só depois você terá condições de oferecer
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uma contribuição verdadeiramente original, verdadeiramente própria!”, e atrás de uma metafísica assustadoramente fatalista: “É impossível ser original nos dias de hoje... Nos tempos de Tales, era possível... Nos tempos de Descartes, era possível... Nos tempos de Heidegger, era possível... Mas nos dias de hoje? Ah, é impossível! Tudo já foi escrito!”. E o que ele está querendo é que você se conforme a fazer o que ele faz: o que ele está querendo é que você se conforme ao uso das funções de copiar e colar, CTRL+C e CTRL+V. O que ele está querendo é que você não use a sua energia! O que ele está querendo é que você abra mão das suas forças reflexivas! O que ele está querendo é que você jamais coloque o seu intelecto para trabalhar a todo vapor! O que ele está querendo é que você estabeleça em seu horizonte um objetivo absolutamente medíocre: o de ser um mero comentador, apenas um mero comentador, nada além de um mero comentador. Pois ele estabeleceu para si mesmo um objetivo absolutamente medíocre: o de encontrar o seu próprio Deleuze e tornar-se mais um Roberto Machado! Pois ele estabeleceu para si mesmo um objetivo absolutamente medíocre: o de encontrar o seu próprio Spinoza e tornar-se mais uma Marilena Chauí! Tornar-se um comentador reconhecido, um comentador respeitado, um comentador imbatível: o que mais pode almejar um professor de filosofia brasileiro? Sim, os professores de filosofia brasileiros acalentam o sonho de serem eruditos. E eles querem que os estudantes acalentem o mesmo sonho: o de serem eruditos, apenas eruditos, nada mais do que eruditos. 3 Ah, como os comentadores adorariam saltar na garganta de quem se atreve a perseguir o ideal de escrever ao invés do ideal de reescrever! Mas eles represam os seus impulsos em nome de
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uma estratégia mais sutil, mais civilizada: a de deslegitimá-los, a de estigmatizá-los, a de torná-los alvo de riso, a de tornálos alvo de escárnio, a de despojá-los de sua lucidez, de sua sobriedade, de sua seriedade, de seus conhecimentos: “Você deveria estudar mais a fundo a história da filosofia! Sim, você deveria estudá-la mais a fundo! É preciso primeiro conhecer o que já foi feito! Só depois você terá condições de oferecer uma contribuição verdadeiramente original, verdadeiramente própria!”. Mas por que você acha que quero contribuir para as discussões típicas da história da filosofia ocidental? E por que você acha que conhece a história da filosofia ocidental mais a fundo do que eu? Acaso você sabe até onde realmente chegam os meus conhecimentos? O comentador passa de “Ele está fazendo uso de suas forças reflexivas a fim de pensar ao invés de repensar, a fim de desdobrar as suas próprias ideias ao invés de desdobrar as ideias alheias” para “Ele é um irresponsável, ele é um ingênuo, ele não tem conhecimentos acadêmicos, ele ignora a história da filosofia” de forma automática e irrefletida. Aos olhos dele, todo mundo que se coloca a trabalhar em sua oficina está necessariamente se colocando a trabalhar na reinvenção da roda. 4 Então, não se espante se o seu professor desdenhar das suas ideias! Não se espante se ele tratá-las com sarcasmo! Ele não quer que você faça o que ele não faz! Ele não quer que você mostre que consegue fazer o que ele não consegue fazer! 5 A maioria dos professores não tem o menor interesse em ajudá-lo a desenvolver as suas ideias. Pelo contrário, se você
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mostrar a eles os seus rascunhos, eles provavelmente tentarão redirecionar a sua energia e transformá-lo em mais um exegeta. É infinitamente melhor discuti-las com amigos! Sim, é infinitamente melhor discuti-las com amigos! Não há espaço para o desenvolvimento de ideias próprias nos departamentos de filosofia brasileiros de hoje... Realmente, não há espaço... Infelizmente, não há espaço... Mas não deixe de trabalhar em seus pensamentos só pelo fato de que a universidade não serve como uma oficina! 6 O que você gosta de fazer com a sua energia? Você gosta de trabalhar em sua oficina? Então, trabalhe em sua oficina! Você gosta de pensar a todo vapor? Então, pense a todo vapor! 7 Os seus deverzinhos de casa, escreva-os para a academia. E as suas ideias, escreva-as para os seus amigos. Pois a academia não está interessada nas suas ideias, e os seus amigos não estão interessados nos seus deverzinhos de casa. 8 Não tome a filosofia acadêmica como um parâmetro na hora de desenvolver as suas ideias! Elas não precisam ter nenhuma semelhança com as ideias que circulam dentro da academia. 9 Eu não tinha entrado no curso de filosofia para ficar desempoeirando os clássicos, eu não tinha entrado no curso
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de filosofia para virar um espanador – então, revoltei-me, revoltei-me, revoltei-me: e gritei todos os argumentos que consegui formular contra o fato de que os absurdos escritos pelos estudantes eram vistos de cima para baixo (isto é, com um olhar hipercrítico), ao passo que os absurdos escritos pelos filósofos de renome eram vistos de baixo para cima (isto é, com um olhar hipercondescendente). Gritei, gritei, gritei – até ficar rouco – contra aquilo que queriam fazer de mim: contra o fato de que eu não poderia optar entre ser um filósofo e ser um espanador – contra o fato de que eu precisava, ao contrário, optar entre ser um espanador e não ser nada dentro da academia. 10 É importante escrever trabalhos acadêmicos! É importante escrever comentários! É importante escrever exegeses! É importante! De fato, não há nada mais importante aos olhos da academia... A maior parte dos professores de filosofia não está realmente interessada no que você pensa, não está realmente interessada nas suas ideias... Apenas em ver se você absorveu bem a matéria! Apenas em ver se você tem uma boa memória! Apenas em ver se você domina com destreza a arte de usar as funções CTRL+C e CTRL+V! Sim, o que os professores de filosofia brasileiros de hoje fazem é apenas treinar os estudantes a usarem com destreza as funções CTRL+C e CTRL+V! Reescreva a filosofia de Wittgenstein usando as suas palavras! Ou a filosofia de Heidegger! Ou a filosofia de Deleuze! Ou a filosofia de Agamben! Explique as ideias deles! Mostre que você absorveu as descobertas deles e que você é capaz de leválas adiante e de desdobrá-las! Mostre que você é um bom discípulo! Mostre que você é um bom boneco de ventríloquo! Sim, mostre que você consegue emprestar as suas cordas vocais
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aos pensamentos dos outros! Mostre que você pode ser um fiel porta-voz de um filósofo europeu ou norteamericano de renome! Mostre que você tem condições de entrar para o time empenhado em torná-lo um filósofo de renome! 11 Sim, o que os professores de filosofia brasileiros de hoje fazem é apenas treinar os estudantes a usarem com destreza as funções CTRL+C e CTRL+V! Reescreva a filosofia de Wittgenstein usando as suas palavras! Ou a filosofia de Heidegger! Ou a filosofia de Deleuze! Ou a filosofia de Agamben! Os nomes não importam tanto... Eles mudam de tempos em tempos... O que não muda é o fato de que você precisa escolher um filósofo importante aos olhos dos professores do departamento e usar as suas forças reflexivas para escrever sobre ele... Sim, um filósofo importante aos olhos dos professores do departamento! Nunca lhe ocorreu que “ser um filósofo importante aos olhos dos professores” não é o mesmo que “ser um filósofo importante”? Nunca lhe ocorreu que podem haver filósofos importantes que os professores não tomam como importantes? Ou que os filósofos que eles tomam como importantes podem não ser importantes? Você entende a expressão “filósofo importante aos olhos dos professores” como se ela significasse simplesmente “filósofo importante”? 12 Reescreva a filosofia de Wittgenstein usando as suas palavras! Ou a filosofia de Heidegger! Ou a filosofia de Deleuze! Ou a filosofia de Agamben! Os nomes não importam tanto... Eles mudam de tempos em tempos... O que gera a impressão de avanço, a impressão de progresso... Os filósofos recém
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traduzidos imediatamente empurram os anteriores para o final da fila! 13 Os chamados “analíticos” e os chamados “continentais” não brigam tanto: estão ambos com os olhos voltados para o hemisfério norte ocidental. 14 A maior parte dos professores de filosofia não está realmente interessada no que você pensa, não está realmente interessada nas suas ideias... Apenas em ver se você absorveu bem a matéria! Apenas em ver se você tem uma boa memória! Sim, é importante mostrar na atual conjuntura que se tem uma memória prodigiosa... Muito mais do que mostrar que se tem também capacidade de raciocínio! “Mas você está simplificando as coisas: não é verdade que os professores não se interessam pela capacidade de raciocínio dos estudantes!”. Mas às vezes é preciso simplificar as coisas para enxergá-las! Você já viu um mapa que não simplifica o que ele mapeia? Dizer que os professores estão mais interessados na memória do que no raciocínio dos estudantes não é uma simplificação irresponsável e gratuita; pelo contrário, é uma formulação em palavras simples das diretrizes que orientam as suas aulas. 15 É importante escrever deverzinhos de casa! Mas escrevêlos não é um trabalho importante em si mesmo... Toda a sua importância vem do fato de que os professores fazem com que seja importante. “Deverzinhos? Essa é uma expressão muito
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depreciativa!”. A qualidade dos deveres de casa depende da quantidade de liberdade concedida aos estudantes. 16 Com esmero! Escreva os seus deverzinhos de casa sobre Wittgenstein e Heidegger com esmero! Sim, escreva-os com esmero! Mas não se esqueça de que eles são apenas deverzinhos de casa! Apenas deverzinhos de casa! E se não foi simplesmente para adquirir um diploma que você entrou no curso de filosofia? E se não eram deverzinhos de casa o que você realmente queria escrever? 17 Por que você entrou no curso de filosofia?! 18 Você entende a expressão “filósofo importante aos olhos dos professores” como se ela significasse simplesmente “filósofo importante”? Definitivamente, existe um problema com a expressão “filósofo importante”! Sim, existe um problema com ela! Pois não há filósofos importantes em si mesmos! Na verdade, um filósofo importante é apenas um filósofo importante aos olhos de quem o considera importante! Aos olhos de quem batalha para torná-lo importante! E também, naturalmente, aos olhos de quem é convencido a considerá-lo importante! 19 O que faz um filósofo ser um filósofo importante?
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20 Não consideramos os filósofos importantes por eles serem importantes. Eles são importantes por nós os considerarmos importantes. 21 Ah, existem filósofos demais para serem todos considerados importantes! É preciso, portanto, submetê-los a uma triagem... Pois não cabem todos no curso de filosofia! Não cabem! Mas como fazer uma triagem que respeite a ordem objetiva das coisas? Isto é, como fazer uma triagem que espelhe a real importância deles? Mas eles mesmos não se organizam de forma espontânea e objetiva numa fila onde primeiro figuram os mais importantes e por último os menos! São as pessoas que os organizam em fila! São as pessoas! Ou melhor, são os professores! E você está de acordo com eles? E você já se perguntou como é que os professores dos departamentos de filosofia fazem as escolhas deles? Mas a escolha é feita mesmo por eles? Ou ela foi feita para eles – assim como está sendo feita para você? 22 Para um filósofo figurar no começo da fila, ele precisa, antes de mais nada, provir do hemisfério norte ocidental. “Mas você está simplificando as coisas! Por exemplo, não estudamos filósofos portugueses!”. Sim, estou simplificando as coisas – é importante simplificá-las. Um mapa de uma cidade pode muito bem se contentar em mostrar as suas ruas e avenidas, negligenciando os seus quebramolas e as rachaduras das suas calçadas! Um mapa que subtrai, que desconsidera, que
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elimina informações não é necessariamente um mapa que as deturpa! Pelo contrário! Da mesma forma, é absolutamente natural simplificar ao escrever... É absolutamente natural! Sim, escrever é simplificar! Os detalhes têm lá a sua importância... Mas é preciso antes de tudo ter uma visão geral das coisas para saber onde e como situá-los... Sim, sempre se subtrai, sempre se desconsidera, sempre se elimina quando se escreve! Sempre! Ou você acha que os seus queridos filósofos do hemisfério norte ocidental não simplificam ao escrever? Ah, como é forte o impulso para protegê-los! Os filósofos supraequatoriais não simplificam a realidade! Eles não subtraem, não desconsideram, não eliminam nada.... Eles mantêm todos os quebramolas e todas as rachaduras das calçadas! Por outro lado, como os subequatoriais são enviesados! Não os li... Não os li... Mas eu sinto que são enviesados! Sim, eu sinto! Eles subtraem, desconsideram e eliminam precisamente os dados mais importantes! Ah, como eles são enviesados! Quando os supraequatoriais simplificam a realidade, é para depurá-la e revelar os seus aspectos essenciais... Quando os subequatoriais a simplificam, é para deturpá-la. Pura e simplesmente, para deturpá-la. 23 Quando lemos filósofos com os quais nos sentimos indispostos de antemão, pensamos em linhas de crítica nas quais nunca pensaríamos se nos contentássemos apenas em ler filósofos com os quais estamos sentimentalmente prontos a aquiescer. 24 Observe como os olhos dos estudantes e dos professores de filosofia se movimentam quando eles entram numa livraria: os
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olhos deles se iluminam quando descobrem títulos de filósofos europeus que desconheciam (ou títulos desconhecidos de filósofos europeus que conheciam); e quando por acaso descobrem títulos de autores sulamericanos, as suas pupilas se contraem – os seus olhos se anuviam. Há uma perfeita continuidade entre a contração involuntária das pupilas e a irresistível certeza emocional de que os subequatoriais simplificam a realidade. 25 O fato de que distinguimos nitidamente entre os filósofos supraequatoriais e os subequatoriais pode ser lido no comportamento dos nossos olhos. E o que eles denunciam são os nossos desejos mais recônditos. A supervalorização dos filósofos das metrópoles e a subvalorização dos filósofos das colônias irradiam a partir do nosso íntimo. Em nossas subjetividades está inscrita uma sede profunda de europeidade. 26 Você não encontrará no departamento de antropologia um professor sequer que responderá a pergunta “Você é um antropólogo?” com um “Não, não sou um antropólogo”. Nem no departamento de história um professor sequer que responderá a pergunta “Você é um historiador?” com um “Não, não sou um historiador”. Mas nos departamentos de filosofia você encontrará aos montes professores que responderão a pergunta “Você é um filósofo?” com um “Não, não sou um filósofo”.
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27 Você já leu as obras escritas pelos seus professores? E quantas delas você realmente admira? Nenhuma? Então, por que você quer seguir o exemplo deles? 28 Os professores de antropologia querem que os seus estudantes se tornem antropólogos (não simples intérpretes de LéviStrauss ou de Viveiros de Castro). Os professores de história querem que os seus estudantes se tornem historiadores (não simples intérpretes de Bloch ou de Vansina). E os professores de filosofia? O que eles querem que os seus estudantes se tornem? 29 “Existe uma diferença entre ser um antropólogo e ser um intérprete de um antropólogo. Existe uma diferença entre ser um historiador e ser um intérprete de um historiador. Mas no caso da filosofia, as coisas são diferentes. O filósofo não faz pesquisas empíricas. Ele não vai para campo. Assim, não existe nenhuma diferença entre ser um filósofo e ser um intérprete de um filósofo.” Ah, não? Então, tente entrar num programa de mestrado ou de doutorado em filosofia com um projeto sobre as ideias do Roberto Machado! Sim, sobre as ideias do Roberto Machado! Sim, tratando as obras dele sobre Nietzsche, Foucault e Deleuze como literatura primária, não como literatura secundária! Tente! Então, não parece que do ponto de vista institucional existe uma diferença bastante nítida entre ser um filósofo e ser um intérprete de um filósofo? Uma diferença bastante nítida! “Mas no caso da filosofia, as coisas são diferentes. O filósofo não faz pesquisas empíricas. Ele não
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vai para campo. Assim, não existe nenhuma diferença entre ser um filósofo e ser um intérprete de um filósofo.” Se você se ativer ao que os professores falam, você será pura e simplesmente ludibriado. Você precisa se ater ao que eles fazem. 30 O que os professores querem é bem simples: que você mostre aptidão para ser um competente porta-voz de algum filósofo supraequatorial – mais especificamente, de algum filósofo europeu ou norteamericano... O que os professores querem é bem simples: que você mostre que pode ser um bom boneco de ventríloquo! O que os professores querem é bem simples: que você mostre que tem condições de entrar para o time empenhado em canonizá-lo... Porque é absolutamente fundamental canonizá-lo! É absolutamente fundamental insuflar importância nele! Você quer ser visto como alguém que estuda um filósofo sem importância? Então, ele precisa ser canonizado – para que o esforço que você dispensa em estudálo seja justificado. 31 Ser um porta-voz do pensamento de outrem e ser um pensador são duas coisas totalmente diferentes. O primeiro é uma espécie de comerciante que ganha a vida importando e distribuindo mercadorias intelectuais entre os famintos de erudição e de civilização. Ele depende inteiramente do segundo. Ele vive às suas custas, ele vive à sua sombra. O status que ele conquista entre os famintos é uma função direta do status do pensador cujos direitos de importação e de comercialização ele detém.
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32 Os professores de filosofia tentam estreitar a nossa concepção de filosofia: eles tentam nos fazer pensar que para escrever um texto filosófico é preciso escrever algo que esteja conectado com a filosofia acadêmica, e expresso na linguagem da filosofia acadêmica. 33 Os comentadores se amparam em regras institucionais – contra as quais argumentos, por se moverem no plano verbal, por se moverem no plano discursivo, são ineficientes. 34 “Mas é preciso dialogar com algum filósofo!”, dizem os professores. Mas em que sentido ‘é preciso’? A única verdade contida aqui é a seguinte: do ponto de vista institucional, é preciso dialogar com algum filósofo ocidental. Não se trata de um ‘é preciso’ que emana da natureza da filosofia! Não se trata de um ‘é preciso’ que emana da essência da filosofia! Mas você o trata como se emanasse da natureza da filosofia! Você o trata como se emanasse da essência da filosofia! 35 “Mas é preciso dialogar com algum filósofo!”. Ele certamente não está disposto a incluir no campo do termo ‘filósofo’ aquele pensador que conhecemos pessoalmente na rodoviária.
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36 Só é filosofia o que não é filosofia. 37 Dadas as regras que vigoram nos departamentos de filosofia brasileiros de hoje, até que ponto se pode tomar os trabalhos
acadêmicos dos estudantes como um testemunho confiável do que eles realmente pensam? 38 Até que ponto se pode tomar aquilo que os empregados falam sobre os seus chefes na frente dos seus chefes como um testemunho confiável do que eles realmente pensam? 39 Até que ponto se pode tomar o gesto de adoração do escravo diante da imagem de Nossa Senhora como um testemunho confiável das suas verdadeiras crenças? 40 O estudante, o empregado e o escravo possuem todos algo em comum: estão todos sob pressão institucional: estão todos privados de um elemento absolutamente essencial para o pleno
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desenvolvimento de sua própria energia e de seu próprio ser: a sensação de estar à vontade. O primeiro não se sente à vontade para expressar o que pensa porque não quer ser reprovado, o segundo porque não quer ser despedido e o terceiro porque não quer ser chicoteado. 41 Eles são constrangidos a usar um leque limitado de signos. E assim só conseguem expressar um leque limitado de sentidos. “Mas os estudantes continuam pensando de forma livre e autônoma!”. Aquilo que não tem lugar nas mentes dos professores, não tem lugar nas mentes dos estudantes. 42 Quando os signos são podados, os sentidos são podados. 43 A afirmação de que “Sempre poderemos reverenciar Iemanjá em segredo quando nos ajoelharmos diante da imagem de Nossa Senhora!” é como a afirmação de que “Sempre poderemos expressar as coisas que expressamos usando todo o alfabeto, mesmo que sejamos obrigados a usar apenas a letra ‘a’!”. 44 Sim, você pode ter certeza de que o escravo recém chegado ao Brasil ajoelha-se perante a imagem de Nossa Senhora e pensa em Iemanjá! Mas você não pode ter a mesma certeza de que o escravo nascido e criado no Brasil ajoelha-se perante a imagem de Nossa Senhora e pensa em Iemanjá!
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45 Julgando-o comunal demais, a academia o rejeita. Julgando-o acadêmico demais, os seus amigos o rejeitam. A primeira rejeição se baseia na impressão de que ele traz um perigo – e a segunda na impressão de que ele não traz perigo algum – para a lógica colonial. 46 Se um signo é externo a mim, eu sou externo a ele. Não tenho um laço afetivo com ele. Não me interesso por ele. Não injeto energia e vitalidade nele. Têm mais chances de serem bem sucedidos na academia os estudantes para os quais os signos ditados por ela não permanecem sendo signos externos. 47 Por que você diz que os estudantes podem relacionar-se com os signos impostos pela academia de muitas maneiras diferentes? Quais são os seus objetivos? Quais são as suas intenções? 48 Quem aceita uma imposição sem questioná-la não a sente como uma imposição. E uma coisa é questioná-la com uma camada muito superficial e frívola do intelecto – e outra coisa bem diferente é questioná-la com as entranhas. 49 Não existem filósofos canônicos. Apenas filósofos que canonizamos ininterruptamente.
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50 “Afirmar que os primeiros exercícios filosóficos serão forçosamente toscos, desajeitados, mesmo ingênuos, é proferir um truísmo banal, pois é forçosamente assim em todos os ramos do saber teórico (...). Haverá outra maneira de aprender a fazer algo, no campo teórico ou prático, senão começando a fazer e fazendo, de preferência sob o acompanhamento e aconselhamento de um mestre, aquilo que se quer aprender a fazer bem? Não é, aliás, o mesmo que ocorre no aprendizado da historiografia filosófica?”.1 Todo mundo sabe que não tem sentido tomar os parâmetros usados para avaliar o trabalho de quem se ocupa com o comentar há mais de dez anos e usá-los para avaliar o trabalho de quem se ocupa com o comentar há apenas um ano. Todo mundo sabe! Mas ninguém parece saber que também não tem sentido tomar os parâmetros usados para avaliar o trabalho de quem se ocupa com o filosofar há mais de dez anos e usá-los para avaliar o trabalho de quem se ocupa com o filosofar há apenas um ano! 51 Só julgamos as formas embrionárias como se fossem formas adultas quando queremos que sejam abortadas.
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Originalidade BLOCO 2
Originalidade
52 “Contra o que habitualmente se pensa, estamos condenados a ser originais (...)”, escreveu Cabrera em sua discussão do caso Descartes vs. Agostinho.2 Trata-se de um texto que fala de Iemanjá através de Nossa Senhora... Usando apenas os signos acadêmicos, escrevendo um texto que poderia facilmente passar por um texto exegético convencional, ele mostra que estamos realmente muito mais dispostos a conceder mérito a um europeu sem mérito do que a um sulamericano com mérito. Não falamos que Descartes reinventou a roda mesmo tendo ele repetido quase literalmente Agostinho! Não falamos! E também não sentimos que ele reinventou a roda... Isto é, mesmo quando enunciamos em alta e clara voz “Descartes reinventou a roda”, ele continua grandioso aos nossos olhos... Ele continua a nos parecer um deus... Ele continua a nos parecer extremamente original. Descartes foi, sim, original! Como não pode ter sido? Não se desfaz com argumentos – por mais sólidos e contundentes que eles sejam! – uma obra de engenharia psicológica de anos.
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53 Mesmo quando os europeus e os norteamericanos reinventam a roda, sentimos com todo o nosso ser que eles foram originais... Mesmo quando os sulamericanos são originais, sentimos com todo o nosso ser que eles reinventaram a roda! Sim, somos hipercondescendentes com os europeus e os norteamericanos – e hipercríticos com nós mesmos... Ter ideias é algo reservado a eles... Ter boas ideias é algo reservado a eles... E não são apenas os sulamericanos que pensam que os europeus e os norteamericanos são superiores. Não são apenas os sulamericanos que têm certeza que os europeus e os norteamericanos são superiores. Eles também pensam que são superiores. Eles também têm certeza que são superiores. Os subequatoriais e os supraequatoriais não vivem em diferentes malhas simbólicas, apenas em posições diferentes da mesma malha simbólica. 54 Os comentadores não são tão sensíveis a argumentos quanto pensam... Os comentadores não são tão sensíveis a argumentos quanto querem que pensemos... 55 Então, não se espante se o seu professor desdenhar das suas ideias! Não se espante se ele tratá-las com sarcasmo! Não se espante! É realmente de se esperar que ele elogie os seus trabalhos medíocres, onde você não faz mais do que expor e discutir o pensamento de algum filósofo europeu canônico ou em vias de ser canonizado – e que ele ataque com fúria as suas tentativas de pensar por si mesmo e desenvolver as suas próprias ideias! 72
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Como notou Cabrera no seu Diário de um filósofo no Brasil, o professor de filosofia brasileiro em geral acha que é “muito difícil dizer algo ‘de novo’” por conta da “riqueza e variedade da história da filosofia”.3 Um estudante pode achar que teve uma ideia nova, uma ideia própria, uma ideia original, mas na verdade ter apenas reformulado uma ideia antiga. Tudo já foi pensado! “Esta costuma ser uma das maiores preocupações do filósofo acadêmico profissional. E quando palestramos em algum lugar tentando expor nossos próprios pensamentos, é comum notarmos uma tensão muito forte em nossos cultos ouvintes, como se estivessem forçando suas mentes na tentativa de lembrar onde eles já leram ou escutaram coisas parecidas, e as repetições e semelhanças, se descobertas, serão destacadas com especial satisfação no debate posterior.”4 Cabrera nos legou aqui uma observação etnográfica preciosa: de fato, quando mostramos aos professores de filosofia brasileiros as nossas próprias ideias, a primeira coisa que eles costumam fazer é dizer que elas não são nossas: trata-se do golpe que eles mais sentem prazer em desferir: “O que você escreveu não é original”. Do alto de seus saberes históricos (que eles consideram sólidos, vastos e profundos, mas que na verdade são frágeis, risíveis e superficiais), eles se arrogam o direito de desqualificar de maneira lacunar e não obstante taxativa toda e qualquer tentativa de pensar ao invés de repensar, de escrever ao invés de reescrever – de filosofar ao invés de comentar. 56 Uma coisa é como a atribuição de originalidade funciona. Outra coisa é como se pensa que ela funciona. E uma terceira 3
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coisa é como ela deveria funcionar. E as mesmas considerações podem ser feitas a respeito da atribuição de qualidade: como ela funciona, como se pensa que ela funciona e como ela deveria funcionar são coisas inteiramente diferentes. 57 Como medir a originalidade de um texto? Como afirmar com certeza que ele é original? Como afirmar com certeza que ele não é original? O que deve ser levado em consideração na hora de avaliar se um texto é original ou não? Podemos descobrir mais semelhanças entre os textos T1 e T2 do que entre os textos T3 e T4 e mesmo assim nos vermos obrigados a admitir que T2 é mais original em relação a T1 do que T4 em relação a T3? Sim, podemos nos ver obrigados a admitir que T2 é mais original que T4 se as semelhanças entre T1 e T2 forem semelhanças de opinião e as semelhanças entre T3 e T4 forem semelhanças de abordagem! O que realmente importa numa obra teórica é a sua abordagem! As semelhanças de opinião não podem ter o mesmo peso que as semelhanças de abordagem! 58 Imaginemos um caso bem simples. As pessoas A e B leram apenas os textos T1 e T2. O texto T2 foi escrito depois do texto T1. A primeira acha T2 original e a segunda não acha T2 original. Evidentemente, tanto A quanto B julgam-se perfeitamente racionais, e acreditam que em seus julgamentos só estão levando em consideração os teores de T1 e T2. Então, como explicar as suas diferentes opiniões sobre T2? É porque uma delas está enfatizando trechos irrelevantes dos textos em questão e obliterando trechos relevantes? Mas qual delas está enfatizando trechos irrelevantes e obliterando trechos 74
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relevantes? É porque uma delas tem uma compreensão mais exata do verdadeiro teor de T1, isto é, do que T1 realmente diz? Mas qual delas tem uma compreensão mais exata do verdadeiro teor de T1? É aquela que extrai mais ideias de T1 ou aquela que extrai menos ideias de T1? É aquela que vê as ideias de T2 em T1 ou aquela que não vê as ideias de T2 em T1? As divergências sobre a originalidade de T2 podem vir não apenas de divergências sobre aquilo que T1 diz de forma explícita, mas também de divergências sobre aquilo que T1 diz de forma implícita. Sim, quem estiver decidido a encontrar argumentos para demonstrar que T2 não é original, conseguirá certamente fazê-lo! 59 Imaginemos um livro que diga do início ao fim coisas como “O universo é constituído de microgirafas que amontoam-se umas sobre as outras formando microcapivaras, que por sua vez formam microgatos, que por sua vez formam átomos”. Num certo sentido, ele será original – porém, a sua falta de seiva, a sua falta de substância, a sua falta de qualidade, fará com que hesitemos em chamá-lo de ‘original’. Pois não usamos o termo ‘original’ simplesmente para classificar os textos que dizem coisas que nunca foram ditas antes. Usamos o termo ‘original’ também como um indicador de qualidade: ele precisa conter ideias dignas de serem lidas. Poderíamos ressignificar o termo ‘original’ para que ele não tivesse responsabilidade alguma sobre a qualidade? Sim, poderíamos. Mas já entrevemos aqui uma parte da diferença entre como a atribuição de originalidade efetivamente funciona e como se pensa que ela funciona – e como ela deveria idealmente funcionar é naturalmente uma outra questão. Mas voltemos ao livro que diz do início ao fim coisas como “O universo é constituído de microgirafas que
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amontoam-se umas sobre as outras formando microcapivaras”. Ele não poderia exercer um impacto filosófico muito maior do que um trabalho filosófico supostamente sério? Ah, o que mais se vê sendo produzido nos departamentos de filosofia brasileiros são trabalhos filosóficos supostamente sérios! Sim, os estudantes escrevem deverzinhos de casa – e os professores escrevem deverzões de casa. Mas qual é a diferença entre eles? Mas qual é a verdadeira diferença entre os deverzinhos e os deverzões? O que faz com que os primeiros sejam vistos como destituídos de toda a seriedade e portanto como totalmente descartáveis – e os segundos como investidos de seriedade e portanto como publicáveis? O que faz um deverzão de casa parecer elevar-se sobre os deverzinhos e escapar da sua condição de dever de casa? O seu tamanho? A quantidade e a diversidade das suas citações? A firmeza gramatical das suas frases? Pois certamente não é o seu conteúdo! Não é o fato de que ele é digno de ser lido! Não é o fato de que ele se eleva sobre os seus pares e escapa da sua condição de simples dever de casa! Por mais extenso que ele seja, por mais citações que ele faça e por mais que ele obedeça à risca as normas acromáticas da gramática oficial, um deverzão de casa jamais escapará da sua condição de deverzão de casa – ou melhor, da sua triste e dolorosa condição de mero deverzinho de casa hipertrofiado – pelo simples fato de estar perpassado e marcado pela submissão. Se você seguir com maestria e levar ao paroxismo as orientações intelectuais dos departamentos de filosofia brasileiros, você não produzirá obras filosóficas de valor, você produzirá, no máximo, deverzinhos de casa de valor – sem jamais, é claro, arranhar o fato de que realmente não há deverzinhos de casa de valor. Pois escrever deverzinhos de casa é sempre rebaixar de si mesmo. É sempre ser injusto com as próprias forças. É sempre desperdiçar sinapses nervosas. É sempre desperdiçar vida. Um livro que dissesse do início ao fim coisas como “O universo
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é constituído de microgirafas que amontoam-se umas sobre as outras formando microcapivaras” despertaria comentários mordazes dos autores de deverzinhos de casa. Mas do ponto de vista da seriedade, ele não deixaria nada a desejar em relação aos deverzinhos de casa deles; do ponto de vista do conteúdo, ele não deixaria nada a desejar em relação aos deverzinhos de casa deles; do ponto de vista do valor, ele não deixaria nada a desejar em relação aos deverzinhos de casa deles. Pelo contrário, se distinguirmos entre conteúdo e impacto (se reconhecermos que o caráter filosófico de uma obra reside menos no seu conteúdo do que no impacto sobre o meio que a circunda), estaremos aptos a responder aos comentários mordazes dos autores de deverzinhos de casa com uma mordacidade agora perfeitamente justa e bem colocada: sim, um livro que dissesse do início ao fim coisas como “O universo é constituído de microgirafas que amontoam-se umas sobre as outras formando microcapivaras” seria aparentemente vazio e aparentemente ridículo. Mas ele teria muito mais impacto e seria assim muito mais filosófico do que os comentários sempre rasos e sempre risíveis que os professores escrevem e estimulam os estudantes a escrever sobre os pensadores europeus e norteamericanos! Os deverzinhos de casa propalados por eles são aparentemente profundos e sérios, são aparentemente investidos de verdade e de sabedoria... Mas o teste do impacto mostra que não são realmente filosóficos... Eles parecem sérios! Eles parecem profundos! E as suas qualidades terminam precisamente aqui: no nível do parecer... Em geral, os professores acadêmicos dirigem a atenção dos estudantes apenas para o conteúdo, como se ele fosse o território por excelência da filosofia. Mas do ponto de vista filosófico, não há conteúdo quando não há impacto... O conteúdo e o impacto não são como a água e o óleo... Não há como separá-los! Só tem impacto o que tem conteúdo... Só tem conteúdo o que tem impacto... O grande lance, portanto, não é 77
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simplesmente produzir uma obra que espante: que surpreenda: que intrigue – mas cujo impacto evapore rapidamente no ar, permitindo que a sensibilidade afetada volte ao seu marasmo e reassuma a sua forma anterior. O grande lance é responder as arbitrariedades supostamente sérias e profundas que nos circundam com sacadas que provoquem um abalo sísmico de efeitos duradouros. O universo que a ideia de impacto descortina ainda está por ser explorado! 60 Como funciona a palavra ‘novo’ dentro do contexto filosófico universitário? Uma coisa é usar a palavra ‘novo’ simplesmente de forma heterocrítica – como um elemento neutro da nossa reserva teórica – para qualificar os textos alheios: para valorizá-los (“Esse texto traz algo de novo”) ou desvalorizá-los (“Esse texto não traz nada de novo”). Outra coisa é transformar a palavra ‘novo’ em um tema de discussão: olhar para ela ao invés de pura e simplesmente olhar através dela. E quando se transforma a palavra ‘novo’ em tema de discussão, abala-se tanto a força legitimadora da afirmação de originalidade quanto a força deslegitimadora da negação de originalidade. De fato, o grande lance é transformar os componentes da nossa reserva teórica em temas de discussão: ao invés de perguntar “Ele é um pensador sério?”, perguntar “É preciso ser um pensador sério?”, “O que é ser um pensador sério?”, “O que faz um pensador ser um pensador sério?”, “O que deveria nos fazer considerar um pensador como um pensador sério?”. 61 O texto T2 é original? Ou ele apenas repete T1? Uma pessoa pode privilegiar certos traços de T1 e T2 para defender a 78
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afirmação de que T2 é original, e outra pode privilegiar outros traços para defender a afirmação de que T2 apenas repete T1. E além de discordarem quanto aos traços de T1 e T2 que devem ser avaliados, elas podem também discordar quanto aos critérios que devem ser empregados para avaliá-los. Por exemplo, uma pessoa pode dizer: (A) “T2 não é original, pois T1 diz a, b, c, d, ao passo que T2 diz b, c, d, e! Só há uma coisa que T2 diz e T1 não diz!”. Ou seja, a originalidade não é uma característica intrínseca, ela é uma relação. Para determinar a sua presença, é preciso analisar a relação entre dois textos. Mas outra pessoa pode dizer: (B) “Se você quer saber se T2 é original, não basta comparar T2 com T1! É preciso também ver como T4 é comparado com T3, como T6 é comparado com T5 e assim por diante! E observe que todo mundo considera T4 original, mesmo T3 dizendo f, g, h, i e T4 dizendo g, h, i, j! Como a distância entre T2 e T1 é equivalente à distância entre T4 e T3, então T2 deve ser considerado original, porque T4 é considerado original!”. Ou seja, a originalidade não é simplesmente uma relação, ela é uma relação de segunda ordem entre relações de primeira ordem.
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62 Os comentadores parecem usar critérios na hora de avaliar se um texto é original ou não. 63 Você precisa gerar a aparência de que está usando critérios para emprestar seriedade aos seus julgamentos! Inclusive aos seus próprios olhos! 64 Não são apenas os traços internos aos textos que os comentadores levam em consideração na hora de avaliarem se ele é ou não original. A nacionalidade do autor também conta! Sim, para eles a nacionalidade é decisiva! 65 A nacionalidade do autor também conta! Trata-se de um critério de atribuição (ou de supressão) do signo ‘novo’ realmente atuante, embora ele seja tão irracional que o fato de que ele é realmente atuante não pode em hipótese alguma ser reconhecido. 66 O comentador acha que estamos pedindo para ele abaixar o seu nível de exigência, mas só estamos pedindo para ele mantêlo. Do seu ponto de vista, porém, é exatamente o contrário que ocorre: achamos que estamos pedindo para ele manter o seu nível de exigência, mas estamos pedindo para ele abaixá-lo. 80
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Sim, é possível narrar as coisas das duas maneiras: as coisas de fato são narradas das duas maneiras: tanto do ponto de vista dos comentadores quanto do ponto de vista dos seus críticos. 67 Chegamos a arranjos sígnicos com base em critérios ou chegamos a critérios com base em arranjos sígnicos? 68 Os resultados da comparação não dependem apenas da comparação. 69 As reflexões metafilosóficas nos afastam do uso corrente e irrefletido da palavra ‘novo’, e nos levam a examinar aspectos seus que normalmente passam desapercebidos... Como o seu forte poder legitimador! E especialmente o forte poder deslegitimador de afirmações do tipo “O que você escreveu não é original!” ou “Isso já foi dito antes!”. 70 Por que negar a originalidade de um texto é reduzi-lo a cinzas? 71 Por que uma das formas preferidas de ataque ao valor dos textos pelos professores de filosofia brasileiros é justamente o ataque à sua originalidade? Por acaso um texto não pode ter outras qualidades? 81
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72 “Quando você for fazer o seu doutorado, você poderá ser original.” Ou seja, reprima-se – represe-se – por enquanto. Mas a verdade é que quando você for fazer o seu doutorado, você já não quererá mais desenvolver as suas ideias, você já terá outros objetivos, você já será outra pessoa. E se você por acaso olhar para atrás e lembrar das ideias que não desenvolveu, certamente você irá lamentar a ingenuidade delas: e você estará certo: porque você as deixou no estágio embrionário.
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Estética da austeridade BLOCO 3
Estética da austeridade
73 Eu senti a força da hipercrítica dentro de mim quando me sugeriram ler De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio, do Gonzalo Armijos Palácios. Sim, eu senti a força da hipercrítica dentro de mim! “Gonzalo Armijos Palácios? Ele não deve ter nada a me acrescentar!”. O fato de que contesto a ideia propagada pelos professores e reproduzida pelos estudantes de que tudo o que vale a pena ser lido vem da Europa ou dos Estados Unidos não significa que eu não sinta que tudo o que vale a pena ser lido vem da Europa ou dos Estados Unidos. Não significa que as disciplinas que cursei ao longo da graduação não deixaram as suas marcas em minhas entranhas, não significa que não atuaram sobre os meus gostos e os meus desejos, não significa que não submeteram o meu ser a uma profunda e quase irreversível obra de engenharia: o que sinto permanece ainda defasado, muito defasado, em relação ao que penso e digo. E o meu comportamento, no fim das contas, atende mais ao que sinto do que ao que penso e digo. Sim, é o que eu sinto que determina os livros que efetivamente compro e que efetivamente leio: é o que eu sinto – não o que eu penso, não o que eu digo. É o que eu sinto: as nossas ações livres e espontâneas refletem muito mais os nossos sentimentos do que os nossos pensamentos. Os autores estrangeiros dilatam as minhas pupilas e enchem a minha
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boca de saliva: tenho vontade de lê-los: eles despertam os meus desejos. Antes mesmo de abrir seus livros, tomo como certo que lê-los será proveitoso. E se não for proveitoso? E se as minhas expectativas positivas forem frustradas? Não será por causa deles, será por minha causa. Por minha causa! Não, não foram eles que não conseguiram escrever nada de interessante, fui eu que não consegui compreendê-los! A seiva está lá latejando sob as suas palavras... Não posso culpá-los se não sou capaz de acessá-la... Ah, preciso ler mais, estudar mais, familiarizar-me mais com o seu linguajar... Mais, mais, mais... O que significa, na verdade, que não há espaço lógico para as minhas expectativas serem frustradas... Sim, com os autores estrangeiros sou hipercondescendente... As minhas faculdades críticas simplesmente entram em hibernação quando abro os seus livros... Ou melhor, não sou hipercondescendente com os autores estrangeiros, apenas com os autores europeus e norteamericanos: apenas com os autores reconhecidos: apenas com os autores consagrados: pois os africanos e os sulamericanos, também estrangeiros, não dilatam minhas pupilas, nem enchem minha boca de saliva: não despertam em mim as mesmas reações fisiológicas e emocionais que os autores europeus e norteamericanos despertam... Na verdade, eles despertam em mim reações fisiológicas e emocionais contrárias, milimetricamente contrárias... Para começo de conversa, não tenho nenhuma vontade de lê-los. Nenhuma! O que contrasta de forma patente com a minha sede infinita de livros europeus e norteamericanos... E mesmo que as ideias dos subequatoriais com as quais me deparei por um infeliz acaso sejam notáveis, mesmo que os raciocínios deles sejam impecáveis, precisarei realmente me esforçar para afastar a insistente impressão – a insistente certeza – de que eles não escreveram mais do que trivialidades... Mas eles não podem me surpreender? Eles não podem frustrar as minhas expectativas
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negativas? Não, eles não podem. Pois todo o meu ser está organizado de maneira tal que eles não são capazes mais do que confirmar o que eu já sabia: que em termos de originalidade e de seriedade, eles permanecem muito aquém dos europeus e dos norteamericanos: de fato, eles permanecem muito aquém dos critérios mínimos de qualidade: eu os leio com as minhas faculdades críticas funcionando a todo vapor ao invés de hibernando: ou melhor, elas agora já não apontam as suas flechas para mim, mas para o que tenho diante de mim: se não encontro nada de interessante em seus livros, o problema não está comigo, o problema está com eles: se não encontro seiva por baixo de suas palavras, é por suas palavras não terem seiva alguma a oferecer. Com os europeus e os norteamericanos, sou hipercondescendente. Com o resto do mundo, sou hipercrítico. No primeiro caso, abaixo a cabeça docilmente... No segundo caso, eu a levanto arrogantemente... Sou uma espécie de cão de guarda empenhado em proteger o status simbólico dos meus donos! A hipercondescendência e a hipercrítica são duas posturas complementares, duas posturas que considero intelectualmente equivocadas, mas que, em última instância, não consigo evitar: sim, elas foram aprendidas (logo, é possível desaprendê-las), mas elas foram aprendidas (logo, não é tão simples assim desaprendê-las). Desvencilhar-se da hipercondescendência com os europeus e os norteamericanos e da hipercrítica com os africanos e os sulamericanos não é como desvencilhar-se de “O Rio de Janeiro é a capital do Brasil” em favor de “Brasília é a capital do Brasil”. As primeiras não estão inscritas apenas no cérebro, mas em todos os órgãos internos. Substituir uma informação por outra é infinitamente mais fácil do que substituir uma reação emocional por outra. O primeiro passo talvez seja imprescindível para o segundo. Mas ele não leva inevitavelmente ao segundo.
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74 De fato, não é apenas para ler Wittgenstein que o leio. É para ganhar status! Não é apenas para ler Heidegger que o leio. É para ganhar status! Quando sento para lê-los, estou menos interessado naquilo que eles têm a dizer do que naquilo que eu mesmo terei a dizer depois de lê-los: que sei o que Wittgenstein pensa, que sei o que Heidegger pensa: que eu os li, que eu os compreendi: que eu conheço Wittgenstein e Heidegger, que eu domino Wittgenstein e Heidegger: que eu existo! 75 Comento, logo existo. 76 Os comentadores não leem... Eles também não escrevem: são os outros que escrevem através deles. 77 Há muitos europeus e norteamericanos instalados em nossas entranhas... Eles se instalaram? Nós os instalamos! Não lemos senão através deles: não escrevemos senão através deles: são eles que leem: são eles que escrevem: são eles que avaliam: são eles que julgam. São deles que emanam as leituras hipercondescendentes e hipercríticas... São eles que envolvemse com o ler e escrever em nosso lugar... 78 Quem é dócil ao ler, é dócil ao escrever. 88
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79 E quem não consegue envolver-se com o que lê nem com o que escreve, não pode senão odiar quem consegue. 80 Eu não extraio da leitura dos europeus e norteamericanos a sensação de que vale a pena lê-los. É a sensação de que vale a pena a lê-los que me leva a lê-los. Também não extraio da leitura dos africanos e latinoamericanos a sensação de que não vale a pena lê-los. É a sensação de que não vale a pena a lê-los que me leva a não lê-los. E as duas sensações são inabaláveis: elas sobrevivem a todos os contraexemplos: elas impedem que existam contraexemplos. Não há leitura neutra, não há leitura ponderada, não há leitura sóbria: leio os primeiros fazendo obsessivamente autocríticas: sempre há algo de errado comigo; leio os segundos fazendo obsessivamente heterocríticas: sempre há algo de errado com eles. No primeiro caso, elimino o sujeito da leitura: ninguém lê; no segundo caso, elimino o objeto da leitura: ninguém é lido. Ser hipercondescendente com os outros é ser hipercrítico consigo mesmo. Ser hipercrítico com os outros é ser hipercondescendente consigo mesmo. 81 A hipercrítica tem uma função bastante precisa: ensinar os estudantes subequatoriais a se aquietarem: ensiná-los a permanecerem em seus devidos lugares: ensiná-los a sentarem direito, a olharem para frente com atenção e admiração: ensiná-los a recopiarem obedientemente nos seus cadernos o que os professores copiam obedientemente no quadro: ensiná-los que devem consumir, não produzir conhecimento: 89
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ensiná-los que devem espanar, não filosofar. Eles precisam ter consciência do que podem e do que não podem fazer, do que são e do que não são: podem espanar, pois são espanadores; não podem filosofar, pois não são filósofos. O que podem fazer não é ditado de dentro para fora. Mas de fora para dentro. Suas capacidades precisam ser domesticadas, precisam ser aparadas, precisam ser mantidas sob controle: precisam ser canalizadas para o exímio, para o excelente, para o magistral espanar. A hipercrítica é implacável: se um estudante deixar o espanador de lado – se ele deixar a falta de capacidade que lhe imputam de lado – para esticar timidamente a mão em direção a uma caneta, uma nuvem de vespas virá imediatamente ferroá-lo. 82 Os conceitos de hipercrítica e de hipercondescendência também poderiam, é claro, ser respectivamente designados por ‘hipocondescendência’ e ‘hipocrítica’. Os subequatoriais não acertam. Os supraequatoriais não erram. As coisas são realmente assim? Não, elas não são assim. Mas elas têm que ser vistas assim. E uma ordem enunciada numa voz suficientemente firme e suficientemente imperiosa pode com efeito fazer com que o mundo se conforme rápida e obedientemente a ela: “Feche a porta!” – e pronto: lá está a porta trancada à chave e pregada à tábuas. Para se poder fazer constatações serenas e triviais como “Os subequatoriais não acertam” e “Os supraequatoriais não erram”, é preciso antes dar ordens veementes, obstinadas, sanguinárias – é preciso antes dar ordens que não admitam concessões.
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83 O problema não está propriamente nas deficiências dos trabalhos dos pensadores subequatoriais. O problema está antes nas exigências que – por definição – eles não podem atender. 84 Os níveis de exigência que os leitores brasileiros impõem aos textos variam conforme eles sejam assinados por europeus ou por sulamericanos. Na hora de avaliar um texto assinado por um europeu, eles são condescendentes. Na hora de avaliar um texto assinado por um sulamericano, eles mostram os dentes. O simples fato de que o autor é sulamericano proscreve de antemão a possibilidade de ele receber uma avaliação positiva do leitor brasileiro, e prescreve, no lugar dela, uma avaliação, no melhor dos casos, mediana. A nota máxima que o leitor brasileiro está disposto a dar ao texto de um autor sulamericano coincide com a nota mínima que ele está disposto a dar ao texto de um autor europeu. 85 Os leitores brasileiros avaliam com sobriedade os textos dos europeus e avaliam com ferocidade os textos dos sulamericanos? Ou eles avaliam com sobriedade os textos dos sulamericanos e avaliam com generosidade os textos dos europeus? Ou será que fazem as duas coisas, isto é, avaliam para menos os textos dos sulamericanos e para mais os textos dos europeus? Talvez não exista tendência alguma a desfavorecer os sulamericanos!
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Talvez exista apenas uma tendência a favorecer os europeus! Ou o contrário! Como saber? 86 Mas esse fenômeno da flutuação dos níveis de exigência conforme a nacionalidade do autor realmente existe? Para os comentadores – para a maior parte da comunidade filosófica acadêmica brasileira! – a resposta é obviamente negativa. Na hora de avaliar um texto, é apenas o seu teor que a razão leva em consideração! A metafilosofia combate fantasmas! 87 Mas não sabemos pela experiência cotidiana que semelhantes fenômenos de flutuação existem? Imagine um adolescente bem rebelde: ele não poderia, sem perceber, achar rasa e equivocada uma ideia defendida pela mãe dele, mas achar essa mesma ideia profunda e acertada quando vinda da boca de um amigo? A questão é saber se as flutuações também operam no âmbito da filosofia universitária brasileira de forma regular e sistemática. 88 De acordo com a maioria das pessoas que circulam nos departamentos de filosofia brasileiros, não existe nenhum favorecimento dos europeus e nenhum desfavorecimento dos sulamericanos. As obras são julgadas pelos seus conteúdos, e apenas pelos seus conteúdos. O que é bom, é bom. O que é ruim, é ruim. O que é original, é original. O que não é original, não é original. Se existem favorecimentos e desfavorecimentos, eles são ocasionais e acidentais. Não devem, portanto, exibir nenhuma regularidade. 92
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89 É tecnicamente bastante difícil mostrar num caso específico que o fenômeno da flutuação efetivamente ocorreu! 90 Se a flutuação existe no âmbito extrauniversitário, por que ela não pode existir no âmbito intrauniversitário?! 91 O estilo de escrita! Um texto com muitas citações não é apenas um texto que fala ao nosso intelecto, é também um texto que fala aos nossos sentidos... Sim, aos nossos sentidos! Do ponto de vista puramente estético, um texto que não possui citação alguma ou que possui apenas uma citação aqui e outra ali exerce sobre a nossa sensibilidade um impacto nitidamente diferente de um texto cuja vivacidade está completamente sufocada por citações... O primeiro não gera de forma tão contundente quanto o segundo a impressão de que estamos diante de um texto saturado de conhecimento, de um texto que não nos é oferecido simplesmente para desfrutarmos de suas subidas e descidas e idas e vindas... Não, ele tem algo a dizer... Uma verdade a comunicar... Ele é um texto sério... Um texto com teor cognitivo... É um texto no qual podemos confiar... A insistência na importância da leitura, em prejuízo do pensamento, sugere que o importante é mostrar grande erudição. E os artigos de filosofia são prova disso. As listas bibliográficas são enormes. Em artigos de apenas quinze páginas há mais citações e referências do que em obras 93
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inteiras dos filósofos conhecidos (...)! Quem insiste na importância da leitura deve pensar em quantas vezes os clássicos citaram em suas obras clássicas. As Meditações não fazem uma só citação. Nem a Crítica da razão pura. Não mostra isso de maneira clara que a ênfase deve ser posta não na leitura e sim em alguma outra coisa, como, por exemplo, na própria reflexão?5 É preciso acrescentar que para gerar o efeito estético de seriedade, para gerar o efeito estético de “grande erudição”, não basta pura e simplesmente citar abundantemente. É preciso também alinhar-se à política de citações que prescreve nomes europeus e norteamericanos e proscreve nomes africanos e latinoamericanos. Cite muito. Mas não de tudo! Leia muito. Mas não de tudo! Sim, aprendemos bem ao longo do curso de graduação quais leituras e citações irão nos rebaixar simbolicamente e quais leituras e citações irão nos elevar! Ah, como é diferente ler um texto que cita um europeu após o outro e ler um texto que cita um latinoamericano após o outro! Como é diferente ver uma bibliografia só com nomes europeus e uma bibliografia só com nomes latinoamericanos! Como é diferente! Os nomes europeus e os nomes latinoamericanos exercem impactos muito distintos sobre a nossa sensibilidade... Sobre a nossa sensibilidade! Sim, trata-se de uma questão estética! Somos sensíveis a argumentos. Somos sensíveis à razão. Somos sensíveis às tramas epistêmicas. Uma generalização suspeita nos traz uma sensação de desconforto, um raciocínio que nos parece ter dado um salto grande demais nos faz coçar as têmporas... Sim, somos sensíveis a maracutaias argumentativas, mesmo que nossas desconfianças sejam sentidas apenas nos
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recessos das nossas consciências. Sim, somos sensíveis à razão... Porém, somos muito mais sensíveis a aparências! Somos muitos mais sensíveis aos componentes estéticos do que aos componentes epistêmicos dos textos! Somos sensíveis a uma série de variáveis que não pertencem exatamente ao terreno argumentativo – sobretudo, somos sensíveis a nacionalidades! Elas guiam com as suas mãos invisíveis os nossos julgamentos! Sim, as suas mãos invisíveis! Pois sentimos com todo o nosso ser que os nossos julgamentos estão fundados única e exclusivamente na razão! Mas o fato é que teremos muito mais chances de ver as falhas argumentativas de um texto se ele for atribuído a um latinoamericano ao invés de um europeu. Muito mais chances! A europeidade nos amansa. Ela traz para o primeiro plano aquilo com que concordamos e joga para o segundo plano aquilo com que discordamos. Ela nos predispõe a ler aquiescendo. Ou melhor, a europeidade opera uma verdadeira mágica: ela muda o sentido da leitura e faz com que o texto escreva em nossas retinas! Ela faz com que ele se torne um parâmetro, uma régua, uma medida! A latinidade, ao contrário, desperta a nossa belicosidade. Ela atiça o nosso espírito crítico, ela convida os nossos dentes caninos, ela coloca os nossos dedos no gatilho. Europeus? Sempre estamos prontos a congratulá-los! Latinoamericanos? Sempre estamos prontos a estripá-los! E tudo isso acontece nos bastidores da consciência. E tudo isso acontece muito antes de considerarmos os conteúdos dos textos. E tudo isso acontece antes que possamos analisar objetivamente as suas ideias e os seus argumentos. A tendência a supervalorizar a europeidade e a subvalorizar a latinidade não vem de uma simples informação que pode ser facilmente substituída. Ela é antes a expressão de um longo processo formativo que imprimiu marcas profundas em nossas retinas. Podemos até clamar por latinoamericanos
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com as camadas mais superficiais do nosso ser. Mas os nossos anseios mais profundos são por europeus. 92 Ah, a estética do saber! A aparência epistêmica é tão importante quanto o conteúdo epistêmico! Ela pode ser buscada e alcançada de diversas formas... Através de citações e mais citações... Ou através de uma fraseologia pouco colorida... Deliberadamente pouco colorida! Tudo depende do público, é claro. Tudo depende do público. Ele pode não exigir uma supressão da cor... Contanto que elas permaneçam relativamente pálidas! Ou que elas variem entre alguns poucos tons de cinza! Pois um texto colorido demais já não é interpretado pelas nossas retinas como um texto que oferece conhecimento... Se ele tiver ingredientes epistêmicos, eles estarão em segundo plano, escondidos atrás do seu elevado teor estético... É como se a episteme e a estética fossem inversamente proporcionais! Como se uma refratasse a outra! E a detentora da palavra sóbria, da palavra séria, da palavra razoável, da palavra que merece ser ouvida, da palavra que não se perde em circunvoluções é a episteme, não a estética... É desestetizando-se que a crítica puxa para si mesma seriedade... É desestetizando-se que a crítica puxa para si mesma autoridade para julgar as obras de arte... É desestetizando-se... Ou melhor, é aparentemente desestetizando-se... Aparentemente! É tentando, através de uma cuidadosa alquimia, neutralizar os seus elementos estéticos... Pois tudo o que ela tem são elementos estéticos! Do mesmo modo, é desestetizando-se que a filosofia puxa para si mesma seriedade... É desestetizando-se que a filosofia puxa para si mesma autoridade para falar sobre a realidade... É desestetizando-se que ela diferencia-se da arte. Ou melhor, é aparentemente desestetizando-se... Aparentemente!
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93 Os ingredientes estéticos são inumeráveis... E também inelimináveis... Eles não podem sequer ser reduzidos... Só é possível, jogando com eles, dar a impressão de que estão ausentes. Mas o fato de que um triângulo é um triângulo escaleno não significa que ele não seja um triângulo! Ah, os artigos publicados nos jornais! Eles são cuidadosamente escritos de acordo com regras que visam eliminar o que têm de poético... Eles são cuidadosamente escritos de acordo com a estética da austeridade! Que é apenas uma estética entre outras! Qual jornalista nunca passou pela experiência de ter que substituir a última palavra de uma frase só porque ela rimava com a última palavra de uma frase vizinha? As rimas podem ser interessantes numa manchete... E no meio de um artigo, uma ou duas até são admissíveis... Pois elas têm uma grande chance de passarem desapercebidas... Mas as rimas não podem ser numerosas demais... Não, não podem... Se um jornalista sentou para escrever num dia particularmente inspirado e as palavras fluíram numa intensidade tal que o seu artigo ficou pronto em questão de minutos, ele precisará, no momento da revisão, retirar o excesso de rimas que porventura apareceram para não dar a impressão de que escreveu um texto poético... De que escreveu um texto não sério... O artigo já estava pronto! Já estava gramaticalmente impecável! Mas ficou gracioso demais... É preciso mexer nele! Sim, ele tem que desestetizar o seu artigo, ele tem que despi-lo da sua poesia, da sua fluidez, da sua cor, do seu sabor – para ele poder gerar a impressão de que é digno de confiança, e de que traz um sólido conteúdo epistêmico... A verdade é um subproduto da estética da austeridade... A epistemologia, no fundo, é apenas um ramo da estética... Ah, os ingredientes estéticos dos jornais televisivos! Eles não desempenham um papel fundamental na 97
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tarefa de fazer com que pareçam dignos de confiança? Como o apresentador pode não ser o porta-voz da realidade, se ele usa um terno escuro, se ele franze a testa nos finais das frases e se ele as pronuncia sempre com uma voz grave? Imagine um apresentador usando roupas alaranjadas com bolinhas azuis e quadradinhos verdes e modulando a sua voz constantemente! É claro que os sinais da seriedade podem variar de lugar para lugar e de época para época... E que nem todo mundo os leva invariavelmente a sério... Mas eles existem... Sem dúvida, eles existem! 94 A filosofia está literalmente estrangulada pela estética da austeridade. 95 A metafilosofia não tem apenas um nódulo político a massagear. Diante dela está também um nódulo estético. 96 A europeidade é um ingrediente estético que contribui significativamente – decisivamente – para produzir a sensação de que o texto à nossa frente merece atenção, de que o texto à nossa frente tem algo de importante, de sério e de profundo a dizer. A latinidade, ao contrário, é um ingrediente estético que refrata a sensação de solidez: ela nos faz olhar o texto à nossa frente como se ele tivesse sido escrito não por mãos divinas e sim por mãos humanas: ou por mãos subumanas: não conseguimos levar a sério as coisas nas quais a latinidade deixa o seu tempero. 98
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97 A europeidade inspira reverência. A latinidade inspira irreverência. 98 Se as nossas sensibilidades permanecerem eurocentradas, os nossos pensamentos também permanecerão eurocentrados. 99 “Resguardemo-nos de retirar de nossa ciência sua parte de poesia. Resguardemo-nos, sobretudo, já surpreendi essa sensação em alguns, de enrubescer por isso.”6 Enrubescer! Não devemos subestimar o quão profundamente inscritos em nossos órgãos internos estão os microtabus disciplinares: temos uma reação pática absolutamente intransigente quando vemos a ciência e a filosofia colocadas ao lado da poesia: a ciência e a filosofia, pensamos, ocupam-se com o conhecimento – apenas com o conhecimento: precisam se depurar: precisam se desestetizar: precisam até mesmo se enfeiar: quando são aproximadas da poesia, elas entram num processo de erosão... A ciência e a filosofia temem ser castigadas perdendo a coroa do saber caso mostrem personalidade ao invés de mediocridade estilística. Quanto mais apagada e desajeitada for uma obra do ponto de vista estético, mais notável ela será do ponto de vista epistêmico!
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Tabela 1
100 A tabela 1 nos permite vislumbrar o imenso universo de regras implícitas que governam de forma rígida e autoritária a produção intelectual do departamento de filosofia da UnB. Observe que os títulos das dissertações não revelam tão claramente quanto os títulos dos seus capítulos o fato de que no departamento de filosofia da UnB é preciso comentar, não filosofar! Ou seja, quando analisamos somente os primeiros (os títulos das dissertações), ficamos com a impressão de que existe, sim, bastante espaço no departamento de filosofia da UnB para o autêntico desenvolvimento do pensamento: você pode, sim, filosofar ao invés de comentar: você pode, sim, escrever ao invés de reescrever: você pode, sim, pensar ao invés de repensar: você pode, sim, produzir ao invés de reproduzir. Mas quando passamos aos segundos (os títulos dos capítulos),
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vemos que as coisas não são bem assim. Pelo contrário, embora a liberdade da filosofia seja muitas vezes glorificada, o fato é que as suas chances de ser admitido nos programas de mestrado e doutorado em filosofia aumentam consideravelmente quando você apresenta um insípido projeto exegético sobre um filósofo europeu de renome – e diminuem drasticamente quando você apresenta um projeto que revela a sua intenção de filosofar! 101 Sim, podemos ler as definições por trás do caráter supostamente indefinível da filosofia nos produtos dos seus esforços. O fato de que uma regra é implícita não significa que ela não seja atuante. Mas é bastante difícil contestá-la – pois como nada explicitamente está dito, parece que não há nada a ser contestado!
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A filosofia acadêmica não teve século XX BLOCO 4
A filosofia acadêmica não teve século XX
102 É possível narrar a história da arte moderna e contemporânea de várias maneiras diferentes... Nada nos impede, por exemplo, de afirmar que desde o Salon des Refusés o que ela tem vivido não é nada mais e nada menos do que um lamentável processo de degradação... O impressionismo fez a pintura perder completamente o rumo... Já que só é possível assinalar os inícios retrospectivamente e arbitrariamente, podemos dizer que a queda da arte começou no momento preciso em que Monet encostou o pincel na tela pela primeira vez! As pinturas que passaram a atrair a atenção desde então são tão ruins que poderiam ter sido feitas por crianças! Não encontramos formas igualmente indefinidas e cores igualmente borradas nas paredes dos hospícios? Igualmente indefinidas! Igualmente borradas! Num caso, porém, temos um não saber pintar involuntário, não escolhido, e menos ainda alardeado... No segundo caso, temos um não saber voluntário, escolhido, alardeado, muito alardeado... E a pintura arrastou consigo a música... Que começou a substituir paulatinamente suas composições refinadas e engenhosas por ruídos cimentados uns sobre os outros das formas mais rudimentares possíveis... E a poesia? A poesia do século XX decaiu perceptivelmente em relação à poesia do XIX: os versos cuidadosamente metrificados, as
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rimas cuidadosamente elaboradas, os temas cuidadosamente escolhidos cederam lugar a aberrações simplesmente indignas do rótulo ‘poesia’. E a escultura? A mesma coisa aconteceu com a escultura! A mesma coisa! Seus artífices também resolveram desaprender a esculpir... Já nos fins do XIX a falta de habilidade com o bronze e o mármore começaram inspirar mais respeito e admiração do que a habilidade... E o teatro? Um absurdo! Um absurdo! O desnorteamento total da crítica se mostra claramente no fato de que a Semana de 22 é hoje aplaudida! Aplaudida! Ah, o mundo está de cabeça para baixo... 103 Sim, a história da arte moderna e contemporânea pode ser narrada como uma história decadente... Como uma história de perda de parâmetros... De perda de critérios... De perda de valores... De perda de sentido... De perda de talento... De perda de equilíbrio... De perda de técnica... De perda de originalidade... De perda de qualidade... De perda de identidade... De perda de si mesma... De perda... Só de perda... A história da arte moderna e contemporânea pode ser narrada como uma história puramente negativa... Não houve nela ganhos... Só perdas... Ela não avançou... Só regrediu... E ela de fato foi narrada assim... Por várias vozes... Situadas nos mais diversos nichos da cultura... Dentro das instituições... E também nas ruas... Tanto na esfera pública... Quanto na esfera privada... Algumas com mais poder de influência sobre o curso dos acontecimentos... Outras com menos... Mas nenhuma sem poder algum e nenhuma com todo o poder nas mãos: a força das vozes é sempre ponderada, o que evita ao mesmo tempo que decidam tudo e que não decidam nada.
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104 Sim, houve mãos que empunharam a pena para escrever a história da decadência da arte... Contudo, não conseguiram impor a sua versão dos fatos... Que para elas talvez não fosse apenas a versão correta, mas a única versão concebível! Sim, a única versão concebível! Uma coisa é pensar da forma x e admitir a possibilidade de se pensar da forma y sem estar com a cabeça fora do lugar... Outra coisa é pensar da forma x e não admitir a possibilidade de se pensar da forma y sem estar com a cabeça fora do lugar! Concedemos a todo mundo o direito de achar o que quiser... Mas não de saber o que quiser! Sim, vale a pena examinarmos o modo como utilizamos os verbos ‘achar’ e ‘saber’. Nós sabemos! Os outros acham! 105 Mas é possível também narrar a história da arte moderna e contemporânea como se ela tivesse sido marcada não por um desregramento gratuito e sim por uma luta bastante meditada contra os limites inteiramente arbitrários que sufocavam o seu desdobramento... As colagens de Braque e Picasso não perverteram a pintura, elas ampliaram os seus horizontes plásticos... Ao desafiar a fronteira que separava os sons que poderiam ser legitimamente utilizados dos sons que deveriam ser obrigatoriamente descartados pela música (em suma, ao defender o direito de cidadania dos ruídos), John Cage não trabalhou em prol da degeneração da sua arte, ele não trabalhou em prol da sua queda de qualidade, ele trabalhou em prol da sua renovação, ele trabalhou em prol do alargamento do seu universo de possibilidades. “Tudo é válido. Entretanto, nem
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tudo é tentado.”7 O que motivou a crítica de Monteiro Lobato a Anita Malfatti não foi o bom senso... Não foi o bom gosto... Não foi a lucidez... Não foi a perspicácia... Foi a estreiteza! Não há mistério nenhum aqui! As coisas são de fato muito simples, muito simples... Ele se autorrepresentava como um mero defensor dos “princípios imutáveis” da arte, um mero defensor das suas “leis fundamentais”.8 Mas ele foi apenas o porta-voz da mentalidade do seu tempo e do seu meio, que o atravessava e o ultrapassava... Uma mentalidade! Sim, uma mentalidade! Princípios imutáveis? Leis fundamentais? O que os críticos esquecem é que até os princípios mais imutáveis e as leis mais fundamentais têm história e também geografia! Eles variam de época para época e de lugar para lugar... Eles são verbalizações de uma sensibilidade local e transitória... Princípios imutáveis? Leis fundamentais? Eles estão muito longe de ser meras traduções das ranhuras da sensibilidade para a linguagem cotidiana! Meras traduções? Ah, muito longe! Pelo contrário, eles imprimem nela as suas marcas... 106 Sempre puxamos as palavras solidificadoras para as nossas próprias opiniões (por exemplo, a palavra ‘saber’, que finca o sabido no chão) e sempre empurramos as palavras volatizadoras para as opiniões dos outros (por exemplo, a palavra ‘achar’, que arranca o achado do chão). Tentamos solidificar o que afirmamos (e os outros negam) e volatizar o que negamos (e os outros afirmam)!
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107 As palavras legitimadoras (como ‘saber’) encontram-se no meio de uma partida interminável de cabo de guerra, e as deslegitimadoras (como ‘achar’) no meio de uma partida interminável de batata quente... As palavras legitimadoras, nós as puxamos com toda a força para a nossa própria visão das coisas... As palavras deslegitimadoras, nós as lançamos sobre a visão que os outros têm das coisas... Embora dêem-se como novos, como precursores duma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e a mistificação.9 Vocês querem a palavra ‘novo’? Não, vocês não podem ficar com ela! Trata-se de uma palavra legitimadora demais... Tomem a palavra ‘velho’! E fiquem também, de quebra, com a palavra ‘anormal’. A opinião que Monteiro Lobato expressa em seu artigo não é mais do que a “opinião geral do público não idiota” e “dos críticos não cretinos”.10 Ou seja, nem todo mundo pensa como ele sobre a arte moderna... Por exemplo, os idiotas não pensam como ele! Os idiotas e os cretinos! Sim, é possível simpatizar com as obras de Anita Malfatti! Porém, é só quem não simpatiza com elas que está “de cabeça não virada”!11
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108 A estreiteza foi jogada de um lado para o outro pelas diferentes visões críticas da arte moderna e contemporânea... Ninguém queria ficar com ela! De um lado para o outro, de um lado para o outro... Até que um dos lados não encontrou mais forças para tornar a jogá-la, não encontrou mais forças para desfazer-se dela... E se deixou ser estigmatizado... Conformado ou não com a derrota, precisou, não obstante, conformar-se com a sua perda de status – com a sua perda de espaço tanto no universo simbólico quanto no universo institucional. 109 Quando nos aproximamos do fim de uma guerra simbólica, durante a qual tudo é confuso, tudo é incerto, a palavra ‘estreiteza’ deixa de ser uma palavra que ninguém sabe exatamente onde colocar e começa a criar raízes num lugar bem preciso... Não sou eu que penso que Monteiro Lobato foi estreito! Ele foi estreito! 110 Quando vencemos uma guerra simbólica, deixamos de achar que as coisas são desse ou daquele jeito e passamos a saber que elas são desse ou daquele jeito. 111 Mas é apenas lentamente que o mar de signos se aquieta num arranjo que favorece uma das partes litigantes... É apenas aos poucos... Paulatinamente... Gradativamente... Afinal, é de uma mentalidade que estamos falando! Uma pessoa pode mudar 110
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subitamente de opinião. Mas quando consideramos um número maior de pessoas, as mudanças ficam proporcionalmente mais lentas... Aos poucos, aos poucos... Princípios imutáveis? Leis fundamentais? O que era antes um fato vira uma opinião e o que era antes uma opinião vira um fato... Sim, os fatos podem ser volatizados e as opiniões podem ser solidificadas! Monteiro Lobato foi estreito! Sim, ele foi! Não acho... Eu sei! As opiniões que vencem a guerra deixam de ser opiniões... Deixam de parecer performativas para parecerem puramente descritivas... Puramente descritivas... Uma opinião verdadeira e justificada já não é mais uma mera opinião! 112 Temos espalhado sobre a realidade um mar de signos: um mar que não está de modo algum parado, por mais que pareça quieto: um mar que está constantemente se reconfigurando. Toda a massa líquida sustenta-se sobre um fundo sólido... Mas ele também está em movimento... Em boa medida, por causa do movimento da água... E ele também faz com que ela se movimente... 113 Os arranjos sígnicos dependem menos dos arranjos da realidade do que do modo como queremos arranjá-la. 114 Não nos contentamos em reduzir as opiniões das outras pessoas a meras opiniões! Também queremos fazer com que elas sejam apenas instâncias ou casos específicos de uma opinião que em última análise nem sequer é delas... De uma 111
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opinião que as perpassa... De uma opinião que as ultrapassa... Sim, tratamos de diluir toda a autonomia de pensamento delas numa mentalidade! Numa mentalidade! Não é você que pensa assim. Não se trata de uma opinião sua. Você que é dela. 115 Os signos legitimadores são puxados continuamente para perto... Os signos deslegitimadores são empurrados continuamente para longe... E assim eles vão de um lado para o outro, de um lado para o outro, de um lado para o outro... Até que se fixam. Quem prefere o signo ‘conservador’ ao signo ‘inovador’? Quem prefere o signo ‘reacionário’ ao signo ‘revolucionário’? Quem prefere que as suas opiniões sejam desclassificadas como simples expressões de uma mentalidade ao invés de serem vistas como expressões autônomas de uma razão sóbria e senhora de si? Quem quer ser estigmatizado? É só quem não dá a mínima para os seus próximos que consegue aceitar de bom grado as qualificações que lhe são imputadas. 116 A história da disciplina de história ao longo do XX foi quase tão turbulenta quanto a história da arte... Ela passou por transformações epistemológicas tão profundas que se um eminente historiador do início do XX fosse transportado para os dias de hoje, ele provavelmente cairia em prantos... O que aconteceu com a minha disciplina? História econômica? História das mentalidades? História vista de baixo? História da infância? História do meio ambiente? História oral? História das mulheres? História das drogas? Ah, a história voltou ao antiquarismo! A razão é que no início do XX os historiadores achavam que a história precisava se debruçar exclusivamente 112
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sobre questões políticas... Não sobre questões políticas do presente, é claro... Mas sobre questões políticas do passado! Assim, eles não chamavam o que faziam de ‘história política’ nem de ‘história do passado’, muito menos de ‘história tradicional’. Eles chamavam o que faziam simplesmente de ‘história’ e a si mesmos simplesmente de ‘historiadores’! Os fenômenos políticos do passado esgotavam tudo o que havia para ser legitimamente estudado pela história... Tudo! 117 Quando Marc Bloch e Lucien Febvre começaram a fazer história econômica, os historiadores estabelecidos sentiram imediatamente as suas entranhas reagindo... Não se tratava de história e sim de jornalismo ou algo do gênero! “A história é a política do passado; a política é a história do presente”, como cunhou John Seeley: trata-se realmente de uma elegante e apelativa microdefinição de história, que para ele era evidentemente uma descrição neutra e objetiva da essência de sua disciplina.12 Não apenas de como ela era, mas também de como ela deveria ser... É claro que ninguém dispunha de força para proibir Bloch e Febvre de tematizarem o que bem entendessem... Eles podiam escrever sobre a economia! Eles podiam escrever sobre a cultura! Eles podiam escrever sobre o presente! Eles podiam escrever sobre qualquer coisa! Sim, eles podiam! Contanto que não chamassem o que escreviam de ‘história’. Se quisessem usar o rótulo ‘história’, que escrevessem sobre questões políticas do passado! Nem tudo é história... Nem tudo! Há espaço para tudo... Mas não dentro da disciplina de história!
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118 Marc Bloch e Lucien Febvre lançaram a revista Annales d’histoire économique et sociale em 1929... Sim, 1929! Quando a esfera econômica atraiu subitamente tanta atenção quanto a esfera política... Era impossível portanto ignorar o que eles escreviam... Mas não faltou quem dissesse “Isso não é história!” em resposta aos seus extravagantes trabalhos, que passavam ao largo da política do passado... Nem quem dissesse que se eles satisfaziam os requisitos mínimos necessários para serem considerados trabalhos históricos, não satisfaziam os requisitos mínimos necessários para serem considerados trabalhos históricos de qualidade... Os requisitos mínimos necessários! Entre 1929 e 1945, apenas 2,8% dos artigos publicados nos Annales foram dedicados à história política... Mas eles representaram 49,9% dos artigos da Revue historique. Evidentemente, os historiadores dos Annales sabiam perfeitamente que estavam transgredindo tabus... O que explica o fato de no mesmo período haver nos Annales uma proporção significativamente maior de artigos discutindo teoria do que na Revue historique.13 E além de desafiarem os limites temáticos da história, ameaçando a sua nobreza, as novas gerações desafiaram também os seus limites metodológicos, ameaçando a sua solidez... Era mesmo imprescindível utilizar fontes não oficiais? Era mesmo preciso aventurar-se em terrenos tão pantanosos? Ah, baderneiros! As novas gerações lidavam com temas de pouca importância empregando métodos pouco confiáveis!
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119 O uso abundante de fontes não oficiais na primeira metade do XX e de fontes orais na segunda metade pareceu aos historiadores tradicionais um verdadeiro ultraje à seriedade científica do seu campo de estudos. Contudo, os que na primeira metade do XX formavam a esmagadora maioria, no fim do XX já formavam a esmagada minoria. 120 As transformações epistemológicas pelas quais passou a disciplina de história realmente não aconteceram de forma suave e tranquila... O processo foi traumático para as duas partes litigantes... Não apenas para os historiadores das novas gerações cujo status de historiadores era continuamente colocado em questão... Mas também para os historiadores tradicionais, que perderam o poder de condecorar o que lhes agradava e de condenar o que lhes enfezava... Historiadores tradicionais? Eles não viam a si mesmos como historiadores tradicionais! Eles eram os guardiães da história! Da verdadeira história! Sim, a adjetivação foi proposta por seus adversários... Que pretendiam mostrar que eles tematizavam apenas uma parcela do que era legítimo tematizar, utilizando apenas uma parcela dos métodos que era legítimo utilizar... E o fato de que ela criou raízes, o fato de que hoje chamamos de ‘história tradicional’ a história que segue a lógica fabril da história do início do XX, significa que os historiadores das novas gerações venceram a luta para alargar os horizontes temáticos e metodológicos da história...
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121 A história oral só conseguiu se consolidar nas últimas décadas do XX. Pois ela encontrou uma resistência enorme por parte dos historiadores! Contudo, a história oral encontrou também um número significativo de historiadores prontos a defendê-la e sobretudo a exercê-la, sem os quais ela certamente não teria hoje o lugar que tem dentro da disciplina de história... Todo o mar de signos que banhava a história oral foi reconfigurado. Não espontaneamente. Mas por meio de lutas. Ela deixou de ser objeto de escárnio: Os historiadores das sociedades modernas, industriais e maciçamente alfabetizadas – ou seja, a maior parte dos historiadores profissionais – em geral são bastante céticos quanto ao valor das fontes orais na reconstrução do passado. “Nesta questão eu sou quase totalmente cético”, observou A. J. P. Taylor, causticamente. “Velhos babando acerca de sua juventude? Não!”14 para tornar-se uma parte indispensável da história: Quanto às fontes orais, são intrinsecamente diferentes das fontes escritas, mas são do mesmo modo úteis. (...) O grupo a que pertenço, em Barcelona, é contra a história social, a história política, a história das mulheres, a história dos marginais; nós queremos uma história sem adjetivos, uma história bemfeita, uma história que seja útil. E estamos 14
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convencidos de que essa história bem-feita, sem fontes orais, é uma história incompleta.15 Do mesmo modo úteis! Pouco a pouco, vários dos signos chamados para deslegitimar a história oral (‘frágil’, ‘imprecisa’, ‘insatisfatória’, ‘incompleta’, ‘inacabada’ etc.) passaram a ser usados para qualificar a disciplina de história como um todo: Ao mesmo tempo, sabemos que a fonte oral é uma fonte viva, é uma fonte inacabada, que nunca será exaurida, e portanto que a história bem-feita que queremos fazer é uma história inacabada. (...) Mas a história que queremos fazer é mais completa que uma história contemporânea feita sem fontes orais.16 perdendo assim a razão de serem vistos como signos deslegitimadores! Fiquemos em paz... Estamos todos condenados ao inacabamento! Estamos todos condenados à imprecisão! 122 Monteiro Lobato não tentou deslegitimar a arte moderna dizendo que ela não era nova e sim velha? A história oral tentou legitimar a si mesma dizendo que ela era velha e não nova: No cerne do contra-discurso elaborado pela história oral no decorrer dos anos 60, há, em primeiro lugar, a vontade de derrubar o interdito
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estabelecido pela história crítica do século XIX, que expulsa a tradição oral do campo científico em proveito das fontes escritas. A história oral opõe a esse veto uma dupla questão acerca da legitimidade e, sobretudo, da anterioridade milenar. Convoca o pai da história, Heródoto, que foi o primeiro a realizar o seu inquérito, com o olho e o ouvido, com a observação direta e o testemunho. (...) A história oral, assim, vem se dando títulos de nobreza antiga (...).17 Então, a história oral representou ou não uma ruptura com a história da primeira metade do XX? Ela estava ou não em continuidade com a metodologia tradicional da história? Havia razão ou não para escandalizar-se com o uso de gravadores de voz? O signo ‘velho’ não é invariavelmente deslegitimador, nem o signo ‘novo’ invariavelmente deslegitimador! 123 Ah, um pouco de reflexão sobre o que se faz nos departamentos de história basta para revelar que nos departamentos de filosofia não se faz história da filosofia e sim exegese (mais ou menos como os teólogos fazem exegese bíblica). Quem ainda quiser defender que nos departamentos de filosofia se faz história da filosofia, precisará estar preparado para defender que a revista de celebridades Caras é uma revista de sociologia!
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124 Os horizontes temáticos e metodológicos da história eram muito mais estreitos no início do XX do que são hoje... E eles não se ampliaram sozinhos... Eles não se ampliaram espontaneamente... Houve uma luta para ampliá-los... Bem como para deter a sua ampliação! Houve uma luta para transformá-los de limites racionais em limites arbitrários... Uma luta que processou-se tanto por meio de trabalhos que os colocavam explicitamente em questão quanto por meio de trabalhos que simplesmente não os levavam em consideração. 125 Os historiadores que se posicionaram contra as transformações fabris da história não estavam, aos seus próprios olhos, tentando impedir o desenvolvimento da sua disciplina, mas tentando impedir que ela se degradasse... Eles achavam que ela não poderia ser modificada sem ser descaracterizada... Quando Bloch e Febvre começaram a fazer história econômica, os historiadores do seu tempo e do seu meio não quiseram chamá-la de ‘história’. Por quê? Eles incluíam o objeto de estudo ‘política’ na própria definição do campo de estudo ‘história’! O que deveria ter permanecido em silêncio... 126 A situação ideal para os historiadores tradicionais é sempre aquela onde eles não precisam enunciar em alta e clara voz: “Os problemas que tematizamos e os métodos que utilizamos esgotam os problemas tematizáveis e os métodos utilizáveis pela disciplina de história”. Quanto mais regras e definições preciso explicitar, menos autoridade e poder eu tenho. Quem 119
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realmente manda não diz “Por favor, feche a porta”, mas simplesmente “Porta!” – e alguém imediatamente corre lá para fechá-la. 127 Então, é possível fazer ao menos duas histórias diametralmente opostas das transformações epistemológicas pelas quais passou a disciplina de história ao longo do XX... De acordo com uma delas, a história ampliou paulatinamente os seus horizontes temáticos e metodológicos... De acordo com a outra, ela perdeu paulatinamente as estribeiras... Sim, a história epistemológica da disciplina de história ao longo do XX pode ser narrada tanto com palavras desalentadoras quanto com palavras eufóricas... 128 E o mesmo pode ser dito da disciplina de geografia... No início do XX, os geógrafos nunca pensariam que em seu campo de estudos surgiriam coisas como “a geografia dos sons, a geografia dos cheiros e a geografia dos gostos”.18 Nem que a pintura de paisagens poderia vir a despertar o interesse sistemático de sua disciplina.19 129 Não existe dúvida alguma de que houve coisas que aconteceram com a geografia, mas não com a história, e coisas 18
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que aconteceram com a história, mas não com a geografia. Contudo, o fato é que não precisamos nos esforçar muito para encontrar paralelos entre o que os historiadores e o que os geógrafos dizem acerca das trajetórias de suas disciplinas! O que é dito de Vidal de la Blache, alçado ao papel de pai da geografia moderna, é sem grandes alterações dito de Leopold von Ranke, alçado ao papel de pai da historiografia moderna... Os dois contribuíram de maneira significativa para traçar os contornos e solidificar os núcleos de suas disciplinas, bem como para extirpar delas o amadorismo, representado, na geografia, principalmente pelas figuras dos viajantes, dos funcionários do governo e dos militares, e, na história, também pelas figuras dos viajantes, dos funcionários do governo e dos militares, mas sobretudo pela figura dos antiquários. E la Blache e Ranke se tornaram nomes evocados para que fossem mantidos fora das suas disciplinas tão arduamente construídas os elementos perturbadores trazidos pelas novas gerações... Contudo, não demorou muito para que as novas gerações passassem a afirmar que la Blache e Ranke não defendiam visões tão estreitas quanto os la blacheanos e os rankeanos. Corrigindo a primeira edição do seu A geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, Yves Lacoste disse: “Quando escrevi este livro, eu imputava essa permanência da exclusão dos fenômenos políticos do campo da geograficidade à influência considerável exercida por Vidal de la Blache sobre a escola geográfica francesa (...).” Porém, ele foi depois levado a “modificar profundamente esta explicação”, pois o último livro de la Blache, “desconhecido da quase totalidade dos geógrafos franceses de hoje”, desafiava de forma radical o “famoso ‘modelo vidaliano’”.20 Analogamente, no prefácio
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da coletânea A escrita da história: novas perspectivas, Peter Burke escreveu: A nova história é a história escrita como uma reação deliberada contra o ‘paradigma’ tradicional, aquele termo útil, embora impreciso, posto em circulação pelo historiador da ciência americano Thomas Kuhn. Será conveniente descrever este paradigma tradicional como ‘história rankeana’, conforme o grande historiador alemão Leopold von Ranke (1795-1886), embora este estivesse menos limitado por ele que seus seguidores. (Assim como Marx não era um marxista, Ranke não era um rankeano.) Poderíamos também chamar este paradigma de a visão do senso comum da história, não para enaltecê-lo, mas para assinalar que ele tem sido com frequência – com muita frequência – considerado a maneira de se fazer história ao invés de ser percebido como uma dentre várias abordagens possíveis do passado.21 Os cânones! Eles possuem força simbólica! É estrategicamente interessante chamá-los para o nosso lado! Sim, vamos roubá-los dos nossos adversários! Vamos roubá-los! Vamos reescrever o passado! Não de acordo com o que pensamos que ele foi... Mas de acordo com o que ele realmente foi! Os cânones! Os ancestrais sagrados das nossas disciplinas! Eles são continuamente evocados pelos nossos contemporâneos e conterrâneos para deslegitimar o que fazemos... Para deslegitimar o que nos parece perfeitamente legítimo! Para deslegitimar o que sabemos ser perfeitamente legítimo! 21
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Então, vamos evocá-los para legitimar o que parece a eles ilegítimo! Vamos evocá-los para deslegitimar o que parece a eles legítimo! Roubemos o passado deles... Roubemos as armas que usam para nos deslegitimar... Ah, os mestres nunca são tão estreitos quanto os seus discípulos! Não, o que fazemos não é novo. O que fazemos não representa ruptura alguma com o passado. O que fazemos não fica fora dos limites epistemológicos das nossas disciplinas... Não estamos quebrando regra alguma... Pelo contrário, o que fazemos está em perfeita continuidade com o passado... O que fazemos fica dentro dos limites epistemológicos das nossas disciplinas... 130 Queremos que o nosso trabalho seja reconhecido como novo! Mas não muito novo... Não a ponto de não fazer mais parte do jogo. 131 A filosofia acadêmica não teve século XX. Evidentemente, ela não saiu da esfera da existência em fins do XIX para voltar a ela em princípios do XXI... Porém, quando comparamos o fato de que a lógica fabril da filosofia acadêmica do começo do XXI é praticamente uma reedição da lógica fabril da filosofia acadêmica do começo do XX com o fato de que existe um verdadeiro abismo entre a lógica fabril da arte do começo do XXI e a lógica fabril da arte do começo do XX, entre a lógica fabril da história do começo do XXI e a lógica fabril da história do começo do XX, entre a lógica fabril da geografia do começo do XXI e a lógica fabril da geografia do começo do XX... Quando comparamos o fato de que as acusações “Isso não é arte”, “Isso não é história” e “Isso não é geografia” perderam 123
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gradativamente a sua força deslegitimadora ao longo do XX com o fato de que ainda hoje a acusação “Isso não é filosofia” é recebida com a mais assustadora unanimidade... Quando comparamos o fato de que as obras representativas da arte, da história e da geografia de hoje jamais seriam consideradas obras de arte, história ou geografia no começo do XX com o fato de que as obras representativas da filosofia de hoje seriam provavelmente recebidas no começo do XX com os mesmos padronizados e mornos aplausinhos de sempre... Quando comparamos o clima de consenso pálido que caracterizou a lógica fabril da filosofia acadêmica do XX com as turbulências que transformaram profundamente a arte, a história e a geografia... Em suma, quando comparamos o fato de que a arte, a história e a geografia passaram por sucessivas crises de identidade ao longo do XX com o fato de que a filosofia continua a ser basicamente a mesma do ponto de vista fabril... Torna-se então realmente difícil evitar a sensação de que ela não teve século XX. 132 “O quê? Isso é um absurdo! Não se esquece você de Foucault e Deleuze? Não se esquece você de inúmeros pensadores que escandalizaram a academia? Os pós-modernos não foram – e não são ainda – desqualificados das maneiras mais vis?”. Não, não me esqueço deles. A questão é que se pode fazer duas histórias da filosofia do XX inteiramente distintas. Na primeira delas, vê-se um turbilhão de acontecimentos: vê-se filósofos escrevendo obras não exegéticas, obras sem bibliografia, obras que tratam de questões históricas e sociais ao invés de questões colocadas por outros filósofos, obras que tratam de temas nunca tratados antes pela filosofia, obras que usam métodos de coleta de dados nunca antes usados pela filosofia, obras ousadas, 124
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inaugurais, criativas... Ela é a história dos seus raros produtos. A segunda, porém, muito defasada em relação à primeira, é a história dos textos que ela produz em massa: é a história da filosofia acadêmica, universitária, departamental. Enquanto hoje qualquer estudante de história tem total liberdade – total! – para fazer uma pós-graduação em história das mentalidades (que não era considerada um ramo da história no início do XX), para fazer pesquisas quantitativas e usar gravadores de voz (que não eram considerados instrumentos legítimos da história no início do XX), enfim, enquanto hoje qualquer estudante de história tem total liberdade para produzir um trabalho que indubitavelmente não seria admitido como um trabalho historiográfico no início do XX, enquanto hoje qualquer estudante de história pode fazer algo análogo ao que os ícones da historiografia do XX fizeram, o mesmo não se pode dizer do estudante de filosofia: a liberdade que se concede a Foucault e a Deleuze, a liberdade que se glorifica em Foucault e Deleuze, é uma liberdade totalmente proibida ao estudante de filosofia, seja ele de graduação ou de pósgraduação. Veja hoje se há algum estudante no mestrado ou doutorado em filosofia usando um gravador de voz como método de coleta de dados! Veja se há algum estudante fazendo pesquisas quantitativas! A questão é fabril! Sim, a questão é fabril! Do ponto de vista puramente fabril, um trabalho de pós-graduação representativo da historiografia da segunda metade do XX seria considerado uma absoluta heresia pelos historiadores do início do XX. Ele não seria sequer considerado um trabalho histórico de má qualidade. Ele simplesmente não seria considerado um trabalho histórico! História imediata? Fora daqui! Pesquisas quantitativas? Fora daqui! Gravadores de voz? Fora daqui! Mas do ponto de vista puramente fabril, os estudantes de pós-graduação em filosofia dos dias de hoje continuam a fazer a mesma coisa que faziam cem anos atrás:
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eles leem obras de filosofia e as comentam e ponto final. Um projeto contendo pesquisas quantitativas e gravadores de voz no item metodologia impediria a entrada deles nos programas de pós-graduação dos departamentos de filosofia brasileiros! 133 A filosofia permaneceu ao longo do XX tão metodologicamente estacionada quanto a antropologia... Contudo, há uma diferença fundamental entre a filosofia e a antropologia! Sim, há uma diferença fundamental! É tão difícil imaginar um universo metodológico mais vasto que o da antropologia, que contaminou ao longo do XX disciplinas como a história e a geografia, quanto imaginar um universo metodológico mais restrito que o da filosofia, que teve o cuidado de permanecer ao longo do XX a uma distância segura das suas disciplinas vizinhas! Mas a antropologia realmente permaneceu metodologicamente estacionada ao longo do XX? Não há nenhuma diferença significativa entre o método de coleta de dados de Malinowski e o método de coleta de dados de Lévi-Strauss... Pelo menos, ela não é tão significativa quanto a diferença entre o método de coleta de dados de Bloch e o método de coleta de dados de Vansina... Sim, a antropologia teve as suas revoluções epistemológicas ao longo do XX... Porém, ela não passou por nenhuma revolução metodológica comparável à que se processou na geografia e na história. 134 Os antropólogos, em sua preparação para o escrever, não apenas leem livros e artigos de antropologia... Os seus inputs não provêm apenas de seus próprios domínios... Eles fazem pesquisas empíricas, eles fazem pesquisas de campo. Sim,
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eles também colhem inputs endodérmicos, o que é facilmente reconhecível em seus outputs... Mas um trabalho antropológico é tipicamente um trabalho que confronta ingredientes colhidos dentro das fronteiras da antropologia com ingredientes colhidos fora delas... E o que os filósofos fazem em sua preparação para o escrever? Quase exclusivamente uma coleta endodérmica de inputs! O método de pesquisa dos filósofos acadêmicos resume-se a sentar para ler. De fato, é a única coisa que eles fazem antes de escrever! Os seus inputs são quase todos endodérmicos... Eles não fazem pesquisas que não sejam pesquisas exegéticas... Assim, não veem as suas pesquisas como pesquisas empíricas... A filosofia é uma disciplina abstrata! É uma disciplina que lida com conceitos! Sujar as mãos com o mundo empírico? Não! Fiquemos com os livros! 135 Sim, a filosofia conheceu ampliações temáticas ao longo de sua história... Mas pensamos que agora o processo todo chegou ao fim... E já faz um bom tempo! Os objetos que a filosofia tematiza nos dias de hoje já não representam uma parte dos objetos que ela poderia tematizar sem descaracterizar-se, sem deixar de ser o que é... Ela não exclui objeto algum de seus domínios! Pois não há mais objeto algum que poderia ser legitimamente incluído em seus domínios! O que vemos agora é uma coincidência perfeita entre o que ela estuda de fato e o que ela estuda de direito. Uma coincidência perfeita! Como sempre houve... 136 A formação em filosofia não somente apresenta coisas às nossas retinas... Ela também modela as nossas retinas... Através 127
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das coisas que apresenta! Pois as coisas apresentadas se tornam também as coisas esperadas... Então, não é de se espantar que os cursos de graduação pareçam aos nossos olhos tratar de tudo o que há para ser tratado pela filosofia. Se existem objetos de estudo além dos objetos que estamos habituados a estudar, eles já não são mais objetos de estudo da filosofia! De fato, recorremos aos objetos tematizados para afirmar ou para negar que um determinado trabalho é filosófico... Recorremos aos métodos utilizados para afirmar ou para negar que um determinado trabalho é filosófico... 137 A filosofia pode ser ampliada tematicamente sem ao mesmo tempo ser ampliada metodologicamente? 138 O historiador acadêmico típico de hoje colhe tanto material endodérmico quanto material exodérmico para produzir material endodérmico, colhe tanto material endodérmico quanto material exodérmico para produzir material endodérmico... Mas o filósofo acadêmico típico colhe material endodérmico... E produz material endodérmico... Colhe material endodérmico... E produz material endodérmico... Não deve portanto causar surpresa o fato de que a história acadêmica tenha sofrido transformações temáticas e metodológicas tão radicais ao longo do XX que a sua própria identidade acabou sendo colocada em questão! Nem o fato de que a filosofia acadêmica tenha permanecido no mesmo período completamente estagnada!
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139 Para entendermos a história da filosofia do XX, não basta examinarmos a história da filosofia do XX! Não basta examinarmos os desenvolvimentos que se processaram dentro das suas fronteiras! Precisamos examinar também o que se passou em suas vizinhanças... A história da filosofia do XX não pode mais do que aprovar a si mesma! A história da filosofia do XX não pode mais do que aplaudir a si mesma! 140 A história da arte não precisa ser tomada exclusivamente como um objeto de análise! É perfeitamente possível tomá-la também como um instrumento de análise! Estamos habituados a olhar para ela... Porém, não a partir dela... A filosofia tem muito a dizer sobre a arte! Mas a arte não tem nada a dizer sobre a filosofia! Nada? Nada! Afinal, a arte pertence ao domínio do pathos, não do logos, da sensação, não da razão! 141 Se medirmos a distância entre a arte do início do XX e a arte do início do XXI em quilômetros, teremos que medir a distância entre a filosofia do início do XX e a filosofia do início do XXI em milímetros. 142 O estudante que se candidatar a uma vaga de mestrado ou doutorado em filosofia aqui no Brasil e incluir em seu projeto
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um momento onde fará entrevistas com moradores de rua (tentando desvendar, por exemplo, o que eles pensam sobre a sociedade contemporânea), com instrutores de academias (tentando desvendar, por exemplo, a filosofia ou a mentalidade por trás do esforço para aumentar a massa muscular) ou até mesmo com professores e estudantes de filosofia (tentando desvendar, por exemplo, como a comunidade filosófica acadêmica concebe a filosofia e como ela pensa que se deve fazer filosofia), isto é, se ele incluir em seu projeto pesquisas de campo ou se ele incluir um momento onde fará pesquisas quantitativas e análises estatísticas (tentando desvendar, por exemplo, se a avaliação crítica de um mesmo texto pode variar de forma regular e sistemática caso ele seja atribuído a um europeu ou a um sulamericano), ele será gentilmente aconselhado a procurar outro departamento (possivelmente, o de antropologia ou o de sociologia) sob a alegação de que a filosofia é uma disciplina abstrata e de caráter teórico: nela não se faz pesquisas empíricas. 143 Mas ler as obras de Platão, Heidegger ou Wittgenstein não é fazer pesquisas empíricas? Relatar o que eles pensam é relatar os resultados de pesquisas empíricas! Por que escrever um trabalho sobre o pensamento de um xamã, de um pescador ou de um seringueiro seria fazer um trabalho mais empírico do que escrever sobre o pensamento de Platão, Heidegger ou Wittgenstein? O motivo é que as cosmovisões dos primeiros não estão registradas por escrito e as dos segundos estão? E por que reescrever o que já está escrito? E não se pode pegar um gravador de voz e fazer entrevistas com xamãs, pescadores e seringueiros, e depois transcrevê-las para se obter a filosofia deles registrada por escrito? 130
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144 A distinção entre instrumentos de análise e objetos de análise é absolutamente essencial para a filosofia! Pois ela nos ajuda a perceber que num trabalho de graduação ou de pós-graduação em filosofia o que realmente importa – o que realmente deveria importar – é aquilo que se escreve, não aquilo sobre o que se escreve. O seu trabalho pode ser sobre o pensamento de Platão, Heidegger ou Wittgenstein e ser um trabalho forte do ponto de vista informativo, mas fraco do ponto de vista reflexivo. Pois é absolutamente imprescindível perguntar: quando você retira os pensamentos deles, o que resta? O que há no seu trabalho de verdadeiramente seu? E se não há nada de verdadeiramente seu, por que você o assina? Inversamente, o seu trabalho pode ser sobre o pensamento de um morador de rua, de um instrutor de academia, de um xamã, de um pescador ou de um seringueiro e ser um trabalho vigoroso e profundo tanto do ponto de vista informativo quanto do ponto de vista reflexivo. 145 O que resta quando o pensamento analisado é retirado? 146 A qualidade do seu trabalho depende da qualidade do trabalho de outrem? 147 É de fato de suma importância colocar as questões metafilosóficas nos termos do estudante que pretende entrar num programa de pós-graduação em filosofia aqui no Brasil 131
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e não simplesmente nos termos daquilo que os professores de filosofia brasileiros falam sobre a filosofia. Os muros se revelam claramente no primeiro caso, e desaparecem misteriosamente no segundo. Porque existe uma grande distância entre aquilo que é considerado legítimo no plano institucional e aquilo que é considerado legítimo no plano discursivo. Não se pode descortinar a mentalidade de um grupo de pessoas analisando tão somente o que elas falam. São nas decisões institucionais que a mentalidade dos professores de filosofia brasileiros realmente aparece. 148 Por que se acha que adquirir e ler cuidadosamente livros de filósofos europeus canônicos não seja realizar uma pesquisa empírica? O suposto caráter abstrato da filosofia serve apenas para restringir os inputs com os quais alimentamos nossas reflexões. 149 O ato de ler não é menos empírico do que o ato de ouvir! Não é verdade que se absorve no primeiro caso apenas instrumentos de análise e no segundo caso apenas objetos de análise. E um instrumento sempre pode ser transformado em um objeto, e um objeto sempre pode ser transformado em um instrumento. 150 O verdadeiro critério de abstração é o seguinte: quanto mais oficial, quanto mais convencional, mais abstrato.
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151 Os filósofos acadêmicos repetem incansavelmente que as pesquisas empíricas não provam nada. Mas os discursos que simplesmente afirmam que as coisas são de um jeito e não de outro provam tudo! 152 Podemos lutar contra a ideia de que na filosofia não se pode fazer pesquisas empíricas mostrando que as obras dos filósofos venerados pela academia estão cheias de pesquisas empíricas... Platão não expõe as opiniões dos sofistas? Sim, ele as expõe! Sim, ele as registra! E também podemos argumentar que escrever hoje sobre Platão seja fazer uma pesquisa empírica. Pois debruçar-se sobre o legado cultural escrito da filosofia ocidental é fazer uma pesquisa empírica! É fazer etnofilosofia! 153 A pesquisa empírica é uma forma de abertura ao comunal. 154 Você leva dois anos para escrever um trabalho de peso sobre Wittgenstein. Então, por que você acha que é possível escrever um trabalho de peso sobre um filósofo de rua em um dia? 155 Não estou dizendo que a filosofia deve curvar-se ao empírico: estou dizendo que ele pode ajudá-la a não se curvar.
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Estar à vontade BLOCO 5
Estar à vontade
156 Há tantos temas que podem ser estudados pelos estudantes de filosofia! Por exemplo, o que pensam os membros dos conjuntos musicais do Distrito Federal sobre o processo de composição musical? Sobre as relações entre a música e a sociedade? Entre a criatividade e a técnica? O que pensam os mendigos sobre a sociedade? O que pensam os prisioneiros sobre a ética e a moral? O que faz um trabalho filosófico ser interessante é o fato de que ele veicula análises interessantes. 157 Os departamentos de filosofia muitas vezes nos ensinam que aquilo que nos interessa não deveria nos interessar. E se sentimos interesse por aquilo que não deveria nos interessar, é porque existe um problema conosco, e precisamos assim nos reeducar – de preferência, em segredo! E não apenas intelectualmente, mas também emocionalmente... Sim, precisamos adaptar os nossos interesses aos interesses acadêmicos – ou então silenciálos. Sim, muitas vezes substituímos os nossos interesses genuínos por interesses postiços! Mas interesses postiços são interesses que não nos fisgam!
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158 Quando aquelas densas páginas tão difíceis de decifrar – nas quais não víamos sentido, por falta de ancoragem em nosso íntimo – começam a nos parecer inteligíveis, não é apenas porque o nosso intelecto se transformou, é porque toda a nossa subjetividade se transformou. Não há acolhimento intelectual sem acolhimento emocional. 159 Para deixarmos uma parte dos nossos interesses de lado, precisamos deixar uma parte do nosso ser de lado. 160 Só conseguimos carregar com firmeza a bandeira do saber universitário depois que aprendemos a carregá-la com firmeza dentro de nós mesmos. 161 A nossa sede de leitura é inteiramente canalizada para textos que não conseguem jamais saciá-la. 162 O vínculo emocional que os estudantes de graduação e de pós-graduação em filosofia mantêm com os seus temas de estudo é muitas vezes um vínculo frágil e superficial... Pois eles são obrigados a fazer as suas escolhas dentro de um leque previamente definido de temas! E a falta de vínculo emocional
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– a falta de uma motivação verdadeira, profunda e autêntica – afeta a qualidade do resultado final. 163 As vontades dos estudantes precisam ser dirigidas para o trabalho filosófico normal, o trabalho filosófico habitual – e afastadas da metafilosofia. 164 O responsável por guardar as portas do céu entrou de férias. Então, Deus resolveu experimentar ele mesmo o ofício de porteiro. Colocou-se à postos e ficou submetendo os recém chegados a uma triagem, separando os autorizados a entrar na vida eterna dos condenados a ir para os quintos dos infernos. E assim passaram a ser os dias de Deus: chegava um cara lá e ele perguntava: – Meu filho, o que você fazia na Terra? – Eu era advogado. – Então, meu filho, o seu lugar não é aqui. Pode pegar o elevador ali do lado e descer para o inferno. – Minha filha, o que você fazia na Terra? – Eu era médica. – Então, minha filha, não precisa dizer mais nada. Pode ir entrando. Num certo dia, porém, chegou uma figura curiosa: – Meu filho, o que você fazia na Terra? – Eu era maconheiro. – Maconheiro? – perguntou Deus, colocando a mão no queixo e franzindo as sobrancelhas. – Espere um momento, vou ver no google o que é isso. 139
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Deus deu uma olhada no google. Apareceram vinte milhões de páginas. Ele leu, leu, leu e aprendeu tudo sobre a maconha: que ela era proibida, e que ela era injustamente proibida, que ela era nociva à saúde, e que ela tinha propriedades medicinais, que ela obstruía o intelecto, e que ela potencializava o intelecto. No fim das contas, porém, Deus não conseguiu determinar se o lugar daquele maconheiro era no céu ou no inferno. Então, ele resolveu dar uma ligada para Nossa Senhora Aparecida para encarregá-la de descobrir se a maconha era uma parada do bem ou do mal. E o que ela fez? Chamou um anjo que estava passando ao lado da mesa dela exatamente naquela hora e pediu com uma voz irrecusável: – Você pode descer lá na Terra e conferir o que é a maconha? É que Deus está guardando as portas do céu e ele precisa saber se pode deixar um maconheiro entrar ou se deve mandá-lo para o mundo subterrâneo. O anjo desceu para a Terra. Evidentemente, Nossa Senhora Aparecida esperava que ele fosse ligar de volta no mesmo dia. Só que semanas se passaram e nada do anjo dar notícia de suas andanças. E meses se passaram e nada do anjo dar notícia de suas andanças. Ela começou a ficar impaciente e mandou outro anjo buscá-lo. Pouco depois, diante da mesa de Nossa Senhora Aparecida estava o anjo encarregado de descer para a Terra e descobrir o que era a maconha. – E então? – perguntou Nossa Senhora Aparecida. Com um sorriso pacífico no rosto, o anjo respondeu: – Cidinha, pode dizer para o cabeça liberar o magrelo! A parada é de boa!
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165 Depois de repartir o pão e o vinho na última ceia com os seus discípulos, Jesus apertou um baseado, acendeu-o, deu uma bola, estendeu-o para João e disse retendo a fumaça com maestria nos pulmões: – Esse é o espírito do meu espírito. Seguindo os atos do seu mestre, João segurou o baseado entre o polegar e o indicador e deu uma bola. Em poucos segundos, o seu semblante se iluminou: – Mestre, agora entendi o Sermão da Montanha! João passou a bola para Mateus. A mesma coisa aconteceu com ele: – Sim, mestre! Agora entendi o significado do amor! Mateus passou a bola para Paulo. E ele também teve uma daquelas sacadas profundas que só a erva da boa pode dar: – Agora entendi a Trindade Santa! Então, Paulo passou a bola para Judas, que sacou uma arma da cintura e gritou: – Polícia federal! Todo mundo com a mão na cabeça! 166 Algumas piadas ilustram de forma perfeita o embate entre o empostado dialeto acadêmico e a versátil linguagem comunal. E a luta que elas narram – a luta que elas travam – é uma luta que tem muito a dizer sobre os problemas metafilosóficos. Sem
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o destronamento do dialeto acadêmico, a filosofia não tem chance alguma de vir à existência. E o que eu quero não é que a filosofia acadêmica mostre o seu rosto em todas as quadras e ruas do Distrito Federal – não é que a filosofia acadêmica estenda os seus tentáculos até as regiões mais recônditas da vida comunal. O que eu quero é que a filosofia dispersa nas quadras e ruas do Distrito Federal se aglomere, se individue e se encorpe – o que eu quero é que a filosofia dispersa nas quadras e ruas do Distrito Federal se instale firmemente no espaço da existência. 167 Ah, como são diferentes as expressões ‘insight’ e ‘sacada’ do ponto de vista da academia! Uma coisa é escrever sobre o insights de Foucault! Outra coisa é escrever sobre as sacadas de Foucault! Se você escrever um trabalho sobre Foucault para uma disciplina do curso de filosofia e usar abundantemente a palavra ‘insight’, ele provavelmente será avaliado única e exclusivamente pelo seu conteúdo – pelo seu grau de correspondência e de deferência ao pensamento de Foucault. Mas se você substituir todas as ocorrências de ‘insight’ por ‘sacada’, as coisas poderão mudar consideravelmente de figura. Seu trabalho possivelmente já não será mais avaliado tão somente pelo seu conteúdo: a palavra ‘sacada’ poderá fazer com que ele seja visto – de antemão! – como uma espécie de colcha de retalhos. 168 Aos olhos dos professores, a palavra ‘insight’ não quebra a homogeneidade – a seriedade – dos textos. Ela não os fragmenta,
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ela não os esfacela. E a palavra ‘sacada’? Ela introduz neles um elemento heterogêneo. Ela os fragmenta, ela os esfacela. Ela releva a presença do provincial no seio do metropolitano... Use ‘insight’, não ‘sacada’! Tenha insights, não sacadas! Alimente o seu lado civilizado, não o seu lado bárbaro! 169 A linguagem local é combatida pela universidade... Sim, ela é combatida! Imaginemos dois trabalhos acadêmicos idênticos... Só que um usa ‘insight’ onde o outro usa ‘sacada’. O primeiro não tem mais chances de receber uma boa nota do que o segundo? Sim, a linguagem local é combatida pela universidade! 170 A universidade é um instrumento civilizador. 171 A piada da Cidinha narra uma história de rebelião linguística. 172 Ah, os termos técnicos! Nos departamentos de filosofia circula uma visão completamente ingênua dos termos técnicos: eles simplesmente potencializam a comunicação por sintetizarem ideias, por taquigrafarem conceitos, por abreviarem discursos. Ah, os termos técnicos! Como eles são queridos! Como eles são reverenciados! Como eles seduzem! Usá-los é elevar-se... Usá-los é enobrecer-se...
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173 Em que sentido as piadas da Cidinha e do Judas narram embates entre o comunal e o institucional? Comparemos as duas seguintes frases: 1) “Nossa Senhora Aparecida, pode dizer para Deus deixar o usuário de maconha entrar no céu. A maconha é uma planta inofensiva.” 2) “Cidinha, pode dizer para o cabeça liberar o magrelo! A parada é de boa!” A primeira frase está expressa numa linguagem séria e formal. A segunda frase está expressa numa linguagem comunal. Não numa linguagem incorreta, apenas numa linguagem estigmatizada como incorreta. A linguagem da qual a segunda frase emana é mantida fora do campo da seriedade – e fora do campo da universidade. 174 A linguagem local é um código paralelo. 175 Só entende e ri das piadas da Cidinha e do Judas quem está afetivamente ligado ao comunal, quem não está completamente absorvido pelo institucional.
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176 A piada da Cidinha é uma narrativa da intrusão do comunal no institucional. 177 Quando você combate a linguagem comunal, você combate as pessoas que a falam! 178 A sociedade é linguisticamente organizada. Através das escolas, das universidades e dos concursos públicos, a máquina estatal submete as pessoas a uma triagem: aquelas que usam o linguajar oficial são economicamente favorecidas, e as que resistem são economicamente desfavorecidas. Não é por acaso que são as pessoas que moram nos cantos economicamente mais desvalorizados da cidade que usam a linguagem comunal! E não é por acaso que ela tira ao invés de doar status! 179 Ser economicamente desfavorecido é ser simbolicamente desfavorecido. Ser simbolicamente desfavorecido é ser economicamente desfavorecido. 180 A linguagem institucional puxa para si todos os signos legitimadores: ‘sério’, ‘correto’, ‘neutro’, ‘universal’, ‘culto’,
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‘erudito’ etc. E despeja sobre os códigos paralelos os signos deslegitimadores... A começar pelo signo ‘gíria’! 181 A linguagem estatal se dá o direito de julgar. 182 Do ponto de vista puramente gráfico, a palavra ‘sacada’ não é mais nem menos digna de aparecer num livro do que a palavra ‘insight’! Do ponto de vista puramente gráfico, a linguagem é absolutamente homogênea. A heterogeneidade vem da projeção das desigualdades sociais sobre a linguagem. Um alienígena que chegasse aqui na Terra e visse numa folha de papel as frases: 1) “Nossa Senhora Aparecida, pode dizer para Deus deixar o usuário de maconha entrar no céu. A maconha é uma planta inofensiva.” 2) “Cidinha, pode dizer para o cabeça liberar o magrelo! A parada é de boa!” não poderia saber, a partir do puro exame dos signos que as constituem, que uma delas é uma emanação da linguagem institucional e a outra uma emanação da linguagem comunal. A heterogeneidade não emana dos signos. Mas ela impregna os signos.
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183 Achamos o máximo a obra de engenharia linguística à qual os departamentos de filosofia nos submetem! 184 Nossa linguagem é transformada. Nossa forma de pensar é transformada. Nossas vontades são transformadas. E não há problema algum com a transformação. Mas por que ela consiste única e exclusivamente em nos orientar para a exegese e a reprodução da filosofia do hemisfério norte ocidental? Mas por que ela consiste única e exclusivamente em nos orientar para a coleta de material endodérmico e para a produção de material também endodérmico? Por que não posso colher material exodérmico? Por que não posso produzir material exodérmico? Por que não posso manter os meus instrumentos linguísticos comunais? Por que não posso manter os meus interesses filosóficos comunais? Qual é o problema? 185 Não parece que os departamentos de filosofia brasileiros funcionam como uma espécie de base militar da secular campanha de expansão da civilização europeia? 186 É preciso fazer as pessoas acharem que a linguagem comunal está epistemicamente vazia e que a linguagem institucional
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está epistemicamente investida para elas quererem mudar por si mesmas a sua forma de falar! 187 Os primeiros sinais de transformação da subjetividade dos estudantes se mostram no plano da linguagem. 188 Quando classificamos uma palavra como uma ‘gíria’, o que fazemos é rebaixá-la, deslegitimá-la. O que fazemos é reforçar uma advertência: “Se você não quiser perder status, não se atreva a usá-la!”.
Signo
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Cabeça
Deus
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Liberar
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Tabela 2
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189 Os dicionários traduzem sempre da linguagem comunal para a linguagem institucional. É como se não houvesse distância alguma entre os signos institucionais e os seus respectivos significados, e uma distância imensa entre os signos comunais e os seus respectivos significados, uma distância que só pudesse ser suplantada pela interposição dos signos institucionais! A linguagem comunal não pode ser uma linguagem básica. Ela não pode ser uma linguagem para a qual traduzimos as palavras a fim de compreendê-las. Trata-se de um papel reservado à linguagem institucional. Aqui encontramos o significado feito signo.
Signo
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Deus
Cabeça
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Liberar
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Tabela 3
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190 Mas quem são as pessoas que escrevem os dicionários? Qual é a linguagem comunal delas? Não é por outra razão que encontramos ‘sacada’ entre as palavras explicadas, mas não entre as palavras explicadoras. A linguagem comunal é a linguagem explicada, é a linguagem a ser eliminada. A linguagem institucional é a linguagem que explica, é a linguagem a ser preservada. 191 Para quem estou escrevendo? Para quem? Os estudantes e os professores de filosofia escrevem para os falantes da linguagem institucional como se eles fossem os únicos leitores existentes. 192 A tabela 2 explica a linguagem comunal para o falante da linguagem institucional. A tabela 3 faz o contrário: explica a linguagem institucional para o falante da linguagem comunal. Quando mudamos de linguagem, mudamos de interlocutor. E mudamos também interiormente: a parte do nosso ser que se expressa através da linguagem institucional é diferente da parte do nosso ser que se expressa através da linguagem comunal. 193 Se você quiser filosofar, use a linguagem que você usa quando está descontraído.
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194 A filosofia se desenvolve com mais força e liberdade no terreno da linguagem comunal. 195 Hoje em dia são poucas as pessoas que entram na universidade com a linguagem comunal na ponta da língua. Mas é delas o futuro da filosofia. Porque quem só sabe falar de forma institucional, só sabe pensar de forma institucional. E não se pode esperar que quem pensa de forma institucional esteja em condições de gerar uma filosofia original. 196 Imaginemos dois jovens provenientes de uma favela que entrem na universidade para estudar filosofia. O primeiro mantém-se ligado aos seus pares comunais: ele continua a trocar ideias com os seus amigos, ele continua a escrever visando os seus amigos... O segundo abandona completamente os seus pares comunais: ele começa a escrever visando apenas os seus professores, visando apenas a academia... O primeiro tem sacadas. O segundo tem insights. Qual deles tem mais chances de produzir uma filosofia original? Uma filosofia que realmente valha a pena ser lida? Quem perde os seus vínculos comunais, perde os seus vínculos consigo mesmo. Quem perde os seus vínculos consigo mesmo, perde a sua fonte de ideias e de energia.
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197 A maior prova de que existe um grande problema com os cursos de filosofia brasileiros é o fato de que as pessoas que passam por eles não produzem nada de valor! E por que elas não produzem nada de valor? Porque foram separadas das suas fontes de ideias e de energia. 198 A grande diferença entre o primeiro estudante (que mantém os seus vínculos filosóficos comunais) e o segundo (que abandona os seus vínculos filosóficos comunais) é que o primeiro olha para as arbitrariedades acadêmicas de cima para baixo e o segundo de baixo para cima. 199 Para se fazer filosofia, é preciso fazer reflexões comunais intensas. É preciso viver onde se vive, e não há nada melhor para isso do que literalmente vagabundear. “Vagabundear! Vagabundear! Vagabundear! Nada é mais terapêutico do que atravessar a cidade à pé, todos os dias, todos os meses, durante anos, sem ter para onde ir, sem ter horários, agendas, compromissos com a vida organizada e seu imbróglio de demências, pois enquanto se caminha se elabora pensamentos, ideias e projetos que ninguém tem culhões para bancar.”22 Para se fazer filosofia, é preciso pensar onde se pensa, sentir o que se sente, ser de onde se é, e ser quem se é.
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200 Para se fazer filosofia, é preciso fazer algo diferente do que se faz na academia. 201 É lamentável ver que os estudantes se reúnem para fazer exegeses e discussões de ideias filosóficas europeias ou norteamericanas, mas não para discutirem as questões que os intrigam fora da academia! 202 O elemento pulsional e o elemento institucional acompanhamnos em quase todos os âmbitos e níveis da existência. 203 A escrita filosófica universitária, que se situa em algum lugar entre os nossos voos imaginativos e os muros institucionais, apresenta uma delicada oscilação entre o pulsional e o institucional: entre a sensação de estar à vontade ao escrever e a sensação de estar constrangido ao escrever. 204 É quando nos sentimos à vontade para sermos nós mesmos que o elemento pulsional mostra o seu rosto. No âmbito universitário, ele aparece quando nos sentimos à vontade com
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as pessoas que nos rodeiam, quando temos a sensação de que não precisamos esconder delas nada do que pensamos para não sermos discriminados, de que não precisamos, por exemplo, submeter as ideias que nos atravessam espontaneamente a consciência a uma triagem antes de expressá-las, sufocando as que seriam possivelmente vistas como ingênuas e sem fundamento para dar vazão apenas às supostamente sérias e bem fundamentadas. Já o elemento institucional mostra o seu rosto quando nos sentimos constrangidos pelas pessoas que nos rodeiam, quando temos a sensação de que precisamos esconder delas uma parte considerável do que nos atravessa a consciência para que não franzam para nós as sobrancelhas e não nos ameacem com o exílio intelectual. O elemento institucional aparece quando nos reprimimos para não sermos reprimidos. 205 Quando tomados pelo elemento pulsional, escrevemos livre e alegremente, e fazemos até descobertas novas – mesmo que a nossa intenção ao escrever fosse apenas registrar o que havíamos pensado... Quando tomados pelo elemento institucional, não conseguimos sequer registrar adequadamente o que havíamos pensado, porque a escrita sai emperrada, truncada, e algo essencial parece ficar irremediavelmente de fora. 206 Cada pessoa tem a sua forma particular de mesclar os elementos pulsional e institucional.
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207 Algumas pessoas sentem a tarefa de escrever um trabalho para a faculdade ou um artigo para uma revista acadêmica como uma tarefa penosa e desenergizante. A razão, eu acho, é que nada do que elas colocam no papel vem a ser uma expressão de si mesmas. Tudo provém do elemento institucional. Elas estão lutando contra si mesmas para calarem a sua energia pulsional e para serem porta-vozes de um pensamento que não encontra um verdadeiro eco em seus órgãos internos. Estão mais preocupadas com a aceitação do que com a expressão dos seus pensamentos. O que elas escrevem não é o que elas querem escrever, é o elas que acham que precisam escrever, é o que elas acham que devem escrever. Acuadas dentro de si mesmas, operam os dedos das suas mãos através de cordas, alavancas e manivelas, reduzindo os seus corpos a verdadeiras máquinas e a si mesmas a operárias dessubjetivadas às quais é vedada toda e qualquer expressão genuína. 208 O problema aqui talvez seja para que se escreve e para quem se escreve. Isto é, o problema aqui talvez seja ver a escrita não como um meio de expressão, não como um meio de comunicação, não como um meio de compartilhar as boas novas que desabrocham em nossas consciências às pessoas com as quais nos sentimos afetivamente ligados, mas como um meio de se obter aprovação entre pessoas que gozam de um status superior dentro da hierarquia do saber. É para elas, somente elas, que escrevo quando me dessubjetivo. Sim, é para
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elas, que devem misericordiosamente me tirar do território ignorante no qual habito e do qual quero desesperadamente escapar para me colocarem no território da cultura superior. 209 Sim, é para elas que me anulo. É para elas que escrevo. Não é para os meus pares. Não é para os meus amigos. Não é para as pessoas que me circundam, com as quais cresci, com as quais convivo dentro e fora da universidade, e com as quais tenho uma unidade de ser. Não é para quem gosta de mim independentemente daquilo que penso ou acredito. Não, não é para elas. Não é para mim mesmo. É para as pessoas que me impõem uma série de exigências que preciso atender para ser não exatamente querido, mas simplesmente aceito. E a primeira delas consiste em seccionar a mim mesmo. A segunda consiste em jogar aquilo que tenho de coloquial e de local fora. A terceira consiste em reter somente aquilo que tenho de pretensamente formal e de supostamente universal. Não é curioso e revelador o fato de que persigo a autopromoção mediante a autossupressão? Não é curioso e revelador o fato de que me transformo em nada a fim de ser alguma coisa? 210 O leitor sente ao ler um texto as mesmas dificuldades que o seu autor sentiu ao escrevê-lo, porque elas também foram codificadas, junto com os seus pensamentos, nos signos que ele colocou no papel, e acabam sendo igualmente decodificadas durante o processo de leitura.
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211 É de fato uma pena que tantos espíritos com poder de injetar seiva na universidade sejam via de regra mandados embora dela. E eles podem ser mandados embora de duas formas diferentes: fisicamente ou psicologicamente. O primeiro caso é o que acontece quando eles resolvem não mais pisar o pé na universidade. O segundo caso é o que acontece quando eles resolvem calar a si mesmos, embora permanecendo na universidade. 212 Quando a gente está fazendo um curso de graduação na universidade, a gente tem que cursar várias disciplinas e nelas escrever vários trabalhos – e eles precisam ser escritos no dialeto acadêmico. Por exemplo, os estudantes logo aprendem nos departamentos de filosofia a usar a palavra ‘necessidade’ de uma maneira que não usavam antes. O dialeto acadêmico é uma versão ligeiramente modificada da linguagem cotidiana. Suas particularidades servem para as pessoas se identificarem. 213 E os críticos da identidade são unidos por sua identidade linguística! Obrigue um guerrilheiro a parar de falar, mas deixe-o livre para agir como sempre agiu. Ele continuará a ser ele mesmo? Ele continuará a ser um guerrilheiro? A identidade dele será profundamente afetada? Ou ela permanecerá no essencial inalterada? Agora obrigue um crítico da identidade a parar de falar, mas deixe-o livre para agir como sempre agiu.
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Ele continuará a ser ele mesmo? Ele continuará a ser um crítico da identidade? A identidade dele será profundamente afetada? Ou ela permanecerá no essencial inalterada? 214 A identidade das pessoas que circulam nos departamentos de filosofia é uma identidade profundamente linguística. Não é por outra razão que dão tanta importância a vírgulas! 215 Fora dos muros da academia podemos usar gírias à vontade. Mas sabemos muito bem que não devemos usá-las nos trabalhos acadêmicos. Pelo contrário, devemos usar palavras que nos façam parecer eruditos! Mas o fato é que não conseguimos manejar o dialeto acadêmico com tanta facilidade quanto conseguimos manejar a linguagem comum, a linguagem das ruas, a linguagem que usamos na hora de escrever para os nossos amigos. 216 Os escritores que recorrem a dicionários para enfeitar os seus pensamentos obrigam os leitores a recorrerem a dicionários para compreendê-los. 217 É mais difícil ler um texto escrito no dialeto acadêmico do que ler um texto escrito no linguajar comum não só por causa do caráter seco, áspero e acromático do primeiro (fator importante inclusive para gerar a impressão de que ele veicula conhe
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cimento), mas também porque quem se serve dele para escrever nem sempre o maneja com naturalidade! 218 Aquilo que é codificado com naturalidade pode ser decodificado com naturalidade. 219 Não inveje as ideias e sim a dedicação dos outros. 220 O dialeto acadêmico não é um dialeto que dominamos tão bem quanto a linguagem comunal. E o dialeto acadêmico não necessariamente aumenta o nosso poder de expressão! Pelo contrário, ele pode diminuí-lo! Pois não é todo mundo que o entende! 221 O dialeto acadêmico suja o meu canal de comunicação com os meus amigos. 222 Assim como precisamos estar num terreno que conhecemos bem para podermos brincar de pique pega correndo à toda velocidade, também precisamos de uma língua que para nós seja perfeitamente natural para podermos expressar nela os nossos pensamentos de forma espontânea e fluida.
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223 Existe uma enorme diferença entre o estado em que fico quando sento para escrever um e-mail a um amigo e o estado em que fico quando sento para escrever um trabalho para uma disciplina ou um artigo para uma revista acadêmica – sim, existe uma enorme diferença. No primeiro caso, os meus pensamentos fluem livremente, espontaneamente, naturalmente. Eu sento pensando em escrever A, B e C. Mas eu me entrego à escrita de uma forma tal que acabo escrevendo A, B, C e D. Posso mesmo chegar até Z. Eu sento pensando em relatar uma descoberta que fiz e acabo fazendo outras descobertas! Ah, como é maravilhoso escrever para amigos! Como é maravilhoso! No segundo caso, ao contrário, os meus pensamentos ficam emperrados. Eles simplesmente não avançam. Eles recuam como animais que farejam uma ameaça nas redondezas e correm imediatamente para as suas tocas. Assim, eu sento determinado a escrever A, B e C. Mas só consigo escrever A e B! Ou então só A! Ou nem mesmo A! Longe de fazer novas descobertas, não consigo nem sequer relatar as descobertas que fiz! 224 Por que os meus dedos fluem quando escrevo para os meus amigos e por que travam quando escrevo para a academia? E por que não posso escrever para a academia o que escrevo para os meus amigos? Talvez não existam questões metafilosóficas mais importantes! 225 Os meus amigos despertam e a academia adormece as minhas forças reflexivas.
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226 A metafilosofia investiga a razão pela qual a seiva se esvai da academia. 227 “Ninguém jamais é natural ao escrever!”. Eu sinto uma diferença nítida entre escrever para um amigo e escrever para a academia. Por que não posso usar a palavra ‘natural’ para expressar como fico no primeiro caso? E é você mesmo que está dizendo “Ninguém jamais é natural ao escrever!”? Você não se sente meio artificial ao dizer “Ninguém jamais é natural ao escrever!”? Comece a estudar russo hoje. Talvez daqui a um ano você conseguirá usá-lo para se expressar por escrito. Mas talvez seja necessário estudá-lo por muito mais tempo até que você consiga usá-lo para se expressar por escrito naturalmente. O fato de que aprendemos a escrever não significa que não iremos nunca escrever naturalmente! 228 Os meus amigos não me pedem para modificar o meu jeito de escrever. Assim, eu não aplico ao escrever regras que não estejam já incorporadas ao meu ser. Quando eu escrevo para a academia, ao contrário, eu aplico regras que não estão incorporadas ao meu ser, e assim não escrevo de forma natural. “Ninguém jamais é natural ao escrever!”. Você não sente nenhuma diferença entre escrever para os seus amigos e escrever para a academia? Você escreve para os seus amigos como se estivesse escrevendo para a academia?
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229 É só quando nos dirigimos a amigos – a pessoas que não nos intimidam, a pessoas com as quais nos sentimos à vontade para sermos quem somos – que injetamos seiva naquilo que escrevemos. 230 Os meus e-mails pessoais, mesmo quando tratam de assuntos filosóficos, não são de escrita penosa, não torturam as minhas têmporas nem os meus dedos. Os meus amigos não são leitores que retardam o meu passo, que me fazem pensar que eu deveria talvez substituir uma palavra excessivamente coloquial por outra mais formal. 231 Os meus amigos não exigem de mim nenhuma pose. 232 Quando escrevo para a academia, escrevo sem prazer. E aquilo que escrevo sem prazer, é lido sem prazer. 233 Os e-mails que escrevo para os meus amigos contêm todas as pistas necessárias para serem compreendidos. Eles são completos e autocontidos. Os trabalhos que escrevo para os meus professores, ao contrário, são marcados pela falta e pela insuficiência. Eles não formam um todo
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homogêneo. E as coisas não poderiam ser diferentes. Pois foram escritos por uma subjetividade estilhaçada. 234 As cicatrizes inscritas na minha subjetividade são pistas significativas para a mentalidade da comunidade da qual faço parte. 235 Por que os meus textos acadêmicos são mais duros e difíceis de ler do que os textos que escrevo para os meus amigos? Porque eu tenho que me preocupar com uma série de coisas que simplesmente me impedem de soltar os dedos e deixar que eles assumam o controle da situação. As palavras que eu depois de muito esforço consigo finalmente secretar não expressam adequadamente os pensamentos que permanecem um tanto amedrontados dentro de mim. 236 Você quer filosofar? Você quer desenvolver as suas ideias? Então, escreva para os seus amigos! “Mas os seus amigos vão gostar de qualquer coisa que você escrever. Você precisa ser lido por juízes imparciais.” Mas existem juízes imparciais? 237 Imagine duas ilhas. A primeira é habitada por escritores que se sentem à vontade na hora de escrever. Eles não escrevem controlando a si mesmos. Eles não escrevem vigiando a si
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mesmos. A segunda é habitada por escritores que se sentem intimidados na hora de escrever. Eles escrevem controlando a si mesmos. Eles escrevem vigiando a si mesmos. Qual das ilhas você acha que produz os melhores livros? 238 O rio dos pensamentos corre mais naturalmente no leito dos sentimentos. 239 Quando sento para escrever um trabalho acadêmico, a primeira frase pode levar cinco, dez, vinte minutos para surgir. As palavras não surgem de forma espontânea e natural, o que imprime uma falta de fluência no resultado final. É como se o assunto tivesse se esgotado antes mesmo que eu começasse a registrá-lo, antes mesmo que eu colocasse os meus dedos em movimento, fazendo o meu texto ficar com mais signos do que sentido. 240 Sinto que eu penso com mais tenacidade, que eu raciocino com mais desenvoltura, que eu mergulho com mais alegria no conteúdo do que escrevo quando estou me dirigindo aos meus amigos do que quando estou me dirigindo ao público acadêmico – quando estou me dirigindo ao lado bárbaro dos civilizados do que quando estou me dirigindo ao lado civilizado dos bárbaros.
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241 Se é ao seu lado civilizado que escrevo, é o meu lado civilizado que escreve. Mas se é para você que escrevo, sou eu que escrevo. 242 Se na hora de escrever você deixa a si mesmo e aos seus amigos de fora, você deixa o sentido do que você escreve de fora. 243 As regras formais que opõem-se ao filosofar comunal, opõemse também ao filosofar de modo geral. 244 E tudo o que estou dizendo é que existe uma diferença entre escrever com energia e escrever sem energia! 245 O poema que você escreve quando não está apaixonado não vibra com a mesma intensidade que o poema que você escreve quando está apaixonado. 246 A filosofia é uma atividade essencialmente comunal.
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247 A relação filosófica é uma extensão da relação de amizade. 248 Às vezes, escrever é viver uma aventura. Às vezes, escrever é simplesmente relatar uma aventura que já aconteceu. 249 Quando sento para escrever um trabalho acadêmico, não consigo pensar ao escrever. Os dois processos se apartam. As palavras deixam de ser uma unidade de signo e sentido, e passam a ser apenas signos. 250 É a falta de energia que aparta os significados dos signos. 251 Você tem amigos que frequentam a sua oficina reflexiva? 252 Podemos tratar os nossos amigos como os destinatários dos nossos pensamentos. Ou então apenas como intelectos que consultamos para aperfeiçoá-los. Como você prefere ser tratado?
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253 O fato de que mantemos em segredo a nossa dura luta com o cinzel não significa que não suamos ao escrever, não significa que, antes de tornar as nossas ideias públicas, elas já estavam perfeitamente claras, como se em momento algum tivéssemos murmurado, balbuciado, tateado num esforço tremendo para formulá-las para nós mesmos. Os nossos pensamentos nunca surgem já prontos. E podemos optar entre trabalhá-los com os nossos amigos ou trabalhá-los sozinhos. Isto é, podemos formular os nossos pensamentos ao mesmo tempo para nós mesmos e para os outros. Ou então formulá-los, como mandam os bons modos, primeiro para nós mesmos, para só depois apresentá-los, sob uma forma acabada e cuidadosamente trabalhada, aos outros. 254 Quando compartilhamos com os outros o nosso tatear, nós os tratamos como interlocutores e não como simples leitores. E existe uma enorme diferença entre a nossa relação afetiva com os pensamentos que estamos construindo e a nossa relação afetiva com os pensamentos que tomamos como já construídos. 255 Você pode fazer o que os seus professores não fizeram: você pode escrever para os seus amigos. 256 No princípio, escrever costuma ser o caos.
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257 Ter domínio sobre a linguagem é como ter domínio sobre um membro mecânico. Não a sentimos, a princípio, como parte integrante do nosso ser. Precisamos utilizá-la e tornar a utilizá-la um número incontável de vezes antes de pararmos de percebê-la como uma entidade externa, antes de pararmos de senti-la como um muro que nos aparta do mundo para senti-la como uma ponte, firme sob nossos pés, que garante a nossa comunicação com ele. Tornar a linguagem uma parte inseparável de nós mesmos, torná-la um membro que responde imediatamente aos nossos impulsos internos, nunca é uma tarefa fácil de se realizar, nem na infância, quando aprendemos pela primeira vez a falar, nem na escola, quando aprendemos pela primeira vez a escrever, nem tampouco ao chegarmos na universidade, quando descobrimos, com uma muda frustração, que a técnica oral que aprendemos na infância e a técnica escrita que aprendemos na escola precisam ainda ser suplementadas por um curioso código de etiqueta. Um código de etiqueta? Sim, um código de etiqueta, um código que estabelece uma forma nova e peculiar de usar a linguagem escrita a fim de torná-la mais séria e profunda, porque, afinal de contas, onde não há aparência de saber, também não há saber. Mas esse código que regula o nosso uso da linguagem escrita no âmbito universitário realiza a proeza de complicá-la, e de transformála de ponte em muro. E quando um muro se ergue entre nós e o mundo, quando um muro se ergue entre nós e as pessoas com as quais o nosso ser se confunde de tão ligados que estamos a elas e de tão ligadas que elas estão a nós, um muro também se ergue dentro de nós mesmos, obstruindo o nosso fluxo de energia. Pois quando não podemos escrever para quem nos dá vitalidade, não conseguimos escrever com vitalidade.
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258 Então, que pensamentos são esses que colocamos no papel, se não são os nossos? Eles não são expressões do nosso ser, eles são impressões em nosso ser. Eles são uma forma de continuarmos, na prática solitária de escrever, as lições de civilidade que aprendemos com os comentadores na universidade. 259 Os leitores que temos em mente ao escrever podem ser agrupados em dois tipos fundamentais. O primeiro tipo é constituído pelos que nos deixam plenamente à vontade para escrever. O segundo tipo é constituído pelos que não nos deixam plenamente à vontade para escrever. A distância entre aquilo que queríamos escrever e aquilo que de fato escrevemos é uma função do tipo de leitor que temos em mente. 260 Você imagina que está escrevendo para os seus amigos quando está escrevendo para a academia? Então, por que você não escreve logo para os seus amigos? 261 Se escrevermos com o primeiro tipo de leitor em mente, escreveremos algo que ficará além do que queríamos originalmente escrever. Se escrevermos com o segundo tipo de leitor em mente, escreveremos algo que ficará aquém do que queríamos originalmente escrever.
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262 Você consulta o dicionário na hora de escrever para os seus amigos? Então, por que você consulta o dicionário na hora de escrever um texto filosófico? Você quer que os seus amigos consultem o dicionário na hora de lê-lo? Para quê? 263 Os amigos não escolhem cuidadosamente as suas palavras ao conversarem! 264 Na hora de elaborar um argumento, você soará menos convincente se vigiar as suas palavras do que se não vigiá-las. 265 Além de afetarem como escrevemos, os leitores que temos em mente afetam também o conteúdo do que escrevemos. Eles se fazem presentes não apenas no nível da expressão dos nossos pensamentos, mas também no próprio nível da formulação dos nossos pensamentos. 266 Se você quiser embarcar numa aventura reflexiva com alguém, não parece óbvio que é melhor você procurar um interlocutor que lhe deixa à vontade do que um interlocutor que não lhe deixa à vontade?
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267 Se você quiser filosofar, não escreva para quem lhe intimida! 268 Faça a sua filosofia fora da academia. 269 Você já deixou de criticar os pensamentos de uma pessoa para não magoá-la? Sempre estamos atentos para as reações emocionais das pessoas com as quais conversamos, o que atesta o caráter comunal da filosofia. 270 Quando o laço afetivo é firme, tudo pode ser dito. Quando o laço afetivo é firme, pode-se realmente filosofar. 271 Ao nos forçar a abandonar a nossa linguagem comunal, a universidade passa a mensagem de que os nossos amigos não devem ser contados entre os nossos interlocutores. Não devemos escrever para eles. Não devemos escrever uns para os outros. Não devemos escrever para nós mesmos. 272 Sem pose não há conhecimento.
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273 A pergunta “Para quem você está escrevendo?” costuma ser respondida pelo filósofo acadêmico nos seguintes termos: “Como? Eu não escrevo para um grupo específico de pessoas! Eu escrevo para todo mundo!”. Ele acha que ao escrever sobre Wittgenstein ou Heidegger ele está escrevendo para todo mundo! 274 As regras acadêmicas obrigam os estudantes de filosofia a escreverem única e exclusivamente para um grupo muito específico de pessoas – um grupo que não está verdadeiramente interessado em saber o que eles pensam.
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Placas e definições BLOCO 6
Placas e definições
275 Na primeira nota de Marc Bloch ao seu Apologia da história, ele critica Langlois e Seignobos por terem elaborado uma lista de perguntas que os historiadores não deveriam fazer: um index proscrevendo problemas sobre os quais supostamente não valia a pena refletir. De fato, os historiadores preocupados apenas em realizar um trabalho normal, os historiadores preocupados apenas em acrescentar conhecimentos à sua disciplina, não em questionar sua direção, não em questionar sua função, só podem mesmo sentir desconfiança em relação a perguntas de caráter medular, como é o caso de “Para que serve a história?”, que Bloch se esforça para legitimar.23 Voltando ao corpo do texto, ele imediatamente pergunta: “(...) que artesão envelhecido no ofício não se perguntou algum dia, com um aperto no coração, se fez de sua vida um uso sensato?”24. Se fez de sua vida um uso sensato! Se fez das suas prerrogativas um uso sensato! Sim, vale a pena transpor as reflexões de Bloch para o campo da filosofia – e assim levantar questões que tanto os professores quanto os estudantes deveriam se acostumar a fazer. Não são apenas perguntas do tipo “O que Kant entende por ‘juízo sintético a priori’?” e “O que Wittgenstein entende 23
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por ‘norma de expressão’?” que deveriam importar aos artesãos da filosofia! Eles também deveriam fazer perguntas do tipo “Qual é a verdadeira importância de saber o que Kant entende por ‘juízo sintético a priori’?” e “Qual é a verdadeira importância de saber o que Wittgenstein entende por ‘norma de expressão’?”. Ah, o que se encontra em jogo aqui é a relação entre o artesão e o seu ofício – e nenhum dos dois está destacado da vida comunal. Não demore demais a perguntar se a filosofia é um ofício apropriado para você! Não demore demais a perguntar se você é um artesão apropriado para a filosofia! Pois se você até hoje só enfrentou perguntas do tipo “O que Kant entende por ‘juízo sintético a priori’?” e “O que Wittgenstein entende por ‘norma de expressão’?”, chegou a hora de perguntar “Qual é a verdadeira importância de saber o que Kant entende por ‘juízo sintético a priori’?” e “Qual é a verdadeira importância de saber o que Wittgenstein entende por ‘norma de expressão’?” (não é que não valha a pena saber o que Kant entende por ‘juízo sintético a priori’ e o que Wittgenstein entende por ‘norma de expressão’, apenas não convém achar que saber essas coisas tem mais importância do que realmente tem), perguntas que, por sua vez, só poderão ser apropriadamente respondidas depois que você tiver dissecado a si mesmo e respondido íntima e sinceramente “O que vim fazer na filosofia?”, “Realmente gosto da filosofia?”, “Eu gosto de pensar ou apenas de divulgar o pensamento alheio?”, “O que me atrai na filosofia?”, “Devo mesmo me dedicar à filosofia?”, “O que quero fazer na filosofia?”, “Qual é a importância que a filosofia tem para mim?”, “Qual é a importância que posso ter para a filosofia?”, “Para quem escrevo?”, “Por que escrevo?”. Aqui temos perguntas que deveriam ser feitas – e não apenas mentalmente, mas também verbalmente – pelos estudantes e professores de filosofia. O que é a filosofia? Para que serve a filosofia? É realmente necessário publicar em revistas
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especializadas que quase ninguém lê? É realmente necessário consultar o dicionário na hora de escrever? É realmente necessário lembrar de sempre ler e citar exclusivamente quem publica no circuito editorial autorizado? O que é um filósofo? É alguém que simplesmente memoriza e reproduz a filosofia alheia? Ou é alguém que produz a sua própria filosofia? O que eu vim fazer na filosofia? O que estou fazendo na filosofia? Mas quem atreve-se a dar as costas às listas de ‘perguntas ociosas’ necessariamente põe a si mesmo numa situação de risco: quem pergunta o que não deve ser perguntado sujeita-se a perder capital simbólico. A lista de Langlois e Seignobos não é nada mais do que uma lista de microtabus: não se pode desrespeitálos sem ser imediatamente lançado numa arena e atacado por todos os lados: a menos, é claro, que já se tenha conquistado, como Bloch, o título dos pesos pesados. Pois reagimos não apenas intelectualmente contra aqueles que não observam os tabus disciplinares, mas também e sobretudo emocionalmente. Antes de levantarmos argumentos contra as suas ideias, levantamos suspeitas contra a sua seriedade. Não tentamos ouvi-los para em seguida decidirmos o que fazer com eles. Pelo contrário, já sabemos o que fazer com eles: devemos proscrevêlos – e as palavras que depois murmuramos com uma certa raiva e um certo desdém servem apenas para tranquilizar nossas consciências: não os proscrevemos gratuitamente: estávamos – sempre estamos! – com a razão. 276 As perguntas ociosas são perguntas comunais. 277 É do comunal que vem todo o sentido. 177
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278 No começo do XX, seria colocada em questão a seriedade profissional de qualquer historiador que escrevesse sobre as ideias de um moleiro medieval – como fez o historiador Carlo Ginzburg em seu livro O queijo e os vermes, publicado na segunda metade do XX. E se Ginzburg tivesse entrado numa máquina do tempo e publicado O queijo e os vermes no início do XX? Possivelmente, teria acontecido com ele o que aconteceu com Bloch e Febvre. Ele teria então duas alternativas: a) abaixar a cabeça para os historiadores tradicionais; b) lutar de cabeça erguida contra eles. Mas mesmo que ele conseguisse mostrar que o seu trabalho não estava alheio aos critérios de aplicação de ‘história’, ele teria ainda que lutar para mostrar que ele não estava alheio aos critérios de aplicação de ‘boa história’. A proposição “Isso não é história” pode ser vista como uma placa enorme que o professor usa para dizer ao estudante: “Não vá por aqui!”, e a proposição “Isso não é boa história” como uma placa de dimensões um pouco menores, mas que serve para dizer essencialmente a mesma coisa: “Não vá por aqui!”. 279 A luta para se poder usar os rótulos ‘história’, ‘historiador’, ‘boa história’ e ‘bom historiador’ é uma luta ao mesmo tempo institucional e linguística.
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280 Os historiadores que começaram a escrever sobre história econômica tiveram que quebrar a homogeneidade sígnica que reinava nos departamentos de história. Eles precisaram lutar para quebrar a homogeneidade das proposições que eram ativadas tão logo falassem ‘história econômica’. 281 Cada um de nós carrega dentro de si os preconceitos das suas disciplinas. Eu não preciso consultar os professores de filosofia para saber se eles aceitarão ou não um projeto sobre Bazzo. Eu posso simplesmente olhar para dentro de mim mesmo. 282 Violar um tabu e abolir um tabu são duas coisas diferentes. A metafilosofia visa abolir tabus. Se Ginzburg tivesse publicado O queijo e os vermes no começo do XX, ele teria violado um tabu. Mas ele não o teria necessariamente abolido. 283 Não basta escrever sobre Bazzo. É preciso também criticar a mentalidade que considera ilegítimo escrever sobre Bazzo. 284 Não dá para fazer filosofia no Brasil sem fazer metafilosofia. Pois fazer filosofia no Brasil é violar um tabu.
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285 Não preciso escrever sobre uma obra filosófica para escrever uma obra filosófica! 286 Não temos nenhum chão sob os nossos pés contra o qual medirmos o que dizemos e fazemos – para podermos saber se estamos certos ou errados. 287 É o comprimento do metro padrão que está em questão. 288 As novidades forçam reinterpretações do passado. Os historiadores do início do XX não se viam como ‘historiadores políticos’ e sim como ‘historiadores’, e eles chamavam de ‘história universal’ o que hoje é chamado de ‘história europeia’. Eles achavam que estudavam tudo o que havia para ser estudado pela história. O que era tudo, porém, tornou-se agora quase nada. 289 Você quer escrever uma obra filosófica? Então, não restrinja os seus inputs aos livros. E leia sempre com um lápis à mão. E digite as suas observações, e as desenvolva. E discuta-as com os seus amigos. E preste atenção às pulgas que se instalarem atrás das suas orelhas!
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290 O que temos a oferecer uns aos outros é sobretudo energia. Não são ideias, não são opiniões, não são teorias. Não precisamos nos esforçar para desenvolvermos – e defendermos – uma mesma visão das coisas. Não precisamos sequer estabelecer diálogos. Basta estabelecermos monólogos simultâneos. 291 Não devemos superestimar as diferenças entre as proposições que se apresentam como definições de filosofia e as proposições que se apresentam simplesmente como afirmações sobre a filosofia. Ambas dizem o que pode e o que não pode ser feito. Ambas se erguem como placas de trânsito: “Siga pela direita” e “Não siga pela esquerda!”. Apenas são placas de diferentes tamanhos. 292 Não devemos superestimar as diferenças entre as proposições que se apresentam como definições de história e as proposições que se apresentam simplesmente como afirmações sobre a história. As afirmações podem ser vistas como micro ou protodefinições. 293 Todo mundo lamenta a impossibilidade de se dar uma definição satisfatória da disciplina de história... Todo mundo lamenta a impossibilidade de se dar uma definição supralunar da disciplina de história... Mas todo mundo carrega consigo um enxame de definições sublunares da disciplina de história! 181
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Sim, as protodefinições existem em abundância. Ninguém deixa de fazer afirmações sobre a disciplina de história só por ser impossível defini-la de forma absolutamente irretocável (e é impossível defini-la de forma absolutamente irretocável simplesmente porque o fluxo de historiadores no campo da disciplina de história não cessa!). E as suas protodefinições não se limitam a acenar para o que ela é... Na verdade, o que elas fazem é podá-la contínua e ininterruptamente: as protodefinições estão contínua e ininterruptamente cortando as arestas da história, estão contínua e ininterruptamente impedindo que ela saia dos trilhos... 294 As microdefinições não atuam de forma isolada. Pelo contrário, o que vemos é sempre uma série delas atuando simultaneamente. Nas cidades não temos só uma placa de trânsito! Temos uma série delas autorizando certos caminhos e desautorizando outros. Elas podem ser desobedecidas? Sim, elas podem. Não há aqui nenhuma impossibilidade física. Mas o fato é que elas modelam o fluxo do trânsito. Se olharmos as cidades de cima, veremos um determinado rosto. 295 “A história é a política passada, a política é a história presente”.25 Temos aqui instruções claras sobre o que devemos fazer: “Se você estiver aqui, vá para lá. Se você estiver ali, venha para cá”. Se nos depararmos com um livro que fala de questões políticas passadas, teremos que dizer, teremos que pensar, teremos que sentir: “Esse é um livro de história”. Se
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nos depararmos com um livro que fala de questões políticas presentes ou de questões econômicas passadas, teremos que dizer, teremos que pensar, teremos que sentir: “Esse não é um livro de história”. As protodefinições contribuem para modelar o que os historiadores dizem, pensam e sentem: para modelar o que eles consideram legítimo e o que eles consideram ilegítimo fazer na disciplina de história: para modelar como eles usam – como eles aplicam e como eles se recusam a aplicar – o signo ‘história’. Não é que não se possa falar de questões do tempo presente – mas não se estará assim fazendo história e sim jornalismo. Não é que não se possa falar de questões econômicas – mas não se estará assim fazendo história e sim economia. 296 As microdefinições de história aparecem nos mais diversos suportes físicos. Podemos encontrá-las com todas as letras nos livros... E até mesmo nas orelhas dos livros! E elas não terão por isso menos força de ação! Elas também aparecem nas falas dos professores... E podemos reconstruí-las a partir dos seus precipitados! Isto é, podemos lê-las nas regularidades que encontramos nos títulos dos livros e dos trabalhos de graduação e pós-graduação em história... E também na estrutura curricular do curso de história! E nas ementas das disciplinas. Imaginemos um curso de história que não tenha sequer uma disciplina de história econômica ou de história social ou de história das mentalidades – um curso que trate apenas de história política. Os estudantes não poderão achar que ‘história’ e ‘história política’ são expressões sinônimas? Não poderão até formular a ideia de que “A história é a política passada, a política é a história presente” por si mesmos? Uma regra não precisa ser enunciada de forma explícita para ser seguida. 183
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297 Aprendemos rapidamente a agir de acordo com as placas de trânsito: elas estão distribuídas por todos os lugares, e sobre os mais diversos suportes. Porém, o fato de sermos capazes de obedecê-las não significa que seremos capazes de enunciá-las. Se chamarmos a história política simplesmente de ‘história’, provavelmente pensaremos não que “A história política esgota tudo o que há para ser estudado pela história” e sim que “A história estuda tudo o que há para ser estudado pela história”. 298 Longe de sermos capazes de enunciar todas as regras que seguimos, podemos simplesmente não dispor das articulações discursivas mínimas necessárias para traduzi-las em pensamentos conscientes. De fato, o que acontece não é que pensamos: “A história política esgota tudo o que há para ser estudado pela história”, mas que não pensamos: “A história política esgota tudo o que há para ser estudado pela história”. O problema está menos na presença do que na ausência do pensamento. 299 A situação ideal para os historiadores tradicionais é sempre aquela onde eles não precisam enunciar em alta e clara voz: “Os objetos que estudamos esgotam os objetos de estudo da nossa disciplina”. Como contestar o que nem sequer é enunciado? O momento em que se luta, de um lado, para explicitar o não dito, e, do outro lado, para mantê-lo implícito, constitui realmente um momento decisivo.
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Historiadores tradicionais
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Tabela 4
300 Como se vê pela tabela 4, a luta que Bloch e Febvre travaram para ampliar os horizontes temáticos e metodológicos da história foi em grande medida uma luta linguística, uma luta simbólica. Embora os historiadores políticos não quisessem ser chamados de ‘historiadores políticos’, Bloch e Febvre precisavam reclassificá-los como ‘historiadores políticos’ para que a história política passasse a ser vista como uma parte do campo de estudos da história e não mais como o campo de estudos de toda a história – e para que houvesse assim espaço para o estudo da história econômica e da história das mentalidades. Então, Bloch e Febvre lutaram pela adjetivação
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da história tradicional: eles lutaram pela explicitação do fato de que ela era uma história política. Inversamente, os historiadores políticos não queriam adjetivar a história que eles faziam: pois adjetivá-la seria abrir um espaço gramatical para outros tipos de história, como a história econômica e a história das mentalidades. Se os historiadores políticos tivessem conseguido manter para si mesmos a denominação não adjetivada de ‘historiadores’ e para a história que eles faziam a denominação não adjetivada de ‘história’, eles teriam impedido que Bloch e Febvre fossem considerados ‘historiadores’ e que a história econômica e a história das mentalidades fossem consideradas partes do campo da história. Eles teriam vencido a luta pelo monopólio do signo ‘história’. Contudo, eles perderam a luta... E eles foram linguisticamente destronados: deixaram de ser simplesmente ‘historiadores’ e passaram a ser ‘historiadores políticos’, e aquilo que era antes simplesmente ‘história’ passou a ser ‘história política’. 301 A frase “O que Bloch e Febvre fazem não é história” pode ser entendida como uma placa de trânsito? Bom, ela certamente não tem as feições de uma placa de trânsito. Mas como ela funciona? – Uma placa de trânsito não precisa ser uma proposição geral, ela pode ser um enunciado sobre um caso muito específico: “O que Bloch e Febvre fazem não é história.” Se o que eles fazem não é história, não devemos fazer o que eles fazem. Ou então devemos abrir mão do signo ‘história’.
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302 É legítimo comparar a filosofia com a arte, a história e a geografia? “Mas cada uma teve uma história diferente!”. Precisamente! 303 Por que você acha que os limites temáticos e metodológicos da filosofia acadêmica não podem ser quebrados sem que ela seja descaracterizada? 304 Os novos historiadores se viram forçados a fazer reflexões epistemológicas: precisavam abrir caminho para si mesmos; no fim das contas, acabaram produzindo textos duplamente interessantes: que falavam não apenas de seu objeto de estudo, mas também de seu campo de estudo. 305 Quando as primeiras historiadoras começaram a fazer história das mulheres, elas se depararam com uma forte resistência por parte da comunidade de historiadores, em sua maior parte constituída por homens... Possivelmente por serem mulheres falando de mulheres, elas não foram simplesmente acusadas de estarem se interessando por questões irrelevantes, mas de estarem sendo histéricas e tendenciosas... Como a
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história era vista e sentida como um estudo sério e científico, ela não podia ser maculada por questões políticas – ela deveria ser mantida fora do alcance do feminismo. A conexão entre a história das mulheres e a política é ao mesmo tempo óbvia e complexa. Em uma das narrativas convencionais das origens deste campo, a política feminista é o ponto de partida. Esses relatos situam a origem do campo na década de 60, quando as ativistas feministas reivindicavam uma história que estabelecesse heroínas (...). Foi dito que as feministas acadêmicas responderam ao chamado (...) e dirigiram sua erudição para uma atividade política mais ampla; no início, houve uma conexão direta entre política e intelectualidade. Mais tarde – em algum momento entre a metade e o final da década de 70 – continua o relato, a história das mulheres afastou-se da política. Ampliou seu campo de questionamentos, documentando todos os aspectos da vida das mulheres no passado, e dessa forma adquiriu uma energia própria. O acúmulo de monografias e artigos, o surgimento de controvérsias internas e o avanço de diálogos interpretativos (...) foram os indicadores familiares de um novo campo de estudo, legitimado em parte, ao que parecia, por sua grande distância da luta política. Finalmente (assim prossegue a trajetória), o desvio para o gênero na década de 80 foi um rompimento definitivo com a política e propiciou a este campo conseguir o seu próprio espaço (...).26
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Joan Scott não está aqui descrevendo como a história das mulheres surgiu e se desenvolveu, ela está antes descrevendo uma imagem de como a história das mulheres surgiu e se desenvolveu – uma imagem que, aliás, “representa mal a história da história das mulheres”.27 Mas o que me interessa na história das mulheres não é como ela efetivamente surgiu e se desenvolveu. O que me interessa na história das mulheres é o fato de que ela surgiu das mãos de sujeitos epistêmicos marginalizados: a situação que os sulamericanos enfrentam hoje no campo da filosofia é semelhante à situação que as historiadoras das mulheres enfrentaram no campo da história. 306 Imaginemos que tenham sido escritos os quatro seguintes estudos: E1: Uma primeira historiadora escreve um artigo sobre a imagem dos oceanos ao longo do século XIX. E2: Uma segunda historiadora escreve um artigo sobre a imagem do corpo humano ao longo do século XIX. E3: Uma terceira historiadora escreve um artigo sobre a imagem do fundo dos oceanos ao longo do século XIX.
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E4: Uma quarta historiadora escreve um artigo sobre a imagem do corpo feminino ao longo do século XIX. O estudo E3 pode ser visto como um aprofundamento do estudo E1 e o estudo E4 como um aprofundamento do estudo E2. Se for legítimo escrever sobre os temas abordados por E1, E2 e E3, não deverá então ser legítimo escrever sobre o tema abordado por E4? Mas digamos que uma historiadora envie o seu estudo E4 para uma revista de história e ele seja rejeitado. Porém, quando ela abre a revista um mês depois, ela encontra publicados E1, E2 e E3 e uma série de outros estudos de qualidade gritantemente duvidosa. Ela terá assim uma boa razão para afirmar que o seu artigo foi discriminado por causa do seu tema? Pois uma vez que E4 aprofundava E2 assim como E3 aprofundava E1, os editores da revista não poderiam alegar que rejeitaram E4 por ser o seu tema excessivamente específico. Então, ela poderia agora afirmar que o seu artigo foi discriminado por tratar especificamente das mulheres? Apenas se ela conseguisse mostrar que o seu artigo não deixava nada a desejar – nem metodologicamente, nem argumentativamente, nem estilisticamente, etc. – em relação a E1, E2 e E3. O que pode ser muito difícil de se fazer! 307 Mas suponhamos que E4 fosse visivelmente superior a E1, E2 e E3. Suponhamos que E4 contivesse mais dados, mais tabelas, mais figuras e uma bibliografia mais farta do que E1, E2 e E3. Ela então poderia dizer que o seu estudo foi discriminado? Ah, como é difícil chegar na linha do horizonte: ela recua proporcionalmente aos nossos esforços para alcançá-la! Os editores podem simplesmente negar que E4 estava à altura 190
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de E1, E2 e E3! Segundo a narrativa dela, E4 foi rejeitado em razão do seu tema. Segundo a narrativa deles, E4 foi rejeitado em razão da sua qualidade. É extremamente difícil mostrar que de fato houve aqui uma discriminação temática: é extremamente difícil encurralá-la. Se E1 fosse um triângulo azul, E2 um triângulo vermelho, E3 um quadrado vermelho e E4 um quadrado azul, então mostrar que não havia mais razão para rejeitar E4 do que para rejeitar E1, E2 ou E3 seria fácil: comparar as características de E1, E2, E3 e E4 seria fácil. No caso de textos, porém, as coisas ficam muito mais complicadas. Eliminar a hipótese de que a rejeição foi baseada na qualidade é praticamente impossível. 308 Os editores não podem ter rejeitado E4 por causa do seu tema e mesmo assim pensarem que o rejeitaram por causa da sua qualidade? Mas como saber que foi realmente por causa do tema que o rejeitaram? Suponhamos que E1, E2, E3 e E4 tenham sido escritos todos pela mesma pessoa: teríamos agora eliminado a possibilidade de E4 ser de fato qualitativamente inferior a E1, E2 e E3? Não, não ainda. Digamos que ela tenha deliberadamente escrito E1, E2 e E3 de forma que não ficassem tão bons quanto E4. Seria o bastante? Um artigo também pode ser rejeitado por ser ousado demais ou profundo demais! 309 Para isolar a discriminação temática, para realmente encurralála, talvez seja necessário recorrer a uma pesquisa estatística. Mas não se demonstraria assim que pela consciência dos editores passou algo como “Vamos deixar de publicar E4 por causa do seu tema” (isto é, algo análogo a C1), apenas que os 191
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estudos que falam das mulheres tendem a ser mais rejeitados do que os estudos que falam de outros temas. 310 O tema não pode ter deixado as faculdades críticas dos editores mais aguçadas? 311 Todo mundo acha que leva em consideração apenas os traços internos dos textos na hora de avaliá-los. Mas a história da história das mulheres mostra que as coisas não são bem assim. A rejeição regular – não a rejeição isolada – mostra que as coisas não são bem assim. 312 O tipo de trabalho que tende a receber a aprovação de um historiador parece estar em função não só do tipo de trabalho que ele faz, mas também do tipo de historiador que ele é. 313 É possível discordar dos outros sem irracionalizá-los? 314 Então, podemos resumir as coisas assim: do ponto de vista dos historiadores, eles excluíam as historiadoras das mulheres por um motivo; do ponto de vista das historiadoras das mulheres, elas eram excluídas por outro motivo. 192
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315 Sim, pode haver uma distância entre os motivos alegados e os motivos imputados... Sim, pode haver uma distância entre os motivos alegados e os motivos lidos em regularidades estatísticas! Infelizmente, as pessoas usam mais aquilo que elas falam para construir as suas autoimagens do que aquilo que elas fazem.
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Implementação e impacto BLOCO 7
Implementação e impacto
316 “Em suma, é o complexo de inferioridade de muitos professores de filosofia que não querem ou não podem filosofar, e se limitam a comentar, que impede o livre exercício do filosofar”, escreveu Gonzalo em seu De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Poderia haver um diagnóstico mais preciso do que acontece nos departamentos de filosofia brasileiros? Os professores querem proibir os estudantes de fazer aquilo que eles mesmos se proíbem de fazer! Aquilo que eles já se sentem incapazes de fazer! “Devemos, portanto, redefinir o espírito dos departamentos de filosofia. Ou fazemos história da filosofia ou fazemos filosofia. Devemos ter a coragem de mudar o nome do departamento para o de ‘história’ se nos sentimos incapazes de filosofar por conta própria e se achamos que nossos estudantes também o são – e sempre se pensa que eles são. (...) então vamos nomear os departamentos de ‘departamentos de comentariologia’, se a única coisa que fazemos ou nos achamos em condições de fazer é comentar textos filosóficos.”28 Contudo, os professores de filosofia aos quais se refere Gonzalo – ou uma parcela considerável deles – não se reconhecem em suas palavras: eles não acham que não estão fazendo filosofia: eles não veem a si mesmos como pessoas que impedem “o livre 28
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exercício do filosofar”. Pelo contrário, eles veem a si mesmos – e sentem a si mesmos – como pessoas de boa vontade: até de extrema boa vontade: talvez não tão geniais como Wittgenstein ou Heidegger: mas ainda assim como pessoas que lutam pela filosofia: que lutam pelo seu desenvolvimento: que lutam pelo seu progresso: que lutam pela melhoria do nível das instituições onde ela é ensinada: que lutam para aprimorar a formação dos seus estudantes: como pessoas, enfim, que jogam a favor e não contra a filosofia. As considerações de Gonzalo podem assim parecer a eles completamente disparatadas – ou até mesmo incompreensíveis: não há razão alguma para renomear os departamentos de filosofia – não há razão alguma para passar a chamá-los de ‘departamentos de história’ ou ‘de comentariologia’ ou ‘de doxografia’ ou ‘de exegese’, pois o que se faz neles é filosofia. 317 As opiniões dos professores sobre o que se faz nos departamentos de filosofia variam bastante. E elas variam não de um professor para outro. Elas variam de um momento para outro! Um professor pode num momento aproximar o filosofar e o comentar dizendo: “Existe uma diferença entre ser um antropólogo e ser um intérprete de um antropólogo. Existe uma diferença entre ser um historiador e ser um intérprete de um historiador. Mas no caso da filosofia, as coisas não funcionam assim. O filósofo não faz pesquisas empíricas. Ele não vai para campo. Assim, não existe nenhuma diferença entre ser um filósofo e ser um intérprete de um filósofo!”, e no momento seguinte afastar o filosofar do comentar dizendo: “O quê? Você quer escrever sobre as ideias do Roberto Machado?
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Mas que ideias ele tem? Ele é um comentador! Ele é um intérprete de Nietzsche! Ele é um intérprete de Foucault! Ele é um intérprete de Deleuze! Ele é um comentador, não um filósofo! Você pode listar os livros que ele escreveu na seção da bibliografia reservada para a literatura secundária, mas não na seção reservada para a literatura primária!”. E agora: quem está sendo dicotômico? 318 A luta para abrir espaço para a filosofia nos departamentos de filosofia brasileiros de hoje passa necessariamente pela linguagem. 319 De um lado, temos sujeitos como Gonzalo dizendo que o rótulo ‘filosofia’ não é apropriado para designar o que se faz nos departamentos de filosofia; do outro lado, temos os professores aos quais ele se opõe dizendo que o rótulo ‘filosofia’ é apropriado para designar o que se faz nos departamentos de filosofia. De um lado, temos sujeitos como Gonzalo empenhados em rearranjar os signos para mostrar que é preciso rearranjar as coisas; do outro, temos os professores aos quais ele se opõe empenhados em não rearranjar os signos para mostrar que não é preciso rearranjar as coisas. Trata-se de uma luta linguística! Trata-se de uma luta simbólica! E por que tanta luta em torno dos signos? Porque eles têm o poder de legitimar e deslegitimar linhas de conduta. Os signos são as nossas placas de trânsito. São com eles que dizemos “Pare!”. São com eles que dizemos “Siga!”.
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320 Os signos ‘filosofia’ e ‘novo’ são objeto de uma disputa constante: os comentadores e os críticos dos comentadores lutam para arrancar uns dos outros o controle sobre eles. 321 Os professores dos departamentos de filosofia treinam os estudantes para serem filósofos ou para serem exegetas? Os textos que eles escrevem são textos filosóficos ou textos exegéticos? Quem está com a razão quanto ao arranjo correto dos signos ‘filosofia’, ‘exegese’ e seus cognatos? O que temos aqui é uma luta pela posse da razão! 322 É preciso convencer os professores de que nos departamentos de filosofia o que se faz não é pensar, mas repensar, não é escrever, mas reescrever: não é filosofia, mas exegese. É preciso convencê-los de que eles estão chamando as zebras de ‘cavalos’ e os cavalos de ‘zebras’. 323 É preciso convencê-los? Não é possível convencê-los! O que se pode fazer é somente jogar uma chave inglesa nas engrenagens que mantêm os departamentos de filosofia brasileiros funcionando a todo vapor – e atrapalhar um pouco o seu ininterrupto processo de fabricação de comentadores. Não dá para convencer uma pessoa que carrega apaixonadamente a bandeira da exegese a simplesmente jogá-la no chão e pisoteá-
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la – especialmente se as coisas estiverem correndo bem para o seu lado, e é muito provável que estejam: o mundo acadêmico não é difícil para os comentadores, ele é difícil para os filósofos! Mas é possível fazer uma pessoa desistir ou pelo menos vacilar ao erguê-la – é possível fazê-la segurar a sua haste com menos firmeza – é possível fazê-la olhar com desconfiança o hábito generalizado de chamar as zebras de ‘cavalos’ e os cavalos de ‘zebras’. 324 Trata-se de uma luta linguística! E ela não se move apenas no terreno das opiniões. Ela se move sobretudo no terreno das definições. O que significa que acordos superficiais – acordos quanto a quais signos devem ser usados – podem escamotear desacordos profundos – desacordos quanto a como eles devem ser usados: os críticos dos comentadores e os comentadores, que pintam quadros diametralmente opostos dos departamentos de filosofia, os primeiros insistindo que neles se faz exegese e os segundos que neles se faz realmente filosofia, podem defender a mesma proposição p, e não obstante entenderem e aplicarem p de modos radicalmente diferentes: podem ambos dizer que “Nos departamentos de filosofia o que se deve fazer é filosofia”, os primeiros assumindo como óbvio que fazer filosofia seja fazer o que Spinoza fez quando escreveu a Ética (expor os seus próprios pensamentos) e não o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do real (expor os pensamentos de outrem) e os segundos assumindo como igualmente óbvio que fazer filosofia seja fazer o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do real (expor os pensamentos de outrem) e não o que Spinoza fez quando escreveu a Ética (expor os seus próprios pensamentos).
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325 “Então, o que você achou?”, perguntei a um professor a quem tinha confiado um texto onde expunha meus próprios pensamentos. “Você escreveu um belo conto de fadas hegeliano”, respondeu-me – ou melhor, apunhalou-me. Ah, como se os filósofos canônicos – tão respeitosamente tratados, tão cuidadosamente exumados – não escrevessem também absurdos! O que não está errado na história da filosofia? O que não está errado? Sim, podemos defender uma metafísica do erro: podemos defender a ideia de que está tudo errado – e assim perguntar: por que o meu erro estaria mais errado do que os erros dos outros? Mas também podemos defender uma metafísica do acerto: podemos defender a ideia de que está tudo certo – e assim perguntar: por que o meu acerto estaria menos certo do que os acertos dos outros? Temos aqui um outro modo de formular as ideias de hipercrítica e hipercondescendência. Sim, os filósofos canônicos cometem erros. Mas o fato de que cometem erros é rapidamente lançado para os recessos da consciência assim que um estudante demonstra não ter aprendido o seu lugar: o fato de que erram – diante do erro incomparavelmente mais grave do estudante de querer pensar – evapora-se no ar. 326 Os professores – e não só os professores, mas também os estudantes: que aprendem lenta e paulatinamente a ser como eles, a pensar como eles, a sentir como eles, a rir do que eles riem, a querer o que eles querem, a se perguntar o que eles se perguntam, a desconfiar do que eles desconfiam, a empacar onde eles empacam – são hipercríticos com os pensadores
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subequatoriais e hipercondescendentes com os pensadores supraequatoriais. Os acertos dos primeiros e os erros dos segundos precisam ser igualmente riscados da existência: eles precisam ser cancelados – eles precisam ser reinterpretados. Os subequatoriais, rigorosamente falando, nunca acertam o alvo: seus aparentes acertos ou não são seus ou não são acertos: são acertos indevidamente extraídos dos supraequatoriais: ou então são acertos menores, de pouca ou nenhuma importância: acertos que devem ser deixados de lado. Os supraequatoriais, ao contrário, nunca erram o alvo: seus aparentes erros ou não são seus ou não são erros: são erros indevidamente imputados a eles pelos subequatoriais: ou então são erros menores, de pouca ou nenhuma importância: erros que devem ser deixados de lado. Os subequatoriais não acertam. Os supraequatoriais não erram. Mas as coisas são realmente assim? Não, elas não são assim. Contudo, elas têm que ser assim. 327 Atrás das descrições amontoam-se – umas sobre as outras – prescrições e mais prescrições. “Você escreveu um belo conto de fadas hegeliano”, disse-me o professor em resposta ao meu texto. Ele criticou o que escrevi? Ele criticou o fato de que eu escrevi! Sua resposta tinha realmente todos os sinais de uma sóbria constatação. Ou melhor, de uma sóbria avaliação – de uma avaliação fria e objetiva, ainda que certamente muito mais fria do que objetiva. E como uma avaliação correta e precisa – como uma avaliação muito próxima de uma mera constatação – ela deve ter atravessado a sua consciência. Porém, ela não foi apenas uma constatação, ela não foi apenas uma avaliação. Antes e acima de tudo, ela foi uma prescrição – uma microprescrição. Quando centrifugamos “Você escreveu um belo conto de fadas
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hegeliano”, obtemos vários precipitados diferentes, mas todos intimamente aparentados: “Nunca pense!”, “Nunca escreva!”, “Sempre repense!”, “Sempre reescreva!”. 328 Pensar é violar um tabu – e não se pode violar um tabu impunemente: deixa-se imediatamente de ser sério, deixa-se imediatamente de ter a cabeça no lugar, deixa-se imediatamente de estar do lado da razão. Um subequatorial não pode largar o espanador para empunhar a caneta: não pode abandonar o território do reescrever para entrar no território do escrever – não pode abandonar o território do repensar para entrar no território do pensar – não pode abandonar o território da exegese para entrar no território da filosofia: não, ele não pode: ele não pode tentar: seria uma heresia: ele não pode ousar: seria um sinal de arrogância: ele não pode: terminantemente, decididamente: não, ele não pode: e não pode nos dois sentidos: ele deve ser impedido de fazer o que é incapaz de fazer. 329 A interdição triunfa quando vira uma incapacidade. 330 Não seria exagerado dizer que os comentadores e os pensadores não associam o mesmo significado à palavra ‘novo’. Aos textos que se candidatam a receber as suas graças (de fato, a palavra ‘novo’ valora positivamente aquilo que ela qualifica: trata-se de uma palavra cobiçada, trata-se de uma palavra disputada), eles fazem perguntas radicalmente diferentes. Os comentadores usam a palavra ‘novo’, por exemplo, para textos 204
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que exploram ideias de um autor canônico que não tenham sido ainda exploradas: com efeito, explorar ideias de um autor canônico que não tenham sido ainda exploradas é uma das exigências que um texto basta satisfazer para poder ser considerado novo aos olhos dos comentadores: explorar ideias de um autor canônico que não tenham sido ainda exploradas consta entre os seus critérios de aplicação da palavra ‘novo’: se pudermos dizer de um texto que ele explora ideias de um autor canônico que não tenham sido ainda exploradas, poderemos também dizer dele que se trata de um texto novo. Ou seja, para que um texto possa ser inovador, ele precisa ser maciçamente não inovador – para que um texto possa ser diferente, ele precisa ser maciçamente não diferente. Mas se as doses de repetições e de inovações estiverem invertidas, se as primeiras não sobrepujarem as segundas, se as primeiras não esmagarem as segundas, então teremos, aos olhos dos comentadores, não um texto inovador – e sim um texto que se esforça pretensiosa e ingenuamente para ser inovador – e que não faz mais do que repetir o que já foi dito – e que não faz mais do que reinventar a roda. 331 Não se pode inovar demais. 332 O que os pensadores veem como inovações, os comentadores veem como repetições. O que os comentadores veem como inovações, os pensadores veem como repetições. Não há uma lista de exigências que um texto precisa satisfazer para ser considerado novo com a qual estejam todos de acordo.
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333 É preciso levar a sério o fato de que os comentadores e os pensadores não se entendem quanto ao que deve e ao que não deve ser considerado novo: é preciso levar a sério o fato de que os primeiros se veem como seres absolutamente lúcidos: inclusive mais lúcidos do que os segundos: eles não negam que os textos inovadores sejam inovadores; pelo contrário, eles negam que os textos não inovadores sejam inovadores. 334 Não há consenso quanto aos critérios de aplicação dos signos ‘filosofia’, ‘bom’, ‘sério’, ‘original’ e todos os demais signos aprovadores, todos os demais signos legitimadores: eles são objeto de uma disputa constante. 335 Um dos maiores problemas dos departamentos de filosofia brasileiros de hoje é que os seus professores acham que não há problema algum com a orientação largamente exegética à qual submetem os estudantes. Um dos maiores problemas é o fato de que eles acham que não há problema algum a ser resolvido.29 336 Os próprios termos da questão estão em questão.
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337 É como se a verdade existisse, mas ela não adiantasse de nada. 338 Se as ideias de um subequatorial estiverem tão próximas das ideias de Hume quanto as ideias de Hume estão das ideias de Locke, ele não terá sido tão original quanto Hume, ele terá plagiado Hume. 339 O treinamento acadêmico imprime um determinado relevo em nossas retinas. É realmente difícil enxergá-lo e mais difícil ainda criticá-lo. Pois enxergamos através dele. Pois criticamos o que não se conforma a ele. 340 A quantidade de capital simbólico que quem larga o espanador para empunhar a caneta perde aos nossos olhos é diretamente proporcional ao grau de enraizamento dos tabus disciplinares em nossas entranhas. 341 A epistemologia trata das exigências que o conhecimento precisa satisfazer para ser aceito como conhecimento: exigências, para uns, racionais e necessárias; para outros, gratuitas e arbitrárias. Assim, a metafilosofia pode ser vista como uma epistemologia da filosofia. Mas não no sentido de que ela procura trazer à tona de uma vez por todas as exigências que o saber filosófico 207
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precisa necessariamente satisfazer para ser considerado um saber filosófico ou um saber filosófico sério – e sim no sentido de que ela procura trazer à tona as exigências que se pensa que ele precisa necessariamente satisfazer – e sim no sentido de que ela procura explicitá-las para desafiá-las. 342 Como se atender a uma exigência arbitrária dessas conseguisse tornar a coisa mais séria! 343 A história da epistemologia é uma história da proscrição de saberes. 344 A homogeneidade sígnica não nos autoriza a concluir que há também um acordo geral quanto às linhas de ação que devem ser seguidas. Enquanto os pensadores partem de “Nos departamentos de filosofia o que se deve fazer é filosofia” para afirmar que é preciso levar os estudantes a fazerem o que Spinoza fez, os comentadores partem de “Nos departamentos de filosofia o que se deve fazer é filosofia” para afirmar que é preciso levar os estudantes a fazerem o que Marilena Chauí fez. 345 Os comentadores e os críticos dos comentadores discordam não só quanto ao que deve ser feito nos departamentos de filosofia, mas também quanto ao que é feito.
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346 A metafilosofia não pode se contentar em analisar e enfrentar reações intelectuais. Ela precisa também analisar e enfrentar reações emocionais. 347 A metafilosofia é a reflexão filosófica impertinente por excelência. 348 A impertinência é necessária – aliás, o rótulo ‘impertinência’ visa apenas calá-la. 349 Mas pode ser válido pintar os comentadores com tintas diferentes das que eles usam para pintar a si mesmos? Pode ser válido descrevê-los com palavras nas quais não se reconheçam? Com palavras que soem a eles não apenas estranhas, mas talvez também excessivamente cáusticas? Mas devemos deixar nas mãos deles o poder de dizer se estão bem ou mal representados? O poder de indicar o ângulo sob o qual devem ser invariavelmente fotografados? Temos que nos limitar a reproduzir o que eles dizem? Temos que nos limitar a reafirmá-los? As heterodescrições precisam sempre respeitar as autodescrições? Não podem jamais se insurgir contra elas? Mas como então tecer críticas? O fato de que as heterodescrições não precisam respeitar as autodescrições não é um pressuposto fundamental da filosofia e de todas as disci-
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plinas humanas, um pressuposto sem o qual simplesmente permaneceriam de mãos atadas? 350 De onde vem a imagem que estou aqui pintando dos comentadores? Com que direito afirmo que eles não pensam, só repensam, que eles não escrevem, só reescrevem – e que eles são hipercríticos com os pensadores subequatoriais e hipercondescendentes com os supraequatoriais? É preciso notar que existe aqui uma assimetria entre as exigências epistemológicas impostas aos críticos dos comentadores e aos comentadores – e uma assimetria que claramente favorece os comentadores. Por que achamos que a imagem que os críticos pintam dos comentadores precisa ser legitimada – mas não a imagem que os comentadores pintam de si mesmos? Por que exigimos que a primeira se justifique – mas não a segunda? Por que a primeira desperta a nossa desconfiança – mas não a segunda? A primeira está ainda tentando abrir espaço para si mesma. Já a segunda não tem muito com o que se preocupar: ela não precisa se explicar, ela não precisa se fundamentar: ela é o ponto de partida: ela está inscrita em nossas retinas. Ela só precisa tomar cuidado para não ser desbancada – e para tanto é estrategicamente interessante assegurar que as reflexões metafilosóficas não sejam consideradas reflexões filosóficas. 351 Como podem as autodescrições e as heterodescrições afastarem-se tanto umas das outras? E como decidir entre elas quando se afastam? Não há propriamente como decidir entre elas com base em critérios assentados de forma consensual. Há apenas como optar entre elas. 210
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352 Como mostrado na tabela 5, os comentadores e os seus críticos implementam “O que se deve fazer é filosofia” de maneiras diferentes. As proposições “O que se deve fazer é o que Spinoza fez” e “O que se deve fazer é o que Marilena Chauí fez” são duas formas diferentes de injetar sentido na proposição “Nos departamentos de filosofia, é preciso filosofar”. As proposições “O que se deve fazer é desenvolver ideias próprias” e “O que se deve fazer é desenvolver ideias alheias” são duas formas diferentes de injetar sentido na proposição “Nos departamentos de filosofia, é preciso fazer algo novo”.
3UHVFULo}HVQmRLPSOHPHQWDGDV
0RGRVGHLPSOHPHQWDomR Comentadores
Críticos
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9RFrSUHFLVDID]HU RTXH0DULOHQD &KDXtIH]TXDQGR HVFUHYHX A QHUYXUDGRUHDO
9RFrSUHFLVD ID]HURTXH 6SLQR]DIH] TXDQGRHVFUHYHX a Ética
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9RFrSUHFLVD GHVHQYROYHUDV LGHLDVDOKHLDVQmR DVVXDVLGHLDV
9RFrSUHFLVD GHVHQYROYHUDV VXDVLGHLDVQmR DVLGHLDVDOKHLDV
Tabela 5
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353 De acordo com sujeitos como Gonzalo, o que se faz nos departamentos de filosofia é tão somente exegese – e assim é preciso rearranjar as coisas para que se possa fazer filosofia. De acordo com os sujeitos que eles criticam, o que se faz nos departamentos de filosofia já é filosofia – e assim não é preciso rearranjar as coisas para que se possa fazer filosofia. Embora eles estejam de acordo quanto ao que se deve fazer (a saber, filosofia), embora estejam de acordo no plano prescritivo, eles não estão de acordo quanto ao que de fato se faz, eles não estão de acordo no plano descritivo: segundo os críticos dos comentadores, o que se faz nos departamentos de filosofia é exegese; segundo os comentadores, o que se faz é filosofia. 354 Mas é preciso distinguir entre as proposições não exemplificadas e as proposições exemplificadas: é preciso distinguir entre as proposições soltas e as proposições amarradas. As prescrições “O que se deve fazer é filosofia” e “O que se deve fazer é exegese”, bem como as descrições “O que se faz é filosofia” e “O que se faz é exegese”, são da primeira espécie: são proposições não exemplificadas, proposições soltas, proposições não implementadas. As prescrições “O que se deve fazer é o que Spinoza fez quando escreveu a Ética” e “O que se deve fazer é o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do real”, bem como as descrições “O que se faz são coisas como o que Spinoza fez quando escreveu a Ética” e “O que se faz são coisas como o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do real”, são da segunda espécie: são proposições exemplificadas, proposições amarradas, proposições implementadas.
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355 Os comentadores defendem que para atender a prescrição solta “O que se deve fazer é filosofia” é preciso atender a prescrição amarrada “O que se deve fazer é o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do real”. Já os seus críticos defendem que ao atender a prescrição amarrada “O que se deve fazer é o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do real”, atende-se não a prescrição solta “O que se deve fazer é filosofia”, mas a prescrição solta “O que se deve fazer é exegese”. 356 Os comentadores e os seus críticos enunciam as mesmas prescrições soltas e as mesmas descrições amarradas – mas quando chegam às prescrições amarradas e às descrições soltas, entram em conflito. 357 E o que vale para a palavra ‘filosofia’ e seus cognatos, vale também para a palavra ‘novo’ e seus cognatos. Ninguém – ninguém! – diz que não se pode desenvolver coisas novas nas teses de pós-graduação em filosofia. Pelo contrário, aqui os comentadores concordam plenamente – ainda que somente de forma solta – com os seus críticos: “É preciso desenvolver coisas novas”. Porém, como a prescrição “É preciso desenvolver coisas novas” é uma prescrição solta, os comentadores e os seus críticos a amarram de modos diferentes.
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358 O que atravessa as consciências dos comentadores? As proposições que atravessam as suas consciências são as proposições que eles enunciam verbalmente: são prescrições e descrições soltas – que podem ser, portanto, multiplamente implementadas. Os comentadores assumem como óbvio que a prescrição “O que se deve fazer é filosofia” só pode ser amarrada por “O que se deve fazer é o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do real”, pois, no entender deles, a descrição “O que se faz são coisas como o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do real” só pode ser desamarrada por “O que se faz é filosofia”. 359 E o que é óbvio, pensa-se, não precisa ser enunciado. E nem pode – para não ser criticado. 360 Ao longo do curso de graduação, a subjetividade do estudante é redesenhada – é submetida a uma obra de engenharia: seu desejo de filosofar é transformado num desejo de comentar; o que ele entende por ‘filosofar’ é transformado no que se deveria entender apenas por ‘comentar’. 361 Ao longo do curso de graduação, o estudante é ensinado a parar de ouvir a proposição “O que se deve fazer é filosofia” entendendo “O que se deve fazer é o que Spinoza fez quando
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escreveu a Ética” para ouvi-la entendendo “O que se deve fazer é o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do real”. 362 Os signos usados permanecem os mesmos – só é alterada a forma de entendê-los. 363 Os signos usados permanecem os mesmos – ou seja, todo mundo continua a fazer filosofia. 364 Desde os meus primeiros semestres de graduação, comecei a entregar aos professores textos de minha própria autoria. Supunha ingenuamente que me ajudariam a desenvolvê-los: que apontariam suas fraquezas, que no mínimo me indicariam leituras – ao invés de tentarem me fazer simplesmente desistir deles sem se darem o trabalho de efetivamente criticá-los. Supunha ingenuamente que aplicariam o seu conhecimento e a sua experiência a meu favor. Diante da indiferença geral, que sempre tentava quebrar, mas sempre em vão, calculei a princípio que não comentavam os meus textos única e exclusivamente por falta de tempo: não por falta de interesse – e certamente não por sentirem contra eles um verdadeiro desprezo. A minha visão otimista do saber – a minha visão otimista do trabalho acadêmico – só vacilou seriamente quando percebi que a indiferença dos professores tinha razões mais profundas do que eu imaginava: ela tinha raízes simbólicas: o que acontecia comigo não era nem pontual nem casual: não era nem extraordinário nem inexplicável: mas completamente
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regular e previsível: era uma falta de tempo obstinada demais, pervasiva demais, inconversável demais: ou seja, não era uma simples falta de tempo: era apenas o primeiro dos tijolos de um muro que eu tinha começado a vislumbrar. 365 O que estou tentando fazer aqui é quebrar a imagem hegemônica – a imagem oficial – da filosofia. 366 Não precisamos afirmar que pela consciência do comentador necessariamente passam coisas do tipo: C1: Nossa, ele teve uma ideia original! Ele teve uma ideia genial! Preciso fazer alguma coisa para diminuí-lo, para derrubá-lo, para pulverizálo! Preciso fazer alguma coisa! Mas o que posso fazer? Ele realmente teve uma ideia original! Ah, eu já sei! Epicuro! Sim, Epicuro! Vou insinuar que ele plagiou as ideias de Epicuro! Se eu dissesse que ele estava plagiando um filósofo contemporâneo, suas ideias poderiam ainda ser consideradas atuais. Mas se eu disser que ele plagiou um filósofo antigo, suas ideias não apenas deixarão de ser originais, como também passarão a ser extremamente desatualizadas! Sim, Epicuro! Ele plagiou Epicuro!30
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Podem simplesmente passar coisas do tipo: C2: Ele acha que teve uma ideia original, mas não teve. Infelizmente, para o bem da filosofia, para o bem da verdade, vou ter que lembrá-lo de que ele foi antecipado por Epicuro. As opiniões do comentador podem ser determinadas pelo fenômeno da flutuação sem que ele sinta que são determinadas. 367 “Sim, Epicuro! Ele plagiou Epicuro!”. Mas digamos que a relação entre o que ele escreveu e a obra de Epicuro seja não como a relação entre um triângulo azul e um quadrado azul e sim como a relação entre um triângulo azul e um quadrado amarelo. E digamos que pela consciência do comentador não tenha passado nada além de C2. Então, temos aqui uma razão suficientemente forte para dizer que ele pensou em C1 de forma inconsciente? Mas C2 pode ser simplesmente a expressão da falta de espaço lógico no ser do comentador para o reconhecimento da inovação. 368 É preciso distinguir entre aquilo que os comentadores sentem e pensam – aquilo que atravessa as suas consciências e que aparece em suas palavras – daquilo que lemos ou inscrevemos neles – daquilo que extraímos ou projetamos sobre eles. Das proposições do primeiro conjunto não é possível extrair as proposições do segundo: pelo contrário, a imagem que estou aqui tentando elaborar diverge enormemente da imagem que
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eles fazem de si mesmos. De fato, elas se opõem frontalmente, elas se opõem visceralmente: como uma poderia vir da outra? 369 Eu identifico as ranhuras que o curso de graduação imprimiu em minhas retinas quando observo o que penso, quando observo os meus gostos, quando observo os meus julgamentos, quando observo a mim mesmo. 370 Digo a mim mesmo o que me disseram. 371 Mas quando travo um diálogo com as vozes dentro de mim, travo também um diálogo com as vozes ao meu redor. 372 A metafilosofia é uma luta contra si mesmo. 373 Os filósofos da linguagem interessam-se sobretudo pelos processos de constituição dos significados. Eu me interesso por um domínio de palavras cujos significados nunca estão definitivamente assentados.
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374 Usando ‘desde’ como um adjetivo, Cabrera cunha a expressão ‘filosofar desde’ para designar o ato de pura e simplesmente filosofar a partir de si mesmo.31 A tarefa, porém, encontra dois enormes obstáculos, representados pelos seguintes tipos de filosofar: (a) o filosofar que consiste em ensinar e discutir a filosofia produzida na Europa e nos Estados Unidos com um grau moderadíssimo de consciência crítica (como se a agenda temática definida no hemisfério norte ocidental fosse a agenda temática por excelência da filosofia e devesse portanto ser copiada no mundo inteiro); (b) o filosofar que consiste em perseguir obstinadamente o ideal de produzir uma filosofia marcadamente nacionalista ou verde e amarela como reação à filosofia do tipo ‘a’ (por exemplo, o filosofar que pretende distinguirse de ‘a’ tematizando o samba, o futebol ou a malandragem). O ‘filosofar desde’ distingue-se tanto de ‘a’ quanto de ‘b’. Ele não é um filosofar politicamente comprometido nem com a Europa nem com os Estados Unidos nem com o Brasil. Pois ele simplesmente não é um filosofar politicamente comprometido com nenhuma região do mundo. Ele é politicamente comprometido única e exclusivamente com
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as inquietações pessoais daquele que filosofa. Ou seja, você estará ‘filosofando desde’ se você não ficar ruminando sobre as questões que lhe disseram que eram importantes (sejam elas do tipo ‘a’ ou do tipo ‘b’), mas, ao contrário, se você se entregar apaixonadamente às questões que lhe interessam, às questões que as suas vísceras consideram importantes. Rigorosamente falando, portanto, o ‘filosofar desde’ não exclui nem ‘a’ nem ‘b’, ele exclui apenas a obrigatoriedade de se seguir ‘a’ (isto é, a obrigatoriedade de ser eurocêntrico imposta pelos departamentos de filosofia brasileiros atuais) ou ‘b’ (isto é, a obrigatoriedade de ser nacionalista, vista equivocadamente como a única alternativa ao eurocentrismo dos departamentos de filosofia brasileiros atuais). 375 Rigorosamente falando, o ‘filosofar desde’ não exclui a legitimidade nem do filosofar do tipo ‘a’ nem do filosofar do tipo ‘b’. Uma pessoa pode ser visceralmente apaixonada por questões filosóficas em pauta na Europa ou nos Estados Unidos. E ela pode também se entregar apaixonadamente ao projeto de construir uma filosofia que use como alicerces não o vocabulário pálido e empostado das tradições filosóficas da Europa, e sim o vocabulário mais vibrante das favelas ou das zonas rurais brasileiras. Porém, é de se lembrar que de longe a maior parte do filosofar intrauniversitário brasileiro é um filosofar do tipo ‘a’. Só existem bolsas de estudo para o filosofar do tipo ‘a’. É totalmente desprestigiado pela universidade o filosofar do tipo ‘b’. Sim, o filosofar do tipo ‘a’ é aceito por Cabrera como um modo perfeitamente legítimo de filosofar. O problema é que não se permite filosofar de outro modo nos
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departamentos de filosofia brasileiros. O problema é que as nossas vísceras são educadas para respeitarem e almejarem unicamente o filosofar do tipo ‘a’. 376 As vontades dos estudantes não são plenamente imunes ao forte eurocentrismo dos departamentos de filosofia brasileiros. Uma vez que a maior parte da produção filosófica brasileira atual é uma produção do tipo ‘a’, se as regras eurocêntricas (tanto as explícitas quanto as implícitas) do filosofar universitário brasileiro deixassem da noite para o dia de existir, a produção filosófica brasileira continuaria a ser maciçamente eurocêntrica ainda por um longo tempo. Sim, haveria certamente um movimento inercial. 377 As ideias do Cabrera me parecem bem formuladas e convincentes. O meu coração, porém, hesita entre abraçá-las integralmente ou reprová-las por não golpearem com o devido vigor o filosofar do tipo ‘a’. A tirania daqueles que tomam o filosofar do tipo ‘a’ como o único tipo de filosofar legítimo é tal que para mim fica muito difícil compreender a generosidade implícita no conceito de ‘filosofar desde’. Talvez o conceito de ‘impacto’ possa reter aquilo que o ‘filosofar desde’ traz de interessante, livrando-o da sua complacência com o atual eurocentrismo dos departamentos de filosofia brasileiros. Sim, impacto! Podemos dizer que é essencial a uma obra filosófica que ela tenha um impacto filosófico.
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378 E o que significa dizer que o caráter filosófico de uma obra possui uma ligação estreita com o seu impacto? Uma obra se define como filosófica não por suas características internas, não por suas características formais, não por seu teor, não por seu conteúdo, não por aquilo que ela diz ou deixa de dizer, mas por sua relação com a malha textual que a circunda. Sem uma relação mínima de incongruência, não há impacto. Sem impacto, não há filosofia. 379 Uma implicação importante da ideia de impacto é que uma obra pode ser filosófica num certo contexto e não ser em outro. Assim, a obra de Wittgenstein certamente apresentou todas as características e todos os sinais externos de uma obra filosófica no lugar e no tempo em que originalmente surgiu e circulou. Ela teve um impacto filosófico. Porém, é duvidoso que ela exerça um impacto filosófico entre seringueiros. Por eles serem ignorantes? Não! Não! Não! É porque uma questão relevante num lugar pode ser completamente irrelevante em outro. 380 A relação que uma obra filosófica mantém com o seu meio circundante não pode ser uma relação de puro assentimento! 381 Se faíscas não resultarem do encontro de uma obra com o seu meio, ela não será uma obra filosófica.
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382 A ideia de impacto traça uma fronteira entre os textos filosóficos e os não filosóficos completamente avessa à fronteira traçada pelos departamentos de filosofia brasileiros. A maior parte dos textos produzidos nos departamentos de filosofia brasileiros: (a) não têm impacto filosófico sobre o meio extrauniversitário (por estarem escritos num dialeto essencialmente intrauniversitário e por seguirem uma agenda temática importada e postiça); (b) não têm impacto filosófico nem mesmo no meio intrauniversitário (pois nesse meio é quase essencial obter assentimento por cotejamento). Ou seja, a maior parte dos textos produzidos nos departamentos de filosofia brasileiros não têm impacto filosófico nem fora nem dentro dos seus muros. Eles podem até estar em acordo com o ‘filosofar desde’ de Cabrera. Mas eles estão em desacordo com uma marca essencial da filosofia: a dissonância. “Eles estão em desacordo com a dissonância? Ah! Então, temos aqui um desacordo! Temos aqui um desencontro! Temos aqui uma dissonância! Então, eles são filosóficos!” O desacordo deve ser com uma mentalidade. “Mas temos aqui um descordo!” Tratase de um acordo com o consenso reinante nos departamentos de filosofia brasileiros, não de um desacordo! “Mas nunca existe uma identidade absoluta! As identidades absolutas são uma ficção metafísica! Sempre há diferenças! Portanto, sempre há divergências! E elas são amplamente debatidas! Um trabalho sobre um filósofo europeu ou norteamericano sempre tem algo de original, mesmo quando as funções CTRL+C e CTRL+V são 223
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usadas exaustivamente! Os signos podem ser os mesmos! Mas os significados são sempre outros! É impossível não ser original!” Ah, então o texto daquele professor ou daquele estudante sobre Wittgenstein é necessariamente original? Então, quais são as ideias originais que ele contém? Quais são as ideias que sobram depois de retiradas as ideias de Wittgenstein? Quais são? Quais são? Quais são? Faça a seguinte experiência: tente entrar num programa de pós-graduação num departamento de filosofia brasileiro para pesquisar as ideias desse comentador de Wittgenstein! Para pesquisar não as ideias Wittgenstein, mas as ideias desse comentador de Wittgenstein! E não coloque nenhuma obra de Wittgenstein na sua bibliografia! Você será levado à sério? Então, por que você leva à sério quem diz “Um trabalho sobre um filósofo europeu ou norteamericano sempre tem algo de original”? Tente entrar num programa de pós-graduação num departamento de filosofia brasileiro para pesquisar as ideias desse comentador de Wittgenstein! Sim, tente! Você verá agora que as fortes ondas encabeçadas pela frase “É impossível não ser original!” se retrairão imediatamente. E agora faça a experiência contrária: tente entrar num programa de pós-graduação num departamento de filosofia para pesquisar a obra de Wittgenstein! E não coloque o texto desse comentador na sua bibliografia! Qual será a reação dos professores encarregados de avaliar o seu projeto? São nas decisões institucionais que a mentalidade dos professores de filosofia vem à tona! 383 A ideia de impacto é uma tentativa de captar o sentido extrauniversitário do termo ‘filosofia’.
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384 A ideia de impacto ajuda a esclarecer que não são apenas entre os letrados que existem filósofos. 385 A ideia de ‘filosofar desde’ do Cabrera só fere a supremacia do filosofar do tipo ‘a’. Já a ideia de impacto coloca em dúvida se ele é mesmo um filosofar. O filosofar do tipo ‘a’ sempre pode lutar para reconquistar sua cidadania junto à ideia de impacto recorrendo à noção de graus. Um texto produzido segundo as diretrizes do tipo ‘a’ não mantém uma relação ostensiva de incongruência com aquilo que seus leitores (todos eles oriundos do meio intrauniversitário) pensam. Mas existe, sim, uma certa incongruenciazinha com o que eles pensam. Uma certa incongruenciazinha sempre há! É inevitável! 386 Por que você não deixa o repensar nas mãos da inevitabilidade ao invés de deixar o pensar?
O senhor Quita BLOCO 8
O senhor Quita
387 O que faz uma obra ser uma obra filosófica? É o tema sobre o qual ela se debruça? Ou é o seu modo de se debruçar sobre ele? É o fato de que ela fala de outra obra filosófica? Ou o fato de que ela é filosófica? O que faz uma obra ser uma obra filosófica? É o que ela traz dentro das suas fronteiras físicas? Ou é o efeito que ela produz? Ah, é sempre bom lembrar que existe uma distância enorme entre o conjunto de exigências feitas pelo ambiente universitário e o conjunto de exigências feitas pelo ambiente não universitário para que uma afirmação seja considerada uma afirmação filosófica! Eles se dissociaram... Sim, eles se dissociaram... No ambiente não universitário, uma afirmação nunca é considerada filosófica independentemente do impacto que ela exerce. Se a malha simbólica dentro da qual vivemos e que dentro de nós vive não balançar ao seu toque, ela não terá desempenhado um papel filosófico e portanto não terá sido filosófica. 388 No período em que passei no Acre, conheci um autêntico filósofo: um senhor, cujo nome não me recordo, mas que atendia pelo apelido de Quita, satisfazia perfeitamente bem as exigências não universitárias – isto é, as exigências normais! –
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para ser considerado um filósofo: ele entrava sistematicamente em desacordo com os seus interlocutores: o que ele dizia não era uma simples emanação perfeitamente consonante com a forma de pensar do seu meio circundante: num universo de caçadores – num universo onde pegar uma espingarda e matar um animal selvagem para transformá-lo em alimento constituía uma prática absolutamente comum –, ele defendia que os animais selvagens não deviam ser caçados: eles tinham tanto direito à vida quanto os seres humanos: eles tinham sentimentos – assim como os seres humanos. “Eles vêm comer na minha mão”, contou-me o senhor Quita. “Como posso atirar neles?”. E o senhor Quita não apenas tinha uma linha de ação heterodoxa. O que realmente importa aqui é que ele amparava a sua linha de ação com argumentos – heterodoxos, naturalmente: aqueles que se comportam de maneira heterodoxa, de maneira excessivamente diferente, são vistos por suas comunidades como loucos; aqueles que pensam de maneira heterodoxa, de maneira excessivamente diferente, são vistos por suas comunidades como filósofos. Entre os argumentos de Quita, alguns eram de natureza puramente ética, outros de natureza um tanto metafísica e outros ainda de natureza abertamente religiosa: fiquei um pouco decepcionado ao ouvi-los; no entanto, havia ainda os argumentos não religiosos, que o destacavam seguramente como filósofo. Porém, considerando melhor os seus argumentos religiosos: não é possível que tivessem eficácia entre os seus interlocutores? Pois o que faz um argumento ser um bom argumento? Ele deve ser avaliado tão somente por sua lógica interna? Ele deve ser julgado apenas pelo conteúdo das suas premissas – bem como pela forma como elas engendram a conclusão? Ele deve ser medido contra um padrão ideal e abstrato de raciocínio – ao qual ninguém tem acesso, mas ao qual ele precisa necessariamente se conformar? Bom, uma coisa é perguntar: “O senhor Quita está certo em 230
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esfumaçar as fronteiras conceituais entre os seres humanos e os demais animais?” – e outra coisa é perguntar: “O senhor Quita é um filósofo?”. Não tem muito sentido dizer que só poderemos responder a segunda pergunta afirmativamente se antes respondermos a primeira afirmativamente! Não é preciso estar certo para ser um filósofo! Pelo contrário! “Mas é de crucial importância saber se o senhor Quita se identifica como um filósofo – e se os seus interlocutores imediatos o identificam como um filósofo!”. No entanto, ele não pode, mesmo não se identificando como um filósofo, e mesmo não sendo identificado como um filósofo pelos seus interlocutores imediatos, e mesmo não sendo o termo ‘filósofo’ de uso corrente em seu meio circundante, ser reconhecido como um filósofo por quem usa cotidianamente o termo ‘filósofo’? Ele não pode satisfazer as exigências necessárias – as exigências normais! – para ser considerado um filósofo? Pois não basta que um objeto tenha dimensões medianas e a forma esférica para que os falantes da língua inglesa o chamem de “ball” e os de língua portuguesa o chamem de “bola”? Então, o que faz um filósofo ser um filósofo? O que faz uma postura ser uma postura filosófica? O que faz um discurso ser um discurso filosófico? Imaginemos um argumento contra a caça que satisfizesse um lógico ou um professor de filosofia acadêmico – mas que não sensibilizasse minimamente os interlocutores imediatos do senhor Quita... Pois um argumento precisa realmente sensibilizar para ser traduzido em uma nova linha de ação! Pois o que motiva a argumentação? Ah, um argumento que não desestabilizasse o quadro de referências dos interlocutores do senhor Quita seria um argumento forte? Seria um argumento útil? Seria um argumento investido de inteligência estratégica? Seria um argumento filosófico? Aliás, seria um argumento que o senhor Quita formularia? E por que ele o formularia? Seria um argumento que o senhor Quita formularia, por exemplo, 231
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em seu diálogo interior contra a malha discursiva que encara a caça como uma atividade absolutamente normal – e da qual ele mesmo precisou se desvencilhar antes de partir em sua defesa dos animais selvagens? As exigências dos interlocutores de Quita são diferentes das exigências dos professores de filosofia acadêmicos: para que os primeiros o tratem como um filósofo, basta que ele seja o epicentro de um discurso exótico: os seus argumentos até são razoáveis, mas as suas conclusões são deveras heterodoxas; para que os segundos admitam chamálo de ‘filósofo’, ele precisa satisfazer uma série de exigências que, rigorosamente falando, não têm absolutamente nenhuma relação com os traços indicativos da presença de filosofia: o seu discurso não pode ser exótico em nenhum dos extremos: nem na forma nem no conteúdo: nem nas premissas nem nas conclusões – como se o discurso acadêmico não fosse ele mesmo extremamente e inelutavelmente exótico! Os interlocutores de Quita precisam de boas razões para não o considerarem louco – e para cederem aos apelos dele, precisam de razões ainda melhores. Naturalmente, é com as exigências dos seus interlocutores – e não com as exigências do lógico ou do professor de filosofia acadêmico – que o senhor Quita precisa se entender. São elas que o senhor Quita tem em mente quando se coloca a discorrer em defesa dos animais – pois também são elas que pulsam dentro dele. E o que faz de Quita um filósofo é justamente o fato de que ele trava uma luta interior consigo mesmo: ele não está tentando se encaixar no modelo que a academia imputa aos professores de filosofia – e sim tentando, por meio de argumentos, atacar um problema que sinceramente o preocupa: e sim tentando, por meio de argumentos, desmontar a mentalidade do seu tempo e do seu meio – a mentalidade que o atravessa e que o constitui, portanto – e propor uma visão diferente das coisas.
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389 O que faz com que uma obra seja filosófica não é apenas o seu conteúdo interno. Não é apenas o que ela traz dentro das suas fronteiras físicas. É sobretudo a relação de incongruência que ela mantém com a malha linguística da qual faz parte. Assim, uma afirmação pode ser filosófica num lugar e não em outro. Ela pode ser filosófica em um determinado momento e não em outro. Kant foi um filósofo em Königsberg. Mas aqui no hemisfério sul, ele nunca foi um filósofo. 390 O fato de que a frase “Penso, logo existo” é filosófica não significa que a frase “Descartes disse ‘Penso, logo existo’” seja também filosófica! A ousadia e o vigor da primeira estão completamente ausentes da segunda! Achar que “Descartes disse ‘Penso, logo existo’” é uma frase filosófica guarda uma estreita semelhança com achar que se pode levar um choque ao colocar a ponta do dedo na fotografia de uma tomada elétrica. 391 Somos colonos! Sim, colonos! Não exatamente colonizadores... Nem exatamente colonizados... Somos colonos! Sempre sonhando com a metrópole... E acordando na província! 392 O caminho não é tentar fazer uma filosofia com feições marcadamente brasileiras. O caminho é apenas tentar fazer uma filosofia que não tenha feições marcadamente europeias ou norteamericanas. E se ela não tiver feições marcadamente 233
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europeias ou norteamericanas, ela terá feições próprias. E essas feições poderão ser depois acrescentadas à lista de feições brasileiras. Lucio Costa e Oscar Niemeyer não fizeram uma cidade que se acomodasse às velhas feições brasileiras. Eles fizeram novas feições brasileiras. 393 A palestra que Cabrera deu no lançamento do seu livro Diário de um filósofo no Brasil começou com as seguintes palavras: “O título desta fala é: ‘Posso fazer a minha própria filosofia dentro da universidade de hoje?’”. Ah, que pergunta desconcertante para os comentadores! “Pensei em imprimir uma folha com esse título e depois colocar a palavra ‘não’ no meio dela. E depois sair por aí perguntando para as pessoas ‘Você quer uma cópia da minha conferência de hoje?’, e entregar o papel só com o título e a palavra ‘não’ no meio”. O ‘não’ do Cabrera exemplifica de forma magistral o fato de que uma só palavra é capaz de condensar um discurso inteiro. Uma só palavra! Um discurso inteiro! Sim, vale a pena examinarmos melhor as relações entre a filosofia e a poesia. A primeira costuma ser figurada sob o modo de discursos desenvolvidos, e a segunda sob o modo de palavras incisivas. O que a filosofia fala num parágrafo, a poesia fala num verso. A filosofia é extensa. A poesia é intensa. Então, movem-se ambas em domínios separados? A filosofia não pode ser jamais intensa? Nem a poesia ser jamais extensa? Bom, a academia resolveu não ceder lugar à filosofia intensa, à filosofia de tiradas rápidas e penetrantes, à filosofia de perguntas desconcertantes, e assim os jovens estudantes, sempre muito obedientes, sempre muito confiantes nos seus professores, resolveram não ceder lugar a ela em suas mentes. Mas não há verdade alguma na suposição de que a filosofia seja uma coisa e a poesia outra coisa! As teorias são obras de arte! As teorias são 234
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obras arquitetônicas feitas de materiais linguísticos! E por que arquitetar? Por que não simplesmente deixar o pensamento sem contornos? Por que ter uma opinião ao invés de não ter opinião alguma? Na verdade, ter uma opinião não é melhor do que não ter opinião alguma, e assim também ter uma teoria não é melhor do que não ter teoria alguma. Mas ser um filósofo sem opiniões é como ser um maestro sem conhecimentos musicais, e ser um filósofo sem uma teoria é como ser um maestro que não sabe reger. É preciso realmente ter uma alma asquerosa para defender que os estudantes não devem ter suas próprias opiniões, muito menos suas próprias teorias. Uma coisa é o pensamento sem contornos que não chegou ainda a uma arquitetura. Outra coisa é o pensamento sem contornos que deixou atrás de si uma arquitetura. E é extremamente prazeroso arquitetar! Fazer peças! Montá-las! Por que arquitetar? Por que não simplesmente deixar o pensamento sem contornos? Por causa do prazer que o arquitetar proporciona! Por causa do prazer! Filosofar é geometrizar. A energia de pensar que lateja em nosso íntimo quer ansiosamente ser aplicada. Ela se revolta quando é refreada – e ela é a senhora da filosofia. 394 Cuide da sua energia! Cultive a sua energia! Sem vitalidade não se consegue filosofar. Sem vitalidade não se consegue nem mesmo comentar. 395 A energia jamais se detém. Ela está permanentemente construindo – e destruindo o que bloqueia o seu caminho.
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396 Quando você puder representar graficamente as suas ideias, você terá mais do que um conjunto de opiniões: você terá uma teoria. 397 As ideias não são tão importantes quanto a energia que as gera. 398 A academia trata as relações entre a filosofia e a poesia de maneira absolutamente sectária e assim nos faz pensar sobre as relações entre elas de maneira absolutamente sectária. 399 “Todo exercício intelectual habilmente conduzido não será, à sua maneira, uma obra de arte?”.32 Se existe mesmo alguma diferença entre a filosofia e a poesia, se existe mesmo alguma diferença entre os resultados da filosofia e da poesia, ela consiste no fato de que a primeira costuma seguir o caminho da rarefação discursiva e a segunda o caminho da condensação discursiva. Mas como forças elas são idênticas: ambas irradiam a partir da mesma fonte de energia. 400 A filosofia é uma poesia rarefeita. A poesia é uma filosofia condensada. 32
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401 É preciso ser um poeta para tocar onde dói. 402 Os mesmos pensamentos – os mesmos conteúdos – podem ser expressos tanto por argumentos pacientemente desenvolvidos quanto por versos curtos e incisivos. “Mas uma tirada rápida não pode condensar diferentes discursos? E isso não mostra que a filosofia mora no extenso, não no intenso?”. A filosofia mora nos dois lugares. O intenso e o extenso se iluminam mutuamente... Não é apenas o extenso que ilumina o intenso: não é apenas o exemplo que mostra como se deve entender a fórmula. O intenso também ilumina o extenso: a fórmula também mostra como se deve entender o exemplo. 403 “Posso fazer a minha própria filosofia dentro da universidade de hoje?”. Aquilo que o ‘não’ do Cabrera condensa está mais do que claro: há nos departamentos de filosofia brasileiros muito espaço para quem quer desenvolver os pensamentos dos filósofos europeus e norteamericanos, pouco espaço para quem quer desenvolver os pensamentos dos filósofos orientais, africanos e sulamericanos e absolutamente nenhum espaço para quem quer desenvolver os seus próprios pensamentos. “Ninguém proíbe os estudantes de desenvolverem os seus pensamentos!”. De fato, não há uma proibição formal: não há uma proibição explícita: ela é informal: ela é implícita – o que torna a tarefa de combatê-la extremamente difícil: “Você está combatendo fantasmas!”. De fato, eu posso escrever o que eu quiser em meu caderno! Eu posso escrever o que eu 237
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quiser em casa! Eu posso escrever o que eu quiser para os meus amigos! Os professores não dispõem de meios de me impedir de escrever o que eu penso! Mas eles dispõem de meios de me impedir de levar as minhas ideias para dentro da universidade! O estudante que aparece com um projeto sobre um filósofo alemão tem mais chances de entrar num programa de mestrado ou de doutorado em filosofia do que o estudante que aparece com um projeto sobre um filósofo árabe, e o estudante que aparece com um projeto sobre os seus próprios pensamentos, a sua própria visão de mundo, a sua própria abordagem, isto é, o estudante que aparece com um projeto de desenvolvimento de literatura primária ao invés de um projeto de desenvolvimento de literatura secundária tem menos chances do que ambos. 404 “Posso fazer a minha própria filosofia dentro da universidade de hoje?”. Quando Cabrera abriu espaço para intervenções da platéia na sua palestra, um dos presentes apresentou a ideia de disfarce: “O que é o disfarce? É você na verdade apresentar a sua produção filosófica na forma que é institucional. Por exemplo, na forma do comentário. (...) Você chega e fala assim: ‘Vou dar uma grande aula sobre Leibniz. Um curso sobre Leibniz.’ Depois da décima quinta aula, você vai e inclui meia hora de uma produção absolutamente própria disfarçada de comentário sobre Leibniz. (...) O comentário não seria talvez uma das muitas formas literárias ou estilísticas que a filosofia pode adotar?”. Mas vale a pena frisar que a frase “Os pensadores podem se disfarçar de comentadores” não capta a lógica dos departamentos de filosofia brasileiros tão bem quanto a frase “Os pensadores precisam se disfarçar de comentadores”.
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405 “O comentário não seria talvez uma das muitas formas literárias ou estilísticas que a filosofia pode adotar?”. Sim, comentar é uma das formas de codificar os nossos pensamentos; infelizmente, porém, trata-se da única forma admitida nos departamentos de filosofia brasileiros. “O comentário não seria talvez uma das muitas formas literárias ou estilísticas que a filosofia pode adotar?”. Então, será que os departamentos de filosofia brasileiros estão na verdade cheios de filósofos, cheios de gênios? Será que os especialistas em Leibniz são na verdade especialistas em expressar os seus próprios pensamentos na linguagem leibniziana? Então, podemos despi-los de sua roupagem exegética, de sua roupagem leibniziana? Mas os signos que usamos para pensar não guiam os nossos pensamentos como os trilhos guiam as locomotivas? E filosofar não é desenvolver uma linguagem própria? Se Leibniz tivesse se disfarçado de Descartes, ele teria sido Leibniz? Se Leibniz tivesse se disfarçado de Descartes, seria ainda possível disfarçar-se de Leibniz? E por acaso é assim que os especialistas em Leibniz veem a si mesmos: como pensadores disfarçados de repensadores: como filósofos disfarçados de comentadores? Mas se eles são filósofos, por que não tenho chance alguma de entrar num programa de mestrado ou de doutorado em filosofia para escrever sobre os pensamentos deles? 406 Será que a Marilena Chauí está apenas disfarçada de Spinoza? Então, quais são os pensamentos dela? Será que o Roberto Machado está apenas disfarçado de Deleuze? Então, quais são os pensamentos dele?
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407 “O comentário não seria talvez uma das muitas formas literárias ou estilísticas que a filosofia pode adotar?”. E quais são as outras? E já não passou da hora de experimentá-las? E já não passou da hora de lutar para que elas tenham espaço dentro da academia? 408 “O comentário não seria talvez uma das muitas formas literárias ou estilísticas que a filosofia pode adotar?”. Mesmo quando você estiver expressando os seus próprios pensamentos ao expor os pensamentos de Leibniz, você estará contribuindo para a canonização de Leibniz. 409 “O comentário não seria talvez uma das muitas formas literárias ou estilísticas que a filosofia pode adotar?”. Quando você desdobra os pensamentos de Leibniz, você desdobra não os seus pensamentos e sim os pensamentos de Leibniz. 410 “O comentário não seria talvez uma das muitas formas literárias ou estilísticas que a filosofia pode adotar?”. Então, a academia não estaria justificada em exigir que os estudantes desenvolvam os pensamentos dos filósofos canônicos?
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411 Os seus pensamentos sentem falta da energia que você desvia para a tarefa de trajá-los. 412 Quando você se disfarça de Leibniz e coloca os seus pensamentos na boca dele, o que você faz é menos se rebelar do que ficar na surdina. No fim das contas, o que você faz é encorpar Leibniz, é canonizar Leibniz. 413 A academia é uma máquina canonizadora. 414 O que sobraria se retirássemos da produção filosófica acadêmica europeia e norteamericana tudo o que ela recebeu do Brasil? O que sobraria se retirássemos da produção filosófica acadêmica brasileira tudo o que ela recebeu da Europa e dos Estados Unidos? A estratégia do disfarce é no máximo uma solução paliativa. E não é o comentário que precisa ser defendido! Numa guerra entre pessoas armadas com metralhadoras e pessoas armadas com pedras, existe motivo para se pronunciar a favor das primeiras? Elas precisam de ajuda? É por acreditar que elas serão no fim das contas vitoriosas que você se coloca ao lado delas? O comentário não é um estilo filosófico entre outros. Não tem muito sentido querer colocá-lo ao lado dos
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diálogos, dos aforismos e das cartas, por exemplo. Você pode, sim, expressar os seus pensamentos de forma livre e irrestrita por meio de diálogos, aforismos ou cartas. Mas não é possível expressá-los da mesma forma livre e irrestrita por meio de comentários. Quando você escreve um texto filosófico, os seus pensamentos ficam necessariamente em primeiro plano. Mas quando você escreve um comentário, os seus pensamentos ficam necessariamente em segundo plano. Por definição, se você não comentar os pensamentos de outrem, o seu comentário não será um comentário. Se o seu comentário não for marcado pela subserviência, ele não será um comentário. O único tipo de comentário que pode ser genuinamente filosófico é o comentário de autores inexistentes. Ou de autores que para a academia são inexistentes. Se você não consegue fazer outra coisa a não ser comentar, então comente piadas, comente pichações, comente cordéis. Comente o que realmente vale a pena comentar. 415 Quem é que consegue depois de repetir incontáveis vezes “Nossa Senhora, Nossa Senhora” lembrar-se ainda de Iemanjá? 416 É a literatura de cordel que precisa ser admitida como uma forma legítima de escrita acadêmica. Não apenas de escrita, mas de escrita acadêmica. Compare os melhores artigos publicados nas revistas técnicas de filosofia com os melhores cordéis publicados de forma artesanal por seus autores. Esqueça a pomposidade que o caráter formal das revistas oficiais empresta aos seus artigos – e preste atenção somente
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aos seus conteúdos... Já não deveria estar mais do que evidente que os seus inúmeros artigos exegéticos (sobre Heidegger, Wittgenstein, Foucault, Deleuze etc.) não são exatamente filosóficos? O fato de serem excelentes do ponto de vista exegético não significa que sejam também filosóficos! Se você responder “20” à pergunta “Quanto é 5+5?”, você não terá fornecido uma boa resposta – mesmo que “20” seja uma boa resposta para a pergunta “Quanto é 10+10?”. O fato de que o seu artigo sobre Heidegger é realmente bom do ponto de vista exegético não significa que ele possa ser contado como parte da sua produção genuinamente filosófica. É a literatura de cordel que precisa ser admitida como uma forma legítima de escrita acadêmica! Tomemos, por exemplo, o cordel A peleja do Acarajé Baiano contra o Big-Mac Americano, de Alex Canuto de Melo. Depois de conceder que o futebol é um esporte que em si mesmo não tem nada de negativo: Futebol também é arte E como toda arte tem O poder de encantar Na alma fazendo um bem, E mesmo o que passa fome Quando a bola consome Se esquece do que não tem. ele passa a criticar o uso do futebol feito pelas autoridades, interessadas apenas em maximizar o próprio lucro: Mas tem muito brasileiro Que tá vivo pra danar Que se encanta com a bola Mas não se deixa driblar Pela espúria vileza 243
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Pela maldosa esperteza De quem só quer lhe roubar. Desafiando a mentalidade acrítica fomentada pela televisão brasileira, Alex desfere os seus golpes no evento mais esperado e celebrado de 2014: Minha gente então eu falo O que a tevê não quer, Falo do Museu do Índio Que não é coisa qualquer É toda nossa história É toda nossa memória Quer tu queira quer não quer. Sucede que o Museu Foi erguido, construído Perto do Maracanã, Tendo que ser demolido Por questões estruturais Por questões comerciais Pela FIFA sugerido. Sucede que a PM, Sob ordens de Cabral, Não aquele Pedro Álvares Mas o Sérgio, o atual Governador carioca Como quem derruba oca, Faz operação brutal. Invadiram o Museu Com seu arsenal munidos 244
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Com gases lacrimogêneos Sobre os índios destemidos E com tiros de borracha Que mira e logo acha Deixaram vários feridos. Toda essa repressão Parte da intransigência Do Governo, que exige Que haja a transferência E mesmo a demolição Do Museu em questão Se erguia em resistência. Não basta a intransigência Que abala a nossa fé Eis que peitaram a tenda Das Pretas do Acarajé, A FIFA agora proíbe Aos ambulantes inibem, Mas as Pretas fincam pé.33 Sob todos os pontos de vista possíveis e imagináveis, o cordel de Alex é infinitamente mais filosófico do que os artigos publicados nas revistas técnicas de filosofia – que de filosóficos só possuem as citações que fazem. Não é por acaso que apesar de toda a sua pompa, apesar de toda a sua correção gramatical, apesar de todo o seu respeito às normas oficiais de publicação, eles não são lidos por ninguém – de certa forma, eles não foram escritos para ninguém. Exatamente como os deveres de casa
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dos tempos de graduação, eles são apenas a expressão de um anseio por aprovação. E de todos os tipos de anseio por aprovação que existem, o mais distante da filosofia é justamente o anseio por aprovação das autoridades. Leia qualquer artigo publicado nas revistas oficiais de filosofia e depois leia A peleja do Acarajé Baiano contra o Big-Mac Americano. Qual realmente abala as nossas entranhas? Qual realmente desperta a nossa indignação? Qual realmente tem impacto filosófico? 417 Mas para que tanta discussão? Para que tantas análises, tantos argumentos, tantas falácias? Para que tantas palavras? A questão toda não poderia ser resolvida simplesmente criando espaços institucionais onde o estudante não tenha que reverenciar Nossa Senhora, onde possa falar de Iemanjá? Onde possa escrever sobre o que realmente quer? Onde possa escrever sobre o que realmente acha importante? Onde possa fazer o que realmente considera filosofia? Por exemplo, ele não poderia ser deixado à vontade para escrever sobre o que realmente quer no seu trabalho de conclusão de curso? Não? Por quê? Ah, não é curioso que se ache necessário manter espaços que o recompensem por conseguir manejar de forma minimamente aceitável o pensamento de algum europeu ou norteamericano (ou de algum grupo de europeus ou de norteamericanos), mas não espaços que o recompensem por conseguir modelar a linguagem de forma a fazê-la expressar o que ele realmente pensa? Como se houvesse mérito apenas em ser porta-voz da filosofia europeia ou norteamericana! Como se não houvesse mérito algum em pensar por si próprio!
Cordas vocais BLOCO 9
Cordas vocais
418 “Contra o que habitualmente se pensa, estamos condenados a ser originais (...)”, escreveu Cabrera.33 Mas imaginemos os três seguintes casos:
(A) Uma pessoa desenha um triângulo azul e depois outra desenha também um triângulo azul; (B) Uma pessoa desenha um triângulo azul e depois outra desenha um quadrado azul; (C) Uma pessoa desenha um triângulo azul e depois outra desenha um quadrado amarelo. A ideia de que é impossível não inovar apresenta um problema: ela nos pede para aceitar que o caso A seja uma espécie de caso B. Talvez até uma espécie de caso C!
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419 É impossível não inovar? Então, se você quiser imitar uma pessoa que acabou de desenhar um triângulo azul, você precisará travar uma verdadeira guerra contra as suas mãos para desenhar um triângulo azul e não um quadrado amarelo – e mesmo assim acabará desenhando um quadrado amarelo? 420 É impossível não inovar? Então, deve ser possível usar o caso A para explicar a palavra ‘inovação’ a um estrangeiro que não sabe o seu significado; porém, se usarmos o caso A, ele provavelmente associará a ‘inovação’ o significado que deveria ser associado não a ‘inovação’ e sim a ‘repetição’! E ele poderá então negar que C constitui um caso de inovação! 421 Mas ao usar o argumento do estrangeiro para criticar a ideia de que é impossível não inovar, não estou simplesmente emprestando as minhas cordas vocais a Wittgenstein? Não estou simplesmente usando Wittgenstein para tampar os meus ouvidos? 422 Eu teria sido menos wittgensteiniano se Cabrera tivesse sido menos sartreano? Eu teria sido menos analítico se ele tivesse sido menos continental? Ah, não sei! O fato é que o argumento do estrangeiro não emergiu das minhas próprias entranhas. Ao usar o argumento do estrangeiro contra o texto do Cabrera, mostrei as marcas que o curso de graduação deixou em mim.
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Não fui eu que li o texto do Cabrera. Foi Wittgenstein. Também não fui eu que critiquei o texto do Cabrera. Foi Wittgenstein. 423 As críticas que faço a um texto não emanam nunca da razão em si mesma... Pelo contrário, elas emanam sempre de um texto que carrego dentro de mim... E quanto mais colado ele estiver em minhas retinas, quanto mais difícil for para mim enxergá-lo, mais elas me parecerão contundentes, mais elas me parecerão decisivas: mais elas me parecerão ser oriundas da razão em si mesma. 424 O que temos são apenas textos contra textos. 425 Algumas pessoas leem o texto x através do texto y. Outras leem o texto y através do texto x. E as primeiras acham que y está certo e que x está errado. E as segundas acham que x está certo e que y está errado. 426 As críticas que fiz a Cabrera foram apenas uma reação do texto wittgensteiniano implantado em mim... Mas alguma crítica poderia ter sido minha? Não são todas as críticas simples emanações de textos – que poderiam ser o alvo contra o qual disparamos nossas flechas ao invés de serem o arco com o qual as disparamos? Entretanto, uma crítica pode deixar de ser válida ou passar a ser válida dependendo da sua origem? Mas
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se toda crítica emana sempre de um texto específico, podem haver ‘críticas válidas’? Ou apenas ‘críticas válidas do ponto de vista de’? 427 Talvez não haja ‘consciência de que’, apenas ‘discurso de que’. 428 Não é por chegarmos a certezas que paramos de pensar. É por pararmos de pensar que chegamos a certezas. 429 Vamos chamar de ‘metafísica da repetição’ a ideia de que não podemos senão repetir o passado: é impossível ser original, é impossível inovar: tudo é necessariamente velho. Vamos chamar de ‘metafísica da inovação’ a ideia contrária: não podemos jamais repetir o passado: é impossível não ser original, é impossível não inovar: tudo é necessariamente novo. De acordo com a primeira, as supostas inovações são sempre repetições: no fundo, criar é recriar: produzir é reproduzir: escrever é reescrever: pensar é repensar: filosofar é comentar. De acordo com a segunda, as supostas repetições são sempre inovações: no fundo, recriar é criar: reproduzir é produzir: reescrever é escrever: repensar é pensar: comentar é filosofar. O curioso é que a metafísica da repetição seja usada para desautorizar o filosofar e a metafísica da inovação para autorizar o comentar... Se filosofar é no fundo comentar, se as inovações são no fundo repetições, se criar é no fundo recriar, então vamos parar de filosofar! E se comentar é no fundo
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filosofar, se as repetições são no fundo inovações, se recriar é no fundo criar, então vamos comentar! 430 A metafísica da repetição e a metafísica da inovação, embora sejam posições diametralmente opostas, são usadas, via de regra, para empurrar-nos na mesma direção: para afastar-nos do filosofar e aproximar-nos do comentar. Mas se a metafísica da inovação pode ser usada para autorizar o comentar, então ela pode ser usada ainda com mais propriedade para autorizar o filosofar! E se a metafísica da repetição pode ser usada para desautorizar o filosofar, então ela pode ser usada ainda com mais propriedade para desautorizar o comentar! 431 As metafísicas da repetição e da inovação tiram o valor do que tem valor para colocá-lo no que não tem valor. 432 Se ambas podem ser usadas para legitimar o reescrever e deslegitimar o escrever, ambas podem ser usadas para legitimar o escrever e deslegitimar o reescrever! 433 Os comentadores dizem que x é ilegítimo por ser no fundo y e ao mesmo tempo que y é legítimo por ser no fundo x. O filosofar perde legitimidade por ser no fundo um comentar e o comentar ganha legitimidade por ser no fundo um filosofar.
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434 Não podemos extrair da metafísica da repetição a conclusão de que não precisamos nos entregar à tarefa de comentar, visto que, de um jeito ou de outro, ela será inevitavelmente realizada – ao invés de extrair dela a conclusão de que precisamos nos entregar à tarefa de comentar, visto ser ela a única atividade metafisicamente disponível, a única atividade à qual podemos efetivamente nos entregar? E da metafísica da inovação não podemos extrair a conclusão de que não precisamos nos entregar à tarefa de filosofar, visto que, de um jeito ou de outro, ela será inevitavelmente realizada – ao invés de extrair dela a conclusão de que precisamos nos entregar à tarefa de filosofar, visto ser ela a única atividade metafisicamente disponível, visto ser ela a única atividade à qual podemos efetivamente nos entregar? 435 Contra as nossas expectativas habituais, a metafísica da repetição pode, sim, ser usada para legitimar o filosofar, e a metafísica da inovação pode, sim, ser usada para legitimar o comentar. 436 Como são as relações entre o signo ‘novo’ e o signo ‘bom’? Recusamo-nos a considerar um texto bom a menos que ele seja também novo... A novidade é um dos traços que nos leva a atribuir qualidade... E o contrário é igualmente verdadeiro: recusamo-nos a considerar um texto novo a menos que ele seja também bom... Se não houver qualidade, não haverá novidade...
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437 Quando falta originalidade a uma ideia, também falta a ela qualidade. Quando falta qualidade a uma ideia, também falta a ela originalidade. 438 Mas se há algo que deve ser buscado, não é a originalidade e sim a qualidade. É a busca obsessiva de qualidade que conduz à originalidade. 439 Os comentadores pegam os textos autorais de duas ou três páginas dos estudantes e os criticam severamente, encontrando neles razões e mais razões para suspirarem com desânimo: “Eles não têm nenhum futuro como filósofos!”. Mas eles pegam os textos exegéticos de duas ou três páginas dos estudantes e os elogiam fervorosamente, encontrando neles razões e mais razões para alardearem com ânimo: “Eles têm um grande futuro como comentadores!”. O caminhar desenvolto dos textos autorais e o tatear incipiente dos textos exegéticos são minimizados. O tatear incipiente dos textos autorais e o caminhar desenvolto dos textos exegéticos são maximizados. 440 Em nossos peitos, a imagem otimista dos departamentos de filosofia sente-se em casa. Como não reagimos emocionalmente contra ela, também não reagimos intelectualmente contra ela. Como não reagimos involuntariamente contra ela, também não reagimos voluntariamente contra ela.
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441 Você precisa da academia mais para não fazer filosofia do que para fazer filosofia. 442 Sair dos limites discursivos da academia é o primeiro passo para sair dos seus limites físicos. 443 Para se fazer filosofia, é preciso tomar aquilo que se faz nos departamentos de filosofia brasileiros de hoje como um modelo do que não se deve fazer. 444 Se você quiser filosofar, é melhor você procurar estabelecer uma relação de sinergia intelectual fora dos departamentos de filosofia. 445 Escreva os seus pensamentos para os seus amigos (que não estão nem um pouco interessados em seus deverzinhos de casa) e os seus deverzinhos de casa para a academia (que não está nem um pouco interessada em seus pensamentos).
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446 E quando você estiver escrevendo para os seus amigos, tome cuidado para não cair no erro de ser um mero divulgador dos filósofos europeus! 447 Suponhamos que X esteja ensinando música a Y. Num primeiro momento, é claro, Y não sabe nem manejar o seu instrumento. Não obstante, X pode começar a primeira aula de maneira talvez não muito adequada, pegando o seu próprio instrumento, tocando uma série de notas e pedindo que Y repita o que ele acabou de tocar. Se Y já não tiver estudado música sozinho ou então com outro professor, ele poderá se encher de entusiasmo, tentar obedecer a ordem de X, mas não se mostrar capaz de tirar do seu instrumento um som sequer. Então, X perceberá que Y precisa antes passar por um treino, que ele começou a lição num estágio avançado demais. 448 O que aconteceria nesse caso a X seria semelhante ao que aconteceria com o professor de alfabetização que no primeiro dia de aula simplesmente começasse a escrever as letras no quadro. Ele veria então que as coisas não são tão simples assim. Talvez uma criança ou outra se mostrasse capaz de copiar o que ele escreveu. Isto é, talvez uma criança ou outra já tivesse
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adquirido suficiente habilidade manual para tanto – o que não significa, é claro, que ela já tivesse nascido sabendo pegar no lápis. Contudo, é provável que a maioria delas precise ser literalmente conduzida pela mão. Pois talvez escrevam ‘N’, por exemplo. Só que invertido. Ou inclinado demais. Ou ainda trêmulo demais. 449 Suponhamos agora que Y finalmente consiga manejar o seu instrumento. Então, X pode começar um outro tipo de aula, talvez o tipo de aula com o qual queria ter começado. Ele toca uma sequência de notas, a princípio duas, em seguida três, depois quatro, cinco, etc., e pede que Y faça a mesma coisa. Então, Y toma o seu instrumento e faz a mesma coisa. 450 O professor pode então pedir que Y toque a mesma coisa, só que em outra escala. Ele também pode tocar uma sequência de notas lentamente e pedir que Y toque a mesma sequência numa velocidade maior. Ou então pedir simplesmente que Y toque a mesma sequência em outra velocidade, mas sem perder o compasso. Ele pode também pedir que Y toque a mesma sequência junto com ele. Isto é, X toca uma sequência de notas, diz que vai tocá-la de novo na mesma velocidade e pede que Y se prepare para acompanhá-lo. Quando X começa a tocar, Y também começa. Talvez X só se sinta satisfeito quando eles começarem e terminarem juntos.
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451 Depois que Y tiver se mostrado capaz de repeti-lo, então X pode passar para outro tipo de aula. Ele agora começa a tocar o seu instrumento e pede que Y toque ao mesmo tempo outras notas. Mas pede também que não sejam quaisquer outras notas. Elas precisam se encaixar nas notas tocadas por X. Para que Y entenda corretamente as suas instruções, X pode lhe dar um exemplo. Ele mesmo toca duas sequências de notas e pede depois que Y toque a segunda enquanto ele toca a primeira. Talvez Y perceba que as duas sequências se encaixam, apesar de serem diferentes. Agora X começa a tocar uma terceira sequência de maneira repetitiva. E pede que Y entre tocando uma quarta sequência. Isto é, pede que Y toque uma sequência diferente, mas que se encaixe na sequência tocada por X. 452 Depois X também pode tocar uma sequência e pedir que Y a continue sem descaracterizá-la e sem repeti-la nota por nota. Assim, X toca lá, dó, sol. Talvez Y possa tocar em seguida mi, fá, sol. Aqui Y já estaria alfabetizado, por assim dizer. Aqui Y já teria desenvolvido a capacidade de improvisar. O que X está tentando ensiná-lo é a continuar a história por si mesmo. 453 Então, chega o momento em que X sente que Y está preparado para um outro tipo de aula. Pois Y já tem uma certa sensibi-
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lidade musical. Ele já julga uma sequência agradável e outra desagradável. Talvez ele até tenha um gosto diferente do professor, o que pode reforçar a opinião dele de que já está mesmo na hora de sair do período de alfabetização: está na hora de estimulá-lo a compor. Assim, X toca uma sequência de notas que Y nunca ouviu antes e explica que ele mesmo a compôs. E pede agora que Y componha ele mesmo uma música. Diz que a aula acabou e manda Y voltar no dia seguinte. Agora duas coisas podem acontecer. Y pode chegar no dia seguinte com uma nova música, uma música que ele mesmo compôs. Ou então Y pode chegar na aula e tocar exatamente a mesma coisa que X tocou no dia anterior. No primeiro caso, pode-se dizer que Y compreendeu as intenções de X. Ele fez a mesma coisa que X. Ele compôs uma música. No segundo caso, podese dizer que Y não compreendeu as intenções de X. Ele tocou a mesma coisa que X. Mas não fez a mesma coisa que X. 454 Não há como ampliar tematicamente uma disciplina sem também ampliá-la metodologicamente. Não há como ampliar metodologicamente uma disciplina sem também ampliá-la tematicamente. 455 Existem poucas coisas tão prazerosas quanto colocar os nossos motores intelectuais para trabalharem a todo vapor. Portanto, mantenha presente em sua memória o fato de que quando você entrou no curso de filosofia, você não queria comentar, você não queria reescrever os pensamentos de outrem, você não queria ser um boneco de ventríloquo; pelo contrário, você queria filosofar, você queria desenvolver os seus próprios
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pensamentos, você queria colocar no papel as suas ideias. Você queria pensar, não repensar. Afinal, para que reescrever o que já está escrito? 456 Observe as transformações interiores pelas quais você passou ao longo do curso de graduação. Com a sua férrea campanha de ridicularização do pensar e de exaltação do repensar, ele conseguiu dissuadir você dos seus impulsos originais? Ele conseguiu redirecioná-los para o mero comentar? Ele conseguiu fazê-lo desistir de correr atrás do primeiro lugar para correr desde o início atrás do segundo ou do terceiro lugar? Ele conseguiu fazer com que você abdicasse de usar todas as suas capacidades intelectuais? 457 Quem se protege atrás de autores cujo mérito não está em questão não é nada mais e nada menos do que um covarde: os comentadores fazem pouco exteriormente por serem pouco interiormente. 458 O fato de que ele pensa não significa que você pensa! 459 Você pode se lançar em uma busca e não chegar a nada – talvez por ter desistido no meio do caminho. Mas se você não se lançar em busca alguma, você certamente não chegará a nada.
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460 Você só irá construir uma teoria quando tomar a livre e consciente decisão interior de construí-la. Ela provavelmente não será elaborada em um dia – nem em uma semana – nem em um mês – e não se espante se você não tiver ainda obtido nada de substancial mesmo depois de um ano. Mas quando usamos toda a potência dos nossos motores, sentimos uma felicidade especial e insubstituível: pelo simples fato de não estarmos compactuando com a mediocridade: pelo simples fato de não estarmos nos vendendo ao falso sentimento de realização que ela oferece: pelo simples fato de estarmos correndo atrás do que realmente nos interessa: pelo simples fato de realmente estarmos fazendo tudo o que podemos fazer. 461 Você prefere fazer tudo o que você pode fazer? Ou apenas uma parte do que você pode fazer? 462 Ninguém sabe mais sobre as suas capacidades do que você mesmo. 463 Quem deseja escrever um livro de filosofia pode pura e simplesmente encadear uma série de opiniões p, q, r, s de forma harmoniosa. Mas quem deseja elaborar uma teoria não pode se contentar com o puro e simples encadeamento harmonioso de uma série de opiniões. Uma teoria possui sempre uma estrutura
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geométrica – e algum tipo de simetria. Assim, se você já chegou a p, q, r, s e quiser construir uma teoria, pode ser proveitoso tentar insuflar inteligibilidade em ~p, ~q, ~r, ~s. Ou então tentar gerar proposições que não exatamente neguem p, q, r, s, mas que sejam imagens enantiomorfas de p, q, r, s. Por exemplo, depois de dizer que os comentadores julgam as formas embrionárias como se fossem formas adultas (sendo assim hipercríticos com as primeiras), eu deveria ter também explorado a ideia de que eles julgam as formas adultas como se fossem formas embrionárias (sendo assim hipercondescendentes com as primeiras). E eu teria avançado mais do ponto de vista teórico se ao invés de falar em implementação, que não tem um correspondente linguístico minimamente elegante, eu tivesse falado no processo de degravação, e no seu correspondente processo de gravação. E assim como há uma luta no plano dos signos (uma luta pela ressignização), há também uma luta no plano dos significados (uma luta pela ressignificação). 464 As teorias neutralizam as opiniões – por inseri-las em contextos mais amplos. 465 As teorias são desenhos – e os seus vértices são conceitos. 466 Os instrumentos de análise fluem naturalmente da análise de objetos.
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467 Os comentadores fazem pouco com muito. Os filósofos fazem muito com pouco. 468 A inteligência é um animal selvagem – um animal que emudece quando mantido em cativeiro. Mas se você soltá-lo, se você deixá-lo correr e seguir os seus próprios instintos, ele tratará de levá-lo até paisagens que você nunca nem sonhou que existissem. 469 Escolha os seus ideais com cuidado – pois você pode alcançálos! Mantenha sempre em mente que ideais grandes são engrandecedores, e ideais pequenos são apequenadores.
Trilhos BLOCO 10
Trilhos
470 Está ainda por ser feita uma história das transformações linguísticas ocorridas nos campos da arte, da história e da geografia ao longo do século XX. Não é interessante o fato de que, no início do XX, termos como ‘infantil’, ‘louco’ e ‘feio’, quando aplicados a uma obra de arte, e termos como ‘frágil’, ‘impreciso’ e ‘incompleto’, quando aplicados a uma obra historiográfica, atuavam indiscutivelmente de forma deslegitimadora? Não é interessante o fato de que chegaram ao fim do XX atuando de forma legitimadora? Sim, as transformações linguísticas ocorridas ao longo do XX sobretudo nos campos da história, da geografia e da arte, mas também em outros campos, como o da antropologia e o da sociologia, exibem um padrão prontamente identificável: termos antes deslegitimadores passaram a ser, em grande medida, termos legitimadores, e termos antes legitimadores passaram a ser, em grande medida, termos deslegitimadores: o pequeno tornou-se grande, e o grande tornou-se pequeno; o feio tornou-se belo, e o belo tornou-se feio. Sim, os signos da imperfeição chegaram ao fim do XX como signos triunfantes: os rótulos que eram antes convocados para derrubar os objetos que rotulavam perderam a sua força, não conseguiram executar a sua tarefa: os objetos rotulados por eles permaneceram em pé – e de forma tão inabalável, tão colossal, tão magnânima que eles deixaram de
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ser vistos como rótulos que derrubam para serem vistos como rótulos que erguem. 471 A sua teoria deve ser a sua sensibilidade em forma de texto. 472 Tornar explícito é tornar acessível à crítica. Tornar implícito é tornar inacessível à crítica. 473 É possível ter pelo menos duas atitudes diferentes em relação às lutas linguísticas ocorridas nos campos da arte, da história e da geografia ao longo do XX. A primeira consiste em pura e simplesmente alistar-se num dos batalhões em conflito, levantando a sua bandeira fervorosamente, apaixonadamente, obstinadamente – mas sem compreendêla minimamente: “Viva a incerteza! Viva o percurso! Viva o devir!”, e consequentemente: “Abaixo a verdade! Abaixo a autenticidade! Abaixo a identidade!”. Ah, as bandeiras embriagam tanto quanto o álcool! A segunda atitude consiste em sair do campo de batalha para examiná-la através de uma lente de aumento: que permita ver os seus detalhes; e também através de uma lente de diminuição: que permita ver os seus contornos; a segunda consiste em inventariá-la, em destrinchála, em analisá-la, em geometrizá-la – e consequentemente em colocá-la em perspectiva: não há razão alguma para se considerar o ser menos digno que o devir, o ponto de chegada
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menos digno que o percurso, o belo menos digno que o feio, a maestria menos digna que a inépcia, a objetividade menos digna que a subjetividade, a identidade menos digna que a vacuidade: não, não há razão alguma: a menos que se queira levantar – fervorosamente, apaixonadamente, obstinadamente – a bandeira do devir, do percurso, da feiúra, da inépcia, da subjetividade e da vacuidade. De fato, mais interessante do que torcer para um time e entrincheirar-se contra o time adversário, é ver a profunda necessidade que um tem do outro – e mapear tanto as relações de animosidade quanto as relações de amizade que eles mantêm entre si. E vendo as lutas simbólicas ao mesmo tempo de perto e de longe, torna-se claro que elas se processam tanto no plano dos signos quanto no plano dos significados, e que elas podem ter a forma tanto de esforços de ressignização quanto de esforços de ressignificação (pois uma coisa é rechaçar o signo ‘feio’, e outra bem diferente é rechaçar o significado associado ao signo ‘feio’); torna-se claro que as partes litigantes numa luta simbólica tentam sempre solidificar as opiniões que defendem, e volatizar as opiniões que atacam – isto é, elas tentam sempre fincar a sua própria bandeira no chão, jogando no ar a bandeira adversária; tornase claro que cada definição de ‘arte’, de ‘história’, de ‘geografia’ e de ‘filosofia’ pode ser vantajosamente vista como uma investida militar: como uma tentativa de apossar-se de um território (e de nomeá-lo), cravando nele uma bandeira. Como você enxerga as definições? Como mapas morfológicos que registram de forma neutra e imparcial os contornos das disciplinas? Ah, elas estão mais para mapas políticos do que para mapas morfológicos: elas estão mais para armas de guerra do que para réguas... As definições não exprimem e sim imprimem os contornos disciplinares.
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474 Não existem critérios que possamos usar para observar as lutas simbólicas confortavelmente sentados do lado de fora da arena, critérios que possamos usar para determinar quem está com a razão independentemente de quem vence a disputa... A disputa é também uma disputa pela definição dos critérios. 475 E se as definições de ‘arte’, ‘história’, ‘geografia’ e ‘filosofia’ são em última instância investidas militares, que sentido pode ter falar em condições necessárias e suficientes que uma obra precisa atender para ser considerada uma obra de arte, de história, de geografia ou de filosofia – que sentido pode ter falar em semelhanças de família ou qualquer coisa do gênero? 476 “Toda descrição é no fundo uma prescrição”. O que temos aqui é uma descrição ou uma prescrição? 477 Na faculdade, você não lê os deverzinhos de casa de LéviStrauss. Você lê as obras de Lévi-Strauss. Portanto, saiba distinguir os professores que só escrevem deverzinhos de casa dos professores que realmente escrevem obras. “Mas você não está sendo cruel demais? Os professores simplesmente não têm tempo para escrever as obras que gostariam de escrever.” Eles têm tempo para escrever comentários! “Mas eles precisam escrever comentários! As revistas especializadas só aceitam comentários!”. Certamente, o problema não é que um ou outro 270
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professor não encontra tempo para colocar os seus próprios pensamentos no papel – o problema é que do ponto de vista institucional colocar os próprios pensamentos no papel não tem nenhum valor. Mas convém lembrar que os professores são em grande medida responsáveis pelas regras vigentes. Sim, é verdade que eles não têm tempo para colocar os seus próprios pensamentos no papel por precisarem usá-lo para colocar os pensamentos de algum filósofo renomado no papel: mas também é verdade que trata-se de um problema que eles mesmos criaram – não individual, mas coletivamente. “Quando eu me tornei professor, as coisas já estavam assim.” Mas você faz o que está ao seu alcance para estimular os estudantes a pensarem por si mesmos? 478 Como levar a sério aquele cuja obra da vida é um deverzinho de casa?! “Mas eu não escrevo sobre Foucault, eu escrevo com Foucault.” Mas Foucault escreve com você? Alguém escreve com você? Mais precisamente, alguém poderia escrever com você? O problema está justamente aqui: é possível escrever sobre Foucault, a respeito de Foucault, com Foucault, a partir de Foucault por um motivo bem preciso: Foucault colocou os seus próprios pensamentos no papel. Se você não colocar os seus próprios pensamentos no papel, jamais será possível escrever com você... Os comentadores fazem de tudo para esconder o fato de que não têm nada a dizer: minimizam a importância de colocar os próprios pensamentos no papel, ridicularizam aqueles que não se contentam em reescrever o que já foi escrito, trocam ‘sobre’ por ‘com’ – e se for necessário, trocarão ‘com’ por ‘a partir de’ ou qualquer coisa do gênero. As suas manobras se processam tanto no nível macro quanto no nível microscópico.
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479 Quando você tornar a ouvir os mesmos batidos e esnobes comentários que os professores de filosofia brasileiros geralmente emitem quando veem diante de si uma obra verdadeiramente singular: “Isso não é filosofia”, “Isso não é sério”, “Isso não é bom”, “Isso não é original” – lembre-se: eles têm um partido que defendem com unhas e dentes. O fato de que eles não produzem nada que mereça ser reconhecido faz com que não queiram permitir a produção de nada que mereça ser reconhecido. 480 Por que você endossa até mesmo as mais medíocres e apequenadoras opiniões dos seus professores? Por que você as endossa como se elas fossem fruto não de um reles mortal – não de um risível erudito – não de um impotente comentador – e sim fruto de um semideus – da razão em si – ou do seu imbatível papai? É para você ser endossado por eles? Ah, o imbatível papai! Não se pode esperar maturidade intelectual de quem não tem maturidade emocional: não se pode esperar independência filosófica de quem não tem independência psicológica. 481 Os jogos do cabo de guerra e da batata quente mostram que existe mesmo uma profunda continuidade entre o mundo das crianças e o mundo dos adultos.
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482 Existe uma diferença fundamental – ainda que esfumaçada – entre conhecimentos e princípios; sim, fundamental: porque é possível defender verbalmente p e na prática vilipendiar p. De maneira geral, os professores de filosofia brasileiros – os membros da comissão técnica dos departamentos de filosofia brasileiros – definem aceitavelmente a palavra ‘filosofia’; quando começam a aplicá-la, porém, conseguem realizar a proeza de torná-la irreconhecível. Ter princípios não é enunciálos e sim praticá-los: não é tê-los na ponta da língua, é tê-los nos punhos... E não venha me dizer que estou desatualizado por usar a palavra ‘princípios’! Não venha me pedir para abraçar o movimento empenhado em estigmatizá-la... Um estudioso da guerra não pode se dar ao luxo de esbanjar a falta de maturidade psicológica necessária para bater continência diante de bandeiras frívolas e rasteiras. 483 Por que a forma do tratado – com capítulos e seções de capítulos – seria superior às outras? Não é possível expressar exatamente o mesmo conteúdo sob diferentes formas? Não é possível escrever duas obras, uma na forma do tratado e a outra na forma de aforismos, que expressem fundamentalmente as mesmas ideias? Talvez a perseguição das outras formas de exposição que se vê nos departamentos de filosofia de hoje se deva ao desejo de fazer a filosofia parecer mais séria do que realmente é... Sim, o tratado expressa – em sua própria forma – seriedade, profundidade e certeza... Ele gera a aparência
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de que se está certo, mesmo quando se está profundamente equivocado. Sim, a forma expositiva é mais um ingrediente fundamental – ao lado da nacionalidade do autor, ao lado das fastidiosas citações – para gerar a aparência epistêmica. 484 A sensação de certeza não deve ser extirpada da filosofia! Mas por que teríamos a obrigação de adotar invariavelmente o estilo de escrita mais seguro de si que existe? 485 A sensação de certeza, na verdade, é uma bússola – um guia – de inestimável valor... É só quem a tem bem viva no peito que se põe a filosofar! Sim, é a certeza – ainda não justificada – de que há algo errado com uma determinada afirmação que nos leva a investigá-la e a desmontá-la: a buscar – e a encontrar – as razões para a nossa desconfiança... Mas a sensação interior de certeza não tem nada a ver com a sensação de certeza gerada pela forma do tratado. A primeira estimula a reflexão. A segunda estimula simplesmente a adesão. 486 O tratado é um estilo expositivo que tem suas próprias exigências – e elas nem sempre coincidem com as exigências filosóficas... Não tem sentido impô-lo como o único estilo autorizado nas pós-graduações em filosofia! O tratado exige, de maneira geral, que se escreva mais do que o estritamente necessário, mais do que o filosoficamente necessário – para fazer um parágrafo fluir naturalmente do outro, para se iniciar de maneira pouco abrupta um capítulo, para finalizá-lo elegantemente, etc. E pelas 274
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mesmas razões arquitetônicas ele pode exigir que se mutile – que se interrompa – que se prejudique – a argumentação. 487 O tratado não é logicamente – nem metafisicamente – incompatível com a filosofia: jogar futebol dentro de uma camisa de força – ou usando salto alto – não é impossível. Apenas trata-se de uma opção pouco funcional. 488 A relação entre a exegese e a filosofia – que poderia e deveria ser simbiótica – tornou-se parasitária: a exegese simplesmente preda a filosofia. 489 Os esforços críticos da metafilosofia devem ser dirigidos mais contra a mentalidade dos subequatoriais do que contra a mentalidade dos supraequatoriais: não são os supraequatoriais que subestimam o pensamento subequatorial – são os subequatoriais. 490 Um colega meu que partiu para os Estados Unidos a fim de fazer doutorado, contou-me que lá escreveu um artigo na primeira pessoa do plural – como estava acostumado a fazer aqui no Brasil – e seu orientador riu do seu estilo pomposo... Não se pode escrever na primeira pessoa do singular aqui no Brasil! Não se pode mostrar que os pensamentos não caem prontos do céu, mas são pensados por pessoas de carne e osso! É como
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se escrever na primeira do singular fosse gramaticamente incorreto! Como se fosse falta de educação! “Por que insistir em escrever na primeira do singular, se é sempre possível converter ‘Eu acho que p’ em ‘Acha-se que p’ sem mudar o conteúdo de p?”. Mas é de se perguntar também: por que insistir em converter “Eu acho que p” em “Acha-se que p” ao invés de converter “Acha-se que p” em “Eu acho que p” – se o conteúdo de p não muda? Pois se a conversão pode ser feita, então ela pode ser feita nos dois sentidos! É curioso que a comissão técnica brasileira – quando interpelada pelos jogadores que não se sentem à vontade com suas regras, que suspeitam da arbitrariedade e da profunda irrelevância delas para o jogo – recorra ao argumento da conversão sempre num sentido bastante preciso: do pessoal para o impessoal, do “Eu acho que p” para o “Acha-se que p”, nunca no sentido contrário... Do fato de que a conversão é possível, extrai-se prontamente o sentido que ela deve tomar... 491 Mas a comissão técnica não cede quando colocada contra a parede: os nossos argumentos não surtem nenhum efeito sobre as suas decisões: argumentar, para a maior parte dos professores de filosofia brasileiros, é simplesmente florear! É só então que o caráter essencialmente arbitrário de suas regras aparece de maneira nua e crua... Há jogadores que se satisfazem com as pseudoexplicações que eles fornecem – e se submetem às suas regras de etiqueta achando que elas não se resumem a simples regras de etiqueta. Afinal, elas parecem explicações! Porém, há jogadores que permanecem inquietos. O argumento “Por que insistir em escrever na primeira do singular, se é sempre possível converter ‘Eu acho que p’ em ‘Acha-se que p’ sem mudar o conteúdo de p?” reconhecidamente aplaca a
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curiosidade de muitos deles... Porém, há outros que, mais cedo ou mais tarde, percebem que foram maliciosamente driblados; e colocando-se de novo a correr atrás da bola (atrás do que realmente interessa: jogar futebol, fazer a filosofia), descobrem que as explicações oferecidas pelos técnicos são bem fracas... E também que os técnicos são bem fortes... Na medida em que os argumentos que eles apresentam começam a fraquejar, as suas decisões começam a se mostrar cada vez mais sólidas e inquebrantáveis... 492 O argumento “Por que insistir em escrever na primeira do singular, se é sempre possível converter ‘Eu acho que p’ em ‘Acha-se que p’ sem mudar o conteúdo de p?” só tinha um objetivo: fazer com que o jogador se conformasse às regras achando que estava conformando-se a elas por uma boa razão... 493 O tratado não é uma forma exatamente adequada para se expor argumentos: para tanto, são indiscutivelmente melhores os diálogos e os aforismos. Ele não é uma forma exatamente adequada para expressarmos como tivemos as ideias que tivemos: para tanto, são indiscutivelmente melhores os ensaios e os e-mails. 494 Os jogadores que não querem seguir os esquemas dos outros, pois têm sua própria maneira de jogar, pois têm potencial para inovar, para trazer algo de original e digno de ser investigado e comentado, são colocados pelos professores no banco de 277
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reserva. Mas a comissão técnica reza que não discrimina os jogadores, que limita-se a avaliá-los neutra e objetivamente! Se ela desaprova sistematicamente – e às vezes até persegue – aqueles que tentam desenvolver um estilo de jogo próprio, não é por ela ser por princípio contrária a qualquer espécie de inovação, é por simplesmente faltar a eles vocação! 495 A nossa comissão técnica precisa conscientizar-se da sua função... Ela precisa aprender que o seu dever não é impedir os seus jogadores de jogarem... Pelo contrário, o seu dever é justamente transformá-los em craques, o que se faz abrindo espaço para que desenvolvam os seus talentos – e não obrigandoos a repetir os esquemas táticos alheios; e não ensinando que sentar no banco de reserva e assistir ao espetáculo é jogar futebol, ao passo que entrar em campo e jogar futebol não é jogar futebol; e não despertando neles repulsa pelo futebol! 496 O que falta para que surja um pensamento filosófico genuíno aqui no Brasil não são craques. São técnicos empenhados em estimulá-los e potencializá-los – não em humilhá-los, não em reduzi-los a espectadores ou historiadores do futebol, não em massacrá-los psíquica e institucionalmente caso ousem correr sobre as próprias pernas e jogar com os próprios pés. 497 O que falta para que surja um pensamento filosófico genuíno aqui no Brasil não são conhecimentos, são princípios. O Brasil
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precisa de técnicos que valorizem os seus craques: de técnicos que queiram transformá-los não em reservas e sim em titulares. 498 É uma ingenuidade achar que os gênios estão fadados a virar gênios apesar dos entraves que os cercam... Alguns conseguem superá-los, sem dúvida. Mas por que outros não sucumbiriam? E por que as paredes não poderiam ser suficientemente firmes para fazer com que todos sucumbissem? A comissão técnica realmente dispõe de poder para gerar estragos. Não se deve subestimá-la. Ela pode excluir bons jogadores de campo – só por serem bons... Ou então ela pode fazê-los perderem tempo demais lutando pelo óbvio (a saber, que os técnicos deveriam esforçar-se para facilitar e não dificultar os seus caminhos), impedindo que se dediquem a outras questões... 499 As diretrizes da atual comissão técnica brasileira são extremamente salutares para quem não tem nada a dizer. 500 De fato, não pega bem aqui no Brasil ter – ou mesmo querer ter – ideias próprias. O indivíduo que se esforça para desenvolver suas sacações é reinterpretado como um ser ao mesmo tempo ingênuo e arrogante... Ele não está desenvolvendo nada de novo, apenas reinventando a roda... “É lamentável que alguns historiadores da filosofia, ilustres e de indiscutível valor em sua área de pesquisa, nos tenham querido fazer acreditar que se pôr a filosofar pressupõe a crença na própria genialidade. Nada conheço de mais castrador do que essa tese, quando 279
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arremessada sobre a cabeça de um jovem que se propõe a estudar e praticar a filosofia. Mas ela é falsa. Ela é tão falsa em filosofia quanto é obviamente falsa em qualquer outro ramo do saber teórico ou prático dos homens.”34 De fato, não importa o quão originais sejam as suas ideias. Elas simplesmente não são originais. Elas necessariamente não são originais. Seriam caso tivessem se originado de um pensador europeu ou norteamericano – e nesse caso, nem precisariam ser tão boas. Mas como ele é brasileiro... Ah, quanta prepotência em querer filosofar como um estrangeiro! Ele precisa aprender o lugar dele... E o lugar dele é fora da universidade! 501 Quando se trata de colocar ideias filosóficas no papel, uma excelente maneira de reduzir enormemente a dificuldade dessa tarefa consiste em seguir trilhos previamente estabelecidos. Há pelo menos duas formas diferentes de fazê-lo. A primeira consiste em simplesmente comentar as ideias de outrem, reconstituindo passo à passo a sua aventura reflexiva. A segunda consiste não em encaixar os próprios pés nas pegadas alheias, mas em continuar a reflexão a partir do ponto em que ela foi deixada. Isto é, consiste em pegar a bandeira largada no chão, erguê-la no ar e retomar a caminhada. Mas o ato de colocar trilhos no chão pela primeira vez envolve uma espécie de prazer totalmente diferente. Aliás, é possível que algumas pessoas considerem o trabalho de colocar trilhos no chão até mais fácil do que seguir um caminho já traçado. Pois ao fazê-lo não é preciso tomar cuidado para não sair da linha, por assim dizer. As chances de perder o tom, de desviar-se do caminho, de
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trair a intenção original são muito menores, nem existem. Caso se perca o fôlego necessário para continuar andando, caso se perca o fio da meada ou caso a atmosfera fique turva e dificulte a visão, não haverá, sem dúvida, trilhos previamente construídos aos quais recorrer. Será preciso decidir por si mesmo entre contornar ou saltar o obstáculo à frente, entre virar à direita ou à esquerda na bifurcação, entre subir em direção ao planalto ou descer em direção ao vale para continuar a aventura. No entanto, algumas pessoas preferem decidir as coisas por si mesmas ao invés de seguir as pegadas alheias. Por causa de sua natureza pessoal, para elas pode inclusive ser até mais fácil fazer o seu caminho particular do que refazer um caminho já feito. 502 Talvez se pense que, do ponto de vista da consciência interior, não haja nenhuma diferença significativa entre os dois processos. Pois seguir trilhos previamente estabelecidos requer no fundo o mesmo esforço aventureiro de descoberta envolvido no ato de colocar trilhos no chão pela primeira vez. Isto é, talvez as refeituras de caminhos sejam essencialmente feituras de caminhos, senão do ponto de vista das outras consciências, ao menos do ponto de vista da própria consciência. Contudo, também é possível sustentar a mesma coisa, a saber, que não existem grandes diferenças entre os dois processos, mas exatamente pelo motivo contrário. Talvez as feituras de caminhos sejam essencialmente refeituras de caminhos, senão do ponto de vista da própria consciência, ao menos do ponto de vista das outras consciências.
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503 Então, começamos afirmando que é mais fácil seguir trilhos e refazer caminhos do que colocar trilhos no chão, do que fazer caminhos. É mais fácil revisitar trajetórias reflexivas do que inaugurá-las. No entanto, logo consideramos a possibilidade de que a tarefa de inauguração seja por outras pessoas experimentada como mais fácil do que a tarefa de revisitação ou perpetuação. A primeira afirmação, por assim dizer, encontrou a sua contraparte geométrica. De fato, é possível partir de “É mais fácil perpetuar um caminho do que inaugurá-lo” e por um procedimento totalmente mecânico, totalmente geométrico, chegar a “É mais fácil inaugurar um caminho do que perpetuálo”. Não é sequer necessário imaginar as razões substantivas pelas quais a proposição oposta à proposição original exibe também plausibilidade. As razões podem ser buscadas depois de ter sido feita a operação geométrica. Talvez seja até interessante fazer a operação geométrica caso não se consiga imaginar a plausibilidade da proposição oposta. A operação geométrica funcionará, nesse caso, algo como uma intervenção cirúrgica, abrindo espaço, por meio de um procedimento mecânico, por meio de um procedimento poético, para um universo diferente de pensamentos, um universo cujo acesso encontrava-se antes bloqueado pelo tom rígido e inconversável da proposição original. Ou talvez não para um universo diferente, apenas para um repertório expressivo diferente, isto é, para formas diferentes de veicular os mesmos pensamentos.
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Apêndice
Carta aos estudantes
Carta aos estudantes
Caros estudantes, Logo depois de ter resolvido me afastar da escola, fiquei com vontade de sentar para lhes escrever explicando o que havia acontecido – e, acima de tudo, criticando a burocracia. Sim, a burocracia. Mas vários inconvenientes me forçaram repetidamente a adiar essa tarefa – e o maior deles, mais uma vez, foi a necessidade de resolver, primeiro, uma série de problemas burocráticos. Essa demora, no fim das contas, mostrou-se positiva, porque me permitiu compreender de forma bastante clara que há temas mais importantes sobre os quais escrever do que a burocracia – como, por exemplo, a diferença entre fazer o que é o certo e fazer o que as regras mandam. Os dois temas, na verdade, estão intimamente ligados, porque a primeira coisa que as pessoas excessivamente apegadas à burocracia precisam aprender é que para fazer a coisa certa do ponto de vista ético às vezes é necessário quebrar as regras, às vezes é necessário contorná-las, driblá-las ou pura e simplesmente ignorá-las. Aliás, às vezes é necessário agir na mais absoluta ilegalidade, como corajosamente fizeram, por exemplo, Antônio Bento, Oskar Schindler e mais recentemente Ana Paula Maciel. Por conta da forma mais digna como os cidadãos que se elevam acima da média são tratados nos países ricos, a história de Schindler é muito mais conhecida do que a de Antônio Bento
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ou a de Ana Paula Maciel. Atualmente, Schindler é considerado um herói. Mas o fato é que, em seu tempo e em seu meio, ele agiu de maneira totalmente ilegal. Ele agiu como um criminoso. Mais do que um criminoso, ele agiu como um criminoso de guerra, o que, em geral, é algo considerado ainda mais grave. O fato de que ele estava fazendo a coisa certa dificilmente seria compreendido e aceito pela maioria das pessoas do seu tempo. As autoridades alemãs da época, se tivessem descoberto suas atividades, teriam tratado Schindler como um traidor, como um criminoso da pior espécie – e provavelmente ninguém teria aberto a boca para defendê-lo. No mínimo, ele teria sido preso. Talvez até acabasse sendo fuzilado. Não obstante, ninguém diria hoje que Schindler cometeu um grave erro ao agir de forma ilegal. Ninguém diria (ou melhor, ninguém que mereça atenção) que ao invés de agir na ilegalidade, ele deveria ter feito uso dos meios aceitos, dos meios normais, dos meios legais disponíveis para proteger a vida das pessoas perseguidas pelo nazismo, se é que eles existiam. Ninguém diria que ele deveria antes ter tentado mudar as leis vigentes na Alemanha da época ou ter expresso publicamente as suas discordâncias em relação ao regime nazista nos meios de comunicação. É claro que uma mudança no plano legal teria sido excelente. Mas é preciso compreender que as chances que Schindler tinha de mudar a legislação nazista não eram pequenas, eram nulas. Então, mesmo tendo agido na ilegalidade, mesmo correndo grandes riscos, parece perfeitamente defensável que ele agiu da forma mais inteligente possível. Assim, não tem o menor sentido o que o Instituto Royal, declarou em seu comunicado depois da ação que levou à sua decisão de fechar as portas. Na madrugada do dia 18 de outubro de 2013, uma data que deveria se tornar feriado nacional e ser ruidosamente celebrada, um grupo de ativistas invadiu a unidade do Instituto Royal da cidade de São Roque, 288
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interior de São Paulo, libertando 178 cães da raça beagle usados em experimentos. Tentando passar-se por vítima, o Instituto Royal afirmou que: É inquestionável o direito de todo cidadão ou instituição expressar suas opiniões e propor à sociedade brasileira o debate sobre temas de interesse público. Não se pode anuir, contudo, com as atitudes de violência que cercaram os episódios envolvendo o Instituto Royal. Uma sociedade organizada e civilizada não pode aceitar que a pesquisa científica seja constrangida por grupos de opinião que preferem o uso da força e da violência em detrimento das vias institucionais e democráticas para travar debates.1 O problema é justamente que as pessoas são fortemente encorajadas a esquecerem a diferença entre a lei e a ética. Elas acham equivocadamente que quebrar a lei é sempre errado do ponto de vista ético e que seguir a lei é sempre certo. Essa visão das coisas, por mais difundida que ela seja, por mais natural que ela pareça, é completamente absurda. Como professor, sempre achei de fundamental importância combatê-la. Eu estou do lado da ética, não do lado da lei. Acho que precisamos fazer o que é certo, não o que a lei diz que é certo. O fato de que o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA) tinha autorizado as atividades do Instituto Royal não significa nada. Em especial, não significa que o Instituto Royal estava certo. Pelo contrário, significa, no máximo, que o CONCEA é um conselho também corrupto. Nenhuma instituição deixa de ser corrupta só por serem as suas atividades autorizadas por um conselho corrupto. Então, se para fazer o que é certo precisarmos quebrar a lei, estaremos plenamente justificados 289
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em quebrá-la. Haverão consequências, sem dúvida. E elas poderão não se limitar ao fato de que a maioria das pessoas irão reprovar a nossa atitude, firmemente convictas de que fizemos uma coisa não só legalmente errada, mas também eticamente errada. Então é altamente recomendável fazermos um bom uso da massa encefálica que carregamos em nossa caixa craniana antes de partimos para a ação. Acho que foi exatamente isso o que alguns dos seus colegas fizeram. Foi simplesmente genial a ideia de ir nos supermercados informar as pessoas sobre os produtos que elas estavam consumindo. Os meus dentes rangem de tanta raiva sempre que vejo transgênicos sendo vendidos para crianças. No entanto, nunca havia me ocorrido que eu poderia ir nos pontos de venda desses alimentos extremamente venenosos e fazer algo inteligente a respeito dessa situação ultrajante. Foi por esse motivo que depois de ficar várias aulas com vocês discutindo os problemas do nosso mundo, passei para vocês a tarefa de imaginarem o que poderia ser feito para mudá-lo para melhor. É que devido ao treinamento de natureza exclusivamente intelectual que recebi nos meus tempos de formação, para mim não é lá muito fácil discernir como passar da teoria para a ação. Estou acostumado a analisar o mundo, mas não tenho a mínima ideia do que fazer para mudá-lo. Então, a iniciativa que vocês tiveram de colocar a etiqueta “O Ministério da Saúde DEVERIA advertir: os transgênicos provocam câncer e trazem diversos outros males à saúde” nas embalagens dos produtos transgênicos foi simplesmente genial. David Edwards teria ficado orgulhoso de vocês. É claro que a direção da escola nunca gostou muito de saber que eu discutia essas coisas com vocês nas minhas aulas, tampouco que eu sempre defendi que é necessário agir da maneira certa independentemente de ela estar ou não de acordo com a lei. Vez ou outra, a direção me pedia para 290
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“filosofar menos” e para me ater mais “ao conteúdo curricular”, temendo que algo grave pudesse acontecer. A direção não estava totalmente errada, porque muita coisa de fato aconteceu. Mas acho que as coisas que vocês fizeram não deveriam ser temidas. Elas são motivo de orgulho. Todas elas, inclusive as que indiretamente resultaram, no fim das contas, na série de críticas que recebi e que me fizeram decidir sair da escola. É realmente estranha essa situação em que chegamos. Para dar uma boa aula de filosofia, parece que é necessário não filosofar. Isso é um resultado direto das infinitas injustiças sociais com as quais somos obrigados a conviver diariamente. Já que na sociedade como um todo é praticamente proibido pensar, não é de se admirar que nas aulas de filosofia seja recomendado não filosofar. Quero deixar bem claro que eu não fui demitido. Fui eu que pedi demissão. Apesar do meu enorme volume de trabalho, porque, como vocês sabem, também sou professor da universidade, eu gostava, sim, de dar aula para vocês. Mas as dificuldades e os empecilhos que a direção da escola começou a me impor, em parte também para me proteger, começou a transformar os meus encontros semanais com vocês em uma atividade cada vez menos prazerosa. Eu acho uma pena ter sido forçado dessa forma estranha, isto é, sem ter sido realmente forçado, a abandonar vocês, porque acho extremamente importante e saudável criar pontes e canais de troca entre as escolas e as universidades. Para mim, ter dois empregos não era de modo algum desgastante. Pelo contrário, era revigorante. O esforço compensava. Uma parte dos meus colegas da universidade, vocês podem imaginar, me olhava com um certo desdém quando eu dizia que dava aula para vocês. Nos meus tempos de estudante, eles teriam sido a maioria. Felizmente, hoje são a minoria. Felizmente, a maioria hoje compreende perfeitamente bem que os professores universitários não são 291
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nem deveriam ser considerados superiores ou mais importantes do que os professores dos demais níveis de ensino. Mas voltemos à burocracia. Imaginemos uma mãe chegando com o filho em estado grave em um hospital. Um médico está ali, completamente disponível, sem nenhum paciente para tratar. Mas quando o médico se aproxima da criança, um funcionário do hospital intervém e diz: “Não, não... Não a examine ainda. Antes de mais nada, é preciso fazer a ficha dela.” Como alguém pode sequer achar que faz sentido deter um profissional da saúde que se aproxima de uma criança gravemente enferma ou gravemente ferida para ajudá-la? Infelizmente, porém, existem pessoas assim. A criança pode já ter perdido muito sangue, ela pode estar à beira da morte. Mas existem pessoas insensíveis que colocam a burocracia acima de tudo. Acima do bom senso, acima da vida. O pior é quando o próprio médico cruza os braços e se recusa a atender a criança até que toda a papelada esteja pronta. O pior é quando nenhum funcionário precisa detê-lo, porque ele mesmo já internalizou essa ideia absurda que coloca a burocracia acima da vida. A cega obediência às regras é capaz de transformar pequenos problemas, que poderiam ser rápida e facilmente resolvidos, em problemas gigantescos, verdadeiramente insolúveis. É preciso ter muito cuidado com a burocracia. Infelizmente, porém, já não trabalho mais com vocês. Já não posso fazer muito mais pela escola além de compartilhar com vocês essas reflexões. O futuro da escola está agora inteiramente nas mãos de vocês, estudantes, e nas mãos dos professores, da direção e dos demais funcionários, bem como, é claro, nas mãos do ambiente social em que a escola está inserida. Eu preciso dizer que nunca tive nenhum problema sério com nenhum funcionário da escola, nem mesmo com a direção. Os professores e funcionários da escola que conheci me pareceram todos cheios de boa vontade (o que é algo raro, acreditem). 292
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Esse espírito de equipe, essa predisposição para resolver os problemas da melhor forma possível, essa consciência íntima de que estamos aqui para ajudar e não para atrapalhar uns aos outros, é uma característica da escola que me marcou e que acho extremamente valiosa. Mas esse espírito está sob ameaça, em parte por causa da crescente burocratização da escola (com tantas novas regras, ela pode acabar sufocada), em parte por causa de tendências que acometem toda a sociedade. É preciso fazer um esforço enorme para mantê-lo vivo. Mas trata-se de um esforço que pode trazer resultados de valor inestimável. Infelizmente, eu me vi impedido de continuar a lecionar precisamente quando estava pronto para começar a apresentar a vocês uma série de autores clássicos e contemporâneos cuidadosamente escolhidos que criticam de forma bastante contundente vários aspectos da nossa sociedade que precisam ser duramente combatidos – que falam dos problemas trazidos pela hierarquia, que falam das injustiças cometidas pelos mais ricos contra os mais pobres, que criticam o sexismo, que criticam o racismo, que criticam o antropocentrismo. Estou seguro de que vocês, se tivessem tido a chance de entrar em contato com os textos e autores que levei meses para reunir e as atividades que levei semanas para preparar, teriam agido de forma muito mais criativa nas manifestações. Foi uma pena eu não ter podido prosseguir com as aulas, porque elas teriam proporcionado, penso eu, um arcabouço teórico valioso a todos vocês. Acho que não há nada mais belo do que essa pulsante vontade sincera de transformar o mundo que vocês cultivam. Eu estava decidido a reorientar as minhas aulas inteiramente em função da vontade de vocês. Sobretudo, eu estava decidido a fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para ajudá-los a não caírem no erro de transformar o mundo para pior na tentativa de melhorá-lo – o que, infelizmente, costuma ocorrer com grande frequência. 293
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Quase toda a minha vida universitária se passou na Universidade de Brasília (UnB), onde fui influenciado por professores formados em diferentes universidades, principalmente na Universidade de São Paulo (USP). Não tenho muito a reclamar da formação que recebi. Mas ela foi uma formação deficiente em um ponto que hoje, graças a vocês, considero de extrema importância. Os meus professores não fizeram nada para me mostrar como mudar o mundo. Assim, esse desejo de mudar o mundo que em mim também era bastante forte quando entrei na universidade, aos poucos começou, por falta de atenção e estímulos adequados, a apagarse. Como essa vontade só voltou a crescer dentro de mim depois que fui contaminado pelo entusiasmo de vocês, eu precisei pesquisar os autores que defendem a necessidade de fazermos transformações radicais da sociedade quase inteiramente por mim mesmo. Talvez a minha experiência não possa ser generalizada, mas tenho a forte impressão de que os cursos de humanas, talvez com a exceção dos cursos de pedagogia e de serviço social, têm um efeito desastroso sobre a vontade dos estudantes de mudar o mundo. Geralmente, eles entram na universidade cheios de entusiasmo revolucionário e saem preocupados apenas com os seus próprios bolsos, com os seus próprios salários. Essa é uma atitude compreensível; triste e preocupante, mas compreensível. Imagino que depois de anos e anos vendo que ninguém se preocupa conosco, é quase natural internalizarmos esse mesmo descaso e não nos preocuparmos com ninguém. A filosofia, além do mais, por obrigações curriculares, desvia sistematicamente a nossa atenção de assuntos prementes, contribuindo para a perpetuação da colonização cultural. Embora a vontade sincera de mudar o mundo para melhor seja bela, ela costuma sofrer ataques de todos os tipos dentro do âmbito universitário. Nas instituições universitárias por 294
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onde passei, ela é ridicularizada, ela é taxada de ingênua, ela é negligenciada como se não tivesse importância – quando, na verdade, ela deveria ser respeitada, admirada e cultivada. Além do mais, a universidade é uma instituição pública financiada pela população em geral. Não há nada mais difícil de entender do que o fato de que ela frequentemente mata a vontade dos estudantes de fazerem algo pelo mundo onde vivem. Infelizmente, porém, os cursos de ciências biológicas costumam, depois de alguns semestres, deixar os estudantes insensíveis para com os outros seres vivos, e os de humanas, incluindo o curso de filosofia, costumam, analogamente, deixálos insensíveis para com os problemas da sociedade como um todo. Mas é justamente o caminho inverso que é preciso trilhar. Chega de insensibilidade. Já deveria estar mais do que claro para onde ela conduz. Mas a tarefa de mudar o mundo para melhor não é nada simples. Essa vontade de fazer coisas significativas, em si mesma louvável, pode ser facilmente cooptada, distorcida e usada para a finalidade exatamente oposta. Andei lendo, por exemplo, um autor africano muito aplaudido e elogiado, Henry Muoria. No livro Writing for Kenya, Muoria diz: “Encontrar uma boa fonte de dinheiro, portanto, traz bastante alegria. Essa fonte pode ser [encontrada] em empresas de pessoas brancas ou de outras pessoas.”2 Temos aqui, no meu entender, um exemplo perfeito do que vem a ser uma tentativa malograda, malogradíssima, de transformar o mundo para melhor. Pois a verdade é que os brancos aos quais se refere Muoria dedicaram e ainda dedicam imensos esforços para arruinarem os povos africanos – e ao mesmo tempo para gerarem a impressão de que sempre tentaram ajudá-los, só que inutilmente, porque os africanos são simplesmente incorrigíveis. Um professor que tive na Alemanha, comentando um artigo publicado no Spiegel, um dos mais críticos dos periódicos
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alemães de grande circulação, disse que são enviados cem bilhões de euros anualmente para os países pobres – mas ainda assim os imigrantes continuam descortês e inexplicavelmente tentando, aos montes, entrarem e se estabelecerem no território europeu. Ele não conseguiu me mostrar a fonte exata de onde colheu essa informação e eu também não fui capaz de encontrála. Mas sendo aquela informação correta ou não, sendo aquele valor acurado ou não, permanece o fato de que as opiniões do meu professor, por mais estranhas que pareçam, por mais estranhas que sejam, não são nada excêntricas dentro do contexto da mentalidade alemã em particular e da mentalidade europeia em geral, mesmo a mais de esquerda: elas refletem acuradamente o que a população europeia bizarramente pensa ser a mais pura e simples verdade, a saber, que os países ricos ajudam contínua e incansavelmente os países pobres, mas, por um motivo misterioso, sempre inutilmente. Parece haver algo na natureza dos países pobres que os impede de avançar, mesmo recebendo tantos e tantos auxílios. Mas será que os países ricos simplesmente “enviam” essa quantidade extraordinária de dinheiro para os países pobres de forma totalmente generosa e desinteressada? Consideremos a União Europeia, por exemplo. Como pode a União Europeia se dar o luxo de simplesmente “enviar” dinheiro para os países pobres quando os seus países membros estão entrando, um após o outro, em profundas crises econômicas? Não faz nenhum sentido. Suspeito que o meu professor não estava errado e que os países ricos enviam, sim, bilhões de euros anualmente para os países pobres. Só que não se trata de doação desinteressada, não se trata de altruísmo. Uma parte desse dinheiro consiste em empréstimos para a compra de produtos de empresas europeias e para a contratação de serviços oferecidos por empresas europeias – assim o dinheiro coletado junto à população europeia sob a forma de impostos e enviado aos países pobres
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volta imediatamente para a Europa, só que agora não para a população como um todo e sim para empresas específicas. Além do mais, como a quantia não é doada e sim emprestada (fato que o verbo “enviar” não deixa claro), os governos dos países pobres, que acabaram de reenviar o dinheiro de volta para a Europa (comprando seus produtos e contratando seus serviços), precisarão, num futuro não muito distante, fazer uma segunda remessa, dessa vez muito mais volumosa (por causa dos juros) e sem receber nada em troca (nenhum produto, nenhum serviço). As dívidas contraídas pelos países pobres chegam a ser tão altas que eles precisam fazer empréstimos para pagá-las. Em suma, o montante enviado aos países pobres volta imediatamente sob a forma de compra de produtos e de contratação de serviços e torna a voltar mais tarde sob a forma de pagamento de dívidas. Como os países pobres podem se deixar enganar dessa forma? Como eles podem ainda acreditar que os países ricos estão tentando ajudá-los? Evidentemente, os governantes dos países pobres não perdem nada nessas negociações; pelo contrário, costumam ganhar (e muito). É a população em geral que perde (e muito), especialmente a dos países pobres, mas também a europeia. Na Université Félix Houphouët-Boigny, situada no bairro de Cocody, em Abidjan, a capital econômica da Costa do Marfim, eu vi algo que talvez exemplifique bem como o dinheiro “enviado” pelos países ricos é empregado. Lá foram instalados uma série de painéis solares que paradoxalmente geram energia não para a universidade como um todo, apenas para dois micro-onibuzinhos elétricos de circulação interna que, não obstante, quase ninguém usa. Sem sombra de dúvida, a tecnologia não é marfinense. Os painéis solares foram importados e instalados com mão de obra seguramente também importada. De acordo com um amigo que lá estuda, o projeto custou dois milhões de euros. A julgar pelo fato de 297
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que a Universidade de Cocody não tem ainda biblioteca, tratase de um investimento vultuoso e estranhíssimo. De onde veio essa soma? Talvez tenha vindo dos impostos pagos pela população marfinense, talvez tenha vindo de impostos pagos pela população europeia. Tanto num caso como no outro, o dinheiro foi direto para o bolso da empresa que vendeu seus produtos e serviços. No segundo caso, ele voltará ainda uma segunda vez, em uma quantia ainda maior por causa dos juros, para os cofres da União Europeia. É possível que os governantes marfinenses e o reitor da universidade tenham sido enganados, mas é improvável. O mais provável é que a população em geral tenha sido enganada por uma associação perfeitamente em ordem do ponto de vista legal, mas ainda assim profundamente criminosa sob todos os outros pontos de vista, entre a empresa que forneceu os painéis solares e os governantes da Costa do Marfim. Eu não sei direito como essas coisas funcionam, mas tenho certeza de que se tudo aquilo que fosse imoral fosse também ilegal, estaríamos aqui diante de um crime merecedor da pena máxima. O que eu sei é que os maiores criminosos do planeta são inteligentes e cínicos o suficiente para pintarem as suas manobras com as cores da generosidade e da boa vontade. Às vezes penso que deveria ter estudado um curso como o de direito, de ciência política ou de relações internacionais, que provavelmente teriam me habilitado a compreender melhor essas redes de estelionato que operam em escala mundial. Mas eu escolhi, ao contrário, o curso de filosofia, que, mesmo com todas as suas imperfeições, seguramente me ajudou a olhar a mentalidade dominante com desconfiança. “Portanto, são as coisas más dentro das pessoas que impedem o nosso país de se desenvolver e que causam infelicidade”, diz Muoria no mesmo livro.3 Os europeus aplicam toda a sua inteligência para subjugar e manter subjugado um 298
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continente inteiro – e a culpa de toda a miséria sofrida pela África desde que foi colonizada até os dias de hoje não é dos europeus, é dos africanos. Eles não pensam (logo, precisam de europeus para pensarem por eles) e os seus políticos são corruptos (logo, precisam da ajuda dos europeus para tomarem as decisões administrativas certas). E como se não bastasse, a solução proposta por Muoria, a solução que ele tenta enfiar na cabeça dos seus conterrâneos, é que eles precisam se converter ao cristianismo e trabalhar (preferencialmente) nas empresas dos brancos. Em outros momentos, ele defende de forma completamente anencéfala que o desenvolvimento é algo a ser desejado e que o crime contra a propriedade é algo a ser combatido. Não é de se admirar, portanto, que ele seja celebrado. Se eu fosse um empresário branco residindo na África negra, eu faria de tudo para garantir que o pensamento de Muoria fosse ensinado nas escolas e que todas as famílias recebessem os seus escritos em edições de capa dura. Agora comparem as palavras de Muoria com as seguintes palavras de Anuradha Mittal que podem ser encontradas numa entrevista concedida a Derrick Jensen: Do total de 830 milhões de pessoas famintas no mundo, um terço vive na Índia. No entanto, no ano de 1999, o governo indiano tinha 10 milhões de toneladas excedentes de grãos: arroz, aveia e assim por diante. No ano 2000, esse excedente subiu para quase 60 milhões de toneladas – mas a maior parte ficou apodrecendo nos galpões. (...) Ao mesmo tempo, o governo da Índia comprava grãos da empresa Cargill e outras corporações norte-americanas, porque a ajuda que a Índia recebe do Banco Mundial determina que o governo deve proceder assim. Isso significa que 299
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hoje a Índia é o maior importador do mesmo grão que exporta. (...) Essa situação não ocorre apenas na Índia.4 O contraste entre a filosofia de Muoria e a filosofia de Mittal é gritante. Desde a nossa infância até o momento em que entramos na universidade, somos fortemente treinados a pensar como Muoria. E frequentemente saímos da universidade pensando como Muoria, carregando na ponta da língua versões talvez mais sofisticadas, mas igualmente superficiais, do seu discurso em defesa do desenvolvimento e da civilização. É extremamente difícil perfurar e desvencilhar-se dessa forma de pensar exemplificada por Muoria e repetida e glorificada continuamente em todos os meios de comunicação. Ela está profundamente enraizada em nossos corações. E o pior de tudo é que os meios de comunicação acabam por amalgamála ao nosso desejo sincero de mudar o mundo, canalizando toda a nossa boa vontade e todas as nossas energias para ser posta à serviço do desenvolvimento do país. Acontece, porém, que embora esse desenvolvimento seja apresentado como se fosse positivo para toda a população, ele é, na verdade, positivo apenas para as elites econômicas. O crime organizado está no poder. Ele está nos matando lentamente com a nossa própria ajuda. Talvez se pense que a expressão “mudar o mundo” precise ser complementada por “para melhor”, porque nem toda mudança é para melhor (pelo contrário). Mas o fato é que a expressão “mudar o mundo para melhor”, por si só, também não resolve o problema, porque é possível ter visões radicalmente opostas do que vem a ser melhorar o mundo, como é o caso, por exemplo, das visões de Muoria e de Mittal. As ideias de Muoria são tão superficiais e grotescas que fica até difícil acreditar que elas realmente tenham sido defendidas de forma sincera por 300
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uma pessoa de carne e osso, isto é, que Muoria não foi pago, por baixo dos panos, para escrever tudo aquilo que escreveu. Contudo, a realidade é bem pior do que parece. A maioria das pessoas, a esmagadora maioria das pessoas, especialmente antes de entrar na universidade, mas também muitas vezes depois de uma longa formação, pensa de forma não muito diferente da de Muoria, algumas com mais sofisticação (o que não é nada difícil), outras com menos (na medida em que isso é possível). No que tange ao ponto essencial da questão, que é o posicionamento frente ao desenvolvimento, é raro encontrar quem o critique. Até mesmo nas universidades, onde os rumos da nossa sociedade deveriam ser sistematicamente discutidos, é difícil encontrar alguém que esteja ao lado de Mittal e não de Muoria. Na verdade, a diferença essencial entre os estudantes de humanas e os de exatas costuma ser que os primeiros saem da universidade carregando na ponta da língua discursos um pouco mais sofisticados do que o de Muoria, mas só um pouco mais, e os de exatas com frequência saem pensando exatamente como ele. Se depois de formados eles tiverem a sorte de poder atuar de forma significativa no mundo circundante, quase com absoluta certeza irão mudá-lo para pior. Para mim, como professor, não há nada mais importante do que mostrar aos meus estudantes que mudar o mundo no sentido de Muoria é mudá-lo para pior, e que se quisermos genuinamente mudar o mundo, se quisermos sinceramente melhorá-lo, precisaremos nos aliar a pessoas como Mittal. Tudo o que tenho a dizer, portanto, pode ser dito em poucas palavras: critiquem o time de Muoria, entrem para o time de Mittal. Essa mensagem, por mais simples que possa parecer, é extremamente difícil de transmitir. É praticamente impossível deixá-la clara em apenas uma aula e acho que até mesmo um semestre inteiro pode ser insuficiente para comunicá-la de maneira adequada. É por isso que acho que os autores que eu 301
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havia selecionado e as atividades que eu havia preparado para o primeiro semestre de 2013 teriam ajudado os meus estudantes a se posicionarem de forma mais radical nas manifestações de junho de 2013, lutando não por ideais acríticos, para não dizer asquerosos, como os de Muoria, mas por ideais autênticos e bem informados, como os de Mittal. É impossível dizer em uma pequena carta tudo o que eu queria ter dito ao longo de um semestre. E quem conhece o meu interesse pela ecofilosofia talvez esteja se perguntando porque não falei nada aqui sobre as questões ambientais. Acontece, na verdade, que o desenvolvimento é o maior inimigo do meio ambiente – e de toda a vida, inclusive a humana, sob todas as óticas e perspectivas possíveis. Amparadas pela ideologia do desenvolvimento e do progresso, as grandes empresas e corporações estão destruindo o mundo. Em nome desse monstro que é a civilização, as nossas vidas estão sendo jogadas no lixo. É bastante compreensível, portanto, que figuras sensíveis e de inteligência acima da média, como Theodore Kackzynski, tenham resolvido dar o troco. A sociedade não conseguiu condená-lo à morte, como aconteceu com Sócrates, mas o fato de que foram despendidos enormes esforços para calá-lo mostra seguramente que ele tem algo de importante a dizer. Já é hora de terminar. Não posso mais do que oferecer essas breves indicações aqui para vocês. Se vocês se sentirem fisgados, sigam as pistas que deixei. Embora esteja seguro de que omiti aqui várias coisas extremamente importantes, acho que, pelo menos, essa bússola poderá levar vocês a se aprofundarem nessas questões seguindo a direção certa: lutem contra o time de Muoria, entrem para o time de Mittal. E estudem também o discurso do time adversário. Como eu sempre disse aos meus estudantes, não basta ler os textos bons, é preciso também ler os textos ruins. É preciso saber identificar o discurso do time 302
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adversário, é preciso saber criticá-lo. Dissecá-lo é uma maneira excelente de deixarmos os nossos instrumentos críticos mais afiados. Sei que eu não tinha obrigação nenhuma de lhes escrever. No entanto, eu não podia deixar barato o ultraje que sofri não por ter sido injustamente demitido, mas por ter sido obrigado a pedir demissão em virtude da insalubridade trazida pela burocracia a um ambiente de trabalho antes tão rico, flexível e prazeroso. Seja como for, quero pedir desculpas por ter parado para escrever essa carta somente agora, muitos meses depois de ter pedido demissão. Foram vários os motivos que me levaram a demorar tanto. Primeiro, eu tive que me recuperar do estresse emocional que sofri e que inadvertidamente provoquei nos outros – e que me fez, no fim das contas, decidir sair da escola. Também tive que reorganizar inteiramente a minha vida. Desculpem-me pelo atraso, portanto. E espero que o tempo despendido na leitura destas reflexões não tenha sido sentido, no fim das contas, como puro tempo perdido.
Até a próxima, Murilo Seabra.
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Notas 1
Ver . 2
MUORIA, Henry (orgs. MUORIA-SAL, Wangari, FREDERIKSEN, Bodil, LONSDALE, John & PETERSON, Derek). Writing for Kenya: the life and works of Henry Muoria. Ed. Brill. Leiden, 2009. A tradução é da seguinte passagem: “To find a good source of money therefore brings great joy. Such a source can be [found] in white people’s companies or in other people’s companies.” (PDF, p.143). 3
MUORIA, Henry. Writing for Kenya: the life and works of Henry Muoria. A tradução é da seguinte passagem: “Therefore, the evil things inside people are what cause our country not to develop, and cause unhappiness.” (PDF, p.155). 4
JENSEN, Derrick. Resistance against empire: interviews. Ed. PM. Oakland, 2010. A tradução é da seguinte passagem: “Of the 830 million hungry people worldwide, a third of them live in India. Yet in 1999, the Indian government had 10 million tons of surplus food grains: rice, wheat, and so on. In the year 2000, that surplus increased to almost 60 million tons – most of it left in the granaries to rot. (...) At the same time, the government of India was buying grain from Cargill and other American corporations, because the aid India receives from the World Bank stipulates that the government must do so. This means that today India is the largest importer of the same grain it exports. (...) This situation is not unique to India.” (PDF, p.133).
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Créditos das ideias
Créditos das ideias
As reflexões sobre a metafísica da inovação e a metafísica da repetição foram desenvolvidas em discussões com Marcos Pinheiro. As reflexões sobre as piadas foram desenvolvidas a partir de discussões com Marcos Pinheiro e Jorge Alam. As reflexões sobre Iemanjá e Nossa Senhora foram desenvolvidas a partir de discussões com Marcos Pinheiro, Jorge Alam e Mauro William Barbosa Almeida. As reflexões sobre as lutas simbólicas foram desenvolvidas em discussões com Marcos Pinheiro, Jorge Alam e Julio Cabrera. As reflexões sobre a novidade e a originalidade foram desenvolvidas a partir de discussões com Marcos Pinheiro, Jorge Alam, Gabriel Antunes, Fabiano Lana, Roberto Sobral, Laurenio Sombra, Wanderson Nascimento, Vinícius Saldanha, Rafael Reis, Olavo Leopoldino Silva, Julio Cabrera e Hilan Bensusan.
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As reflexões sobre a história da historiografia foram desenvolvidas em discussões com Raphael Almeida. As reflexões sobre os e-mails e a sensação de estar à vontade foram desenvolvidas a partir de discussões com Roberto Sobral. As reflexões sobre a colonização foram desenvolvidas a partir de discussões com José Jorge de Carvalho, Marcos Pinheiro e Julio Cabrera. As reflexões sobre o uso da primeira pessoa do singular foram desenvolvidas a partir de discussões com Felipe Amaral. Uma grande parte das reflexões reunidas aqui foram aprimoradas em discussões com o Grupo de Filosofia no Brasil e com o Grupo de Filosofia no Brasil e na América Latina (FIBRAL). Eu agradeço especialmente Dídimo Matos, Bruno Garrote, Laurenio Sombra, Marcus Valério, Fabiano Lana, Roberto Sobral, Orlene Barros, Elzahra Osman, Marcelo Guimarães, Benjamin Lima e os demais membros participativos do FIBRAL por seus estímulos. As piadas da Cidinha e do Judas não são de minha autoria. Os créditos nunca são completamente justos. Peço desculpas pelas omissões. Eu mencionei aqui somente os nomes mais presentes em minha memória.
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Mais conceitos
Mais conceitos
Aparência: §§63, 91, 92, 257, 483 Aparência epistêmica: §§92, 483 Aparência de saber: §257 ver estética do saber Arquitetura: §393 Autocrítica: §80 ver heterocrítica Autodescrição: §§349, 351 ver heterodescrição Batata quente: §§107, 481 Cabo de guerra: §§107, 481 Comunal: §§45, 154, 166, 173, 176, 177, 179, 182, 184, 186, 189, 190, 192, 194, 195, 196, 198, 199, 220, 243, 246, 269, 271, 275, 276, 277 ver linguagem comunal Critérios: §§61, 62, 63, 65, 67, 73, 103, 150, 278, 330, 334, 351, 474
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Descrição amarrada: §§356, 358 ver prescrição amarrada Descrição solta: §§356, 358 ver prescrição solta Disfarce: §§404, 405, 406, 412, 414 E-mails: §§223, 230, 233 ver sinergia intelectual Energia: §§2, 5, 6, 40, 46, 196, 197, 207, 244, 250, 257, 290, 305, 393, 394, 395, 397, 399, 411 Engenharia: §§52, 73, 183, 360 Estar à vontade: §§40, 203, 204, 215, 229, 237, 259, 266, 417 ver pulsional Estética: §§91, 92, 93, 94, 95, 96, 99 Estética da austeridade: §§93, 94 Estética do saber: §92 ver aparência de saber Flutuação: §§86, 87, 89, 90, 366 Heterocrítica: §§60, 80 ver autocrítica Heterodescrição: §§349, 351 ver autodescrição Hipercrítica: §§9, 53, 73, 77, 80, 81, 82, 325, 326, 350
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Hipercondescendência: §§9, 53, 73, 77, 80, 82, 325, 350 Iemanjá: §§43, 44, 52, 415, 417 ver Nossa Senhora Impacto: §§59, 91, 377, 378, 379, 382, 383, 384, 385, 388, 416 Implementação: §§352, 354, 358, 463 Instrumentos de análise: §§140, 144, 149, 466 ver objetos de análise Interesse: §§6, 7, 10, 14, 46, 73, 74, 93, 128, 129, 157, 159, 184, 304, 305, 350, 364, 373, 374, 377, 393, 445, 460 Linguagem comunal: §§166, 173, 177, 179, 182, 186, 189, 190, 192, 194, 195, 220, 271 ver comunal Local: §§105, 169, 174, 209 Lógica fabril: §§120, 131, 132 Luta: §§105, 120, 121, 124, 166, 253, 279, 300, 305, 318, 319, 321, 324, 372, 473, 474 Luta linguística: §§279, 300, 319, 324, 473 Luta simbólica: §§300, 319, 473, 474 Malha: §§53, 378, 388, 389 Mentalidade: §§105, 111, 114, 115, 116, 132, 142, 147, 234, 283, 296, 300, 382, 416, 489 ver sensibilidade
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Metafilosofia: §§69, 86, 95, 147, 163, 224, 226, 282, 284, 341, 346, 347, 350, 372, 489 Metafísica do acerto: §325 Metafísica do erro: §325 Metafísica da inovação: §§429, 430, 434, 435 Metafísica da repetição: §§429, 430, 434, 435 Métodos: §§118, 120, 122, 124, 126, 127, 132, 133, 134, 136, 137, 138, 300, 303, 454 ver temas Microdefinição: §§117, 294, 296 ver protodefinição Nossa Senhora: §§43, 44, 52, 415, 417 ver Iemanjá Novidade: §§2, 55, 60, 65, 69, 105, 107, 115, 118, 120, 122, 129, 130, 205, 208, 223, 257, 288, 304, 305, 320, 330, 331, 332, 333, 357, 367, 392, 418, 419, 420, 421, 429, 430, 431, 434, 435, 436, 494, 501, 502, 503 ver originalidade Objetos de análise: §§140, 144, 149 ver instrumentos de análise Originalidade: §§2, 3, 52, 53, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 64, 69, 70, 71, 72, 73, 88, 103, 195, 196, 261, 334, 338, 366, 379, 382, 418, 429, 437, 438, 479, 494, 500 ver novidade Placa: §§278, 291, 294, 297, 301, 319
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Poesia: §§93, 99, 102, 245, 393, 398, 399, 400 Prescrição amarrada: §§355, 356, 357, 358 ver descrição amarrada Prescrição solta: §§355, 356, 357 ver descrição solta Proposição amarrada: §§354 Proposição exemplificada: §§354 Proposição solta: §354 Protodefinição: §§292, 293, 295 ver microdefinição Pulsional: §§202, 203, 204, 205, 206 ver estar à vontade Qualidade: §§56, 71, 73, 103, 105, 118, 132, 146, 162, 307, 308, 436, 437, 438 Ranhuras: §§105, 369 ver retina Reconhecimento: §§2, 52, 65, 73, 130, 134, 316, 367, 479 Retina: §§91, 92, 136, 339, 350, 369, 423 ver ranhuras Sensibilidade: §§59, 91, 98, 105, 453, 471 ver mentalidade Seriedade: §§3, 60, 63, 73, 91, 92, 93, 96, 119, 173, 180, 204, 257, 275, 278, 304, 328, 333, 334, 341, 342, 382, 478, 479, 483
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Sinergia intelectual: §444 ver e-mails Solidificar: §§106, 111, 129, 473 ver volatizar Subjetividade: §§25, 158, 187, 207, 208, 233, 234, 360 Temas: §§102, 117, 118, 120, 124, 126, 127, 132, 135, 136, 137, 138, 300, 303, 307, 309, 310, 374, 454 ver métodos Volatizar: §§106, 111, 473 ver solidificar Vontade: §§73, 122, 163, 184, 275, 316, 376
Obras citadas
Obras citadas
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