A Flauta e a Lira
A Flauta e a Lira
Estudos sobre poesia grega e papirologia
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A Flauta e a Lira
A Flauta e a Lira
Estudos sobre poesia grega e papirologia
Fluir Perene www.fluirperene.com
Fluir Perene
Carlos Jesus
Colaboração Associação Portuguesa de Estudos Clássicos (APEC)
Colecção Carlos A. Martins de Jesus com prefácio de José Ribeiro Ferreira
Carlos A. Martins de Jesus
Carlos A. Martins de Jesus
A Flauta e a Lira
Estudos sobre Poesia Grega e Papirologia
Prefácio de José Ribeiro Ferreira
Colecção
Fluir Perene - nº 3
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A flauta e a lira
Índice In limine
Prefácio: Géneros e Formas Poéticas na Época Arcaica, por José Ribeiro Ferreira Grécia e Egipto: dois afluentes de um mesmo rio poético
7 9 17
A tradição iâmbica 31 Dois alvos da invectiva iâmbica 33 Devassidão em prados de flores. O fr. 196a W. atribuído a Arquíloco 47 As flechas da calúnia: Estêvão Rodrigues de Castro e a recepção de Arquíloco no Renascimento 57 Baquílides de Ceos Fama, a que tudo vê e tudo conta. Epinício 2 O Galo de Urânia. Epinício 4 Flores de canções doces como o mel. Fragmento 4 M
69 71 75 81
Novidades papirológicas Poetas gregos nas areias do Egipto: algumas relíquias papirológicas trazidas a público Quando os Gregos sofreram terrível derrota. O novo P. Oxy. 69. 4708 atribuído a Arquíloco Musas de regaço violeta. Um novo texto de Safo Narciso, o belo suicida. (Re)Leituras do mito a partir de um novo papiro
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Referências Bibliográficas Apêndice Iconográfico 3
89 93 115 119 129 139
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A flauta e a lira
In Limine O presente volume reúne um conjunto de onze ensaios sobre diferentes temas e autores da poesia grega, de Arquíloco (séc. VII a.C.) a Parténio de Niceia (séc. I a.C.), passando por Baquílides e Safo, entre outros, a todo o momento referidos. Além do primeiro texto e dos referentes a Baquílides, inéditos à data, os restantes foram recolhidos de publicações avulsas em revistas da especialidade. Eles são o resultado de quatro anos de reflexões sobre poesia grega e papirologia. Houve necessidade de os aligeirar, despojando-os de citações em grego e análises críticas mais complexas, úteis apenas a especialistas, no intento de os tornar acessíveis a um público mais vasto, interessado pelos temas da poesia grega. O primeiro ensaio põe a par textos dos poetas gregos da época arcaica com a lírica egípcia conservada, demonstrando como ambas as culturas sentiram o amor, a vida e a morte de forma bastante similar. Segue-se um conjunto de três estudos sobre o iambo grego, em especial dedicados a Arquíloco de Paros, mas também, por analogia temática, a Hipónax de Éfeso (séc. VI a.C.). Apreciados lado a lado os fragmentos de ambos os poetas, na intenção satírica e invectiva que os une, no primeiro ensaio, parte-se para a tradução e análise literária de um dos mais valiosos achados papirológicos do séc. XX – no que à poesia grega diz respeito –, o conhecido Papiro de Colónia atribuído a Arquíloco, que constitui o mais extenso exemplo de invectiva iâmbica que conservamos, o mais acutilante e erótico poema desse género, aceite que seja a sua atribuição. No estudo seguinte, procurámos reflectir sobre a fortuna da lenda de Arquíloco e dos Licâmbidas, para chegar ao Renascimento e ver como, ainda nesse período, ela inspirou, poetica e pictoricamente, diversos autores apostados no cultivo 5
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da sátira, com destaque para Estêvão Rodrigues de Castro, médico e poeta dos séculos XVI e XVII. Avançamos para a poesia epinícia, tratando de três pequenos textos conservados de Baquílides de Ceos (sécs. VI-V a.C.), de quem a tradição diz ter sido sobrinho do grande poeta Simónides e um dos rivais do famoso Píndaro de Tebas. Embora breves na sua extensão, os poemas revelam bem a genialidade da arte alusiva e pictórica do seu autor, uma poesia fluente e fina na metáfora e na descrição. Num último momento, discorremos sobre as novas tecnologias de imagem aplicadas ao estudo de papiros tidos como irremediavelmente perdidos, dando notícia dos principais achados, nesse domínio, que nos últimos anos vieram a público. É nesse sentido que nos ocupamos de mais um texto, desta feita elegíaco, atribuído a Arquíloco (P. Oxy. 69. 4708), publicado apenas em 2005, bem como do novo poema de Safo que pôde finalmente ser reconstruído. Para terminar, entrecruzam-se mito e poesia, e eis que um outro achado (P. Oxy. 69. 4711) vem trazer uma nova luz sobre a lenda do mais formoso dos heróis, Narciso, que Ovídio dizia ter-se deixado morrer em contemplação da própria beleza, reclinado sobre um límpido regato. A encabeçar estes textos, o Prof. José Ribeiro Ferreira aceitou integrar um prefácio sobre as circunstâncias formais da poesia grega arcaica, um texto rico e elucidativo do fenómeno poético grego, útil a especialistas, estudantes e público em geral. Por isso, muito lhe agradecemos. Quando abreviados, autores e obras antigas seguem as siglas de H. G. Liddell - R. Scott, H. Stuart Jones, A Greek-English Lexicon (para os gregos) e de P. G. W Glare, Oxford Latin Dictionary (para os latinos). As publicações periódicas vêm identificadas segundo as siglas de L’Année Philologique. Coimbra, Maio de 2008 Carlos A. Martins de Jesus 6
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Prefácio Géneros e Formas Poéticas na Época Arcaica Primeira forma de transmissão da cultura, a poesia gozou de grande dignidade entre os Gregos. Basta recordar que surge da inspiração das Musas e que estas são filhas de Zeus e de Mnemósine – a Memória. Por outro lado, os autores antigos, em especial Platão, atribuíam, por um lado, aos poetas o papel de «pais e guias da sabedoria» (Lísis 214a) e consideravam que ser entendido em poesia era a parte primacial da educação do homem (Protágoras 338e). A poesia grega arcaica vai dar origem ao aparecimento de diversas novas formas poéticas e musicais e novos temas. De acordo com o aspecto formal e com a métrica podemos dividi-la em três espécies: poesia lírica, poesia elegíaca, poesia iâmbica. Os Poemas Homéricos e as obras de Hesíodo haviam sido compostos em hexâmetros, portanto uma sucessão do mesmo metro. A poesia elegíaca constitui a primeira tentativa de quebrar essa monotonia, já que a elegia, sob o ponto de vista formal, nos aparece como uma variante do hexâmetro, em ritmo dactílico, com a introdução do pentâmetro, e os dois, em alternância, formam o dístico elegíaco:
— ∪∪ — ∪∪ — ∪∪ — ∪∪ — ∪∪ —— — ∪∪ — ∪∪ — // — ∪∪ — ∪∪ —
hexâmetro pentâmetro
Como o pentâmetro — uma designação imprópria — é constituído por dois hemiepes, dois meios hexâmetros, com uma pausa a meio, tem razão W. R. Hardie 1934: 49 ao afirmar que a elegia nos aparece como uma variante do hexâmetro dactílico1. E essa será uma das razões por que 1 Sobre a constituição do pentâmetro como dois meios hexâmetros vide B. Snell 41982: 16.
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parece ser o dístico elegíaco o metro mais antigo de composição, a seguir à epopeia2. Um metricista francês diz com graça e acertadamente que o pentâmetro é um hexâmetro com um suspiro no meio e outro no fim. Os autores antigos, sobretudo tardios e gramáticos, ao usarem ou comentarem o termo elegia e afins — cuja possível etimologia omito, por controversa3 —, tinham sobretudo em mente aspectos formais e métricos, como está explícito neste escólio de Dionísio Trácio (p. 173.3 = 307.29): Portanto, há dístico elegíaco, quando temos um verso (stichos) hexâmetro e um pentâmetro, e elegia quando todo o poema apresenta, em alternância, hexâmetros e pentâmetros.
Assim elegeion significa “um dístico elegíaco”4. Por outro lado, o plural elegeia é de frequente uso no século V a. C. em diante para referir os dísticos elegíacos. Mas há entre os gramáticos a tendência em usar elegeion para significar “pentâmetro”. O termo elegeia (subst. fem.) aplicava-se aos poemas constituídos por dísticos elegíacos, atestado pela primeira vez em Aristóteles (Consituição dos Atenienses 5. 2 e 3), ao referir-se aos poemas de Sólon. É raro o uso da palavra elegeion para significar o tom geral, um sentido tardio que encontramos sobretudo entre os Romanos. Por exemplo, em Plauto (Mercador 409) um ancião lamenta-se de que os olhares de uma rapariga atraíam atenções indesejáveis, levando os homens a acorrerem para recitar poemas à porta: 2 Duas regras marcam o pentâmetro: uma delas reside no facto de a diérese coincidir sempre com o fim da palavra; a outra no facto de as breves da 2ª parte não poderem ser substituídas. 3 Tem-se tentado tirar do termo uma etimologia (que elegeion era “dizer ai”). Mas note-se, contudo, que o verbo lego, de início, significava “colher”. Outra teoria — que se tem proposto, mas não tem tido aceitação — deriva-a de forma elegen, uma palavra de origem arménia que significa “tubo” ou “cano”. Trata-se de uma etimologia tentadora, pois designaria o instrumento musical que acompanharia a elegia. Em resumo: em matéria de etimologia de elegia, estamos hoje na mesma posição em que se encontrava Horácio, no século I: «Grammatici certant et adhunc sub iudice his est». 4 No mesmo sentido vai uma referência de Diodoro (9. 20. 2) que, ao citar um dístico de um poema mais longo de Sólon, refere-se a ele como «este elegeion», e que ao conjunto de seis linhas do fragmento apelida elegeia.
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...................occendent ostium, impleantur elegeorum meae fores carbonibus.
Deste modo os antigos aplicavam o neutro elegeion, no singular e no plural, e o feminino elegeia à poesia em dísticos elegíacos. O aspecto formal da elegia adquire assim papel fundamental na designação. Tem razão, pois, M. L. West 1974: 4 quando escreve: «Em geral pode dizer-se que elegeion e o seu plural são usados sem restrição para designar todos os versos em metro elegíaco, quer seja alegre ou triste, quer uma inscrição em pedra, quer uma elegia literária». Quanto ao conteúdo, o tom lamentoso, triste, melancólico que já aparecia entre os Romanos — «flebilis elegeia» lhe chamou Ovídio nos Amores — e que hoje está implícito no termo elegia, não tinha relevo entre os Gregos, embora o sentido de lamento nos apareça no termo élegos, com implicações métricas ou não, já no séc. V a. C. em seis ocorrências entre 415-408 a. C.5 e numa citação de Pausânias 10. 7. 6 relativa e Equêmbroto (586 a. C.). O emprego de elegia e relacionados baseava-se fundamentalmente em aspectos métricos e formais. Não esqueço, todavia, o caso do fragmento 13 West de Arquíloco que começa por uma lamentação inicial e tem sido o ponto de apoio de muitos críticos para atribuírem esta característica à elegia desde o início. Considero que H. Fränkel 1962: 170, autor de um dos melhores tratados de literatura grega arcaica, define com clareza elegia: «é seu alvo específico a exortação, ensino e reflexão. Tem o carácter de fala pública ou semi-pública e, mesmo que se dirija a uma pessoa só, vale para todas as que se encontrarem na mesma situação». É efectivamente isto que nós encontramos de comum quer na elegia guerreira, quer na erótica, quer na gnómica. Na elegia cabiam praticamente todos os assuntos. A temática guerreira— o que chegou até nós de mais antigo (Calino e Tirteu) é 5
Eurípides, Tro. 119, IT. 146, Hel. 185, Hypsip. 1. 3. 9, Or. 968; Aritófanes, Aves 217. 9
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guerreiro— parece ser da sua total exclusividade. Tem um pendor reflexivo. Tem por função a “exortação, ensino e reflexão”. Observa F. Rodrígez Adrados que a elegia é, por antonomásia, a poesia da exortação e reflexão sobre os temas mais diversos: militares, políticos, morais, relativos ao sentido da vida, narrativos, mesmo dados autobiográficos. M. L. West 1974: 14-18 divide-a em guerreira, narrativa e gnómica — divisão que, apesar de ultimamente ter sido posta em causa, continua em minha opinião a mais adequada. Outra forma poética e musical que cedo aparece é a iâmbica, que com a elegia disputa a glória de mais antiga6. Acompanhada à flauta como a elegia, este tipo de poesia apresenta, em boa parte dos poemas e fragmentos chegados até nós, um carácter trocista fundamental. O iambo ( ∪ — ∪ —), que de certo modo estava ligado ao culto de Elêusis7, suscita muitas dúvidas, embora pareça seguro que, além desse carácter trocista fundamental, o termo iambos designa ao mesmo tempo o género e o verso. Por outro lado, não parece haver dúvidas quanto ao facto de ter sido Arquíloco a dar-lhe forma literária. A palavra aparece-nos aliás já no próprio Arquíloco num fragmento muito curto (fr. 215 West) e cujo sentido nos escapa:
Já não me agradam nem iambos nem deleites.
Aristóteles parece corroborar esta atribuição, ao referir com esse termo poemas de Arquíloco na Retórica 1418b, embora com o 6 Discute-se se a precedência recai em Calino ou em Arquíloco. Do cruzamento das referências dos fragmentos 19, 20 e 122 West podemos datar o último de meados do século VII a. C. Assim é provável que Calino seja mais antigo do que o poeta de Paros. 7 Segundo o Hino Homérico a Deméter, a deusa chegou a Elêusis em busca da filha raptada. Aproximaram-se dela as filhas do rei e, no meio da dor, a deusa riu-se com os ditos de uma criada chamada Iambé. Se por um lado o nome parece indicar qualquer coisa, por outro, os ditos causam riso. Ora o riso parece ser congénito à poesia iâmbica. Durante os Mistérios de Elêusis, a procissão que se dirigia de Atenas a Elêusis, ao passar por uma ponte, parava para proferir os gephyrismoi que eram ditos trocistas. Deviam ter um valor apotropaico e eram uma maneira primitiva de conciliar as divindades da fertilidade. De novo encontramos o elemento riso associado ao culto de Elêusis. É isto o que se julga saber em relação às origens da poesia iâmbica.
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nome de iambo designe tanto composições em metro iâmbico (os trímetros) como as escritas em tretrámetros trocaicos:
Trímetro iâmbico: x — ∪ — x — ∪ — x — ∪ — Tetrâmetro trocaico: — ∪ — x — ∪ — x — ∪ — x — ∪ — x
Além de Arquíloco, vários outros poetas usaram esta forma poética, entre eles Sólon, Hipónax, Simónides. Aos dois tipos de poesia referidos anteriormente, um terceiro se lhes vem juntar, quase pela mesma época — a poesia lírica que, com formas e ritmos variados e embora com precedentes8, só toma forma literária nesta época, no século VII a. C. Informa-nos o escoliasta a Aristófanes (Nuvens 333) que os poetas líricos cantavam os seus poemas acompanhados de coros, flautas e lira. É pelo facto de este ser o principal instrumento utilizado que recebeu no período helenístico o nome de poesia lírica. Anteriormente tinha outras designações: os autores da época clássica chamavam-lhe poesia mélica (de mêlos “melodia”) e distinguem esta poesia (que tem um grande número de ritmos) da poesia elegíaca e da iâmbica, e estas três da épica — uma distinção que vem sobretudo de Aristóteles. Platão, nas Leis 764d-e, chama chorodia à que é entoada por um coro e monodia à cantada a solo. A poesia lírica apresentava formas variadas (eide, como lhe chamavam os gramáticos helenísticos), umas executadas em honra dos deuses e outras em honra dos homens. São dirigidos aos deuses o hino que, segundo a definição de Platão, era um cântico aos deuses; o péan, nomeado já em Homero (Ilíada 1. 472-474), que começa por ser um canto dirigido 8 Por exemplo, canções populares e vários passos dos Poemas Homéricos que fazem referência a canto, quer a solo, quer em coro — formas preliterárias de poesia não épica: Ilíada 1. 472-474, os Aqueus entoam a Apolo péanes; Ilíada 9. 186, Aquiles canta os feitos gloriosos acompanhados à lira; Ilíada 18. 493, refere epitalâmios; Ilíada 18. 569-572, são referidos dois tipos de cantos (um jovem canta acompanhado da cítara e outros cantam e gritam enquanto pisam o solo a compasso); Ilíada 23, entoa-se um treno em honra de Pátroclo; Ilíada 24, trenos em honra de Heitor; Odisseia 5. 61-62; canto a acompanhar o trabalho — quando Calipso se encontrava ao tear.
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a Apolo, mas mais tarde pode ser entoado também a outros deuses; o ditirambo que, já mencionado em Arquíloco (fr. 120 West), se entoava em honra de Diónisos9; partenéion, um canto executado por um coro de donzelas (parthenos); prosódion, canto que acompanha uma procissão. Ao lado dos poemas em honra dos deuses, havia as formas consagradas aos homens que, segundo a tradição, teriam sido introduzidas por Simónides: o encómio (enkómion), elogio de um cidadão ilustre10; o epinício que celebra uma vitória desportiva nos grandes Jogos; o treno, um canto fúnebre; a “canção de mesa” ou skólion. De todas estas formas líricas, só dos epinícios temos número significativo de composições completas. Do resto apenas nos chegaram praticamente fragmentos, mais ou menos extensos. Excepção para alguns escassos exemplares, que podem ser considerados poemas completos11. Embora seja característica conhecida, e já subjacente nas notas anteriores, devemos chamar a atenção para a importância da música na poesia grega arcaica, em especial na lírica. Todas as formas eram acompanhadas por instrumentos musicais, como a lira e a flauta, e os géneros distinguiam-se pelo ritmo. Um passo de Álcman, o fragmento 39 Page, garante que o acompanhamento era feito pelo próprio poeta que também era músico, compositor e intérprete ao mesmo tempo12. José Ribeiro Ferreira 9 Não é fácil seber o que é o ditirambo. Segundo Pickard-Cambridge, tem um ritmo especial, acompanhamento à flauta e em modo frígio, um vocabulário rebuscado e um conteúdo narrativo apreciável. 10 Há quem sustente que todo o canto em honra dos homens se chama assim e que a partir dele se desenvolvem os outros. 11 É o caso, entre outros, do fr. 1 L-P de Safo, dos frs. 356a e b e 357 Campbell de Anacreonte. 12 Através dos fragmentos conservados sabemos que o péan, o ditirambo e o partenéion eram acompanhados à flauta. A elegia e o iambo, que estão fora da lírica, eram também acompanhados à flauta. Autores tardios dizem-nos que o hino era acompanhado à cítara, o prosódion era acompanhado à flauta e o hiporquema à flauta e à cítara. Quanto ao epinício era acompanhado quer por instrumentos de sopro quer de corda (lyra, kithara, fórminx, bárbiton, kitharis). Vide Pfeiffer, History of Classical Scholariship (Oxford, 1968), pp.282-283.
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Grécia e Egipto dois afluentes de um mesmo rio poético1 São de facto bastante antigos os contactos civilizacionais entre a Grécia e o Egipto, sejam eles motivados por interesses comerciais, políticos ou simplesmente pela curiosidade artística de determinado intelectual. Conta a tradição que Tales e Pitágoras haviam visitado o país do Nilo, mas foram sem dúvida Hecateu e Heródoto os primeiros a beber por essas bandas a inspiração para as suas obras de carácter histórico e geográfico. O período arcaico (séculos VII e VI a.C.), tendo como partida a cronologia relativa da civilização grega, terá sido igualmente rico em contactos entre os mundos grego e egípcio. Era a época das colonizações gregas; o exótico e o desconhecido estavam prestes a deixar de o ser2. A memória universal de que fala G. Genette, na sua concepção de um arquissistema de temas e motivos poéticos comuns que são utilizados por diferentes autores em diferentes contextos espaciais e temporais, serve de base teórica para a procura de paralelos, essencialmente temáticos, entre a lírica amorosa do Egipto do Império Novo e a lírica grega da Época Arcaica. De outro modo, as aproximações que serão feitas não assentam no pressuposto de que determinado autor grego lera ou sequer conhecera os textos egípcios que, ao seu tempo, teriam já diversos séculos. Falamos de um património comum, que 1 Este texto, ainda inédito, foi apresentado no II Congresso Internacional para Jovens Egiptólogos (Lisboa, Museu da Farmácia, Outubro de 2006). 2 Sobre os contactos civilizacionais entre Grécia e Egipto, vejam-se os estudos de M. Pulquério Futre 1995: 441-468, L. M. García Fleitas e G. Santana Henríquez 2002.
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influencia artistas em tempos muito distantes sem que, muitas vezes, dessa fonte tenham eles próprios consciência 3. O surgimento da lírica, na Grécia do período arcaico (e fixemo-nos no século VII a.C.) foi motivado por um factor que havia já sido determinante para a eclosão do lirismo amoroso no país do Nilo, durante a XVIII Dinastia e a era dos Ramsés (XIX-XX Dinastias), algures entre os séculos XIV-XI a.C.: falamos do individualismo, dessa afirmação da vontade e do sentir do eu individual e subjectivo que passa a ser a marca central das composições poéticas. Já no decurso dos Impérios Antigo e Médio as cortes faraónicas pareciam dar grande relevo ao lazer, ao divertimento da alma com a música e com a poesia. Chegados ao Império Novo, estão criadas as condições para esse eclodir da lírica de amor profana, para o qual muito terá contribuído ainda o elevado estatuto social da mulher no país do Nilo. Quando o lirismo grego inicia o seu processo de afirmação, em boa verdade, já a lírica egípcia (e oriental em geral) alcançara uma maturidade dada por séculos e séculos de cultivo. Daí que os temas e os motivos poéticos do Oriente estejam irremediavelmente presentes nas cordas da lira dos maiores poetas gregos que, ainda que de forma escassa, chegaram ao nosso conhecimento. Face à poesia grega da época arcaica, a lírica o Império Novo tem, à partida uma vantagem. Os próprios escribas do Nilo tiveram consciência da sua importância e procederam à sua compilação, o que facilita o trabalho dos estudiosos. Não que a lírica grega não tenha sido compilada, essencialmente durante o período helenístico; mas os tempos foram mais severos quanto à sua preservação, e tudo o que temos são notícias de obras vastíssimas (como é o caso de Safo, de Esta regra vale para outros géneros e para outras comparações. Veja-se o trabalho de confronto estabelecido por J. N. Carreira 1987: 87-107, ou esse outro entre o “Conto do Náufrago” e a Odisseia, levado a cabo por A. M. Mendes Moreira 2004: 355-362. 3
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quem sabemos ter sido organizada uma colectânea em nove livros), confrontadas com alguns textos maiores transmitidos e os largos milhares de fragmentos de papiro que vão sendo encontrados, que nem sempre permitem avaliar a qualidade da veia poética do seu autor. Quanto à lírica egípcia que nos importa, ela encontra-se conservada em dois extensos papiros (Pap. Chester Beatty I e Pap. Harris 500), aos quais se acrescenta o mais pequeno e fragmentário Papiro de Turim e os textos de um vaso guardado no Museu do Cairo. Também no que toca às circunstâncias de execução poética ambas as culturas se aproximam. Poesia e música são realidades indissociáveis; banquetes e festas públicas tornam-se os espaços privilegiados para a exibição dos dotes musicais e poéticos. Nestes espaços de divertimento, deve a poesia servir um fim primordial: o deleite dos convivas. Olharemos pois para o pouco extenso mas bastante rico conjunto da lírica profana do Império Novo, que lemos apenas em tradução4, a par do vasto mas por vezes confuso corpus da poesia grega arcaica, com especial destaque para autores como Arquíloco (séc. VII a.C.), Álcman (séc. VII a.C.), Mimnermo (séc. VII a. C.), Safo (séc. VIIVI a.C.), Alceu (séc. VII-VI a.C.) e Anacreonte (séc. VI-Va.C.). O erotismo, em rigor, surge do culto divino, caminhando rumo à autonomia poética. Como viria a suceder na Grécia, os deuses deixam de ser, em si, o motivo e o objecto do canto, passando com frequência a ser convocados tão só no que possam ser úteis ao desejo ou à doença amorosa do sujeito da enunciação. Devem os deuses, no fundo, servir os caprichos dos homens, atender as suas preces e escutar os seus lamentos. A divindade deve ser propiciada com vista à obtenção do favor do amado ou da amada, daí que lhe sejam compostos hinos. Hathor, a Dourada, era a mais antiga divindade feminina do panteão 4
Seguimos, salvo casos pontuais, a tradução de L. M. Araújo 1995: 270-300. 17
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egípcio, a deusa do amor e da fertilidade, por estas características só comparável à Afrodite grega. Num texto do Papiro Chester Beatty I (L. M. Araújo 1995: 272-273), vemos essa súplica à Dourada, para que inspire na amada a paixão pelo sujeito poético: Eu adoro a Dourada, venero a sua majestade, eu exalto a dama do céu. Presto adoração a Hathor. Laudações à minha senhora! Chamei-a e ela ouviu o meu apelo, enviou-me a minha dama, e ela veio ver-me através dela. (...) Faço devoções à minha deusa, para que ela me ofereça a minha amada. Há três dias que invoco o seu nome, pois há cinco dias que ela me deixou.
Semelhante invocação à deusa Afrodite vamos encontrar em vários poetas gregos. O epíteto “Dourada” era-lhe também aplicado, sabemo-lo desde logo por Homero (Il. 3. 64 e Od. 8. 337, entre outros) e pelo frg. 1 W. de Mimnermo (vv. 1-2), poeta que canta acima de tudo o tema da efemeridade da vida, sobre o qual nos demoraremos adiante: o que é a vida? O que é o prazer, sem a dourada Afrodite? Que eu morra, quando estas coisas já não me interessarem.5
Mas é sobretudo em Safo que vemos a mesma tendência para a súplica interessada à deusa, com vista à obtenção dos favores do ser amado. Falamos do frg. 1 L-P, conhecido entre os helenistas precisamente como “Hino a Afrodite”, do qual citamos as estrofes 1 e 7: 5
As traduções da lírica grega, salvo indicação em contrário, são de F. Lourenço 2006. 18
A flauta e a lira Imortal Afrodite do trono variegado, filha de Zeus, urdidora de enganos, suplico-te: com sofrimentos e angústias não subjugues, ó rainha, o meu coração (...) Vem até mim, agora também! Salva-me da aflitiva ansiedade; e para mim faz cumprir tudo o que meu coração deseja ver cumprido; e tu própria combate a meu lado.
Também Anacreonte (sécs. VI-V a.C.), é motivado por um amor de teor homossexual a compor um hino em tudo semelhante ao que ainda agora ouvimos, no seu caso dirigido ao deus Diónisos (frg. 357 PMG), até porque é entre homens que se passa o caso de amor: Soberano, com quem o Amor subjugador e as ninfas de olhos azuis e a purpúrea Afrodite brincam, quando estás nos altos píncaros das montanhas! Suplico-te; e tu de espírito compassivo vem até mim, para ouvires a minha grata prece. Sê bom conselheiro de Cleobulo, para que o meu amor, ó Dioniso, ele aceite.
O vocabulário é bastante próximo do utilizado por Safo, e a intenção de súplica e de prece à divindade aproxima estes poemas da lírica egípcia. Com a deusa pretendem estes poetas estabelecer uma espécie de troca de favores: a obtenção do amor do ser amado levará à sua celebração em contexto festivo. Profundamente apostada na captação do momento, visualista e naturalista, a lírica egípcia do Império Novo concede grande relevo à Natureza, espaço de eleição para o amor. Conservam-se conjuntos de poemas ligados a um determinado cenário natural – como sejam 19
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as “cantigas de campina” (L. M. Araújo 1995: 281-284), as “cantigas do rio e dos desejos de amar” (L. M. Araújo 1995: 289-292) e a curiosa colecção das “cantigas do pomar” (L. M. Araújo 1995: 285-288). Não é de estranhar o relevo dado ao rio como espaço que ora separa ora une os amantes, uma vez concluída a travessia, numa civilização que terá surgido e florescido precisamente ligada ao Nilo. A Natureza funciona então como alcova, mas também como universo rico em imagens de um subtil erotismo, espaço prenhe de sensações sinestésicas que alimentam todos os sentidos e se tornam metáforas da própria relação amorosa. E é neste espaço que se movimentam animais que servem de comparação ao sujeito poético (predador) que persegue a sua amada (a presa). É o que se lê em duas estrofes das “cantigas de campina” (L. M. Araújo 1995: 282): Grita a voz do ganso bravo, apanhado na sua armadilha. Prende-me o meu amor por ti e dele não me posso soltar. Vou recolher as minhas redes, mas o que direi a minha mãe, a quem levo diariamente as aves que apanho? Hoje não armei as redes, porque o teu amor me apanhou! Acima e abaixo voa o ganso bravo, e acaba por cair na rede. Voam pássaros em redor e tenho trabalho a fazer. Estou presa pelo meu amor, e só, o meu coração encontra o teu, a tua beleza não deixarei!
O predador, curiosamente, é a amada, que prepara o mais infalível dos iscos para o seu ganso bravo: o poder da sua sedução. O tópico é o mesmo, no entanto, que encontramos em tantas outras
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literaturas, como seja o próprio Cântico dos Cânticos (II. 8-13)6. Na literatura grega, a imagem mais comum é a do homem (identificado com o poeta) que persegue a sua presa por campos verdejantes, desejando tão só a consumação do amor. Ela foge, mas sabem ambos que a própria fuga é um esquema para aumentar o desejo e dar mais prazer ao encontro, que no fim se revelará inevitável. Num epodo de Arquíloco, publicado apenas em 1973 (frg. 196a W.)7 o sujeito seduz uma jovem, comparada a uma cerva, em campos verdejantes e odoríferos, terminando por sossegá-la e quase consumar o acto sexual (vv. 42-53): Tais foram as minhas palavras. Tomei então a donzela e num leito de flores a estendi. Com sedoso manto a cobri e o seu colo rodeei com meus braços, acalmando o seu sobressalto, tal como uma cerva ... Os seus seios gentis com as mãos acariciei: tenra brilhava a sua pele, feitiço da sua juventude . Todo o seu belo corpo percorri e então libertei o branco vigor, ao toque dos seus louros cabelos?
Mas um dos tratamentos mais curiosos e provocantes deste tópico pertence uma vez mais a Anacreonte (frg. 417 PMG) quando, de forma inevitavelmente misógina, compara a amada a uma poldra da Trácia, irrequieta e relutante, que aguarda apenas por adequado garanhão: J. Tolentino Mendonça 21999: 12 refere já o paralelo com os textos do Papiro Harris 500 e do Papiro Chester Beatty I. 7 Vide adiante o estudo inteiramente dedicado a este texto (págs. 47-56). Todas as traduções de Arquíloco apresentadas estão contidas na nossa edição completa dos fragmentos do poeta de Paros: C. A. Martins de Jesus 2008. 6
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Carlos A. Martins de Jesus Poldra da Trácia, por que razão me olhas de soslaio e teimosamente foges de mim? Será que pensas que eu não sei nada de jeito? Fica sabendo que lindamente eu te poria o freio; e com as rédeas nas mãos te faria virar no poste da corrida. Mas agora pastas nas pradarias, toda folgazã com teus coices levianos, já que te falta o cavaleiro experiente para te montar.
Papel edificante em toda a lírica do Império Novo desempenha o olhar, o acto de contemplação do ser amado. Como bem refere J. Nunes Carreira 2005: 209, ver ou ser visto traz consigo um prazer sem medida, um prazer que dispensa não poucas vezes o contacto com o próprio objecto de desejo. São os amantes que se contemplam de ambas as extremidades do rio, logo se lançando à água para alcançarem o outro por quem anseiam (qual Hero e Leandro), ou que simplesmente partem para a descrição hiperbólica do ser supremo que os seus olhos contemplam. A poesia torna-se fortemente descritiva e pictórica; cada poema constrói autênticos quadros realistas do ser amado ou de determinado cenário. Mas a visão de quem se ama, tanto como a sua impossibilidade ou proibição, trazem consigo consequências nem sempre positivas. É o mal de amor, o padecer pela indiferença ou pelo simples apartamento do objecto de desejo, numa confusão de sintomas estonteante que rouba a razão ao sujeito. Ora porque vê o objecto da sua paixão (L. M. Araújo 1995: 272), o meu coração bate mais forte quando penso no meu amor por ti, torna-me diferente das outras pessoas, põe-se aos saltos no seu lugar 22
A flauta e a lira e nem me deixa pôr vestido nem compor o xaile à minha volta. Não pinto os meus olhos e nem sequer estou perfumada.
ora porque ausente está há muito esse ser que acima de qualquer outro se ama (L. M. Araújo 1995: 274): Há sete dias que não vejo a minha amada, e a doença abateu-se sobre mim, sinto todos os meus membros pesados, o meu corpo abandonou-me. Os médicos vêm ver-me, mas eu rejeito os seus remédios. Os mágicos não sabem o que fazer, não descobrem o meu mal.
O regresso da amada seria o único lenitivo, o único fármaco eficaz para esta doença que consome corpo e espírito do sujeito poético. A sintomatologia amorosa recorda-nos desde logo, ainda que a um outro nível, dois pequenos fragmentos de Arquíloco de Paros (frgs. 191 e 193 W.), para quem o amor (mais enquanto paixão e prazer sexual desenfreados) tem consequências que roçam a alienação: Tal foi o desejo de amor, que me cobriu o coração e cerrada treva sobre meus olhos derramou, arrebatando do meu peito as débeis forças. Miserável, jazo atolado no desejo, inânime, e penosas dores, por vontade dos deuses, me percorrem os ossos.
Mas a comparação mais flagrante é mais uma vez com a poetisa de Lesbos, Safo, num famoso poema (frg. 31 L-P) que mereceria a imitação do latino Catulo. O mote para o poema é dado 23
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pela contemplação da amada junto de outro homem, o que despoleta um conjunto de sintomas físicos em catadupa, em tudo semelhantes aos do texto egípcio que atrás citámos: Aquele parece ser igual dos deuses, o homem que à tua frente está sentado e escuta de perto a tua voz tão suave e o teu riso maravilhoso. Na verdade isto põe-me o coração a palpitar no peito. Pois quando te olho num relance, já não consigo falar: a língua se me quebrou e um subtil fogo de imediato se pôs a correr debaixo da pele; não vejo nada com os olhos, zunem-me os ouvidos; o suor escorre-me do corpo e o tremor me toma toda. Fico mais verde do que a relva e tenho a impressão de que por pouco que não morro.
No poema de Safo os sintomas são em maior número, mais diversificados e condensados, contemplando todos os sentidos do sujeito. Nos textos egípcios, a doença é causada ora pela ausência da visão do ser amado ora pela sua contemplação. A Safo dói tão só a visão à distância do objecto do seu desejo; mais do que ciúme, parece mesmo haver algum comprazimento na dor, porquanto só ela é testemunha da evidência desse amor. A causa deste mal não é apenas o apartamento dos amantes, senão também o seu encontro, inesperado, que os deixa, ora a um ora a outro, sem saber como agir. É riquíssima a espontaneidade de que estão embebidos estes textos, a sinceridade indescritível das consequências, quase infantis, desse sentimento amoroso levado ao extremo. 24
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Em períodos dominados pelo individualismo e pela afirmação das capacidades humanas, como foram o Império Novo e a Época Arcaica, é inevitável uma outra consciência, por vezes dolorosa mas inexorável. Como na Natureza, tudo obedece a um ciclo de vida e morte, não havendo lugar para o renascimento. Ao vigor da juventude que tudo vence segue-se a negra velhice que entorpece os membros, escala última antes da derradeira viagem para o reino dos mortos. Também a lírica egípcia - por estranho que possa parecer a leigos como nós, instruídos na imagem de uma civilização fortemente apostada na glorificação da vida depois da morte - expressou esta consciência da efemeridade da vida e da consequente necessidade de colher os melhores frutos de um caminho que é breve e fugaz. Nas inscrições do túmulo de Neferhotep em Tebas (J. N. Carreira 1999: apêndice 2) podem ler-se estes versos: Os que aos milhões de milhões nascerão todos a ela [terra da Eternidade] vão dar; na terra do Egipto não ficará nem um, ninguém que a ela não chegue. Quanto ao tempo dos actos terrenos, é a passagem de um sonho
Curiosa a concepção da vida humana como um sonho, período breve que mais não é do que uma sucessão de imagens e impressões enganadoras8. Mas é no conjunto de poemas intitulados “Cantos de harpista” (J. N. Carreira 1999: apêndice 1) que esta consciência de brevidade da vida é mais flagrante: É feliz este bom príncipe! A morte é um destino afável! Passa uma geração, outra fica, 8
Afirmação semelhante surge em Píndaro, Píticas 8, 95-96. 25
Carlos A. Martins de Jesus desde o tempo dos maiores. Os deuses que houve outrora repousam em seus túmulos. Nobres bem-aventurados de igual sepultos em suas tumbas.
Entre os Gregos, foi Mimnermo quem, glosando um símile da Ilíada (6. 146-149), melhor exprimiu este devir inexorável dos anos para o homem (frg. 2 W., vv. 1-10): Nós somos como as folhas que cria a florida estação da Primavera, quando crescem depressa sob os raios do sol. Como elas nos deleitamos num braço de tempo com as flores da juventude, sem sabermos o que de mau ou de bom nos virá dos deuses. Mas as negras Desgraças estão ao nosso lado: uma delas segura o desfecho da áspera velhice; a outra, o da morte. O fruto da juventude é tão breve quanto é o tempo de o sol se espalhar sobre a terra. Porém quando passa este fim de estação, melhor do que ficar vivo é morrer logo.
Também Safo, num texto possível de ler apenas no ano de 2004, graças à conjugação do lacunar frg. 58 L-P da poetisa com dois fragmentos de papiro nesse ano decifrados9, se queixa das consequências da velhice, facto que contudo aceita resignada: Pois o meu outrora delicado] corpo, já a velhice me arrebatou, e brancos] se tornaram os cabelos, negros que eram. Pesado o meu coração se tornou, não me suportam já as pernas, em tempos ligeiras na dança, como pequenas corças. Isso lamento a toda a hora; mas que fazer? alguém que não envelhece é algo que não pode existir.
Face a esta inevitabilidade da morte expressa por egípcios e gregos (que, seja um bem ou um mal, não deixa de ser um termo), a 9
Vide o nosso estudo dedicado a este texto nas págs. 115-118. 26
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solução única reservada aos homens é a fruição do momento – que Horácio haveria de formular magistralmente na máxima do carpe diem –, seja pelo envolvimento amoroso, pelo degustar de um bom vinho ou mesmo pelo prazer de uma borracheira menos contida. É o que se lê num outro “Canto do harpista” (Papiro Barris 500 = J. Nunes Carreira 1999: apêndice 1): Por isto, exulta em teu coração! Faz-te bem o teu esquecimento. Segue o teu coração todo o tempo que viveres! Põe mirra em tua cabeça, veste-te de linho fino, unge-te com óleos próprios de um deus. Amontoa as alegrias, não deixes cair o coração! Segue o teu coração e a tua felicidade, despacha os teus negócios ao sabor do coração. Quando a ti chegar esse dia de lamento, O-de-coração-lasso não ouvirá seus ais, o choro não salva ninguém do poço.
Nada se consegue com lamentos contínuos, pois que a hora de todos os lamentos há-de por fim chegar, sem aviso e sem hipótese de recusa. É precisamente isso que diz Arquíloco no frg. 11 W., Nada, em verdade, com o choro hei-de curar, e nada pior tornarei se deleites e festas buscar.
ou na ode ao seu coração (frg. 128 W.), verdadeira cartilha da fruição do momento própria do individualismo da Época Arcaica: Coração, ó coração, por males sem remédio derrubado, ergue-te! Defende-te dos inimigos, opondo-lhes um peito adverso, firme suportando as ciladas dos que te são hostis! Se venceres, em demasia não rejubiles, nem, vencido, em casa te deites em pranto. Alegra-te antes com as alegrias, dói-te com as tristezas, sem exagero. Aprende bem o ritmo que domina os homens. 27
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Uma só preocupação parece distinguir, neste aspecto, a filosofia de vida de gregos e egípcios: é que os primeiros demonstram a toda a hora uma preocupação em evitar a insolência, todo e qualquer tipo de acções desmedidas. Serve de exemplo o vinho, também ele um bálsamo contra a certeza de uma vida que se escapa por entre os dedos; o vinho que, bebido sem mistura de água, é sinal de exagero e acto pouco louvável, como se percebe pelo frg. 346 L-P de Alceu: Bebamos. Porque esperamos as luzes? É um átimo o dia. Pega, amigo, nas grandes e delicadas taças ornamentadas: o vinho, lenitivo dos males, doou-o o filho de Zeus e Sémele aos homens. Mistura uma parte para duas no cratêr, enche as taças até às bordas e que um cálice empurre o outro10.
Não parece este cuidado com a moderação assistir aos textos da lírica do Império Novo que acima citámos, onde a sensualidade e a fruição do momento são bastante mais espontâneas, sem medida mesmo. Não faz sentido para os homens do Nilo a noção de terminus dado pela morte, a avaliar desde logo pelas riquezas com que recheavam os túmulos dos seus mortos, esperançosos numa vida futura que devia ser agradável. Gregos e Egípcios partilharam afinal, tudo leva a crer, de um mesmo conjunto de tópicos edificadores de poesia. Seja a forma de amar e de sentir a paixão, seja enfim a consciência da velhice e da morte que se aproximam galopantes, face ao que é necessário viver em felicidade, estas duas culturas - aqui tomadas pela poesia que nos legaram em períodos cronologicamente afastados mas marcados por um mesmo individualismo - provam como é intemporal o sentir, o amar e o sofrer, faces de uma mesma moeda que é a vida. E se é desse sentir, a mais íntima expressão da humanidade, que surge o género lírico, como poderiam Gregos e Egípcios, ocidentais e orientais em geral, não ser substancialmente iguais no que cantaram?
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Tradução de J. Ribeiro Ferreira 2006: 42. 28
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A tradição iâmbica
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dois alvos da invectiva iâmbica 11 ... mas uma grande sabedoria eu possuo: a quem me faz mal, responder com terríveis injúrias. (Archil. fr. 126 West)
Esta declaração programática de Arquíloco pode servir-nos de mote para o tema a tratar nas páginas seguintes: a utilização poética de figuras reais, no âmbito da poesia iâmbica arcaica, com vista à desmoralização e construção do seu psogos (desonra pública), de acordo com uma série de convenções que passaremos a explorar. A utilização de linguagem licenciosa em poesia, obscena mesmo, parece ter origem religiosa. Falamos dos cultos a Deméter e a Diónisos, em cujos rituais – na sua maioria para nós desconhecidos, dado o secretismo em que eram mantidos – o iambo desempenhava um papel central, no sentido apotropaico que era já conferido à linguagem. No Hino Homérico a Deméter, onde encontramos a origem etiológica destas festividades, uma figura designada de Iambe provoca o riso na deusa, servindo-se para tal de linguagem obscena (aischrologia).12 Mas este texto contém outro dado para nós fundamental: refere-se a Paros, próximo do final (v. 491), como uma das ilhas mais importantes deste culto, depois de Elêusis. E são muitos os testimonia que nos falam da ligação entre a família de Arquíloco e a introdução do culto na ilha de Tassos Versão original publicada no Boletim de Estudos Clássicos 44 (2005) 22-42. A primeira secção deste texto, dedicada a Arquíloco, segue de perto uma parte da comunicação por nós apresentada a 13 de Outubro de 2005 no Colóquio de Estudos Clássicos “Antiguidade Clássica e Nós: Herança e Identidade Cultural”, organizado pela APEC e realizado nesse ano na Universidade do Minho. Daqui partimos para o alargamento do estudo ao poeta Hipónax, resultado que agora se publica. 12 Vide supra, “Prefácio”, nota 7. 11
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(e.g. Paus. 10. 28. 3.). Quanto ao culto dionisíaco, é mais conhecida a sua relação com ritos selváticos e sexuais, inspirados pelo vinho que desceu sobre o espírito dos participantes, o contexto do conhecido fr. 120 W.13 Também Aristóteles é um testemunho neste momento incontornável. O autorizado autor atribui a origem da comédia aos cantos fálicos entoados com vista ao pedido da fertilidade, incluídos no culto de Diónisos (Poet. 1149a. 10-13) e de Deméter; mais adiante, refere-se ao costume dos poetas iâmbicos de atacar directamente uma dada figura conhecida, identificada no texto da invectiva (Poet. 1451b. 14 sqq.). Este ataque aos vícios e deformidades morais tem por trás, curiosamente, um princípio de protecção da moral colectiva, um pouco como viria a acontecer com as comédias plautinas. Com Arquíloco, tudo leva a crer, estamos nos inícios desta tradição poética. Datado o seu floruit da primeira metade do século VII a.C., não lhe são conhecidos quaisquer precedentes na elevação do iambo a género literário. Daí que os seus versos detenham uma autenticidade e uma fluência que entendemos ausente dos de Hipónax, do qual não tarde falaremos. Conta a lenda que Licambas e Telésicles, este último pai do poeta, teriam arranjado o casamento entre os filhos quando juntos se deslocaram a Delfos e o oráculo previra que o primogénito de Telésicles teria fama imortal.14 Mais tarde, por razões que desconhecemos, Licambas terá recusado a mão da filha, Neobule, dando assim motivação para o projecto poético de desonra da sua família por Arquíloco, que se teria sentido traído. Os versos produzidos teriam sido Para as citações dos fragmentos de Arquíloco e Hipónax servir-nos-emos da edição de M. L. West 21998. 14 Sobre o oráculo de Apolo em relação a Arquíloco falam-nos Dio Chrys. 33. 11-12 (=Archil. test. 16 Gerber) e Oenomanus ap. Euseb., praep. ev. 5. 32. 2-33.9 (=Archil. test. 18 Gerber), muito provavelmente no seguimento da tradição presente na Mnesiepis Inscriptio (SEG 15. 517. col. ii. 50 = Archil. test. 3. col. ii. Gerber), datada do século III a.C. e parte de um recinto dedicado ao poeta em Paros, para sua glorificação 13
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tão duros que toda a família cometeu suicídio por enforcamento.15 Lidamos portanto com uma lenda assente no valor da palavra que, eficazmente manipulada, fere mais do que espadas e mata mais do que os venenos mais mortíferos. No corpus de Arquíloco não são muitas as marcas textuais desta tradição, sendo que em parte alguma se faz referência ao suicídio. O nome de Licambas surge apenas em cinco fragmentos (38, 54.8, 60.2, 71.1 e 172.1 W.), e em dois deles é fruto de reconstituição das lacunas presentes no papiro: fr. 60 W. (= P. Oxy. 2312 frr. 9 et 10) e fr. 71 W. (= P. Oxy. 2312 fr. 17). No fr. 172 W. o poeta apenas lamenta a perda de siso desse homem, nada acrescentando em relação à complexa intriga amorosa: Pai Licambas, o que foste tu dizer? Quem te fez abalar a razão em que antes te apoiavas? Agora, para muitos cidadãos, és alvo de chacota.
O termo pater do primeiro verso podia designar, em rigor, qualquer homem mais velho, mas parece claro que o poeta o usa numa acepção irónica, como que referindo-se àquele que quase foi seu pai (sogro). Podemos argumentar que tudo o que temos é uma parte reduzida de um poema maior, que poderia de facto levar a cabo a desonra de uma ou de ambas as filhas de Licambas. No entanto, o que conservamos serve-nos tão só para iluminar um pouco a eleição desta figura para alvo do poeta. Quanto a Neobule, sua filha e, segundo a lenda, principal alvo das narrativas poéticas de Arquíloco, a sua presença textual é ainda mais escassa: os frr. 118 e 196a W., este último apenas editado em 1974.16 Não é pois seguro nem correcto ver estas figuras como os al15 Os testimonia desta tradição estão recolhidos em Archil. test. 19-32 Gerber. Uma só ressalva: por aqui vemos como, nas fontes mais antigas, apenas as duas jovens teriam cometido suicídio, e não toda a família. 16 Vide, adiante, o nosso estudo sobre este texto (págs. 47-56).
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vos de todos os fragmentos de longas narrativas sexuais onde donzelas de família são alvo de chacota pública. Não deixa de ser tentador, por outro lado, fazer esta associação. Curioso é o fragmento 197 W., talvez o vestígio textual mais próximo da tradição: Zeus pai, minhas bodas não cheguei a celebrar.
Num só verso parece confirmada toda a lenda, toda a tradição. Não obstante as cautelas a ter com afirmações deste género, temos também que aceitar que nenhuma tradição nasce do nada. Os autores que para nós são seus testemunhos terão escrito a partir de um conhecimento mais alargado da obra do iambógrafo, na posse de textos para nós, até ao momento, perdidos. Tanto quanto sabemos, os topoi principais destes longos poemas seriam a perda da virgindade, a descrição da mulher madura e sem encanto, a notícia da lascívia pública, o quadro da violação e a sugestão da infertilidade. Neobule e a irmã, a acreditar na tradição, teriam sido recorrentemente equiparadas a prostitutas, mulheres de má vida que trocam os seus favores sexuais por dinheiro e não põem qualquer limite ao seu desejo. Mulheres muito do agrado do poeta, que faz questão de passar de si próprio uma imagem de homem rude. A acrescentar ainda, de importância extrema nos iambos de Arquíloco, o recurso frequente à narrativa fabular.17 A comparação do homem ao animal visa, logo à partida, a redução do primeiro às características instintivas deste último. O homem deixa de ter sentimentos, honra ou palavra (Licambas) e passa a guiar-se tão só pelo interesse e pelos instintos, ganhando fortes traços de irracionalidade. Como a raposa incendiou o ninho da águia, depois que esta, passando-se por sua amiga, lhe comeu as crias (Aesop. fab. I. 1 Hausrath e Archil., frr. 172-181 W.), do mesmo modo o poeta há-de fazer 17 Sabemos, através de Filóstrato (Imag. 1. 3) que Arquíloco se serviu de fábulas animais para atacar Licambas.
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pagar as crias de Licambas pela traição de seu pai. Tudo indica que os frr. 172-181 W. são parcelas de um único epodo dedicado a este indivíduo.18 A aceitar esta inclusão dos fragmentos num mesmo poema, o fr. 173 W. (cit. Orig. c. Celsum 2. 21) traz novos dados, fundamentais para a lenda, pois desenvolve a ideia da quebra de uma promessa pela imagem dos convivas sentados a uma mesma mesa. Temos assim prova de uma traição, não especificada, que depois vai ser ilustrada pela introdução da fábula da águia e da raposa, entre os frr. 174-181 W. Uma falta à palavra que tem que ser punida, servindo a fábula de modelo a esse castigo. Não cabendo aqui um inventário destes aspectos nos fragmentos preservados, tarefa difícil e nunca segura dada a natureza lacunar da maior parte dos textos, cumpre sim dizer como todos eles se acomodam no fr. 196a W., um famoso Epodo encontrado em Colónia e publicado em 1974, sobre o qual nos debruçaremos de seguida. No entanto, e para o que aqui nos importa, adiantamos como nos 53 versos do poema (35 linhas no papiro) se pode ler a sedução de uma suposta irmã mais nova de Neobule, tarefa lenta e feita com todo o cuidado com vista ao sucesso final, a quase violação da jovem, já que o coito não chega a ocorrer. O estilo é simultaneamente obsceno e cuidado, servindo-se mesmo o poeta de alusões à linguagem homérica no que é, no fundo, uma narrativa sexual. Neobule é trazida ao texto pelo narrador, que a pretere em proveito da jovem que tem diante de si. Temos a indicação da idade avançada (v. 26) – querendo tão só dizer que não teria já, digamos, 15 ou 16 anos – e da perda da virgindade (vv. 27-28), magistralmente conotada com a flor, imagem que perdurou em toda a cultura ocidental posterior. Ora, essa flor, malogradamente para a sua detentora, murchou, e flores murchas não interessam a ninguém. 18 F. Rodríguez Adrados 1955: 12-24 faz uma tentativa de reconstrução deste epodo e nele inclui 20 fragmentos do corpus.
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A lascívia pública é a acusação dos versos 33-34 e 37-38, tanto que fazer-se acompanhar de tal criatura é motivo de vergonha. E finalmente temos a sugestão da geração de uma prole indigna e disforme, acompanhada pela introdução da narrativa fabular (vv. 3941): como a cadela da fábula (Aesop. fab. II. 251 Hausrath), também Neobule virá a gerar filhos cegos e prematuros, tal a vida lasciva e de libertinagem que leva. Falta só o quadro da violação (vv. 42-53) que, como já se disse, não chega a concretizar-se, o que nada abona em favor da honra da jovem envolvida. Muito se escreveu já sobre a existência real ou meramente ficcional dos Licâmbidas, em especial a partir dos trabalhos de M. L. West 1974: 27 sqq., que lançou a hipótese de estas serem personagens da tradição local, por razões que não cabe aqui apresentar. C. Carey 1986: 63-65 reflecte sobre estes argumentos e conclui uma série de dados a favor da historicidade da família, entre os quais o seu surgimento na Inscrição de Mnesiepses19 (SEG 15. 517. 45), monumento datado do século III a.C. que parece demonstrar que, mesmo em Paros, a sua existência real era um dado adquirido. A isto acrescenta todo um conjunto de questões linguísticas e estilísticas que, segundo o autor, levam a supor real e sentida a invectiva arquiloquiana. R. Rosen 1988: 29-33, quanto a nós correctamente, sugere a possibilidade de criação de nomes com forte carga semântica no contexto iâmbico, bem como de histórias ficcionais, para indivíduos e histórias bem reais. Assim, teria havido de facto um homem que insultara o poeta ao negar-lhe o casamento prometido com a sua filha, mas não se chamariam estes, necessariamente, Licambas e Neobule. Outra hipótese reside na escolha propositada dos alvos poéticos pela coincidência dos seus nomes, o que os torna, como se percebe, vítimas fáceis. No caso de Licambas, significando literalmente “lobo andante”,20 a escolha ou apro19 20
Sobre este assunto vide C. Miralles 1981: 29-46. A sugestão é de A. P. Burnett 1983: 6-7. 36
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veitamento do nome tem tudo que ver com a narrativa fabular de que o poeta se serve com frequência, como vimos acima. As coordenadas da desonra que vimos referidas pelos testimonia ficaram de tal forma enraizadas que influenciaram autores tardios. Na Antologia Palatina encontramos três epitáfios ficcionais dedicados às jovens filhas de Licambas. Um em especial, atribuído a Dioscórides (7. 351), apresenta-as falando directamente da tumba aos leitores das suas lápides,21 numa atitude de defesa: Por este solene marco dos defuntos, nós, as filhas de Licambas, juramos não ter merecido tão terrível reputação, nem ter desonrado a nossa virgindade, nossos pais ou sequer Paros, a mais escarpada das ilhas sagradas. Foi antes Arquíloco que contra a nossa família lançou uma odiosa reputação e igualmente terrível desonra. Arquíloco, são testemunhas deuses e divindades, nem nas ruas o vimos, nem no sublime santuário de Hera. Pois a termos sido lascivas ou despudoradas, nem esse homem lograria do nosso ventre gerar filhos legítimos.
Com Hipónax, poeta tradicionalmente ligado a Éfeso, damos um salto temporal e literário de mais de um século, o que supõe um conjunto de premissas distintas daquelas que orientaram o estudo de Arquíloco. Os poucos testemunhos que estabelecem a datação do poeta parecem colocar o seu floruit algures entre as décadas de 30 e 40 do século VI.22 O iambógrafo de Éfeso vai pois evidenciar uma maior consciência de género, sendo clara a influência de Arquíloco nos seus versos. Face ao poeta de Paros, acusa uma redução dos temas, já que todos os fragmentos preservados são de temática erótica ou de paródia literária (da épica, sobretudo). Os temas da brevidade da vida, do carpe diem e do poder dos deuses e da moira, bem presentes Este parece ser já o contexto do P. Dublin inv. 193a (=Archil. test. 19 Gerber), datado do século III a.C. 22 Cf. Hippon. test. 1-2 Gerber. 21
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em Arquíloco e aprofundados depois por Semónides, deixam de ser da eleição do Efésio, que se concentra praticamente em exclusivo no sexo mais vulgar e grotesco e nas suas virtualidades poéticas. Os testemunhos antigos parecem ter procurado aproximar – ou terão simplesmente confundido? – as vidas e as histórias dos dois poetas. Num escólio ao epodo 6 de Horácio,23 o autor conta-nos o seguinte: Quer ele dizer que Hipónax pediu em casamento a filha de Búpalo e que este, graças à sua deformidade física, foi ignorado. Mas querem crer as gentes que o seguinte é o mais verdadeiro: que houve um pintor chamado Búpalo, em Clazomena, uma cidade da Ásia. Este pintou um retrato do poeta Hipónax, disforme, para provocar o riso: movido pela raiva contra ele, compôs então tais poemas que ele se enforcou.
Em nenhum outro local encontramos informação semelhante relativa a um pedido de casamento negado, sendo óbvia a confusão com a lenda de Arquíloco e os Licâmbidas. No final, surge o tópico do enforcamento de Búpalo, mais uma clara confusão entre as lendas dos dois poetas. Mas as incongruências deste comentário não ficam por aqui. Búpalo, pintor, é algo que também não conhecemos por nenhum outro testemunho. Hipónax refere-se de facto a um outro pintor, Memnes (fr. 28 W.), por ter pintado duas serpentes num barco com a cabeça voltada para a popa, pormenor à primeira vista insignificante para motivar o ataque. Segundo a lenda, como a conta Plínio (Plin. NH. 36. 4. 11-12 = Hippon. test. 1 e 4 Gerber), Búpalo e Aténis eram escultores e, por razões que não nos são dadas a conhecer, fizeram do poeta uma estátua que o mostrava ainda mais feio do que já seria, com isso o envergonhando publicamente. Como cada qual se serve das armas que possui, este empreende então o projecto de construção poética do psogos dos dois indivíduos que o haviam desonrado. O sexo, vício sem limites, vai ser o principal tema dessa desonra, um pouco como acontecera com Arquíloco e as filhas de Licambas. 23
Pseudacronis schol. (i. 404 Keller) ad Hor. epod. 6. 14 (= Hippon. test. 11 Gerber). 38
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A presença de Búpalo nos fragmentos preservados de Hipónax é claramente mais extensa, quando comparada à de Licambas e suas filhas nas relíquias do poeta de Paros. Podemos ler o seu nome, com alguns esforços de reconstituição, em nove fragmentos. Já Aténis, seu irmão, surge apenas no fr. 70 W., não estando mesmo esta ocorrência ausente de contestação. Voltando à discussão que acima nos ocupou sobre a existência real dos Licâmbidas, comecemos por referir como, em Hipónax, ela se reveste, inevitavelmente, de outros moldes. Plínio refere-nos que os dois escultores eram filhos de Arquemo, cujo nome estaria gravado na base de uma escultura de Delos, agora perdida, datada de c. 550 a.C. Também Pausânias alude a uma escultura da autoria de Búpalo em Esmirna (4. 30. 6) e outra em Pérgamo (9. 35. 6). Apesar de aparentemente provada a existência real da vítima de Hipónax – e centremos a nossa atenção, daqui em diante, apenas em Búpalo – não podemos ignorar a hipótese de também o seu nome ser semanticamente significativo no contexto iâmbico: palos pode muito bem provir de phallos, querendo o seu nome significar algo como “pénis de boi” ou, simplesmente, “o grande pénis”. A hipótese ganha seriedade se considerarmos que o escultor surge quase sempre envolvido em narrativas sexuais e que é esta a forma escolhida pelo poeta para construir o seu psogos.24 As alternativas que temos são então duas: a) aceitar que este era um nome real, feliz coincidência, o que tornava o escultor um alvo mais fácil da invectiva, ou b) que o nome é criação do poeta para uma figura real, e que foi esta designação que perdurou nos autores posteriores. Não nos parece que esta questão, pertinente para ambos, Arquíloco e Hipónax, possa resolver-se no actual estado dos conhecimentos sobre as circunstâncias da poesia iâmbica. Não obstante, a criação de nomes falantes e sexualmente significativos encontra outros exemplos no corpus de Hipónax. No fr. 118 W., Sanos é apresentado como um glutão. Se relacionarmos o nome Para a análise pormenorizada das virtualidades semânticas do nome Búpalo no corpus de Arquíloco, bem assim sobre a polissemia onomástica no contexto iâmbico, vide R. M. Rosen 1988: 29-41. 24
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próprio (com ocorrência na Antiguidade, é certo) com sannion (‘pénis’), ele pode então querer designar um qualquer homem (porque não Búpalo?) e alargar o campo semântico do termo para o apetite sexual desmedido. Um problema que se nos oferece com o Efésio, e que já comentávamos face a Arquíloco, prende-se com a inclusão ou não de determinados fragmentos na invectiva contra Búpalo, limitação imposta pela natureza fragmentária dos textos que possuímos. O escultor é-nos descrito em pleno acto sexual em diversas ocasiões, juntamente com uma figura feminina, Arete, ao que tudo indica sua mãe, que encontramos em cinco fragmentos. A noção do incesto entre mãe e filho terá surgido das interpretações do fr. 12 W.: ... com estas artimanhas Búpalo, o amásio da própria mãe, de gorra com Arete, ia engrampando a prole de Éritras, a quem excitava o torpe despelado.25
O fragmento é complexo e tem despoletado muita discussão entre os estudiosos. W. Medeiros 1961: 48, na sua primeira edição dos iambos de Hipónax, recusara-se a considerar pertinente a interpretação que vê Búpalo e Arete em pleno acto sexual. Para o helenista, “interessa apenas observar que Búpalo e Arete se dedicavam ao ofício de explorar a incauta lubricidade dos forasteiros” . Como Arquíloco atacara Licambas pela desonra das suas filhas, o Efésio vai relatar, podemos admiti-lo, o envolvimento sexual consentido com Arete, mãe e amante do seu alvo principal. No fr. 15 W. pergunta-se a alguém porque coabita com Búpalo, provavelmente a Arete, a mesma mulher dos frr. 16 e 17 W., com quem se parece relatar o envolvimento de um eu (supostamente o poeta). E este poderá ser o contexto de muitos outros textos, nos quais desconhecemos o nome dos intervenientes. Aqui começam as dúvidas insolúveis, habituais para quem trabalha com a poesia arcaica. 25
Tradução de W. Medeiros 1961: 48. 40
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Vários textos de origem papirológica são, ao que tudo indica, parcelas de longas narrativas sexuais, semelhantes às que já compusera Arquíloco. Os frr. 70-73, 78, 79, 84 e 104 W. são apenas alguns exemplos, possíveis relatos de encontros sexuais entre Arete e o poeta, à socapa de Búpalo, ou mesmo na sua presença. Textos com uma linguagem forte e extremamente obscena, como prova o fr. 73. 1 W.: mijava sangue e obrava bílis. O fr. 104 W. (= P. Oxy. 18. 2175. frr. 3+4), muito embora extremamente lacunar, é o vestígio mais longo que possuímos dessas narrativas, desempenhando para Hipónax papel semelhante ao Epodo de Colónia (fr. 196a W.) no corpus de Arquíloco. No Efésio, as narrativas eróticas são cheias de movimento e agitação, vivendo o par romântico o terror constante de ser apanhado. Nos frr. 78 e 92 W. podemos ver vestígios do que se crê serem procedimentos mágicos para a cura da impotência, sendo que, no último, é clara a identificação do poeta como o paciente. Um mundo de sensações desmedidas, de vícios e desmesuras sexuais, do qual o próprio sujeito poético não consegue deixar de fazer parte. Uma série de fragmentos de curta extensão têm sido associados ao ritual arcaico do pharmakos.26 De origens agrárias, inclui-se no conjunto dos ritos de purificação mais selváticos da religião grega, cuja etiologia pode estar no sacrifício primeiro de um indivíduo chamado Pharmakos que, surpreendido a roubar as taças de Apolo, foi apedrejado até à morte pelos companheiros de Aquiles (cf. Istros, 334 FGrH fr. 50). Celebrava-se no primeiro dia das Targélias ou em qualquer momento de calamidade pública. Era escolhido um homem, uma mulher ou mesmo um casal, dos mais disformes da cidade, nos quais era simbolicamente depositada toda a responsabilidade da doença de que padecia a comunidade. Aos eleitos eram oferecidos figos, um bolo de cevada e uma ração de queijo, depois do que eram obrigados a atravessar as ruas da cidade, ao longo das quais a multidão os açoitava com ramos de figueira, em especial na 26
Sobre este ritual e a sua presença na religião grega vide W. Burkert 1993: 176-179. 41
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zona genital. De seguida podia ainda ocorrer a sua lapidação e morte, sendo o cadáver (ou as cinzas) do condenado atirado ao mar. Estamos, no fundo, diante de um ritual de purificação que procura a responsabilidade de um mal colectivo num ser individual, que não tem necessariamente que ser o seu causador. Ganha assim contornos óbvios de sacrifício humano para aplacar a ira divina. Este conceito de expiação de um erro individual com consequências comunitárias está na base da noção de miasma de bastantes tragédias áticas. Basta pensarmos em Édipo e na sua cegueira trágica que insiste em não ver que é ele, antigo salvador e actual monarca, a poluição da cidade.27 Tzetzes (Chil. 5. 728 sqq.) é a principal fonte para os fragmentos de transmissão indirecta do Efésio relacionados com esta prática (frr. 5-12 W.). No fr. 5 W. referem-se os ramos de figueira e a finalidade de purificação da cidade, o mesmo que podemos ler no fr. 6 W.: que em pleno Inverno o varejavam e zurziam com galhos de figueira e albarrãs, qual bode expiatório.28
O fr. 8 W. refere o bolo de cevada (maza) e o queijo (tyros), o fr. 9 W. a multidão que espera o condenado para o açoitar e o fr. 10 W. o varejamento do desgraçado. No fr. 65 W. pode ler-se, sem grande esforço de interpretação, o lançamento dos restos mortais do eleito ao mar. Alguns textos papiráceos dão-nos ainda conta do recurso a este ritual. Citamos tão só o fr. 95 W. (= P. Oxy. 22. 2323 + 18. 2174. fr. 27) O ritual vai também marcar presença na literatura latina, em especial no romance O Burro de Oiro de Apuleio, no Satyricon de Petrónio e nos Retratos dos Césares de Suetónio, que nos dão alguns exemplos claros da permanência da personagem do “bode expiatório”. Vide C. Miralles 1985: 89-103, J. Pòrtulas 1985: 121-139, R. B. Harlow 1974: 377 e P. Veyne 1983: 3-30. Se alargarmos a noção para a expiação individual de um erro colectivo, para além da tragédia grega, também no Novo Testamento encontramos várias ocorrências. A própria figura de Cristo, como o filho de Deus que carrega em si as culpas de toda a humanidade e é, até ao calvário, alvo de humilhação, tudo para a redenção dos pecados da colectividade, tem sido um exemplo apontado. 28 Trad. W. Medeiros 1961: 56. 27
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que, embora muito fragmentário, é a este respeito precioso, pois parece provar como o ritual foi poeticamente usado por Hipónax para atacar Búpalo (e outros) fazendo dele o próprio bode expiatório: ………………….......... 3) … a Búpalo… 4) … Búpalo … 6) … cada qual de sua banda … 7) … ao chegarem … 9) … andavam aos tropeções … 12) … derrubou (?) … 13) … logo … 14) … à beira de … 15) … assim eles praguejavam contra o maldito Búpalo …29 ……………………………….
Os versos 3-6 parecem descrever o ataque a Búpalo de ambos os lados, o que pode ser interpretado como as vergastadas que sofre o pharmakos ao longo das ruas da cidade. O nome do seu inimigo surge três vezes no fragmento, o que não deve ser inocente, e o plural da linha 9 sugere que eram dois os bodes expiatórios, provavelmente Búpalo e Aténis, se nos é permitida a conjectura. Todo este aproveitamento de um ritual arcaico de purificação e expurgação do mal vem no sentido de atribuir à narrativa iâmbica de Hipónax, como de resto vimos já em Arquíloco, um carácter tradicionalista e moralista, apostado na preservação dos bons costumes. A obscenidade linguística é assim capa para uma mensagem que não pode ser lida de forma superficial. Intenções cívicas, se vistas sob a capa que as reveste, comuns à sátira literária de todos os tempos. Sendo verdade que Hipónax apostou essencialmente nas narrativas sexuais (que terá aprendido de Arquíloco) e no tratamento poético do ritual expiatório do pharmakos para a construção da sua invectiva, a imagem do poeta e da força da sua obra, no Período Helenístico, é outra. Teócrito (Epig. 19 Gow = HE 3430-33 = AP13. 3) 29
Trad. W. Medeiros 1961: 140. 43
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dedica-lhe um epigrama que vem confirmar as intenções moralistas dos seus versos: O cultor das musas, Hipónax, aqui repousa. se és ardiloso, não te aproximes da tumba; se ao invés és honesto e de boas famílias, senta-te e adormece, confiante, se o desejares.
Noutros três epitáfios da Antologia Palatina dedicados ao poeta a imagem cultivada é a da vespa que adormeceu, na morte, a raiva do seu aguilhão que a todos feria. Razão mais que suficiente para que não seja acordada. Traduzimos o epitáfio 7. 405 da dita colectânea:
Estrangeiro, evita a tumba caiada de versos e terrível de Hipónax, cujas cinzas não deixam de lançar injúrias sobre Búpalo que tanto odeia; de modo algum despertes a vespa adormecida que nem agora no Hades adormece a sua raiva, ele que em versos coxos lançava certeiras palavras.
O imaginário e a linguagem são exactamente os mesmos que encontramos em outros dois epitáfios, em especial 7. 408, poema atribuído a Leónidas de Tarento. Já a tumba de Arquíloco possuía vespas adormecidas (Anth. Pal. 7. 71. 6), numa imagem riquíssima: o veneno poderoso que atinge a vítima de uma mordedura. A vespa é o poeta. O veneno, esse, a poesia; a mesma que tantas vezes foi considerada bálsamo ou água de rosas para corpos doces e impolutos, e que aqui tem a vitalidade suficiente para arrastar para a morte homens e mulheres, autores de uma qualquer falta particularmente desagradável ao iambógrafo.
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devassidão em prados de flores O fr. 196a W. atribuído a Arquíloco30 Nos finais de 1973 começam a ouvir-se entre os helenistas notícias difusas de um novo fragmento de Arquíloco encontrado em Colónia (Alemanha), um epodo de temática erótica que em breve se tornaria a jóia dos estudiosos do poeta de Paros. O papiro (“Apêndice Iconográfico”, fig. 1), materialmente datado entre os séculos II e I a.C., tinha servido até então de cartonagem envolvente de uma múmia. Nele se descortinaram dois textos considerados autónomos: um mais longo, verdadeira peça narrativa (P. Colon. 58. 1-35 = fr. 196a West), de cuja tradução e comentário aqui nos ocuparemos, e um outro, nas restantes cinco linhas do papiro (P. Colon. 58. 36-40 = fr. 188 West). Estes versos, de resto à semelhança dos primeiros, levam também a cabo a desonra de uma mulher (supostamente filha de Licambas) por ter já perdido a sua juventude.31 Coube a Merkelbach-West 1974: 97-112 a primeira publicação do achado, acendendo-se o rastilho de uma polémica literária sem fim à vista. Afastados da discussão da autenticidade, limitamo-nos a apresentar o texto em tradução 32, terminando com um comentário, onde procuramos realçar a imensa riqueza formal, temática e imagética do achado. A versão original e alargada deste estudo, que inclui o texto grego, foi publicada no Boletim de Estudos Clássicos 42 (2004) 15-33. 31 O mesmo assunto que encontramos em Horácio, Epodos 1 e Odes 1. 25 e 4. 13. O mesmo tipo de velha fogosa que Aristófanes pintaria nas suas comédias, e que nos viriam a dar, séculos mais tarde, os Epigramas de Marcial. 32 Optámos por uma versão em verso branco, que segue a divisão do grego em trímetros iâmbicos (53 versos), e não pelas linhas do papiro (35 linhas). 30
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Carlos A. Martins de Jesus … por completo te abstendo. Mas mostra igual coragem, se te inquietas e o desejo te impele. Temos em nossa casa quem agora sente grande desejo... bela e delicada donzela; parece-me perfeito o corpo que possui. Faz dela tua amante!” Assim falou ela. Respondi-lhe então: “ó filha de Anfimedeu, nobre e sensata mulher que a terra sombria agora detém! São os deleites da deusa sem conta para os jovens varões, além da coisa divina; um deles me bastará. Mas isso, com calma, logo que anoiteça, eu e tu, se ao deus assim aprouver, havemos de decidir. Farei como me pedes. Intenso (desejo me despertas). E de transpor esses portais, sob o teu arco, não me impeças tu, meu amor! Deter-me-ei ao chegar ao teu jardim onde a erva cresce – fica a sabê-lo! Neobule, que outro homem a tome para si. Ai! Como está madura! O dobro da tua idade! Murchou a flor da sua virgindade e o encanto que tinha outrora. Não tem limites o seu desejo e revelou a medida da sua infâmia, louca criatura! É lançá-la aos corvos! Isso não… que na companhia de tal mulher para os vizinhos seria motivo de troça. Muito mais te quero a ti, pois não és desleal nem tens duas caras; ela é muito mais fogosa e muitos amantes arranja! Receio que filhos cegos e prematuros no ardor impaciente possa gerar, como fez a mítica cadela.” Tais foram as minhas palavras. Tomei então a donzela e num leito de flores a estendi. Com sedoso manto 46
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A flauta e a lira a cobri e o seu colo rodeei com meus braços, acalmando o seu sobressalto, tal como uma cerva... Os seus seios gentis com as mãos acariciei: tenra brilhava a sua pele, feitiço da juventude. Todo o seu belo corpo percorri e então libertei o branco vigor, ao toque dos seus louros cabelos.
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O epodo desenvolve um discurso de tipo dramático, onde se identificam dois intervenientes – um masculino e um feminino – e uma terceira figura, apenas referida, que constitui o assunto predilecto da segunda parte do texto – essa sim, com segurança, Neobule (v. 24), a filha de Licambas. Em termos formais, é de realçar a frequência de elementos próprios da linguagem homérica, algo que, de resto, caracteriza grande parte da poesia de Arquíloco, nas diversas modalidades métricas. Ele que tinha recuperado e dado um novo sentido aos grandes conceitos e símbolos homéricos – como sejam o escudo (fr. 5 W.), a coragem e a aretê guerreira (e.g. frr. 1-3 W.) – denota a influência da épica também na forma. Repare-se, tão só, nas formas de introdução e conclusão do discurso (vv. 9, 42), mas também nos epítetos e nos símiles, matéria linguística sobre a qual adiante nos deteremos. Não nos chegou a abertura do fragmento, que, para alguns críticos, e a avaliar pelas suas imitações helenísticas, seria constituída por um monólogo pastoral33, algo como um pequeno quadro da jovem colhendo flores – topos estruturante de todo o código bucólico posterior – para, depois sim, entrar em cena aquele que será o seu atacante, qual leão que procura capturar a sua cerva, segundo símile atestado nos próprios versos do papiro (v. 47). No fundo, estamos perante o quadro inicial do Hino Homérico a Deméter, um dos mais antigos do seu conjunto. Também o cenário do despertar de Ulisses entre os Feaces e a figura de Nausícaa que brinca en33 Terá sido neste sentido que houve quem considerasse o texto do papiro, na generalidade atribuído a Arquíloco, uma das várias imitações helenísticas conhecidas.
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quanto aguarda que seque a sua roupa, ou ainda o mito do rapto de Europa pelo touro branco de Zeus, todos eles são paralelos que se podem estabelecer. O que primeiro temos de seguro é uma cena de sedução. O sujeito masculino procura a aproximação lenta e compassada da figura feminina que com ele dialoga, e esta defende-se das suas investidas, demonstrando contudo uma clara compreensão pelo que julga ser a desilusão amorosa deste homem: o verso 2 mais não é do que um incentivo à perseverança na adversidade, resultante por certo das palavras de desafogo inicialmente proferidas, mas que desconhecemos quase por completo.34 Apercebendo-se do desejo que domina o homem que tem diante de si (v. 3), aconselha-o a virar as atenções para outra com quem possa casar. Outra mulher ou donzela que não pode porém ser Neobule, já que é ela a responsável pela desilusão e pelo desejo em que arde este indivíduo. Isto é, não descartamos a hipótese amplamente defendida de Neobule ser irmã da jovem interveniente no poema, mas recusamos admitir que seja ela quem ansiosamente espera pelo casamento (v. 5).35 E falamos de casamento para o referente do discurso desta moça – seguindo a proposta de reconstrução textual de West – de modo a acentuar o contraste com as verdadeiras intenções do seu companheiro. Logo depois, entre os versos 13-15, o indivíduo refere-se às muitas delícias de Afrodite reservadas aos varões, além da coisa divina. Esta expressão, para a qual diversas traduções foram sugeridas, tende a ser vista pelos críticos como sinónimo de relação sexual.36 E fica prometida uma outra conversa, sobre este mesmo assunto, Dizemos quase pois partilhamos da conjectura dos que consideram o fr. 196 W. parte da abertura da narrativa deste epodo, mais propriamente os versos 2/3: “mas vence-me, minha amiga, um desejo que deslaça os membros”. 35 Curiosa a opinião de J. C. Kamerbeek 1976: 121, ao sugerir que a jovem se oferece a ela própria em casamento, atrevida, servindo-se para tal de uma engenhosa – porém reveladora – terceira pessoa verbal. 36 cf. Alcm. fr. 8 Page; Sapph. fr. 44 A; Pi. P. 9. 84sqq.; Alc. frs. 308 e 327 Voigt. Para uma discussão mais ampla sobre as possíveis traduções desta expressão, vide D. E. Gerber 1999: 215 e C. Calame 1999: 35-36. 34
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para quando cair a noite (vv. 16-18). Insinuam-se já as verdadeiras intenções do diálogo, que serão concretizadas na parte final, isto é – e como veremos – o gozo dos prazeres eróticos com a companheira, sem contudo se chegar a concretizar o coitus. Uma espécie de preliminares, digamos assim, considerando a consumação sexual a referida coisa divina, ainda fora dos interesses imediatos do atacante. Depois do verso 20, lamentavelmente muito imperceptível, onde contudo podemos supor a referência ao desejo que a jovem nele desperta, temos as primeiras imagens obscenas do poema; “arco” e “portais” (v. 21:), a par de “herbosas margens” (vv. 23-24) são claramente metáforas da zona genital feminina, sugestivas da presença do macro-elemento bucólico no próprio corpo da jovem. O que se promete, quase com ar ameaçador de quem faz algo contra a vontade do parceiro (v. 24), é o que encontraremos no final do poema: a cena de estupro (que ousamos considerar consentido), aí sugerida pela metáfora náutica. Tudo isto ganha um sentido especial se recordarmos que, no início do seu discurso, o poeta fizera referência à mãe da sua vítima, Anfimedeu, realçando bem ao estilo da épica que o Hades a tinha já engolido (vv. 11-12). A moça estava portanto moralmente desprotegida, sem ninguém que a aconselhasse e a advertisse dos perigos resultantes da sua ignorância sexual, completamente à mercê dos desejos deste homem.37 Segue-se a referência desdenhosa a Neobule, por antítese (simulada) com a donzela que agora tem na sua presença. O acusativo Neobule[n (v. 24), em início de frase, remete para a categoria sintáctica da relação, isto é, supõe um assunto já aflorado anteriormente, ao que tudo indica na abertura do texto, para nós perdida. Podemos perceber nestes versos, ainda longos (vv. 24-41), o típico enamorado abandonado que, por isso mesmo, fala da antiga prometida como a mais leviana das mulheres. Começa por desejar que ela seja de outro Este é um papel que a tradição, desde os tempos mais remotos, atribuiu à mãe. Veja-se o caso de Nausícaa (Od. 6. 25), figura por diversas ocasiões comparada com a personagem feminina do nosso epodo. 37
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homem (v. 25); refere-se-lhe como sendo velha (v. 26), comparando-a a uma fruta que cai de madura38; e desenvolve em seguida a rica metáfora da flor da virgindade que, uma vez murcha, desprovida da beleza das suas pétalas, significa uma pureza já perdida (v. 27). Por tudo isto, é lançá-la aos corvos! Andar na companhia de tal mulher é motivo de vergonha e de repúdio por parte dos vizinhos (vv. 32-34). Daí que a preferência recaia nesta outra jovem, por ser tudo o que Neobule não era – sincera, honrada. Mas volta sem demora à mulher que ainda agora caracterizou como a mais reles das prostitutas, para acentuar essa mesma imagem. Até que ponto não significa esta obsessão em dizer mal de alguém a incapacidade de superar a sua ausência? Não estaremos perante a génese da antítese catuliana do odi et amo? Nos versos subsequentes, a mulher que lhe fora negada é comparada a uma mítica cadela (v. 41). Tudo leva a supôr a referência a uma fábula, posteriormente cristalizada por Esopo (Fab. 251 Hausrath), onde uma cadela e uma porca discutem a fertilidade de ambas, e esta acusa a primeira de gerar filhos cegos. Arquíloco recuperaria então a história no sentido de apontar a prostituta como responsável pela deformação moral e física da sociedade, uma degeneração que tem início na sua ninhada. Ela é um monstro de impudor e lascívia, que consigo traz apenas o mal. O envolvimento sexual com um ser deste tipo é então um acto imundo e que deixa sequelas nas crias geradas. Fica assim mais uma vez provado que Neobule, a quem se referiram os últimos versos, não é a mesma donzela dos versos 5-6. Se no início do fragmento se falava de parthenos (“rapariga” ou, no limite, “virgem”), fala-se agora (vv. 30 e 33) de gyne (“mulher”). Neobule e os seus estão já, chegados a este ponto do poema, completamente desmoralizados. Licambas teria visto os vícios sexuais das filhas enxovalhados na praça pública. Mas o poeta não está ainda 38 Repare-se no tratamento dado a este tema por Safo (fr. 105 Lobel-Page), referindo-se a uma noiva já pouco jovem.
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satisfeito. Falta a descrição, que se quer realista e perfeita, da violação da jovem (que, admitamos mais uma vez, em prol de uma censura mais completa, é também filha de Licambas). Nesta cena final (vv. 4253) abandona-se o discurso directo. O narrador, participante – note-se a primeira pessoa que domina os seus comentários – descreve o acto violento do estupro, mas fá-lo num registo lento e pausado, o que nos leva a considerar que se cruzam aqui dois vectores: um cenário bucólico, quase propício ao encontro idílico dos apaixonados (que é, em simultâneo, categoria narrativa e código metafórico) e o acto obsceno do homem que prende a sua vítima pelo pescoço, para depois ter uma ejaculação precoce. A jovem é levada para o campo e estendida “num leito de flores” (vv. 42-43), o cenário de um coito nunca concretizado. Eis um dado revelador de ironia e genialidade: é entre flores frescas – símbolo de virgindade – que a vítima quase é desflorada. E falamos do mesmo elemento, da mesma flor que, desprovida das suas pétalas, tinha antes caracterizado a devassidão de Neobule (v. 27). Se já o verso 43 sugere violência, o agarrar pela força, a primeira marca flagrante de brutalidade surge-nos no verso 45: o sujeito prende a parceira pelo pescoço, impedindo-a assim de escapar às suas intenções. Um cenário bucólico para uma cena violenta, portanto, já que a jovem parece oferecer, de início, alguma resistência. Os versos 46-47 poderão significar que a donzela suplica ao atacante que a largue, agitando-se freneticamente, até que se acalma, e é então que quase é possuída. De qualquer modo, faz todo o sentido a inclusão do símile curto “como uma cerva” (v.47), comparando a vítima ao animal que, começando por fugir e resistir ao predador, não tarde desiste de lutar e se rende à força quase titânica de quem o quer dominar. Nos versos homéricos, estes animais, seres de poucas forças e indefesos, são já colocados em pastos verdejantes e temem os leões (e.g. Il. 4. 23; 22. 1; 8. 248; 22. 189; 21. 29; 15. 579 e Od. 4. 336; 17. 127; 19. 230). Com este aspecto de pureza e sensibilidade contrasta o sujeito masculino, o leão que persegue a sua presa. E também o cenário bucólico vem 51
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no seguimento da imagem da cerva, projectando a virgindade ainda inviolada dessa jovem. A tónica é posta na tranquilidade, no corpo fresco e sensual de uma virgem brutalmente tocado pelas mãos ásperas e selvagens de um guerreiro. Um corpo cândido que é vítima de ultraje; a branca tez de um peito profanada pelas mãos imundas do seu atacante impiedoso. O verso 50 pode sugerir a fase da puberdade – numa acepção de tipo fisiológico –, mas pode também ler-se à luz de outras concepções exóticas e místicas, do campo semântico da magia. As duas noções não são, contudo, inconciliáveis: é um corpo jovem que, talvez por isso mesmo, exerce uma espécie de encantamento sobre quem o contempla; a virgindade de uma rapariga, troféu por muitos desejado mas acessível a um único homem, afortunado. O orgasmo (vv. 51-53) dá-se precocemente, pelo simples tocar dos cabelos da parceira. O “vigor” do verso 52 concordaria com um adjectivo para nós ilegível (à excepção da sua terminação) que R. Merkelbach considerou ser leuk[on (“branco”) e M. West, seu companheiro na editio princeps do papiro, veio a defender tratar-se de therm[on (“quente”). Qualquer que seja a solução pela qual se opte, a referência ao esperma é óbvia, bem como a precipitação da ejaculação. A imagem final dos cabelos louros (v. 53), qual divindade homérica, encerra o poema com a sensualidade feminina, de uma pureza bastante agradável à vista do autor do estupro. No entanto, o termo pode também referir-se à zona púbica que, de clara tonalidade, reforça ainda mais a juventude da vítima, a sua frescura e inocência. Finalmente, podemos conceber, sem grande ousadia, que seria o simples toque entre ambos os órgãos sexuais o causador do prazer sexual precipitado, antes de haver lugar à penetração – o coitus ante portas. Ou seja, a violação não chega a ser consumada. O atacante, revelando uma evidente simpatia pela sua vítima, limita-se a introduzi-la no mundo das delícias de Afrodite, como que reservando para outra oportunidade o prazer máximo da sua desfloração. 52
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Qual o contexto poético em que devemos ler os versos que analisámos? Tudo leva a crer que a utilização de linguagem erótica ou obscena em poesia remonte aos cânticos orais de um qualquer ritual religioso, talvez em honra de Deméter, de onde surgiu também o metro iâmbico, claramente mais próximo da linguagem quotidiana. Era este um excelente meio de vingança, pois o sexo, como o canta Arquíloco, reduz o indivíduo à condição animalesca, completamente desprovido de razão e de sentimentos. A obscenidade de que se serve é propositada e intencional. Visa transformar a mais delicada donzela de família na perfeita scortum scorteum das míticas terras da Tessália, partindo do princípio muito próprio da Antiguidade de que Eros sempre foi uma força terrível, um nósos que afecta a humanidade e a corrompe, inundando-a de impudor. Mas nem o impudor deixa, a dado momento, de agradar ao poeta. Cultor também da mais apolínea sensualidade feminina, expressa em fragmentos como 30, 31 e 118 W., Arquíloco envereda pela construção de um autêntico código sexual obsceno, referindo-se, em ricas imagens, ao envolvimento sexual, normalmente violento (cf. frs. 119 e 125 W.) ou ao acto da felattio (frs. 42, 43 e 46 W.). Noutros versos preservados mostra-se num estado de alienação dado pelo desejo sexual extremado, que o faz perder o controlo de si e sentir-se atolado numa libido inebriante e contraproducente (frs. 191, 193 e 196 W.). O presente fragmento pode pois integrar-se numa categoria da poesia iâmbica de dialecto iónico, conhecida pelas suas narrativas eróticas na primeira pessoa, com representantes como Arquíloco, Íbico, Semónides e Hipónax, entre outros. Textos com uma linguagem acutilante, ora explícita ora poeticamente dissimulada. Podendo ou não tratar-se de uma fonte, foi por diversas vezes apontado o paralelo entre o fragmento que estudámos e o episódio da Dios apate da Ilíada (14. 312 sqq.)39. Ambos os poemas retratam uma A semelhança estrutural entre os dois textos é tal que há mesmo diversas coincidências linguísticas que levam a supor, não sem razão, que Arquíloco poderia ter em mente a realização de uma espécie de paródia ao passo épico. Vide J. Henderson 1976: 166-167 e J. Van Stickle 1975/76: 1-15. 39
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cena de sedução e a realização do encontro sexual, descrito de forma simbólica. Essencialmente na parte final (vv. 346-351), são muitas as semelhanças. As divindades em causa deitam-se num campo onde crescem erva, açafrão e jacinto – note-se a sinestésica descrição – e os amantes são cobertos por uma nuvem (quando no papiro se usa um manto). Arquíloco poderá muito bem ter adaptado este modelo ao género iâmbico, resultando o produto final numa clara redução do decoro que animava o passo épico, onde se moviam deuses como protagonistas. Eis a pequena história, a pequena narrativa de recorte dramático que nos conta o Papiro de Colónia. Não nos é muito difícil, de facto, imaginar a cena como é descrita, graças à riqueza plástica e semântica dos versos preservados. Um visualismo que contempla, num mesmo texto, tópicos de bucolismo a par de outros que sugerem a violação. Uma descrição simultaneamente subtil e grotesca, obscena e genialmente dissimulada pelos recursos poéticos de que se serve, que faz de uma mesma figura menina e devassa, inocente e promíscua, ignorante mas animada por uma imensa curiosidade pelos assuntos de Eros. Um texto que não pode deixar de se impor como modelo primordial de todo o género satírico.
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As flechas da calúnia Estêvão Rodrigues de Castro e a recepção de Arquíloco no Renascimento40 Perdidos, na sua maioria, os textos em que o poeta de Paros teria levado a cabo a desmoralização de Licambas e das suas filhas, esta tradição percorreu no entanto os séculos, sobretudo a partir dos autores que a referiram. Já Píndaro (P. 2.52-56 = Archil. test. 35 Gerber) se serve do modelo poético de Arquíloco, condenando o uso mal orientado do seu talento. Ou seja, ao psogos (desonra poética), prefere o poeta tebano o epainos (elogio). E o ateniense Cratino, comediógrafo de quem mais não conservamos do que fragmentos, escreveu mesmo uma comédia intitulada Archilochoi (frs. 1-16 K-A).41 Num dos fragmentos mais discutidos, comodamente intitulado “salsa de Tasos” (fr. 6 K-A), teria Cratino desenvolvido a imagem de um assado onde a própria família de Licambas é a carne que grelha, vítima dos virulentos ataques do iambógrafo.42 A introdução de um coro de Arquílocos, segundo R. M. Rosen 1988: 154, é sintomática das novas orientações invectivas que ganhara, com Cratino, a comédia ateniense. Merecem ainda destaque, para os nossos propósitos, esses outros passos em que autores latinos se lhe referem. Horácio trata a lenda em diversos momentos. No epodo 6. 11-14 (= Archil. test. 25 Gerber) ameaça o seu interlocutor de lhe fazer como fez Arquíloco a Licambas, isto é, de o desonrar publicamente através da sua poesia, a mais eficaz e mortífera das armas que possui: 40 Texto inicialmente publicado, com acrescentos aqui suprimidos, na revista Humanitas 2007: 241-256. 41 Os fragmentos da comédia são citados por R. Kassel e C. Austin 1983. 42 Em específico sobre este texto vide R. Prestagostini 1982: 43-52.
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Carlos A. Martins de Jesus Cuidado! Cuidado! É que contra os malvados me eriço com os cornos sempre prontos, tal qual o genro enganado pelo infiel Licambas ou o azedo inimigo de Búpalo.
O scholium ad loc (= Archil. test. 26 Gerber) funciona também como uma boa síntese do entendimento que, ao tempo, seria feito da lenda, transmitindo precisamente todos os dados que acima referimos. É ainda o vate de Mecenas quem, em epist. 1.19.23-31 (=Archil. test. 27 Gerber), orgulhoso por ter transportado para a língua latina o metro iâmbico, diz não ter sido seu projecto artístico usá-lo para desonrar ninguém. Mas terá talvez sido o verso 79 da Epistola ad Pisones (Archilochum proprio rabies armauit iambo) o que mais andou na boca e na pena dos intelectuais do Renascimento, como adiante confirmaremos. Ovídio (Ibis 53-54 = Archil. test. 30 Gerber) procede como Horácio, desta feita contra Íbis, a quem ameaça dirigir os seus iambos virulentos caso este seu destinatário não mude de atitude:43 E mais te digo: se insistes, contra ti o meu indomável iambo embebidos no sangue de Licambas há-de lançar os seus dardos.
E Marcial (7. 12. 5-8 = Archil. test. 32 Gerber), ele próprio cultor do género invectivo, serve-se do exemplo de Licambas para designar todos esses versos viperinos que muitos lhe atribuem e que diz não serem da sua autoria: Que me aproveita que alguns desejem fazer passar por meus os dardos embebidos em sangue de Licambas e que, sob o meu nome, se vomite o viperino veneno que os raios de Febo e a luz diurna se negam a suportar?44
43 Também nos versos 521-524 da mesma obra volta Ovídio a referir-se à lenda, acompanhada da de Hipónax. O passo é valioso pela afirmação ovidiana – impossível de confirmar –, de que Arquíloco foi o inventor (repertor) do género iâmbico. 44 Tradução de Delfim Leão (2001), Marcial. Epigramas. Vol. III, Coimbra, p. 19.
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Pelos testemunhos que até agora apontámos percebe-se claramente como a figura do poeta Arquíloco, já então convertida em lenda, funcionava para os autores latinos simultaneamente como paradigma poético e da raiva que pode ser desferida por uns versos aguçados, quando dirigidos contra este ou aquele indivíduo que, de algum modo, prejudicou o autor. Mas eles provam também como à palavra poética invectiva era já reconhecido um notável valor literário, que a enquandrava num género bem definido e em nada menos meritório. Antes de nos centrarmos nos textos de Estêvão Rodrigues de Castro, cumpre averiguar qual o tratamento de que foi alvo a lenda durante o Renascimento Europeu. Só assim poderemos, em seguida, ousar identificar as fontes mais directas de que se terá servido o médico e poeta português dos séculos XVI e XVII, cuja leitura deu o mote para este estudo. A primeira edição moderna de poesia grega a incluir fragmentos de Arquíloco, ao que pudemos confirmar, data de 1566, uma edição de Henri Étienne – de que conservamos na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra uma 5a edição45; mas nenhum texto do poeta aí contido estava directa e explicitamente relacionado com a lenda dos Licâmbidas. É que a tradição, como vimos acima, parece ter chegado ao Renascimento por via indirecta, ou seja, em especial pelas citações e comentários de autores latinos aos textos arquiloquianos, por esses outros passos em que o exemplo do iambógrafo tinha sido retomado, ou mesmo pelo conjunto das obras de carácter enciclopédico que, desde a Idade Média até ao Renascimento, proliferaram pela Europa. Um bom exemplo destas últimas é A. Alciato que, no seu livro de Emblemata,46 vai colher inspiração ao epigrama 7. 71 Pindari Olympia, Pythia, Nemea, Isthmia caeterorum octo lyricorum carmina, Alcaei, Sapphus, Stesichori, Ibyci, Anacreontis, Bacchylidis, Simonidis, Alcmanis, nonnulla etiam aliorum. Editio V graecolatina H. Stepha. recognitione quorundam interpretationis locorum, & accessione lyricorum carminum locupletata. Genevae, Oliva, Pauli Stephani, 1626. [Cota: UC-BG (B. Joanina) 1-2-9-81] 46 A editio princeps dos Emblemata de Alciato data de 1531. No entanto, a obra foi sendo reeditada até ao século XVIII, com a inclusão sucessiva de novos emblemas e comentários cada 45
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da Antologia Palatina (= Archil. test. 22 Gerber) para a elaboração do emblema 51 (s.v. “maledicentia”) ao qual faz seguir o seguinte dístico elegíaco: No túmulo de Arquíloco, esculpidas em mármore, vespas tinham sido feitas, da sua língua terrível pequeno símbolo.
Quanto ao emblema em si, ele conheceu três versões distintas, nas diversas reedições da obra, duas das quais reproduzimos no “Apêndice Iconográfico” (figs. 2-3). Frederico Moreli, o comentador da edição que seguimos, das mais tardias e completas (1621)47 é bastante claro ao justificar porque considera mais adequada a última versão do emblema (“Apêndice Iconográfico”, fig. 3): “foi construído um túmulo de mármore, à volta do qual estão vespas, insectos de génio malvado, por todos os lados. Apesar de certas edições as mostrarem a voar contra [o túmulo] ou saídas do túmulo, esta representação é a mais coerente, por mostrar as vespas esculpidas (de que fala o epigrama) em vez de vivas.” Mas, pelo texto do epigrama 7.71, qualquer uma das versões faz sentido: Este túmulo, junto ao mar, é de Arquíloco, que em tempos a azeda Musa foi o primeiro a armar da cólera de Equidna, manchando de sangue a quietude do Hélicon. Bem o sabe Licambas, que deplora o enforcamento das três filhas. Ao de leve, passa ao lado, caminhante, e jamais atices as vespas que rodeiam o seu túmulo.
Muito embora a Antologia Palatina não fosse muito divulgada até 1606, data em que Claude de Saumaise a terá descoberto vez mais vastos, até àquela que é considerada a última edição relevante, impressa em Madrid, em 1749. 47 Andrea Alciati Emblemata / cum commentariis Claudii Minois... Francisci Sanctii... et notis Laurentii Pignorii, novissima hac editione in continuam unius commentarii seriem congestis... et plusquam dimidia parte auctis, opera et vigiliis Joannis Thuilli; accesserunt in fine Federici Morelli, ... corollaria et monita. Patauii, apud Petrum Paulum Tozzium, ex Typographia Laurentii Pasquati, 1621. Existe um exemplar desta edição na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (Cota: UCBG-R-30-21). 58
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num códice do séc. XI, a relação de Arquíloco com a imagem da vespa48 parece denunciar que o epigrama a que acima aludimos seria já do conhecimento de A. Alciato. O próprio comentador da edição dos Emblemata que seguimos identifica já o paralelo com este texto (“Conserva-se um epitáfio de Arquíloco, onde se vê o emblema que escolhemos, no livro terceiro dos Epigramas Gregos”),49 mas não é completamente seguro afirmar que Alciato o tivesse presente aquando da composição deste emblema. O texto poderia de facto ser conhecido – e tudo leva a supô-lo –, mas tal conclusão não é condição sine qua non para explicar a inspiração clássica deste emblema, muito embora, repetimos, a proximidade seja quase inegável. É que a associação de Arquíloco à imagem da vespa remonta já a um passo de Calímaco (fr. 380 Pf. = Archil. test. 36 Gerber), que se refere à arte do iambógrafo nestes termos: prolongou a mordaz cólera de um cão e o aguçado aguilhão de uma vespa, e de ambos tem o veneno em sua boca.
De resto, Calímaco incluíra a edição Aldina de Píndaro (Veneza, 1513),50 se bem que o autor helenístico tivesse já sido editado por Lascaris (Florença, 1494). Qualquer que seja a fonte que tomemos como mais influente sobre Alciato, o que parece certo é que a imagem seria comum no Renascimento. Prova mais do que suficien48 Também Hipónax, iambógrafo do séc. VI a.C., foi associado à imagem vespa, pela acutilância dos seus versos contra Búpalo e Aténis (vide supra, págs. 39-46). No século V a.C., a caracterização do coro de Vespas de Aristófanes tem por base o génio irritadiço desses animais, metáfora do temperamento em tudo semelhante dos Atenienses. 49 A que edição da Antologia se refere o comentador? Muito embora a primeira edição (ainda parcial) date de 1754 (Anthologiae graecae a Constantino Cephala conditae libri tres, Leipzig), e a primeira completa de 1772-1776 (Analecta veterum poetarum graecorum, Strasbourg), sabemos que, desde a descoberta do códice do séc. XI (1606), Saumaise copiara os epigramas que faltavam à já conhecida Antologia de Planudes, não levando a bom porto, no entanto, o projecto de edição completa. Daí que, esporadicamente, alguns textos pudessem de facto ser conhecidos e ter incluído uma edição, em três livros, que contivesse essencialmente a Antologia de Planudes e alguns textos já da Antologia Palatina. 50 Pindari Olympia, Pythia, Nemea, Isthmia. Callimachi hymni qui inveniuntur. Dionysii de situ orbis. Lycophronis Alexandra. Venice, Aldus-Asulanus, 1513.
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te disso mesmo são os quatro adagia que Desidério Erasmo contemplou e se referem, de algum modo, a Arquíloco e à lenda dos Licâmbidas. Publicados pela primeira vez em Paris, no ano de 1500,51 em pleno dealbar do século XVI, e pese embora o esforço de censura da Inquisição, esta obra seria do conhecimento de qualquer intelectual do Renascimento. Os números 57, 58 e 80 correspondem, respectivamente, aos provérbios Archilochia edicta, Archilochi patria e Archilochi melos, sendo que os dois primeiros se referem à poesia invectiva e à sua força de maledicência.52 Mais importante é o número 90; o pisar ou tropeçar em Arquíloco parece ser uma adaptação do texto de Eust. in Hom, Od. 11.277 (= Archil. test. 24 Gerber), para além de recordar o epitáfio da Antologia Palatina que temos vindo a discutir. Como uma cobra ou um escorpião que se não deve pisar, também pela tumba desse poeta deve passar-se ao longe, não vá despertar a vespa adormecida. Pelos casos analisados, parece-nos pois coerente depreender que os grandes responsáveis pela recepção da lenda arquiloquiana terão sido os latinos Horácio, Ovídio e Marcial (em especial os dois primeiros), além dos epigramas da Antologia Palatina, apesar de, como vimos, o conhecimento explícito destes últimos não ser ausente de questionação. A. Alciato e Erasmo parecem igualmente ser marcos importantíssimos neste percurso de transmissão, funcionando como cristalizadores da lenda na sua versão renascentista.
O exemplar mais antigo conservado entre nós, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, é de uma edição de 1528: Adagiorum opus Des. Erasmi Roterodami per eundem exquisitiore quam antehac unquam cura recognitu[m], nec parum copioso locupletatu[m] auctario..., Basileae, ex Officina Frobeniana, 1528 (Cota: UCBG-4-10-17). Um outro exemplar conservado na mesma Biblioteca, datado de 1572, apresenta marcas de ter sido expurgado pela Inquisição (Cota: UCBG- S.P.-Ad-17-9). 52 O caso de Archilochi melos (“o canto de Arquíloco”) refere-se a um hino de vitória (fr. 324 W.), dedicado a Héracles, que foi em tempos atribuído a Arquíloco. A ele alude Píndaro (Ol. 9.1), entre outros autores. M. L. West 21998 considera o texto de atribuição duvidosa, preferindo encará-lo como um canto de circunstância, de origens orais, não da autoria do iambógrafo de Paros. 51
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Estêvão Rodrigues de Castro e o aguilhão arquiloquiano Médico e poeta, nasce em Portugal por volta de 1559-1560 e vem a morrer em Itália, a 30 Junho de 1638.53 É bacharel em Artes em 1585, obtendo o grau de licenciatura no ano seguinte. Matricula-se em Medicina nesse mesmo ano, concluindo a sua formatura em 1588. Exerce ainda medicina em Lisboa durante praticamente duas décadas mas, talvez pela sua sempre precária situação de judeu convertido ao Cristianismo – uma conversão que poucos aceitam como sincera – abandona Portugal já quase com cinquenta anos, em 1608. À pátria, como tantos outros do seu tempo, não mais havia de regressar, antes de a terra pender sobre os seus ossos. Permanece algum tempo em Espanha e em França, mas é em Itália que acaba por fixar-se, em Florença, a partir de 1610/1611. Aqui se destaca como médico brilhante e de renome, o que o leva a ser nomeado Catedrático de Medicina Teórica na Universidade de Pisa, lugar que ocupa até ao ano lectivo de 1635/1636. Tendo alguns dos seus poemas sido publicados ainda em vida de seu autor, sobretudo em apêndice a obras técnicas e científicas do campo da medicina, o grosso da sua produção literária (em Português, Castelhano, Italiano e Latim) apenas seria reunido e publicado pelo seu primogénito Francisco Rodrigues de Castro. Interessa-nos particularmente o conjunto de epigramas em Latim que seguem em apêndice ao seu comentário do tratado De Alimento de Hipócrates (Florença, 1635). Em grande parte deles, volta-se o autor para a polémica científica e literária, defendendo-se de acusações que lhe tinham sido feitas e atacando, ele próprio, os seus inimigos. E é justamente para este fim que concorrem as alusões feitas à lenda de Arquíloco e dos Licâmbidas. 53 Estas e outras datas relativas ao percurso biográfico de Estêvão Rodrigues de Castro são discutidas em pormenor por G. Manuppella 1967: 47 sqq. Vide ainda, do mesmo autor, a entrada na Enciclopédia Verbo, s.v. ‘Castro, Estêvão Rodrigues’ e o mais recente artigo de M. T. Geraldes Freire 1991: 27-47.
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G. Manuppella 1967: 75-80 desenvolve de forma sistemática a grave polémica que se terá instaurado entre Estêvão Rodrigues de Castro e um outro médico, professor da Universidade de Bolonha, de nome Fortúnio Liceti. Tudo terá começado quando, em 1631, Liceti publicou uma crítica acérrima ao ensaio De Asitia de Rodigues de Castro (Florença, 1630). Este último vai então responder no primeiro volume do seu De Alimento (Florena 1635). Com os textos que trataremos de seguida, como parece claro, estamos no início das desavenças. Logo no epigrama que abre a colecção anexa ao primeiro volume do De Alimento vemos, em epígrafe, a dedicatória in triobolum maledicorum Persius Trevius, alias Petrus Servius, remetendo para o médico Pietro Servi, natural de Spoleto, que tinha escrito, também ele, um livro contra o De Sero Lactis de Estêvão Rodrigues de Castro. No decurso do poema, é referido Liceti (v. 10). Para estes injuriadores, a ameaça do autor desonrado é clara: o enforcamento (vv. 14-15), que pode já encaminhar-nos no caminho da recepção da lenda de Arquíloco. Mas é três epigramas adiante que tal modelo se torna de todo evidente. Falamos dos dois textos com o número 87, com a epígrafe “Epigrama sobre o nosso Licambas”, o primeiro dos quais tece mesmo um resumo da lenda que nos ocupa: Em tempos Arquíloco, vazio de esperança mas cheio de raiva, com quem o sogro havia brincado em face de terrível mentira, as Musas, as Musas vingadoras num clamor invocava; logo com o sangue de Licambas temperam as suas armas. Contra a noiva, contra o sogro a feroz Musa armou seus iambos, 5 com os quais lhe lança a rede, castigo da traição, [de todos os lados. Surge agora, no tempo que é o nosso, um pior Licambas, a quem lançam a rede as mentiras e a má língua. Ó coisa digna de riso e lágrimas! Buscar honraria e pelo mísero amor da honra à forca ser arrastado. 10 O que quer que faça, o que quer que escreva ou o que quer que diga, tudo há-de ser devolvido ao seu pescoço.
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Não é completamente segura a identificação do alvo da invectiva como sendo qualquer um dos acima mencionados Fortúnio Liceti ou Pietro Servi, pese embora o facto de a publicação destes textos ser, como vimos, o primeiro momento de resposta de Estêvão de Castro à polémica que com o primeiro desses médicos se havia instaurado. Particularmente interessantes são de qualquer modo as duas expressões que destacámos, prova suficiente do conhecimento textual da tradição, em especial a partir dos textos latinos que acima referimos. De facto, o verso 4 recorda esse outro de Mart. 7.12.6 (Si qua Lycambeo sanguine tela madent), bem como o dístico de Ov. Ibis 53-54, que de novo transcrevemos: E mais te digo: se insistes, contra ti o meu indomável iambo embebidos no sangue de Licambas há-de lançar os seus dardos.
O sangue de Licambas, símbolo da sua morte, é motivo com frequência convocado para exemplificar as consequências da maledicência. Assim era já entre os autores latinos, e assim continua a ser a partir do Renascimento. Evocativo da recepção latina da lenda é o sintagma armare iambos (v. 5), ao que tudo leva a crer colhido em Hor. Ars. 79 (Archilochum proprio rabies armauit iambos). Bastante próximo é também, no verso 4, a adaptação do sintagma temperare Musam (Hor. epist. 1. 19. 88), que não excluímos ser do conhecimento do autor. Tendo em conta a profícua divulgação da obra horaciana no Renascimento, não é difícil aceitar esta inspiração clássica para o passo que estamos a tratar. Licambas é uma vez mais o exemplo usado no segundo epigrama com o número 87, texto que não revela, contudo, grande mestria poética: Perguntas porque contra ti se renovam os antigos iambos? Porque te toma a nossa idade por Licambas? Estes hábitos te assentam bem: mentiras, traições, rudeza de engenho e moleza de génio. 63
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Temos a identificação do iambo como género literário da invectiva, designação ligada mais à semântica dos seus versos do que, propriamente, às questões métricas que originalmente o definiam. Era isso que se via já nos epigramas da Antologia Palatina, mas também os latinos – de que Horácio e Marcial são o melhor testemunho – se orgulhavam de ter vertido para a língua do Lácio o metro iâmbico, tão habilmente cultivado por Arquíloco, um orgulho que, no caso destes últimos, aludia essencialmente à forma desse género poético. As acusações feitas versam o mau carácter do alvo da invectiva (v. 3), mas também a fraqueza de génio poético e a precária técnica literária desse autor, segundo o binómio horaciano engenho e arte. Terminamos com a referência ao epigrama 91, outro caso de invectiva contra Fortúnio Liceti, médico e professor natural de Rapallo, que neste texto é erroneamente considerado de Recco:54 Contra ti armaria a minha Musa ferozes iambos, soubesses tu o dano que podem causar-te. Porque te impressiona o crime, se não te envergonha ser criminoso? Se não tens cara, uma bofetada que mal te fará?
Volta a ocorrer o sintagma armare iambos, que já acima comentámos, mas é pelos trocadilhos de difícil versão do último dístico (scelus /scelestum e facies / faciet) que o poema ganha maior expressividade e valor literário. Outros exemplos menores poderiam abonar a tese de que Estêvão Rodrigues de Castro, que escreveu já na terceira década do século XVII, se fez receptor de uma tradição antiga que identificava o iambógrafo de Paros com a poesia invectiva. Uma tradição que, chegados ao Renascimento, é recuperada de forma tópica e superficial, assente sobretudo nos testemunhos latinos sobre a lenda – ou nos poetas do Lácio que nela se inspiraram –, para além dos textos da Antologia Palatina que a transmitiram e, de algum modo, a ajudaram a construir. Assim o esclarece G. Manuppella 1967: 424.
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Pretendemos com isto afirmar que, pese embora as origens tardias desta lenda, na sua génese fruto de interpretações demasiado biografistas dos textos do poeta, terá sido a partir do Período Helenístico que ela se configurou nos principais traços com que a vamos reencontrar a partir do século XVI.
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Baquílides de Ceos
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Fama, a que tudo vê e tudo conta Epinício 2 Dedicada, à semelhança da Ode 1, a Argeu de Ceos, por ocasião da sua vitória no Istmo, ao que tudo indica na prova de pugilato para rapazes, 1 a segunda ode epinícia do corpus de Baquílides, dos textos mais curtos nele contidos, não deixa de revelar, nos breves catorze versos que a compôem – uma tríade completa –, algumas das marcas mais expressivas do estilo do seu autor. E isto num poema epinício que não contempla, desde logo, a narrativa mítica, o que leva a crer tratar-se de um canto de circunstância. Avia-te, ó Fama que dás glória imensa, para Ceos, a sagrada, e leva a nova de gracioso renome, que na luta de audazes punhos Argeu obteve vitória; e recordou os êxitos que no afamado estreito do Istmo, ao deixar a divina ilha de Euxanto, patenteámos com as nossas setenta coroas. E a musa do lugar invoca o doce ressoar das flautas, para honrar com cantos epinícios o filho amado de Pântides.
estrofe
[5] antístrofe
[10] epodo
Nem sequer a natureza da prova foi imune a polémica. De facto, perdeu-se a epígrafe do epinício 1, e o texto de ambas as odes dedicadas à mesma vitrória no Istmo admite duas hipóteses: o pancreácio e o pugilato. Inclinamo-nos, como a maioria dos estudiosos, para esta segunda hipótese, até porque é o próprio Baquílides quem dá conta da propensão dos habitantes de Ceos para essa modalidade (Odes 6. 7). 1
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Do seu destinatário, conterrâneo do poeta, informa-nos uma inscrição de Iulis (Inscriptiones Graecae 12. 5. 608) que venceu duas vezes nos Jogos Ístmicos, ainda jovem, tendo também alcançado o triunfo nos Jogos Nemeus e em Olímpia, vitória esta celebrada por Baquílides nos epinícos 6 e 7. Sendo que podemos datar esta última do ano de 452 a.C., os críticos tendem a aceitar, para as vitórias no Istmo, o lapso temporal situado entre os anos 460 e 452. Teria sido o epinício 1 a composição oficial a celebrar o triunfo, cuja execução deveria assinalar o regresso à pátria do atleta. Já a curiosa ode que estamos a comentar, incomparavelmente mais breve, teria como propósito ser apresentada no local da vitória, logo após a obtenção do feito desportivo. O poema assume-se pois como um canto de ocasião – que não deixa por isso de revelar um cuidado esforço poético –, um canto que, no entanto, promete em si mesmo um outro mais elevado, mais digno, quem sabe, do vencedor que se está a elogiar. O poema segue uma ordem lógica, harmoniosamente distribuída pelas três estrofes que o enformam. Para começar, são-nos apresentados o vencedor e a vitória obtida, cujo anúncio é no entanto precedido pela invocação não à Musa, mas à Fama, entidade fantástica da mitologia que adquire, no poema, a função de arauto da boa nova, a notícia da vitória que é qualificada de charitonymon (‘de gracioso renome’, vv. 2-3), ou seja, que às Graças vai buscar inspiração. E é esse mesmo canto que a Fama deve fazer chegar até Ceos, onde nova e mais canora homenagem é de esperar que tenha lugar. A Fama, filha da Terra, foi por sua mãe gerada como forma de vingança contra os deuses olímpicos, na altura em que estes fulminaram os Titãs e os Gigantes que contra eles se tinham insurgido. A ela se referia já Hesíodo (Trabalhos e Dias, 760-764) – e é de crer que Baquílides conhecesse estes versos –, mas a mais completa descrição que desta figura nos chegou, bastante posterior, pertence a Virgílio
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(Eneida 4. 173-188),2 que dela diz ter tantos olhos quantas são as suas penas, e em mesmo número as bocas, as línguas e os ouvidos. Monstro horrendo – assim se lhe refere o poeta latino – a Fama é a figura que tudo vê, tudo ouve e tudo conta, a perfeita personificação do Rumor ou do Boato, a quem notícia alguma escapa. Ainda invocada por Baquílides no começo, bastante fragmentado, do epinício 10 (vv. 1-7), e sem a carga de monstruosidade que lhe atribui Virgílio, é pelo poeta tratada, à semelhança das Musas ou das Graças, como uma divindade que “concede glória imensa” (semnodoteira, v. 1). Glória que pertence ao atleta, em primeiro lugar, mas que se estende, nas asas da Fama que cortam os ventos, à pátria que viu nascer a ambos, vencedor e poeta que o canta. Disso dão conta os versos da antístrofe. É que uma vitória nos jogos não é algo de singular e autónomo, antes o culminar de uma herança étnica e genética que, no Istmo, teria já resulado em “setenta coroas”, isto é, setenta outras vitórias das gentes de Euxanto. Não é contudo forçoso admitir, como se procurou já demonstrar, que uma ilha tão pequena tivesse obtido setenta vitórias nos Jogos Ístmicos. Mais correcto é talvez entender este número como símbolo de uma grande quantidade de triunfos, motivo sobremaneira enaltecedor dessa terra que, uma vez mais, viu um filho seu superar a própria condição de mortal. Disso se encarregarão ambos, poeta e Fama, para além da “Musa local”, a tríplice equipa capaz de evitar que tão importante feito caia no esquecimento dos séculos. É de resto a Mous’ authigenes (v. 11) quem convoca “o doce ressoar das flautas” (v. 12), numa alusão ao canto exigido para o regresso do herói à pátria. Estão de facto bem presentes, nesta última estrofe, noções étnicas e genéticas. Se aceitarmos, como parece correcto, que o adjectivo authigenes se refere à Musa da terra pátria do vencedor – e não à do Istmo – é ela quem reclama cantos de vitória Influenciadas por Virgílio foram as descrições poéticas da Fama empreendidas por Horácio, Odes 2. 2. 7, Ovídio, Metamorfoses 12. 39-63, Valério Flaco, Argonáuticas 2. 117 sqq. e Estácio, Tebaida 425-431. 2
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(epinikiois, v. 13) para o “filho amado de Pântides” (v. 14), o ainda jovem atleta Argeu. Uma Musa que é sujeito sintáctico, no poema, e se evidencia no papel de agente principal da acção de glorificação do atleta, da sua família e da sua pátria. No intermeio de tudo isto estão duas entidades: uma divina, a Fama de milhares de olhos, milhares de ouvidos e milhares de bocas, e uma outra, que pelo canto aspira a semelhante divindade - o poeta.
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O galo de Urânia Epinício 4 Ainda ama a cidade de Siracusa Apolo de dourada cabeleira, e honra Hierão, seu justo governante; pois pela terceira vez, junto do umbigo da Terra escarpada, como vencedor Pítico ele é celebrado, graças ao valor dos cavalos de pés velozes. Cantou já o galo de doce voz de Urânia, senhora da lira; mas agora, de espírito propício, novos hinos lhe arremessou.
estrofe 1
E uma quarta vez, se em equilíbrio algum deus sustivesse a balança da Justiça, louvaríamos o filho de Deinómenes. É portanto lícito que o único entre os mortais que nos vales de Cirra, que o mar cerca, conseguiu tal feito, o cubramos de coroas e duas vitórias olímpicas lhe celebremos. Que há de melhor, a quem é amdo pelos deuses, do que de todas as partes receber da Sorte a sua porção?
estrofe 2
[5]
[10]
[15]
[20]
Hierão de Siracusa, famoso tirano a quem Píndaro dedicou a Ode Olímpica a que os alexandrinos concederam o privilégio de encabeçar o livro dos seus epinícios, é também ele o destinatário de mais esta breve composição de Baquílides, com bastante segurança datada de 470 a.C. À semelhança da ode 2, também este poema teria sido executado no local da vitória, imediatamente após o triunfo de Hierão em Delfos, na corrida de carros. Para o actual estado material do texto muito contribuiu, em 1938, a publicação de um fragmento disperso do grande Papiro de Londres por M. Norsa, que o adquiriu 73
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a um comerciante do Cairo.3 Assim se reconstituiu o que com grande grau de certeza é uma ode completa, composta apenas por duas estrofes de dez versos cada. O facto de a extensa Pítica 1 de Píndaro, com os seus 100 versos, celebrar exactamente a mesma vitória, levou os críticos a considerar que Hierão tivesse encomendado cantos epinícios a ambos os poetas, sendo que teria sido Píndaro o eleito para compor a ode oficial, com fins políticos mais marcados. A diferente conclusão chegou H. Maehler 2004: 101, ao considerar sintomática dos propósitos políticos do poema pindárico escolha do adjectivo Aitnaios para Hierão, ao que tudo leva a crer alusivo ao poder que o monarca exerceria já sobre toda a zona do Etna. Por seu turno, Baquílides refere-se-lhe com o tradicional Syrakosios,4 aludindo a Siracusa, sua terra natal. Como tal, considera o autor que estamos a seguir que a ode do tebano teria mesmo sido encomendada para ser executada no Etna – um autêntico jogo de propaganda –, enquanto que a de Baquílides poderia bem ter sido enviada pelo próprio poeta, antes do concurso, prevendo já a vitória de Hierão. Para cotejo deve ainda entrar o fr. 20 C de Baquílides, um encómio que se julga ter sido composto e enviado pelo poeta para apresentação num festim organizado por Hierão no Etna. Porque de uma vitória em Delfos se trata, a ode principia com a alusão ao deus que nesse local tem o seu templo, Apolo, que recebe o tradicional epíteto chrysokomas (v. 2), comum na épica, na poesia de Hesíodo e na lírica arcaica.5 Referido o deus, é ao atleta que se dirigem as palavras seguintes, no fundo a maior parte da ode (vv. 3-18). No texto de Baquílides, a afeição de Apolo por Siracusa não se 3 M. Norsa 1941: 155-163. O conhecimento da obra de Baquílides sofreu uma revolução impressionante quando, na década de noventa do século XIX, se descobriu um papiro que continha, segundo a editio princeps de F. G. Kenyon 1897, catorze epinícios, seis ditirambos e uma série de fragmentos noutros géneros poéticos. 4 O Papiro Oxirrinco 2222, um catálogo de vencedores, refere-se a Hierão precisamente com o qualificativo Syrakosios. 5 Alguns exemplos da recorrência com que este epíteto é aplicado a Apolo: Ilíada, 4. 2; Hesíodo, Teogonia 947; Alcman, fr. 1 PMG; Píndaro, Olímpicas 6. 41, 7. 32, Píticas 2. 16.
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justifica pelo facto de esta ser uma cidade onde o culto ao deus é particularmente significativo, antes e só porque dela é natural o vencedor que se está a elogiar. A razão dessa honra, que ambos, deus e poeta, prestam a Hierão e à sua cidade, é em seguida explicada: uma vitória em Delfos, o “umbigo da terra escarpada”6 (v. 4) que, para mais, não é a primeira. O poeta é claro ao apontar o triunfo presente como o terceiro deste atleta7 (v. 4), e considera mesmo que poderia esta vitória ser já a quarta, não fosse um desarranjo da justiça ter negado ao tirano um merecido primeiro prémio (vv. 11-13). Numa dessas ocasiões, pelo menos, teria já o poeta procedido à celebração do triunfo de Hierão. No contexto de uma das mais ricas metáforas animais de todo o corpus conservado de Baquílides, o poeta é assimilado ao “galo de Urânia”8 (v. 8), o animal que desperta quem o escuta para a luz do dia, marcando deste modo uma fronteira entre as trevas da noite – metáfora do esquecimento – e a luz do sol – imagem da glória e da imortalidade pela poesia. A melhor prova de que o galo é metáfora do próprio poeta reside no adjectivo que o qualifica, adyepes (v. 7), o “de voz doce”, para além de ser habitual, em Baquílides, o recurso a outras imagens animais para o mesmo efeito: ele é uma abelha na ode 10 (v. 10), um rouxinol na ode 3 (v. 97) e uma águia, mensageira de Zeus, na ode 5 (vv. 19 sqq.). O galo, que não tem já para nós a carga poética de um rouxinol ou de uma abelha, conservava no entanto, para os Gregos, um profundo lirismo. Anunciador da manhã, arauto dos primeiros raios de sol, além de sugerir a glória poética de que a luz do dia é símbolo, era também o animal combatente por natureza, pelo que, no contexto da ode epinícia, pode funcionar como nuntius uitoriae. É o galo (poeta) ainda o sujeito do poema, pelo menos até ao verso 10, passo em que Baquílides dá mostra do valor da sua técni6 Pausânias 10. 16. 3 informa que a pedra colocada no centro do templo de Apolo em Delfos era considerada um marco do centro do mundo. A isso alude também Píndaro, Pean 6. 17. 7 Hierão tinha de facto sido triunfante, na mesma prova, nas 26ª e 27ª Píticas (482 e 478 a.C.). 8 É o próprio Baquílides quem se assume servo de Urânia, a sua Musa de eleição (Odes 5. 13 sqq.).
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ca descritiva, fortemente impressionista e pictórica. A dedicatória de cantos epinícios a Hierão vem referida com a forma verbal epeseisen (v. 10), que à letra signfica “agitar”, muito provavelmente no cumprimento ainda do quadro metafórico de um galo que pavoneia, orgulhoso, as suas penas, imagem da palavra poética. Não falta o elogio da ascendência do vencedor, na pessoa de Deinómenes, seu pai (v. 13). Mas num ápice se regressa ao elogio do atleta, que em tom hiperbólico é apresentado como o único dos mortais (mounon epichthonion, v. 15) que conseguiu tal feito naquelas paragens de Delfos, essa terra tão cara a Apolo, cujos vales, cercados pelo mar, recebem por isso o epíteto anchialoisi (v. 14), de sabor homérico. A ele, Hierão, é lícito que todos os seus súbditos, chegado que seja à pátria, o cubram de coroas, em celebração não apenas dessa vitória, mas de todas as outras, entre as quais se contam duas em Olímpia. Não deixa de parecer estranha a alusão, neste ponto, aos triunfos conseguidos nos Jogos Olímpicos, em 476 e 472 a.C. (dya t’ olympionikias, v. 17),9 o que levou mesmo alguns autores a entenderem que o verso era corrupto e a reconstruí-lo de forma a evitar a referência a Olímpia. No entanto, não nos é difícil conceber um poeta que, ávido de crédito – e em que patrono melhor buscá-lo do que Hierão? – se esforçou por incluir, num mesmo poema, todo o curriculum deste vencedor. Virando-se para a corte de Siracusa, como fizeram Píndaro e Simónides, tem Baquílides consciência da oportunidade que isso representa para a sua carreira de músico profissional itinerante. Para terminar como começou o poema, aproveita Baquílides o exemplo do atleta celebrado e constrói os últimos três versos com a gnome, parte fundamental do género epinício que busca a universalização de determinada regra de conduta moral. Numa ode sem mito, a mensagem final não decorre do exemplo de um herói lendário, antes foca, uma vez mais, o valor da poesia. Porque é querido aos deuses O triunfo de 476 a.C. foi imortalizado quer por Píndaro (Olímpicas 1) quer pelo próprio Baquílides (Odes 5). Quanto à vitória de 472 a.C., estranhamente, dela não conservamos qualquer composição poética. 9
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(theoisin / philon, vv. 18-19), agradará a Hierão receber toda a espécie de graças, toda a espécie de favores que provenham da Sorte (apo Moiran, v. 20); como tal, há-de agradar-lhe o canto presente, sinal, no limite, do amor que a ele e à sua cidade devota esse Apolo de cabelos loiros, que a todos os poetas fornece inspiração. Essa é, pelo menos, a esperança deste poeta que busca mecenas. Toda a ode 4 se apresenta como um canto sobre o próprio canto, uma composição que encontra, na mais recente vitória pítica de Hierão, um pretexto para algo que resulta claro da sua leitura: a busca de patrocínio. Mesmo ocultando este objectivo, por ventura menos nobre, a capa que o esconde faz ressoar bem alto, qual galo de Urânia que anuncia o dia que desponta, o valor poético da arte de Baquílides, mestre exímio de uma narrativa plástica, impressiva e imagética.
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Flores de canções doces como o mel fragmento 4 M.
Certamente dos textos mais interessantes e comentados de Baquílides, o fragmento 4 M. ficou famoso em especial pelos versos 61-80, um emocionado e expressivo hino à Paz que aproxima o poeta lírico do ideário partilhado pelos mais significativos representantes da literatura grega do século V a.C. Não parece haver dúvidas de que o texto é um péan, género originalmente ligado ao culto de Apolo. ... E gera a Paz para os mortais riqueza, portadora de grande fama, e flores de canções doces como o mel; faz com que nos bem torneados altares a loira chama queime coxas de bois e ovelhas de rica lã, que os jovens em exercícios gímnicos, flautas e cortejos se entretenham. Nas esculpidas pegas de ferro dos escudos, das escuras aranhas se notam as teias,
[65]
estrofe 3
[70]
as lanças pontiagudas e as espadas de dois gumes, destrói-as a ferrugem. (faltam duas linhas) das brônzeas trompetes não se ouve o estrépito, [75] nem o sono, da doçura do mel, das pálpebras é arrebatado à manhã que conforta o coração. De amáveis banquetes se enchem as ruas e os cantos para rapazes alastram como labaredas. [80] (faltam dez linhas)
antístrofe 3
Depois de vinte linhas iniciais, para nós totalmente perdidas, os primeiros versos que nos é possível ler – e que aqui não traduzi79
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mos – referem-se, como já notaram na Antiguidade Ateneu (178 b) e Zenóbio (2. 19), à estada de Héracles na casa de Ceíx, em Tráquis. O que está em causa, nos sessenta versos inicias – dos quais perdemos, na totalidade, pelo menos trinta e oito (vv. 1-20 e 25-39) – é a narração da etiologia do templo dedicado a Apolo Piteu em Ásine, a cerca de 10 km da Nauplia, na Argólida, recinto sobejamente conhecido na Antiguidade, a avaliar desde logo pelo testemunho de Pausânias (2. 36. 4-5).10 Conta o mito, uma vez mais segundo Pausânias (4. 34. 9), que o povo que viria a habitar Ásine, os então desigandos Dríopes, habitavam no Parnasso. Contra eles lutou Héracles, por razões que não são isentas de discussão, levando-os depois para Delfos para aí os consagrar a Apolo, que lhe vaticinou que os levasse para o Peloponeso, mais propriamente para Ásine, na Argólida (vv. 41-43). Aí devia esse povo fixar-se, e cabia ao filho de Alcmena demarcar os limites do novo território com oliveiras vergadas até ao solo (vv. 44-48). Só mais tarde Melampo, um adivinho, fundaria nesse local um altar e um recinto consagrados a Apolo (vv. 48-53), que Baquílides diz claramente ter sido “a raíz deste [recinto” (kein]as apo rizas tode chr[esmoidion, v. 54). Fica pois confessada, ao concluir a narração do mito, a intenção etiológica que presidiu à sua inclusão no texto. Não é clara a forma como o texto original faria a transposição deste mito para o hino de louvor aos benefícios da Paz. Os versos 55 sqq. parecem descrever as graças que o deus, agradado pelo recinto que lhe foi erigido, derramou sobre esse local, e a referência à prosperidade (ol[bon, v. 59) denuncia que seria esse o elo a unir o final do epodo 2 à estrofe 3. Eirene (paz) e ploutos (riqueza) são os dois conceitos – também divindades – em jogo entre os versos 61-80, o trecho que já Estobeu (4. 14. 3) nos transmitiu isoladamente, citando a autoria de Baquílides, Informa o autor que, muito embora a cidade tenha sido destruída pelos Argivos no século VIII a.C., o santuário foi poupado e terá continuado a ser o centro religioso da região. Daí que seja possível que a composição de Baquílides tenha sido executada in loco. 10
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como se de um verdadeiro hino à Paz se tratasse. Eirene (vv. 61.62) ocupa o lugar destacado de sujeito durante os primeiros sete versos deste passo (vv. 61-68); dela provêm todas as benesses que aos mortais é dado obter, das quais a primeira e a mais concreta é a riqueza, granjeadora de grande fama (megalanora plouton, v. 62), uma riqueza que se mede em todos os níveis da vida humana. Desde os Poemas Homéricos que a riqueza é a consequência mais imediata da paz (e.g. Odisseia 24. 486); em Ésquilo (Suplicantes 555) e num fragmento de Eurípides (fr. 453 Nauck) – só para dar dois exemplos da tragediografia do século V a.C. – a paz recebe mesmo, à semelhança do texto de Baquílides, o epíteto bathyploutos (“imensamente rica”). Prossegue Baquílides a concretização simbólica dessa relação, pintando por palavras dois dos mais ricos e sinestésicos quadros de toda a sua produção conservada. Só em períodos de paz florescem canções da doçura do mel (v. 63)11 e, em homenagem à divindade, ardem nos altares as vítimas sacrificiais, consumidas pela “loira chama” (v. 65). É notável o pormenor visualista que atinge a narração, quando se classificam os altares de “bem torneados” (daidaleon, v. 64) e, das vítimas que sobre eles são imoladas, se refere a nobreza da sua lã (eumalon, v. 66). Ao mármore dos altares (implícito), ao suave tacto da pelugem dos animais e ao dourado da chama que os consome, acrescenta o poeta, neste quadro inicial de intenso sabor sinestésico, a agitação e o barulho próprios da juventude eufórica, ocupada em exercícios, música e cerimónias religiosas (vv. 67-68). Num derradeiro momento (vv. 69-72 e 75-80) o cenário é guerreiro, de um belicismo no entanto apagado e adiado, como que serenamente adormecido na quietude escura e fria de uma sala de armas onde há muito ninguém entra. Assim o permite a paz e a prosperidade que se fazem sentir. Delicadas e precisas são as pinceladas que retratam por palavras as “esculpidas pegas de ferro dos escudos”, Já Hesíodo dizia que a Paz fazia florir as cidades e os seus habitantes (Trabalhos e Dias, 227-229). Na Teogonia (902), quando se refere ao nascimento da deusa – ela que é uma das Horas, filhas de Témis e Zeus – esta recebe o epíteto tethaluia (‘florescente’). 11
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tomadas pelas teias de pequenas aranhas escuras (vv. 69-70), quais pontos negros bem visíveis numa tela que da côr do ferro está pintada. E de armas postas de lado, porque inúteis, vai ainda falando o poeta, que nelas nota, com satisfação, a acção perniciosa do tempo e da ferrugem (vv. 71-72). Grande fama teve, na Antiguidade, o motivo das armas abandonadas. Se Arquíloco afirmara abertamente ter deixado para trás o escudo como forma de escapar à morte (fr. 105 W.) – mas dizia, pormenor tantas vezes ignorado, que o fizera contrariado –, o que está em causa no texto de Baquílides não é uma moral anti-épica, antes a total inutilidade das armas em período de paz. É que até o mais valente Ájax ou Heitor preferiria a paz às agruras da negra guerra. O quadro da armaria esquecida em frios cantos da casa, de que a humidade tomou já conta, traz de imediato à memória o fragmento 357 L-P atribuído a Alceu (sécs. VII-VI a.C.): A enorme casa resplandece de bronze. O tecto está todo adornado com elmos brilhantes, ondeiam os brancos penachos das crinas de cavalo, adorno das cabeças dos guerreiros. As cnémides resplandecentes, defesa contra o dardo potente, ocultam os cabides donde pendem. As couraças de linho novo e os escudos côncavos amontoam-se no chão. Ao lado jazem espadas da Calcídica, cinturões inúmeros e túnicas. Disto tudo não nos esqueçamos, desde que empreendemos esta tarefa.12
Também ele um quadro profundamente pictórico, onde se misturam o brilho dos elmos e o branco dos penachos, remete para a mesma sensação de abandono que nos é transmitida pelo texto do poeta de Ceos, e seria também um elogio da paz, não fosse o incentivo, de sabor bélico, do verso 6. Pelo menos três epigramas votivos da Antologia Palatina actualizam o mesmo tema. Ânite de Tégea (6. 123) dedica a uma lança, abandonada na quietude do templo de Atena, dois dísticos carregados de côr e sentimento; e Mnesalcas, em outros dois epigramas (7. 125 e 7. 128), refere-se a um escudo abandonado, 12
Tradução de M. H. Rocha Pereira 92005: 130. 82
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saudoso no entanto dos heróicos tempos em que sentia sobre si, a toda a hora, o vigor das flechas dos inimigos.13 Mas porque não há, no texto baquilidiano, qualquer guerra para prosseguir na manhã seguinte, não se ouve com a Aurora que desponta o altivo som das trombetas; da doçura do mel (meliphron), como o canto, é também o sono (v. 77), que não mais tem que ser interrompido ao raiar do sol para deletério combate.14 Recuperando o cenário de festa que Héracles, na narrativa mitológica do início do poema, encontrara na sua visita a Ceíx (v. 22) – seria também esse, afinal, um cenário de paz e prosperidade, capaz de convocar o hino final? – novamente se alude às ruas animadas de banquetes e pelos cantos a rapazes, de assunto homoerótico (paidikoi th’ hymnoi, v. 80).15 O cenário final é de euforia e descontracção; numa palavra, felicidade. O caso do hino à paz assume-se como um texto sem paralelo possível na literatura do tempo, pelo menos até que os anos da Guerra do Peloponeso, na segunda metade do século V a.C., levassem outros poetas como Eurípides e Aristófanes a louvar os benefícios da paz. Do primeiro, não cabendo neste espaço qualquer abordagem ao tratamento do tema em peças como Hécuba (424-423 a.C.), Suplicantes (422 a.C.?), Troianas (415 a.C.) ou Helena (412 a.C.), recordamos em especial, pelas similitudes com o texto de Baquílides, o fr. 453 Nauck, da tragédia Cresfonte (ao que tudo indica de data anterior a 425 a.C.), quando da Paz se diz que é “dispenseira de riquezas e a mais bela entre os imortais.”16 O caso do poeta cómico é especial, pois que à dialéctica paz / riqueza O tema chegaria aos autores latinos. Entre os líricos, o caso de Tibulo 1. 10. 49-50 é, talvez, o melhor exemplo. 14 Imagem semelhante encontramos em Píndaro, Píticas 9. 23-25. 15 Duas são as interpretações possíveis para paidikoi hymnoi: ora canções entoadas por rapazes, ora canções de amor em honra de rapazes, de temática, portanto, homoerótica. H. Maehler 2004: 234 prefere esta segunda opção – que também nós seguimos –, em especial pela forma verbal usada nesse verso, phlegontai, que alude à imagem do fogo e da paixão como uma chama cujas labaredas se propagam no ar. 16 Tradução de J. Ribeiro Ferreira 21993: 372. 13
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dedicou duas comédias, inituladas precisamente Eirene (421 a.C.) e Ploutos (388 a.C).17 O século IV, também ele um período negativamente rico em conflitos militares, seria o mais propício à defesa do valor da koinê Eirenê, uma paz universal para o mundo grego, de que o Discurso sobre a Paz de Andócides, proferido em pleno contexto da Guerra de Corinto, em Atenas, no ano de 491 a.C., é um marco incontornável. O culto oficial à deusa Eirene seria introduzido na cidade por volta de 374 a.C. A iconografia desta deusa – pois que da personificação de um conceito abstracto estamos a falar – desde cedo conciliou as noções de paz e riqueza, prosperidade e abundância. São disso símbolos, em especial, a cornucópia e o próprio deus Pluto (a Riqueza), filho de Eirene e, por norma, representado como uma criança ao colo da mãe, que para ele olha com ternura. Uma ânfora datada de 360 / 359 a.C. mostra bem essa associação entre as duas divindades, mãe e filho, sendo que é o último quem segura na mão a cornucópia da abundância. Mas a peça mais significativa da Antiguidade terá sido o imponente grupo escultórico intitulado Eirene, da autoria de Cefisódoto – do qual não conservamos senão uma série de cópias – que se crê que, por volta de 370 a.C., estivesse exposto na ágora de Atenas (Apêndice Iconográfico, fig. 4).18 Paz, riqueza, prosperidade e abundância. Tudo isso concorre para o desenhar dos quadros de paz – literários e iconográficos – que proliferam em especial nos anos de guerra, estejam em conflito Gregos contra bárbaros ou Gregos contra Gregos. Elogiar a paz é, nesses períodos, uma necessidade compensatória. No tempo de Baquílides, no entanto, a ausência de outros textos semelhantes permite-nos, uma vez mais, atribuir-lhe a palma dourada da inovação.
Sobre o tratamento aristofânico do tema, em especial em Paz, vide J. Ribeiro Ferreira 1993: 423-442. 18 Vide LIMC 3, s.v. ‘Eirene’ (especialmente as figuras 6, 7 e 8). 17
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Novidades papirológicas
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Poetas gregos nas areias do Egipto Algumas relíquias papirológicas trazidas a público55 O ano de 2005 ficará por certo na memória dos classicistas pelas inúmeras relíquias que, paulatinamente, vieram à luz, saídas de fragmentos de papiros até então perdidos ou simplesmente impossíveis de decifrar. Textos que continuamente colocam em cheque todas as opiniões que aspiravam à certeza, verdadeiros documentos com o poder de iluminar velhas dúvidas, suscitar outras ou mesmo abalar todo um sistema cultural ou religioso. Em Oxirrinco, 56 antiga cidade grega do Egipto, durante os séculos III a.C. e VIII d.C. os habitantes depositavam os manuscritos que já não utilizavam numa vasta área, uma espécie de lixeira papirológica, local que começou a ser explorado em 1897 por Bernard Grenfell e Arthur Hunt. Esta dupla de arqueólogos viria a dar origem à actual Egipt Exploration Society (EES), até à data a responsável pela edição dos papiros decifrados. Todo o material recolhido nos finais do século XIX foi armazenado na Sacker Library (Oxford), onde gerações de estudiosos têm feito o seu tratamento, leitura e publicação. A colecção, a mesma que em 1992 deu a conhecer ao mundo a famosa Elegia de Plateias de Simónides, conta com cerca de 500.000 papiros de diferentes dimensões, a maior parte deles Publicado no Boletim de Estudos Clássicos 44 (2005: 11-15). O site oficial de Oxirrinco, onde podem ver-se a história da cidade, os índices, as imagens dos papiros publicados e ainda a explicação das novas técnicas de tratamento de imagem utilizadas, é o seguinte: www.papyrology.ox.ac.uk. No site da sociedade pode ainda obterse um pequeno curso on-line de papirologia, com a oferta de exercícios práticos de decifração de papiros (www.lib.umich.edu/pap/k12/k12.html). 55 56
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em língua grega, 57 sendo que apenas cerca de 5000 estão decifrados (1% da totalidade). Dirk Obbink, professor da Universidade de Oxford e um dos responsáveis pela edição dos papiros, falou em entrevista à National Public Radio de Inglaterra (20 de Abril de 2005) sobre o manancial de papiros ainda ilegíveis, o que começa a ser superado pela aplicação de novas técnicas multi-espectrais de imagem, desenvolvidas pela NASA. Estas técnicas tinham já sido aplicadas na vila romana de Hercullanum, em 1999, para ler papiros carbonizados aquando da erupção do Vesúvio (79 d.C.). Consistem, muito brevemente, na aplicação de filtros sucessivos que vão isolando diversas frequências de luz. Para cada papiro é utilizada uma frequência específica (de infravermelhos ou mesmo, em alguns casos, ultravioletas) que permite ir destacando o preto da tinta do fundo escurecido do papiro. Este procedimento começou a ser utilizado em Oxirrinco a partir de 2002, e só agora começam a vir a público os primeiros grandes resultados do seu uso. Estalou a polémica no segundo trimestre deste ano.58 No volume 69 dos papiros, o destaque pertence ao papiro atribuído a Arquíloco (P. Oxy. 69. 4708 = “Apêndice Iconográfico”, fig. 5) que em seguida comentaremos. Podem no entanto ler-se textos de Hermas, textos poéticos adéspotas, de Lísias e Isócrates (o autor mais representado no volume, com 21 fragmentos) e uma pequena relíquia do Dialogi deorum de Luciano (P. Oxy. 69. 4738). A acrescentar a estes, há uma série de textos não literários, já habituais nestas colecções.59 Os próximos volumes da EES, segundo as notícias que têm vindo a público, prometem textos inéditos de Hesíodo, Sófocles60 (um 57 O grego passou a ser a língua oficial do Egipto a partir de Alexandre o Grande (séc. IV a.C.), pelo que é natural que a maioria dos papiros esteja em grego, a par de uma minoria de textos em latim, copta, hebraico, persa e outras línguas. 58 Vide: D. Keys, N. Pyke 2005: 1, 3; J. Owen 2005. 59 Sabe-se que é prática corrente em Oxford atribuir o estudo destes fragmentos não literários a estudantes, jovens investigadores que assim se iniciam nos domínios sempre imprevisíveis da papirologia. 60 Vide A. Altichieri 2005 e U. Kulke 2005.
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fragmento da tragédia perdida, Epigonoi = P. Oxy. 71. 4807; “Apêndice Iconográfico”, fig. 6), Eurípides (fragmentos do Telephos), Menandro e Luciano. De Parténio, poeta do século I a.C., foi publicado um texto que atesta um novo fim para a história mitológica de Narciso (P. Oxy. 69. 4711 = “Apêndice Iconográfico”, figs. 7-8)61, além de atestar outros mitos de heróis que sofreram metamorfoses. O volume 70 publicou já uma série de textos de Demóstenes, não todos inéditos, além de textos bíblicos e de evangelhos apócrifos. No número 71 abundam os escólios a Homero, os textos de evangelhos e esses outros de natureza não literária. Especial atenção parece estar a despertar um papiro já publicado onde as novas tecnologias de imagem permitiram agora ler o que se crê ser uma passagem do evangelho gnóstico de Maria Madalena (P. Oxy. LV. 3814).62 Não deixa de ser curioso que o texto tenha vindo a público num momento em que a polémica se instalou à volta da verdadeira relação entre Jesus e Maria Madalena, em especial depois da publicação do Código Da Vinci de Dan Brown. E isto porque o texto, ao qual tivemos acesso apenas em tradução inglesa, refere algo só identificável como uma lua-de-mel do casal, que viaja de barco pelo mar Egeu. Dividido entre a missão de filho de Deus e a natureza de homem, Jesus quer cumprir a missão do pai; Maria não pára de se queixar, lamentando estarem a ser defraudadas as suas expectativas em relação àquele casamento. Foi em 1945 que um camponês árabe fez aquela que muitos consideram a descoberta arqueológica mais valiosa do século XX, em Nag Hammadi, a 500 Km do Cairo: 13 papiros escritos em copta, datados do século III, contendo cópias do que se crêem ter sido originais gregos de evangelhos não contemplados na tradição da exegese bíblica. Maioritariamente de índole cristã, os manuscritos incluem ainda textos da tradição pagã e judaica.63 O Evangelho Vide o nosso estudo adiante (págs. 119-127) e o artigo de D. Keys 2004. O texto foi anunciado e comentado, brevemente, por J. Sheen 2005. 63 Entre nós, foi recentemente publicado um artigo sobre estes textos: H. Barbas 2005. 61 62
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segundo Maria Madalena integrava já, no entanto, um códice papiráceo conservado no Departamento de Egiptologia do Museu Nacional de Berlim (BG 8502). Durante o século passado foram ainda decifrados dois papiros provenientes de Oxirrinco, rapidamente identificados com este evangelho apócrifo: P. Oxy. 41. 2949 e P. Oxy. 50. 3525. O texto em grego que contêm não coincide por completo com a versão copta. Crê-se que o original grego remonte ao século II d.C.64 Estes e outros achados, que aqui não coube comentar, são uma boa amostra de doce ameaça que, cada vez mais, pende sobre os estudiosos de literatura antiga: uma ameaça constante de novidade. Em alguns anos, tudo leva a supô-lo, poderemos estar em posse de textos que contrariam ideias e princípios há séculos tidos como certos. Essa é, no fundo, a maior magia da Antiguidade: a sua perene presença e capacidade de actualização.
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Sobre o Evangelho segundo Maria Madalena, em particular, vide A. Piñero et alii 2005. 90
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Quando os Gregos sofreram terrível derrota O novo P. Oxy. 69. 4708 atribuído a Arquíloco65 Depois de uma versão experimental, em rede durante vários meses, Dirk Obbink presenteou o mundo com a sua edição crítica do papiro, que atribuiu a Arquíloco, publicada no tão aguardado volume 69 da colecção dos Oxyrhynchus Papyri, disponível apenas em Outubro de 2005. Sob a classificação de P. Oxy. 69. 4708 contam-se oito fragmentos, sendo que é o fr. 1 aquele que pode ser lido enquanto peça com unidade literária (30 linhas, 24 das quais maioritariamente legíveis). A descoberta é tão mais importante se, a aceitar a atribuição, pensarmos que é o maior fragmento elegíaco do poeta de Paros, apesar das lacunas e do esforço de reconstituição necessário para a sua leitura. É essa reconstituição, da autoria de Dirk Obbink (The Oxyrrynchus Papyri 69 (Oxford 2005) 18-20, que aqui traduzimos e comentamos, procurando aduzir alguns subsídios que julgamos pertinentes para a discussão da atribuição do texto. Discutiremos ainda o seu enquadramento possível no actual corpus arquiloquiano, bem como a sua importância em termos da versão do mito que atesta. ... Se de facto é… pela invencível força de um deus, fraqueza ou cobardia não cumpre chamar-lhe. Virámos as costas para rápida fuga, que de fugir era a hora. Também em tempos, sozinho, Télefo da Arcádia dos Argivos pôs em fuga o numeroso exército. E bem fugiam os valentes, a tanto o destino dado pelos deuses os impelia, mesmo de lanças munidos. O Caíco de belas correntes de destroços dos que tombavam transbordava, e a planície da Mísia, enquanto ao longo da praia do mar marulhante, aniquilados às mãos de um implacável mortal, 65
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Artigo publicado, com texto grego e aparato crítico, na revista Biblos 2006: 399-422. 91
Carlos A. Martins de Jesus em atropelo debandavam os Aqueus de belas cnémides. Com alegria, nas naus velozes embarcavam os filhos e os irmãos dos imortais, que Agamémnon à sagrada Ílion levava para combaterem. 15 Desviados então da rota que seguiam, deram à costa. Na bela cidade de Teutrante desembarcaram e aí, recuperando o fôlego, eles e os cavalos, por irreflexão gravemente o coração se aflige. Pensavam a cidade de altas portas dos troianos invadir, 20 mas pisavam o solo da Mísia fértil em colheitas. Héracles então os enfrentou, gritando ao magnânimo filho, cruel e implacável nas agruras da guerra, Télefo, que aos Dânaos funesta fuga provocando, suportou na frente da batalha, por agrado ao pai … 25
W. B. Henry 1996: 26 reparou que o P. Oxy. 6. 854 (= fr. 4 W.) e o P. Oxy. 30. 2507 (Adesp. Eleg. 61 W.) tinham sido escritos pela mesma mão, daí a atribuição inicial do fragmento ao iambógrafo de Paros. O crítico baseou-se ainda, para a defesa da atribuição, no facto de a linha 10 do texto ser também actualizada, admitindo variações, no fr. 1 W. (cit. Ath. 627c). A descodificação do P. Oxy. 69. 4718 permitiu então concluir que os três fragmentos pertenceriam a um único rolo de poemas de Arquíloco, compostos no metro elegíaco. Tudo o que vemos, na abertura do texto, é a referência à “invencível força de um deus” (v. 2), face ao que não cumpre chamar cobardia ou fraqueza à acção humana por ela determinada (v. 3). A reconstituição do verso 4 parece confirmar que até aqui se vinham narrando as agruras de uma batalha real (mais real pelo menos do que a que se seguirá, do campo do mito), até ao momento em que a fuga foi o último remédio. A desinência passiva de primeira pessoa do plural (v. 4), ocorre exclusivamente neste ponto do texto, o que, a par da mudança do tempo verbal do presente para o aoristo, nos versos seguintes, prova de forma suficiente a mudança de cenário e de contexto. De facto, a partir do verso 5, tem início a narrativa mitológica, exemplo de um colectivo de heróis que, mais forte que qualquer outro, foi também obrigado a desertar do campo de batalha: o embate 92
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entre Gregos e Mísios na terra destes últimos, com prejuízo para os primeiros. Que ambas as histórias, a real e a fantástica, se aproximam, parece claro, apesar das lacunas das primeiras linhas. É clara a concepção de um exército que, massacrado, evita a todo o custo uma fuga que se tornará irreversível. Do mesmo modo fogem os Aqueus face ao poder dos Mísios e, em especial, de Télefo, que o poeta insiste em dizer que tudo enfrentou sozinho (m]ounos). Tem aqui um papel central o jogo óbvio entre os verbos phobeo e phebomai (vv. 6-7), sendo que Télefo e a sua facção “põe em fuga” os Aqueus “que fogem”, mesmo sendo valentes (v. 7) e homens munidos de lanças (v. 8). A linguagem utilizada não é estranha em Arquíloco. Várias relíquias de narrativas marciais atestam o termo stratos (frr. 88 e 112.3 W.), mas é pelo conhecido fr. 114 W. que podemos ver as mesmas intenções irónicas de condenação da ideologia épica, já canónica no iambógrafo. Igualmente comum nas narrativas marciais parcelarmente preservadas do poeta é o adjectivo aichmetes, especialmente significativo para o que nos importa em 91. 5 W. e 324. 13 W.66, ambos exemplos do uso da expressão como aposto, semelhante ao que encontramos no novo papiro (v. 8). Começam a esboçar-se as intenções partidárias do poeta: claramente a defesa do valor individual de Télefo (mais do que do exército que comandava) em prejuízo da armada grega, na tradição homérica exaltada até ao extremo. Podemos também olhar para a questão de outra forma. Pelo epíteto que o caracteriza, Télefo é, na verdade, um grego. O valor exaltado é pois, nesta ordem de pensamento, o do indivíduo contra o colectivo; do eu contra o grupo, esse eu que parece querer tomar o centro do mundo nos poetas do período arcaico, o mesmo indivíduo que vale por ser corajoso e não por ter um porte heróico, canonicamente heróico, como os heróis de Homero (fr. 114 W.). Um eu que, contudo – e porque tal é inerente a ser 66
Este fragmento é considerado espúrio por M. L. West 21998: 104. 93
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mortal – sofrerá também as agruras da moira e dos deuses; um único homem que, à imagem só possível de Aquiles, eleva o seu valor acima do grupo que chefia (os Mirmidões num, os Mísios no outro) e do que lhe é adverso (os Gregos e, em particular, Agamémnon, em ambos os casos). A designação polyn straton (“poderosa armada”) acaba então por soar irónica – da fina ironia a que o poeta nos habituou – quando vemos este exército ser repelido por um só homem.67 O curioso é que é em tom épico e mesmo homérico que esta inversão de papéis ocorre no texto, todo ele cravejado de fórmulas e epítetos cujas ocorrências fundamentais são os dois poemas épicos maiores que preservamos. Por outro lado, é transversal a todo o fragmento a noção de que os gregos (convocados para exemplificar a retirada necessária da armada real, perceptível nos primeiros versos) não podem ser condenados pela fuga que encetaram. O que o texto de facto parece querer dizer é que vitória e derrota, coragem e cobardia são, mediante as circunstâncias, próprias de todo e qualquer indivíduo ou colectivo de homens. E, neste sentido, estão bem patentes os princípios do tão apregoado individualismo da Época Arcaica, de que Arquíloco, na esteira de Hesíodo, foi considerado precursor. O verso 8 é portador de uma imagem bastante forte: o rio Caíco, da Mísia,68 transborda com os cadáveres e destroços para ele lançados naquela batalha. A fórmula eurreites K[aikos é um dos exemplos da linguagem homérica presente em todo o texto (cf. Il. 6. 508), estrategicamente colocada em final de verso. Encontraremos a mesma imagem de morte e destruição, séculos mais tarde, em Filóstrato (Her. 23), vulto da segunda sofística que alude ao mesmo episódio: … diz-se que de tantos Mísios que morreram na dita [batalha] ruboresceu de sangue o rio Caíco. Talvez seja nesta linha de pensamento que D. Obbink 2006b se refira ao novo texto como passível de leituras de índole pós-colonial, o que, no caso, quererá dizer pós-homérica. 68 Da existência deste rio nos dá testemunho Hdt. 7. 42. 1. 67
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A imagem é muito próxima, mudando apenas as vítimas, que na versão do sofista são os Mísios. Se não tinha em mente o texto do papiro (e isso nunca o saberemos) teria ao certo um outro da mesma tradição épica.69 Mas disso falaremos adiante. O verso 10 é talvez aquele que mais imediatamente remete para Homero. Os Gregos comportam-se na praia do mesmo modo que o sacerdote Crises quando regressa do acampamento aqueu, depois de negada por Agamémnon a devolução da sua filha (Il. 1. 34).70 Recordemos que na conhecida elegia a Péricles (fr. 13 W.), a que ainda nos voltaremos a referir, a fórmula polyphloisboio thalasses marca presença (v. 3). Esta ocorrência tão genérica, por si só, nada prova acerca da atribuição do novo papiro a Arquíloco, num contexto literário marcado precisamente pela utilização de fórmulas homéricas. Mais uma vez, o poderoso exército que à partida tudo vence sofre uma caracterização disfórica; o verso 11, na reconstituição que vimos seguindo, traz consigo a marca concreta da derrota – e uma derrota violenta – no que era suposto ser uma força militar invencível, a caminho de Tróia para a destruir. Ela é completamente aniquilada por um “cruel mortal” (v. 11) e forçada a recuar desastradamente, fugindo de uma batalha que sabe não poder ganhar. Temos de seguida outra fórmula homérica à qual é impossível ser indiferente: embarcam os Argivos nas “naus velozes” (v. 13) e preparam a fuga. Mais do que em Homero, ela marca presença, com ligeiras variações, num outro fragmento do poeta (fr. 89. 21 W.), retirado da Inscrição de Mnesiepes71. Note-se como também Eur. Supl. 687-693 nos dá uma imagem semelhante, pela boca do mensageiro, que conta a disputa entre Atenienses e Cadmeus pelos cadáveres Argivos perecidos no famoso cerco às sete portas de Tebas: “… a poeira que em todo o céu / se propaga – que a havia em grande quantidade – / ou os corpos arrastados para cima e para baixo / pelas correias e os rios de sangue derramado, / quer dos que tombavam, quer dos que dos bancos em destroços / contra o solo, de cabeça, se precepitavam com violência / e entre as estrilhas dos carros abandonavam a vida.” (Trad. José Ribeiro Ferreira). A recuperação desta imagem por Eurípides, numa tragédia do ciclo tebano, pode muito bem sugerir que ela era recorrente nos poemas do Ciclo Épico, como a Tebaida. 70 A fórmula ocorre ainda em Hes. Op. 648. 71 Sobre a Mnesiepis Inscriptio, monumento construído em honra de Arquíloco, vide o recente estudo de P. C. Corrêa 1998: 193-207. 69
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Os Gregos são designados como “filhos e irmãos dos imortais” (v. 14), perífrase sem paralelo na literatura grega conhecida. Daí avançarmos com a hipótese de se tratar de mais uma marca irónica, pretendendo referir que até os mais aparentados com os imortais (como eram e, acima de tudo, se julgavam os Aqueus) podem sofrer a mais vergonhosa das derrotas, se assim o entender um deus ou a moira. E só neste sentido é lícito olhar para o fragmento como uma narrativa mítica ilustrativa do poder desta entidade suprema, segundo hipótese que desenvolveremos adiante. A frota grega dirigia-se de facto a Tróia, sob o comando de Agamémnon, para a destruir (vv. 1415). Parece contudo que estamos perante uma atitude que racionaliza já a empresa helénica, nunca referindo a vingança da honra e da confiança, antes pondo a tónica na crueldade desmedida (porque injustificada) de uma campanha militar vã. O verso 16 vai introduzir uma analepse dentro do que, no fundo, era já uma alargada analepse mitológica. Tróia, bem ao tom da épica, é referida como “a cidade de altas torres” (v. 20). A tese defendida é a de que os Gregos se perderam e, quando atracaram na Mísia (v. 21), julgavam estar a pisar solo troiano. Um acidente ditado pela moira, ou um simples erro de cálculo, que trouxe a morte a esse exército, fazendo-o recuar e, cobarde, fugir do inimigo. A noção de paragem premeditada com fins estratégicos (evitar uma possível aliança entre mísios e troianos), como veremos, é muito posterior ao Ciclo Épico. É de supor, no verso 22, uma epifania,72 no caso de Héracles, o herói mais popular de toda a mitologia clássica, a quem o texto confere já, em termos práticos, o papel de deus. É ele quem incita Télefo, seu “magnânimo filho” (v. 20), a enfrentar, sozinho, os gregos. O adjectivo mo]unos (v. 25), já presente no verso 5, volta a surgir neste momento, como que reforçando o esforço individual desse que é, no poema, o verdadeiro herói.73 72 Para um melhor entendimento sobre o sentido das experiências epifânicas entre os gregos vide H. S. Versnel 1987: 42-55, B. Dieterich 1983: 53-79 e S. Hornblower 2001: 135-147. 73 De referir como a presença de deuses em narrativas guerreiras está atestada em vários
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Os versos 23-25 continuam a descrição dessa batalha mitológica onde se evidencia Télefo, que tem neste momento uma verdadeira aristeia breve. Nada é possível ler do verso 26 em diante, a não ser uma possível desinência de primeira pessoa do plural (v. 28) que, em confronto com a mesma categoria gramatical do verso 4, pode indiciar o regresso do poema à narrativa real, para inequivocamente concluir as semelhanças entre ambas as histórias. De outro modo, a aceitar que a narrativa mitológica continuava com o ferimento de Télefo às mãos de Aquiles, também este herói serviria para ilustrar a teoria do poder supremo e indiscriminado da moira. Mas não mais nos permitiram ler as areias do Egipto que durante séculos ocultaram este achado. O mito de Télefo apresenta-nos um homem com origem divina, como tantos outros, cujo destino se cruza com o da destruição de Tróia. Filho de Héracles e de Auge, a filha de Aleu, rei de Tégea é portanto, quanto à sua origem, um ser da Arcádia (grego) como o fragmento bem confirma (v. 5). Para a chegada do herói à Mísia são difusas as explicações. A mãe Auge, nascido o seu filho, teria sido abandonada por Aleu, avô da criança, num cofre lançado ao mar alto que depois teria aportado à Mísia. Noutra versão, teria sido abandonada no mar e o filho na montanha da Arcádia, logo após o parto. O pequeno terá sido alimentado por uma cerva,74 e depois recolhido por pastores do rei Córito, que o entregaram a este monarca. É quando interroga o oráculo em busca da mãe que este lhe ordena que parta para a Mísia, onde de facto a encontra, na corte do rei Teutras. A lenda contém lugares comuns da mitologia, como sejam a exposição do recém-nascido e a sua recolha por pastores que depois o entregam para ser criado numa casta superior, ou mesmo a separação dos pais, pré-requisitos, no fundo, de qualquer herói. O abandono da mãe numa arca lançada ao mar remete-nos ainda para o mito de Dânae, narrado em dois fragmentos de Simónides (frr. 543 e 553 Page).75 fragmentos de Arquíloco; para o seu levantamento e estudo, veja-se P. Corrêa, 1998: 253-269. 74 Télefo tem na sua etimologia, de resto, o termo elephos (“cervo”). 75 Para o texto e comentário a estes fragmentos líricos vide L. N. Ferreira 2005: 298-307. 97
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Teria por engano morto Hipótoo e Pereu, dois irmãos da sua mãe, pelos vistos o assunto dos Aléades de Sófocles.76 Nos Mísios,77 o mesmo tragediógrafo terá desenvolvido o reconhecimento entre mãe e filho, história que também conhecemos por Higino (fab. 100), mitógrafo latino do período imperial. A tragédia ática mais conhecida sobre o assunto, embora fragmentária, é o Télefo de Eurípides, onde se pinta a imagem do homem solitário com uma ferida que não sara, a não ser em contacto com a arma que a provocara. É isso que leva o herói a Áulide onde, oito anos passados sobre o recontro bélico na Mísia, os Gregos estão mais uma vez parados, desta feita à espera de ventos favoráveis para zarpar para Tróia. Vestido de mendigo, oferece-se aos Argivos para lhes indicar o caminho para a cidadela, porquanto Aquiles aceite curá-lo, e ameaça degolar o pequeno Orestes se não lhe for concedido o que pretende.78 Não obstante a fama que a tragédia granjeia, por natureza, a determinada versão mitológica, a versão da lenda que se segue no fragmento que nos importa é outra, de origens épicas anteriores ao tempo dos tragediógrafos. Falamos de uma tradição veiculada pelo chamado Ciclo Épico, uma série de grandes poemas maioritariamente perdidos sobre os quais temos sobretudo testemunhos e alguns (poucos) fragmentos preservados. Quanto a Télefo e à escala do exército grego na Mísia a caminho de Tróia – paragem não premeditada à qual se seguiria, anos depois, a estagnação por falta de ventos em Áulide – são dois os poemas que o referem: um deles ficou conhecido por Kypria (Cantos Cíprios) 79 e trata das aventuras anteriores à chegada a Soph. frr. 74-91 Radt. Soph. frr. 409-418 Radt. 78 Eur. frr. 696-727 Nauck. Os principais dados para o nosso conhecimento da tragédia euripidiana homónima do herói são fornecidos por Higino (fab. 101) e por Aristófanes, quando a parodia ora em Acarnenses ora em Mulheres que Celebram as Tesmofórias. O pormenor do disfarce do herói de mendigo, ausente da história de Higino, parece ser uma criação de Eurípides, motivo suficiente para a paródia aristofânica de que falámos. Para uma análise desta paródia à tragédia vide M. F. Silva 1987: 112-131. 79 Para a discussão da datação, atribuição e resumo, vide M. Davies 1989: 33-52. Sobre 76 77
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Tróia. Conhecemos a acção deste texto indirectamente, através do testemunho de Proclo, que na Chrestomathia fez o resumo deste e de outros poemas que considerava importantes. No século XIX a descoberta da Epítome de Apolodoro veio trazer nova luz a este texto. Também Apolodoro resumira os Kypria e, face a Proclo, introduzia dados novos. Traduzimos de seguida parte do resumo do canto 7, segundo estes dois autores, como na edição dos fragmentos épicos gregos de M. L. West 2003: 73, sendo que as inclusões do segundo são apresentadas entre parênteses rectos: Depois que se lançaram ao mar, aportaram na Teutrânia e atacaram-na, julgando tratar-se de Ílion. Veio depois Télefo para a defender, matou Tersandro e Polinices e ele próprio foi ferido por Aquiles. [Comandando os Mísios, fez regressar às naus os Helenos e matou muitos deles, entre os quais Tersandro e Polinices, que o tinham enfrentado. Mas quando Aquiles o atacou ele não o enfrentou: antes, na fuga, ficou preso numa videira e foi ferido no tornozelo.]
As coordenadas da tradição épica para este encontro bélico entre Gregos e Mísios são então a) a paragem na Mísia e o ataque à ilha, julgando estarem a atacar Tróia; b) o poder de Télefo que chefia os Mísios; c) o ferimento de Télefo por Aquiles. Apolodoro vem trazer uma novidade: d) o tropeçar do herói numa videira, que se crê epifanicamente causado por Diónisos, como motivo do seu ferimento.80 Uma tradição da qual não possuímos, durante séculos, qualquer prova textual, até que Grenfell e Hunt publicaram um outro papiro de Oxirrinco atribuído ao Catálogo das Mulheres de Hesíodo, em 1968 incluído na edição dos Fragmenta Hesiodea a cargo de Merkelbach-West (P. Oxy. 1359 = fr. 165 M-W), onde a acção de Télefo contra os Gregos, sendo embora um assunto secundário, parece já fatal: o Ciclo Épico, o mesmo estudo e M. L. West 2003. No primeiro explica-se resumidamente em que consiste o ciclo e que poemas o integram e, no segundo, reúnem-se os fragmentos e testemunhos com ele relacionados, acompanhados de tradução em inglês. 80 Sobre a tradição vide também schol. (D) Il. 1. 59. 99
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… (?) … (?) ] e muito deleitou os imortais”[ assim falou; ele] tremia e suava ao ouvir o discurso dos imor]tais que, resplandecentes, surgiram à sua frente. 5 A rapariga], que dignamente recebera no palácio, criou-a e cuidou] dela, honrando-a como às suas próprias filhas. Ela gerou] Télefo da Arcádia, rei dos Mísios, ao envolver]-se com Héracles nas teias do amor, quando ele] perseguia os cavalos do ilustre Laomedonte 10 que, ]excelentes, tinham sido criados na terra da Ásia; a raça dos magnânimos Dárdanos[ ]de toda esta terra expulsou. Entretanto Télefo] pôs em fuga dos Aqueus de brônzeas túnicas [os guerreiros, e estes embarcaram] nas negras n[aus 15 ]aproximou-se da terra bem fornecida de heróis ]e violência e massacre[ ]por trás[ ]e chegaram[ ]famoso[ 20 ]pela sua glória[ … (?) … (?) … (?)
O tema central deste texto é a história mítica de Auge, mãe de Télefo, e a sua relação com Héracles, herói cujo estatuto de divindade, muito discutido pelos críticos,81 é aceite, como vimos, no papiro que estamos a comentar. Tudo se passa, no fragmento de Hesíodo, quando este perseguia os cavalos de Laomedonte no cumprimento de mais um dos seus trabalhos. A relação com Héracles é apresentada como voluntária, ditada pela força do amor (v. 9), pelo que parece claro que a noção de violação é uma criação da tragédia do século V. A figura de Télefo, fruto desta relação, surge a partir do verso 8, onde está atestada, em acusativo, a fórmula que ocorre no novo papiro atribuído a Arquíloco: Telephon Arkasiden. É retomada a história do herói no verso 14, para, pelo que é possível depreender por entre as lacunas 81 Para a discussão do estatuto divino de Héracles entre os Gregos vide J. Ribeiro Ferreira 21993: 130-134.
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textuais, tratar do recontro bélico entre Gregos e Mísios, na ilha destes últimos. O cenário de guerra, agitado, é o mesmo, e diversas são também as coincidências textuaios: uma série de termos que sugerem o massacre, a morte e a coragem (vv. 14 e 17). Também a referência ao embarque dos argivos nas negras naus (v. 15) revela uma estreita relação com o texto do novo papiro. O estilo formular, o tom épico e o verso em hexâmetro provam a antiguidade do texto, e denunciam tratar-se da versão mais antiga do mito, a mesma que poderá ter servido de base aos Poemas Cíprios, como vimos, e ao P. Oxy. 69. 4708 que estamos a ter em conta. Este último é então precioso por constituir o primeiro exemplo textual de uma longa narrativa mitológica, em metro elegíaco, inspirada na tradição do Ciclo Épico. Recupera alguns dos aspectos que vimos serem centrais tanto no enredo dos Kypria como no fragmento de Hesíodo, como sejam: a) os Gregos desviaram-se acidentalmente da rota e julgavam estar em território troiano, pelo que encetaram o ataque (vv. 16-21); b) encontram um contra-ataque fortíssimo, em especial pela acção individual de Télefo, que os empurra para as naus numa atitude de fuga (vv. 5-12). Ausentes estão: c) a epifania de Diónisos e o embriagamento de Télefo, por acção directa do deus que o faz tropeçar num ramo de videira; d) o ferimento do herói pela lança de Aquiles; e) a perda do escudo de Télefo e f) a sua disputa pelos heróis gregos. A suposição da perda e disputa do escudo no novo fragmento não parte então de qualquer dado textual presente no papiro, antes de uma série de conjecturas, possíveis mas sempre incertas, que procuram relacionar o texto com o corpus das elegias de Arquíloco. Não nos parece este esforço contudo necessário para provar a atribuição ao poeta de Paros. Pausânias, que partilha ainda da posição do engano e do desvio acidental no caminho para Tróia, ao referir-se a este recontro bélico na Mísia como “a corajosa acção de Télefo contra Agamémnon e os seus, quando os Helenos, enganando-se na rota para Ílion, devas101
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taram a planície da Mísia tomando-a como Tróia.” A mesma teoria quanto ao motivo da paragem, mas algo novo: a acção dos gregos é tomada como violenta e poderosa, claramente contra a versão épica do mito. Uma preocupação que não está já na mente de Filóstrato. Heroikos, diálogo dramaticamente passado em Elaio, uma cidade da Trácia, conta com apenas dois intervenientes: o homem que guarda as vinhas e os jardins perto do túmulo de Protesilau, mercador fenício e primeiro herói a cair morto em Tróia. O criado revela que o fantasma de Protesilau não só o ajuda nas tarefas como também discute com ele assuntos relacionados com a guerra de Tróia e com os Poemas Homéricos. Todo o diálogo é então, programaticamente, uma reflexão sobre as características heróicas, buscando a desmistificação de determinadas falsidades da tradição. No capítulo 23 o jardineiro começa por demitir-se de referir como os Aqueus saquearam a Mísia, sendo Télefo rei, e de como este foi ferido por Aquiles, remetendo para os muitos poetas que trataram o assunto.82 Logo de seguida recusa-se a aceitar que tal paragem tenha sido um engano, argumentando em todas as direcções: navegavam orientados pela adivinhação (que não falharia, à partida); ao aportarem naquela terra, em plena Arcádia, encontrariam de certo muitos pastores e uma paisagem distinta de Tróia; ou ainda, Ulisses e Menelau tinham já estado em Tróia como embaixadores, daí que cedo reparassem no engano. Posto isto, diz claramente que os gregos atacaram a Mísia intencionalmente, para evitar que a ilha se aliasse aos troianos. Refere-se ainda à cuidada acção militar liderada por Télefo, considerando (e esta é, note-se, a opinião de Protesilau, combatente na Mísia pelos Helenos) que aquela foi a pior guerra que os gregos tiveram que travar. Ou seja, muito embora nesta versão a vitória pertença aos argivos, ela não é uma vitória fácil, encontrando uma oposição à altura. 82 O assunto está completamente ausente dos Poemas Homéricos. Assim, os poetas a que o texto se refere seriam ao certo os do Ciclo Épico.
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As novidades do texto de Filóstrato prendem-se com a perda e disputa do escudo de Télefo. Na versão do sofista, foi o próprio Protesilau quem imobilizou Télefo e lhe arrancou o escudo, dados que tudo leva a crer serem oriundos da tragédia ática. O pormenor da epifania de Diónisos e da queda do herói por embriagamento, provocado directamente pelo deus, são completamente ignorados. Filóstrato conheceria a tradição – de resto, ele próprio se referiu aos poemas que a trataram – mas não cabem essas considerações fantásticas na sua narrativa, que ao jeito da sofística se quer dialéctica, racional e coerente na argumentação. Termina esta questão com a pretensão de Aquiles em obter de Protesilau o escudo do herói, sendo-lhe este negado pelo conselho dos Argivos (o iudicium armorum), logo depois da poderosa imagem do rio Caíco rubro do sangue dos Mísios mortos em combate. Não nos parece, pelas linhas legíveis no novo papiro, que estes aspectos fossem contemplados nas partes perdidas do poema. Hipóteses de inclusão do papiro no corpus de Arquíloco Do poeta conhecemos, segundo a edição de M. L. West 21998: 1-108, apenas 17 fragmentos de poemas elegíacos (frr. 1-17), o metro em que o novo papiro se nos apresenta. Afinal, qual o contexto de uma narrativa mítica como esta nas elegias de Arquíloco? Mesmo em textos não escritos no metro elegíaco Arquíloco demonstra um aturado tratamento dos temas relacionados com a guerra: o lamento pelas desgraças dos Magnésios (fr. 20 W.) e dos Tássios (frr. 102, 103 e 228 W.), bem assim a narração de uma vitória sobre os Náxios (fr. 94 W.) e o quadro da defesa de uma muralha (frr. 98 e 99 W.) são só alguns exemplos. Note-se que os três últimos fragmentos que referimos integram a Inscrição de Sóstenes, parte de um monumento erigido em Paros para louvar o poeta (séc. I a.C.). Por estes textos – de que, até ao momento, possuíamos apenas escassas parcelas –, terá Arquíloco merecido tal honra. M. L. West 1974: 14-18 refere-nos oito possíveis contextos de execução elegíaca. Criticando-o, o já clássico estudo de E. L. Bowie 103
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1986: 13-35 não vê razões para um tão elevado número, considerando, no global, apenas dois: as elegias que seriam recitadas em ambiente simposíaco e aquelas mais adequadas aos festivais públicos. Quanto à presença dos versos de Arquíloco nos festivais, integrando o repertório dos rapsodos, ela está suficientemente atestada por diversas fontes. Platão (Ion 531a, 532a) refere-nos, pela boca de Sócrates, como o poeta, que a história se habituou ler como iambógrafo, compôs também poesia heróica: Sócrates: Pois bem, hei-de arranjar tempo para te ouvir, mas agora responde-me só a uma pequena pergunta: és especialista exclusivamente de Homero ou também de Hesíodo e de Arquíloco?83 Sócrates: Assim, segundo dizes, Homero e os outros poetas, entre os quais estão não só Hesíodo mas também Arquíloco, falam das mesmas coisas, mas não do mesmo modo, isto é, um fala bem e os outros menos bem?
Pelas perguntas de Sócrates, sempre conduzidas com vista a uma única resposta possível, depreendemos a fama de Arquíloco na Antiguidade, enquanto poeta que tratava temas épicos, muito embora inferior a Homero, o único que Platão permite no seu Estado ideal. Mas temos testemunhos internos bastante relevantes.84 O próprio Arquíloco se confessa poeta e músico, em dois fragmentos bastante conhecidos (frr. 1 e 120 W.) , pelo que faz sentido integrá-lo no grupo desses artistas que se deslocavam de cidade em cidade para participar em concursos poéticos.85 Que participara nos festivais em honra de Deméter e Diónisos, tão importantes na sua ilha e, de resto, frequentemente associados à sua família, é fácil de conceber pela leitura de alguns versos preservados, em especial pela sua poesia iâmbica. Depois, morto o poeta, a Citamos, para o Íon de Platão, as traduções de V. Jabouille 1999, Lisboa. Cf. Archil. frr. 131, 134, 219-221 W., Archil. test. 16, 34, 41 e 63 Gerber e ainda AP. 7. 674 e 11. 20. 85 O mais completo estudo sobre a mobilidade poética na Grécia antiga encontra-se em L. N. Ferreira 2005. 83 84
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sua obra não terá deixado de percorrer o mundo grego na voz e no instrumento dos rapsodos. É o que nos permite concluir Platão, como vimos, mas também Heraclito (Archil. test. 34 Gerber), Ateneu (14. 620c) e Pseudo-Plutarco (De Mus. 1134d). A leitura destes textos não pode deixar de sugerir, por outro lado, a composição arquiloquiana de poesia heróica, decerto a mais afamada nestes festivais públicos. Poesia heróica que não tinha que ser necessariamente em hexâmetro,86 mas tão só de tom épico e marcial, em metros variados, com especial destaque para o dístico elegíaco. E disso temos vários vestígios textuais, vários fragmentos (na sua maioria papiráceos ou epigráficos) que descrevem situações de guerra,87 entre os quais a adesão à causa de Tassos contra os Náxios e o elogio dos chefes de Eubeia são só dois exemplos. Provam estes versos, isso sim, a continuidade do tratamento dos motivos da épica, animados agora pelas novidades temáticas e formais desse afamado individualismo nascente da Época Arcaica. Pode, de tudo isto, depreender-se que Arquíloco compôs elegias guerreiras ou de tema nacional, como o fizeram, por exemplo, Calino e Tirteu? Ou mesmo elegias históricas? Para discutir esta questão temos que partir de um pressuposto: as designações que ainda agora utilizámos não existiam ao tempo, pelo que os temas podiam facilmente fundir-se num só poema. Um poema de banquete, ainda que elegíaco, é acima de tudo um poema de circunstância, não espartilhado por um único tema, assunto ou registo. Mais curioso é o testemunho de Píndaro (O. 9. 1-5): A melodia de Arquíloco ecoando em Olímpia, canto de vitória três vezes repetido, suficiente para no sopé do monte Cronos guiar o cortejo a Efarmosto, celebrando com os companheiros.88 J. A. Notopoulos 1966: 311-315 sugere que Arquíloco compôs poesia em hexâmetro. Para o seu elenco completo e análise vide P. C. Corrêa 1998. 88 Tradução de Frederico Lourenço 2006: 129. 86
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Aceitam os críticos, com alguma passividade, que o texto a que Píndaro se referia era o fr. 324 W., repetido três vezes em honra do vencedor quando não havia um epinício especificamente composto para a ocasião. Talvez por isso M. L. West 21998: 104 se tenha recusado a considerá-lo autêntico, incluindo-o nos textos espúrios. De qualquer modo, não nos parece prova suficiente para afirmar que Arquíloco compusera já epinícios. Os três versos do fr. 324 W. seriam, quanto muito, excerto de um poema sobre Héracles, ou pelo menos um texto onde o herói era interveniente. E assim chegamos a um ponto fulcral. Já E. L. Bowie 1986: 34 se interrogava acerca da presença do mito de Héracles, entre outros, em Arquíloco (frr. 286-289 W.), quando os exemplos mais frequentes do corpus são as fábulas de animais, usadas em contexto de invectiva iâmbica. Lamentava o autor não possuirmos qualquer prova textual da presença de uma longa narrativa mitológica num poema seu. Ora, é precisamente essa a importância do novo fragmento, a concluir-se a sua atribuição ao poeta: demonstrar cabalmente que foi também um receptáculo (intranquilo e insatisfeito) das mais puras influências da épica, assimiladas e tratadas com intenções e formas novas. E. L. Bowie 1986: 34 dá mais importância ao simpósio como espaço de recitação elegíaca, considerando-o mesmo o antecedente da circunstância de festival. E é neste contexto que entende a grande maioria dos fragmentos elegíacos preservados. Além de composições em metro lírico, destinadas à apresentação nestes eventos, todas as variantes da elegia são passíveis de marcar presença num banquete, normalmente reuniões colectivas patrocinadas por poderosos senhores de uma cidade. Nele cabem os versos preservados de reflexão sobre a vida, a moira e o poder dos deuses (como o fr. 13 W.), todas as gnomai e todas as descrições bélicas. Mas também os versos mais licenciosos, tão frequentes em Arquíloco, como forma de animação e prossecução do valor apotropaico do riso, que jocosamente imaginamos na parte final de um banquete, quando os convivas estivessem, 106
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também eles, inspirados por Diónisos. O banquete que Alcínoo oferece a Ulisses no canto 8 da Odisseia é um exemplo incontornável, do qual Arquíloco não estaria temporal e esteticamente muito distante. O canto de Demódoco é essencialmente heróico, acedendo ao pedido de Ulisses para cantar a destruição da cidadela de Tróia pelo cavalo de madeira (Od. 8. 487-520). Mas visa sobretudo deleitar os convivas, daí que, com o tempo, nos banquetes entrassem novos temas e novas formas: o vinho, o amor (bem assim o sexo), mas também a história, o mito, a guerra, as reflexões sobre a vida e sobre a morte, um ou outro acontecimento pontual de importância colectiva, todos eles caros às opções estéticas da Época Arcaica. No que a Arquíloco diz respeito, Bowie refere-se ao fr. 4 W.: vede(?)[ estrangeiros(?)[ um jantar[ mas não para mim[ Vem daí, traz uma taça por entre os bancos da nau veloz, avança e as tampas arranca das côncavas vasilhas, colhe o vinho rubro até às borras. Nenhum de nós, nesta vigília, vai conseguir manter-se sóbrio.
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O que tradicionalmente tem sido visto como a fuga a uma situação de vigília nocturna para saborear os prazeres de um bom vinho, à socapa, entende-o o helenista como um poema simpósico, onde o poeta torna presente um cenário ausente, ou mesmo algo que se preferia não ter vivido. As primeiras três linhas preservadas do fragmento conteriam a situação real, enquanto que toda a reflexão sobre os prazeres de um bom vinho o são em termos ficcionais.89 A pertença do P. Oxy. 69. 4708 ao mesmo rolo que continha o o fragmento que ainda agora transcrevemos foi, como vimos acima, um dos critérios materiais da sua atribuição. A aceitar essa hipótese, 89 Também o fr. 2 W. se refere ao vinho e à lança (ou barco?) em que o poeta bebe reclinado.
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faria todo o sentido considerá-lo parte do mesmo grande poema simpósico, no momento em que o poeta recorre a um exemplum mítico para atestar uma história que vinha sendo contada. Bastaria considerarmos o fr. 4 W. como pertencente à abertura do poema, a viagem de barco da armada real, em que o poeta teria participado; um cenário de júbilo que a moira veio perturbar, prova de que tudo pode mudar pela vontade dos deuses e pelo destino, que à felicidade de um momento pode seguir-se um outro de profundo infortúnio. Mais ainda, o fr. 4 W. refere mesmo a fórmula da nau veloz (v. 9), também presente, com outro adjectivo, no achado que vimos comentando (v. 13). Esta relação não passa, claro está, de uma conjectura, apoiada na correspondência temática e no cenário náutico que está por trás de ambos os textos. A supremacia da moira, entidade quase sempre funesta, é de resto algo já canónico em Arquíloco, expresso em poemas como o fr. 16 W. ou a ode ao seu coração (fr. 130 W.). Textos preferencialmente escritos no metro elegíaco, se bem que não há, como vimos, uma relação exclusiva entre o metro e os temas, cabendo estas reflexões mesmo em textos escritos na medida iâmbica. Para o que nos importa, transcrevemos a conhecida elegia a Péricles (fr. 13 W.),90 poema a que acima já nos referimos pelas coincidências formais e temáticas com o papiro que estamos a comentar: Os nossos lutos plangentes, Péricles,91 cidadão algum os repreende ao deleitar-se em festins, nem cidade alguma. Esses homens, a espuma do mar marulhante os engoliu, e entumecidos pela dor temos agora os pulmões. Os deuses, porém, para males incuráveis, meu amigo, a aturada resignação concederam como remédio. A uns e outros este mal sobrevém. Agora para nós se voltou, e choramos esta chaga cruenta. Em breve para outros se mudará. Vamos, sem demora! Tem coragem! Deixa de parte os lamentos de mulher.
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90 Sobre este texto vide: F. Rodríguez Adrados 1953/54: 225-238, A. Gamero 1961/63: 35-44 e J. H. Barkhuizen 1989: 97-99. 91 Um companheiro de luta de Arquíloco (possivelmente um general), que não pode confundir-se com o estadista ateniense do séc. V a.C.
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Muda-se a toda a hora e sem prévio aviso a sorte dos homens, como se mudou a da armada grega ou a de Télefo, no mito. Actuando no novo texto nos bastidores, a presença inegável destas forças supra-humanas, bem como a sua forma de actuação, podem então constituir mais dados a favor da sua atribuição a Arquíloco. Uma das hipóteses de inclusão avançadas para o novo papiro quer acreditar que o texto continuava com a narração do ferimento de Télefo pela lança de Aquiles, quando Diónisos, irritado com o herói por não lhe ter prestado as honras devidas, epifanicamente o embriagou e fez com que tombasse em combate (cf. Apoll. Ep. 3. 17). Deste modo, a convocação da história de Télefo poderia também servir como exemplo do poder do vinho e de Diónisos sobre os homens, o mesmo assunto que marcava já presença no fr. 4 W., e bem assim no fr. 120 W., onde o vinho actua sobre o poeta, pela ordem do deus, como um raio, em termos práticos um outro exemplo de epifania. Mas não é necessário este esforço de reconstituição para integrar o fragmento numa elegia de banquete. Seja ele uma reflexão sobre o poder da moira, interprete-se como a ilustração mítica dos horrores de uma batalha real ou das vicissitudes do próprio poeta, tudo isto cabe (e não pode dissociar-se) no contexto de execução a que nos vimos referindo, sempre como um paralelo mítico de algo, parte integrante de um poema maior que teria sido composto para recitação num banquete. A narrativa mítica não faz pois sentido por si só, isolada de qualquer contexto real que a convoque, e temos marcas textuais suficientes – ainda que lacunares – de que há outro cenário, distinto do horizonte mitológico da maior parte das linhas legíveis no papiro. Do mesmo modo, não nos faltam textos, que temos vindo apontando, que poderiam ter motivado essa convocatória. Também o fr. 3 W. (cit. Plut. Theseus 5. 2-3) nos merece um comentário especial neste momento.
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Carlos A. Martins de Jesus Não muitos arcos hão-de bramir-se, nem muitas fundas, sempre que a luta Ares reunir na planície; de espadas será o trabalho, pleno de gemidos; é que nesta guerra são peritos esses chefes de Eubeia, afamados lanceiros.
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Vários comentadores associam este fragmento à Guerra Lelantina, um dado com frequência usado para a datação de Arquíloco. Segundo Estrabão (10. 1. 12), Cálcis e Erétria teriam celebrado um pacto que proibia o uso de armas de longo alcance em batalhas na planície de Lelanto. Considera P. C. Cunha 1998: 169 que a referência à planície enquanto local do embate nada prova quanto à relação com aquele conflito, afirmando mesmo que todas as batalhas do tipo a que o poeta alude são travadas em terreno plano. Quanto a nós, esta coincidência espacial no local da batalha parece não abonar grandemente em favor da atribuição do texto ao poeta de Paros. Mais ainda, o poeta demonstra, no texto do novo papiro, igual preocupação com as consequências humanas da actividade bélica, desde logo pela rica imagem do rio e da planície do Caíco que acolhem os corpos dos que tombam mortos (vv. 8-9). Na realidade, trata-se em ambos os casos de uma luta corpo a corpo, causa de maior destruição. Relações mais íntimas parece haver entre o P. Oxy. 69. 4708 e o fr. 7 W., que poucas vezes colheu a atenção merecida: … avance cada um contra os inimigos… de coração valente e implacável coragem no peito … e]vitando.
Sendo uma vez mais impossível, no actual estado dos conhecimentos, afirmar a pertença desta parcela textual ao mesmo poema elegíaco do novo papiro, algumas coincidências têm que ser realçadas. O assunto é o mesmo que já foi identificado: a coragem guerreira. O poeta pretende justificar que não é covardia o abandonar da batalha em determinadas circunstâncias, quando até os gregos recuaram face 110
A flauta e a lira
aos mísios, relativizando deste modo um princípio intocável para a moral épica. Não deixamos de nos referir a um outro breve fragmento do corpus, que no mínimo legitima a aceitação do texto do novo papiro em termos temáticos. Falamos do fr. 6 W. (Schol. Soph. El. 96), apenas com um verso, que alude também a um embate guerreiro: agradando aos inimigos com lúgubres presentes.
Estão claramente em cheque duas facções, uma das quais saiu derrotada e oferece à vencedora presentes, que facilmente imaginamos serem a própria vida em combate. Curioso é o particípio charizomenoi, também presente no v. 25 do novo papiro, referente a Télefo e ao agrado que, com a chacina da armada grega, fez a seu pai Héracles. Deixámos para o final, propositadamente, uma hipótese já sugerida, a que agora damos atenção. A admitir que o texto do papiro continuava com a perda do escudo, nos versos para nós ilegíveis, ele poderia ainda ser a ilustração mítica para a perda do escudo do próprio poeta, atestada no famoso fr. 5 W. (cit. Plut. Lacon. inst. 34 et Sext. Emp. Pyrrhon. hypot. 3, 216):92 Com o meu escudo um dos Saios alguém se envaidece, o que num arbusto, arma singular, deixei ficar contra minha vontade. Mas salvei o coiro. Que me importa aquele escudo? É deixá-lo! Outro hei-de comprar em nada inferior.
Também neste texto, dos mais canónicos quando se fala do poeta de Paros, o sujeito é obrigado a abandonar as armas. Ele próprio diz, antes de desvalorizar o escudo perdido, que o deixou para trás “contra vontade” (v. 2), um pouco o que também terá acontecido 92 Para um comentário ao texto e à sua fortuna temática e crítica na literatura grega vide P. C. Corrêa 1998: 110-133.
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a Télefo.93 Ambos procuram salvar a vida e é fácil de conceber, também aqui, a situação de fuga e queda. Há contudo um forte argumento contra esta hipótese de inclusão: como vimos, o tema da perda do escudo de Télefo está ausente dos argumentos dos Cantos Cíprios fornecidos tanto por Proclo como por Apolodoro, o que nos leva a colocar fortes reservas ao facto de ser este o motivo da sua convocação para o texto, ou mesmo de esse ser já um elemento da tradição épica do mito. Nem de resto parece aceitável que um poema épico do século VIII-VII, como os Kypria, ignorassem intencionalmente o pormenor da perda e do iudicium armorum de Télefo, que encontramos pela primeira vez formulado em Filóstrato (Her. 23). Ele poderá ter surgido pela mão dos tragediógrafos do século V a.C.,94 o que o afasta terminantemente da tradição do Ciclo Épico. Por todos os motivos apontados, julgamos sensato considerar o texto parte de uma elegia de banquete, um paralelo mítico alargado para uma batalha real ou histórica, onde o tema das agruras imprevisíveis da moira (como em tantos outros fragmentos do poeta) marca presença. Um texto de tom épico onde, sob a capa do mito, vivem os princípios mais centrais do individualismo arquiloquiano, o que afasta a possibilidade de autoria de poetas como Calino ou Tirteu, mestres reconhecidos na elegia guerreira. A favor da atribuição ao poeta apresentámos argumentos temáticos, linguísticos e mesmo da ordem da pragmática poética. No entanto, querer relacionar o achado com um fragmento já conhecido parece-nos, no actual estado dos conhecimentos, perfeitamente especulativo.
93 O tema do escudo abandonado na batalha parece ocorrer também no fr. 139 W. Sobre o assunto vide A. Kerkhecker 1996: 26.
Cf. o assunto do Filoctetes de Sófocles. O tema das armas do guerreiro, mais importantes para a colectividade do que o próprio herói (desumanização) parece ter colhido o interesse dos tragediógrafos e a emoção do público na Antiguidade. O assunto é também nuclear em Hyg. fab. 101. 94
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Musas de regaço violeta Um novo texto de Safo95 Longe quanto baste de Oxirrinco, na velha Europa, um outro achado está a despertar o interesse de estudiosos um pouco por todo o mundo. Em Colónia, guarda-se uma valiosíssima colecção de papiros também provenientes das areias do Egipto, documentos escritos entre os séculos III a.C. e VII d.C.96 Albergando cerca de 6000 restos de papiro, este espólio presenteou em 2004 os críticos com dois novos fragmentos (P. Colon. inv. 21351 + 21376r = “Apêndice Iconográfico”, fig. 9) que permitem a reconstituição de doze linhas de um poema, identificado como pertencente ao livro IV da edição alexandrina de Safo (séc. VI a.C.). O poema foi anunciado em 2004, ano em que teve a sua editio princeps.97 M. L. West (Times Literary Supplement 5334, de 24/06/2005) publicou o texto, acompanhado de tradução e comentário, que reconstituiu com a ajuda do fr. 58 L-P da poetisa (P. Oxy. 1787 fr. 1. 4-25, fr. 2. 1). Afirma o helenista que, com o novo achado, estamos na presença do quarto poema sáfico “com extensão suficiente para ser apreciado enquanto estrutura literária”. Avançamos com a tradução do texto: Vós,] donzelas, com os belos dons [das Musas] de regaço violeta sêde zelosas, bem assim com a] lira melodiosa, dos poetas amante. Pois o meu outrora delicado] corpo, já a velhice me arrebatou, e brancos] se tornaram os cabelos, negros que eram. Pesado o meu coração se tornou, não me suportam já as pernas, Boletim de Estudos Clássicos 44 (2005: 15-19).. O site oficial da colecção: www.uni-koeln.de/phil-fak/ifa/NRwakademie/papyrologie/index.html. 97 M. Gronewald, R. W. Daniel 2004: 1-4. Sobre o novo texto vide ainda: V. di Benedetto 2004: 5-6, W. Luppe 2004: 7-9, H. Bernsdorf 2004: 27-35 e M. L. West 2005: 1-9. 95 96
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Carlos A. Martins de Jesus em tempos ágeis para a dança, como pequenas corças. Isso lamento a toda a hora; mas que fazer? alguém que não envelhece é algo que não pode existir. Também em tempos Titono, diziam, a Aurora de róseos braços, levada pelo amor, consigo arrastou para o fim do mundo, sendo este belo e jovem; mas até dele se apoderou, com o tempo, a [grisalha] velhice, dele que tinha imortal esposa.
Aristóteles (Rhet. 1398b 29-30) transmite-nos a ideia de que, para Safo, a morte era vista como um mal terrível (Sapph., fr. 201 L-P): Safo diz que morrer é um mal: “assim deliberaram os deuses, ou eles próprios morreriam também.”
O novo poema reflecte no entanto, num tom dorido de quem sente já o avançado dos anos, sobre a velhice e os efeitos desta no corpo e no espírito, sempre habituados ao amor, à paixão, à beleza e à jovialidade. Numa poetisa em que abunda a frescura e o colorido, por um lado, a par da desmesura das sensações, por outro, uma tão amargurada expressão da dor pela idade avançada não pode deixar de soar estranha. No conhecido fr. 105 L-P, a noiva já fora da idade é, muito embora, apresentada ainda como uma peça de fruta apetecível, amadurecida pelo sol. Este tema da transitoriedade da vida é, de resto, elemento central da poética arcaica, comum a todos os seus cultores, desde Arquíloco. Quando à linguagem, as marcas do eólico e do próprio dialecto lésbio são bem visíveis. O texto que agora podemos ler pode ainda ser valioso enquanto documento para a discussão do tão polémico círculo sáfico, ao que tudo indica uma escola de iniciação poética (e sexual, para alguns) de jovens filhas de grandes senhores. A poetisa começa por dirigir conselhos às “donzelas” (paides) para que continuamente se exercitem na música e na poesia. A tónica é colocada no estudo e na arte, ao contrário de outros fragmentos onde a temática homo-erótica ocupa um lugar central. O adjectivo i]ok[o]lpon traz contudo para o texto o visualismo da cor violeta, tão frequentemente associado, na poesia de 114
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Safo, ao erotismo. Assim é descrita uma noiva no fr. 30 e Afrodite nos fr. 21 (aparentemente) e 103 L-P. Mas o destinatário muda no verso 3; lamenta o sujeito poético as consequências da “[grisalha] velhice” no corpo e no espírito, um coração que endurece e fica menos sensível ao amor – o mesmo coração que tantas vezes ardera de paixão e se consumira com o ciúme –, bem assim as pernas que fraquejam. Sintomas só comparáveis aos que atingem o sujeito apaixonado no famoso fragmento sobre o ciúme (fr. 31 L-P). Introduz-se depois um mito sobre a eterna juventude que não há, sobre a beleza imutável que não é aos mortais permitida. Titono, delícias da deusa Aurora, não morreria de facto, segundo o pedido da amante toda poderosa. Mas esquecera-se esta de para ele pedir a eterna beleza, e ele envelhecia, de dia para dia, ao lado de uma deusa sempre bela.98 Nas restantes quatro linhas do papiro de Oxirrinco, não possíveis de reconstruir pelo novo achado, tudo indica que estaria o final do poema. Depois da reflexão sobre a sua velhice, num tom, como vimos, algo pessimista, a poetisa parecia encontrar, esforço de autognose, o fármaco para o seu mal. Uma solução que, em boa verdade, cultivou ao longo de toda a vida:
mas eu amo a delicadeza (...) e esse amor o brilho do sol e a beleza me granjeou.
O Amor e a arte, na vida como na obra nunca dissociados, são esse fármaco; o alívio para todas as dores impostas pela velhice a quem, no fundo, nunca seria velha, porque, mais do que Titono, há muito ganhara não só a imortalidade mas também a eterna beleza, sensação estética partilhada por quantos a haviam de ler, pelos séculos dos séculos.
98 Sobre o mito vide: Il. 11. 1 sq; Od. 5. 1; Hes. Theog. 984; Apollod. Bibl. 3. 12. 3: Hyg. Fab. 270; Diod. Sic. 3. 67 e IV. 75; Virg. Georg. 1. 447 e 3. 48, 328; El. Nat. An. 5. 1; Hymn. Hom. 4. 218 sq; Tzetz. ad. Lyc. 18.
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Narciso, o belo suicida (Re)leituras do mito a partir de um novo papiro99 Deve ser o cristal que viu Narciso: água de um poço de ilusões pequenas onde morra e renasça o Paraíso. Miguel Torga, Mergulho (Diário 6, 1953: 36)
Nas águas se contempla Narciso, nas águas límpidas que, cristalinas, lhe revelam uma beleza que pode não ser a sua. Até que um dia, maldição divina ou de um amante preterido, não são tão límpidas as águas, e a imagem que do homem dá esse espelho natural não é já pintada com os tons de perfeição de outrora. Afinal, o retrato era mais belo (falsamente belo) do que a essência desse homem. E no momento da morte, retrato e essência são uma e a mesma realidade, em tudo coincidentes. O desespero assim o determina. A beleza de Narciso era, afinal, resultado da ausência de visão. Conhecida a realidade, pela sua representação, ela não é mais agradável à vista. E o herói tomba, para o lago, ou para o fundo de si. Só a morte é lenitivo para a desilusão decorrente da visão do eu, um esforço cognitivo que seguiu o caminho da aparência e não o da essência, e que por isso se revelou trágico. Um dos textos recentemente encontrados em Oxirrinco (P. Oxy. 69. 4711 = “Apêndice Iconográfico”, figs. 7-8) permite ler três mitos à partida distintos, mas que o editor W. B. Henry considerou pertencerem a um conjunto de Metamorfoses, por exclusão de hipóte99
Artigo originalmente publicado no Boletim de Estudos Clássicos 45 (2006: 11-18). 117
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ses atribuídas a Parténio de Niceia, poeta do século I. a.C. de quem preservamos um conjunto de histórias de amor, em prosa, baseadas na poesia grega, além de alguns fragmentos poéticos. O papiro apresenta-nos, na frente (↑fr. 1), parte da narrativa de Adónis (ll. 1-6) e, aparentemente sem qualquer relação, o mito de Astéria (ll. 7 sq.), que sofreu também uma metamorfose. Filha do titã Ceu e de Febe, irmã de Leto, transformou-se em codorniz para escapar às perseguições de Zeus, que por ela se apaixonara, e lançou-se ao mar, onde se transformou na ilha Ortígia (literalmente, “a ilha das codornizes”), mais tarde conhecida pelo nome de Delos. No verso do papiro (→ fr. 1) encontramos o que parece ser a parte final da narrativa do mito de Narciso, que nos ocupará a partir deste momento. Nada parece confirmar que Parténio tenha tratado este mito, mas possuímos relíquias que acusam o tratamento da figura de Adónis (SH. 641, = fr. 23 e SH. 654 = fr. 37), e daí também a atribuição do achado a este autor.100 Vejamos agora o texto, que traduzimos a partir da edição de W. H. Henry no volume 69 dos Oxyrhunchus Papyri (págs. 46-53), para logo de seguida estabelecer um conjunto de reflexões sobre o mito, as suas diferentes versões e o seu aproveitamento em diferentes registos semióticos. (faltam 5 versos) ………………………(julgando que) é um imortal[ … ………………… de aparência semelhante aos deuses. … um inquebrantável] coração ele tinha, odiado por todos, (Narciso então) se apaixonou pela sua própria figura ……………...] mas lamentava o prazer de um longo sonho …………………………...] chorou pela sua beleza (e então) derramou (o seu sangue) sobre a terra ………………………………] suportar … 100
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Para as referências a Parténio, seguimos a edição de J. M. Edmonds e S. Gaselee 1978. 118
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A principal fonte para o mito de Narciso, que ao longo dos tempos se impôs quase como única, é como para muitos outros casos Ovídio (Metamorfoses, 3. 339-510), um longo passo que demonstra o interesse do poeta latino pela história. Muito brevemente, aqui se conta que Narciso era filho de Cefiso, rei da Beócia, e da ninfa Leríope. Ao nascer, um oráculo predissera-lhe que viveria bem até ao momento em que se visse a ele próprio (v. 348). Ao atingir a juventude, a beleza do herói granjeava-lhe a paixão de um sem número de donzelas e mancebos, entre as quais a ninfa Eco que, impedida de estabelecer diálogo com alguém – pois que apenas repetia os finais do que ouvia – foi também por ele preterida, retirando-se para morrer solitária. Quantos havia desprezado, unidos pelo mesmo abandono, lhe lançaram uma maldição: que enfim pudesse amar alguém e não possuir o objecto do seu amor. Havia de ser por si próprio que nasceria a paixão, nesse coração onde paixão alguma havia já nascido. Um dia, cansado de uma caçada, acerca-se de um lago para matar a sede e, ao ver o seu reflexo, apaixona-se pela sua figura, não mais saindo desse local, até morrer. No fundo, o ser que amava estava mesmo ali, perto de si, do outro lado do espelho (a água cristalina), mas não podia de forma alguma atingi-lo. Pior do que a distância, para Narciso, era a proximidade intransponível daquele regato de água. Conta ainda Ovídio que, no momento em que as Dríades preparavam o seu funeral, em vez do corpo encontraram uma flor amarela, que em sua homenagem passou a chamar-se Narciso. A metamorfose não é, por conseguinte, explicada em Ovídio. A transformação de homem em flor é algo que ocorre como que por magia, pela substituição de um cadáver (homem morto) por uma flor (um ser vivo), no fundo um ressurgir do herói dos mortos que, sob outra forma, regressa à vida. Os deuses, ao certo, não permitiram que um homem tão belo desaparecesse por completo, transformando-o em flor, para que toda a humanidade, até ao fim dos tempos, pudesse contemplá-lo. 119
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Ora, no que concerne à parte final do mito, a metamorfose de Narciso em flor, parece claro que não é esta a versão que Parténio segue, no texto que acima transcrevemos e traduzimos (a admitir a atribuição do papiro). Na versão de Ovídio, como se viu, a morte é também voluntária, não infligida por outrem, mas este suicídio é lento, decorrente da inanição. Narciso, simplesmente, deixa-se ficar, preso à contemplação de si mesmo, até que lhe falecem as forças e acaba por morrer. A visão do seu reflexo exerce sobre ele um efeito mágico, um encantamento que o faz esquecer as mais vitais necessidades humanas. No texto preservado do papiro que vimos comentando, até ao verso 11, nada de diferente nos é permitido ler. Temos a expressão da beleza do herói, semelhante na aparência aos próprios imortais (vv. 7-8), o preterir de todos os pretendentes, motivo do ódio por parte destes (v. 10) e o enamoramento pela própria figura (v. 11). O verso 12, contudo, merece já mais atenção. O sonho a que se alude pode muito bem ser entendido como a ilusão (da beleza) que foi toda a vida de Narciso, algo que agora se lamenta amargamente, contemplada que foi a verdade (a fealdade) nas águas do lago. Esta hipótese parece confirmar-se no verso 13: a beleza chorada seria, no fundo, uma beleza que não há, e que, em boa verdade, se percebe nunca ter existido de facto. Talvez consequência dessa amarga descoberta, o acto de dar a morte (v. 14) é extremamente violento e imediato. Se aceitarmos, como parece credível, que o sujeito do verso é o próprio Narciso, e que o objecto directo é o sangue, estamos então a falar de um suicídio consciente e cruel. As coordenadas do final do mito estão então, e tendo como referência Ovídio, completamente subvertidas. Narciso ter-se-á suicidado ao perceber ser uma ilusão a beleza que sempre julgou possuir. Precisamos assim, como parece claro, de encontrar uma outra versão do mito que tenha eventualmente servido de modelo à composição de Parténio.
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Dos demais autores que trataram o mito de Narciso,101 o testemunho que nos parece mais semelhante é o de Cónon (FGrHist. 26. 24), numa versão originária da Beócia, miticamente a terra do próprio herói. O que nos refere o autor é, a início, o mesmo que podemos ler em Ovídio: Narciso, jovem, preterindo todos os seus pretendentes. Depois, contudo, a situação muda. Um dos jovens negados, ao suicidar-se, pede aos deuses que amaldiçoem Narciso, que há-de pôr termo à vida de forma violenta, trespassando o peito com um punhal. Do sangue derramado sobre a terra explica Cónon (FGrHist. 26. 24. 3) o surgimento do narciso, pelo que não se trata, em boa verdade, de uma metamorfose, antes de um fenómeno telúrico, da terra que absorve o sangue derramado e reage com a criação de um novo ser, fenómeno em tudo semelhante à origem das erínias: Pensam os autóctones que a primeira flor de narciso nasceu daquela terra, derramado sobre ela o sangue de Narciso.
Estamos então, com o texto do papiro e com a versão de Cónon, no âmbito de uma versão mais pessimista do mito. O espelho, no momento final da vida do herói, resulta na desilusão e no desengano, na constatação da não existência de uma beleza em que toda uma vida tinha assentado. Daí que a morte não seja calma, fruto de um apagamento sucessivo das forças vitais pela inanição, antes dada pelo mais violento dos suicídios. Ela vem pelo sentimento de solidão, causado pelo afastamento do convívio social e amoroso, ciente de que só em si próprio existe o belo, um belo que torna indigna a aproximação de qualquer outra pessoa. É este, no fundo, o aproveitamento que deste mito fez a moderna psicologia, bem como, a outro nível, o senso comum, que não raro confunde as noções de narcisismo e egoísmo. Ao longo dos tempos, e já desde a Antiguidade, muitos foram os que interpretaram o mito de Narciso, baseados essencialmente 101 As fontes principais para o mito, por ordem cronológica, parecem ser a) Hino Homérico a Deméter (v. 6 sq.), Cónon (FGrHist. 26. 24), Pausânias (9, 31, 7-9) e Ovídio (Met. 3. 339-510).
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numa recepção nem sempre rigorosa do Platonismo. Já Luciano, vulto da segunda sofística (c. 120-190 d.C) o relacionara com a vaidade, crítica que seria aproveitada pelo Cristianismo. Clemente de Alexandria (Paedagogus 2. 8. 71. 3), por exemplo, estabelecia a ligação entre a vaidade narcísica e o culto da imagem exterior, que devia ser, pelo contrário, desprezada em prol da beleza espiritual. Do mesmo modo Plotino (Enneades 1. 6. 8) olhava para Narciso como o mais perfeito exemplo do herói que havia ignorado que o seu corpo (o que vira reflectido) não era ele próprio mais do que um reflexo (imperfeito e limitado) da sua alma, e que, desejando o que não merecia ser desejado, com isso se afundara nas águas, metáfora tanto para a negra noite do Hades como para o Inferno cristão. É isto prova suficiente de que o mito era já lido em termos simbólicos, dele se retirando ensinamentos filosóficos e morais. Para Plotino, de resto, é o processo de reflexão de um espelho que explica a criação de todo o mundo sensível, o que torna o caso de Narciso ainda mais paradigmático. E neste sentido seguiram, regra geral, os restantes neoplatonistas. O próprio Marsílio Ficcino, no seu comentário ao Banquete de Platão, entende ainda o episódio de Narciso como uma confusão do eu (essência, verdade) com a imagem reflectida (aparência, ilusão). Muitos foram também, entre nós, os poetas contemporâneos a tratar o mito de Narciso, tantos e de forma tão rica que aqui não cumpre mencioná-los.102 Preferimos, por isso, enveredar por um outro registo semiótico, a pintura, analisando, com base nas reflexões suscitadas pelo texto do papiro, de que forma elas terão estado presente na mente do artista. Já Filóstrato (Imagines 1. 23) nos dava a descrição de um quadro onde se podia ver um verdadeiro jogo de espelhos. O rosto de Narciso que se reflecte na fonte, a fonte que se reflecte nos seus olhos, os olhos que se reflectem no quadro e, por fim (para completar o ciclo) o próprio quadro que se reflecte nos olhos de quem o vê. Um 102 Tanto mais que este assunto foi já tratado por A. Veloso 1975-1976: 167-190 e José Ribeiro Ferreira 2000: 95- 124.
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jogo de espelhos onde, por entre reflexos e reflexos de reflexos, muita essência se pode perder. Na pintura, Caravaggio (Narciso. Óleo sobre tela, 110x92 cm: Galeria nacional de Arte Antiga, Roma) pintou de forma admirável a expressão de desespero no rosto de Narciso, no momento em que se curva sobre as águas e vê o seu reflexo. E é este reflexo, precisamente, que se mostra revelador. Ele é um rosto feio, disforme, em nada similar ao do indivíduo que o contempla. A dicotomia que o artista bem exprime é a da realidade / aparência ou, de outro modo, essência / suplemento. O reflexo do eu (suplemento) é, no fundo, a visão que esse eu tem da sua própria essência, no momento da morte, precisamente o inverso da que cultivara ao longo de toda a vida. Daí que, entendido este curvar sobre o lago como um exercício de auto-conhecimento, este esforço tenha seguido os trilhos errados.
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Como diria Platão, Narciso procurou a verdade onde não cabia alcançá-la; buscou a essência no mundo das aparências (simbolizado no lago), e não poderia de forma alguma contentar-se com o resultado, fosse ele belo ou feio. De outro modo, podem a disformidade e a fealdade ser, elas próprias, a essência desse Narciso homem, só percebidas quando se curvou sobre as águas, quando olhou para o fundo do lago, o fundo de si próprio, para aí ver a verdade. E, assim sendo, só pelo suplemento, pela imagem reflectida, pode o homem conhecer, ainda que imperfeitamente, a sua essência, que é deste modo relegada para o campo do incognoscível. Seja o reflexo verdadeiro ou enganador, não pode de facto o indivíduo olhar-se senão através dele. Estas as limitações mais básicas da autognose. Belo ou feio – essencialmente belo ou essencialmente feio – qualquer que seja a leitura do mito ou a versão antiga por que optemos, Narciso traz-nos o mistério do outro lado do espelho. Do outro lado, todo o mundo que imagina Alice antes de entrar no país das maravilhas; do outro lado do espelho, por vezes, um ser em tudo igual a nós que estende a mão quando nós próprios a estendemos, de uma aparente similaridade desconcertante; do outro lado do espelho a verdade, a que se não quer aceder, por medo (Narciso disforme), ou a mais doce das mentiras (Narciso belo). A avaliar pelo texto do novo papiro, do outro lado do espelho vem a causa imediata para a morte: a desilusão, seja pela realidade, seja pela ilusão de uma imagem enganadora. Na versão de Ovídio, o encantamento provocado pelo reflexo fora a única causa de morte: um ser que se apaixona por uma imagem (que não é ele próprio) e que desse modo se esquece de si. Do outro lado do espelho, no fundo das águas, não pode enfim estar o verdadeiro Narciso. O Narciso que lá mora é um eidolon, uma ilusão de óptica, ou simplesmente um reflexo individualizado 124
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do sujeito aí reflectido. Do outro lado do espelho mora o medo, o terror que representa a descida ao fundo de si, o pavor de aí encontrar a mentira, ou a pior das verdades. Narciso tombou. Resta só saber o que viu ele, do outro lado.
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A flauta e a lira
Apêndice Iconográfico
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Figura 1: O Epodo de Colónia atribuído a Arquíloco (P. Colon. inv. 7511)
Figura 2: Emblema de A. Alciato, s.v. “Maledicentia”
Figura 3: Emblema de A. Alciato, s.v. “Maledicentia” (edição de 1621)
Figura 4: Eirene. Grupo escultórico em mármore atribuído a Cefisódoto (reconstrução)
Figura 5: P. Oxy. 69. 4708, atribuído a Arquíloco
Figura 6: Fragmento da tragédia perdida Epigonoi de Sófocles (P. Oxy. 71. 4807)
Figuras 7-8: P. Oxy. 69. 4711
Figura 9: P. Colon. inv. 21351 + 21376r