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Copyright © Hilário Franco Jr.
Capa 123 (antigo 277) Artistas gráficos Caricaturas: Emílio Damiani Revisão: José E. Andrade
Editora Brasiliense S.A. B. General Jardim, 160 01223 - São Paulo - SP · Fone(011)280-1222
ÍNDICE Introdução ......................................................................................... 4 As motivações materiais .................................................................... 7 As motivações psicológicas ............................................................... 20 As Cruzadas no Oriente e no Ocidente ............................................ 29 O Ocidente após as Cruzadas ........................................................... 51 Conclusão .......................................................................................... 62 Indicações para leitura ..................................................................... 64
INTRODUÇÃO
Cruzada. Esta palavra, como outras do vocabulário do historiador (feudalismo, mercantilismo, etc.), não era conhecida no momento histórico para o qual a empregamos. De fato, o termo aparece, e de forma muito esporádica, apenas em meados do século XIII, quando aquele fenômeno histórico já perdia sua força. Os textos medievais falam geralmente em “peregrinação”, “guerra santa”, “expedição da Cruz” e “passagem”. A expressão “Cruzada”, quando surgiu, derivava do fato de seus participantes considerarem-se “soldados de Cristo”, “marcados pelo sinal da cruz”, e por isso bordarem uma cruz na sua roupa. Mas, o que foram as Cruzadas? Teremos todas as páginas seguintes para responder a essa questão, mas simplificadamente podemos dizer que foram expedições militares empreendidas contra os inimigos da Cristandade e por isso legitimadas pela Igreja, que concedia aos seus participantes privilégios espirituais e materiais. Portanto, as lutas contra os muçulmanos do Oriente Médio e da Península Ibérica, contra os eslavos pagãos de Europa Oriental e 4
contra os heréticos de qualquer parte da Europa Ocidental eram Cruzadas. Que privilégios eram aqueles? O principal deles, o da indulgência, concedia o perdão dos pecados, perspectiva muito atraente naquela sociedade de forte religiosidade, mais clerical que civil, na qual pecado e crime eram a mesma coisa. Fazer o voto de cruzado era se tornar “uma espécie de eclesiástico temporário” (Riley-Smith), submetido à proteção da Igreja e isento da jurisdição laica. Mais ainda, durante a Cruzada o pagamento de juros ficava suspenso e uma moratória autorizava o “soldado de Cristo” a pagar suas dívidas apenas quando da volta. De que maneira começava uma Cruzada? A iniciativa na maioria das vezes era do papa, que como chefe espiritual da Cruzada pregava sua realização pessoalmente (como fez Urbano II na Primeira Cruzada) ou através de clérigos (como ocorreu na Segunda Cruzada com São Bernardo). A data de seu início também era marcada pelo papa e um representante seu, o legado pontifício, sempre acompanhava a Cruzada como seu chefe, ainda que somente teórico, pois naturalmente as operações militares eram quase sempre decididas pelo rei ou pelos senhores feudais mais importantes. Assim, algumas vezes, como aconteceu com a Quarta Cruzada, o papado perdia o controle real da situação. E os recursos materiais, de onde provinham? As Cruzadas eram financiadas pelos próprios cruzados e pela Igreja: os pequenos nobres empenhavam seus bens e vendiam a liberdade dos camponeses dependentes de suas terras, os senhores feudais recebiam ajuda de seus vassalos, os soberanos criavam tributos novos, a Igreja recebia donativos e taxava as rendas de laicos e clérigos. Em alguns casos os cruzados levantavam empréstimos junto a mercadores (como a Quarta Cruzada com os venezianos ou junto a Cruzadas de São Luís com os genoveses) ou as Ordens Religiosas (nessa atividade destacaram-se os Templários). 5
Quantos indivíduos delas participavam? O número de cruzados é difícil de ser calculado, pois a documentação ou não nos dá nenhuma informação nesse sentido ou as cifras são claramente exageradas, mais simbólicas que reais. Além disso, misturavam- se às Cruzadas muitos Indivíduos não combatentes, mercadores, artesãos, mulheres e crianças. A proporção entre guerreiros e não combatentes era grande, talvez de um para dois; no grupo dos guerreiros, entre cavaleiros e infantes, perto de um para sete. No geral, as maiores Cruzadas não ultrapassavam os 10 000 combatentes.
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AS MOTIVAÇÕES MATERIAIS
Se por pelo menos duzentos anos (de fins do século XI a fins do XIII) houve um fluxo constante de ocidentais dirigindo-se para a periferia da Cristandade Latina (Oriente Médio, Península Ibérica e Europa Oriental), devem ter existido razões profundas para isso. De fato, um conjunto de fatores materiais e espirituais provocou as Cruzadas, que representaram originalmente uma espécie de saída, de solução, para os problemas colocados pelo início da desestruturação feudal. Portanto, precisamos examinar esse quadro do qual as Cruzadas resultaram e que acabaram por transformar. Procuremos de início, muito rapidamente, entender o que foi a sociedade feudal. Ela se estruturou em meados do século IX como resultado da interligação de instituições bem mais antigas (romanas e germânicas) com a nova conjuntura sócio-político-econômica decorrente do fracasso do Império Carolíngio. Em outras palavras, o feudalismo foi uma resposta espontânea da sociedade cristã ocidental à crise geral que a abalava naquele momento. De fato, cada uma das características do feudalismo responde a um aspecto daquela crise. Economicamente, à medida que o setor mercantil, o mais importante na Antiguidade Clássica, ia decaindo, o setor agrícola tornava-se o principal. Assim, a economia feudal era fundamentalmente agrária, com cada unidade de produção, o senhorio, procurando ser autossuficiente. Isto significa que o senhorio, como herdeiro do latifúndio romano dos últimos tempos, produzia não só para suas necessidades de alimentação, mas também de roupas, 7
armas e utensílios. As atividades mercantis encontravam-se bastante reduzidas, recorrendo-se a elas apenas quando as condições locais não permitiam a obtenção de uma determinada mercadoria (especiarias em toda a Europa, sal nas regiões afastadas do mar, cereais no caso de uma má colheita). Contudo, não é o fato de ser agrícola com tendência à subsistência que diferencia a economia feudal da de outros momentos históricos. O essencial está no tipo de mão-de-obra empregada na agricultura feudal. Ela não era mais escrava como na Antiguidade, nem assalariada como na Modernidade, pois ambas pressupõem uma economia mercantil, em que o trabalhador (escravo) ou a força de trabalho (assalariada) são mercadorias. Recorreu-se então a um tipo intermediário, a servidão, na qual o trabalhador presta serviços compulsórios como na escravidão, mas não é considerado um objeto (na Antiguidade o escravo era “uma ferramenta que fala”). De fato, ele estava vinculado a um lote de terra, e não a uma pessoa, não podendo ser desapossado dele. Demograficamente, a situação indicava no mesmo sentido. Ou seja, em função das epidemias, das invasões, das fracas colheitas, da fraca propensão do escravo a se reproduzir, em fins da Antiguidade o número de trabalhadores era pequeno. Assim, procurava-se dar ao camponês melhores condições de vida, na esperança de que houvesse um crescimento populacional. O cristianismo também contribuiu para a mudança da situação do escravo, pois, apesar de aceitar a escravidão, recuperava a condição humana daquele trabalhador. Desta forma, a solução lógica foi a servidão: o camponês é um trabalhador dependente, não livre, pois está vinculado à parcela de terra que trabalha. Contudo, ele tem garantido um mínimo para a subsistência. Politicamente, o feudalismo caracterizou-se pela fragmentação do poder central, ou seja, pela solução oposta às fracassadas tentativas de reunificação do Ocidente. Realmente, desde a queda do 8
Império Romano, sonhava-se com o restabelecimento da unidade política. Porém, o insucesso da mais importante dessas tentativas, a de Carlos Magno, mostrou que o momento da unidade política havia passado, e que, pelo contrário, os invasores vikings, muçulmanos e húngaros só poderiam ser enfrentados eficientemente com a regionalização da defesa. Por outro lado, isso estava de acordo com a situação econômica e a autossuficiência de cada região; daí, por um processo lógico, o detentor de um senhorio assumir a defesa de seu patrimônio e de seus dependentes e assim ganhar o poder político naquele território. Socialmente, a desorganização que se seguira à queda do Império Romano e a insegurança provocada pelas invasões germânicas pediam uma nova estrutura. A realidade social, por sua vez, mostrava o quase completo desaparecimento das camadas médias e a formação de uma poderosa camada eclesiástica. Assim, organizava-se uma nova sociedade, que apresentava grande distância entre a elite clerical e guerreira e a massa de camponeses. A aristocracia detentora de terras, e, portanto, de poder econômico e político, desejosa de perpetuar aquela situação, construiu uma ideologia que a justificasse: a sociedade de ordens. Nesta, a condição social de cada indivíduo estava definida por Deus logo ao nascimento, ficando, portanto, estabelecida a vitaliciedade e hereditariedade: filho de nobre é nobre, filho de camponês é camponês. Como a condição de cada pessoa tinha sido determinada por uma ordem divina — daí o termo “sociedade de ordens” — naturalmente não havia possibilidade de mudanças; era uma sociedade de rígida estratificação. Mais que isso, cada homem devia resignadamente aceitar seu “destino”, pois rebelar-se seria comprometer sua Salvação, sua Vida Eterna. Em suma, apenas a aristocracia guerreira (incluímos aí o clero em função de sua origem social comum) era detentora de terras, e o detentor de terras devia ser guerreiro. Explica-se: o tipo de guerra da 9
época implicava em grandes gastos de equipamento (cavalos, armaduras, armas) e num treinamento constante para poder usá-lo. Assim, só quem tivesse recursos econômicos (o que na época significava terras) podia ser guerreiro, além do que precisava ser guerreiro para defender sua terra dos invasores. Em função disso, ele se tornava protetor da população das suas terras e naturalmente recebia a obediência dos protegidos. O guerreiro possuidor de terras exercia assim funções que anteriormente cabiam ao Estado. Na sociedade feudal, como havia duas camadas básicas (clérigos-guerreiros e camponeses), três eram as relações sociais possíveis. Em primeiro lugar, as relações horizontais na aristocracia, ou seja, entre aristocratas. Esse tipo de relação dava-se através do contrato feudo-vassálico, pelo qual um homem livre (a partir daí chamado de senhor feudal) entregava a outro de igual condição (vassalo) um bem qualquer, geralmente uma certa extensão de terra (feudo), em troca de serviço militar. Depois, ocorriam relações horizontais no campesinato, com os trabalhadores organizando-se para empreender em conjunto certas tarefas (arar um campo, desmatar uma área, construir moradias). Por fim, as relações essenciais, as relações verticais aristocracia- campesinato: elas implicavam nas obrigações que um homem não livre (servo) devia a um livre (senhor feudal ou vassalo, clérigo ou laico, pouco importa) em troca de proteção e do direito de viver e cultivar um lote de terra deste último. Calcula-se que o conjunto dessas obrigações levava o servo a entregar cerca de metade do que produzia. Naturalmente o feudalismo, como toda formação social, não era estático, começando a se transformar praticamente a partir do momento em que se estruturou. Mais importante, foram essas mutações, que tinham sua origem na própria estrutura do feudalismo, que criaram condições para o surgimento das Cruzadas. Como já dissemos, elas deveriam representar uma válvula de escape para as tensões sociais, econômicas e políticas provocadas pela 10
própria dinâmica do feudalismo. Assim, devemos examinar agora esses elementos materiais que, partindo do feudalismo, estiveram na origem do fenômeno das Cruzada. O contexto de expansão demográfica é o primeiro deles. A fraqueza populacional do Ocidente tinha começado lentamente a se modificar com o início do feudalismo, pois este removera os obstáculos que impediam a tendência natural que toda espécie tem a se multiplicar. Em primeiro lugar, as epidemias (peste, malária), que tinham desempenhado papel fundamental no retrocesso demográfico da Alta Idade Média, praticamente desapareceram. Isso se deveu aos contatos comerciais menos intensos com o Oriente (de onde quase sempre provinham as epidemias) e ao maior isolamento entre as regiões ocidentais, o que dificultava a difusão das doenças. Em segundo lugar, com o feudalismo cessaram as invasões estrangeiras e as grandes batalhas, ou seja, a guerra tornou-se menos mortífera. De fato, as guerras feudais, apesar de constantes, pouco afetavam o comportamento demográfico da sociedade, já que geralmente colocavam frente a frente apenas algumas centenas de cavaleiros. Ademais, essas guerras não tinham por objetivo fundamental destruir o adversário, mas aprisioná-lo, obtendo-se um resgate pelo prisioneiro (uma das obrigações do vassalo para com seu senhor feudal era pagar o resgate deste, caso ele fosse capturado). Um terceiro fator determinante do surto demográfico foi a abundância de recursos naturais. A existência de uma pequena população na Alta Idade Média fizera com que vastos territórios ficassem abandonados, recuperando assim sua fertilidade ou recobrindo-se de florestas e pastagens naturais. Dessa forma, nos primeiros tempos do feudalismo havia maior extensão de terras inexploradas do que cultivadas, isto é, havia recursos suficientes para alimentar uma população bem superior à então existente. Contribuindo no mesmo sentido, ocorreu ainda a partir mais ou menos do ano 1000 uma suavização do clima europeu, que se tornou 11
mais quente e seco, permitindo o cultivo de várias espécies em locais anteriormente impróprios. Por fim, o crescimento populacional está claramente ligado às inovações de técnicas agrícolas verificadas na época. Discute-se, contudo, o tipo de ligação: o incremento demográfico pressionou por uma produção maior e assim surgiram as inovações, ou as novas técnicas permitiram uma alimentação melhor e desta forma o crescimento da população? Para nós, pouco importa. Basta constatar que realmente a partir de um certo momento houve uma melhoria na qualidade da dieta e isto contribuiu para uma queda na mortalidade. A alteração na dieta pode mesmo explicar a mudança na proporção entre população masculina e feminina, favorável à primeira na Alta Idade Média e à segunda posteriormente. Tal se devia ao fato da dieta na Alta Idade Média ser pobre em proteínas e sobretudo em ferro, elementos que a mulher necessita em maior quantidade (devido à menstruação, gravidez e lactação), daí a anemia e, portanto, a menor defesa do organismo contra certas doenças. No entanto, o progresso tecnológico — especialmente o novo método de atrelagem animal, a charrua e o sistema de rodízio de cultivos — fez com que desde o século X se consumissem leguminosas (ervilha, lentilha, feijão, grão-de-bico, etc.) e maior quantidade de carne, ovos e laticínios, possibilitando a diminuição da mortalidade feminina. Em função desses fatores verificou-se um claro incremento demográfico, com a população da Europa Ocidental passando de 18 milhões de indivíduos no ano de 800 para mais de 22 no ano 1000, quase 26 em 1100, quase 35 em 1200 e mais de 50 em 1300. £ significativo que a região que conheceu o mais acentuado crescimento, a França — 5 milhões em 800, 6,5 em 1000, 7,75 em 1100, 10,5 em 1200, 16 em 1300 —, tenha sido a que maior contingente de cruzados forneceu. Em suma, sem o surto demográfico as Cruzadas não teriam sido possíveis nem necessárias. 12
O contexto comercial é outro elemento a ser levado em consideração para se entender a gênese das Cruzadas. As novas técnicas agrícolas tinham permitido uma significativa elevação da produtividade, que não só satisfazia as necessidades de uma população em crescimento, como ainda gerava um excedente. A existência desse excedente permitia que novamente a Europa pudesse obter bens não produzidos ali (especiarias, seda, perfumes, etc.). Paralelamente, aumentavam as necessidades dos mercados bizantino e muçulmano por gêneros alimentícios e matérias-primas ocidentais. Neste processo de expansão do comércio a Itália teve a primazia graças a vários fatores. Sua localização geográfica, no centro do Mediterrâneo, tornava-a naturalmente predisposta a ser o elo de ligação entre Ocidente e Oriente. Seus recursos agrícolas limitados tomavam aquela vocação uma necessidade, pois apenas o comércio poderia fornecer os bens indispensáveis; é significativo que as duas maiores cidades comerciantes italianas, Veneza e Gênova, fossem particularmente desfavorecidas para as atividades agrárias. Mais ainda, o estreito contato com civilizações comerciais como a bizantina e a muçulmana certamente reforçou aquela tendência. Por fim, não se pode esquecer que sua tradição comercial e urbana, vinda da Antiguidade, sempre esteve até então mais viva do que no resto da Europa católica. Veneza, um dos maiores centros da época, mantinha intensas relações comerciais com o Oriente. Desde o século VIII levava para Bizâncio trigo, vinho, madeira, sal e peixe, obtendo em troca especiarias, seda e manufaturados. A partir do século IX os venezianos comerciavam também com os muçulmanos do Egito, fornecendo-lhes mercadorias escassas naquela região (ferro, madeira, escravos) em troca de especiarias e ouro. Sua importância no Império Bizantino cresceu tanto que em fins do século X o imperador concedeu-lhes a Bula de Ouro, documento pelo qual os 13
navios de Veneza pagariam apenas a metade das taxas alfandegárias devidas pelos estrangeiros. Mais ainda, um século depois receberam isenção total de impostos e uma feitoria em Constantinopla. Entende-se assim que Veneza tenha desempenhado importante papel nas Cruzadas, pois tinha no Oriente interesses a defender e estender. Gênova, a maior rival veneziana, conquistara em princípios do século XI a hegemonia mercantil no Mediterrâneo ocidental derrotando os muçulmanos e se apossando das ilhas de Elba, Sardenha e Córsega. Assim, para ela os interesses comerciais e o combate ao infiel eram uma mesma coisa, o que facilmente a identificou com as Cruzadas. Na verdade, seu apoio aos cruzados (transporte, provisões, empréstimos) estava sempre condicionado ao recebimento de privilégios comerciais nas cidades conquistadas por eles. Foi assim que os genoveses puderam formar um vasto e rico império colonial — arrancado aos bizantinos e muçulmanos —, abrangendo Chipre, as principais ilhas do Egeu e territórios do mar Negro. Assim como os interesses comerciais italianos influíram nas Cruzadas do Oriente Médio, o mesmo fizeram os interesses hanseáticos em relação à ocupação da Europa Oriental. De fato, a Hansa Teutônica, liga de comerciantes alemães, dominava o tráfico mercantil no norte europeu, recolhendo num local e vendendo em outros inúmeros produtos: peles, mel e cera da Rússia, trigo e madeira da Polônia, minerais da Hungria, peixe da Noruega e Islândia, cobre e ferro da Suécia, vinho da Alemanha, lã da Inglaterra e tecidos da Flandres. Portanto, atraía os alemães a ideia de dominar, ocupar e colonizar os territórios dos eslavos, que além de serem pagãos tinham um nome interpretado como uma predestinação a serem escravos... O contexto social que possibilitou as Cruzadas estava, naturalmente, ligado às transformações anteriores. Um aspecto daquele contexto que nos interessa é a maior mobilidade social, com 14
a passagem da sociedade de ordens para a sociedade estamental. Isto significa dizer que, enquanto na primeira o indivíduo é de determinada camada social, condição estabelecida por ordem divina desde o nascimento, na segunda o indivíduo está num certo grupo social. Tal se devia ao fato da expansão demográfica ter reduzido o tamanho da parcela de terra de cada família camponesa, obrigando muitos indivíduos a tentarem um novo gênero de vida. Gomo assim a tendência à autossuficiência dos senhorios tornava-se impraticável, cada região passou a se dedicar ao tipo de cultivo ou criação que melhor se adaptava às suas condições de solo, clima, etc. Surgiu assim um excedente produtivo e se desenvolveram as trocas comerciais. Desta forma os camponeses, que anteriormente não tinham outra opção de vida senão os trabalhos agrícolas e compulsórios, passaram a ter no comércio uma atividade mais compensadora. Ademais, assim como a vida no campo identificava-se com servidão, a urbana identificava-se com liberdade: segundo um conhecido provérbio medieval, “o ar da cidade da liberdade” (o servo que ali residisse um ano e um dia sem ser reclamado pelo seu senhor tornava-se homem livre). Portanto, de diferentes formai (fuga, compra da liberdade, alforria, sublevação) crescia o número de camponeses que escapavam à servidão, roubando assim ao feudalismo um dos seus sustentáculos. É natural, contudo, que nem todos os indivíduos que conseguiram abandonar o campo e a servidão tenham podido tornarse comerciantes, surgindo assim um crescente grupo de marginalizados. Na verdade, toda sociedade gera seus marginais, aqueles que são rejeitados ou que se afastam da vida social por não se encaixarem nas normas de comportamento em vigor ou por colocarem a sociedade frente às suas próprias contradições. No caso que examinamos, o Ocidente na época das Cruzadas, dois tipos de marginalidade interessam-nos, a heresia e a pobreza, uma porque 15
será combatida pelas Cruzadas, outra porque fornecerá elementos para elas. Numa sociedade religiosa como a feudal, pensar diferentemente da Igreja era cometer ao mesmo tempo um pecado e um crime, era se expor a punições espirituais e corporais. Por que, então, surgiam tantas doutrinas contestando as verdades oficiais, proclamadas e defendidas pela Igreja? Exatamente pelo fato de os grupos heréticos estarem, através da negação dos valores religiosos socialmente aceitos, criticando toda a organização social, todo o quo. Assim, combater as heresias era para as camadas dirigentes combater um elemento desagregador da sociedade feudal, era preservá-la e, portanto, preservar-se. Nos primeiros tempos do feudalismo a fraqueza demográfica proporcionava ao servo uma certa segurança pois, apesar da dureza de suas condições, ele podia contar com um pedaço de terra para alimentar sua família, sem correr o risco de ser privado dela e podendo ainda transmiti-la a seus herdeiros. Com a expansão demográfica e o consequente desenraizamento, porém, muitos indivíduos deixaram de ter o mínimo para a subsistência, dependendo da caridade alheia, de serviços eventuais ou do crime. Por isso, Guibert de Nogent, cronista da Primeira Cruzada, fala da grande tranquilidade que ocorreu na França, com os ladrões e bandoleiros partindo para o Oriente. Outro cronista, este um alemão, falando dos participantes da Segunda Cruzada, mostra o papel que os aventureiros, os criminosos e os despossuídos tiveram no movimento: "as intenções destas várias pessoas eram diferentes. Algumas, na verdade, ávidas por novidades, iam apenas para ver coisas novas. Outras eram levadas pela pobreza, por estarem em situação difícil na sua terra; estes homens foram para combater não apenas os inimigos da Cruz de Cristo, mas mesmo cristãos, desde que vissem oportunidade de aliviar a sua pobreza. Havia ainda os que estavam oprimidos por dívidas para com outros, 16
ou que desejavam fugir ao serviço devido aos seus senhores, ou que estavam mesmo esperando o castigo merecido pelas suas infâmias. Um dos elementos sociais de mais ativa participação nas Cruzadas foram os secundogênitos de famílias nobres. De fato, pelos costumes sucessórios do direito feudal, a norma de primogenitura estabelecia que, com a morte de seu detentor, a terra passasse indivisa para seu filho primogênito (não se alterando, portanto, o jogo contratual senhor-vassalo). Os demais filhos ou entravam para o serviço de seu irmão mais velho, ou se tornavam clérigos, recebendo, portanto, terras da Igreja. Com o surto populacional, no entanto, aquelas soluções revelaram-se insuficientes, sobretudo porque a Igreja, apesar de ser a maior possuidora de terras do Ocidente, não podia enfeudar a todos aqueles nobres sem senhorio. Assim, é compreensível que a pequena nobreza sem terra ou com escassos feudos visse nas Cruzadas a possível fornecedora de senhorios. O contexto político que contribuiu para a ocorrência das Cruzadas estava em parte ligado àquela nobreza despossuída e turbulenta. Na sua constante tentativa de obter terras, muitos nobres atacavam os feudos vizinhos e invadiam mesmo feudos da Igreja. Esta, além disso, era prejudicada pelas constantes guerras feudais, que ao afetarem a produção diminuíam o dízimo cobrado pela Igreja. Assim, entende- se dois movimentos criados pela Igreja na tentativa de pacificar a Europa feudal: a Paz de Deus (fins do século X) proibia, sob pena de excomunhão, ataques a clérigos não armados, camponeses e comerciantes; a Trégua de Deus (início do século XI) interditava as lutas três dias por semana e em certas épocas do ano. Antes de tudo procurava-se defender as pessoas e bens da Igreja, como nos conta Raul Glaber, um cronista do século XI: “para mostrar o respeito e a reverência devidos à santidade das igrejas, decidiu-se que todos aqueles que, perseguidos por qualquer falta, aí procurassem refúgio, deveriam permanecer ilesos, salvo os que 17
tivessem violado o dito pacto de paz. Da mesma maneira, não deveriam sofrer qualquer violência os clérigos, monges, religiosos e aqueles que, na sua companhia, atravessassem uma região”. É sintomático que o Concilio de Clermont, em que o Papa Urbano II pregou a realização da Primeira Cruzada, tenha sido reunido para renovar e confirmar as disposições da Trégua de Deus. Outro Concilio, cento e vinte anos depois, em Latrão (1215), pregando a Quinta Cruzada, dizia que “para realizar esse projeto é extremamente necessário que os príncipes cristãos observem a paz entre eles”.
Assim, inicialmente a Igreja era a maior interessada nos movimentos de paz, devendo-se aí incluir as Cruzadas que, ao 18
levarem a guerra para outros locais, poderiam pacificar a Cristandade Latina. Num segundo momento, porém, também as monarquias passaram a perceber que as Cruzadas podiam ser-lhes úteis ao desviar para outros empreendimentos a nobreza e seu espírito guerreiro e irrequieto. Tal fato revelava-se extremamente atraente aos soberanos, que já se aproveitavam dos problemas da nobreza para, apoiados pela nascente burguesia, promoverem a centralização política. Por isso mesmo, muitas vezes os próprios reis participavam de Cruzadas, levando consigo para fora do país boa parte da aristocracia guerreira. Por fim, devido a questões de política eclesiástica, a Igreja tinha ainda outra razão para promover as Cruzadas: tentar a reunificação da Cristandade. De fato, uma série de divergências jurídicas, eclesiásticas, teológicas e políticas que existiam há séculos entre as Igrejas de Roma e Constantinopla tinham culminado em 1054 no Cisma do Oriente. Nesse momento ocorreu a divisão em Igreja Católica Romana e Igreja Ortodoxa Grega. Desta forma, o papado via nas Cruzadas uma arma de pressão que poderia submeter a Igreja Oriental a Roma, dando-lhe a supremacia sobre todos os territórios cristãos. Concluindo, a melhor síntese das motivações materiais da Cruzada que poderíamos apresentar é o próprio discurso do papa Urbano II no Concilio de Clermont, em novembro de 1095: Após ter prometido a Deus manter a paz em suas terras e ajudar fielmente a Igreja a conservar seus direitos, vocês poderão ser recompensados empregando sua coragem noutro empreendimento. Trata-se de um negócio de Deus. É preciso que sem demora vocês partam em socorro de seus irmãos do Oriente, que várias vezes já pediram sua ajuda. Como a maior parte de vocês já sabe, os turcos invadiram aquela região; muitos cristãos caíram sob seus golpes, muitos foram escravizados. Os turcos destroem as igrejas, saqueiam o reino de Deus. Por isso, eu os exorto e suplico — e não sou eu quem os exorta, 19
mas o próprio Senhor — a socorrer os cristãos e a levar aquele povo para bem longe de nossas terras. "A todos os que partirem e morrerem no caminho, em terra ou mar, ou que perderem a vida combatendo os pagãos, será concedida a remissão dos pecados. Que combatam os infiéis os que até agora se dedicavam a guerras privadas, com grande prejuízo dos fiéis. Que sejam doravante cavaleiros de Cristo os que não eram senão bandoleiros. Que lutem agora contra os bárbaros os que se batiam contra seus irmãos- e seus pais. Que recebam as recompensas eternas os que até então lutavam por ganhos miseráveis. Que tenham uma dupla recompensa os que se esgotavam em detrimento do corpo e da alma. A terra que habitam é estreita e miserável, mas no território sagrado do Oriente há extensões de onde jorram leite e mel (...)".
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AS MOTIVAÇÕES PSICOLÓGICAS Tão importante quanto o conjunto de fatores materiais que contribui para a ocorrência dos fenômenos históricos, é o contexto psicológico em que eles ocorrem. No caso das Cruzadas, devemos levar em consideração três elementos fundamentais da mentalidade da época: a contratualidade, a belicosidade e a religiosidade. Como sabemos, a realidade social do feudalismo estava fortemente baseada na ideia de contrato, de reciprocidade de direitos e obrigações. A desigualdade social e a exploração de uma camada pelas outras eram mascaradas por uma ideologia segundo a qual haveria uma troca equilibrada de serviços, com alguns rezando pelo bem de todos (clero), outros protegendo toda a sociedade (guerreiros) e outros encarregados da produção (camponeses). Na própria aristocracia guerreira encontrava-se aquela ideia no contrato feudo-vassálico, que regulava as relações entre vassalo e senhor feudal, de modo que os direitos de um fossem obrigações do outro e vice-versa. Assim, o que era de início uma justificativa para a desigualdade social e uma norma jurídico-política, acabou com o tempo por se enraizar na mentalidade. Desta forma, a contratualidade ultrapassou o nível das relações inter-humanas para atingir as próprias i relações com Deus. De fato, passou a haver muito de barganha, de negócio, nas relações com o mundo sobrenatural: um certo número de preces podia ser trocado pela obtenção de riqueza, uma peregrinação a um santuário pela recuperação da saúde, um jejum por uma graça qualquer. Bem entendido, esse era um dado da mentalidade, ou seja, comum a todos os homens da época, independentemente de categoria social ou grau de cultura. Por exemplo, São Luís, rei de França, homem de cultura e de sincera religiosidade, fez voto de 21
cruzado durante uma grave enfermidade, ou seja, comprometia-se a trabalhar por Deus (recuperando a Terra Santa) caso fosse ajudado por Ele (sendo curado). As relações homem-Deus passaram a ser concebidas como relações vassalo-senhor feudal. O homem recebera a Terra como feudo do Senhor (como um vassalo recebia a terra do seu senhor) e em troca precisava, como qualquer vassalo, ser-Lhe fiel e prestar serviço militar (combatendo os inimigos de Deus). Mesmo simples gestos religiosos foram marcados por essa nova concepção: a partir do século X generalizou-se a atitude de colocar as mãos juntas ao fazer uma prece, reproduzindo o gesto do vassalo prestando homenagem a seu senhor feudal. A belicosidade foi outro componente da mentalidade que se originou na prática social para depois ganhar lugar no inconsciente coletivo. De fato, as sociedades ocidentais desde a crise do Império Romano no século III conheciam muitas invasões estrangeiras (germânicas, muçulmanas, vikings, húngaras, eslavas) e longos períodos de lutas internas (guerras sucessórias, disputas territoriais). O próprio feudalismo tinha sido na origem, em parte, uma forma de resistir aos invasores, fragmentando o Ocidente em pequenas unidades que se adaptavam melhor àquele tipo de guerra. Por outro lado, procurando limitar as lutas internas, a Igreja promovera a Paz e a Trégua de Deus, proibindo guerras em certos períodos, mas assim implicitamente aprovando-as no resto do tempo. Desta forma, o dado material transferiu-se para o emocional: desde o século XI o Diabo era visto como um vassalo de Deus caído em felonia, isto é, traição por quebra de contratualidade. Portanto os homens, vassalos ainda fiéis, entraram em combate constante com o demônio. A própria missa nada mais era que uma simulação simbólica daquele combate. As igrejas do estilo românico, típicas da idade feudal, ficaram conhecidas por "fortalezas de Deus", i e realmente assemelhavam-se aos castelos senhoriais e tinham as 22
mesmas funções defensivas: estes contra os invasores, aquelas contra as forças demoníacas. Os clérigos e os guerreiros formavam a elite ' s dirigente exatamente devido ao seu papel de protetores da sociedade. Cada um deles era especialista num tipo de combate: os guerreiros com seus cavalos, suas armaduras, suas lanças e espadas, enfrentavam os invasores de suas terras, assim como os clérigos com suas armaduras simbólicas, as batinas, e suas armas espirituais (sacramentos, preces, exorcismos) enfrentavam os inimigos da fé, as forças do Mal. Naturalmente, os inimigos eram vistos como exércitos demoníacos e portanto combatê-los era ao mesmo tempo obra política e religiosa, como fica bem claro através das próprias Cruzadas. A religiosidade, por fim, era o grande traço mental da época das Cruzadas, traço formado, como os anteriores, a partir do contato com a realidade. Como mostrou Marc Bloch, o homem da idade feudal vivia muito próximo e dependente de uma natureza desordenada e rude, que a pobreza de seu instrumental não permitia controlar: "numa palavra, havia por detrás de toda vida social um fundo de primitivismo, de submissão aos elementos indisciplináveis, de contrastes físicos que não podiam ser atenuados". Isto gerou uma religiosidade concreta, presa ao palpável, pois o íntimo contato do homem com a natureza apresentava-lhe mistérios que só poderiam ser explicados pela atuação de forças sobrenaturais que se tentava controlar. As forças do Bem poderiam ser levadas a ajudar o homem a dominar a natureza, a fazê-la trabalhar para seu benefício (clima favorável, fertilidade da terra e dos animais). As forças N do Mal poderiam ser subjugadas, impedindo a ocorrência de fenômenos naturais violentos, prejudiciais ao homem (terremotos, inundações, secas). Em função do seu aspecto contratual e bélico, a religiosidade feudal apresentava como ideal de vida cristã um estilo de vida heroico, de busca de proezas ascéticas, de luta contra o próprio 23
corpo; a santidade era acessível pelo esforço. Este ideal cristão era preferencialmente atingível nos mosteiros, mas os laicos de origem modesta que não podiam se tornar monges optavam por uma vida de privações e rudeza, de severidade que era um traço característico da espiritualidade popular da Idade Média: era como se uma maior violência para com o próprio corpo compensasse as deficiências de conhecimento e reflexão religiosas. Tal espiritualidade levava a uma religião de obras que representavam o conjunto de obrigações dos vassalos-homens para com o senhor-Deus: preces, esmolas, jejuns e, sobretudo, peregrinações. Estas eram viagens a santuários onde se veneravam relíquias, ou seja, objetos sagrados ou tornados sagrados pelo contato com corpos santos. Por exemplo, ia-se até o Monte Saint Michel, na França, venerar a marca de pé que o arcanjo Miguel deixara na rocha; a Chartres, também na França, ver a santa túnica da Virgem; a Roma visitar os restos mortais de São Pedro e São Paulo; a Compostela, na Espanha, cultuar o corpo santo do apóstolo Santiago; a Jerusalém visitar o Santo Sepulcro e os locais por onde Cristo passara. Assim, as peregrinações cumpriam seu duplo papel, ser uma forma de penitência e levar o indivíduo ao contato com relíquias. De fato, o peregrino era sempre um estrangeiro, um homem que procurava a espiritualização separando-se do seu mundo habitual, conhecendo as dificuldades e perigos dos caminhos. É significativo que os grandes centros peregrinatórios, que atraíam indivíduos de todos os cantos da Cristandade, estivessem em, ou próximo a, territórios muçulmanos — Jerusalém e Compostela. Portanto, os peregrinos que se dirigiam para aqueles locais passavam por maiores dificuldades do que se visitassem santuários mais próximos, e assim purificavam-se mais de seus pecados. Por outro lado, ter contato com relíquias era também um importante objetivo dos peregrinos, pois atribuía-se a elas poder 24
mágico, protegendo ou curando seu portador. Mesmo aqueles que não podiam obter uma relíquia, beneficiavam-se com a simples proximidade de um corpo santo, o que dava ao peregrino a esperança de por alguma forma ser tocado por aquela sacralidade. Apesar de seu grande número, as relíquias e corpos santos não chegavam a satisfazer a imensa necessidade do sagrado que havia na sociedade medieval. Em virtude disso, o culto de imagens ganhou muito prestígio e algumas delas chegaram mesmo a se tornar também objeto de peregrinação. As Cruzadas, portanto, devem ser entendidas neste contexto psicológico, sendo elas próprias “peregrinações armadas”. De fato, da reunião dos três elementos da mentalidade feudal que acabamos de examinar, surgiu o espírito de Cruzada: a) Deus é o senhor do mundo e os homens como seus vassalos devem servi-Lo, recuperando as regiões roubadas pelos infiéis, pagãos e heréticos; b) a Cruzada é um exército de penitentes, de pecadores buscando indulgência (desde fins do século XII as mulheres dos cruzados também ganhavam indulgência permanecendo fiéis); c) a honra cavaleiresca que se buscava numa Cruzada não poderia ser obtida de outra forma nem ao longo de toda uma vida; d) o caráter sagrado dos locais disputados reforçava a obrigação dos homens para com seu Senhor e tornava-os “soldados de Cristo”; e) a caridade fraterna do cristianismo seria praticada ao se ajudar os cristãos oprimidos pelos muçulmanos na Terra Santa ou na Península Ibérica. Entende-se assim que os cruzados fossem vistos como homens generosos, desprendidos, verdadeiros mártires, como neste texto do século XII: “não são realmente mártires aqueles que renunciam a si próprios e aos seus bens, que não temem nem a ruína que uma longa ausência pode ocasionar, nem a indolência do clima, nem a agitação do mar tempestuoso, nem o estrondo de suas vagas, nem os inumeráveis perigos da rota e do deserto, nem os sofrimentos da fome e da sede, nem a própria morte?”. 25
Os cronistas das primeiras Cruzadas falam em pessoas milagrosamente marcadas na carne com uma cruz, sinal de benção divina e do agrado de Deus por sua participação na Cruzada. Outros cronistas contam-nos que à Cruzada do rei húngaro
Estevão, em princípios do século XIII, juntaram-se animais, peixes, pássaros e borboletas (estas consideradas portadoras da alma desde os antigos egípcios), que revoavam também em torno do contemporâneo São Francisco de Assis. Em suma, a Cruzada era uma obra aprovada por Deus.
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Em função disso tudo, desenvolveu-se no Ocidente a concepção de guerra santa, existente, aliás, entre os muçulmanos. Os bizantinos, contudo, não aceitavam aquela ideia, já que para eles nenhuma guerra era santa, mas apenas necessária; morrer na luta não seria um martírio, pois os mártires enfrentavam o inimigo apenas com as armas da fé. A princesa e cronista bizantina Ana Comneno indignava-se ao ver cruzados lutando na Semana Santa, e entre eles sacerdotes armados e empenhados no combate. Esta diferente visão das coisas explica, a par de razões políticas e econômicas, a desaprovação bizantina frente às Cruzadas. No Ocidente, porém, já no século V Santo Agostinho admitira que as guerras eram feitas por ordem de Deus. Em meados do século IX o papa Leão IV afirmava que todo aquele que morresse lutando em defesa da Igreja receberia uma recompensa celestial. Pouco depois outro papa, João VIII, colocava as vítimas da guerra santa entre os mártires. Em 1064 Alexandre II oferecia indulgência a quem lutasse contra os muçulmanos na Península Ibérica, e poucos anos depois Gregório VII dava absolvição a quem morresse lutando pela cruz. Foi contudo no século XII, com São Bernardo, que a ideia de guerra santa foi melhor elaborada e justificada, ganhando contornos definitivos. Para ele a Cruzada antes de um fato político e militar era uma liturgia, devendo por isso estar aberta a todos e não apenas a uma elite. Na verdade, dela deveriam participar de preferência os maus cristãos, os grandes pecadores. Claro, portanto, que esta atividade purificadora só poderia ser considerada santa. Como a Cruzada iria “vingar a honra ultrajada de Jesus”, ela transformava a atividade guerreira de algo condenável numa virtude, quase santidade. O verdadeiro cruzado não lutaria apenas com a espada, mas também com a fé, daí o combate terminar ou com a vitória militar ou com a glória do martírio. Enfim, o cruzado tornava-se uma espécie de monge-guerreiro, ideia que depois se concretizaria com as
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Ordens Militares Religiosas (Hospitalários, Templários, Cavaleiros Teu tônicos, etc.). Assim, os conceitos de Paz de Deus e de Guerra Santa, aparentemente contraditórios, encontravam- se estreitamente associados — reunindo a trilogia mental, contratualidade, bélicosidade, religiosidade —, procurando impor uma concepção de mundo em proveito das elites, sobretudo da clerical, criadora deste modelo ideológico.
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AS CRUZADAS NO ORIENTE E NO OCIDENTE Como vimos, as Cruzadas resultaram de um conjunto de fatores materiais e psicológicos, ocorrendo, portanto, onde quer que aquelas necessidades e ansiedades pudessem ser satisfeitas. Daí termos tido Cruzadas no Oriente Médio, que objetivavam reintegrar na Cristandade a Terra Santa, isto é, Jerusalém e regiões vizinhas, e na própria Europa, onde a Península Ibérica estava em mãos de muçulmanos e as regiões orientais, além rio Elba, eram território pagão. As Cruzadas que buscavam a Terra Santa recebem tradicionalmente números (de Primeira a Oitava Cruzada), no caso das expedições oficiais, ou nomes (Cruzada Popular, Cruzada de Crianças), para indicar a composição social diversa de outras. De qualquer forma, isto é apenas um recurso didático usado pelos historiadores, já que na verdade havia um fluxo constante de peregrinos, armados ou não, em direção a Jerusalém: podia haver cruzados sem fazer parte de uma Cruzada, mas o inverso obviamente não era possível.
O movimento das Cruzadas no Oriente Médio Após o discurso do papa Urbano II em Clermont, o entusiasmo despertado pela ideia de se partir para Jerusalém foi muito grande. Enquanto a nobreza feudal iniciava seus preparativos, necessariamente demorados, o movimento repercutiu nas camadas populares. A pregação fervorosa e entusiástica de um monge, Pedro, o eremita, reuniu bandos de franceses e alemães que, sem um plano preestabelecido e sem condições materiais adequadas, partiram separadamente para o Oriente. A caminho, estes grupos de 29
pequenos cavaleiros, camponeses, clérigos, aventureiros, maltrapilhos e desenraizados tinham dificuldades em obter provisões, e chegavam muitas vezes ao limite da fome, passando então a roubar e saquear. O fanatismo quase ingênuo dos participantes desta Cruzada Popular e os problemas materiais pelos quais passavam, levaram-nos em vários locais, sobretudo na Alemanha, a massacrarem comunidades judias. Boa parte daqueles milhares de peregrinos que tinham partido em abril de 1096, morreu durante a viagem. Os que chegaram ao Império Bizantino, famintos e desiludidos mas ainda aguerridos, naturalmente maravilharam-se com o esplendor e a riqueza de Constantinopla, que por sua vez viu surpresa e assustada aqueles bandos miseráveis e ignorantes. O primeiro contato entre cruzados e bizantinos foi de inveja e menosprezo, de mútua incompreensão, e as demais Cruzadas apenas alargariam o fosso entre as duas partes da Cristandade. Sentindo o incontido fervor dos cruzados e preocupado com os problemas que eles começavam a lhe causar, o imperador bizantino forneceu-lhes transporte para a Ásia. Aí os cruzados atacaram território turco, perecendo uma parte deles em batalha enquanto outros ficavam cercados, num local sem água, padecendo tormentos que conhecemos graças a um cronista anônimo. “De tal modo os nossos sofreram sede, que alguns abriam as veias de seus cavalos e jumentos a fim de beber seu sangue; outros pediam a um companheiro que colhesse com as mãos a urina, para com ela mitigar a sede; outros ainda escavavam o solo úmido, deitavam-se e espalhavam terra no peito, tamanho era o ardor da sua sede.’’ Os bizantinos enviaram tropas de apoio, porém o fracasso da Cruzada Popular era definitivo. Em novembro de 1096 os sobreviventes retornavam ou a Constantinopla, para aguardar a Cruzada dos Barões que estava a caminho, ou para sua região de origem. Como escreveu Paul Rousset, se a Cruzada Popular foi em 30
certos momentos uma agitação anárquica e perigosa, foi principalmente o testemunho violento e confuso do entusiasmo gerado pelo discurso de Clermont. Enquanto isso, organizava-se a verdadeira Primeira Cruzada (1096-1099), formada pela nobreza e supervisionada pelo papado. Apesar de haver um comando único na pessoa do representante papal, na prática a Cruzada era formada por vários exércitos feudais autônomos. Um deles, de franceses do norte (região de Paris, Bretanha, Normandia), chefiado pelo irmão do rei, Hugo de Vermandois, dirigiu-se para a Itália, embarcando em Bari e chegando a Constantinopla em novembro de 1096. Outro, constituído por franceses do leste e alemães comandados por Godofredo de Bulhão, atravessou a Hungria, passou pelos Bálcãs e chegou à capital bizantina um mês depois do grupo anterior. Em abril do ano seguinte lá chegou o exército de franceses do sul, liderados por Raimundo de Saint-Gilles, conde de Toulouse, que cruzara os Alpes e a Itália do norte para chegar à Grécia e daí a Bizâncio. Na mesma época lá chegavam também os normandos do sul da Itália, comandados por Boemundo. O imperador bizantino Aleixo I exigiu dos chefes cruzados um juramento de fidelidade e o compromisso de que as primeiras terras conquistadas fossem entregues a Bizâncio. Juridicamente os bizantinos tinham razão, pois aqueles territórios eram seus antes da conquista muçulmana. Contudo, isso contrariava os interesses particulares dos cruzados e abria uma questão que posteriormente criaria muitos problemas. A recusa do conde de Toulouse em fazer o juramento contribuiu para estremecer ainda mais as já frágeis relações entre cruzados e bizantinos. Os cristãos encontravam-se divididos, mas para sua sorte o mesmo ocorria, e de forma mais drástica naquele momento, com os muçulmanos. A campanha começou com o cerco à cidade de Nicéia, que os turcos haviam ocupado alguns anos antes, local estrategicamente 31
importante por sua proximidade de Constantinopla. O bloqueio dos cruzados por terra foi eficiente, mas eles precisavam de apoio naval, que o imperador forneceu, isolando totalmente a cidade. Assim, os turcos resolveram capitular, entregando Nicéia a Aleixo, que garantia em troca respeitar a vida de seus habitantes. Para os cruzados esse acordo foi encarado como uma traição, que arrancava aos ocidentais a possibilidade de uma vitória militar completa, cheia de glória e saques. A seguir a Cruzada passou para a Síria, numa caminhada lenta e difícil devido aos obstáculos geográficos, à dificuldade de aprovisionamento, aos desentendimentos entre os chefes cruzados e à resistência dos turcos. Os ocidentais ficaram mesmo surpresos com o valor militar dos inimigos, tanto que um cronista afirma que “tivessem eles observado sempre com firmeza a fé em Cristo e ninguém poderia rivalizar com eles em força, coragem e ciência da guerra”. Após a conquista de algumas cidades, que não foram aliás devolvidas ao imperador bizantino conforme tinha sido combinado, os cruzados chegaram frente a Antioquia, importante comercial e estrategicamente. Depois de sete meses de cerco, graças à astúcia de Boemundo e à traição de um cristão armênio residente na cidade, os cruzados ocuparam Antioquia em meados de 1098. Contudo, logo depois chegava um numeroso exército turco de socorro e a situação invertiase, com os latinos ficando então sitiados. A fome, a falta de apoio bizantino e as deserções baixavam o moral dos cruzados, que estavam numa situação difícil quando ocorreu o famoso episódio da Santa Lança. Um camponês francês teve visões nas quais Santo André indicou-lhe uma igreja de Antioquia onde estaria a lança com que o centurião romano ferira Cristo. A descoberta da lança no local indicado suscitou grande entusiasmo e a certeza de que Deus os apoiava. Assim, motivados, os cruzados saíram para uma batalha em campo aberto e conseguiram a vitória. 32
A etapa natural seguinte seria Jerusalém, mas antes cada chefe cruzado empenhou-se em ações isoladas procurando realizar uma conquista territorial para benefício próprio. Finalmente, no início de 1099 os cruzados puseram-se em marcha para Jerusalém, alcançando-a alguns meses depois. O sítio foi difícil e prolongado, mas os cruzados conseguiram penetrar na Cidade Santa em julho de 1099, com incrível ferocidade, como nos mostra a História Anônima da Primeira Cruzada: “perseguiam, massacravam os muçulmanos até o Templo de Salomão, onde houve tal carnificina que os nossos caminhavam com sangue até os tornozelos”, depois do que “os muçulmanos vivos arrastavam seus mortos para fora da cidade e diante das suas portas formavam montes tão altos como casas”. Logo depois os cristãos rezaram e agradeceram a Deus pela vitória: Jerusalém era novamente sua. Desta maneira, os ocidentais — chamados genericamente de francos — puderam estabelecer no território sírio-palestino Estados estruturados de forma que poderíamos chamar de feudo-colonial. De um lado, porque seus quadros dirigentes eram oriundos da pequena nobreza feudal europeia e, portanto, as relações entre eles eram regidas pelas normas do feudalismo ocidental. De outro, porque as populações das regiões dominadas, cuja mão-de-obra e riquezas eram exploradas pela elite ocidental, eram de etnia e religião diferentes das dos conquistadores: árabes, turcos, sírios, armênios, egípcios, gregos, divididos em seitas muçulmanas (sunitas, xiitas, ismaelitas) ou cristãs não católicas (monofisitas, nestorianos, ortodoxos). Os Estados francos eram quatro. O Reino de Jerusalém, região de solo pedregoso e pouco propício à agricultura, de litoral inóspito que não favorecia o comércio marítimo, tinha ainda a vizinhança sempre perigosa do Egito, a maior potência muçulmana da época. Portanto, sua condição de Estado mais importante não se devia a razões econômicas ou estratégicas, mas de prestígio religioso. Seu 33
primeiro chefe foi Godofredo de Bulhão, que não quis aceitar o título de rei e a “coroa real no lugar onde Cristo usou a coroa de espinhos”. No extremo nordeste, o Condado de Edessa, criado em 1098 por Balduíno de Bolonha (irmão de Godofredo), encontrava-se por sua localização constantemente pressionado pelos muçulmanos, e seria o primeiro a desaparecer. O Principado de Antioquia, na desembocadura das rotas caravaneiras provenientes do Extremo Oriente, desempenhou importante papel na Síria franca, sobretudo no período em que foi governado por seu criador, Boemundo. O Condado de Tripoli, o último Estado latino a se constituir, localizado entre Antioquia (ao norte) e Jerusalém (ao sul), beneficiava-se de um litoral muito favorável ao comércio, o que levara Gênova a ajudar Raimundo de Saint- Gilles a formá-lo. Exatamente em função desta sua importância comercial, e portanto do interesse das cidades italianas, Tripoli foi a última região latina na Síria a cair frente aos muçulmanos (1291). Estes Estados latinos do Oriente eram, porém, claramente, criações artificiais, muito distantes do Ocidente, com o qual estavam ligados apenas por via marítima, ficando assim dependentes dos interesses comerciais italianos. Os francos representavam uma pequena minoria naqueles territórios de povoamento antigo e denso, elementos estranhos ao meio e que nunca poderiam ser completamente assimiladores ou assimiláveis. Outro problema era a grande ambição dos chefes ocidentais, que os levava a uma rivalidade desgastante, enfraquecendo as limitadas forças cristãs e mostrando aos inimigos que aquela desunião poderia ser explorada. Ademais, a hostilidade muçulmana e bizantina era grande, produto do desprezo de civilizações mais refinadas e sofisticadas pelos ocidentais rudes, incultos e violentos, “cães cristãos” para os muçulmanos, “bárbaros” para os bizantinos. Portanto, a existência da Síria franca estava sempre ameaçada, especialmente quando os muçulmanos deixavam de lado tempora34
riamente seus desentendimentos internos e se uniam frente aos cristãos.
Foi o que aconteceu quando o chefe islamita de Mossul reunificou vastos territórios e formou um poderoso Estado limítrofe 35
a Antioquia e Edessa. Esta última, mais fraca e isolada, foi conquistada em 1144. A notícia da queda de Edessa mostrou ao Ocidente a fragilidade das demais possessões cristãs, e assim despertou a idéia de uma Cruzada de apoio, que reocupasse Edessa ou ao menos fortalecesse as demais posições latinas no Oriente Médio. Esta Segunda Cruzada (1147-1149), pregada entusiasticamente por São Bernardo, reuniu três contingentes: o alemão do imperador Conrado III, o francês do rei Luís VII e um de europeus do norte (ingleses, flamengos e frísios). Este último grupo, que ao contrário dos primeiros pretendia atingir a Terra Santa por mar, ao passar pela Península Ibérica ajudou os cristãos a reconquistarem Lisboa aos muçulmanos, entrecruzando-se assim as Cruzadas orientais e ocidentais. Entretanto, os alemães que chegaram antes dos demais ao Oriente, sem esperar apoio e sem maior planejamento, penetraram em território turco e foram esmagados em Doriléia. Os sobreviventes juntaram-se ao exército francês que chegou logo depois, porém os constantes atritos entre alemães e franceses dificultavam uma ação conjunta dos cristãos. Além disso, ocorriam também desentendimentos entre Luís VII e Raimundo de. Poitiers, príncipe de Antioquia, por causa de Eleonor da Aquitânia, esposa do primeiro e sobrinha do segundo, que mesmo acompanhando o marido à Cruzada não chegava a merecer a indulgência por fidelidade conjugal... Quando finalmente Conrado e Luís chegaram a um acordo, tomaram a decisão pouco feliz de atacar Damasco, o que redundou em mais uma derrota cristã e assim no fracasso da Cruzada. Essa mostra da fraqueza cristã ocorria paralelamente ao surgimento no mundo muçulmano de uma nova potência, que contava com um líder muito hábil política e militarmente, Saladino. Em poucos anos ele eliminou vários rivais muçulmanos, apoderando-se de regiões que praticamente cercavam os Estados cristãos. 36
Assim, a invasão do Reino de Jerusalém, a conquista de suas principais praças-fortes e por fim da própria Jerusalém (1187) era o resultado quase inevitável da diferença de forças. Jerusalém tinha permanecido cristã por apenas (ou por longos, dependendo do ponto de vista) 84 anos. A notícia da perda da Cidade Santa comoveu e movimentou o Ocidente na preparação de uma nova Cruzada, a Terceira (1189-1192). O papa autorizou vários pregadores a percorrerem a Europa e estendeu a indulgência para aqueles que não podendo participar da Cruzada financiassem a ida de outras pessoas. Três soberanos tomaram a cruz, o rei francês Filipe Augusto, o rei inglês Ricardo Coração de Leão e o imperador alemão Frederico Barba Ruiva. Além dos cruzados daquelas regiões, participaram também guerreiros da distante Escandinávia e marinheiros das cidades italianas. Esta Cruzada, aparentemente tão forte, sofria, contudo, da mesma debilidade das anteriores, falta de um comando único e de um planejamento global. Mais uma vez cada exército seguia caminhos diferentes e já chegava ao Oriente desgastado e com o espírito de cruzada enfraquecido. O imperador alemão, que partira antes, conseguiu algumas vitórias na Ásia Menor, mas teve o fim pouco glorioso de morrer afogado ao tentar a travessia de um rio, e desta forma as forças germânicas dispersaram-se. Paralelamente, um grupo de combatentes de várias nacionalidades cercava a importante fortaleza de São João d’Acre, que resistiria por dois anos, só caindo em meados de 1191. Enquanto isso, Filipe e Ricardo sequer haviam partido, pois antigas diferenças políticas e pessoais impediam que chegassem a um acordo. Finalmente eles se reuniram no sul da França e resolveram dirigir-se para Marselha, em seguida para Gênova e daí para a Sicilia, onde, porém, novos desentendimentos os retiveram por seis meses. Quando chegaram ao Oriente, a resistência de Acre já estava fraca e os cristãos com os reforços franceses e ingleses 37
finalmente tomaram a cidadela, que seria desde então o principal ponto de apoio ocidental e o último bastião latino a ser reconquistado pelos muçulmanos no século XIII. O que parecia ser uma boa perspectiva para a Cruzada não teve, porém, continuidade.; Filipe Augusto, sempre desconfiado de seu adversário europeu e aliado oriental, Ricardo, resolveu voltar para a França, cujos problemas preocupavam-no mais que a Cruzada. Ricardo Coração de Leão, grande guerreiro que era, conseguiu algumas vitórias sobre Saladino, mas nem sempre soube explorar convenientemente seus resultados, e preferiu fazer um acordo com os muçulmanos. Por este tratado, Saladino reconhecia a posse do litoral sírio-palestino aos ocidentais e permitia aos cristãos peregrinarem a Jerusalém, que continuava contudo sob seu domínio. De qualquer forma, esta Cruzada garantiu aos Estados francos territórios fundamentais para sua sobrevivência, adiando por um século seu desaparecimento; ao invés de “semifracasso” (Rousset) seria preferível considerá-la um semisucesso. Os novos interesses comerciais e políticos, o surgimento de uma nova tolerância entre cristãos e muçulmanos devido à longa convivência, a liberdade de peregrinação conseguida por tratados — estes fatores iam aos poucos enfraquecendo o espírito de Cruzada e fazendo com que o movimento fosse muitas vezes desviado de seus objetivos originais. O melhor exemplo disso foi a Quarta Cruzada (1202-1204) que, resultante dos velhos desacordos ocidentais-bizantinos e dos interesses econômicos de Veneza, acabou por se tomar a primeira Cruzada contra cristãos. Contudo, é curioso como aparentemente esta Cruzada começava como a primeira, incentivada por um papa de prestígio (Inocêncio III), movimentando a nobreza feudal mas não soberanos, reunindo efetivos sobretudo franceses. A questão do transporte e dos recursos financeiros acabaria, porém, por desviar os rumos da Cruzada, revelando as transformações que ocorriam no Ocidente e 38
portanto nas próprias Cruzadas. De fato, assinou-se com Veneza um acordo pelo qual ela forneceria transporte e provisões para os cruzados em troca de uma certa quantia em dinheiro e metade das conquistas que fossem feitas. Como na época do embarque os cruzados não tinham a quantia total, os venezianos propuseram uma moratória desde que recebessem sua ajuda para ocupar a cidade de Zara, no litoral adriático. A concordância da Cruzada já era um desvirtuamento, pois tratava-se de apoiar as pretensões materiais de um partido (Veneza) contra outro, também cristão (o rei da Hungria, possuidor de Zara). Ademais, os venezianos só aceitaram a presença na Cruzada de um representante papal que tivesse apenas funções espirituais; a Quarta Cruzada começava com um ato de rebelião em relação ao papa e ao seu legado. Para complicar a situação, o príncipe bizantino Aleixo pediu o apoio dos cruzados para destituir um usurpador que ocupava o trono de Constantinopla e nele recolocar seu pai, Isaac II. Prometia em troca reunificar as Igrejas, pagar uma grande quantia em dinheiro e fornecer provisões aos cruzados. Tal proposta interessou ao chefe da Cruzada, Bonifácio de Montferrat (amigo de Filipe da Suábia, genro do imperador destronado), pois assim poderia liquidar a dívida para com Veneza, obter recursos para dar prosseguimento à Cruzada e pôr fim ao Cisma de 1054 (o que agradaria ao papa, descontente desde a tomada de Zara). Aos venezianos ela também interessava, já que era uma grande oportunidade para recuperar privilégios comerciais de que tinham gozado anteriormente em Bizâncio. Mais ainda, era uma rara ocasião para se tentar ocupar partes dos mercados orientais dominados por Constantinopla, grande rival comercial. Desta forma, em julho de 1203 Constantinopla era atacada por mar pelos venezianos e por terra pelos francos. Após uma curta resistência, o imperador usurpador, que contava com pequeno apoio popular, fugiu, sendo reentronizado Isaac II. Os cruzados foram então 39
autorizados a acampar perto da capital, podendo mesmo visitaremna. O contato direto entre a população bizantina e os latinos só aumentou o ódio que uma série de eventos históricos vinha alimentando há séculos. Os gregos desprezavam aqueles homens rudes, ambiciosos e violentos (um incêndio propositalmente provocado pelos ocidentais destruirá vários quarteirões e matara muitas pessoas), enquanto os latinos estavam desgostosos pelo fato de Aleixo não ter cumprido totalmente suas promessas. Os ocidentais, pretendendo defender seus direitos, atacaram novamente Constantinopla, mas foram rechaçados. Contudo, um segundo assalto poucos dias depois teve sucesso (abril de 1204). Seguiram-se vários dias de desordem, com os latinos matando, queimando, violentando, mas sobretudo saqueando, apossando-se das imensas riquezas de Bizâncio. Segundo um participante e cronista do acontecimento, "os ganhos foram tão grandes que ninguém saberá dizer o montante em ouro e prata, baixelas, pedras preciosas, tecidos de cetim e de seda, peles e todos os mais ricos bens que jamais foram encontrados na Terra". Dentre as riquezas saqueadas destacavam-se as relíquias, de que Constantinopla era rica, e que foram então espalhadas por toda a Europa. Surgia assim o Império Latino de Constantinopla. Para seu trono foi eleito Balduíno, conde de Flandres, e a seguir procedeu-se à partilha dos despojos, que beneficiou mais que ninguém aos venezianos: "o determinismo econômico levou Veneza a dominar Constantinopla; o apelo de Aleixo forneceu o pretexto, os cruzados a massa de mão-de-obra. Sem Veneza, a Cruzada não teria sido desviada; sem a Cruzada, Veneza não teria podido fundar seu império no Oriente” (Morrisson). Contudo, o Império Latino era frágil devido às contraditórias ambições j de seus chefes, à hostilidade da população bizantina, à forte resistência do clero ortodoxo e à rivalidade comercial veneziano-genovesa: 57 anos depois um nobre grego apoiado por Gênova restabelecia o Império Bizantino (1261). 40
A Quarta Cruzada, apesar das inúmeras tentativas dos contemporâneos em justificá-la, dera profundo golpe no espírito de Cruzada. A deturpação dos seus objetivos levantava críticas às Cruzadas, como a feita pelo poeta francês Rutebeuf em meados do século XIII: “devo deixar minha mulher e meus filhos, todos os meus bens e heranças para ir conquistar uma terra estrangeira que nada me dará em troca? Posso adorar Deus tanto em Paris como em Jerusalém”. No entanto, o verdadeiro espírito das Cruzadas ainda não morrera, como fica claro com a Cruzada de Crianças (1212), movimento espontâneo, popular. Iniciada por um menino alemão que reuniu milhares de jovens, geralmente camponeses — aquele era um momento em que a expansão demográfica aproximava-se de seu ponto máximo — esta Cruzada só alcançou Gênova, com seus participantes morrendo no caminho, sendo sequestrados e escravizados, ou simplesmente se dispersando. A crença geral de que as crianças poderiam ter sucesso no empreendimento graças à sua pureza, era ao mesmo tempo uma sobrevivência da ideia original de Cruzada e uma crítica aos rumos que ela tinha então tomado. O IV Concilio de Latrão (1215) havia pregado a necessidade de uma nova Cruzada na Terra Santa, mas ela, ao contrário das anteriores, quase não contou com franceses, envolvidos numa Cruzada contra heréticos no sul da França. Assim, a Quinta Cruzada (1217-1219) reuniu húngaros, austríacos, cipriotas, frísios, noruegueses e francos da Síria. O plano, concebido já no século anterior mas nunca posto em prática, era atacar o Egito, o mais rico território muçulmano, o que, pensava-se, enfraqueceria o sultão, facilitando a retomada de Jerusalém. Agindo nesse sentido, os cruzados conseguiram ocupar a importante cidade de Damieta, mas demoraram-se a marchar sobre o Cairo, permitindo que os islamitas se recuperassem e os derrotassem.
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A Sexta Cruzada (1228-1229), realizada pelo imperador alemão Frederico II, é um claro exemplo de como a “moral do lucro sobrepujava a moral de nobreza, a política derrotava a mística” (Rousset). De fato, as suas ambições imperiais em relação ao Oriente tinham-no levado a se casar com a filha de João de Brienne, rei — sem reino — de Jerusalém, e assim Frederico passou a se considerar com direitos àquele trono. Como, porém, ele estivesse excomungado pelo papa devido a um choque de interesses envolvendo a Itália, Frederico II não poderia contar com o apoio dos católicos do Oriente. Desta 42
forma, o imperador germânico, grande conhecedor da língua e da cultura árabes, iniciou negociações com o sultão. O resultado foi o Tratado de Jafa, pelo qual Jerusalém e outros territórios eram devolvidos ao reino latino; Jerusalém tornava-se cidade aberta, com os muçulmanos conservando as mesquitas e os cristãos o Santo Sepulcro. Contudo, uma nova peça entrava no jogo político do Oriente, os mongóis. Nas primeiras décadas do século XIII, sob Gengis-Khan, eles submeteram uma área muito vasta, destroçando ou empurrando à sua passagem muitas populações. Foi o que aconteceu na Ásia Central com os khwarizmianos (racialmente iranianos, religiosamente muçulmanos), que se deslocaram então para a Ásia Menor, pressionando a Síria franca e tomando Jerusalém em 1244. Assim, no ano seguinte no Concilio de Lyon o papa pregava a realização de urna nova Cruzada. No entanto, a resposta a esse apelo foi fraca: a ideia de Cruzada estava desgastada, os italianos e alemães encontravamse envolvidos mais uma vez na disputa Igreja-Império, a Inglaterra conhecia problemas internos, a Península Ibérica continuava suas próprias Cruzadas, a Europa Oriental sentia a ameaça mongol. Portanto, apenas a França tinha condições de participar de uma nova Cruzada, e isto ia ao encontro do espírito muito religioso de seu rei, Luís IX, depois canonizado como São Luís. A Sétima Cruzada (1248-1250), retomando projeto anterior, tinha por objetivo o Egito, que lhe parecia a chave para o domínio da Palestina. Damieta pôde ser conquistada com certa facilidade, mas a indecisão (como na Quinta Cruzada) em se atacar o Cairo deu chance a que os muçulmanos absorvessem o golpe inicial e preparassem a defesa. Meses depois, ao retoma43
rem a marcha sobre o Cairo, os cruzados foram derrotados diante da fortaleza de Mansura e na retirada o próprio São Luís foi aprisionado. Para que ele e seus homens fossem libertados restituiu-se Damieta e pagou-se ainda uma grande quantia em dinheiro. Luís dirigiu-se então à Síria onde ficou quatro anos reconstruindo e reforçando fortalezas cristãs e aguardando o momento de atacar Jerusalém. Contudo, a morte de sua mãe, regente de França, obrigou-o a voltar à Europa. Quando os muçulmanos conquistaram Antioquia — a única grande cidade que ainda permanecia em mãos cristãs — em 1268, São Luís novamente se fez cruzado, mas contando com poucas adesões e recebendo mais críticas que apoio. Esta Oitava Cruzada (1270) dirigiu-se para a Tunísia (mais para atender a interesses políticos do irmão do rei do que considerações de ordem estratégica), onde logo após o desembarque uma epidemia matou centenas de cruzados, inclusive São Luís. Sem sua liderança e seu entusiasmo — na verdade ele era um dos poucos a ainda acreditar na Cruzada — naturalmente a expedição fracassou, retomando-se logo depois para a França. Em suma, naqueles quase dois séculos o quadro histórico geral que dera origem às Cruzadas tinha-se modificado profundamente, e assim elas perderam sua razão de ser e acabaram desacreditadas. O fato do papado ter continuado a pregar Cruzadas sobretudo após a perda do último território católico na Síria — Acre, em 1921 — apenas mostra que a instituição continuava viva, mas sem o espírito e as motivações originais, daí a quase nenhuma ressonância daqueles apelos.
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O movimento das Cruzadas no Ocidente
A luta contra os inimigos da Cristandade começara antes no próprio Ocidente, mas seu caráter doméstico, contínuo e regular não lhe deu — na visão da época e da historiografia — o aspecto espetacular que ganharam as expedições a Jerusalém. Porém, o fracasso dessas e o sucesso lento mas constante daquela foram alterando a própria posição da Igreja. Hostiensis, importante jurista canônico do século XIII, refletia essa mudança ao afirmar que “embora a opinião pública olhe favoravelmente as Cruzadas do Ultramar, crux marina, parece, contudo, a quem julga de acordo com a razão e com o senso comum, que a Cruzada no continente, crux cismarina, é mais justa e mais racional”. Praticamente desde que os muçulmanos conquistaram a Península Ibérica, em princípios do século VIII, tinha começado o processo conhecido por Reconquista Cristã. Na verdade, inicialmente o movimento não tinha motivações religiosas, mas era apenas produto das necessidades criadas pelo crescimento populacional dos grupos cristãos refugiados nas montanhas do norte da Espanha. A Reconquista era um empreendimento essencialmente camponês e pastorial. As várias expedições realizadas por Carlos Magno e seu filho entre 778 e 827 faziam parte de uma política de busca de prestígio (objetivando a unidade política do Ocidente) e de aliança com a Igreja (cujo apoio era necessário para aquele objetivo), não tendo alterado aquele caráter original da Reconquista. Mesmo assim, as expedições carolíngias arrancaram aos árabes considerável território, onde mais tarde organizaram-se os reinos de Navarra e Aragão. A grande mudança na situação peninsular ocorreria contudo apenas no século XI. De um lado, porque o califado muçulmano de Córdoba desintegrou-se por problemas internos, dando origem a 45
pequenos reinos independentes e rivais (as taifas), o que facilitava as pretensões cristãs. De outro, porque a forte expansão demográfica da Europa além — Pirineus levava para a Península Ibérica muitos aventureiros e pequenos nobres interessados em obter terras e glória para si. Foi assim que, através dos franceses principalmente, a Reconquista ganhou caráter religioso, com o papa Alexandre II em 1063 prometendo remissão dos pecados a quem ajudasse os cristãos ibéricos na sua luta. Portanto, só “em fins do século XI a Reconquista, nitidamente patrocinada pelo chefe da Igreja, possui um caráter religioso indiscutível” (Villey). Desde então, pode-se empregar o termo Cruzada em relação à Reconquista Ibérica, mesmo porque ela apresentava todas as motivações que examinamos nos capítulos anteriores e que haviam gerado os movimentos para o Oriente. De fato, o vasto território que poderia ser tirado dos muçulmanos atraía os excedentes populacionais de várias regiões europeias, sobretudo da vizinha e superpovoada França. A nobreza secundogênita, especialmente, via na península a possível realizadora de seu sonho de obter terras. O sucesso de muitos desses indivíduos naturalmente atraía outros. Os exemplos mais famosos disso envolvem dois membros da família do duque de Borgonha: Raimundo e Henrique, por sua ajuda a Afonso VI de Castela, casaram-se com duas de suas filhas, recebendo assim o primeiro deles a Galícia (ficando ainda como herdeiro do trono castelhano) e o outro Portugal (que seu filho transformaria em reino independente). Os grupos comerciais também viam com bons olhos a possibilidade de se ter uma Ibéria totalmente cristã, fornecedora de algumas matérias-primas importantes. Esse era o caso da lã, muito procurada pela indústria têxtil em expansão. A Igreja, naturalmente, também estava interessada na Reconquista, pois gostaria de ampliar sua área de atuação efetiva. Ocorre que mesmo os territórios cristãos da península estavam pouco ligados à Igreja, pois ainda adotavam o 46
rito moçárabe, herança da época visi- goda. Por fim, a Península Ibérica também tinha sua Jerusalém, seu local sagrado que fornecia a motivação religiosa: Compostela, cidade em que se acreditava estarem os restos mortais do apóstolo Santiago. Para que a Cruzada Oriental não esvaziasse a Cruzada ocidental, o papa Pascoal II em 1100 proibiu os cristãos ibéricos de irem à Terra Santa e concedeu a eles a mesma indulgência que cabia aos da Palestina. Mais tarde, em 1218, também os estrangeiros que lutassem na Reconquista receberiam a indulgência plena, como se combatessem em Jerusalém. Além da participação de europeus não ibéricos que se dirigiam para a península especialmente para a luta antimuçulmana, a Reconquista teve a ajuda de cruzados que estavam de passagem para o Oriente. Por exemplo, em 1147 um grupo de alemães, escoceses, flamengos, ingleses e franceses, que se dirigiam para a Segunda Cruzada, ajudou os portugueses a reconquistarem Lisboa em troca de possibilidades de riqueza que o saque da cidade prometia. Da mesma forma, em 1217 uma frota de alemães que iria participar da Quinta Cruzada apoiava os portugueses na conquista da importante cidade de Alcácer. Assim, a Reconquista desde o século XI fazia claros progressos, mas conhecia também insucessos, dependendo do maior ou menor entendimento entre os cristãos e da unidade ou divisão política dos muçulmanos. No primeiro caso, tivemos por muito tempo as lutas sucessórias e as pretensões hegemônicas de Castela. No segundo, a desagregação do Califado de Córdoba e o surgimentos das taifas, depois a reunificação sob a dinastia norte-africana dos Almorávidas (1086-1148), seguida de nova divisão e depois outra unificação sob os Almoadas (1172-1248) e por fim a divisão definitiva. Neste contexto de constantes desentendimentos internos nos dois lados é que devemos colocar a figura mais famosa da Reconquista, o nobre castelhano conhecido por El Cid (século XI). Grande guerreiro, após ter enfrentado muitas vezes os muçulmanos, devido a um 47
desentendimento com o rei de Castela colocou-se a serviço dos antigos inimigos e mais tarde formou seu próprio exército e domínio ( Valência) combatendo uns e outros. Nas suas grandes linhas, a Reconquista deu-se assim: em meados do século IX o pequeno reino das Astúrias, ao norte, alarga seus territórios ocupando a Galicia e no século X Leão. Paralelamente o reino de Navarra conquistava as regiões ao norte do rio Ebro. O grande avanço cristão do século XI culminou com a tomada de Toledo em 1085, mas o estabelecimento dos impérios Almorávida e Almoada brecaram temporariamente a Reconquista. A aliança entre vários reis ibéricos cristãos permitiu a grande vitória de Las Navas de Tolosa (1212) e o reinicio de uma acentuada penetração cristã para o sul da península. Desta forma, em fins do século XIII apenas o reino de Granada permanecia muçulmano, e assim ficaria até ser conquistado em 1492 (os problemas internos dos cristãos praticamente interromperam a Reconquista no século XIV). Além da Península Ibérica, noutra região europeia manifestava-se a expansão cristã característica dos séculos XI-XIII: a Europa Oriental eslava. Também aí as motivações eram basicamente as mesmas, mas talvez com um caráter agrário-comercial mais acentuado. Ou seja, a penetração germânica por aquela região teve como ideia-força a obtenção de áreas colonizáveis e cultiváveis que absorvessem seu excedente populacional, e que também servissem de fornecedoras e consumidoras de várias mercadorias. É significativo que esse movimento germânico seja conhecido por Drang nach Osten (marcha para o leste), o que denota bem seu caráter colonial. Em 1147, quando São Bernardo pregava a Segunda Cruzada, os primeiros alemães cruzaram o rio Elba, penetrando em território pagão. Como a ocupação daquelas áreas naturalmente representaria um alargamento da influência da Igreja, São Bernardo apoiou-a, identificando-a com o movimento para o Oriente que então defendia. 48
O papa, por sua vez, sempre em conflito com o imperador alemão por problemas políticos na Itália, via com bons olhos aquele empreendimento que poderia tirar muitos germânicos da área de influência do imperador. Por fim, o Ocidente conheceu ainda Cruzadas contra cristãos, hereges ou mesmo católicos que por alguma razão opunham-se à política papal. Não nos interessa aqui enumerar todos esses movimentos, bastando lembrar o caso mais importante, da Cruzada Albigense (1209-1226). Ela foi dirigida contra os heréticos da seita albigense (esse nome derivava de seu principal centro, a cidade de Albi, no sul da França), numa clara união de interesses da Igreja, da monarquia francesa e da nobreza feudal do norte francês. A Igreja, porque não poderia aceitar a existência de um grupo que contestava seu poder, sua riqueza e até mesmo sua condição de instituição cristã. A monarquia francesa, porque no processo de centralização política que promovia estava interessada em estender seu poder à região sul do país. A nobreza do norte, porque diante do fortalecimento real ia perdendo seus feudos e seus poderes, que pretendia recuperar no sul. Assim, quando o papa Inocêncio III prometeu as propriedades albigenses para aqueles que se tornassem cruzados contra eles, naturalmente despertou o entusiasmo de muita gente. Os heréticos foram esmagados na batalha de Muret, em 1218, e os sobreviventes mortos por outras expedições ou perseguidos pela Inquisição (criada em 1229 originalmente para extirpar aquela heresia).
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O OCIDENTE APÓS AS CRUZADAS Chegados a esse ponto, sabemos, portanto, o que foram as Cruzadas, que razões levaram milhares e milhares de indivíduos de diferentes lugares a participarem delas por séculos. Conhecemos também alguma coisa sobre as Cruzadas mais importantes, e seus personagens de maior destaque. Porém, o nosso quadro sobre as Cruzadas ainda está incompleto, pois, como todo evento histórico de alcance, elas foram importantes não tanto por si próprias, mas por aquilo que ocasionaram. Em outras palavras, precisamos ainda examinar alguma coisa sobre as consequências das cruzadas, as transformações que elas provocaram ou acentuaram. No entanto, é preciso antes disso lembrar que num certo sentido as Cruzadas fracassaram, ou seja, não atingiram totalmente os seus objetivos. De fato, apesar dos expressivos contingentes populacionais que se dirigiram para o Oriente Médio, a Península Ibérica e a Europa Oriental, a Cristandade continuou superpovoada para os recursos de que dispunha. A prova disso é que se verificou durante todo aquele tempo uma tendência de alta no preço dos cereais (em virtude de uma procura maior que a oferta) e de estagnação e mesmo baixa nos salários (devido à grande oferta de mão-de-obra). O comércio sem dúvida teve então um grande desenvolvimento — não por causa das Cruzadas, mas com sua contribuição — porém também conheceu problemas devidos em parte às Cruzadas. Por exemplo, os interesses italianos, -que desvirtuaram a Quarta Cruzada e levaram mesmo após ela à exploração do Império Bizantino, debilitaram-no muito, permitindo que em fins da Idade 51
Média ele fosse conquistado pelos turcos. Ora, a ocupação de Constantinopla afetou o papel de intermediária que aquela cidade realizava entre os produtos do Extremo Oriente e os mercados ocidentais. Assim, um dos setores comerciais mais importantes, o das especiarias, conheceu uma crise superada mais tarde com os Descobrimentos e o acesso direto às fontes produtoras. A intenção eclesiástica de pacificar a Europa cristã desviando a nobreza sem terras para zonas periféricas também não chegou a ter sucesso. De um lado, porque o ritmo das conquistas não acompanhava o ritmo de crescimento populacional. De outro, porque como veremos as Cruzadas aceleraram a desestruturação da sociedade feudal e assim contribuíram indiretamente para o acirramento das guerras feudais. A divisão da Cristandade em duas Igrejas — que o papado pretendia reunificar através das Cruzadas — foi ainda mais acentuada, pois, ao colocar em contato mais direto ocidentais e bizantinos, as Cruzadas tornaram mais claras as divergências entre eles. Em suma, os resultados das Cruzadas não foram absolutamente aqueles pretendidos pelos que as conceberam, as pregaram ou que participaram delas. Foi como apontar para um alvo mas acertar outro bem diferente. Por ironia, a Igreja, que as criara e defendera, e a nobreza feudal, que delas participara julgando poder resolver seus problemas, foram as grandes prejudicadas. Mas, enfim, quais foram as transformações devidas, direta ou indiretamente, às Cruzadas? Religiosamente, passou a haver maior tolerância entre cristãos e muçulmanos, produto de um maior contato e assim de um maior conhecimento recíproco. Ê verdade que de início o fanatismo de ambos os lados (mas especialmente dos cristãos) criara um clima de ódio religioso e racial. Porém, com o tempo entendeu-se que as próprias religiões não eram tão diferentes assim, e que de qualquer forma a convivência era inevitável entre dois povos habitando um 52
mesmo território. É interessante verificar como o cristão recémchegado à Síria franca — e, portanto, ainda carregado de imagens deformadas e preconceituosas sobre os islamitas — indignava-se ao ver as boas relações dos potros (latinos nascidos na Terra Santa, muitas vezes de casamentos mistos) com os muçulmanos. Por outro lado, com as Cruzadas aumentou a intolerância em relação a bizantinos e judeus. No caso dos bizantinos porque se revelou um verdadeiro complexo de inferioridade ocidental diante daquela civilização refinada, orgulhosa, que rejeitava os latinos ou os tratava de forma depreciativa, quase insolente. Quanto ao despontar do antissemitismo, ele estava mais ligados às transformações econômicas do que a outros fatores. É claro que, no clima de passionalidade dos primeiros tempos das Cruzadas, os judeus não podiam deixar de ser vistos como os “assassinos de Cristo”. Porém, a verdadeira razão é outra: se na fase de comércio atrofiado a atividade dos judeus era útil à sociedade cristã, a partir do século XI, com a economia mercantil em expansão, eles passaram a representar uma concorrência indesejada para os cristãos que cada vez em maior número dedicavam-se aos negócios mercantis e bancários. O fracasso das Cruzadas em ocupar definitivamente a Terra Santa levou ao desenvolvimento de uma forma pacífica de se tentar impor aos infiéis, a missão. Na verdade, desde os primeiros tempos do cristianismo as missões desempenharam papel importante na conversão de povos e territórios inteiros à religião de Cristo. Mas métodos mais violentos prevaleceram por muito tempo, revalorizando-se as missões no século XII. Com o aparecimento dos mendicantes (franciscanos e dominicanos) em princípios do século XIII, a ideia missionária começou a substituir em parte a ideia das Cruzadas. O próprio São Francisco esteve no Egito em 1219, conseguindo do sultão permissão para pregar nos seus domínios. Pouco depois comunidades missionárias instalaram-se na Terra Santa
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e em Chipre, trabalharam na Síria muçulmana e chegaram mesmo a ir até a Ásia pregar entre os mongóis. Porém, a mais importante consequência das Cruzadas no aspecto religioso foi ter permitido uma crescente oposição ao clericalismo. A íntima relação da Igreja com a sociedade feudal naturalmente fazia está sentir os efeitos da crise daquela, como se percebe pelo aumento do número de heresias nos séculos XII e XIII. Além disso, a deturpação da ideia de Cruzada causou grande desprestígio à Igreja, percebendo-se que — e a própria palavra “cruzada” adquire este significado pejorativo desde fins da Idade Média — ela se tornava um empreendimento contra todos que pensassem diferentemente da Igreja. Mais ainda, a religiosidade da. época, sempre disposta a ver sinais divinos em tudo, a interpretar as intenções de Deus a partir de acontecimentos de qualquer tipo, via no fracasso das Cruzadas uma crítica divina à Igreja. Todos os problemas econômicos, sociais e políticos que aconteciam devido à crise feudal eram interpretados da mesma forma. O perigo mongol, que se aproxima da Europa, também. Em suma, nascia um sentimento de angústia, de desamparo divino, que não se podia deixar de atribuir à Igreja. Se a função desta era apaziguar as almas, interceder junto a Deus a favor dos homens, e nada disto acontecia, começava-se a questionar a própria razão de ser da Igreja. Estavam lançadas as sementes que cem ou duzentos anos depois, em 1517, dariam origem ao Protestantismo. Socialmente, três foram os principais resultados das Cruzadas, enfraquecimento da aristocracia, o enfraquecimento da servidão e o fortalecimento da burguesia. O crescente anticlericalismo não podia deixar de se refletir na aristocracia laica, estruturalmente ligada ao clero. Ê verdade que de início parecia ocorrer o fortalecimento e enriquecimento das elites: Guibert de Nogent, cronista da Primeira Cruzada, afirma que, na ânsia de partir, muita gènte vendia bastante barato os bens que não serviríam para a expedição, comprando caro 54
as mercadorias que seriam úteis. Os mosteiros foram especialmente beneficiados, pois muitos cruzados doavam-lhes suas propriedades ou ao menos faziam deles seus procuradores durante sua ausência. Contudo, logo ficou claro o golpe que as Cruzadas eram para a maioria dos nobres. Muitos deles arruinaram-se na esperança de obter no Oriente ou na Península Ibérica um patrimônio maior. Muitos outros morreram no caminho ou em combate, daí o desaparecimento de famílias e famílias nobres. Para dar um exemplo, numa região do norte francês — grande fornecedor de cruzados — havia uma centena de linhagens nobres em 1150, 80 em 1200, apenas 40 em 1250 e somente 12 em 1300. Os que conseguiram feudos no Oriente tiveram na verdade um sucesso pouco duradouro, que não beneficiou senão algumas gerações. Entretanto, não se deve exagerar esses efeitos negativos, pois em algumas regiões ocorreu o inverso. No Macônnaise, por exemplo, como mostrou Georges Duby, a Cruzada “empobreceu algumas linhagens, mas teve sobretudo efeitos favoráveis; em primeiro lugar, certos cruzados retornaram à região mais ricos do que eram quando haviam partido; foram também muitos os que não regressaram e os seus parentes, menos numerosos quando da partilha sucessória, tiraram proveito disso. De fato, a peregrinação à Terra Santa, drenando o excedente da cavalaria, assegurou a prosperidade de muitas linhagens, evitando que o seu patrimônio se dividisse excessivamente”. As Cruzadas contribuíram para o retrocesso da servidão de várias maneiras. Em alguns casos o aristocrata, precisando de dinheiro para partir em Cruzada, vendia a liberdade para os servos; em outros, voltando arruinado, obtinha recursos da mesma forma; em outros, ainda, a ausência do senhor permitia a fuga do servo, que ia tentar uma nova vida, na cidade, como artesão ou comerciante; muitas vezes a fuga dava-se provocada pelo entusiasmo e vontade de partir em peregrinação (como na Cruzada Popular). Algumas vezes, 55
sobretudo na França, a libertação dos servos não ocorria por alforrias individuais, mas através de movimentos coletivos: pressionados pelos camponeses, muitos senhores foram obrigados a conceder cartas de franquia, documentos que libertavam comunidades rurais inteiras. O desligamento de muitos camponeses dos laços servis, o desenvolvimento comercial, a intensificação da vida urbana e o progresso da produção artesanal naturalmente fortaleciam a burguesia. E isso representava novo golpe sobre a sociedade feudoclerical. Interessada na diminuição do número de tributos regionais, a burguesia combatia a autonomia dos feudos e a descentralização política. Interessada no fim das guerras feudais que atrapalhavam seus negócios, a burguesia desejava uma paz efetiva, não a Paz de Deus, mas a Paz do Rei, a centralização política. Interessada numa cultura racionalista e individualista, de acordo com sua mentalidade, a burguesia combatia os valores eclesiásticos e as intervenções da Igreja na vida política e econômica. Politicamente, o resultado que mais chama a atenção é a grande ampliação da Cristandade Latina. No Oriente Médio aquela estreita faixa de terra onde se organizaram Estados francos ficou menos de dois séculos (1098-1291) em mãos cristãs. Contudo, partes da Grécia (restos do Império Latino de Constantinopla) ficaram sob domínio ocidental até 1460, a importante ilha de Rodes até 1522, Chipre até 1571, Creta até 1669. Na Europa Oriental uma área considerável em extensão e bastante rica foi incorporada definitivamente à Cristandade Latina, apesar da antiga influência bizantina na região. Mas o grande êxito, indubitavelmente, foi a reincorporação de mais de 400000 km de território ibérico, excluindo para sempre os muçulmanos da Europa Ocidental. Mais ainda, a Escandinávia, cristianizada em princípios do século XI, integrou-se realmente na Cristandade através das Cruzadas, superando assim um certo isolamento geográfico a que parecia destinada. 56
No entanto, o resultado político mais importante talvez tenha sido o grande impulso no processo de centralização política. A lenta passagem das monarquias feudais para monarquias nacionais tinha começado antes das Cruzadas e só se completaria bem depois, mas sem dúvida foi beneficiada por elas. O enfraquecimento ou desaparecimento de muitas famílias nobres, o afrouxamento da servidão, o apoio da burguesia, foram fatores que trabalharam naquele sentido. No caso ibérico, com a proximidade do inimigo e as Cruzadas no próprio território, os monarcas puderam desde cedo contar com o apoio popular, a submissão da nobreza e a aceitação da Igreja. Economicamente, as Cruzadas não tiveram a importância que muitas vezes lhes foi atribuída. Segundo a conhecida tese do historiador belga Henri Pirenne, as conquistas muçulmanas do século VIII fecharam o Mediterrâneo ao comércio, de forma que “a Europa Ocidental regrediu ao estado de região exclusivamente agrícola”. O desaparecimento das atividades comerciais trouxe consequentemente um esvaziamento das cidades, com muitas delas deixando de existir e outras vendo sua população bastante reduzida. A interrupção do tráfico Ocidente- Oriente também afetou o sistema monetário, com o bimetalismo anterior (ouro e prata) sendo substituído por um monometalismo de prata, correspondente à regressão econômica da época. Assim, prossegue o pensamento de Pirenne, a reconquista cristã do Mediterrâneo, começada antes das Cruzadas mas impulsionada e completada por elas, reabriu aquele mar ao comércio. Isto naturalmente refletiu-se na vida urbana, que foi também reativada: as fortalezas construídas no período anterior, chamadas burgus, passaram a ser procuradas pelos mercadores como local de abrigo e proteção. Com a intensificação do comércio, o crescente número de mercadores não conseguia mais se instalar nas fortalezas, daí criarem junto às muralhas uma aglomeração, uma 57
espécie de entreposto comercial, o portus. Por questão de segurança seus habitantes rodeavam-no por uma muralha, que assim, obviamente, também cercava o antigo núcleo senhorial. Portanto, o subúrbio mercantil englobava o burgo, dando assim origem a uma cidade. Estas estimulantes ideias, aceitas integralmente por muito tempo pela historiografia, atualmente recebem críticas e reparos. Mas não nos interessa aqui acompanhar essas discussões, excessivamente acadêmicas para nossos objetivos. Basta lembrar que atualmente prefere-se enfatizar a continuidade das atividades comerciais, que jamais foram interrompidas. Portanto, as mudanças ocorridas a partir do século XI foram de caráter quantitativo. Não houve um “renascimento comercial”, mas uma intensificação de tal proporção que repercutiu em todos os setores da sociedade, alterando-a profundamente: desenvolvimento das cidades, surgimento da burguesia, despertar do individualismo e do racionalismo, aparecimento das universidades, novas concepções religiosas e artísticas, fortalecimento do poder monárquico. Portanto, as Cruzadas não foram as responsáveis pelas grandes transformações econômicas, mas produto delas. Contudo, elas não deixaram de contribuir significativamente para o avanço daquelas transformações. Exemplifiquemos novamente com Veneza e Gênova, pois estas cidades eram os principais centros econômicos da época e tiveram importante participação nas Cruzadas. O intenso comércio que ambas praticavam era anterior ao século XI, mas foi a abertura dos mercados orientais — para o que as Cruzadas desempenharam papel decisivo — que as tornou potências econômicas. Mais ainda, os impérios coloniais orientais de Veneza e Gênova interessavam à economia de todo 0 Ocidente por escoarem seu excedente produtivo e fornecerem importantes produtos. No primeiro caso estavam trigo, vinho e tecidos. No segundo, más- tique, anil e alume (resinas básicas para a indústria têxtil), algodão e açúcar 58
(pouco conhecidos no Ocidente cristão), mel (o principal adoçante, devido ao alto preço do açúcar), cera (de várias utilidades), peixes salgados (importantes na alimentação). Mesmo regiões que não participaram diretamente do comércio resultante das Cruzadas foram beneficiadas por ele. Este foi o caso da Champagne, onde as célebres feiras reuniam comerciantes de todo o Ocidente e produtos do Oriente Médio e Extremo (leva dos pelos italianos) e da Europa Oriental (levados pelos hanseáticos). Da mesma forma, o desenvolvimento dos bancos e do crédito pode ser considerado resultado indireto das Cruzadas. É verdade que o revigoramento do comércio fi da economia monetária por si só criava condições para o aparecimento de bancos. Contudo, a extensão de seus negócios foi possibilitada pelo comércio a longa distância (transferência de fundos, câmbio de moedas de diversas origens) e pelas necessidades dos cruzados (depósitos durante sua ausência, empréstimos). Os Templários — monges-guerreiros organizados para proteção dos peregrinos a Jerusalém — tornaramse os grandes banqueiros da época graças aos resgastes conseguidos nas lutas contra os muçulmanos. Com esse capital eles financiavam a ida de muitos cruzados ao Oriente, além do que guardavam a riqueza de outros em troca de uma pequena taxa. Culturalmente, supervalorizou-se a influência dos cruzados. Eles não foram, como muitas vezes se disse, os responsáveis diretos pela transmissão de elementos culturais muçulmanos para o Ocidente cristão. Tanto os cruzados do Oriente Médio quanto os da Península Ibérica estavam muito absorvidos por outros interesses para darem à cultura muçulmana sua devida atenção. Ademais, a maior parte deles não tinha nível cultural suficiente para poder compreender, assimilar e retransmitir componentes daquela cultura. No entanto, é preciso que fique bem claro, as Cruzadas tiveram grande participação naquele fenômeno de transmissão cultural. Este ocorreu basicamente graças à reincorporação na Cristandade de 59
territórios muito tempo muçulmanos (Ibéria, Sicilia) e portanto impregnados de sua cultura. Ora, aquela reincorporação deu-se graças às Cruzadas, assim contribuidoras indiretas pela transferência cultural muçulmana ao Ocidente. Por outro lado, as condições favoráveis à aceitação da influência islamita independiam das Cruzadas. Também no sentido inverso — transferência de elementos culturais ocidentais para regiões muçulmanas — a contribuição dos cruzados foi limitada. As razões são claras: tratava-se de indivíduos de interesses políticos e econômicos e não culturais; em função disso, de pessoas despreparadas; a cultura que se poderia transmitir (a ocidental) era nitidamente inferior à das regiões ocupadas (a muçulmana); no Oriente os casamentos mistos com muçulmanos envolviam apenas francos de condição inferior (a elite casava-se com orientais cristãos, gregos ou armênios). Assim, a presença cultural latina na Síria ficou registrada somente através de igrejas e fortalezas. Institucionalmente, as influências recíprocas foram pequenas, mesmo porque latinos e muçulmanos possuíam instituições condizentes com suas respectivas necessidades, e que não poderiam ser alteradas artificialmente. No máximo ocorria uma adaptação às condições locais. Por exemplo, o feudalismo de cada um dos Estados francos correspondia às características do lugar de origem de seus componentes. Mas a importância da economia monetária no Oriente permitiu que lá fosse mais utilizado o chamado feudo de bolsa: o vassalo recebia de seu senhor feudal não uma extensão de terra mas uma quantia anual em dinheiro. Por fim, no que denominaríamos hoje relações internacionais, as Cruzadas trouxeram uma consequência de grandes repercussões: o afastamento Ocidente-Oriente. Apesar da maior tolerância entre cristãos e muçulmanos, as profundas divergências permaneceram, sendo alimentadas e às vezes aumentadas por determinados 60
acontecimentos. Após a tomada de Jerusalém, em 1099, os cristãos realizaram um massacre que as fontes árabes quantificam em 100000 mortos entre guerreiros, mulheres e crianças, cifra obviamente exagerada mas de claro significado simbólico. Durante a Terceira Cruzada, como as negociações caminhassem lentamente, Ricardo Coração de Leão ordenou a execução de dois a três mil prisioneiros muçulmanos, cujas entranhas foram abertas e reviradas em busca de ouro que eles teriam engolido para escondê-lo. Em relação a Bizâncio os desentendimentos anteriores tomaram-se irreversíveis após a Quarta Cruzada e os excessos cometidos pelos latinos. O próprio papa Inocêncio III, preocupado com as consequências daquele episódio, admoestava o legado pontifício: “como poderá na verdade a Igreja Grega ser trazida à união eclesiástica e à devoção pela Sé Apostólica, quando tem sido assediada por tantas aflições e perseguições, de tal maneira que não vê nos latinos senão um exemplo de perdição e de obras tenebrosas e que agora, com razão, os detesta mais que a cães?”. A sua preocupação iria se revelar fundamentada. Em 1453, com os turcos às portas de Constantinopla, pensou-se em pedir ajuda aos ocidentais, mas um general bizantino resumiu o pensamento popular: “prefiro o turbante dos muçulmanos à mitra dos latinos”. A Rússia, que sempre se considerou herdeira de Bizâncio — de quem recebera o alfabeto, a religião, elementos artísticos e literários, instituições políticas — manteria por séculos essa desconfiança em relação ao Ocidente. Em suma, as Cruzadas afastaram Ocidente e Oriente, criaram barreiras que, nos dois lados, enraizaram-se no inconsciente coletivo, mantendo-se para além de mudanças nos sistemas políticos e econômicos, e que talvez expliquem mesmo algumas questões atuais...
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CONCLUSÃO Se perguntássemos a uma pessoa não versada em História que imagens a Idade Média lhe desperta, muito provavelmente as Cruzadas fariam parte de sua resposta (e talvez fossem toda a sua resposta). E num certo sentido ela teria razão em falar assim, pois as Cruzadas apresentam-nos os principais protagonistas daquele período histórico, sendo como que sua síntese: papas, bispos e monges, reis, cavaleiros e camponeses, banqueiros e comerciantes, bizantinos e muçulmanos. O mesmo acontece com as atitudes e as emoções: reverência, fidelidade, dedicação, desprendimento, credulidade, cupidez, traição, incompreensão. Evitando a posição hipercrítica do século XVIII em relação às Cruzadas, “expressão do barbarismo e fanatismo medievais”, ou a exaltativa do século XIX, que via nelas a “vitória da civilização ocidental cristã sobre o Oriente bárbaro”, devemos reconhecer nas Cruzadas um fenômeno histórico de grande alcance. Elas não devem ser reduzidas tão-somente a uma expressão da religiosidade medieval ou a uma primeira experiência do imperialismo ocidental. Fenômeno complexo, elas só ganham sentido, como procuramos mostrar, dentro dos quadros do feudalismo: neles surgiram como expressão das tensões sociais decorrentes das lentas transformações 62
estruturais e como válvulas de escape para elas; sobre eles exerceram um papel abalador, acelerando aquelas transformações estruturais ao fracassarem na sua função de válvulas de escape. Episódio histórico muito rico, elas já foram estudadas em relação com a religião, a economia, a política, a arte, o direito, a geografia, a guerra, a navegação. Seria interessante, contudo, fazerse uma história das Cruzadas depois das Cruzadas, ou seja, verificarse como, depois de ultrapassadas enquanto realidade histórica, elas permaneceram como um dado sempre presente na psicologia coletiva. Apesar de todo o peso dos fatores econômicos e políticos, em pleno fim do século XV Colombo imaginava estar fazendo, acima de tudo, uma Cruzada. Ainda hoje, quando se quer dar força a um empreendimento, rotulasse-o “cruzada” — seja ela contra o alcoolismo, a carestia, o fascismo ou o comunismo — o que nos dá bem a medida de sua penetração no inconsciente coletivo e, num certo sentido, faz de cada um de nós uma espécie de cruzado.
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INDICAÇÕES PARA LEITURA A literatura sobre Cruzadas é vastíssima, mas só podemos indicar aqui alguns títulos (dos quais muito poucos em língua portuguesa, e sempre em tradução). Contudo, os interessados em fazer uma pesquisa mais profunda contam com dois excelentes repertórios bibliográficos: MAYER, H. E. Bibliographie zur Geschichte Kreuzzüge, Hanover, Hahn, 1960, onde estão citadas mais de 5 000 obras e artigos sobre as Cruzadas, e ATIYA, A. S. The Crusade, historiography and bibliography, Londres, Indiana University Press, 1962, mais modesto e de utilização mais fácil. Fundamental, é claro, para qualquer estudo histórico é o contato com os documentos, com os textos escritos pelos contemporâneos dos fatos analisados. A documentação sobre Cruzadas é imensa, mas de forma geral acessível apenas aos especialistas (por exemplo o Recueil des historiens des croisades, 16volumes de textos ocidentais e orientais reunidos no século XIX e reeditados recentemente: Farnborough, Gregg Press, 1969). No entanto, existem pequenas antologias, muito úteis e de leitura agradável: RICHARD, J. L’esprit de la croisade, Paris, Cerf, 1969 (com uma introdução histórica muito boa) e PER- NOUD, R. Las cruzadas, Buenos Aires, Mirasol, 1964. Ë também interessante ter-se a visão de outros protagonistas das Cruzadas, como os muçulmanos: GABRIELI, F. Storici arabi delle crociate, Turim, Einaudi, 1973. Para aqueles que têm pouco contato com a História Medieval, é interessante em primeiro lugar familiarizar-se com o pano de fundo histórico no qual devem ser vistas as Cruzadas: LOPES, R. S. O nascimento da Europa, Lisboa, Cosmos, 1965, e LE GOFF, J. La civilisation de l’Occident médiéval, Paris, Arthaud, 1967, são obras gerais muito bem feitas, com uma concepção moderna de História, valorizando não os fatos mas as estruturas sociais, políticas, 64
econômicas, religiosas e culturais. Sobre o feudalismo a melhor obra continua a ser o clássico (só recentemente traduzido para o português) dê BLOCH, M. A sociedade feudal, Lisboa, Edições 70, 1979. Como as Cruzadas estreitaram os contatos do Ocidente cristão com os mundos bizantino, muçulmano e eslavo, é importante conhecer-se algo sobre eles: BREHIER, L. Vida y muerte de Bizancio, 3 v., México, UTEHA, 1956, ou o mais acessível RUNCIMAN, S. A civilização bizantina, Rio, Zahar, 1977; MIQUEL, A. O Islame e a sua civilização, Lisboa, Cosmos, 1971, e WATT, M. Historia de la Espana islamica, Madri, Alianza, 1970; PORTAL, R. Os eslavos, povos e nações, Lisboa, Cosmos, 1968. Obras introdutórias sobre as Cruzadas existem muitas; as melhores são MORRISSON, C. Les croisades, Paris, PUF, 1969 (2º ed. 1973) e RILEY- SMITH, J. What were the crusades?, Londres, Macmillan, 1977, de concepção semelhante à nossa, porém mais elaboradas pois, apesar de serem ambas também dirigidas a um público não especialista, trata-se nesse caso do público europeu, cujo leitor médio é de formação histórica superior ao nosso. O livro de GROUSSET, R. As Cruzadas, São Paulo, Difel, 1965, apesar de escrito por um especialista, é mais restrito, examinando basicamente a história política dos Estados Cruzados do Oriente. Ainda num só volume, porém obras de maior fôlego, são ROUSSET, P. História das Cruzadas, Rio, Zahar, 1981, livro sério, de um grande conhecedor, muito superior a OLDENBOURG, Z. As Cruzadas, Rio, Civilização Brasileira, 1968, nem sempre precisa e imparcial. Dentro da sua perspectiva, com os limites geográficos e cronológicos que se impôs, é muito boa a obra de PERROY, E. Les croisades et l’Orient latin (1095-1204),Paris, CDU, s/d. Sobre o conceito e a ideia de Cruzada temos três importantes clássicos: ERDMANN, C. The origin of the idea of Crusade, Princeton, Princeton University Press, 1977, e VILLEY, M. La Croisade. Essai sur 65
la formation d’une théorie juridique, Paris, Vrin, 1942, fazem sua análise a partir dos textos dos canonistas, enquanto ALPHANDERY, P. e DUPRONT, A. La Chrétienté et l’idée de croisade, 2 v., Paris, Albin Michel, 1954, procuram estudar aquele conceito mais a partir de um ponto de vista não oficial, eclesiástico, mas “popular”. Finalmente, as melhores obras de conjunto da historiografia das Cruzadas são GROUSSET, R. Histoire des Croisades, 3 v., Paris, Plon, 1934-1936, e RUNCIMAN, S. A history of the Crusades, 3 v., Londres, Cambridge University Press, 1951-1954 (existe tradução espanhola: Historia de las Cruzadas, Madri, Alianza, 1973). A primeira delas dá grande destaque à “colonização” franca no Oriente Médio, seguindo de perto os detalhes políticos de sua evolução. A segunda é obra de um grande erudito, que manuseando tanto fontes ocidentais quanto orientais elaborou um livro minucioso, preciso, fundamentado, mas excessivamente narrativo.
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Sobre o Autor Hilário Franco Jr., professor, doutorando em História Medieval pela Universidade de São Paulo, é também coautor de História Econômica Geral e do Brasil (Atlas, 1980), Especialista em História Medieval e História Econômica, é membro da The Medieval Academy of America e da The Economic History Society.
Caro leitor: As opiniões expressas neste livro são as do autor, podem não ser as suas. Caso você ache que vale a pena escrever um outro livro sobre o mesmo tema, nós estamos dispostos a estudar sua publicação como mesmo título como "segunda visão"
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