Cartografias Criativas da razão cartográfica às mídias móveis
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Cartografias Criativas da razão cartográfica às mídias móveis
Editora Appris Ltda. 1ª Edição - Copyright© 2019 dos autores Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda. Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.
Catalogação na Fonte Elaborado por: Josefina A. S. Guedes Bibliotecária CRB 9/870
F814 2019
Franco, Juliana Rocha Cartografias Criativas: da razão cartográfica às mídias móveis / Juliana Rocha Franco. - 1. ed. - Curitiba: Appris, 2019. 221 p. ; 21 cm (Ciências da Comunicação)
Inclui bibliografias ISBN 978-85-473-1135-3
1. Comunicação. 2. Semiótica. 3. Mídia digital. I. Título. II. Série.
CDD 23. ed. – 302.2
Editora e Livraria Appris Ltda. Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês Curitiba/PR – CEP: 80810-002 Tel: (41) 3156 - 4731 http://www.editoraappris.com.br/
Printed in Brazil Impresso no Brasil
Juliana Rocha Franco
Cartografias Criativas da razão cartográfica às mídias móveis
Curitiba - PR 2019
FICHA TÉCNICA EDITORIAL
COMITÊ EDITORIAL
Augusto V. de A. Coelho Marli Caetano Sara C. de Andrade Coelho Andréa Barbosa Gouveia - UFPR Edmeire C. Pereira - UFPR Iraneide da Silva - UFC Jacques de Lima Ferreira - UP Marilda Aparecida Behrens - PUCPR
ASSESSORIA EDITORIAL Camila Dias Manoel REVISÃO Smirna Cavalheiro PRODUÇÃO EDITORIAL Giuliano Ferraz ASSISTÊNCIA DE EDIÇÃO Renata Policarpo DIAGRAMAÇÃO Giuliano Ferraz CAPA Eneo Lage COMUNICAÇÃO Ana Carolina Silveira da Silva Carlos Eduardo Pereira Igor do Nascimento Souza LIVRARIAS E EVENTOS Milene Salles | Estevão Misael GERÊNCIA COMERCIAL Eliane de Andrade GERÊNCIA DE FINANÇAS Selma Maria Fernandes do Valle
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO DIREÇÃO CIENTÍFICA Francisco de Assis (Fiam-Faam-SP-Brasil) CONSULTORES Ana Carolina Rocha Pessôa Temer (UFG-GO-Brasil)
Marcos Paulo da Silva (UFMS-MS-Brasil)
Antonio Hohlfeldt (PUCRS-RS-Brasil)
Maria Aparecida Baccega (ESPM-SP-Brasil)
Carlos Alberto Messeder Pereira (UFRJ-RJ-Brasil)
Maria Ataíde Malcher (UFPA-PA-Brasil)
Cicilia M. Krohling Peruzzo (UAM-SP-Brasil)
Maria Berenice Machado (UFRGS-RS-Brasil)
Denis Ruellan (CELSA-Paris-Sorbonne-França)
Maria das Graças Targino (UFPI-PI-Brasil)
Isabel Ferin Cunha (UC-Portugal)
Maria Elisabete Antonioli (ESPM-SP-Brasil)
Janine Marques Passini Lucht (ESPM-RS-Brasil)
Marialva Carlos Barbosa (UFRJ-RJ-Brasil)
Joana Belarmino de Sousa (UFPB-PB-Brasil)
Osvando J. de Morais (Unesp-SP-Brasil)
Jorge A. González (CEIICH-Unam-México)
Pierre Leroux (Iscea-UCO-França)
Jorge Kanehide Ijuim (Ufsc-SC-Brasil)
Rosa Maria Dalla Costa (UFPR-PR-Brasil)
José Marques de Melo (In memorian)
Sandra Reimão (USP-SP-Brasil)
Juçara Brittes (Ufop-MG-Brasil)
Sérgio Mattos (UFRB-BA-Brasil)
Juliano Domingues da Silva (Unicap-PE-Brasil)
Thomas Tufte (RUC-Dinamarca)
Márcio Fernandes (Unicentro-PR-Brasil)
Zélia Leal Adghirni (UnB-DF-Brasil)
À minha mãe, Leila, por me ensinar o amor ao conhecimento e pela lição de força e caráter expressa em sua própria vida, e ao meu pai, Luiz Henrique, pelo apoio incondicional e por olhar as estrelas comigo.
AGRADECIMENTOS
Gostaria de expressar aqui meus mais sinceros agradecimentos a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização deste trabalho. Especialmente, gostaria de agradecer à professora Lucia Santaella, pela oportunidade e pela confiança em assumir a orientação de um trabalho já em andamento, pela disponibilidade e prontidão com que sempre tratou meus assuntos, pelo aprendizado intensivo que me proporcionou, por aprimorar minhas habilidades em tão pouco tempo e pelo constante estímulo. Ao professor Jason Farman, da University of Maryland, por ter me recebido no American Studies and Digital Cultures & Creativity Department e disponibilizado toda a infraestrutura para o desenvolvimento de minhas atividades durante minha estadia lá. Ao professor Marcus Bastos, pela problematização e indicação de bibliografia, que enriqueceu grandemente a pesquisa, e ao professor Winfried Nöth, pela objetividade e precisão no processo de qualificação, pela leitura cuidadosa de alguns capítulos e pelas sugestões sempre construtivas. À Lena, professora e amiga, por me mostrar os “espaços” e pelas oportunidades de pesquisa, que desencadearam férteis reflexões, algumas das quais culminaram no presente trabalho. À Tia Léia, por agregar à palavra “tia” mais dois sentidos: mãe e amiga. Ao Rick, meu melhor professor de Inglês, sempre tão paciente, e à Izzy, por me fazerem sentir em casa.
À Tia Adri e Suzanne, pelo acolhimento durante minha estadia em Maryland e por me proporcionarem mais um lar longe do Brasil e por, eventualmente, promoverem-me à segunda da fila. Ao CNPq, pela bolsa concedida por meio do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. E por fim, um agradecimento especial à Alexandra Elbakyan e Aaron Schwartz (in memoriam), pela coragem de tornar possível o acesso ao conhecimento científico para todos os povos do mundo.
PREFÁCIO
Cartografias expandidas As tecnologias digitais, na renovação constante que promovem de seus programas, plataformas, buscadores e aplicativos para variadas formas de interação em rede, estão transformando a paisagem do mundo em todas as suas dimensões, na economia, na política, na ciência, na cultura, na sociabilidade e na educação com repercussões profundas nas formas de vida, nos modos de aprender, nas subjetividades, nos corpos e no psiquismo. Não é nenhuma novidade dizer que o computador hoje não se limita mais ao desk ou lap top. Os dispositivos móveis, celulares, tablets, dotados de recursos de geolocalização agregam conteúdo digital a uma localidade, servindo para funções de monitoramento, mapeamento, localização, anotação e jogos. Dessa forma, pessoas, lugares e objetos passam a dialogar com dispositivos informacionais, enviando, coletando e processando dados a partir de uma relação estreita entre informação digital, localização e artefatos digitais móveis. Isso é chamado de mídias locativas, ou seja, mídias georreferenciadas. A Mciclopedia digital das novas mídias descreve as mídias locativas como tecnologias baseadas em lugares, ou seja, tecnologias sem fio, tecnologias de vigilância, de rastreamento e de posicionamento que permitem que a informação seja ligada a espaços geográficos. O Sistema de Posicionamento Global (GPS-Global Positioning System) é a tecnologia mais familiar que faz uso de computação sensível a locais. Duas dúzias de satélites que orbitam a 12 mil milhas da superfície da Terra ajudam os motoristas e os andarilhos a encontrarem seus caminhos virtualmente em qualquer parte
do globo. Além dos GPSs, os outros dispositivos que compõem a malha tecnológica das mídias locativas são: telefones celulares, tablets em redes Wi Fi, bluetooths, etiquetas de identificação por rádio frequência (RFID) etc. São dispositivos que permitem que as pessoas localizem-se a si mesmas e a outros no espaço geográfico e que conectem informação a posições geográficas. Cada vez mais, essas tecnologias da mobilidade, sensíveis aos locais, podem acessar a Internet, permitindo que a informação seja armazenada, recuperada e trocada a partir de bases de dados remotos. Assim, na medida em que a comunicação entre as pessoas e a conexão com a internet começaram a se desprender dos filamentos de suas âncoras geográficas – modems, cabos e desktops – espaços públicos, ruas, parques e todo o ambiente urbano foram adquirindo um novo desenho que resulta da intromissão de vias virtuais de comunicação e acesso à informação enquanto a vida vai acontecendo. Essa conexão contínua é constituída por uma rede móvel de pessoas e de tecnologias nômades que operam em espaços físicos não contíguos. Para fazer parte desse espaço, um nó (ou seja, uma pessoa) não precisa compartilhar o mesmo espaço geográfico com outros nós da rede móvel, pois se trata de um espaço que está sendo chamada por alguns autores de espaço híbrido cujas complexidades alcançam hoje uma malha bastante intrincada das interfaces móveis em espaços públicos. São inumeráveis e crescentes as práticas de mapeamento, geolocalização e anotações que essas tecnologias vêm introduzindo, ampliando o sentido de deslocamento, tanto dos aparelhos que o possibilitam, quanto das informações que incessantemente circulam nos espaços intersticiais, entre o reino físico e o virtual. As mídias locativas estão sendo cada vez mais utilizadas, por exemplo, na indústria e no comércio na forma de serviços baseados em locais. Nas aplicações de primeira geração, elas ainda não passa-
vam de buscas tais como procurar um restaurante, um prédio etc. Os sistemas de navegação em carros já bastante conhecidos ainda pertencem a essa primeira geração. Contudo, já existem aplicações mais avançadas, como nos recursos capazes de detectar onde estamos, que objetos e lugares estão próximos, dispositivos capazes de conversar com outros dispositivos por meio de protocolos novos, de modo que o local se torne um novo tipo de dado para ser aplicado à Internet e à WWW. Além disso, da reapropriação, por parte do público em geral, das funções inerentes aos dispositivos móveis, tais como Bluetooth, SMS, Whatsapp e postagens em redes sociais cujas funções são baratas e até mesmo gratuitas, emergem novas formas de auto-organização espontâneas que, sem eles, não seriam possíveis. As consequências decorrentes são muitas e nem sempre benignas, como aquelas que são percebidas e estudadas nas múltiplas formas de vigilância e preocupações com a privacidade. Diante disso, são os projetos de mídias locativas realizados por artistas aqueles que buscam explorar as vias alternativas colocando em ação um coletivismo construtivo, ao construir plataformas abertas que oferecem a chance de reverter, multiplicar ou refratar o olhar. Surge daí o potencial para mudar o modo como percebemos e interagimos com o espaço, o tempo e o outro, na medida em que atividades descentralizadas desafiam as estruturas hierárquicas da sociedade. Assim, da combinação de dispositivos móveis com tecnologias de posicionamento abre-se uma pletora de diferentes modos pelos quais o espaço geográfico pode ser encontrado e desenhado, emoldurando uma vasta variedade de práticas espaciais. Por isso, a pluralidade se constitui na marca mais característica dos projetos em mídias locativas. Nesse contexto, este livro de Juliana Rocha Franco é precioso, não apenas porque está entre os poucos estudos que se
dedicaram ao tema em nosso meio, quanto também porque dirige seu foco de atenção prioritariamente para as faculdades criadoras das tecnologias georreferenciadas, ao explorar as diversificadas espacialidades contemporâneas que colocam sua mira nas subversões dos vocabulários visuais cartográficos, evidenciando as ambiguidades de questões atuais como mobilidade, localização, espaço público, vigilância. Para isso, a autora se volta mais especificamente para os projetos em que emergem questões ligadas à noção de espaço e localização, aqueles que conectam arte, geografias informais e mapas à experiência do espaço. Desse modo, a arte com enfoque crítico, em construções colaborativas de cunho político, produz rede de discursos, possibilitando usos e apropriações do espaço público que repensam e desenham novas representações “dos espaços, regiões e identidades no mundo contemporâneo, funcionando como cartografias subversivas”. Longe de cair nas tão praticadas tendências, em um extremo, ao mero “presentismo”, ou seja, uma visão em close up do presente, sem a busca dos seus fios condutores no passado, ou, no outro extremo, à crença simplista de que “tudo sempre foi assim”, Juliana Rocha Franco realiza uma breve genealogia dos mapas e mapeamentos desde o início do século XX, com atenção às mudanças nos sentidos das artes, nas suas relações com a tecnologia e suas novas formas de perceber o espaço devido à proeminência que mapeamentos e cartografias passaram a ocupar nos processos de criação artísticas. Tudo isso foi sustentado e iluminado, entre outros autores, especialmente pela obra de Rancière quando, ao estreitamento do espaço público e do desaparecimento da invenção política na era do consenso, esse pensador relaciona o político à própria capacidade do dissenso. Nessa medida, as mídias locativas possibilitam a reali-
zação de dissensos que mudam as formas de apresentação sensível e de enunciação ao indicar os modos pelos quais ainda é possível revivificar nossas existências no espaço. Por isso, a todos aqueles que desejam e buscam nesgas de luz nas sombras do contemporâneo, este livro de Juliana Rocha Franco aponta para caminhos que vale a pena palmilhar. Com certeza, sairemos deles com a alma mais nutrida de esperança.
Lucia Santaella
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO............................................................................17 CAPÍTULO 1 NOTAS SOBRE O ESPAÇO E UMA PROPOSTA ALTERNATIVA AO PENSAMENTO BINÁRIO ........................................................................31 1.1 Do espaço absoluto à virada espacial ...................................................... 31 1.2 Repensando as posições binárias ............................................................ 40 1.3 A semiótica e o espaço como linguagem ................................................ 48
CAPÍTULO 2 MAPAS E A RAZÃO CARTOGRÁFICA ....................................................61 2.1 Razão cartográfica e mapeamento ........................................................... 61 2.2 As centrais de cálculo e o mapa como dispositivo................................ 68 2.3 A expansão dos mapas ................................................................................ 76 2.4 Mobilidade e georreferencialidade .......................................................... 85
CAPÍTULO 3 DA VISÃO PANÓPTICA À PARTILHA DO SENSÍVEL ............................. 97 3.1 Poder e o olhar panóptico .......................................................................... 97 3.2 O GPS e a estrutura espaço-tempo imperial .......................................105 3.3 Entre estratégias e táticas – contradições ............................................117 3.4 Mídias Locativas e a partilha do sensível .............................................124
CAPÍTULO 4 DO FIM DAS GEOGRAFIAS ÀS INTERFACES URBANAS .....................133 4.1 A cidade e a crítica ao “fim das geografias”..........................................134 4.2 Memória e cidade .......................................................................................140 4.3 Assemblages, mapas e os atores em rede .............................................148
CAPÍTULO 5 A CARTOGRAFIA EXPANDIDA DAS MÍDIAS LOCATIVAS ...................155 5.1 Do Dadá à Deriva .......................................................................................159 5.2 A cartografia de Duchamp ........................................................................174 5.3 O Campo expandido ..................................................................................177 5.4 A tridimensionalidade e a desmaterialização do objeto de arte: o mapa-processo ...............................................................................................185 5.5 Mídia locativa como cartografia expandida..........................................195
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................201 REFERÊNCIAS ...............................................................................205
APRESENTAÇÃO
Durante o estágio de doutorado na University of Maryland, tive a oportunidade de viver por alguns meses na área metropolitana de Washington D.C., uma região que não conhecia muito bem. Apesar de já ter estado em D.C. por alguns dias, a experiência de viver lá foi completamente nova. Ao experienciar a cidade, pude criar em minha mente um mapa que permitiu meu deslocamento pelo espaço. Tal mapa se constituiu a partir do imbricamento dos mais diversos layers de informações oriundas das mais variadas fontes que, de alguma forma, faziam parte da minha experiência de transitar pela cidade e significar o espaço: o mapa da cidade fornecido aos turistas, serviços e informações baseados em minha localização provenientes do meu telefone celular, o mapa do metrô, pontos marcados no Google, a minha sensação de que todos os lugares eram muito parecidos quando cobertos de neve, direções fornecidas pelo meu antigo GPS de mão, ciclovias e rotas de bicicleta, novos caminhos encontrados a partir da experiência de se perder na cidade. Nesse processo, um dado não pôde ser ignorado: cada vez mais a nossa experiência cotidiana dos espaços urbanos tem sido permeada por dispositivos e interfaces tecnológicas. A minha experiência da cidade se deu em uma confluência de fluxos de informação e comunicação com o espaço urbano, em um processo de interação e conectividade entre espaços virtuais, telemáticos e o mundo tangível da cidade. Atualmente, vários teóricos (HARVEY, 2001; SANTAELLA 2007; Lemos, 2008) têm apresentado reflexões sobre as conexões entre as tecnologias e importantes transformações sociais. Um aspecto importante de tais transformações pode ser notado no modo como 17
as tecnologias da informação têm modificado nossas noções de espaço, bem como a forma como experimentamos e representamos esse espaço. As tecnologias móveis ligadas aos dispositivos de localização exercem um grande impacto em nossa cultura. Harold Innis (1999), em suas análises sobre a relação entre tecnologia e sociedade, já havia relacionado as tecnologias da comunicação aos diferentes monopólios de tempo e espaço. Para o autor (1999, p. 64), uma sociedade estável é dependente da apreciação do equilíbrio adequado entre os conceitos de espaço e tempo. Dentro desse contexto, as mídias se caracterizam a partir de seu viés, que pode favorecer o tempo ou o espaço. As mídias que têm seu viés no tempo são duráveis (tais como a argila ou a pedra) e de difícil transporte. Meios de comunicação que enfatizam o espaço (papiro e papel), por outro lado, são leves, portáteis e fáceis de transportar por grandes áreas. Uma mídia que enfatiza o espaço é caracterizada justamente pela mobilidade e portabilidade. Deixando de lado a oposição entre tempo e espaço em que a análise de Innis pode incorrer, a tese central do autor é de grande valia para nós: quando um meio que já foi entendido como geograficamente fixo se torna móvel, uma mudança cultural acompanha essa transformação e vice-versa. Dessa forma, é importante apreender a especificidade das “atuais” mídias móveis. “Mídias móveis” tem sido a expressão por excelência para se referir aos atuais dispositivos portáteis de computação pervasiva e novas redes móveis de telecomunicações, tais como telefones celulares, smartphones, netbooks etc. Farman (2012, p. 9), em direção similar, defende que, à medida que a escrita passou de inscrições em pedra para marcas em um pedaço de papel ou papiro, o mundo mudou. Não só o processo do pensamento humano se transformou, mas também esses pensamentos poderiam ser distribuídos globalmente, ou seja, não seria necessário viajar para um lugar especial para ler algo, por exemplo.
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JULIANA ROCHA FRANCO
Especificamente, o desenvolvimento de tecnologias móveis e a liberação de ferramentas que permitem o acesso a instrumentos de coleta de dados geográficos têm possibilitado repensar radicalmente as nossas noções contemporâneas de espaço. A proposta deste livro é compreender e analisar qual a relação das formas de interação e conectividade proporcionadas por processos criativos que se utilizam de tecnologias móveis associadas a dispositivos de geolocalização, também chamados de projetos de mídias locativas e sua decorrente atualização e, até mesmo, subversão dos vocabulários visuais cartográficos. De maneira geral, a expressão “mídia locativa” é aplicada a processos que se utilizam de tecnologias móveis da comunicação associadas a dispositivos de geolocalização. A expressão “locative” associa a ideia do móvel, on the go, em relação à ideia de lugar no mundo físico (BOA-VENTURA, 2006, p. 1). O termo hoje é, de certa forma, ambíguo, um “guarda-chuva” que abriga um sem-número de projetos artísticos e aplicativos que envolvem geoanotação, ativismo político, games, mapeamento, vigilância e monitoramento, geotagging, realidade aumentada, dentre outros. Entretanto, Lemos (2010b, p. 622) afirma que o termo “mídias locativas” é uma expressão criada por artistas para se diferenciarem de projetos comerciais e mostrar as ambiguidades que cercam as questões atuais, como mobilidade, localização, espaço público, vigilância. Apesar da enorme diversidade, é possível afirmar que, na maioria de projetos com mídias locativas, emergem questões ligadas à noção de espaço e localização. Interessam-nos especialmente aqueles que conectam arte, geografias informais e mapas à experiência do espaço. Neste trabalho, nos deteremos especificamente em projetos artísticos que, ao se utilizarem de tecnologias móveis associadas a dispositivos de localização, de alguma forma promovem mapeamentos e cartografias.
CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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O rótulo “Mídia Locativa” surge em 2003, em um contexto de workshops, festivais de Media Art e uma efervescência de listas de discussão online. O termo locative media é geralmente atribuído ao pesquisador canadense Karlis Kalnins (HEMMENT, 2006; TUTERS; VARNELIS, 2006; WILKEN, 2012; ZEFFIRO, 2012). Entretanto, Tuters (2009, p. 1), colaborador de Kalnins, afirma, em um texto de 2009, que o termo foi inicialmente cunhado durante uma residência feita por ele e Karlis Kalnins em 2002 no emblemático evento “RIXC – Locative Media Workshop: Mapping the Zone”, que aconteceu em Karosta, região em torno de uma base militar soviética abandonada na Letônia, em julho de 2003, e que é considerado um marco no início das reflexões e experimentações em mídias locativas. Ao definirem mídia locativa, Kalnins e Tuters procuraram criar uma distinção entre projetos artísticos e comerciais que oferecem “serviços baseados em localização”. Em estudos publicados neste período, Hemment (2004a; 2006) afirma que a expressão “mídias locativas” não se refere às tecnologias em si, mas a um movimento de arte crítica que se envolve com elas. O mapeamento digital está no cerne de muitos projetos locativos. Especificamente, o que estamos chamando de mídia locativa está ligado a um boom de manifestações artísticas envolvendo tecnologia location aware, acontecido no início do século XXI. O que marca esse período é a recente disponibilização da tecnologia GPS. Em 1996, os EUA abriram a tecnologia para uso civil, entretanto, tal abertura funcionava a partir da “disponibilidade seletiva”, uma técnica que deliberadamente operava uma degradação seletiva do sinal dos satélites do GPS, por questões de “segurança nacional”. Em maio de 2000, o então presidente Bill Clinton publicou um ofício que promoveu o desligamento da “disponibilidade seletiva”, o que pôde aumentar a precisão dos receptores GPS civis em até dez vezes. Uma geração de artistas tornou-se ansiosa para experimentar esses novos desenvolvimentos e discutir suas implicações. 20
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Existiram trabalhos anteriores e posteriores a esse período. Wilson (2002) descreve nove artistas ou colaborações que haviam usado GPS em sua prática nos anos 1990. A lista de Wilson não foi exaustiva e até onde a presente pesquisa permitiu levantar, o autor omite pelo menos um trabalho: You Are Here: Information Drift, de Laura Kurgan (1994). Entretanto, a lista fornece uma indicação da relativa escassez de artistas que trabalharam com GPS na década de 1990. Apesar de nosso recorte se referir à locative media art, não estamos reivindicando o monopólio da criação para essas práticas. Existem mapeamentos alternativos de ativistas, grupos comunitários, entusiastas e usuários que buscam soluções para problemas cartográficos cotidianos. Dirigiremos nosso olhar para projetos promovidos por artistas, ativistas, pesquisadores que desenvolvem propostas que relacionam mídias locativas e o espaço. Processos de criação que se utilizam de tecnologias móveis associadas a dispositivos de localização e que de alguma forma, promovem mapeamentos e cartografias do espaço. Isso não apenas para registrar as diferentes formas pelas quais a cidade está materialmente presente, mas também como uma intervenção criativa no espaço urbano, como um processo de criação do espaço, acentuando não somente a cidade tangível, física, mas também a cidade vivida e experimentada. São ações colaborativas entre artistas e grupos participantes que exploram as relações que se tecem nos deslocamentos pelo espaço e têm vinculado mapeamentos, cartografias e mapas à vida e à experiência urbana, explorando mudanças na nossa percepção do espaço. Dessa forma, buscaremos compreender qual o tipo de espacialidade proporcionada pelas tecnologias móveis em sua relação com o espaço e como tal espacialidade é apresentada. Nesse caso é importante ressaltar o papel dos mapas na apresentação e percepção do espaço povoado por tecnologias digitais. A CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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cartografia, ao longo de sua história, tem sido relacionada a métodos de controle e dominação (PICKLES, 2004; HARLEY, 2005; WOOD, 2010). Harley (2005, p. 83) enfatiza que a produção de mapas e representações sobre um território como um conhecimento que implica poder. Nesse sentido, as reflexões de Foucault (2000) sobre a relação entre poder e conhecimento serão úteis para pensar como muitas vezes o Estado se reveste de recursos de autoridade estabelecidos por uma série de discursos competentes autorizados, entre eles os de mapeamento. Entretanto, o desenvolvimento de tecnologias móveis e seu uso juntamente com ferramentas de geolocalização têm aberto possibilidades sem precedentes na democratização das ferramentas de mapeamento e visualização, o que até então era de uso quase exclusivo de engenheiros e cartógrafos. Mark Weiser e John Seely-Brown (1997, p. 1), dividem os últimos 50 anos da computação em quatro eras: a do mainframe, os primeiros computadores, restritos a grandes corporações e que poderiam ocupar um andar inteiro; a era dos computadores pessoais, na qual a diminuição do tamanho e do preço possibilitou a disseminação dos desktops. A internet possibilitou que esses computadores fossem conectados em rede, criando a era da computação distribuída, na qual o desktop possibilitou a imersão no ciberespaço a partir de um local fixo. Atualmente, estamos em transição para a era da computação ubíqua, caracterizada por profunda imersão da computação em nossa vida cotidiana e pelo progressivo abandono dos desktops em prol de tecnologias móveis. Os smartphones, receptores GPS e etiquetas RFID são apenas alguns exemplos de como os atuais dispositivos de computação pós-desktop, em sua integração com tecnologia móvel sem fio e sistemas de posicionamento global, têm possibilitado o trânsito através de redes cada vez mais interligadas. As redes de comunicação estão cada vez mais presentes em nosso cotidiano. É notável o crescimento do uso de aparelhos móveis em uma escala global sem precedentes. Sistemas de rede 22
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sem fio, tecnologias de localização, a realidade aumentada, QR codes, dentre outros, abrem inúmeras possibilidades de navegação em territórios informacionais (LEMOS, 2008; 2009; 2010). A conectividade onipresente, possibilitada pelos telefones celulares e mídias móveis, tem desencadeado novas práticas socioespaciais e padrões de interação em ambientes urbanos que apontam para a superação da dicotomia real/virtual. Essas não se opõem, mas se complementam e se atualizam no espaço tangível. Vivenciamos uma era da conexão que articula espaço virtual, espaço urbano e mobilidade. Para Lemos (2004, p. 3), “as práticas contemporâneas ligadas às tecnologias da cibercultura têm configurado a cultura contemporânea como uma cultura da mobilidade”. A computação ubíqua e as mídias locativas, ao associarem computação móvel, redes sem fio e geolocalizacão, promoveram uma integração cada vez maior entre os espaços virtuais e tangíveis. A palavra tangível deriva do latim tangibilis: aquilo que pode ser tocado, que se percebe pelo tato. Optamos por usar a palavra visando a escapar da oposição entre real e virtual. Conforme afirma Santaella, [...] não há oposição epistemológica mais equivocada do que aquela que opõe o virtual ao real ou o virtual ao físico, como se as representações virtuais não fossem também físicas e reais. A diferença não está em ser real ou não-real, mas nos tipos de realidade e de fisicalidade que são distintas nesses casos. (Santaella, 2009a, p. 126).
Vivian Sobchack (1994) lembra que a tecnologia nunca vem associada à sua especificidade material particular e função em um contexto neutro para um efeito neutro. Pelo contrário, é sempre historicamente situada não apenas pela sua materialidade, mas também por seu contexto político, econômico, social e, portanto, sempre coconstitui e expressa valores culturais. Segundo Sobchack (1994, p. 135-162), uma tecnologia nunca é meramente “usada”, CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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nunca é meramente instrumental. Sempre é também incorporada e vivenciada pelos seres humanos que a praticam dentro de uma estrutura de significados em que as relações são cooperativas, coconstitutivas, dinâmicas e reversíveis. Por isso, uma nova tecnologia pode alterar nossa orientação perceptiva com relação ao mundo, a nós mesmos e aos outros. A despeito de leituras que preconizaram a “desmaterialização”, a “diluição do real pelo virtual” (MEYROWITZ, 1985; BAUDRILLARD, 1994), a internet tem ultrapassado as suas fronteiras virtuais, e “pingado” no mundo tangível (RUSSELL, 1999, p. 1). Camadas de elementos digitais têm coberto o nosso ambiente e possibilitado formas de interação e conectividade entre espaços virtuais, telemáticos e o mundo tangível. A capacidade simultânea para interagir, tanto com um contexto local quanto com uma localização física separada, tem alterado nossa percepção do espaço. Dessa forma, buscaremos compreender como essas mudanças podem ser apreendidas nas formas de representação desse espaço, no caso, mapas e mapeamentos. O que se percebe é um discurso sobre a construção da ideia de um espaço híbrido (HARRISON; DOURISH, 1996), que incorpora as instâncias do virtual e do mundo físico. Segundo Dourish (2006, p. 6), o mundo tecnológico está intimamente ligado ao mundo físico, fornecendo inclusive novos modos de compreendê-lo e experienciá-lo. A conexão entre espaços físicos e digitais, produto da relação dinâmica entre a rede e dispositivos móveis, também é denominada por Souza e Silva (2006, p. 264-265), “espaço híbrido”: um espaço conceitual criado pela fusão de fronteiras entre espaços físicos e digitais, por causa do uso de tecnologias móveis como dispositivo social. Santaella (2009a, p. 21) chama de “espaços intersticiais” as bordas entre espaços físicos e digitais que compõem espaços conectados, nos quais se rompe a distinção tradicional entre espaços físicos, de um lado, e digitais, de outro.
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A partir da noção de “espaços intersticiais”, delineia-se o problema da pesquisa: como mapear tais espaços? Nossa hipótese é que os espaços intersticiais são melhor apreendidos por mapas que representam a experiência do espaço a partir da noção de sistema de relações, processos, conexões e multiplicidades, apresentando espaços de representação topológicos ao invés de uma posição, lugar na grade urbana, podendo tais mapas apresentar espaços muitas vezes invisíveis para a cartografia tradicional. Dentro desse contexto, é importante destacar que as mídias locativas funcionam como uma interface móvel e desempenham um papel complexo que acarreta mudanças nas concepções de espaço, fornecendo um quadro interessante para entender o papel das tecnologias nessas mudanças. Ao criarem espaços intersticiais, são capazes de abrir novas realidades perceptivas e campos de experiência até então impensáveis no mundo humano. Uma segunda hipótese que se depreende da anterior, diz respeito à maneira como os mapas serão pensados ao longo do trabalho a ser desenvolvido: partiremos da noção de mapa como um “mutável mutante”, até compreendê-lo como rede semiósica, uma cartografia expandida que funciona mediando continuamente a produção do espaço, rearranjando partilhas do sensível e apresentando outros espaços. Nossa metodologia é inspirada pelo “diagrama em rede”, de Serres (1998), que busca recorrer não apenas a um modelo filosófico abstrato, mas também a um método de compreensão voltado para a apreensão da complexidade. A ideia do diagrama em rede é importante para que, em nosso percurso, não sejam estabelecidas relações guiadas por causalidades diretas, além de oferecer também a possibilidade de apresentarmos nosso quadro teórico conjuntamente com a metodologia, proporcionando uma maior articulação e aumento do número de mediações possíveis entre a teoria e nosso objeto, além de torná-las mais flexíveis: CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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Imaginemos um diagrama em rede, desenhado num espaço de representação. Ele é formado num dado instante (pois veremos que ele representa qualquer estado de uma situação móvel) por uma pluralidade de ramificações (caminhos). Cada ponto representa ou uma tese ou um elemento efetivamente definível de um conjunto empírico determinado. Cada via é representativa de uma ligação ou de uma relação entre duas ou mais teses, ou de um fluxo de determinação entre dois ou mais elementos dessa situação empírica. Por definição, nenhum ponto é privilegiado em relação a um outro, nem univocamente subordinado a qualquer um; cada um possui seu próprio poder (eventualmente variável com o decorrer do tempo), a sua zona de incidência, ou ainda sua força determinante original. Por conseguinte, ainda que alguns possam ser idênticos entre si, na generalidade são diferentes. O mesmo se passa com os caminhos, que transportam os fluxos de determinações diferentes e variáveis com o tempo. (Serres, 1998, p. 7).
Buscamos assim, um procedimento que, conforme afirma Duarte (2002, p. 15), “não é linear, com uma resolução levando imediatamente à outra, mas faz com que a cada aproximação dos objetos, qualidades não apreendidas, despertem atenção para novos problemas”. Entretanto, para que as conexões, aproximações e possibilidades abertas por esse processo sejam evidenciadas, acreditamos ser necessária uma sistematização, tanto para sua imediata compreensão, quanto para se tornarem efetivos os instrumentos de conhecimento. Para tal, estabeleceremos parâmetros epistemológicos que nortearão nossas posturas metodológicas. Dentro desse contexto, a semiótica peirceana se constitui o ponto de vista através do qual dirigiremos o nosso olhar. Dessa forma, no capítulo 1 buscamos estabelecer um determinado conjunto de conceitos que guiam o estudo. Especificamente, o conceito-chave será o de espaço. Mostraremos como uma concepção de espaço absoluto se constitui na modernidade. 26
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Escavar as conceitualizações do espaço absoluto (como estático, fechado, imóvel e apartado do tempo) trouxe à luz outros conjuntos de conexões, que apontam para outras maneiras de pensar o espaço. A seguir apresentamos a virada espacial e o surgimento de outras formas de se pensar o espaço, primordialmente ligadas a uma dimensão da experiência vivida e a uma dimensão relacional. A virada espacial traz a noção de lugar, reconhecido como o espaço vivido. Vários teóricos trazem os conceitos de “espaço” e “lugar” como um par analítico (TUAN, 1977; CERTEAU, 2004). Entretanto, tal forma de pensar apresenta o risco de se incorrer em uma concepção dualista do espaço. Tal risco foi evidenciado pelas tensões inerentes ao nosso objeto: as mídias locativas são assemblages (ESCOBAR, 2007), que se configuram a partir do cruzamento de materialidades tecnológicas diversas, formas culturais e cognitivas que, muitas vezes, se apresentam contraditórias. Apresentamos melhor tais contradições nos capítulos seguintes. Dessa forma, no primeiro capítulo discutimos a questão do pensamento binário que sintetiza tais contradições. Demonstraremos que tal forma de pensar é insuficiente para compreender as questões referentes ao espaço e mídias locativas. Apontamos o crescente entrelaçamento entre sociedade e tecnologias comunicacionais que vem ativando mais e mais processos de mediação e, consequentemente, promovendo alargamento de nosso Umwelt. Diante da constatação de que nosso acesso ao “real” é sempre mediado por processos sígnicos, será importante enfatizar um viés teórico-metodológico que consiga abarcar tal complexidade. Não é nossa intenção de refutar teorias anteriores, mas sim fornecer uma perspectiva que permita abarcar nosso objeto em sua complexidade. Dessa forma, mostramos como as alternativas apresentadas pela semiótica peirceana, enriquecida pela Teoria Ator-Rede, se apresentam como ferramentas úteis para se escapar das
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armadilhas nem sempre evidentes que conduzem o pensamento em termos de relações de oposição. Além da percepção do espaço como semiose, a configuração triádica da semiótica peirceana fornece um substrato lógico que permite a superação de uma lógica binária, marcada por pares opositivos, de uma maneira geral. É interessante ressaltar que neste capítulo empreendemos uma metainvestigação, à medida que o próprio padrão de organização e configuração dos mapas a serem estudados se constitui como uma rede semiósica. Assim, pensar o espaço como linguagem, via semiótica, permite compreender a dimensão espacial estruturada semioticamente em rede. É importante observar que não empreenderemos, contudo, uma análise do corpo ou da percepção corporal em nosso trabalho. Entretanto, gostaríamos de ressaltar nosso ponto de vista, conforme afirma Farman (2012, p. 35), de que a maneira como nós representamos o espaço está relacionada com a forma como nós incorporamos esse espaço. Ao enfatizar que a realidade percebida apresenta múltiplos níveis, e que a percepção, como sistema evolutivo se adapta aos mais diversos ambientes, Santaella (2009a, p. 205) também afirma que o continuum perceptivo inclui a percepção do próprio corpo, do seu entorno e a estimulação efetiva e, na maior parte das vezes, sinestésica das tecnologias. No capítulo 2 discutimos como a razão cartográfica, materializada nas “centrais de cálculo”, efetuou uma separação do espaço e do tempo, à medida que não se mapeava mais ao mesmo tempo em que se estava no/percorria o espaço a ser mapeado. Apresentamos o mapa como um “imutável mutante”. Mostraremos também o processo de proliferação de mapas ocorrido em nossa civilização desde que as centrais de cálculo iniciaram seu funcionamento. A introdução do relógio nas sociedades modernas e o estabelecimento das time zones, na virada do século XIX para o XX, também operaram uma separação entre tempo “universal” e tempo “vivido”. 28
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Através de uma análise do GPS, percebemos que o tempo é uma dimensão importante para se pensar as mídias locativas, na medida em que elas promovem justamente uma “re-união” do espaço e do tempo, que haviam sidos separados na modernidade. No capítulo 3 discutimos a questão do poder e a construção do que denominamos “olhar panóptico”. Apesar de inspirado em Foucault, o olhar panóptico não se restringe somente às sociedades disciplinares porque incorpora as tecnologias e dispositivos de cada época. Inicialmente, partiremos da noção de poder em Michel Foucault, e prosseguiremos até a ideia da sociedade de controle deleuziana. A seguir, através de Michel de Certeau e suas noções de estratégias e táticas, buscamos possíveis espaços de atuação dos sujeitos no contexto da sociedade de controle. Entretanto, a pesquisa apontará os riscos de se usar os conceitos de Certeau de forma fixa. Apresentamos as contradições das mídias locativas, sintetizadas pela metáfora do dilema entre Eros e Thanatos (SANTAELLA, 2010). Foi preciso muita cautela para não incorrermos novamente em simplificações binárias: tática versus estratégia, poder versus resistência, tempo absoluto, imperial, como afirma Holmes (2004) versus tempo “vivido”, dentre outras. A busca da superação de uma abordagem dualista do espaço delineou um problema fundamental para o presente trabalho: como reconhecer o caráter subversivo das mídias locativas sem recorrer a pares opositivos? Como pensar o caráter subversivo das mídias locativas sem incorrer no dualismo poder/subversão, estratégia x tática (CERTEAU, 2004), absoluto x relacional? Na verdade, percebemos que na maioria dos textos sobre mídias locativas, os autores acabam por se posicionar em um dos lados das oposições binárias ou apresentam as opções e permanecem no dilema. Em vez de tomar um partido entre duas oposições, optamos por reconhecer isso como parte da complexidade do nosso objeto, para, a partir daí, tentar entendê-lo e buscar seu caráter sub-
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versivo dentro dessa rede acionada por ele. A pergunta passou a ser: Quais potências podem surgir do encontro entre binários que constituem (“olhar panóptico” e o “nível da rua” etc.) as mídias locativas? A partir da leitura de Rancière (2005a; 2009), encontramos um caminho interessante na ideia de partilha do sensível: a mídia locativa oferece maneiras de organizar o sensível, organizações que podem “recompor as relações entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer que definem a organização sensível da comunidade” (RANCIÈRE, 1996, p. 51). Conforme afirmamos no capítulo 3, o caráter subversivo das mídias locativas se daria não por apresentar uma alteridade radical, uma ruptura, e sim por mobilizar elementos, configurações e relações que guardam o potencial de alterar a partilha do sensível dos habitantes de um determinado território. No capítulo 4 buscamos compreender as relações entre espaço urbano, memória e as mídias locativas. Desde McLuhan (1994), já é conhecido que as condições concretas de articulação e de transmissão de uma mensagem influem no caráter de sua produção e recepção. Ao atentar para aspectos das materialidades tecnológicas envolvidas no nosso objeto, mostramos como alguns atores não-humanos (LATOUR, 1996; 2005) assumem um papel preponderante no presente trabalho, especialmente os mapas e o sistema GPS. Verificaremos como ambos fazem parte de redes sociotécnicas que se estendem no tempo, configuram mundos culturais e organizam formas de cognição, neste caso, espaço-temporais. Finalizamos o capítulo apresentando a ideia do espaço urbano como assemblage, tal como proporcionada pela Teoria Ator-Rede. Mas como se daria a partilha do sensível nas mídias locativas? Através de uma abordagem geopoética das mídias locativas. No capítulo 5, buscamos compreender a mídia locativa inserida em uma teia de correferências artísticas, que apontam para a ideia da cartografia expandida das mídias locativas como uma geopoética específica.
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CAPÍTULO 1
NOTAS SOBRE O ESPAÇO E UMA PROPOSTA ALTERNATIVA AO PENSAMENTO BINÁRIO1
1.1 Do espaço absoluto à virada espacial Do ponto de vista epistemológico, há aspectos históricos, sociais e culturais que delimitam a concepção de espaço a alguns operadores teóricos, como, por exemplo, as noções de objetividade e imparcialidade. Especificamente, a concepção de espaço associada ao projeto moderno produziu certas ordenações simbólicas do espaço que persistem até os dias de hoje, principalmente em relação à construção de mapas e processos de mapeamento. O que chamamos de Modernidade tem sido discutido por diversos autores. Para Berman (1990, p. 24), a Modernidade seria um tipo de experiência vital, de tempo e espaço. Segundo Giddens (1990, p. 1), modernidade refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII, e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. Souza Santos (1987, p. 14) afirma que o modelo de racionalidade que preside a ciência moderna se constituiu na modernidade, a partir da revolução científica do século XVI. Entendemos que há uma dificuldade em se periodizar com exatidão a modernidade bem como a pós-modernidade, e aceitamos aqui a ideia mais geral de que o projeto da modernidade constituiu-se entre o século XVI e finais do XVIII, estendendo-se até meados do século XX.
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Uma versão resumida desse capítulo foi publicada em: FRANCO, Juliana Rocha. A virada espacial e a semiótica: uma proposta alternativa ao pensamento binário. Líbero (FACASPER), v. 18, p. 65-76, 2015.
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É de especial importância aqui destacar que a modernidade promove um redimensionamento dos “conceitos de espaço e tempo, que vai se expressar numa nova maneira de desenhar o mundo, geometrização das formas, materializando nos cartogramas as novas necessidades impostas pelo capitalismo mercantil nascente” (SANTOS, 2002, p. 56). Harvey (2001, p. 208-230) descreve como as representações espaciais medievais eram estruturadas pela experiência incorporada (embodied) e móvel, ao invés de um ponto de vista fixo ou externo. O autor ainda afirma que a temporalidade e espacialidade, que eram ligadas, foram separadas a partir das necessidades modernas2. Para Merriman (2012, p. 15), essa separação encontra substrato filosófico na filosofia kantiana. Segundo o autor, muitos geógrafos adotaram as concepções newtonianas de espaço absoluto, em que o espaço era visto como “separado do tempo e da matéria”. O pensamento moderno foi fundamental para a acepção moderna de espaço como uma ordem absoluta imanente à totalidade do que existe, homogêneo, passível de matematização e de controle através de um sistema em grade de coordenadas. Uma espécie de container, uma área na qual acontecimentos se desenrolariam e as vidas aconteceriam. Essa maneira de pensar o espaço é decorrente da sistematização simbólica criada pelas e através das transformações advindas da Modernidade (GIDDENS, 1990; HARVEY, 2001; PICKLES, 2004). Lefebvre (1991, p. 6) afirma que até a segunda metade do século XX o conceito de espaço esteve majoritariamente ligado a um sentido quase estritamente geométrico. Segundo Boyer e Merzbach (2011, p. 5), desde a invenção da contagem nos primórdios da civilização humana, a matemática está presente nas sociedades humanas. O que estamos chamando de matematização do espaço é um processo específico que se consolida na modernidade e que atribuía como função da matemática a análise dos fenômenos naturais, ao mesmo tempo em que enun2
Desenvolvemos melhor essa questão no capítulo 3.
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ciava um novo critério de verdade científica (VARGAS, 1996, p. 256). O autor ainda enfatiza que tal processo só foi possível graças à criação da geometria analítica por Descartes, em 1637, e do cálculo diferencial e integral por Newton e Leibniz, durante o século XVII. Trata-se de um processo de constituição de uma visão de mundo que em muitos aspectos norteia o fazer científico até os dias de hoje3. É importante destacar que vários fenômenos4 também se traduzem matematicamente, sem, no entanto, se incorrer no processo de matematização da realidade tal como ocorreu na Modernidade. A concepção de espaço que estamos delineando aqui se baseia no que Merriman (2012, p. 14) afirma ser uma abordagem matemática e geométrica do espaço e que é similarmente evidente nas geografias Cartesianas de Bernard Varenius do século XVII, bem como na modelagem matemática dos cientistas espaciais no século XX. A ideia de espaço absoluto se consolida a partir da epistemologia moderna, que se constitui a partir da separação cartesiana entre sujeito e objeto, bem como do processo de quantificação e matematização da realidade. Nesse contexto, fortemente marcado pela busca da “objetividade”, ocorre a valorização da matemática enquanto instrumento privilegiado de análise, lógica de investigação e modelo de representação. Assim, é possível afirmar que “conhecer” seria igual a “quantificar”. Na verdade, o fundamento operacional da ciência moderna é a compreensão de que “conhecer” exige a redução da complexidade do real, conseguida graças às ideias de divisão, recorte e classificação. No campo do conhecimento, a tônica da ciência moderna pode ser metaforizada pela famosa afirmação de Galileu: A filosofia está escrita neste vasto livro, constantemente aberto diante de nossos olhos (quero dizer, o universo) e só podemos compreendê-lo se primeiro aprendermos a 3
Para mais informações ver Santos (2002) e Souza Santos (1987). Tais como a geometria fractal, fenômenos dinâmicos não lineares, a topologia de Poincaré, dentre outros. 4
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conhecer a língua, os caracteres nos quais está escrito. Ora, ele está escrito em linguagem matemática e seus caracteres são o triângulo e o círculo e outras figuras geométricas, sem as quais é impossível compreender uma só palavra. (GALILEI, 1965, p. 16-17).
Galileu já apontava para a matematização do espaço, que, com suas bases na racionalidade cartesiana, corroborada pela física newtoniana, marcaria o projeto da modernidade. O processo de matematização da realidade no período moderno toma forma com a matemática cartesiana. Ao unir a aritmética, a álgebra e a geometria, Descartes forneceu o arcabouço matemático para a ideia da uniformidade mecânica do universo e geometrização do espaço. Para Descartes, [...] a natureza própria do espaço, ou extensão, era tal que suas relações, ainda que complicadas, deveriam sempre permitir a expressão por meio de fórmulas algébricas e que, no caso oposto, as verdades numéricas (em determinadas condições) poderiam ser plenamente representadas do ponto de vista espacial. Como resultado natural dessa invenção notável, Descartes ampliou sua esperança de que todo o reino da física pudesse ser redutível unicamente a qualidades geométricas. Quaisquer que sejam suas outras dimensões, o mundo da natureza é obviamente um mundo geométrico e seus objetos são grandezas em movimento, dotadas de extensão e configuração. Se nos pudermos livrar de todas as outras qualidades ou reduzi-las a estas, é evidente que a matemática terá de ser a chave única e adequada a revelar as verdades da natureza. (BURTT, 1983, p. 86).
A concepção do espaço como absoluto ganha exposição sistemática e rigorosa na forma de conceito no Principia de Newton (1848)5: “O espaço absoluto, em sua própria natureza, sem conside5
Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1686). Usamos aqui a versão em inglês: Newton’s Principia: The Mathematical Principles of Natural Philosophy. Andrew Motte, Ed. Chittenden. New York: Daniel Adee, 1848. First American edition.
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ração a qualquer coisa externa, permanece sempre similar e imóvel”. Segundo Newton, tal espaço existe sem relação com qualquer coisa externa e permanece sempre similar e imóvel, como um contêiner. Quanto ao lugar, este seria a parte do espaço que um corpo ocupa. O espaço, tal como concebido no pensamento newtoniano, dialoga com geografia de Ptolomeu e, não por acaso, Newton organizou duas edições do livro de Geographia Generalis, de Bernardus Varenius, considerado “um dos maiores geógrafos de todas as épocas”. No livro, Varenius apresenta as “propriedades da terra” e seu Livro I, “Parte Absoluta”, trata, como o próprio nome já diz, de suas propriedades espaciais absolutas (WARNTZ, 1989)a. Moreira (2002) afirma que a percepção moderna do espaço, no campo da arte, na esfera da pintura, é produto da invenção técnica da perspectiva e do ponto de fuga6. Tal percepção “nasce colada à geometrização da confecção do quadro, através do artifício de uma tela de quadrícula interposta entre o modelo e a pintura” (MOREIRA, 2002, p. 9). Harvey nos lembra da importância da cartografia nesse processo, visto que O saber geográfico se tornou uma mercadoria valiosa numa sociedade que tinha uma consciência cada vez maior do lucro. As regras fundamentais da perspectiva, regras que romperam de maneira radical com as práticas artísticas e arquitetônicas medievais e que viriam dominar até o começo do século XX, foram elaboradas na Florença da primeira metade do século XV. (HARVEY, 2001, p. 221).
De acordo com Couchot (1993, p. 41), além de serem meios para criar imagens de um tipo específico, as técnicas figurativas são também meios de perceber e interpretar o mundo. Nas sociedades ocidentais, a lógica de representação procede principalmente do modelo perspectivista. Nesse caso, a matematização/geometri6
A imagem perspectiva, ou aquela formada segundo as leis da “perspectiva artificialis”, é aquela que se produz a partir de uma convergência das linhas em um plano; em particular, as linhas que representam retas perpendiculares ao plano da imagem convergem em um ponto, o ponto de fuga principal, também chamado de ponto de vista (Aumont, 1993, p. 216).
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zação fornecia as garantias de racionalidade e objetividade às projeções gráficas. Nesse momento, o desenvolvimento e disseminação da perspectiva artificialis possibilitou estabelecer um “sistema de representação ‘objetivo’, ‘científico’ e, portanto, absolutamente ‘fiel’ ao espaço real visto pelo homem” (MACHADO, 1984, p. 63). O autor ainda indica que, desde o quattrocento até o século XX, inúmeras escolas, correntes e estilos artísticos surgiram e se extinguiram sem que, no conjunto, a lógica figurativa renascentista tenha deixado de funcionar como padrão referente (dominante) de representação. A “cartografia moderna” se constituiu a partir de processo similar de geometrização do espaço e foi profundamente impulsionada pelas grandes navegações e o trânsito de mercadorias advindo do capitalismo mercantil, aliado a novas técnicas de representação espacial. Tais técnicas se originaram de concepções do espaço compreendido objetivamente como um dado da natureza, como um atributo objetivo das coisas que podem ser medidas, quantificadas e apreendidas. Segundo Harley (1988, p. 282), no século XV, houve a redescoberta do sistema de coordenadas geográficas e projeções cartográficas escrito no século II pelo astrônomo greco-romano Cláudio Ptolomeu. Para a geografia ptolomaica, a localização é sempre definida a partir do espaço absoluto, através de um sistema matemático construído em grelhas que formam uma rede. Dessa forma, os mapas que se constituem pelo sistema de coordenadas podem ser vistos como um marco do paradigma moderno do espaço. Em tais mapas, processos são congelados em função de uma posição fixa na grade de coordenadas. Entretanto, é importante ressaltar que as grades de perspectiva e projeção de Ptolomeu (bem como a sua melhoria do século XVI) são distintos um do outro. Segundo o autor, a diferença é uma questão de concepção pictórica. Enquanto a perspectiva postula um espectador a uma certa distância, olhando através de uma janela para um mundo enquadrado, o ponto de vista de Ptolomeu ocupa
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uma posição impossível, acima de todos os pontos do globo (Alpers, 1983, p. 138). Apesar de os esforços de teóricos (HARLEY, J. B., 2009; WOOD, 2010; dentre outros) em desconstruir a noção do mapa como uma forma objetiva de conhecimento, como espelho da realidade, a ideia do mapa como representação objetiva da realidade persiste. Segundo Seemann (2003, p. 1-2), os geógrafos, em sua maioria, concebem o mapa como representação fidedigna, geométrica e precisa da realidade. No caso específico das mídias locativas, é possível afirmar que aceitação tácita dos mapas institucionais e convencionais denota uma percepção dos mapas como “espelhos do mundo”. Santaella (2007) denomina tal processo de “metáfora do espelho”. Contrariamente a essa metáfora, concordamos com a afirmação da autora de que, [...] longe de funcionarem como reflexos da realidade, agregam-se a ela, constituem-se elas mesmas em partes da realidade, aumentando sua densidade e complexidade. Por isso mesmo, quanto mais as linguagens crescem, junto com elas cresce a complexidade do real. (SANTAELLA, 2007, p. 213).
A percepção moderna do espaço, já naturalizada, surge calcada nos ideais de objetividade, verossimilhança, imparcialidade, que conformam um padrão dominante de representação baseado no espaço quantificável, medido e delimitado por coordenadas geográficas. Entretanto, nos últimos anos, o espaço compreendido em várias de suas problemáticas tem sido assunto de pesquisas nas mais diversas áreas do saber. As reflexões de teóricos como Michel Foucault, Michel de Certeau, Henri Lefebvre, David Harvey, Edward Soja, dentre outros, sugerem que passamos por uma virada em direção a uma investigação das práticas espaciais e significados espaciais – uma “virada espacial” (SOJA, 2006; WARF; ARIAS, 2008). Foucault (2009) argumenta que estaríamos na passagem de uma era centrada no tempo para uma era que privilegiaria o espaço. Ao final do século XVIII, a tomada do espaço pela prática científica CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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e por uma tecnologia política na qual a organização do espaço se dava com intuitos econômico-políticos, encaminhou a filosofia e o pensamento em geral para uma problemática do tempo. Para Foucault (2009, p. 411), a “obsessão do século XIX foi a história com os seus temas de desenvolvimento e de suspensão, de crise e de ciclo, temas do passado sempre acumulando, com a sua grande preponderância de homens mortos, e a glaciação ameaçadora do mundo”. Conduzindo o pensamento na mesma direção, Soja (2006) também comenta a emergência do historicismo desespacializante no século XIX, que desvalorizou e despolitizou o espaço como objeto do discurso social crítico, de tal maneira “que até mesmo a possibilidade de uma práxis espacial emancipatória desapareceu do horizonte por quase um século” (SOJA, 2006, p. 11). No entanto, o autor ressalta que “pequenos redemoinhos de vívida imaginação geográfica sobreviveram fora das correntes principais, [...], mas permaneceram decididamente periféricos” (SOJA, 2006, p. 11). Harvey (2001, p. 190) também afirma que “o progresso implica a conquista do espaço, a derrubada de todas as barreiras espaciais e a aniquilação última do espaço através do tempo”. O autor observa que as teorias sociais originárias de Marx, Weber, Adam Smith e Marshall privilegiam o tempo em suas formulações, porque “supõem ou a existência de alguma ordem espacial preexistente na qual operam processos temporais ou que as barreiras espaciais foram reduzidas a tal ponto que tomaram o espaço como um aspecto contingente, em vez de fundamental, da ação humana” (HARVEY, 2001, p. 190). Para Harvey (2001), Soja (2006) e Foucault (2009), a teoria social manteve como foco, desde o século XIX e boa parte do XX, o processo de mudança social, a modernização e o progresso em detrimento da dimensão espacial. A consequência desse processo foi apontada por Foucault (1980, p. 66): “O espaço era tratado como o morto, o fixo, o não-dialético, o imóvel. Tempo, ao contrário, era riqueza, fecundidade, vida, dialética”. É possível afirmar que a com38
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partimentalização que marcou o pensamento moderno facilitou que essa disjunção durasse tanto tempo. Segundo Soja (2006), pouca coisa mudou em tal abordagem até os anos 1960, quando uma série de teóricos lançaram suas indagações para o espaço como um conceito teórico e começaram a interpretar o espaço e a espacialidade da vida humana com o mesmo insight crítico e poder interpretativo que foram dedicados tradicionalmente ao tempo e à história. A partir do ponto de vista da virada espacial, diversos autores têm nos mostrado como o espaço é algo que se constitui em nossa relação com o mundo. Para o geógrafo Milton Santos, o espaço “é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente” (SANTOS, 1996, p. 63). O espaço pode ser entendido também, como quer Soja, a partir da noção de “ser-no-mundo”: [...] uma contextualização primordial do ser social numa geografia multiestratificada de regiões nodais socialmente criadas e diferenciadas, alojadas em muitas escalas diferentes em torno dos espaços pessoais móveis do corpo humano e nos locais comunitários mais fixos dos assentamentos humanos. (Soja, 2006, p. 15).
É importante ressaltar que não se trata de postular uma primazia do espaço em detrimento do tempo, numa espécie de “revanche”. Foucault aponta que os espaços próprios têm histórias e que “não é possível desconsiderar o cruzamento fatal do tempo com o espaço” (FOUCAULT, 2009, p. 412). A “virada espacial” sinaliza a importância do espaço como categoria analítica, modos emergentes de investigação nos quais a premissa fundamental é a de que o social possui um componente espacial.
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1.2 Repensando as posições binárias A virada espacial possibilitou a consolidação da ideia de que relações espaciais devem ser compreendidas não apenas como um pano de fundo ou cenário para eventos, um recipiente vazio a ser preenchido com ações ou movimentos, ou algo para ser tratado como a priori ou fixo. Para tal, o espaço é compreendido como algo que é produzido socialmente, em vez de um recipiente para as relações que acontecem no tempo. Esse ponto de vista é importante à medida que podemos perceber um olhar para o espaço que não o compreende como um dado fixo, e sim como algo transformado por uma multiplicidade de produções e práticas. Especificamente, tal forma de pensar consolidou, dentre outros, o par conceitual “espaço” e “lugar” (TUAN, 1977; CERTEAU, 2004). Yi-Fu Tuan foi pioneiro em propor a ideia de que a identidade humana é estruturada através da experiência individual do espaço e do lugar. Para o geógrafo, o espaço, quando adquire significado, torna-se o lugar (TUAN, 1977, p. 6). Para Tim Cresswell, tal abordagem enfoca o reino do significado e da experiência: o lugar é como nós fazemos o mundo significativo e a maneira que nós experimentamos o mundo. Cresswell (2008, p. 107-134) relaciona as coordenadas físicas à ideia de “espaço” e atribui ao “lugar” um “senso de lugar”, que se refere aos sentidos, individuais e compartilhados, de um determinado lugar. Tais conceitos têm sido amplamente utilizados, não só na geografia, como nas humanidades e ciências sociais em geral. Teóricos pós-coloniais (ASHCROFT et al., 2006) aplicaram e ampliaram o conceito “lugar” nas discussões sobre identidade cultural e o par teórico “espaço e lugar” também surge com grande frequência nas análises nos mais variados campos. Especificamente nos estudos sobre mídias locativas, espaço e tecnologias móveis, nas quais, o par teórico quase sempre é apresentado a partir de categorias 40
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estanques (HARRISON; DOURISH, 1996; POPE, 2005; BERRY, 2008b; VALTYSSON, 2012). Conforme afirma Portugali (2006, p. 647), desde o início dos anos 1970, as noções de espaço e lugar têm sido posicionadas nos dois lados de uma barricada que divide o que tem sido descrito como duas grandes culturas da ciência. O espaço está posicionado entre as ciências hard como um termo central na tentativa da geografia de transformar a disciplina de um empreendimento descritivo para um empreendimento quantitativo, analítico e, portanto, científico. Lugar, por outro lado, está posicionado entre as humanidades soft, e a filosofia social orientou as ciências sociais como um importante conceito na tentativa pós-1970 de transformar a geografia de uma ciência positivista para uma ciência humanista, estruturalista, hermenêutica e crítica. Mesmo quando a oposição não é tratada nos termos dos conceitos de “espaço e lugar” ela aparece na forma de “espaço absoluto” versus “espaço vivido”, dentre outros. Ainda que se busque evitar um posicionamento opositivo, tal ponto de vista termina por prevalecer, conforme podemos observar na afirmação de Lemos: Há duas noções importantes para a compreensão do espaço: 1) Espaço como conceito abstrato (matemático, reservatório de todas as coisas); e 2) Espaço como aquilo que é constituído pela distensão dos lugares (construídos historicamente), como relacional e dinâmico. Na primeira acepção, espaço é o reservatório de todas as coisas e concebido como uma entidade matemática. Aqui as coisas e os lugares estão em um espaço a priori. Na segunda acepção, o espaço é uma rede de lugares e objetos que vai se formando pelas dinâmicas desses últimos. O espaço deve ser compreendido em suas duas dimensões (abstrata e o relacional). No entanto, para pensar a comunicação e as mídias locativas, talvez seja mais interessante nos concentrarmos no espaço relacional, como uma rede que é produzida nas relações entre coisas historicamente constituídas. (LEMOS, 2013, p. 53).
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Embora a literatura mostre a proeminência dos lugares sobre os espaços (HARRISON; DOURISH, 1996; MASSEY, 2004), o inverso também acontece, como podemos observar no anedótico diálogo travado por Henri Bergson e Albert Einstein em Paris, em 1922, tal como narrado por Latour (2007, p. 5). Segundo o autor, Bergson estudou cuidadosamente a Teoria da Relatividade de Einstein, e inclusive escreveu um livro sobre o assunto, no qual a abordagem da noção de espaço e tempo teve uma importação cosmológica cuidadosamente tecida dentro das notáveis descobertas de Einstein. No diálogo, após Bergson falar por 30 minutos, Einstein fez uma observação sucinta e rápida: argumentou que havia apenas um tempo e espaço da física e que o que Bergson analisou não era mais do que tempo subjetivo psicológico. Para Latour, é possível visualizar nessa pequena história a maneira clássica dos cientistas de lidar com a filosofia, a política e a arte: “o que você diz pode ser bom e interessante, mas não tem relevância cosmológica, porque trata apenas de elementos subjetivos, o mundo ‘vivido’, e não o mundo ‘real’” (LATOUR, 2007, p. 5). Desta forma, o episódio narra mais um episódio do embate entre a realidade objetiva contra ilusão subjetiva: para os cientistas, o cosmos, e para o resto de nós, a fenomenologia da intencionalidade humana. Atualmente, cada vez mais teóricos em vários campos do saber (ALBERT, 2004; BEIGUELMAN, 2008; COBARRUBIAS; PICKLES, 2009; FARMAN, 2010; GORDON; SILVA, 2011, dentre outros), têm argumentado que vivemos um processo no qual as tecnologias geoespaciais contribuem para uma nova compreensão do espaço como relacional, possibilitando uma democrática cartografia processual e performativa em mapeamentos artísticos e ativistas. Entretanto, existe uma tensão fundamental que marca tal processo: esses novos entendimentos do espaço e da cartografia são possíveis graças a uma tecnologia construída a partir de uma compreensão absoluta do espaço. Encontramos no mesmo processo a espacialidade absoluta da cartografia e a espacialidade relacional 42
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da apropriação do espaço. Dentro desse contexto, é importante retomar o debate aberto por Massey (1994; 2004; 2008), que tem chamado atenção para os perigos do uso do conceito de espaço e lugar de maneira opositiva. Para a autora (2004, p. 5), em muito da literatura acadêmica e em muitos discursos políticos, o lugar é considerado como sendo muito mais significativo que espaço. Uma série de palavras acompanha a evocação característica do lugar; palavras como “real”, “aterrado”, “todos os dias”, “vivido”, mobilizam-se para gerar uma atmosfera de mundanidade, autenticidade e significado. E cada vez essa evocação é contraposta ao “espaço” que é, em consequência, compreendido como algo abstrato de alguma forma. O que Massey aponta é descrito por Cloke e Johnston (2005) como pensamento binário. Os autores apontam uma série de possibilidades para tal tipo de pensamento ao se buscar compreender o espaço: espaço e lugar, espaço e tempo, local e global etc. Para os autores, tais polarizações têm um fundo político e quase sempre implicam na desvalorização de um pólo no qual a superioridade de um deriva da exclusão do outro. Para Cloke e Johnston (2005, p. 3), o binário – de “nós” contra “eles” – raramente é simétrico: geralmente envolve “nós”, considerando que somos superiores a “eles”, e em muitos casos e situações sendo incentivados (pelo aparelho de Estado, por exemplo) para ter tal visão. A diferença torna-se, assim, mais que algo para ser exaltado: é uma base potencial de conflito – como a história do mundo tem nos demonstrado tantas vezes. Muito do pensamento geopolítico envolve a promoção de imagens positivas de “nós” e negativas de “eles”. O que fundamenta o pensamento binário é o raciocínio ocidental convencional, embasado na ideia de que todas as categorias decorrem do axioma do terceiro excluído da lógica clássica (CLOKE, 2004; CLOKE E JOHNSTON, 2005). O axioma do terceiro excluído, sintetizado na expressão latina tertium non datur, consiste no seguinte: uma terceira possibilidade não se apresenta, ou “A é x” ou é “y”. Dessa forma, uma proposição só pode ser verdadeira se não for CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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falsa e só pode ser falsa se não for verdadeira, porque o terceiro valor é sempre excluído e as coisas se configurariam em termos de A/não-A, B/não-B, e assim por diante. O poder do binário repousa na suposição categórica de que “nada pode ser uma coisa e seu ‘oposto’ ao mesmo tempo”. Tal forma de pensar tende a ver as coisas em termos de relações de oposição e de exclusão binárias entre “essências puras”, supostamente dicotômicas ou mutuamente exclusivas (A/não-A), e não como condensações de muitos fenômenos diferentes, eventos e aspectos articulados complexamente. Cloke e Johnston (2005) ainda afirmam que, aliados a essa forma de pensar, a rigidez profissional e conservadorismos ossificam as divisões binárias: O que nós identificamos é muito mais um paradoxo, portanto: o pensamento em categorias – em que o pensamento binário é o caso mais extremo – é necessário para simplificar o mundo, a fim de começar a entendê-lo. Mas o uso dessas categorias pode, então, não só impedir a busca pelo entendimento, – agindo como condicionamentos – mas também levar a tensões improdutivas entre aqueles que aderem a uma das posições e são, portanto, contrários ao(s) outro(s). Infelizmente, a solução para esse paradoxo raramente é fácil ou livre de conflitos: com muita frequência, uma vez que territórios são demarcados, as pessoas associadas a eles sentem a necessidade de defendê-los – se não atacar outros. A quebra do binário é continuamente necessária. (CLOKE e JOHNSTON, 2005, p. 5.
Teorias pós-estruturalistas e estudos de gênero têm demostrado que os pares opositivos binários implicam em uma hierarquia na qual um termo da oposição é sempre dominante. Na verdade, segundo Ashcroft et al. (2006, p. 18)p. 18, a própria oposição binária existiria para confirmar tal domínio, visto que, qualquer atividade ou estado que não caiba nas oposições binárias, se torna sujeito à repressão ou instância ritual. Entretanto, apesar de as categorias binárias sugerirem a existência de espaços associados a diferentes 44
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tipos de atividades, muitas vezes delimitadas por fronteiras, tais limites são frequentemente mais turvos que as dicotomias em geral apresentam. Ao tentar superar as dicotomias no trato do espaço, Soja (1996) criou, a partir da leitura de Lefebvre, a ideia de uma “trialética do espaço” que concebe o espaço a partir da articulação de três elementos. O primeiro elemento é chamado de Firstspace, que está preocupado com o lugar físico como espaço percebido. Soja o define como uma interpretação imediata das formas de ocupação da superfície da Terra, da arquitetura e das geografias resultantes da construção do meio ambiente humano, através das mensurações empíricas (NADER, 2013, p. 14). O segundo, chamado Secondspace, diz respeito ao que o autor chama de espaço concebido, e seria de acordo com Soja (2000, p. 18), “mais preocupados com as imagens e representações de espacialidade, com os processos de pensamento que presumidamente moldam ambas as geografias humanas materiais e o desenvolvimento de uma imaginação geográfica”. Segundo Soja, essa categoria estaria ligada ao controle da produção do conhecimento espacial. O autor afirma que [...] em vez de responder à crescente virada espacial como um desafio profundo para desenvolver um novo modo de entender a espacialidade da vida humana (geografia humana em seu sentido mais amplo), que é proporcional em escopo e visão crítica à historicidade e sociabilidade intrínsecas à vida, muitos geógrafos, satisfeitos com a crescente atenção à sua disciplina, simplesmente despejam o vinho novo nos mesmos velhos recipientes, reforçando, assim, as limitações e ilusões do dualismo Firstspace-secondspace. (Soja, 2000, p. 119).
Dessa forma, Soja (1996, p. 60) vai buscar em Lefebvre elementos críticos para expandir criativamente a dialética tal como apresentada em Hegel e Marx. A “trialética” se diferencia da dialética (tese-antítese-tese) e se constitui a partir da relação entre
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dois elementos que, em sua dinâmica, origina um outro, distinto, com caráter qualitativamente superior aos elementos originais. A categoria Thirdspace é um esforço de Soja em desconstruir e reconstituir os binários e produzir uma alternativa aberta. Não obstante a abordagem do Thirdspace apresentar a necessidade de apontar e superar as oposições binárias, e, assim, pensar o espaço em sua multiplicidade, a proposta de Soja apresenta alguns problemas. A nosso ver, a sua terceira categoria não teria força para ser o “motor” da dinâmica. Logo de saída, apontamos a indefinição lógica de suas categorias. Tal indefinição tem como consequência o fato de Soja não explicitar o funcionamento da dinâmica trialética, nem explicar os mecanismos de superação das contradições e da dialética. Soja, na tentativa de propor um novo status para espaço, permanece atado à epistemologia vigente, sem perspectivas significativas de avanço significativos. Por exemplo, Camp (2002, p. 3) aponta uma série de problemas nas suas categorias devido ao fato de os limites entre uma e outra colapsarem quando a questão de poder entra em jogo. A partir das colocações de Camp, podemos evidenciar como, na leitura de Soja, surge uma outra dicotomia: um espaço de dominação e um de resistência, constituindo outro par opositivo: Thirdspace interessa aos teóricos devido à possibilidade de abertura criativa inerente a ele, especialmente na resistência às estruturas de poder opressivas, associadas às ideologias de Secondspace. [...] A articulação de Soja de Thirdspace, como a de Lefebvre, centra-se nesta dimensão como um espaço de resistência, como “politicamente carregada”. [...] Eles são os espaços escolhidos para a luta, libertação e emancipação. (CAMP, 2002, p. 65).
Costa (2013, p. 12), em uma abordagem mais dura do que a nossa, afirma que termo Thirdspace sugere menos um conceito e mais um rótulo, portanto sem o conteúdo científico e teórico necessário ao avanço do conhecimento sobre os processos socioespaciais. 46
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Tal dificuldade em ultrapassar uma visão permeada por oposições binárias nos leva à questão dos híbridos7, como foi colocada por Bruno Latour (1994). Segundo o autor, a maioria das abordagens científicas são marcadas por um corte radical entre Natureza e Sociedade, Sujeito e Objeto como “zonas ontológicas completamente distintas”. Tais abordagens são constituídas pelo que o autor (1994, p. 20) denomina “processo de purificação”. Justamente por ser o exercício de distinguir e isolar os componentes do objeto em disciplinas estanques, estabelecidas através de zonas ontológicas inteiramente distintas (LATOUR, 1994, p. 16), o processo de purificação operaria pela proliferação de opostos binários. Esse processo se constitui através de uma ruptura entre o polo da natureza (as coisas em si) e o polo da sociedade e do sujeito (os homens), criando, por “tradução”, misturas entre gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura, e que não se enquadram em uma ou outra categoria binária explicativa da realidade. Essa natureza híbrida sugere que eles se originam em um nível mais profundo que o nível “polarizado” produzido pelo trabalho de purificação. Para ilustrar tal constituição híbrida, Latour (1994, p. 115) propõe uma pergunta envolvendo um par de conceitos opositivos: uma ferrovia é local ou global? Nem uma coisa nem outra, responde o autor: é local em cada ponto, já que há sempre travessias, ferroviários, algumas vezes estações e máquinas para venda automática de bilhetes, mas é também global uma vez que pode transportar a pessoas de Madri a Berlim. O processo de purificação origina entidades, seres separados, e ignora os novos objetos que são simultaneamente naturais e culturais. Os híbridos colocam em xeque a ilusão moderna de que é possível isolar o domínio da natureza, das coisas inatas, do domínio da 7
É interessante registrar que a proliferação dos híbridos se deu de tal forma que Latour, em uma entrevista, afirmou que “hoje eu não utilizaria mais o termo híbrido, pois, a rigor, só há híbridos, em toda parte” (Latour, 2004, p. 406). Atualmente, o autor utiliza também o termo “quase-objetos” para se referir aos híbridos.
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política, da ação humana (LATOUR, 2004, p. 397). Os híbridos “[...] não ocupam nem a posição de objetos prevista para eles na Constituição, nem a de sujeitos, e que é impossível entalar na posição mediana que faria deles uma simples mistura de coisa natural e de símbolo social” (LATOUR, 1994, p. 73). Um bom exemplo pode ser a emergência do que Silva (2006, p. 264-265) denomina “espaço híbrido”: “um espaço híbrido, portanto, é um espaço conceitual criado pela fusão das fronteiras entre os espaços físico e digital [...]. Ele é construído pela conexão da mobilidade e comunicação e materializado pelas redes sociais”. Sabemos que a autora não se referia a Latour quando elaborou sua ideia, entretanto, tal espaço carrega não só no nome o caráter híbrido ao qual Latour se refere, justamente por ser um espaço que se coloca “entre” os polos “real x virtual”, “espaço x lugar”, “objetivo x subjetivo”, “tecnologia (atores não-humanos) x atores humanos” etc. A própria tensão que explicitamos anteriormente (FRANCO, 2014; 2015), entre o fato de que esses novos entendimentos do espaço e da cartografia estão sendo facilitados por uma tecnologia apoiada por uma compreensão absoluta do espaço, é produto do processo de purificação apontado por Latour.
1.3 A semiótica e o espaço como linguagem Peirce (CP 2.227)8 define semiótica como uma ciência formal dos processos sígnicos. Conforme a perspectiva da semiótica, os processos de produção de sentido em uma mente inteligente se dariam a partir da ação dos signos; tal processo foi denominado por Peirce como semiose. A semiótica é considerada uma lógica justamente por buscar compreender como se configura o pensamento da “mente capaz de aprender com a experiência” (Silveira, 1991, p. 47). 8
Os textos dos Collected Papers de Charles S. Peirce serão citados conforme o padrão, ou seja, CP significa Collected Papers, o número antes do ponto significa o volume (2) e o número a seguir, o parágrafo.
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Segundo Santaella (2011, p. 1), a semiótica peirceana, por seu alto grau de abstração, possui uma abertura interdisciplinar, o que possibilita uma frutífera articulação desta com teorias relativas ao campo do saber no qual se está trabalhando. No nosso caso, especificamente, seria enriquecedor um diálogo com a Teoria Ator-Rede (CALLON et al., 1986; LATOUR, 1996; 2005) e seu esforço em superar oposições binárias a partir da ideia de rede. A Teoria Ator-Rede ou ANT pode ser compreendida como um conjunto de práticas que examinam como as relações entre ideias, pessoas, coisas, instituições etc. são criadas, mantidas ou modificadas ao longo do tempo, e sua proposta visa uma abordagem que não se limite ou não priorize o técnico nem o social, mas seja capaz de apreender a dinâmica não hierárquica e não linear que emerge de suas relações. A ANT foi definida por Law (2009, p. 145)C como uma semiótica da materialidade, que é simétrica em relação a humanos e não-humanos. Os estudos semióticos, apesar de apresentarem alguns pontos em comum, diversificam-se profundamente, dependendo da tradição de onde se originam (SILVEIRA, 1983). Especificamente, utilizaremos a semiótica de linhagem anglo-saxã, sistematizada por Charles S. Peirce. É de nosso conhecimento o uso da semiótica greimasiana por parte dos teóricos da ANT (AKRICH; LATOUR, 1992). Entretanto, partindo da leitura de alguns textos relativo às ANT9, fica claro o desconhecimento de Latour e dos demais teóricos da ANT a respeito da semiótica peirceana, a “teoria da semiose, ação do signo, de C. S. Peirce, processo dinâmico que se aplica a quaisquer entidades de quaisquer fontes” (SANTAELLA; LEMOS, 2010, p. 37), o que torna nosso esforço uma interessante contribuição para o enriquecimento de ambas as teorias. Dessa forma, diante da necessidade de se formular alternativas para pensar em como ordenamos o conhecimento para além das opo9
Isso pode ser observado, por exemplo, no seguinte trabalho: AKRICH, M; Latour; LATOUR, B. A Summary of a Convenient Vocabulary for the Semiotics of Humans and Non-Human Assemblies. In: BIJKER, W. E.; LAW, J. (ed.). Shaping technology, building society: Studies in sociotechnical change. Cambridge: MIT Press, 1992. p. 259-264.
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sições binárias, sugerimos que a articulação da Teoria Ator-Rede com a semiótica de Charles S. Peirce, aliada à Teoria do Umwelt, proposta pelo biólogo estoniano Jakob Johann von Uexküll, pode fornecer um interessante e sólido arcabouço para se pensar o espaço. Segundo Nöth (2013, p. 11), Peirce era um polímata, um pesquisador em ciências e seus interesses iam da química à metafísica. No centro do seu interesse estava a semiótica10. Peirce define semiótica como uma ciência formal dos processos sígnicos. Os processos de produção de sentido em uma mente inteligente se dariam, conforme a perspectiva da semiótica, a partir da ação dos signos. Tal processo foi denominado por Peirce de semiose. Peirce também esteve alerta para armadilhas do pensamento binário. Para ultrapassar o dualismo, adotou o sinequismo, ou a Teoria da Continuidade (NÖTH, 2011, p. 11): Ele (o Sinequismo) não deseja exterminar a concepção de duplicidade, nem pode qualquer um desses filosófos lunáticos que pregam cruzadas contra esta ou aquela concepção fundamental, encontrar o menor conforto nesta doutrina. Mas o dualismo no seu mais amplo e legítimo significado como a filosofia que realiza suas análises com um machado, deixando como elementos definitivos (derradeiros, finais), pedaços independentes de ser […]. (CP 7.570).
Santaella (2009, p. 268) afirma que no contexto do sinequismo, mente é sinônimo de continuidade, e no contexto lógico da semiótica, é sinônimo de semiose, que apreende as relações que uma mente estabelece ao pensar. Nesse caso, é importante ressaltar que o conceito de mente para Peirce é amplo e não se restringe somente ao domínio antropocêntrico. A lógica como semiótica, na proposta de Peirce, implica em uma estrutura triádica composta por signo, objeto e interpretante na qual o dualismo “sujeito-objeto” é superado. Em sua estrutura triádica, o signo consiste em representamen, objeto e interpretante. A coisa da qual o representamen ocupa 10
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Peirce era físico e químico de formação.
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o lugar, exerce na relação triádica do signo a função de objeto do representamen. Ela é o outro a que o representamen se refere, relata ou designa e que é um segundo, um outro para o representamen, que é considerado o primeiro da tríade. A ideia produzida na mente que interpreta a relação do representamen com seu objeto é um terceiro mediador da relação entre o representamen e seu objeto. Peirce denomina essa ideia interpretante do signo. Sendo assim, a estrutura do signo na teoria peirceana corresponde à maneira pela qual se “produz pensamento”, produz sentido. É importante ressaltar que a noção de signo para Peirce implica uma recursividade que aponta para a compreensão do objeto também como um signo, a partir da lógica triádica estabelecida na definição de signo. Cada ideia-interpretante constitui-se num novo representamen do objeto, possibilitando esclarecer cada vez mais as ideias-interpretantes que determina. Com Peirce, a natureza do signo cartográfico tem de ser entendida como triádica. O signo do mapa consiste primeiramente de um representamen, o mapa como ele está presente aos nossos olhos. Em segundo lugar, de um objeto ao qual ele se refere e que é grosseiramente o mundo geográfico, e, em terceiro lugar, o interpretante, quer dizer, a interpretação à qual ele dá origem. (NÖTH, 1998a, p. 123).
A semiose se constitui como esse processo de encadeamento sígnico. Segundo Santaella (1992, p. 187), é nas definições de signo de Peirce que o movimento lógico da semiose, da ação do signo, encontra expressão. Dessa forma, o signo faz a mediação de nosso acesso ao real, de forma que estamos inapelavelmente inseridos em um ambiente sígnico, que corresponderia em alguma medida à realidade: “(um) universo banhado, se não inteiramente feito de signos” (CP 5.449). A configuração triádica da semiótica peirceana fornece um substrato lógico que permite a superação de uma lógica binária,
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marcada por pares opositivos de maneira geral. Conforme afirmamos acima, o pensamento de Peirce é constituído a partir da superação de sujeitos e objetos, via concepção triádica de signo compreendido como um processo recursivo. Tal abordagem permite superar distinções binárias “por ampliar de maneira até desconcertante a noção de atores ou actantes para além do domínio humano, alcançando quaisquer entidades não-humanas e não individuais” (SANTAELLA; LEMOS, 2010, p. 28). Nöth (1998b, p. 63) afirma que desde Aristóteles, filósofos têm perseguido o projeto de encontrar um número limitado de categorias que fornecessem um modelo capaz de conter a multiplicidade dos fenômenos do mundo. Por exemplo, Aristóteles criou dez categorias; Kant elaborou 12. Peirce, na busca de compreender a natureza e variedade fundamental de todas as possíveis semioses (CP 5.488), elaborou uma engenhosa arquitetura alicerçada sistema exaustivo organizado em classes de relações que, segundo Santaella (1993), quando compreendidas à luz dos fundamentos filosóficos em que estão enraizados e não meras classificações stricto sensu, apresentam padrões que incluem aspectos epistemológicos do universo sígnico, tais como o problema da referência, a questão da objetividade, a análise lógica do significado etc. Tal arquitetura de Peirce se ampara em uma fenomenologia de três categorias universais que chamou de primeiridade, secundidade e terceiridade: Primeiridade é a categoria do sentimento imediato e presente das coisas, sem nenhuma relação com outros fenômenos do mundo. […] É a categoria do sentimento sem reflexão, da mera possibilidade, da liberdade, do imediato, da qualidade. […] Secundidade começa quando um fenômeno primeiro é relacionado a um segundo fenômeno qualquer (CP, 1.356-359). É a categoria da comparação, da ação, do fato, da realidade e da experiência no tempo e no espaço: Ela nos aparece em fatos tais como o outro, a relação, compulsão, efeito, dependência, independência, negação, ocorrência, realidade, resultado. Terceiridade é a categoria que
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relaciona um fenômeno segundo a um terceiro (CP, 1.337). É a categoria da mediação, do hábito, da memória, da continuidade, da síntese, da comunicação, da representação, da semiose e dos signos. (NÖTH, 1998b, p. 63).
Se verificarmos especificamente a fenomenologia da arquitetura filosófica peirceana, é possível observar que não se trata de negar os dualismos. Na verdade, Peirce situa o raciocínio binário em sua lógica como um tipo menos elaborado de raciocínio (diádico/ Secundidade). Segundo Peirce (CP 5.90-5.91), não só a Terceiridade supõe e envolve as ideias de Secundidade e Primeiridade, mas nunca será possível achar qualquer Secundidade ou Primeiridade em um fenômeno que não seja acompanhado também por Terceiridade. Como podemos observar, a semiose se constitui um processo não dualista e contínuo. Nöth (1998b, p. 61) também afirma que o ponto de partida da teoria peirceana dos signos é o axioma de que as cognições, as ideias e até o homem são essencialmente entidades semióticas. Como um signo, uma ideia também se refere a outras ideias e objetos do mundo. Assim, é possível afirmar que signo é tudo aquilo de que lançamos mão (consciente ou inconscientemente) para produzir sentido acerca daquilo que nos rodeia. Se até o pensamento é um signo, não seria possível o conhecimento sem a mediação sígnica. Do ponto de vista semiótico, o acesso à realidade é sempre mediado por signos. O signo é fundamentalmente um processo de mediação. O signo faz a mediação entre objeto e interpretante, assim como o interpretante é uma mediação entre o signo e um outro signo futuro. O signo se coloca entre o sujeito e a realidade, estabelecendo uma mediação que proporciona sentido e entendimento. Dessa maneira, propomos uma superação epistemológica da dicotomia subjetivo/objetivo que, como vimos, sustenta a dicotomia espaço e lugar, a partir da ideia de semiose. Para Peirce (CP 2.228), o signo representa o objeto em algum aspecto ou capacidade. Dessa forma, ele sempre possui algum grau CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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de opacidade, não mostrando o objeto “tal qual ele é”. Afinal de contas, se fosse assim, não precisaríamos do signo. A coerência dos signos com o mundo real é o que possibilita, entre outras coisas, nossa permanência enquanto espécie. Ao ressaltar a opacidade do signo, Vieira (2007, p. 101) afirma que os signos não “espelham a realidade”, à medida que são, na verdade, “mapas isomórficos entre a organização da realidade e a organização cerebral, mental, do sistema cognitivo”. Dada a compatibilidade entre o conceito de signo peirceano e o conceito de Umwelt, estabeleceremos neste ponto a relação entre o processo de mapeamento isomórfico do signo e o conceito de Umwelt, tal como proposto por Jakob Von Uexküll e desenvolvido posteriormente por seu filho, Thure Von Uexküll. Nossa hipótese é a de que o espaço não só pode, como deve ser pensado a partir da noção de “mediação”, proporcionada pela leitura semiótica do conceito de Umwelt. Realizaremos uma breve incursão metafísica11 com o intuito de demonstrar que a maneira pela qual percebemos o espaço é mediada signicamente. Umwelt designa a forma como uma determinada espécie interage com o seu ambiente. Para J. V. Uexküll, a sobrevivência dos seres vivos ocorre por um processo de adaptação ao ambiente no qual estão inseridos. O autor parte da seguinte indagação: Se estamos diante de um campo coberto de flores, cheios de abelhas zumbindo, borboletas batendo as asas, libélulas voando, gafanhotos saltando sobre lâminas de grama, ratos correndo, e caracóis rastejando, estaríamos inclinados a nos perguntar a questão não intencional: Será que o campo apresenta a mesma visão aos olhos de tantos animais como para os nossos? (UEXKÜLL, J. V., 1992, p. 319).
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A metafísica é a ciência que, na arquitetura do sistema de pensamento peirceano, materializada em sua classificação das ciências, investiga a natureza do mundo objetivo (Santaella, 2009b, p. 263).
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Assim, um organismo percebe o mundo a partir de seu aparato cognitivo sensório e “circunscreve um espaço no continuum da matéria-prima informacional de acordo com as codificações internas de interesse da espécie. Esse espaço circunscrito funciona como signo desse mundo” (PINTO, 2002, p. 26). Uma representação da realidade desenvolvida na mente de qualquer espécie animal, inclusive do Homo sapiens, o Umwelt é uma espécie de mapa da realidade, uma forma de referência coerente com os objetos e fenômenos existentes no mundo real. Esse mapa da realidade, ou representação interna que o organismo faz de seu Umwelt, recebe o nome de Innenwelt (UEXKÜLL, T. v., 1992; UEXKÜLL et al., 1993). Entretanto, tal processo “não é a representação de um mundo pré-dado por uma mente pré-dada, mas sim a promulgação de um mundo e uma mente com base em uma história da variedade de ações que um ser no mundo executa” (Varela et al., 2003, p. 32). O Umwelt emerge através da experiência do mundo, mediada pelas capacidades perceptivas dos organismos. A noção de Umwelt, aliada à noção de signo, é bastante relevante para compreendermos como processos culturais e tecnológicos podem alterar nossas percepções. O signo se coloca entre o intérprete e a realidade, estabelecendo uma mediação que proporciona sentido e entendimento. As coisas existem no mundo real independente de nós. Convido o leitor a fazer um exercício que irá simplificar essa noção: tente pensar em algo que você não conheça. Veja bem, conhecemos sem precisarmos experienciar empiricamente. Por exemplo, conheço o Iraque mesmo sem nunca ter estado lá. Na verdade, não podemos exemplificar algo que não conhecemos. O simples fato de imaginar algo, já traz esse algo como objeto do conhecimento12. Conforme afirma Pinto,
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Em um artigo publicado em 1868, “Questions Concerning Certain Faculties Claimed for Man”, Peirce (CP 5.213-263) chega a quatro conclusões: (1) que todo conhecimento interno é derivado de uma inferência hipotética sobre o mundo externo (não temos poder de introspecção); (2) que toda cognição é determinada por outras anteriores; (3) que não podemos pensar sem signos e (4) que não há uma concepção do que é incognoscível.
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[...] para que eu conheça algo, é necessário que haja representação, isto é, para que haja objetos é preciso haver signos. Minha relação com qualquer objeto é já uma relação sígnica. Ao se ocupar dos signos, a semiótica ocupa-se do objeto, e nisso está sua objetividade. (PINTO, 2002, p. 18).
Ou seja, a realidade existe13 e independe do fato de ser vista ou percebida por uma mente pensante. Embora nossa discussão até aqui tenha se configurado em termos do problema da essência do conhecimento, não é nosso interesse empreender uma profunda digressão sobre o tema14. Ao problematizarmos essas questões, nosso intento é apontar a importância, para o nosso tema, da noção de signo, tal como desenvolvida por Peirce. Conforme já afirmamos, nosso acesso à realidade é sempre mediado por signos. Para Peirce, o real se configura como “aquilo cujos personagens são independentes do que qualquer um possa pensar que eles sejam” (CP 5.405). Existem coisas Reais, cujos personagens são totalmente independentes de nossas opiniões sobre eles; esses Reais afetam nossos sentidos de acordo com leis regulares, e, ainda que nossas sensações sejam tão diferentes quanto o são nossas relações com os objetos, ainda, aproveitando-se das leis da percepção, nós podemos verificar através do raciocínio como as coisas realmente e verdadeiramente o são. (CP 5.384).
Dessa forma, uma questão que se coloca seria a compreensão das condições e a extensão do conhecimento humano e a realidade. Conforme afirma Merrell (1996, p. 148), a pergunta não é o que é o mundo real, mas qual é o nosso mundo semioticamente real. Sabemos que a realidade é muito mais do que nossos sentidos são capazes de apreender. Não é à toa que desen13
Nossa discussão parte de um framework pragmaticista; dessa maneira, não questionaremos metafisicamente a existência da realidade. 14 Para um aprofundamento sobre a questão do real em Peirce ver: FRANCO, Juliana Rocha; BORGES, Priscila M. O real na filosofia de Charles S. Peirce. TECCOGS: Revista Digital de Tecnologias Cognitivas, v. 1, p. 66 - 91, 2015.
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volvemos um sem-número de ferramentas que nos possibilitam “enxergar” para além de nossos sentidos como, por exemplo, telescópios, microscópios etc. Os seres humanos têm expandido seu Umwelt ao longo do tempo e através da cultura. Usar lentes para ampliar o alcance de nossa visão ou raios-X, por exemplo, efetivamente possibilitam o acesso a informações que somente com nossos sentidos não poderíamos acessar. Os avanços tecnológicos e a ciência moderna possibilitaram uma enorme expansão de nosso Umwelt. Souza afirma que [...] o processo evolutivo humano desligou-se do âmbito biológico puro e encontra-se hoje inserido no âmbito da “cultura”. A espécie é dotada de uma capacidade criativa, comunicativa e transformadora que lhe foi permitida através do desenvolvimento biológico de seu cérebro, de sua postura ereta, de seu polegar opositor (o que lhe permite agarrar com precisão os utensílios, escrever, pintar...) e de suas cordas vocais capazes de emitir sons precisamente articulados; e que continuou seu processo adaptativo pela organização/desorganização de seu ambiente próximo imediato, transformando-o. (SOUZA, 2001, p. 18).
A onipresença da informática em nossas vidas propicia o contínuo processo de dilatação do Umwelt humano. Santaella (2003, p. 224) afirma que, sejam quais forem as tecnologias da linguagem, são todas elas próteses, que não só estendem ou amplificam os cinco sentidos de nosso corpo, como também, através dessas extensões, produzem, reproduzem e processam signos que aumentam a memória e a cognição de nossos cérebros. A partir da semiótica de Peirce, é possível afirmar que o significado é aquilo que é construído e não aquilo que está dado. Dessa forma, é importante ressaltar que através desse ponto de vista, a linguagem não é só um instrumento de representação e o espaço não é algo absoluto, ambos são processos sígnicos. Conforme J. Uexküll (2010, p. 70), “não há espaço independente dos sujeitos”. Nesse caso, a experiência espacial seria constituída, então, por meio CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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de operações de significação nas quais os elementos que compõem o espaço são significados. Ao enfatizar o espaço como produto de uma semiose específica, Thure von Uexküll afirma que: O “Espaço” é uma abstração que a mente humana, começando a assumir o papel dominante por volta do segundo ano de vida, compõe como um esquema de orientação para nossa imaginação. Isso cria assim um “receptáculo” em que armazenamos objetos ausentes para manipulação imaginária. (UEXKÜLL, 2007, p. 45).
Segundo Merrell (1996, p. 156), logo após a virada do século XX, certos matemáticos, mais notavelmente Henri Poincaré, ressaltaram que nossas noções espaciais adultas não são imanentes em nossa constituição biopsicológica, e que nossa experiência não necessariamente prova que o espaço é tridimensional; o fato de o espaço ser assim percebido tem sido meramente uma conveniência à qual nos tornamos acostumados. A ênfase no realismo peirceano permite compreender que as transformações adaptativas na percepção de espaço (e tempo) das diversas espécies e as construções semióticas da espécie humana, como signos, se relacionam com os diversos objetos desvelados, por exemplo, pela física, justamente por permitir reconhecer realidade veiculada pelo signo sem negar a realidade em si mesma. Pensar o espaço a partir de tal perspectiva possibilita em um só golpe, escapar da subordinação do ser à linguagem, que marcou a Virada Linguística do século XX e da ideia construtivista de que o mundo está contido dentro de nós (BARAD, 2003, p. 801) e reconhecer que há dimensões espaciais dadas, que existem à revelia da nossa percepção (ou de outras espécies). Ou seja, o espaço, como signo, se configura como tecido vivo “nas” e “das” relações sociais e tanto o “espaço absoluto” quanto o “espaço relacional ou vivido” são produto de investimentos simbólicos.
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Semioticamente, isso é possível de ser visualizado na divisão dos objetos. Segundo Peirce, a relação entre objeto imediato e realidade implica [...] operar uma distinção entre a verdadeira concepção de uma coisa e a própria coisa [...] e considerar apenas uma e a mesma coisa apenas sob dois pontos de vista diferentes, pois o objeto imediato de pensamento em um juízo verdadeiro é a realidade. O realista acreditará, portanto, na objetividade de todas as concepções necessárias: espaço, tempo, relação, causa e semelhanças. (CP 8.17).
Nesse caso, a experiência espacial seria constituída, então, por meio de operações de significação nas quais os elementos que compõem o espaço são significados em processos de semioses que se transformam e diversificam-se ao longo do tempo e se tornam (evolutivamente) cada vez mais precisas, promovendo o alargamento de nosso Umwelt. Conforme afirmamos, é possível perceber nessa atividade semiótica (e em qualquer outra) a incidência das três categorias fenomenológicas, que agenciam modos diversos de perceber e criar sentidos sobre o mundo. Dentro desse contexto, a Primeiridade peirceana, apreenderia, conforme afirmam Merrel e Queiroz (2008, p. 291), “a multiplicidade de tempos e espaços possíveis, cada um dos quais habitado por seu próprio conjunto de entidades”. Já o mundo da Secundidade é o mundo que percebemos como “real” (MERREL; QUEIROZ, 2008, p. 291) o espaço experimentado e finito no qual “existimos”. Já as teorias e generalizações sobre esse espaço seriam abarcadas pela Terceiridade na qual, nas palavras de Peirce (CP 5.530), o “espaço é, assim, verdadeiramente geral, e ainda é, por assim dizer, nada, mas a maneira em que os corpos reais comportam-se”. Em tal perspectiva, tanto as tecnologias, o espaço, máquinas e seres humanos são vistos como signos em processo. A abordagem semiótica de Peirce é profícua porque permite justamente lançar um olhar para a ecologia midiática da qual estamos tratando e consiCARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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derar a rede de atores (dispositivos tecnológicos, sujeitos, contexto, espaço etc.) como signos de um grande processo semiósico. É uma forma de pensar o espaço marcada pelo movimento da semiose, que se constitui como uma rede que, segundo Santaella (1992b), existe no tempo. A questão do processo semiósico é importante porque, além de nos mostrar que a experiência espacial vem acompanhada de uma dimensão temporal, permite uma abordagem amparada por mecanismos conceituais explicativos lógicos (SANTAELLA, 1992b; COLAPIETRO, 1993; REYNOLDS, 2002; GABBAY, 2004). O espaço torna-se dinâmico através do movimento processual da dinâmica da semiose que ocorre no tempo.
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CAPÍTULO 2
MAPAS E A RAZÃO CARTOGRÁFICA
2.1 Razão cartográfica e mapeamento O ato de mapear, representar e comunicar conhecimento espacial é uma atividade presente de alguma maneira em quase todas as sociedades humanas. Santos (2002, p. 27) nos lembra de que “inexiste qualquer referência a sociedades que dispense o uso da categoria ‘espaço’ ou de referências derivadas de tal experiência”. Segundo Harley e Woodward (1998, p. XVI), as representações gráficas, que facilitam entendimentos espaciais de coisas, conceitos, condições, processos ou eventos no mundo humano, remontam ao paleolítico superior. Um bom exemplo pode ser o mapa de Bedolina (Figura 2.1), um petróglifo em Valcamonica, nos alpes italianos, datado de cerca de 2.500 a.C. Outro exemplo possível é o mapa do mundo da Mesopotâmia (Figura 2.2). Datado de cerca de 700-500 a.C., feito em argila e escrito em cuneiforme, ele mostra a Babilônia ao centro, a área central é cercada por um canal circular chamado de “água salgada” (marratu), e do lado exterior do mar estão assinaladas regiões, descritas pelo texto acima do desenho15.
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Para mais informações, ver: HOROWITZ, W. The Babylonian map of the world. Iraq, v. 50, p. 147-165, 1988.
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Figura 2.1 - Vista da pedra do mapa de Bedolina com o traçado das gravações realizado por Cristina Turconi. Fotografia, 1996. (Valcamonica. Cooperativa Archeologica Le Orme dell’Uomo) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Figura 2.2 - Mapa do Mundo - Babilônia, provavelmente de Sippar, sul do Iraque. Cerca de 700-500 a.C. (British Museum, London) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
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Segundo Ljungberg (2004, p. 413), esse mapa em argila (Figura 2.2) mostra que, mesmo em tempos muito antigos, as pessoas parecem ter sido conscientes das relações topológicas, embora elas usassem sistemas de dimensionamento diferentes dos que usamos hoje. Ljungberg (2004, p. 415) também afirma que a espacialidade parece ser fundamental para todas as culturas, não só como um meio de orientação, mas também como um pré-requisito para a ordenação do conhecimento e experiência. Se pensarmos o conhecimento cartográfico como um produto social, mapas podem ser compreendidos como mediadores entre diferentes visões do mundo. Mapas são artefatos sofisticados, que podem ser lidos tanto pelo que revelam das culturas que os produzem quanto a partir da informação geográfica que representam. Cosgrove (2005a) afirma que mapas ou representações espaciais produzidas por indivíduos comuns permitem insights não apenas em percepções humanas e relações afetivas com o espaço, mas também em aspectos criativos e estéticos da espacialidade humana. Narrativas espaciais que se referem a um determinado território podem assumir as mais variadas formas, como, por exemplo, as cartas de navegação da Micronésia, conhecidas como Marshall Islands stick chart (Figura 2.3). As Marshall Islands stick chart são um complexo sistema de conhecimento navegacional e de mapeamento de ondas do oceano em três dimensões. São feitos com varas e conchas costuradas com fibra de coco, sendo que as varas representam as correntes oceânicas e as conchas representam ilhas. Ao ressaltar a complexidade de tais construções, Turnbull (1991, p. 35) afirma que elas não apenas incorporam o conhecimento das relações espaciais das ilhas do Pacífico, mas como todos os sistemas de conhecimento, constitui-se como um sistema espacial, no sentido de que se tem uma arquitetura ou estrutura. Os elementos do sistema são acessados através de uma matriz tridimensional dinâmica, assim como são definidos ou encaixados um dentro do outro. Tais narrativas podem ser pensadas com signos que conectam espacial ou cognitivamente elementos distintos e distantes. CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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Figura 2.3 - Marshall Islands stick chart, Meddo type. Majuro, Marshall Islands: 192-?. (Library of Congress Geography and Map Division,Washington, D.C.) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Outro exemplo relevante são os mapas táteis esquimós, encontrados em 1880 por Gustav Holm16 (Figura 2.4), esculpidos em madeira pela população nativa do Ártico (Inuit)17. Geralmente nômades, os Inuit navegavam em caiaques ao longo da costa da Groenlândia. Vivendo em um ambiente úmido, frio e escuro, eles utilizaram a madeira para fazer mapas por ser durável e resistente à agua e umidade. Os mapas em relevo eram feitos para serem colocados dentro das luvas e lidos pelo tato, possibilitando examinar e identificar o relevo da costa, um ambiente marcado por geleiras, fiordes e ilhas, sem precisar congelar as mãos no frio ártico.
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Holm foi um dinamarquês que, em fins do século XIX, liderou uma expedição à costa Ammassalik do leste da Groelândia e visitou inúmeras comunidades Inuit que até então ainda não haviam entrado em contato com europeus. 17 Para mais informações ver: BAGROW, L. Eskimo maps. Imago Mundi, v. 5, p. 92-93, 1948; BOAS, F. The Central Eskimo. University of Nebraska Press, 1964.
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‘ Figura 2.4 – Mapas de Madeira dos Inuit. In: GULLØV, Hans Christian. Østgrønlands kartografi og xylografi Fonte: JAKOBSEN, Bjarne Holm; BÖCHER, Jens; NIELSEN, Niels et al. v. 6. Atlas over Danmark: Topografisk Atlas Grønland. Det Kongelige Danske Geografiske Selskab, 2000, p. 71
Mapas simultaneamente refletem e reforçam a visão de mundo e o pensamento espacial de uma cultura. A diversidade de mapas aponta para a heterogeneidade de concepções de espaço e as complexas relações entre as pessoas e os espaços, bem como as formas de cognição espacial. Assim, elaboração das práticas espaciais necessariamente envolve modificações na forma como representamos o espaço. Harley (1988, p. 1) afirma que “provavelmente houve sempre um impulso de mapeamento na consciência humana, e a expe-
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riência de mapeamento – que envolve o mapeamento cognitivo do espaço – sem dúvida, existia muito antes dos artefatos físicos que hoje chamamos de mapas”. Dessa forma, uma questão a ser colocada é: diante da diversidade de concepções de espaço, como os mapas se desenvolveram até atingir sua forma atual? Denis Wood (2010, p. 22-24), ao argumentar que os mapas modernos não são muito antigos (500 ou 600 anos, no máximo, segundo o autor), enfatiza como as convenções de mapeamento são culturalmente construídas. Do ponto de vista da cartossemiótica, mapas são sistemas semióticos híbridos (NÖTH, 2012, p. 4). Mapas podem ser pensados como um um tipo de representação diagramática. Segundo o autor, nem todo tipo de diagrama é um mapa: “representações fotográficas, figurativas ou descritivas dos territórios, como na fotografia de satélite, arte de paisagem, ou na literatura de viagem, não são mapas” (NÖTH, 2012, p. 2). Conforme afirma o autor, a característica que distingue os mapas geográficos de outros diagramas é que eles, evidentemente, apresentam um território: Não só os edifícios e ruas de uma cidade, a superfície de uma província, um país, um continente, ou toda a terra, mas também as superfícies das águas e oceanos (como em hidrografia e oceanografia), a lua (como em selenografia), estrelas e galáxias (em mapas astronômicos) são territórios, no sentido amplo da cartografia. Em contrapartida, mapas mentais, que não representam territórios geográficos, são apenas mapas em um sentido metafórico. (NÖTH, 2012, p. 2).
Entretanto, se pensarmos do ponto de vista de sua produção, a história nos mostra que, nos últimos quinhentos anos, os mapas têm se tornado cada vez mais indiciais à medida que se enfatiza uma “conexão dinâmica” entre o mapa e o território mapeado. Um índice para Peirce é um signo, ou representação, que se refere ao seu objeto não tanto por causa de qualquer semelhança ou analogia com ele, nem porque esteja associado com as características gerais que tal objeto possua, e sim porque está em conexão dinâmica (incluindo a conexão espacial) com o objeto individual, por um lado, 66
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e com os sentidos ou a memória da pessoa a quem ele serve como signo, por outro lado (PEIRCE, CP. 2.305). Essa “conexão dinâmica” se dá porque um mapa é construído com a preocupação de representar a ideia do “onde”. Ljungberg (2004, p. 425) afirma que os mapas são interpretados indicialmente quando as propriedades indiciais, como sua relação espaço-temporal ou causal com seus objetos, estão em primeiro plano. A relação causal entre um mapa e o território que ele representa é determinada pelo próprio processo de produção de mapas; este processo, por sua vez, é determinado pela relação que o mapa, como signo, mantém com seu objeto dinâmico, no caso, o território representado. O que percebemos é que os mapas modernos foram deixando a imaginativa vagueza medieval18, na qual “os mapas seriam baseados na experiência e na apreensão tátil do espaço e acentuariam as qualidades sensoriais, e não racionais e objetivas, da ordem espacial” (HARVEY, 2001, p. 222). Na verdade, os mapas caminharam na direção oposta, em busca de uma objetividade estabelecida pela sintaxe de uma “gramática do espaço”, instituída naquele momento a partir do que geógrafos, como Pickles (2004) e Monmonier (1996), apontaram ser uma “razão cartográfica ocidental”, que se tornou hegemônica e convencional nos últimos quinhentos anos. No Capítulo 1, vimos como o processo de racionalização e objetivação do espaço se materializou na tradição cartográfica moderna, que se institucionalizou como discurso dominante até os dias de hoje e que detém o monopólio das representações e interpretações do espaço geográfico. O que se constrói nesse período é uma cartografia hegemônica concebida como instrumento que localiza áreas ou pontos na superfície terrestre com exatidão e que possibilita a realização de um deslocamento eficiente, em um espaço uniforme, expressão de uma espacialidade específica. 18
Que poderia inclusive ser da ordem de um segundo, porém, tendendo mais para ser diagramática que indicial, à medida que, segundo Nöth (1998b), a iconicidade do diagrama está na noção das correspondências relacionais. Tais correspondências configuram uma iconicidade diagramática que possibilita um amplo leque de possíveis interpretantes para esses signos que, por sua vez, referem-se diferentemente aos seus possíveis objetos.
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Douglas Santos (2002) sintetiza os movimentos que possibilitaram a criação dessa espacialidade: Da terra fixa à construção de uma concepção de planeta móvel, girando em torno de si mesmo e do centro do Universo (o Sol), do mapa em TO19 ao mapa de Mercator, da Europa como centro do Universo à Europa como continente hegemônico (na parte de cima e ao centro dos mapas), da relação de suserania à propriedade privada da terra agrícola, dos caminhos à construção de estradas, dos feudos à retomada das cidades. (SANTOS, 2002, p. 43).
Para o autor, o que se observa é uma transformação radical na concepção ocidental de espaço e espacialidade fundada, inclusive, na apropriação e transformação generalizada de novos territórios, gerando novas concepções de espaço e tempo.
2.2 As centrais de cálculo e o mapa como dispositivo Latour (2000, p. 350-402), não por acaso, utiliza o exemplo da cartografia para apontar como os mecanismos envolvidos na produção de uma rede global de conhecimento científico investem-se de poder e autoridade para fazer reivindicações de verdade sobre o mundo e, desse modo, agir sobre ele. Ao narrar a história de Lapérouse, em fins do século XVIII, cujas viagens permitiram acumular conhecimento sobre o leste do Pacífico20, Latour mostra como “a geografia implícita dos nativos é explicitada pelos geógrafos; o conhecimento local dos selvagens se transforma em conhecimento universal dos cartógrafos” (Latour, 2000, p. 351). 19
Os mapas TO são mapas medievais do mundo conhecido até então. Eles têm esse nome porque são compostos de duas circunferências, uma externa na forma de um S e outra interna, dividida no meio, compondo uma letra T. Esses mapas são circulares e Jerusalém seu centro. 20 Jean-François de Lapérouse viajou, enviado por Luís XVI, para reunir informações que comprovassem que Sakhalin, no Pacífico, é uma ilha e não uma península.
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Em sua argumentação, o autor sugere que, naquele momento, toda uma rede de elementos tais como tecnologias de mapeamento, bússolas, sextantes, teodolitos, os sistemas de matemática, capitães do mar, reis, ofícios, marinheiros, tipos de madeira, velas latinas, dentre outros, articularam-se para permitir que, via práticas de levantamento, dados recolhidos em viagens fossem acumulados e se materializassem, via razão cartográfica, em mapas, pelas centrais de cálculo. As centrais de cálculo são os lugares nos quais as observações, dados recolhidos do real, são acumuladas, sintetizadas e analisadas. Oddone et al. (2000, p. 31) afirmam que esses centros são como nós de uma rede extensa e se tornam pontos de convergência de inscrições vindas de diferentes periferias. No nosso caso, a central de cálculo era o gabinete dos cartógrafos. A razão cartográfica se tornou um elemento fundamental para o processo de acumulação de conhecimento que permitiu aos exploradores trazer o mundo até ao gabinete (ou laboratório), convertendo-o em informações e dados que viabilizassem a centralização da informação especializada, permitindo que a confecção dos mapas se dissociasse da experiência do território: “ao codificarem tudo o que veem das terras em termos de longitude e latitude (dois números) e ao mandarem esse código de volta, a forma das terras por eles vistas pode ser redesenhada por aqueles que não as viram” (LATOUR, 2000, p. 363). Dessa forma, um mapa do Brasil produzido por cartógrafos holandeses pode ser compreendido por alguém que não seja brasileiro ou holandês. Os dados espaciais, codificados pela razão cartográfica, constituem a base científica da cartografia e suas convenções (escala, símbolos, projeção, perspectiva, latitude e longitude etc.), mecanismos utilizados para gerar informação cartográfica e contribuíram de forma determinante para o processo de construção dessa rede de conhecimento. Nas palavras de Latour, O minúsculo sistema de projeções é um ponto de passagem obrigatório para a imensa rede da geografia. […] Os centros CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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acabam por controlar o espaço e o tempo: eles desenham redes que se interligam nuns poucos pontos de passagem obrigatória. Uma vez que todos os traçados tenham sido não só escritos no papel, mas reescritos de forma geométrica e re-reescritos na forma de equação, não é de admirar que quem controla a geometria e a matemática seja capaz de intervir em quase todos os lugares. Quanto mais “abstrata” sua teoria, maior a sua capacidade de ocupar centros dentro de centros. (LATOUR, 2000, p. 349).
É importante ressaltar que esse processo promove um corte, uma separação entre tempo e espaço, ao dissociar a experiência do espaço da confecção do mapa. O deslocamento do saber sobre o espaço de suas configurações situadas geograficamente proporciona uma separação espaço temporal. Segundo Moores (2005, p. 38)0W, com o advento da modernidade, há uma “separação” radical de tempo e espaço em que cada um é “afastado” do lugar físico (isto é, a organização social de tempo e espaço é extraída a partir de localidades). Giddens afirma que esse processo cria o que ele chama de “espaço vazio”: O desenvolvimento de “espaço vazio” está ligado, sobretudo, a dois conjuntos de fatores: aqueles que permitem a representação do espaço sem referência a um lugar privilegiado que constitui um ponto de vista distinto; e aqueles que tornam possível a substituibilidade de diferentes unidades espaciais [...]. A separação de tempo e espaço e sua formação em dimensões “vazias” padronizadas atravessam as conexões entre atividade social e sua “incorporação” nas particularidades de contextos de presença. Instituições desincorporadas estendem amplamente o âmbito de aplicação do distanciamento tempo-espaço e, para ter este efeito, dependem de uma coordenação através do tempo e do espaço. (GIDDENS, 1990, p. 19-20).
O mapeamento, nesse contexto, é transformado em uma prática científica “universal” e mapas se tornariam o que Latour 70
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denomina “móveis imutáveis”: formas estáveis e transferíveis de conhecimento que são portáteis através do espaço e do tempo. Conforme afirmam Dodge et al. (2009, p. 15) a teoria e a práxis cartográfica são aparentemente imutáveis na natureza, pois disciplina seus praticantes e silencia outros conhecimentos de mapeamento local. O mundo pôde ser conhecido e representado a partir das centrais de cálculo e seu processamento dos dados. Além de não ser necessária a experiência física dos locais para conhecê-los, o conhecimento passa a ser algo que pode ser transportado para outros contextos. Conforme afirmamos, esse processo opera por uma separação do espaço e do tempo. A imutabilidade e mobilidade dos mapas possibilitaram o comércio e exploração de terras distantes, subsidiando o colonialismo e imperialismo ao permitir que o controle pudesse ser exercido de longe e conhecimentos sobre os territórios pudessem ser transportáveis globalmente. Nesse contexto, uma questão importante a ser ressaltada é a ligação entre poder e cartografia, que tem sido ressaltada por vários teóricos (PICKLES, 2004; HARLEY, 2005; WOOD, 2010). Em estreita relação com o poder, cartografias e mapas podem ser compreendidos como dispositivos no sentido que Foucault confere ao termo e seus desdobramentos no pensamento de Agamben. O termo “dispositivo” é uma noção essencial do pensamento de Foucault (AGAMBEN, 2009, p. 33). Uma espécie de conceito operativo de caráter geral, os dispositivos são, segundo Revel (2002, p. 24), os operadores materiais do poder. Ao promover uma genealogia do termo, Agamben nos mostra como este assume, na passagem dos gregos para os padres latinos, toda uma esfera semântica da oikonomia teológica (AGAMBEN, 2009, p. 38). Dessa maneira, o dispositivo poderia ser pensado como um “conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e os pensamentos dos homens”. Para o autor, CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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[Um] dispositivo é tudo que tem, de uma maneira ou de outra, a capacidade de capturar, de orientar, de determinar, de interceptar, de modelar, de controlar e de assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres vivos. (AGAMBEN, 2009, p. 31).
É possível estabelecer uma conexão entre o conceito de dispositivo como linguagem e a semiótica. Agamben (2009, p. 40) propõe uma “divisão do existente em dois grandes grupos ou classes: de um lado, os seres viventes (ou, as substâncias) e, de outro, os dispositivos em que estes são incessantemente capturados”. Essa divisão não é ontológica, mas definida em termos das relações de poder que são estabelecidas. Ao lado dos dispositivos, além das prisões, manicômios, fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas, já analisadas por Foucault, Agamben aponta, dentre várias coisas, a linguagem. Ou seja, signos que funcionam como dispositivos21. É importante destacar aqui a ligação dos signos, tomados como dispositivos, com o poder. Dessa forma, os mapas podem funcionar como dispositivos à medida que a cartografia determina, a partir de uma declaração oficial, o que o espaço é, e isso produz um efeito poderoso em nossa compreensão desse espaço. Mapas foram e ainda são de particular interesse para o poder do Estado, por causa da importância do espaço como território ou domínio, onde o poder do Estado é exercido. Por meio dos mapas é possível definir, delimitar, documentar e dominar o território e, por consequência, aumentar o poder do Estado. Dentro desse contexto, é possível afirmar que as centrais de cálculo surgem atreladas aos Estados modernos. Os mapas, que começaram a ser impressos em 1472, oferecem outro exemplo do modo pelo qual a comunicação por imagens foi facilitada com a possibilidade de repetição representada pelo prelo. [...] elas ofereciam aos leitores o 21
Em última instância, no contexto de uma leitura semiótica do dispositivo, é possível afirmar que todo dispositivo é um signo.
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mundo no papel e tornavam mais fácil do que antes, para grupos munidos desses documentos, controlar partes da Terra, independentemente de seu controle ser basicamente militar, político, econômico ou ideológico. (BRIGGS; BURKE, 2004, p. 47).
Durante vários séculos, mesmo com a invenção da imprensa de tipos móveis em meados do século XV e a adoção da técnica de xilogravura na produção de mapas, o que permitiu a impressão de grande número de exemplares a partir do original e maior distribuição, os mapas estiveram a serviço do poder. Para Marshall McLuhan, a invenção da tipografia forneceu a primeira commodity uniformemente passível de repetição, a primeira linha de montagem e a primeira produção em massa. Entretanto, o autor também ressalta que: No tempo de Fernando e Isabel e outros monarcas marítimos, mapas eram secretos, como novas descobertas eletrônicas hoje. Quando os capitães retornavam de suas viagens, todo esforço era feito por oficiais da coroa para obter os originais e cópias dos mapas feitos durante a viagem. O resultado foi um mercado negro lucrativo e mapas secretos eram amplamente comercializados. O tipo de mapa em questão nada tinha em comum com os projetados mais tarde, funcionando mais como diários de diferentes aventuras e experiências. Pois a percepção do espaço como uniforme e contínuo era ainda desconhecida para o cartógrafo medieval, cujos esforços se assemelhavam à arte não-objetiva moderna. (MCLUHAN, 1994, p. 157).
Destacando as relações que se constituíram entre os Estados nacionais modernos e a produção dos mapas, percebe-se nesse momento duas maneiras de os Estados lidarem com a distribuição dos mapas. Havia um forte controle da circulação dos mapas por parte dos Estados português e espanhol. Especificamente no caso português e brasileiro, a política colonial portuguesa de sigilo cartográfico então vigente restringia a produção e impressão de mapas, mantendo-os geralmente como manuscritos: CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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Espanha e Portugal, como os poderes dominantes, não tinham interesse nenhum em transmitir o conhecimento sobre suas colônias para inimigos reais e inimigos potenciais. Ambos controlavam com mão de ferro toda a impressão de mapas e preferiam mantê-los em forma manuscrita trancados a sete chaves. A França, Inglaterra e Holanda, com inveja das colônias e da riqueza do Novo Mundo, frequentemente publicavam mapas como um ato de guerra. (Curtis, 2002, p. 29).
A preeminência portuguesa na produção cartográfica foi perdida ao longo do século XVII, quando as “centrais de cálculo cartográficas” migraram para Amsterdam, centro comercial e financeiro na Europa naquele momento. No início do século XVII, as oficinas tipográficas e gabinetes de impressão holandeses constituíram o maior centro europeu de confecção dos mapas e livros. Estabeleceu-se um forte comércio de mapas nesse período e a cartografia holandesa se tornou conhecida pela beleza ornamental de seus mapas. Em 1569, o cartógrafo Gerardus Mercator, símbolo da cartografia flamenga e da razão cartográfica, apresentou o planisfério famoso pela projeção que leva o seu nome (Figura 2.5). A projeção de Mercator permitiu a projeção cilíndrica do globo terrestre, sobre uma carta plana. Além de revolucionar a cartografia da época, essa projeção, embora apresente distorções, habita nosso imaginário geográfico até os dias de hoje.
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Figura 2.5 - Mercator, Mapa do mundo - Nova et Aucta Orbis Terrae Descriptio ad Usum Navigatium Emendate, 1569 Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Um exemplo do profundo impacto da cartografia de Mercator como sistema simbólico foi estudado por Saarinen et al., (1996). Esses autores realizaram uma pesquisa pedindo a 2.488 alunos do primeiro ano para desenhar de memória um mapa do mundo, marcando os nomes dos países e outras características de interesse. O resultado da pesquisa apontou que a maioria das pessoas exagerava no tamanho de seu continente de origem e que todos os alunos superestimaram o tamanho da Europa e subestimaram o tamanho da África. Para os pesquisadores, esse “efeito de Mercator” é tão poderoso que supera o efeito etnocêntrico. Como resultado, na África, América do Sul e Austrália, até mesmo os desenhistas locais de mapas desenham seus próprios continentes menores do que o tamanho real dessas massas de terra. A partir do século XVIII, a consolidação do Estado-nação moderno como forma de organização política22 foi estabelecida sob o “princípio da territorialidade”, o que manteve os mapas como uma ferramenta de poder dos Estados sobre os territórios: 22
Para mais informações ver: HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1991.
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O princípio da Territoriedade torna-se também político, não mais naturalmente, mas, impondo-se como instrumento de dominação no seio da sociedade. Ele supõe que o poder político se exerce não mais contra (ou de viés) o controle direto dos homens e dos grupos, mas pela mediação do solo. Longe de ser natural, este aqui é também claramente instrumental e longe de ser a projeção geográfica de uma comunidade dada o é, tudo ao contrário, um meio de definir e de delimitar uma comunidade politicamente pertinente: longe de pertencer ao domínio do inato, ele leva em conta a convenção. (BADIE, 1995, p. 12).
Harley (2009, p. 4-5), ao mostrar que os mapas não são imagens isentas de contornos ideológicos, também ressalta a íntima relação entre os mapas e o poder institucionalizado, revelando como a história dos mapas está ligada ao surgimento do Estado-nação e dos direitos de propriedade, e sublinha a importância do mapa na ascensão do Estado moderno.
2.3 A expansão dos mapas Apesar do desejo dos Estados em conservar a informação para si, ela foi gradativamente sendo impressa e distribuída ao público. Percebemos uma progressiva distribuição dos mapas, em um lento processo que se intensificará nos séculos seguintes a ponto de eles se tornarem onipresentes na vida contemporânea. Atualmente somos diariamente confrontados com mapas dos mais variados tipos. Mas como chegamos a esse ponto de disseminação dos mapas em nosso cotidiano? Denis Wood afirma, provocativamente, que cerca de 90% de todos os mapas em papel foram feitos nos últimos cem anos: Ao final do século XIX estavam implantadas as práticas da cartografia moderna. Estados tinham instituições cartográficas que faziam levantamentos e produziam mapas topo-
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gráficos de seu território e de suas possessões coloniais; mapeamento estatístico era uma significativa ferramenta da burocracia e regulação social; e o uso e interpretação de mapas eram amplamente ensinados nas escolas. Cartografia era a profissão que abraçava essas práticas científicas, como a classificação, quantificação e instrumentação para garantir a veracidade de seus registros visuais e representações. (WOOD, 2013, p. 7).
Ao final do século XIX, com as possibilidades abertas pela reprodutibilidade técnica, novas técnicas de impressão e reprodução em larga escala tornaram possível a disseminação de mapas e globos. Ristow (1975, p. 77) sublinha como o surgimento da litografia foi especialmente significativo para a história e o desenvolvimento da cartografia. Antes do nascimento da litografia, no início do século XIX, a maioria dos mapas produzidos entre meados do século XVI e XIX era produzida por meio de gravação em placas de cobre e impressa em prensas manuais, uma técnica trabalhosa e um processo lento e caro. A litografia ofereceu uma maneira mais barata e rápida para reproduzir mapas e outras imagens. Em 1851, foi realizada a primeira “Grande Exposição dos Trabalhos da Indústria de Todas as Nações” em Londres – mais conhecido como “Grande Exposição”, o evento foi o primeiro de uma série de exposições de indústria e tecnologia que marcaram o século XIX. Para essa exposição, George Shove criou um mapa da cidade de Londres em uma luva feminina (Figura 2.6) mostrando além do Palácio de Cristal que sediou a exposição, outros destinos turísticos populares como o Museu Britânico e a Catedral de St. Paul.
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Figura 2.6 – Map of London created on a glove for the Great Exhibition, George Shove, 1851. (National Archives of the United Kingdom, London) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Além de antecipar a ideia dos nossos atuais mapas handheld via telefones celulares, o mapa de Shove é emblemático porque pode ser considerado uma metáfora para a ubiquidade dos mapas na nossa vida cotidiana, algo que se inicia na virada do século XIX para o século XX e se estende pelo século XXI. Desde o século XIX, temos sido cada vez mais inundados por mapas, das mais diversas formas. Nosso impulso cartográfico foi alimentado pela emergência de novas técnicas de produção e impressão, tornando o mapa um objeto presente no nosso cotidiano. O barateamento do processo de produção de mapas proporcionou uma expansão da cartografia. Ristow (1975, p. 77) afirma que isso foi especialmente visível nos Estados Unidos, onde o sistema de ferrovias em desenvolvimento, grande aumento da população e a marcha para o oeste demandavam informações cartográficas e mapas. Tal necessidade pode ser atestada pela imensa proliferação de mapas de estradas de ferro (rail-road maps)23 no século XIX (Figura 2.7). 23
Para mais informações sobre mapas de estrada de ferro, ver a seção da Biblioteca do Congresso americano sobre o assunto: .
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Figura 2.7 – Map of the proposed railroad trust companies of Massachusetts and their connections, 1870. (Library of Congress Geography and Map Division, Washington, D.C.) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
As estradas de ferro congregaram em torno de si uma nascente cultura da mobilidade. A propósito da produção de livros, Briggs e Burke (2004, p. 128) afirmam que uma literatura ferroviária se desenvolveu intensamente, principalmente na Europa. Livros e mapas para os cidadãos em mobilidade crescente. O surgimento de novas tecnologias facilitou a produção de grandes séries de mapas de baixo custo e a produção em fotolito e da impressora offset, no final do século XIX, proporcionaram a impressão de grandes tiragens a preços mais reduzidos ainda: A cartografia, assim como outros tipos de ilustração gráfica, foi profundamente afetada. Como resultado, cores lisas e variadas, padrões de área e símbolos coloridos tornaram-se cada vez mais comuns nos mapas depois de meados do século XIX. Logo técnicas fotomecânicas começaram a desempenhar um papel nesta tendência. Embora eles não tenham sido os únicos experimentadores com fotolitografia, cartógrafos na Austrália e na Inglaterra lideraram o proCARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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cesso de tornar a técnica bem-sucedida em 1860. Anteriormente a fotolitografia só conseguia reproduzir imagens de linha de forma satisfatória. (COOK, 2002, p. 143).
O barateamento da produção cartográfica ajudou o surgimento das “sociedades geográficas”, que foram de suma importância para o avanço da cartografia e também da geografia enquanto disciplina. Essas sociedades publicavam periódicos, extensas coleções de mapas topográficos e atlas (MORAES, 2002, p. 18-19). Outro fator que contribuiu para a proliferação cartográfica foi o nacionalismo do século XIX. Nesse momento, mapas foram extremamente importantes para a criação e difusão de um sentimento de nacionalismo. No século XIX, a geografia passou a ser uma disciplina ensinada na escola. As crianças aprendiam geografia fazendo seus próprios mapas, geralmente cópias de mapas disponíveis para eles em livros e atlas. Esse processo serviu para instruir e demarcar a forma da nação, bem como sua inserção em um espaço geopolítico. Podemos citar como exemplo, o clássico Atlas général Vidal-Lablache: histoire et géographie, de 1894. No Brasil, em 1868, foi publicado o “Atlas do Império do Brazil de Cândido Mendes de Almeida”24, considerado o primeiro atlas escolar brasileiro. Durante o século XIX e ao longo do século XX, gêneros de mapas inteiramente novos surgiram. Cosgrove (2005a, p. 28) ressalta que os mapas temáticos têm desempenhado um papel central na análise da geografia cultural e representação das distribuições de artefatos culturais e padrões de atividade cultural. Nesse momento surgem também os chamados mapas temáticos, que seguiam interesses estratégicos e comerciais, atendendo um público que consumia produtos cartográficos em números crescentes e desempenhando um papel importante na criação da cultura emergente do consumo. 24
Seguindo uma tradição do Brasil Colonial e Imperial de longos e explicativos títulos para documentos cartográficos, o nome completo do atlas é: Atlas do Imperio do Brazil comprehendendo as respectivas divisões administrativas, ecclesiasticas, eleitoraes e judiciarias: dedicado a Sua Magestade o Imperador o Senhor D. Pedro II, destinado à instrucção publica do Imperio, com especialidade á dos alumnos do Imperial Collegio de Pedro II. O atlas está disponível para download em: .
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Segundo Yorke e Margolies (1996, p. 14), a invenção e proliferação de novos meios de transporte (entre eles o automóvel e a produção em massa de bicicletas) e a mobilidade pessoal proporcionaram uma necessidade crescente de mapas pelo cidadão comum. Entre 1885 e 1905 ocorreu uma breve explosão dos mapas de bicicleta (Figura 2.8) nos Estados Unidos (AKERMAN, 2010, p. 164).
Figura 2.8 – Cycling Map of the Orange Riding District, one of three maps appearing on the foldout accompanying Barkman’s Road Book. 1886. (Museum and Gallery of Art of the New York Historical Society, New York) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Em torno desses mapas, incentivava-se toda uma cultura turística e a publicidade de produtos afins coexistia com os CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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caminhos a serem trilhados, indicando uma forte agenda comercial embutida nesses mapas (Figura 2.9). Hugill (1982, p. 328) ressalta as ideias de mobilidade e liberdade embutidas nesse discurso como ideais, ao afirmar que a bicicleta permitiu que muitos americanos percebessem tanto a meta de mobilidade individual quanto um senso de liberdade pessoal.
Figura 2.9 – Map of California roads for cyclers.1895. (Library of Congress Geography and Map Division, Washington, D.C.) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Como podemos observar, esses mapas são um prenúncio dos mapas rodoviários que viriam a seguir. Entre 1916 e 1929, o registro de automóveis privados pulou de 3,3 milhões para 23 milhões. Na primeira metade do século XX, impulsionados pela indústria auto-
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mobilística e a ascensão da cultura do automóvel, assistimos ao surgimento dos mapas de turismo e autoestradas (Figura 2.10). Akerman (2002, p. 175) denomina esse processo de cartografia promocional, na qual o mapa é usado para promover e anunciar os produtos e serviços de uma empresa. Esses mapas rodoviários promocionais são herdeiros dos mapas de estrada de ferro do século XIX e dos mapas para ciclistas. Até o final de 1920, empresas de petróleo, motor clubs e os governos estaduais haviam adotado a distribuição gratuita generalizada de mapas rodoviários como uma de suas principais ferramentas de marketing (AKERMAN, 2002, p. 175).
Figura 2.10 – Rand McNally Official 1925 Auto Trails Map Washington Oregon, 1925. (David Rumsey Map Collection, San Francisco, CA) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
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Entre os anos 1920 e 1960, mais de cinco bilhões de mapas
foram distribuídos em postos de gasolina dos Estados Unidos25. Para Cosgrove, esses mapas estimularam novas espacialidades e novas geografias: “não simplesmente os mapas de rotas gratuitos oferecidos pelas companhias de gasolina, mas as novas formas de ilustrar espaço” (COSGROVE, 2005b, p. 50). Os mapas promocionais entraram em declínio nos anos 1970. Além da crise do petróleo, preocupações sobre a poluição do ar, congestionamentos e a crítica social da expansão urbana e da destruição de bairros urbanos pela construção de vias expressas26 deixaram de incentivar essas iniciativas. Mas a presença dos mapas em nosso cotidiano já era indubitável. Segundo Cosgrove, a partir da década de 1930 até a década de 1950, tanto o Los Angeles Times quanto o San Francisco Examiner dedicaram páginas inteiras aos mapas pictóricos (2005b, p. 50). No cinema podemos citar o filme O Grande Ditador (1940), de Charles Chaplin, no qual há uma emblemática cena em que o personagem aparece manuseando ludicamente um globo terrestre, cuja manipulação representaria uma ilusão de dominação do mundo. E em 1942, podemos ver em Casablanca (Figura 2.11), na sequência de abertura, uma animação com mapas, imagens e voz off, uma explicação do contexto geopolítico da época, marcado pela Segunda Guerra Mundial.
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A designer e artista Paula Scher, ao explicar que os mapas “mentem”, lembra-se de seu primeiro contato com os roadmaps nos anos 1950: “Lembro-me de um exemplo ainda mais convincente do meu pai sobre como mapas mentem. Eu estava um pouco mais velha e estávamos fazendo uma road trip a partir de Washington, D.C. para Nova York. Meu pai tinha pegado um novo mapa da estrada em um posto Esso. Ele estava à procura de uma rota alternativa através de Baltimore. Meu pai se queixou de que o novo mapa tinha um destaque específico para estradas que continham postos Esso, com um amarelo mais grosso e brilhante, do que para outras estradas. Poderíamos supor que estas estradas destacadas eram rotas expressas através da cidade, mas não eram. Era uma distorção deliberada.” (Scher, 2011, p. 1). 26 Mais informações sobre a crítica social de expansão urbana e destruição de bairros urbanos pela construção de vias expressas em: BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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Figura 2.11 – Casablanca, Michael Curtiz, 1942. (Frames do filme) Fonte: acervo da autora
Nas décadas seguintes, o impacto do avanço tecnológico sobre a cartografia permitiu o armazenamento, acesso, manipulação e visualização de informação georreferenciada em computadores, como será abordado a seguir.
2.4 Mobilidade e georreferencialidade A compressão espaço-temporal e o rápido desenvolvimento de meios de transporte e comunicação possibilitaram nossa vida em uma cultura cada vez mais marcada pela mobilidade física e informacional. John Urry (2007, p. 6) propôs que as ciências sociais deveriam ser abordadas e conduzidas através de uma lente móvel, que se CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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conecta à análise de diferentes formas de viajar, transporte e comunicações. Seu conceito de mobilidade engloba tanto os movimentos em grande escala de pessoas, objetos, de capital e informações em todo o mundo, bem como os processos mais locais de transporte diário, movimentos através do espaço público e do curso das coisas materiais dentro da vida cotidiana. Para Santaella, a cultura da mobilidade que vivemos, garantida pela bem-sucedida convergência dos computadores com as telecomunicações, permite o surgimento de [...] territórios flutuantes, em que indivíduos frágeis encontram uma realidade porosa. Só pessoas fluidas, ambíguas, em estado de permanente devir, transformação e constante autotransgressão, podem se adaptar a esses territórios. Quando existe, o enraizamento só pode ser dinâmico, re-afirmado e reconstituído diariamente, num ato fundador, iniciático de estar de viagem, na estrada. (SANTAELLA, 2007, p. 17).
O que tem sido chamado de paradigma da mobilidade não é especificamente sobre a web, mas sua ênfase em espaços físicos e conectividade abriram espaço para uma nova maneira de pensar sobre a dicotomia virtual / real (Gordon; Silva, 2011, p. 9). Atualmente assistimos ao desenvolvimento de práticas de mapeamento, a um aumento da capacidade de anexar informações de lugares e um crescente interesse na localização de pessoas e coisas em espaços. Embora tenhamos sido sempre cientes de locais, a crescente popularidade de ferramentas de mapeamento e tecnologias móveis location-aware está transformando as formas como experimentamos locais, remota ou proximamente. Serviços on-line, tais como Google Maps e Google Earth, oferecem bases de dados pesquisáveis compostas de milhões de imagens de mapas por satélite. Diante da proliferação de mapas digitais e sistemas de informação geográfica, a cartografia e seus processos ideológicos têm adquirido novos sentidos. Kent (2008, p. 31) compara o processo atual com o início da era moderna, quando, 86
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graças à tecnologia de Gutenberg, a geografia de Ptolomeu e os mapas impressos se difundiram. Entretanto, como pudemos observar, esses dois momentos não devem ser considerados isoladamente. Ambos são nós de uma vasta rede semiótica na qual relações espaciais se articulam com relações sociais e cognitivas. O que vimos até aqui é que essa rede é orientada por uma razão cartográfica, instituída e tornada hegemônica e universal (pelas centrais de cálculo), e que orientou a produção de mapas nos últimos quinhentos anos a partir de configurações sociais e políticas. Nesse processo, constata-se a adoção da cartografia científica como único conhecimento válido, bem como a vigência do monopólio estatal de sua produção, e assistimos a um lento processo de democratização do acesso aos mapas, que será coroado no início do século XXI pela democratização do acesso às ferramentas de mapeamento e confecção de mapas. Nos últimos anos, os serviços de informação geográfica na web aumentaram extraordinariamente. A disponibilização da API (Interface de Programação de Aplicativo) de sites tais como o Google Maps possibilita aos usuários a criação de mashups, mesclando seus próprios dados (que podem ser extraídos de uma variedade de fontes) com outras bases de dados, gerando uma quantidade quase infinita de projetos. Dessa maneira, diferentes processos de mapeamentos emergem: os usuários podem interagir e explorar em vez de apenas usar a imagem como uma apresentação final. É inegável que a produção e uso de mapas decorrentes da democratização de certas ferramentas on-line têm possibilitado maior familiaridade com a maneira como mapas representam o espaço. Entretanto, não se pode esquecer de que tais mapas continuam presos a determinadas agendas de mapeamento, definidas pelo Estado ou por finalidades comerciais. Kent (2008, p. 31-32) ressalta que enquanto a disponibilidade de dados geográficos e facilidade de personalização tendem a aumentar, as opções disponíveis para o usuário permanecem limitadas e são fixadas por agências de CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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mapeamento – estatal ou comercial – responsáveis por fazer esses dados acessíveis on-line. A menos que o usuário tenha total controle sobre o que é mostrado assim como sua expressão gráfica, eles têm apenas a ilusão da escolha. Dessa forma, é possível discutir se existe mesmo uma redistribuição de poder e conhecimento. Tais aplicativos podem criar uma imagem instantânea digital de qualquer localização em qualquer escala. No entanto, conforme afirma Cosgrove (2005a, p. 150), são imagens resolutamente funcionais, que ignoram o contexto do lugar que elas representam e não conseguem apreender a cidade como espaço público: Blandscapes (KENT, 2008, p. 29). Perkins e Dodge (2009, p. 2-3) também enfatizam essa dimensão ao pontuarem que a internet tem visto cada vez mais produtos globais em rede, com portais on-line e globos virtuais sob o controle de um punhado de multinacionais que oferecem visões de mundo cada vez mais padronizadas e “brandas” como o Google Maps para um público global. A propósito das Blandscapes promovidas pelo Google, podemos fazer uma reflexão comparativa com o filme Powers of ten (1977), de Charles e Ray Eames. O filme promove, através de um zoom-out vertical, uma viagem para o cosmos, em uma linha reta para o espaço. O filme parte de uma vista aérea de um piquenique num parque para em seguida se deslocar para contextos cada vez maiores, elevados a potência de 1027. Do espaço sideral, o filme promove um zoom-in de volta, numa jornada inversa, apresentando mundos microscópicos, passando pela epiderme, os capilares, núcleo da célula, um átomo. Marquez (2009, p. 44), ao argumentar que Powers of ten não é um filme sobre as possibilidades de monitorar o Universo a partir de um olhar central, panóptico, apesar do seu ponto de vista ser um olhar externo que opera o zoom vertical, afirma que a escolha do piquenique como ponto de referência do traslado vertical do filme, repre27
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Em uma taxa de uma potência de dez por cada 10 segundos.
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sentaria a possibilidade de produção efêmera de um espaço íntimo em um lugar público: “uma domesticidade fugaz que cria um território num tapete sobre a grama, um lugar de prazer, leitura, convívio e pensamento, exposto à visão coletiva, lugar de compartilhamento e interação, não de cerceamento ou controle” (MARQUEZ, 2009, p. 44). Dessa forma, mais do que expor um olhar panóptico ou uma mecânica representação abstrata de espaço, Powers of ten é uma reflexão artística e científica sobre escalas, métricas, matérias e possibilidades narrativas. Mark Aubin (2006, p. 1), cofundador do Google Earth e engenheiro de software do Google, afirmou que o flip-book do filme foi uma influência na hora de gestar um modelo de interface para o Google Earth. Segundo o autor, durante uma sessão de brainstorming, alguém levou o livro Charles e Ray Eames, Powers of ten – A Flipbook, e sugeriu que o modelo movesse através de imagens, como o filme faz. Aubin relata que depois de discutir uma série de possibilidades, o grupo decidiu que iria começar do espaço com uma vista de toda a Terra, e em seguida, aproximar cada vez mais. Conforme já afirmamos, é inegável o potencial de uma ferramenta “gratuita” que promove convergência entre a internet e informações geográficas (muitas vezes produzidas localmente), como o Google Earth, com as possibilidades abertas pela disponibilidade de dados, bem como sua manipulação criativa, além de um grande potencial participativo e coletivo para a criação e compartilhamento de informações georreferenciadas. Entretanto, a epítome do bird’s eye view, o Google Earth é, na verdade, um grande mosaico de imagens, algumas com nitidez impressionante e outras que se parecem mais com borrões: O Google Earth opera nos limites tênues entre o espaço geopolítico globalizado, o desenvolvimento tecnológico comercial ou corporativo e as estratégias militares nacionais. Isto porque se são as demandas militares com interesses em defesa do seu próprio território e do conhecimento do território alheio o que impulsiona o desenvolvimento tecnocientífico através de investimentos massivos em “siste-
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mas de olhar”, tais dispositivos, quando disponibilizados para uso comercial civil, sofrem restrições importantes no que diz respeito à “capacidade de ver”. (MARQUEZ, 2009, p. 44).
Partindo da ideia de que nenhum olhar é neutro, Marquez e Cançado chamam essa diferença entre a nitidez na representação dos espaços de “índice de miopia”. Tal índice mediria a nebulosidade do caráter público do território do Google Earth: [...] chamamos de índice de miopia o intervalo geométrico entre a altura limite do alcance do satélite no exato ponto em que a imagem ainda se apresenta com resolução e a altura do nosso olhar terrestre, sendo variável para cada lugar visitado. (Marquez; Cançado, 2009, p. 547).
Quando juntamos esse mosaico com imagens produzidas pelas mais diversas fontes mundo afora, nas mais diferentes datas e através de diversos mecanismos, o Google Earth configura, como conforme afirma Marquez (2009, p. 49), [...] um atlas poderoso das dinâmicas políticas, econômicas e tecnológicas do mundo atual, cuja precisão reside na amplitude de definição (ou falta de) das imagens disponibilizadas [...] na qual a cartografia resultante não só revela, como reforça o crescente distanciamento entre o centro e a periferia do mundo.
Podemos exemplificar a miopia descrita por Marquez com o fato de a prefeitura do Rio de Janeiro pressionar o Google em 2013 para diminuir o destaque dado a algumas favelas no Google Maps. Anteriormente, a empresa já teria retirado a palavra “favela” de alguns de seus mapas do Rio de Janeiro (Bowater, 2013). As geotecnologias reafirmam a cartografia e o mapeamento como um meio de projetar poder e saber. Entretanto, é preciso notar, conforme afirma James Corner (1999, p. 216), o fato de que os mapas são construções altamente artificiais e falíveis, abstrações virtuais que possuem grande força em termos de como as pessoas
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veem e agem. Dessa forma, podemos pensar, com Yves Lacoste, a cartografia como um “conjunto de conhecimentos, uma forma de raciocinar, um saber-pensar o espaço que permite agir de uma maneira mais eficaz” (Lacoste apud Seemann, 2002, p. 2). Diante de tudo isso, como escapulir das cartografias ordenadas como dispositivo? Mapas e mapeamentos ordenam e representam nossos mundos físico, social e cognitivo. As mudanças em nossa experiência alteram os sentidos e práticas que envolvem a cartografia e mapeamento e vice-versa. Um mapa também não deixa de ser um produto de uma atividade criativa que aponta para novas narrativas e construções conceituais e sensíveis, especialmente no contexto das tecnologias atuais, dessa forma, alguns projetos de mídia locativa se apropriam do Google Maps e subvertem a sua miopia. Um bom exemplo pode ser o projeto iSee (Figura 2.12), criado pelo Institute for Applied Autonomy e NYC Surveillance Camera Project, um desdobramento do New York Civil Liberties Union que promove práticas problematizadoras das disjunções entre o uso do público das tecnologias de comunicação e os planos e políticas dentro de espaços urbanos oficiais.
Figura 2.12 – iSee. Institute for Applied Autonomy, 2005 Fonte: . Acesso em: abr. 2019
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O NYC Surveillance Camera Project (1998) dedica-se a acompanhar as câmeras de segurança em Nova York. O projeto começou com um grupo de voluntários perambulando pelas ruas de Manhattan, procurando por câmeras de segurança em um período de cinco meses. A equipe mapeou 2.397 câmeras. Ao final, produziram um mapa de Nova York e a indicação de todas as câmeras de segurança conhecidas. Além de locais, indicou quantas delas estavam presentes e qual o tipo de câmera. Em 2005, uma nova pesquisa contou 4.176 câmeras somente na parte sul de Manhattan. Além disso, várias instituições ao redor do mundo duplicaram o conceito e o aplicaram para outra cidade ou região. A partir desses dados, o Institute for Applied Autonomy criou o iSee Manhattan, um mapa interativo no qual as pessoas podem calcular o caminho mais rápido de um lugar A para um lugar B em Manhattan sem encontrar quaisquer câmeras de segurança ou encontrando o mínimo possível. Mais que promover rotas, o projeto visava a criar consciência sobre o aumento do número de rastreamento. O projeto inverte a lógica do rastreamento e da vigilância à medida que determina as posições das câmeras de segurança, assim o que está sendo rastreado é o próprio dispositivo de rastreamento. Numa direção um pouco diferente, o projeto Bio Mapping (Figura 2.13), desenvolvido por Christian Nold, um designer, artista e professor britânico, busca explorar as maneiras pelas quais podemos visualizar emoções através de dados biométricos. Bio Mapping vem sendo desenvolvido em várias cidades desde 2004 e funciona através de oficinas estruturadas, nas quais os participantes são convidados a reexplorar a sua área local em uma caminhada utilizando um dispositivo inventado por Nold que regista resposta galvânica da pele do utilizador (GSR), e associa esses dados à sua localização geográfica através de um GPS.
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Figura 2.13 – Bio Mapping – Detail of Greenwich Emotion Map. Christian Nold. 2005 Fonte: . Acesso em: abr. 2019
O dispositivo de Bio Mapping consiste em um GPS conectado a um sensor biométrico que mede a resposta galvânica da pele (Galvanic Skin Response, ou GSR). O GSR é um método de se medir a condutividade elétrica da pele, que varia de acordo com seu nível de umidade28. O sensor utiliza o mesmo princípio que o do detector de mentiras. Os eletrodos do sensor biométrico são atados a dois dedos do participante, e seus indicadores emocionais são medidos 28
As glândulas sudoríparas são controladas pelo sistema nervoso simpático, de forma que a condutividade epidérmica pode ser utilizada como um indicador de excitação psicológica ou fisiológica. Assim, se o tronco simpático do sistema nervoso autônomo está excitado, também haverá um aumento da atividade das glândulas sudoríparas, o que, por sua vez, aumenta a condutividade epidérmica, o que permite que a condutividade da pele possa ser usada como uma medida do estado emocional e de respostas do sistema simpático. Nossas extremidades, incluindo dedos, palmas das mãos e solas dos pés, apresentam diferentes respostas bioelétricas, as quais podem ser quantificadas a partir da medição de uma corrente elétrica muito fraca entre dois eletrodos acoplados sobre a pele da extremidade em questão. A medição ativa, dessa forma, envolve a emissão de uma corrente de fraca intensidade através do corpo do indivíduo.
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pela variação dos níveis de suor em seus dedos à medida que andam por uma dada localidade. Sensores biométricos são uma ferramenta de vigilância biopolítica que incorpora de alguma forma o olhar panóptico às tensões heterogêneas. Segundo Nold (2009, p. 3), Bio Mapping surgiu como uma reação crítica para o conceito atualmente dominante da tecnologia difundida, que visa que a “inteligência” do computador se integre a todos os lugares, incluindo nossas vidas cotidianas e até nossos corpos. O projeto Bio Mapping investiga as implicações da criação de tecnologias que podem gravar, visualizar e compartilhar uns com os outros nossos íntimos estados do corpo. O cruzamento desses dados (geolocalização e o nível de excitação) indica o estado emocional do usuário em resposta à sua localização geográfica. No retorno da caminhada, é criado a partir dos dados, um mapa que possibilita visualizar pontos de excitação. Os dados obtidos também são sobrepostos aos mapas do Google Earth (Nold substituiu os dados de altitude pelos dados GSR). Posteriormente também são acrescentados comentários sobre os locais visitados. Segundo Nold, a metodologia do projeto envolve o trabalho com grupos de pessoas para interpretar e analisar os dados e adicionar anotações sobre essas faixas emoção individuais. Jeremy Crampton (2009, p. 1) afirma que os mapas são performativos participativos e políticos. Bio Mapping possibilita processos de criação do espaço a partir de dimensões relacionais e trajetórias pessoais. Nesse caso, o que está sendo mapeado é justamente um self em relação a um espaço de atuação. Sotelo-Castro (2009) usa a expressão auto-mapping para se referir ao trabalho de Nold: Eu demonstro que as publicações dos participantes nesta prática deverão ser encaradas como uma forma de auto-mapeamento que posiciona o self em relação a um determinado espaço de atuação. Estes auto-posicionamentos apresentam o self em termos espaço-temporais e por meio
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de narrativas performativas que re-definem o sujeito, de um indivíduo isolado a um participante dentro de um processo vivo que se desdobra. (SOTELO-CASTRO, 2009, p. 1).
Ao contrário de mapas do Estado, anotados com pontos “oficiais” de interesse ou mapas revelando que sustentam a dialética de dominação e opressão, esses mapas imersivos permitem que os usuários inscrevam o espaço com seu próprio desejo compartilhado. O foco desta cartografia é a produção do espaço, em que os mapas são inscrições, extensões e estratificações de espaço, eles estão preocupados com o traçado das associações de anexos. Bleecker e Knowlton (2006, p. 4) sugerem que as práticas de mídias locativas são feitas por aqueles que criam experiências que levam em conta a região geográfica de interesse, normalmente elevando essa localidade geográfica para além do seu status instrumentalizado como um ponto de coordenada de latitude e longitude na terra para o nível de lugar existencial, habitado, experienciado e vivido.
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CAPÍTULO 3
DA VISÃO PANÓPTICA À PARTILHA DO SENSÍVEL
3.1 Poder e o olhar panóptico No início, parecia simples: para abranger toda a Paris em uma vista, nós simplesmente precisaríamos estar no alto, recuar. Mas onde a lente da câmera deveria ser colocada? No topo da torre Montparnasse? Não, a visão seria muito achatada. No topo de Montmartre – que teria a vantagem de não ver o hediondo Sacré-Coeur? Sim, mas a vista parcial seria muito oblíqua. [...] Isso significa que Paris é invisível? Siga em frente, não há nada para ver. Bem, sim, vamos fazer exatamente isso, vamos seguir e então, de repente, Paris vai começar a ser visível. (Latour; Hermant, 2006, p. 28).
A busca pela compreensão da cidade tem nos impelido, assim como a Latour e Hermant (2006), a olhar para o espaço urbano a partir de diferentes pontos de vista. No começo do século XX, o farmacêutico alemão Julius Neubronner começou a prender câmeras fotográficas portáteis equipadas com timers nos seus pombos-correios, na tentativa de rastrear suas aves. Neubronner ganhou fama mundial depois de apresentar as fotografias em exposições internacionais, em Dresden, Frankfurt e Paris. Suas imagens, literais bird’s eye views ganharam prêmios e foram vendidas em cartões postais (Figura 3.1). A bem-sucedida história de Neubronner e seus pombos ilustra a constante busca do homem por visões totalizantes da cidade e seu mapeamento a partir de vistas aéreas, passando por pombos, balões de ar29, aviões, até chegarmos nas atuais imagens de satélite. 29
Segundo Dennis (2008, p. 54), invenção do balão de ar quente na década de 1780 deu credibilidade às vistas aéreas que só haviam sido imaginadas anteriormente.
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Figura 3.1 – Pigeon-photographie, Julius Neubronner, 1908. Três fotografias aéreas tiradas através de seu método de câmeras amarradas a pombos. (Deutsche Museum, Munich) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Tradicionalmente, tem-se pensado que uma das melhores formas de compreender a cidade é olhar para ela de longe e acima: a visão mítica olho de Deus das cidades (VIDLER, 2000, p. 138). Conforme afirma Certeau (2004, p. 171), a vontade de ver a cidade do alto precedeu os meios de satisfazê-la: “a mesma pulsão escópica frequenta os usuários das produções arquitetônicas materializando hoje a utopia que ontem era apenas pintada”. As pinturas medievais ou renascentistas representavam a cidade vista em perspectiva por um olhar que jamais existira até então30. Elas inventavam ao mesmo tempo, a visão do alto da cidade e o panorama que ela possibilitava. A popularidade de mirantes de observação em alguns dos edifícios mais altos do mundo31 indica o interesse de se ver a cidade a partir de cima. Certeau (2004, p. 170), do ponto de vista de seu escritório no 110º andar do World Trade Center, comentou sobre 30
As vistas panorâmicas da cidade realizadas utilizando bird’s eye view surgiram e se difundiram a partir do século XVI, com o Civitates orbis terrarium, uma coleção de vistas panorâmicas, planos de várias cidades, cujo primeiro volume foi publicado em 1572 na cidade de Colônia. 31 Dentre lugares turisticamente famosos, podemos citar o Edifício Itália, em São Paulo; Empire State, em Nova York; Willis Tower, em Chicago; Fernsehturm, em Berlim; Tokyo Metropolitan Government Building, em Tóquio.
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um prazer de ver o conjunto. Segundo o autor, subir até o alto deste edifício é o mesmo que ser arrebatado até ao domínio da cidade, um lugar no qual “ o corpo não está mais enlaçado pelas ruas que o fazem rodar e girar segundo uma lei anônima; nem possuído, jogador ou jogado, pelo rumor de tantas diferenças e pelo nervosismo do tráfego nova-iorquino” (CERTEAU, 2004, p. 170). Na verdade, tal ponto de vista é dominante na maioria dos mapas e planos do espaço urbano e é bastante útil para aqueles que procuram ordenar e governar nossas cidades, porque permite conceber uma cidade ordenada, na qual muitas das coisas que potencialmente perturbariam tal concepção podem ser convenientemente ignoradas. A respeito dos mapas norte-americanos no contexto da expansão para o oeste no século XIX, Cosgrove (2006, p. 160) comenta que a perspectiva aérea era perfeita para demonstrar a elegância e a prosperidade das recém-criadas e muitas vezes mal construídas cidades. Enfatizando suas grades de ruas e a agitação de carruagens e carroças, os mapas promoviam lugares muitas vezes caóticos e violentos a bem-ordenadas comunidades cívicas. Observada de cima, a cidade é um simulacro teórico, um quadro que tem como condição de possibilidade um esquecimento e um desconhecimento das práticas. A vista do alto, que norteia o plano da cidade, é elemento determinante no processo de objetivação do planejamento urbano através do qual a cidade é processada como um conjunto visual unificado ao invés de uma entidade viva. Tal olhar planejador unifica elementos díspares da forma urbana, ao mesmo tempo em que reduz os participantes humanos em seu espetáculo a um papel equivalente ao das figuras em um modelo de arquitetura (MILES, 2002, p. 132). Para Massey (1994, p. 232), tal ponto de vista parte de uma autoridade masculina que privilegia um ponto de vista em detrimento de outros tantos. Ela afirma que visões totalizantes, por mais atraentes que possam ser, não conseguem capturar os significados e significações do espaço urbano.
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A partir das reflexões apresentadas acima, é possível perceber como existem estreitas conexões entre os regimes escópicos32 e o exercício do poder. Para melhor compreender tal relação, utilizaremos a noção de poder a partir da perspectiva teórica Michel Foucault que se apresenta como um interessante framework para se pensar as relações de poder, espaço e cidade. A discussão sobre o poder também é importante para nós à medida que construiremos a ideia de subversão através da qual lançamos nosso olhar para as mídias locativas. Ao empreender uma análise que retira do Estado o monopólio do poder, Foucault (1980; 1999; 2000; 2001) mapeia uma rede de micropoderes que atingem reticularmente os indivíduos e que se inserem em suas ações e discursos. Dessa forma, devemos compreender o poder, a princípio, como a multiplicidade de correlações de força que se manifestam em suas formas locais articuladas de maneiras variadas e que são imprescindíveis, inclusive, à sustentação das estruturas e das instituições. Não condicionado à ação do Estado, o poder se espalha pela vida cotidiana. É importante ressaltar que, ao pensarmos o poder de tal maneira, superamos uma construção dicotômica de dominadores e dominados. Na verdade, conforme afirma Foucault (2001, p. 89), o poder está em toda parte, mas não porque engloba tudo e sim porque provém de todos os lugares. O poder permeia todas as relações sociais e interpessoais, está em rede, pulverizado, existindo em todas as instâncias e funciona como uma relação de forças que conformam a maneira na qual um indivíduo age, em relação a um ou mais indivíduos e a maneira na qual age sobre si mesmo. Sob a ótica foucaultiana, toda relação é uma relação de poder: Retomemos a definição segundo a qual o exercício do poder seria uma maneira para alguns de estruturar o campo de ação possível dos outros. Deste modo, o que seria pró32
Segundo Santaella (2008, p. 54-55), “Esta expressão foi cunhada pelo crítico de cinema francês Christian Metz. A substituição de expressões como regime visual ou regime de imagem por regime escópico indica que a definição de visão, prevista como um fenômeno universal e natural, é agora substituído por maneiras culturalmente específicas de ver”.
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prio a uma relação de poder é que ela seria um modo de ação sobre ações. O que quer dizer que as relações de poder se enraízam profundamente no nexo social; e que elas não reconstituem acima da “sociedade” uma estrutura suplementar com cuja obliteração radical pudéssemos talvez sonhar. Viver em sociedade é, de qualquer maneira, viver de modo que seja possível a alguns agirem sobre as ações dos outros. Uma sociedade ‘sem relação de poder’ só pode ser uma abstração. (FOUCAULT, 2000, p. 343).
Por compreender o poder mais como uma prática social do que algo ou um objeto natural, Foucault (2000, p. 343) propõe que, em vez de se indagar sobre o que é o poder, é importante compreender como este é exercido. Exercer poder implica acionar o que o autor chama de mecanismos de poder. Esses mecanismos se constituem de forma específica para cada objetivo desejado em uma determinada sociedade historicamente localizada. Por exemplo, no livro Vigiar e Punir (1999), Foucault nos mostra como técnicas disciplinares desenvolveram a partir do século XVII mecanismos que permitiram um controle minucioso do corpo, dos gestos, dos comportamentos, dos hábitos, das atitudes e dos discursos. Mecanismos que se inserem na vida cotidiana dos indivíduos resultando em estratégias que se cristalizam no corpo social de forma molecular. Sua abordagem do panóptico apresenta como a arquitetura e o espaço podem engendrar uma forma de controle social. O regime panóptico é a vigilância que dispensa a presença, a força física e se constitui um dispositivo para criar e sustentar relações de poder independente das pessoas que venham operá-lo. Segundo Foucault, O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça. (FOUCAULT, 1999, p. 169).
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A partir de sua leitura, podemos perceber como o espaço é uma base fundamental para o exercício do poder. O controle do espaço é uma característica fundamental do modelo panóptico. Podemos argumentar que a torre de vigia é o ponto de observação “que tudo vê”, o olho de Deus. Sabemos que, conforme afirma Santaella (2010, p. 297), modelos e paradigmas de vigilância são válidos apenas para determinado período de tempo e que é possível apontar certa inadequação da aplicação generalizada do modelo panóptico de Bentham no contexto das mídias digitais, afinal as transformações no mundo digital vêm modificando as formas de vigilância. Entretanto, em se tratando de mapas, planos e cartografias, acreditamos ser válida a reapropriação crítica de Foucault, realizada por Certeau (2004) e posteriormente Reynolds e Fitzpatrick (1999), da ideia do modelo panóptico de poder disciplinar foucaultiano. A partir dele, tais autores enfatizam que a ideia de bird’s-eye view forneceria uma metáfora para o olhar panóptico, que funcionaria como um dispositivo a serviço do administrador do espaço, o urbanista ou o cartógrafo, sofrendo mutações através do tempo. O olhar panóptico seria o ponto de vista desencarnado, distante e acima, através do qual os poderosos têm projetado seu domínio sobre o espaço: Sua elevação o transfigura em voyeur. Coloca-o à distância. Muda num texto que se tem diante de si, sob os olhos, o mundo que enfeitiçava e pelo qual se estava “possuído”. Ela permite lê-lo, ser um Olho solar, um olhar divino. Exaltação de uma pulsão escópica e gnóstica. (CERTEAU, 2004, p. 170).
Em sua análise sobre a paisagem, Cosgrove (2008) desenvolve a ideia de “maneiras de ver” que dialoga com o olhar panóptico. Segundo o autor (2008, p. 17), existem formas dominantes de ver que surgiram com as teorias de perspectiva no Ocidente durante o século XV e que possuem estreita relação com a representação na pintura, fotografia e imagens em movimento (bem como com cartografia): “O olhar, como este modo de ver e suas formas relacio102
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nadas de representação foram denominados, é inescapavelmente voyeurístico, dominador e abusivo; ele demandou resistência”. Pickles (2004) também nos mostra como esse olhar, por ele denominado “cartographic gaze”, moldou um entendimento do espaço e da cartografia, através do que já chamou de “razão cartográfica”. Para o autor (2004, p. 80), “o olhar cartográfico é dominado por um compromisso com a modelagem de um ponto de vista de Deus [...] Este posicionamento transcendental é tanto a vista de cima, uma perspectiva de dois pontos de fuga aérea, e um olho que vê tudo, em todos os lugares, ao mesmo tempo”. Como podemos observar, o que chamamos de “olhar panóptico” orienta e configura a razão cartográfica cujos mapas dispositivo apresentamos no Capítulo 2. Santaella (2010, p. 297) aponta a existência de três regimes de vigilância: o panóptico, o escópico e o de rastreamento. O primeiro diz respeito a uma vigilância disciplinar exercida em ambientes definidos. Esse modelo dialoga com o regime panóptico foucaultiano. O segundo corresponderia à distribuição e proliferação para fins variados de câmeras e circuitos de TV tanto em locais estratégicos fechados como ambientes abertos. O terceiro surgiu diretamente do universo digital e sua complexa teia cada vez mais fina. O que chamamos de “olhar panóptico” atravessa tais regimes e funciona em cada um, como um dispositivo do poder. Assumindo características peculiares em cada momento, o “olhar panóptico” se aproveita das tecnologias disponíveis para se configurar. O arranha-céu em Nova York é usado como um ponto de vista, a partir do qual Certeau (2004, p. 170) pode ilustrar a ideia de uma visão unificada do espaço urbano. Nesse sentido, o olhar panóptico, como uma forma de conceber uma cidade de cima para baixo, engendra a cidade instaurada pelo discurso urbanístico, que segundo Certeau (2004, p. 170), é definida pela possibilidade de uma tríplice operação: primeiro, a produção de um espaço próprio no qual a organização racional deve reprimir todas as poluições físicas, mentais e políticas que possam comprometê-lo. Segundo, o estabeCARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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lecimento de um sistema sincrônico, para substituir as resistências inapreensíveis e teimosas das tradições: estratégias científicas unívocas, possibilitadas pela redução niveladora de todos os dados, devem substituir as táticas dos usuários que astuciosamente jogam com as “ocasiões” e que, por esses acontecimentos-armadilhas, lapsos da visibilidade, reintroduzem por toda a parte as opacidades da história e terceiro, a criação de um sujeito universal e anônimo, ou seja, da própria cidade. Assim, a cidade, finalmente, proporciona uma forma de concepção e construção de um espaço na base do número finito de propriedades estáveis, isoláveis e interligadas. A partir de um olhar central, panóptico e desencarnado, mapas também descrevem a cidade como um todo unificado. Conforme afirmam Perkins e Dodge (2007, p. 3), levantamentos topográficos e cartografia também foram uma tecnologia fundamental garantindo a visão panóptica do Estado sobre o território e sua população. Ao analisar o mapa de Chicago, Scott (1998, p. 58) afirma que a tradição de mapeamento a partir da visão panorâmica oferecida pelo bird’s-eye view não era uma mera convenção: em virtude da sua grande distância, uma vista aérea resolvia o que ao nível do solo parecia confuso, apresentando ordem e simetria. O olhar panóptico assume ideais de uma visão sinóptica, controle racional, planejamento e ordem espacial. Não por acaso, a vista aérea assume grande valor para o pensamento e planejamento modernista33. Vidler ressalta a importância do bird’s-eye view para o trabalho de Le Corbusier e seu apreço pelo avião, cuja vista funcionaria como fonte de inspiração: O efeito calmo e purificante de viajar em uma altitude de 1.000 metros, apoia, em Le Corbusier, o que ele chama de “visões humanas”, em oposição às “visões infernais” de um trem ou carro, um estado de visão que se aproxima do desapego necessário para a tranquila reflexão: “Eu existo na vida”, concluiu Le Corbusier, “apenas na condição de ver”. (VIDLER, 2000, p. 38). 33
Para mais informações sobre o assunto, ver: ADEY, P. Aerial life: Spaces, mobilities, affects. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.
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Técnicas de perspectiva, fotografias aéreas, vistas do alto de arranha-céus, dentre outros, têm sido usadas ao longo da história como dispositivos que proporcionam uma visão panóptica do espaço urbano. Como podemos observar, uma série de processos técnicos organizaram a possibilidade da vista aérea, que materializa e se organiza como metáfora de um olhar panóptico. É essa postura sinóptica o ponto de vista da organização urbana. O princípio panóptico de observação foi prorrogado por meio de sistemas de informação, entre eles o GIS e os sistemas que se utilizam do GPS e atualmente pelos aplicativos de mapas do Google e afins. A cidade, observada a partir dessa perspectiva é vislumbrada a partir de um olho espectador, que desencarnado e suspenso, observa de fora um espaço do qual ele não faz parte.
3.2 O GPS e a estrutura espaço-tempo imperial Não há necessidade de ficção científica para conceber um mecanismo de controle que forneça a cada instante a posição de um elemento em meio aberto, animal numa reserva, homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginava uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças ao seu cartão eletrônico, que removeria qualquer barreira; mas, do mesmo modo, o cartão poderia ser rejeitado tal dia, ou entre tais horas; o que conta não é a barreira, mas o computador que localiza a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal. (DELEUZE, 1992, p. 225).
O que chamamos de GPS é, na verdade, o sistema Navstar (Navigation System for Timing and Ranging), geralmente referido como Global Positioning System ou GPS. Criado e mantido pelo Departamento de Defesa norte-americano, inicialmente uma tecnologia utilizada exclusivamente para fins militares, o Navstar consiste em uma rede de satélites orbitando a Terra em uma altitude aproximada de vinte mil quilômetros, que transmitem sinais de CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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rádio que possibilitam a localização exata de um receptor de GPS através da medição da distância de pelo menos quatro satélites, em qualquer ponto da superfície da Terra34. Como a forma da medição se dá em três dimensões35 (latitude, longitude e altitude), é possível localizar qualquer trajetória em uma grade cartesiana tridimensional, a qualquer hora, em qualquer lugar. Durante muitos anos, o GPS operou sob a chamada Disponibilidade Seletiva, uma degradação intencional dos sinais era implementada por razões de segurança nacional. Erros intencionalmente artificiais eram introduzidos nos sinais de satélite, dando aos militares norte-americanos um sistema muito mais preciso que os civis. Em 2000, o então presidente Clinton suspendeu a criptografia dos sinais GPS e a infraestrutura tem funcionado como um serviço global público, aberto a qualquer usuário36. O sistema GPS tem três segmentos: espacial, controle e usuário (PACE et al., 1995, p. 222). O segmento espacial consiste de 24 satélites em órbita ao redor da Terra, a uma altura média de vinte mil quilômetros, conforme referido anteriormente. As órbitas são tais que pelo menos quatro satélites são sempre visíveis para um observador em qualquer momento e ponto da superfície terrestre. O segmento de controle é formado por estações de gerenciamento, controladas pela Força Aérea dos Estados Unidos. O segmento do usuário é constituído pelos receptores que detectam, decodificam e processam os sinais emitidos pelos satélites. São dispositivos comerciais a cada dia mais comuns, que se configuram como aparelhos portáteis ou embutidos em carros, telefones celulares, relógios, barcos, aviões etc.
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É possível também mensurar a localização se o receptor estiver posicionado sobre a superfície da Terra, na atmosfera da terra ou numa órbita baixa. 35 As informações técnicas aqui fornecidas sobre o funcionamento técnico do GPS são devedoras do relatório: PACE, S. et al. The global positioning system: assessing national policies. RAND Corporation, Santa Monica, CA, 1995. Disponível em: . 36 Com exceção dos casos em que o acesso não criptografado é negado seletivamente, como, por exemplo, em zonas de guerra.
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Dois fatos foram determinantes para o surgimento dos sistemas de posicionamento global por satélite tal como conhecemos hoje: o lançamento do satélite soviético Sputnik em 1957 e a criação e uso dos relógios de precisão atômicos em 1956. Logo após o lançamento do Sputnik, dois físicos norte-americanos ligados ao Laboratório de Física aplicada da Johns Hopkins University, William Guier e George Weiffenbach, decidiram monitorar as transmissões de rádio do Sputnik37 e gravar o sinal captado em fitas de áudio. Depois de escutar as gravações, Guier e Weiffenbach perceberam que poderiam usar o efeito Doppler38 para calcular a velocidade com que o satélite estava se movendo pelo espaço. Algum tempo depois, incentivados pelo diretor do Laboratório de Física Aplicada, a dupla conseguiu fazer o inverso: deduzir a localização a partir de uma órbita conhecida. Se a órbita do satélite é conhecida, é possível localizar um ponto na Terra a partir das medidas de mudança de frequência. A pesquisa de Guier e Weiffenbach foi utilizada pelas Forças Armadas norte-americanas no desenvolvimento dos mísseis nucleares, que seriam lançados a partir de submarinos Polaris (GUIER; WEIFFENBACH 1998, p. 16). Para um cálculo mais preciso das trajetórias dos mísseis era necessário saber a localização exata do lançamento. Naquele momento, esse era um grande problema para um submarino localizado em algum ponto do fundo do mar. Dessa forma, a primeira utilização desse sistema se deu quando os militares buscaram estabelecer a localização de seus submarinos a partir da posição dos satélites que orbitavam acima da Terra. O GPS funciona utilizando o conceito de Time of arrival: o satélite envia continuamente mensagens contendo a hora em que a mesma foi enviada. O receptor recebe essa informação e calcula quanto tempo o sinal gastou para chegar. Esse tempo de trânsito 37
Para saber mais sobre o relato dessa pesquisa pelos autores ver: GUIER, W. H.; WEIFFENBACH, G. C. Genesis of satellite navigation. Johns Hopkins APL technical digest, v. 19, n. 1, 1998. 38 O efeito Doppler é a mudança na frequência de uma onda (nesse caso sonora) para um observador em movimento em relação à sua fonte.
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do sinal pode ser medido subtraindo a hora enviada pelo satélite, da hora recebida. Em seguida, esse valor é multiplicado pela velocidade de propagação da onda, no caso a velocidade da luz39, para obter a distância entre as duas posições. Como podemos observar, a base do procedimento, também chamado de triangulação, é cronometrar o tempo que leva um sinal de rádio para chegar até o receptor a partir de um satélite. Pelos cálculos da Teoria da Relatividade, os relógios a bordo dos satélites devem ficar atrasados em relação aos dos receptores por cerca de 38 microssegundos por dia40. Para alcançar este nível de precisão é necessária a utilização de relógios atômicos. Cada um dos satélites transporta quatro desses relógios. Sem eles, o sistema GPS não seria preciso e confiável o suficiente para ser utilizado41. Satélites GPS podem ser vistos como “relógios no espaço” precisos e estáveis, banhando a Terra com um fraco e consistente sinal de tempo. Essas ondas de rádio permitem que os receptores calculem passivamente onde estão e qual é a hora, comparando os sinais de vários satélites na mesma constelação (Pace et al., 1995, p. 11). Dessa forma, é possível dizer que o GPS opera com o tempo para delimitar uma localização no espaço. Mas que tempo seria esse? Thompson (1967), em seu famoso ensaio Time, work-discipline, and industrial capitalism, analisa historicamente processos de significação do tempo e como o capitalismo industrial influenciou nossa percepção temporal. O autor mostra como o tempo do vivido vai sendo substituído pelo tempo abstrato do relógio. Para Thompson (1967, p. 58), as formas anteriores de medição do tempo são articuladas em torno do fazer humano e a imposição de tempo de relógio separaria a medição do tempo das atividades 39
3 x 108 m/s. Sete microssegundos adiantados por causa da taxa de cronometragem mais lenta devido ao efeito de dilatação do tempo de seu movimento relativo e 45 microssegundos atrasados devido à curvatura do espaço-tempo, já que relógios mais próximos de um objeto marcam o tempo mais lentamente que aqueles mais afastados. 41 Relógios atômicos são caros e, em geral, grandes. Por isso não são usados nos receptores GPS. Para compensar o tempo do relógio de receptor, são necessários pelo menos quatro sinais de satélite GPS para calcular as posições em três dimensões. 40
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humanas. O foco de Thompson é direcionado para o período da Revolução Industrial inglesa durante o século XVIII e a disseminação de relógios na vida cotidiana das pessoas. Entretanto, alguns autores (BARTKY, 1989; SHORT, 2001; SEAGO et al., 2011; LUCY; WIERZBICKI, 2013) apontam para o problema das dificuldades dos viajantes e gestores de companhias ferroviárias em relação às variações temporais em diferentes lugares, após o advento da locomotiva e expansão das estradas de ferro no século XIX. Esse problema seria impensável em sociedades que se locomovem a pé, utilizando animais de montaria ou barcos a vapor, mas o aumento da velocidade de deslocamento e a consequente compressão espaço-temporal criaram o problema da sobreposição dos tempos no percurso. Apesar de já serem difundidos na sociedade, os relógios eram, geralmente, ajustados através do tempo solar local e o padrão mantido por algum relógio conhecido e central nas localidades, como uma torre de igreja, por exemplo. O tempo era definido localmente: meio-dia era quando o sol estava a pino naquele local. Dessa forma, em cada cidade o tempo seria diferente e essa diferença dependeria da distância entre elas. Para os administradores ferroviários, isso era um grande problema ao gerenciar trens que circulavam entre dezenas de estações ao longo de uma grande área geográfica. Muitas ferrovias possuíam um só trilho principal, de forma que o horário dos trens deveria ser muito bem cronometrado a fim de evitar acidentes e colisões. Para tentar sincronizar o tempo ao longo de centenas de quilômetros de estradas, foram criadas tabelas (Figuras 3.2 e 3.3) com os fusos das ferrovias; nessas tabelas, a referência era o meio-dia (noon) em Washington, D.C., a hora local do escritório central da companhia, ou uma cidade importante em suas linhas (GORDON, 2001, p. 1).
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Figura 3.2 – Mapa de 1885 da Rota da Costa do Golfo ( Pensacola and Atlantic Railroad) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
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Figura 3.3 – Pensacola & Atlantic Railroad timetable, November 15, 1885 Fonte: . Acesso em: abr. 2019
As tabelas de tempo foram apenas uma solução parcial para o problema. Por volta de 1860, havia pelo menos oitenta horários ferroviários diferentes sendo usados (LUCY; WIERZBICKI , 2013, p. 1). Ao fazerem baldeações ou mudar de trens e linhas, os passageiros tinham que fazer inúmeras contas para converter e saber qual era o “horário correto”. A tabela de tempo, como um cronograma dos horários nos quais trens funcionam, à primeira vista pode parecer apenas um gráfico temporal, mas, na verdade, é um dispositivo de ordenação espaço-temporal à medida que indica “quando” e “onde” os trens chegam.
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Ainda na segunda metade do século XIX, a expansão das redes de comunicação gerou o mesmo problema: com cabos telegráficos transoceânicos conectando regiões de todo mundo, a troca de mensagens atrasava apenas alguns segundos e o telégrafo internacional precisava de pelo menos um padrão único para o qual todos os momentos locais poderiam ser referidos. Segundo Short (2001, p. 22), o problema para se definir o padrão era o fato de não haver uma linha de longitude que poderia ser predeterminada como o primeiro meridiano. O autor argumenta que ao longo da história usou-se uma variedade de meridianos principais: Hiparco escolheu Rhodes, enquanto Ptolomeu e Marinus preferiram as Ilhas Canárias. Ao longo do século XIX, muitos mapas norte-americanos empregaram um sistema duplo na mesma página, com longitude de Washington, D.C. na parte inferior e Greenwich no topo. A Espanha utilizava Cádiz, os portugueses, Lisboa e os franceses, Paris. Os brasileiros usaram tanto Greenwich quanto Rio de Janeiro. Em 1884, foi realizada a The First International Meridian Conference, em Washington, D.C.42. A conferência reuniu vários países a fim de buscar uma solução para o problema do fuso horário e estabelecimento do primeiro meridiano. No evento, foi aprovado que o meridiano de longitude e de cronometragem seria aquele que passa pelo centro do instrumento de trânsito no Observatório de Greenwich, no Reino Unido, estabelecendo-se assim o Greenwich Mean Time como o padrão de tempo do mundo. Uma métrica temporal estabelecida de cima, um tempo universal, abstrato, que de agora em diante seria o tempo regular das sociedades contemporâneas. Harvey (2001, p. 125) nos mostra como esse tempo absoluto modificou, por exemplo, as relações de trabalho: no fordismo, o tempo foi ajustado para maximizar o processo de produção, no qual o trabalho foi removido de seu espaço de fabricação e realocado em uma posição única de uma linha de produção. Já o taylorismo ana42
O relato na íntegra da conferência pode ser encontrado no site projeto Gutenberg (International conference held at Washington for the purpose of fixing a prime meridian and a universal day. October, 1884. Protocols of the proceedings, 1884).
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lisou as tarefas do trabalhador de acordo com o uso do tempo, e marcações do tempo foram desenvolvidos para maximizar a produção. Dentro desse contexto, é possível afirmar que esse modelo tempo universal, desconectado dos lugares e do tempo vivido, introduzido através do desenvolvimento do relógio nos últimos séculos, atinge seu o ápice de acurácia com os relógios atômicos que orbitam a terra nos satélites do sistema GPS. Holmes (2004, p. 1) chama atenção para o fato de que para que uma localização seja identificada, o relógio em cada receptor pessoal tem que ser exatamente sincronizado com os relógios atômicos em órbita. Então teríamos o que o autor chama de “integração ao tempo imperial”. Atualmente, conforme afirma Holmes (2004, p. 1), reivindicando Althusser, quando um indivíduo em qualquer lugar do mundo utiliza um aparelho GPS, está se conectando com os resultados de uma campanha imperial bélica aeroespacial que promoveria um “assujeitamento”43 desse indivíduo, que seria “interpelado” pela ideologia imperial: As ondas de rádio codificadas por computador interpelam você no sentido de Althusser, eles saúdam você com um “hey!” eletromagnético. Quando você usa o dispositivo de localização, você responde à chamada: você está interpelado na ideologia imperial. A mensagem é que integração é igual a segurança, como exemplificado na publicidade do Digital Angel, um dispositivo locativo pessoal lançado para vigilância médica e atendimento ao idoso. É um desenvolvimento lógico para quem leva a sério o conceito de “ataque cirúrgico”: entregue-se aos cuidados das máquinas, torne-se um alvo pela segurança. (Holmes, 2004, p. 1).
O surgimento de telefones móveis com GPS integrado e recursos de multimídia para sistemas web criou, conforme já afir43
Para Althusser (1980, p. 99-100), “um ser submetido, sujeito a uma autoridade superior, portanto desprovido de toda a liberdade, salvo da de aceitar livremente a sua submissão. Esta última reflexão dá-nos o sentido desta ambiguidade, que reflete apenas o efeito que a produz: o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para que se submeta livremente às ordens do Sujeito, portanto para que aceite (livremente) a sua sujeição, portanto, para que realize sozinho os gestos e os atos da sua sujeição”.
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mamos, o que tem sido chamado de Geospatial Web, que incorpora mapas com informações geolocalizadas a partir de coordenadas específicas, agregando on-line uma camada de dados localizados espacialmente, informações que podem ser gerenciadas e acessadas, possibilitando uma intensa troca de informações com o mundo tangível. Lemos (2008; 2010a) ressalta como tecnologias com funções locativas (bancos de dados em redes sociais, etiquetas RFID, deslocamentos com o telefone celular localização por GPS, tracking de cartões eletrônicos, cartões dos transportes públicos, redes bluetooth, triangulação de Wi-Fi etc.) permitem que informações sejam associadas a dados geográficos, e possibilitam acesso e distribuição em tempo real em redes de comunicações sem fio, podendo funcionar como instrumentos de controle, monitoramento e vigilância não só dos indivíduos como dos espaços de novas maneiras. Alguns trabalhos de Foucault analisam um tipo de poder denominado “biopoder”, voltado não mais para os indivíduos, mas para os grandes conjuntos populacionais. Em suas análises, Foucault (1980) sinalizou um movimento de migração de uma sociedade disciplinar em direção àquilo que Deleuze (1992, p. 220) denominou uma sociedade de controle. Nas sociedades de controle, o poder, que era personalizado e centralizado nas sociedades disciplinares, se fragmenta, o que significa que as instituições disciplinares ainda estão presentes. No entanto, a sua autoridade não é mais confinada às instituições particulares e sim disseminada na vida e no comportamento das pessoas: os mecanismos de comando, travestidos de democracia, se tornam cada vez mais imanentes ao campo social, distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos. O poder passa a ser exercido mediante tecnologias e redes de informação e comunicação que organizam diretamente o cérebro e os corpos no objetivo de um estado de alienação independente do sentido da vida e do desejo de criatividade. (Negri; Hardt, 2001, p. 42).
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Dentro desse contexto das sociedades de controle, Drew Hemment (2004a, p. 2) sublinha que a legitimação dos processos de identificação e localização possibilitados pelas tecnologias location aware, que operam de uma maneira diferente do lugar do olhar panóptico dentro das sociedades disciplinares, justamente por se configurarem como uma função geral das sociedades de controle. Crandall nos mostra a dimensão do olhar panóptico proporcionado pelo GPS que, segundo o autor, Foi motivado por, e participou da construção de, um imaginado gabinete de supervisão panóptico mundial – uma “Dominância de espectro total”. Em 1997, o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea dos Estados Unidos previu que até o ano 2000, “seremos capazes de encontrar, rastrear e tornar um alvo virtualmente em tempo real, qualquer elemento significativo que se mova na face da terra”. O impulso operacional é sobre a aquisição de uma posição de domínio através de uma distribuição onisciente do olhar: um olhar controlador que está em toda parte, ainda que em lugar nenhum, e que adquire poder apenas por causa desta ausência de forma definida. (Crandall, 2005, p. 1).
Sob o olhar panóptico, a vista transforma as forças da vida em objetos que se podem observar e medir, atualmente a questão perpassa muito mais pela dimensão de controle e gerenciamento da vida do que da vigilância disciplinar. Para Hemment (2004a, p. 2), a centralidade cada vez maior de sistemas de vigilância, principalmente no setor comercial, sugere um novo papel para a vigilância: não de controlar o desvio, crime ou terrorismo, mas de gestão do consumo e a produção de sujeitos dóceis. Escrito em 2004, o artigo faz uma bem-sucedida previsão de como o celular incorporaria um olhar panóptico e de como aplicativos comerciais generalizariam processos de vigilância dos usuários44. 44
Atualmente são inúmeros os exemplos desse processo de vigilância por parte de corporações, que vão desde os termos de uso do usuário, que deve concordar com a cessão do uso de seus dados, até casos de envio de dados dos usuários sem a permissão deles.
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Todos os atuais dispositivos portáteis carregam em si a possibilidade de se tornarem ferramentas de vigilância. Hemment (2004a, p. 2) ressalta que as mídias locativas operam sobre o mesmo plano que o monitoramento militar do Estado e da vigilância comercial. Santaella, a partir da leitura de Tuters e Varnelis (2006), sistematiza críticas semelhantes realizadas às mídias locativas, evidenciando as tensões que as permeiam: A artista Coco Fusco, por seu lado, atacou as práticas associadas com redes e mapeamento, afirmando que elas fazem evaporar quatro décadas de crítica pós-moderna ao cartesianismo. Em vez de abraçar táticas fundadas em sonhos de onisciência, os artistas e ativistas deveriam examinar a história da globalização, das redes, das ações coletivas para se darem conta de quão enraizados eles estão nas margens da cultura e da geopolítica. Segundo o artista e teórico Jordan Crandall, os projetos de mídias locativas estão nos escravizando em um neocartesianismo pelo ressurgimento da especificidade temporal e local, testemunhada pelas tecnologias de vigilância e navegação sensível ao local. A crítica mais devastadora veio de Brian Holmes (2003), quando afirmou que, com as mídias locativas, a estética da deriva está em todas as partes, assim como a grelha hiper-racionalista da infraestrutura imperial, pois, ao usar uma tecnologia controlada pela defesa militar norte-americana, estamos sendo interpelados por sua ideologia imperial. (SANTAELLA, 2010, p. 130).
Como podermos observar, o uso das tecnologias location-aware como um local de resistência que se articula no e através do elemento de detecção do Estado, possui uma natureza contraditória, à medida que a intenção original (e contínua) do sistema GPS é “ver” o mundo como uma zona militarizada global. Uma vez que a utopia locativa esbarra na fantasia distópica do controle total, as mídias locativas podem desafiar ou ser coniventes com essas formas de controle social (HEMMENT, 2004a, p. 1). É o dilema entre Eros e Thanatos apresentado por Santaella: “Os seres humanos oscilam entre dois grandes
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instintos (impulsos): o instinto pela vida (Eros) e o instinto pela morte, destruição e guerra (Thanatos)” ( SANTAELLA, 2010, p. 311).
3.3 Entre estratégias e táticas – contradições Ao fazer uma leitura crítica de Foucault, inspirada por Certeau (2004), é possível afirmar que existem outros processos além daqueles orientados pelo olhar panóptico. Como pontuou Hemment acima (2004a, p. 2), no caso dos sistemas pervasivos de localização existe a possibilidade de se ampliar as formas de interação e apropriação do espaço. Reynolds e Fitzpatrick (1999, p. 66) afirmam que, embora Certeau critique a análise de panopticismo e o discurso panóptico de Foucault, ele não contesta a afirmação básica de que as tecnologias de disciplina e vigilância geradas pelas reformas panópticas do Iluminismo tenham criado um espaço regulado e normalizado (uma “grade celular”), no qual o sujeito moderno existe. Em vez de tentar desmascarar Foucault procurando por inconsistências internas dentro desta teoria de partição do espaço panóptico, Certeau define parâmetros mais inclusivos que ampliam a área de investigação escolhida por Foucault para revelar as forças e as “microtécnicas” omitidas ou elididas por Foucault em seu estudo do panopticismo. Sabemos que a “vista de cima” pode exercer um forte apelo, no entanto, considerá-la como única ou mais adequada pode nos levar a ignorar algumas das facetas importantes da vida da cidade. Dessa forma, acreditamos que, além da visão panóptica, existem as possibilidades descortinadas pela interação no nível da rua, na qual uma outra cidade insinua-se no contexto da cidade planejada e visível. Se até então viemos mostrando a constituição do olhar panóptico como mecanismo de exercício do poder, empreenderemos agora uma descida, ao nível da rua, para buscar compreender e mostrar como algumas práticas espaciais e maneiras de operar, ou seja, práticas desviantes, maneiras de usar objetos e recursos culturais CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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não previstos na vida cotidiana, abrem possibilidades para se resistir à microfísica do poder, no caso, ordenada por um olhar panóptico. Para Certeau, a analítica do poder operada por Foucault leva a algumas questões a serem consideradas. Afinal, se a microfísica do poder é ubíqua e cada vez mais extensa, é necessário compreender como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela e quais procedimentos, quais “modos de operar” formam essa contrapartida aos processos que organizam a ordenação sócio-política. Trata-se de “exumar as formas sub-reptícias que são assumidas pela criatividade dispersa, tática e “bricoladora” dos grupos ou dos indivíduos presos agora nas redes da vigilância” (CERTEAU, 2004, p. 41). Para tal, Certeau desenvolve a ideia de “usos” ou “maneiras de fazer”, que seriam as maneiras pelas quais se configuram as práticas através das quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas redes de poder. Certeau distingue dois tipos de prática: estratégias e táticas. A estratégia é organizada pelo postulado de um poder. O autor (2004, p. 45) reconhece nas estratégias “um tipo específico de saber, aquele que sustenta e determina o poder de conquistar para si um lugar próprio” e elabora lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capaz de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem. No nosso caso, então, as estratégias incluem, por exemplo, os mapas que os planejadores da cidade fazem para apresentá-la como a organização de um todo unificado. O estratégico descreve uma posição privilegiada de controle e hegemonia e se utiliza de um olhar panóptico para isso. Já a tática envolve um habitar e experimentar o espaço. Para Certeau, é possível lutar contra as estratégias através de táticas, que nunca podem ser totalmente previstas pelos produtores orientados pela estratégia. A tática opera com a astúcia, que seria a capacidade de utilizar as falhas abertas nas conjunturas do poder e tem um caráter subversivo na medida em que se configura pelo que o ator chama de
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[...] práticas microbianas, singulares e plurais, que um sistema urbanístico deveria administrar ou suprimir e que sobrevivem a seu perecimento; seguir o pulular desses procedimentos que, muito longe de ser controlados ou eliminados pela administração panóptica, se reforçaram em uma proliferação ilegitimada, desenvolvidos e insinuados nas redes da vigilância, combinados segundo táticas ilegíveis mas estáveis a tal ponto que constituem regulações cotidianas e criatividades sub-reptícias que se ocultam somente graças aos dispositivos e aos discursos, hoje atravancados, da organização observadora. (CERTEAU, 2004, p. 45).
Embora sejam relativas às possibilidades oferecidas pelas circunstâncias, as táticas não obedecem à lei do lugar. Não se definem por este. Sob esse ponto de vista, são tão localizáveis como as estratégias tecnocráticas que visam a criar lugares segundo modelos abstratos hegemônicos. As estratégias são capazes de produzir, mapear e impor, ao passo que as táticas só podem utilizá-los, manipular e alterar. As táticas são fundamentais para a resistência ao poder institucional porque promovem rearranjos nas configurações impostas por uma ordem econômica dominante. Para Certeau, o andar pode ser pensado como uma prática ativa, que possibilita subverter a estratégia. Esse ponto de vista ilumina o fato de que, apesar do envolvimento da maioria das pessoas com o espaço urbano ser permeado de relações de poder que, se não impossibilitam, pelo menos dificultam a possibilidade de modificar a estrutura da cidade. Essa leitura permite pensar a experiência do espaço não simplesmente como sendo da ordem da passividade. Dentro desse contexto, a noção linguística de “performance” ajudou Certeau a pensar a ideia do caminhar como um processo de enunciação e performance. Em linguística, a “performance” não é a “competência”: o ato de falar (e todas as táticas enunciativas que implica) não pode ser reduzido ao conhecimento da língua45. 45
Verbos performativos são aqueles “cuja enunciação realiza a ação que eles exprimem e que descrevem certa ação do sujeito que fala. Eu digo, eu prometo, eu juro são verbos performativos porque, ao enunciar esta frase, se pratica a ação de dizer, prometer, de jurar” (Dubois, 1997, p. 464).
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Uma comparação com o ato de falar permite ir mais longe e não se limitar somente à crítica das representações gráficas, visando, nos limites da legibilidade, um inacessível além. O ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação [...] está para a língua ou para os enunciados proferidos. [...] O ato de caminhar parece, portanto, encontrar uma primeira definição como espaço de enunciação. (CERTEAU, 2004, p. 175).
Favorecer a perspectiva da enunciação é privilegiar a performance e as quarto operações desencadeadas pelo ato enunciativo: este opera no campo de um sistema linguístico; coloca em jogo uma apropriação, ou uma reapropriação da língua por locutores; instaura um presente relativo a um momento e a um lugar; e estabelece um contrato com o outro (o interlocutor) numa rede de lugares e de relações. Buchanan defende Certeau da possibilidade de seu uso do conceito de enunciação o levar, à maneira estruturalista, a privilegiar um sistema semiótico em detrimento de outro: O ato da fala, Certeau alega, não é só, nem fundamentalmente, um conceito linguístico. Como tal, a enunciação ‘fornece um modelo’ (1984: 33). Assim, não é uma questão de privilegiar um modo de enunciação sobre o outro, mas sim utilizar um conjunto de análises de expressão para se relacionar com o outro. (BUCHANAN, 1996, p. 117).
Tal ponto de vista ajuda a compreender a percepção de Certeau dos espaços como “lugares praticados” (CERTEAU, 2004, p. 173). A ideia do espaço como lugar praticado reinsere o ser humano no espaço que não existiria sem a experiência humana incorporada. O pedestre, ao caminhar, também pode atualizar algumas das possibilidades determinadas pela ordem construída, afinal existe uma ordem espacial que organiza um conjunto de possibilidades que se atualizam no caminhante. Entretanto, ele também as desloca e inventa outras, pois as idas e vindas, as variações ou as improvisações da caminhada abrem taticamente possibilidades de produção do espaço.
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Certeau foi especialmente importante até aqui por proporcionar um caminho do “olhar panóptico” até as ruas. A ênfase de Certeau nas operações desviantes que compõem as práticas, abre a possibilidade de formas específicas de interação no espaço urbano proporcionarem espaços de sociabilidade, consciência crítica e reflexiva. Seu debate tem o mérito de chamar atenção para “microrresistências” que possibilitam fazer usos diversos bem diferentes de uma aceitação passiva das relações de poder e como o caminhar pode ser compreendido performativamente. Entretanto, ao utilizarmos os conceitos de Certeau, especialmente os de “estratégias” e “táticas”, devemos ter certo cuidado para não os reduzir fenomênos complexos a um conjunto de oposições binárias, e assim obliterar seu potencial analítico. Esta concepção pode ser imediatamente vista como a introdução de uma dicotomia entre poder e resistência que envolve uma concepção de poder em sociedade, “como uma ordem monolítica, de um lado, e as táticas dos fracos de outro” (MASSEY, 2008, p. 76). Uma consequência disso, segundo Massey (2008, p. 76), seria uma leitura nas teorias de Certeau que proporcionariam um enquadramento do espaço apenas como uma exterioridade estática, contra as quais a resistência pode ser constituída, e é justamente essa concepção de espaço como uma entidade estática que Certeau problematizou. Essa ponderação é especialmente importante, dada a natureza ambígua do nosso objeto. As mídias locativas encontram-se atravessadas por forças estratégias e táticas que se enredam mutuamente, mostrando que as coisas nem sempre são tão claras e dicotomizáveis. Por exemplo, as mídias locativas carregam a contradição intrínseca de trazerem em sua constituição o “olhar panóptico”. Peixoto (2004, p. 81) nos lembra que a mídia locativa pressupõe, mesmo que apenas implicitamente, uma vista aérea. Na verdade, diversas lógicas podem coexistir em diferentes níveis simultaneamente. Peixoto (2011, p. 81) chama atenção para o fato de que o domínio da grande escala tornou-se uma questão CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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estética, política e cognitiva decisiva desde a Land Art46. Sua afirmação mostra como o olhar panóptico pode ser enviesado esteticamente e articulado ao ato de caminhar. Não sem razão, as mídias locativas têm sido apresentadas como herdeiras da Land Art por muitos teóricos, como por exemplo Bambozzi (2009), Bueno (2010) e Hight (2006), dentre outros. As mídias locativas também fazem uso de tecnologias e serviços corporativos, providos por companhias de telefonia e muitas vezes os próprios projetos artísticos são financiados ou apresentados por elas. Tuters e Varnelis apontam abaixo o forte laço das mídias locativas com empresas e corporações que patrocinam os projetos e exemplificam: Proboscis, um grupo que se posiciona como um “estúdio criativo e think tank para a cultura” de financiamento público, recebeu patrocínio da Orange, uma rede celular 3G, assim como da France Telecom R&D, e recebeu geodados exclusivos doados pelo projeto Royal Ordnance Survey for the Urban Tapestries do governo Britânico. Blast Theory, um grupo de mídia locativa composto por vários artistas de teatro de vanguarda com sede em Londres, ganhou notoriedade por projetos como Can You See Me Now (2001), Uncle Roy All Around You (2003) e I Like Frank (2004) [...] foi apoiado através de patrocínio de empresas, financiamentos públicos das artes e uma colaboração de 6 anos com o Mixed Reality Laboratory (LMR) na Universidade de Nottingham. (Tuters; Varnelis, 2006, p. 360).
Ao analisar as relações entre produção cultural e cultura corporativa, Bastos afirma ser habitual eventos patrocinados por marca, em um “intercâmbio de valores entre o artístico, o comercial e o entretenimento” (BASTOS, 2011, p. 31). Assim como Tuters e Varnelis (2006, p. 360), Bastos critica a nostalgia da noção de arte como autônoma dos circuitos de tecnologias de comunicação de massa. O autor aponta as contradições envolvidas e enfoca a hete46
No próximo capítulo trabalharemos melhor essa questão.
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rogeneidade dos agentes, intermediários e objetos que configuram as práticas de mídias locativas em sua rede de complexidades, nas quais muitas vezes os trabalhos vão de encontro aos interesses das corporações patrocinadoras, o que denota certa liberdade dos artistas e curadores em sua intimidade com o poder corporativo. Essa dinâmica pode ser encontrada em análises de outros objetos. Crane (2012, p. 352-372), por exemplo, em sua análise de práticas de dumpster diving47 realizadas por punks, mostra que tais práticas, mesmo que “supostamente evasivas”, visando a escapar de relações de poder, terminam por se tornar necessariamente íntimas da governança. Não se trata de invalidar a possibilidade de ação volitiva, mas sugerir que tal ação carrega dentro de si consequências não intencionais. Além disso, uma análise que se fixa muito enfaticamente sobre as afinidades mais óbvias inscritas em uma situação, ou pior, que se pauta exclusivamente em uma prática de liberdade dentro de uma “resistência separatista”, arrisca-se erroneamente a basear seu julgamento, no caso, nas intenções de seus praticantes, em vez de buscar apreender as diversas dinâmicas em questão. Rose (2002, p. 383), cuja análise caminha na mesma direção, apresenta a necessidade de se ampliar o olhar para apreender as complexidades envolvidas nas relações de resistência. Para o autor, apesar do interesse que este novo subcampo tem atraído, o desafio criou uma encruzilhada teórica. Se escolhermos os critérios de forma restritiva, corremos o risco de ignorar determinadas formas de práticas contraditórias, mas se aceitarmos cada momento da prática contraditória como um exemplo de resistência, nossos conceitos de resistência se tornam desprovidos de qualquer utilidade prática. Nesse sentido, “é ingênuo pensar as mídias móveis fora do contexto mais amplo de uma cultura em rede que gradualmente se capilariza” (BAMBOZZI et al., 2010, p. 30). Em nosso processo de pesquisa foi necessário resistir às facilidades de uma explicação 47
Dumpster diving é a prática de vasculhar lixos comerciais ou residenciais em busca de itens, inclusive alimentos, que foram descartados por seus donos, mas que podem ser úteis para aquele que vasculha.
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binária, na qual as mídias locativas encarnariam os processos táticos “da rua” em oposição ao olhar panóptico. A complexa rede acionada pelas mídias locativas nos mostra como é necessário ultrapassar as abordagens dicotômicas que de um lado veem as mídias locativas como um “avant-garde da sociedade de controle48”, ou por outro lado, como pura tática desafiando as estratégias do poder. Não dispensamos o rico arcabouço teórico de Certeau, no entanto, como podemos observar, as mídias locativas se constituem na complexidade de articulações e contaminações mútuas entre estratégias e táticas. No contexto de emergência da internet das coisas em que vivemos, essa operação, especialmente como ação estética processual, é de grande complexidade (BEIGUELMAN, 2013, p. 169). Isso porque operar no interior e através dos seus vetores de mediação, passa pela recusa das retóricas publicitárias de uso das redes, mas não pela negação pura e simples do consumo e das formas de poder.
3.4 Mídias Locativas e a partilha do sensível Dentro desse contexto, mais do que invocar nostalgicamente um mundo desprovido de tecnologias a serviço do poder, deveríamos nos perguntar quais potências podem surgir do encontro entre o olhar panóptico e o nível da rua operado pelas mídias locativas. É inegável que emerge nas mídias locativas uma possibilidade de construção de novos discursos e de sentidos outros, diferentes daqueles que são conduzidos por lógicas de produção, a auto-otimização, e vigilância. Conforme afirma Holmes,
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Andreas Broekman, (diretor do Festival Transmediale, em Berlim), tornou essa expressão célebre em um debate na lista de discussão “New Media Curating” (CRUMB), quando afirmou: “Eu não quero estragar a festa, mas sempre entendi o termo “locativo” apontando para ambos os sentidos, o potencial para enriquecer a experiência dos espaços físicos comuns [...], mas também fomentando a possibilidade de ‘localizar’, ou seja, rastrear qualquer um utilizando tal dispositivo. Isso torna o movimento das ‘mídias locativas’ em algo como uma “vanguarda” da sociedade de controle. (Broekman, 2004, p. 1).
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A questão não é se esquivar da bala mágica, ou de construir um espaço de fantasia onde você poderia sobreviver livre da vigilância. A questão para artistas, intelectuais e tecnólogos é como jogar um jogo significativo, em vez de reclinar e declinar em uma gaiola dourada, como relações públicas e desenvolvedor de novos produtos corporativos da linha principal de dispositivos militares. A questão é como se envolver em contra-comportamentos, capazes de subverter os efeitos da governança cibernética. (HOLMES, 2008b, p. 7).
Na busca de evitar um enrijecimento para se compreender um fenômeno marcado por contradições e pelo movimento, resgataremos aqui as relações entre arte, política e resistência tal como proposta por Jacques Rancière. No entanto, resistência, aqui, não significa exatamente fazer a revolução a partir da tomada do aparelho de Estado, conquistar o poder constituído para construir uma nova forma de sociabilidade, aos moldes típicos de uma cartilha revolucionária dos anos 1960-1970 (VASCONCELOS, 2012, p. 143). Tampouco, conforme afirma Holmes, (...) de resistir às mutações contínuas do capitalismo de uma posição defensiva de identidade, um status de classe, uma tradição cultural instituída localmente (“todo um modo de vida”, como disse o fundador dos estudos culturais Richard Hoggart, ou mesmo “todo um modo de conflito”, como EP Thompson afirmou). (HOLMES, 2011, p. 273).
O que estamos a chamar de resistência, mais do que se instituir diretamente como oposição a uma estratégia, no sentido de Certeau, são maneiras de organizar o sensível que podem “recompor as relações entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer que definem a organização sensível da comunidade” (Rancière, 1996, p. 51). Para Rancière (2012a, p. 1), o modelo da arte que assume um compromisso político foi orientado por Brecht, segundo o qual era necessário desestabilizar a percepção do espectador, causar um “efeito de estranhamento” (Verfremdung) para que, no espaço da CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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obra, ele visse como estranho aquilo que era considerado normal, produzindo assim alguma transformação em seu espírito, que poderia ser canalizada em energia para ações transformadoras. O autor é categórico em afirmar que tal modelo “nunca produziu efeitos políticos verificáveis, só produziu uma certa concepção do que uma ‘arte política’ deveria ser” (Rancière, 2012a, p. 1). Todavia, para o autor, existe um outro modelo, que concebe o trabalho político do artista como a investigação de determinado aspecto da realidade que está enquadrado, ou formatado por modelos hegemônicos, na tentativa de devolvê-lo à realidade sensível. Esse modelo é importante para pensarmos na arte não como uma pedagogia ou explicação do mundo, e sim como afirma Rancière, uma reconfiguração do mundo sensível, a partir de reconfigurações da partilha do sensível. Para o autor, esse movimento é essencialmente político: Esta distribuição e redistribuição de lugares e identidades, esta partilha e repartilha de espaços e tempos, do visível e do invisível, e de ruído e fala constitui o que chamo de partilha do sensível. A política consiste em reconfigurar a partilha do sensível que define o comum de uma comunidade, para introduzir nela novos sujeitos e objetos, para tornar visível o que foi visto como meros animais ruidosos. (RANCIÈRE, 2009, p. 24-25).
Rancière chama de partilha do sensível, um esquadrinhamento da circulação do que é dado a dizer, a ouvir e sentir (Migliorin, 2008, p. 3). Em determinada partilha, existem os que têm direito à fala e quais as possibilidades do sensível dentro dessa partilha. Existem também os indivíduos e grupos que operam deslocamentos no que é possível ver, dizer e sentir. Dentro desse contexto, uma obra de arte pode tornar visível o que é invisível em uma partilha do sensível. Além, é claro, de proporcionar outras partilhas do sensível, que, mais do que descrever a miséria ou denunciar a exploração, restituiriam a força da experiência e da palavra aos excluídos (RANCIÈRE, 2012a, p. 1).
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Assim, o caráter subversivo das mídias locativas se daria não por apresentar uma alteridade radical, uma ruptura, mas por mobilizar elementos, configurações e relações que guardam o potencial de alterar a partilha do sensível dos habitantes de um determinado território. Um bom exemplo de uma experiência partilhada, mediada por tecnologias location aware pode ser o Tactical Sound Garden (2006). O projeto (Figura 3.4) criado por Mark Shepard49 é uma plataforma de código aberto que possibilita a criação e fruição comunitária de “jardins sonoros”.
Figura 3.4 – Tactical Sound Garden. Mark Shepard. 2006 Fonte: . Acesso em: abr. 2019
A plataforma utiliza redes sem fio locais preexistentes50 e possibilita aos membros da comunidade “plantar” sons e georreferenciá-los a um determinado local. Outros membros da comunidade 49
Em colaboração com Fiona Murphy (gravação de campo, a produção de som), Brian Diesel (programação), Aaron Flynt (programação), Achint Thomas (programação), Viral Modi (programação), Ajeya Krishnamurthy (programação), e Sepand Ansari (programação). 50 O projeto se aproveita dos hotspots Wi-Fi dentro das cidades. Qualquer dispositivo habilitado com a tecnologia Wi-Fi é um canal para o jardim de som e permite ao usuário ouvir e manter o jardim.
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poderão então experimentar esses sons, ouvindo-os no celular. Assim como a experiência sonora, há uma experiência comunitária com os usuários capazes de participar na criação e manutenção do jardim: membros da comunidade que cuidam do jardim, plantando e podando os sons ou apenas desfrutando dele. Como podemos observar, a partilha se dá seja pela dispersão de seus fragmentos ou pela sobreposição de vários lugares simultaneamente, em um único lugar físico e/ou virtual. Por exemplo, podemos citar o projeto Pac-Manhattan (2004), desenvolvido por um grupo de estudantes de pós-graduação no Programa de Telecomunicações Interativa da NYU. No jogo (Figura 3.5), utilizando telefone celular com acesso à internet Wi-Fi e software projetado pela equipe de Pac-Manhattan, um jogador vestido como Pac-man corre pelas ruas de NY para tentar coletar “pontos” virtuais que são colhidos à medida que ele avança pelas ruas. Quatro jogadores vestidos como os fantasmas tentam pegar Pac-man antes de coletar todos os pontos. Pac-man e os fantasmas são monitorados a partir de uma localização central e o jogo é transmitido através da internet.
Figura 3.5 – Pac-Manhattan. 2004 Fonte: . Acesso em: abr. 2019 128
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Ao acionar e partilhar lugares compostos por múltiplas camadas de informação e experiência, as mídias locativas permitem cartografias experimentais potencializadas pela possibilidade de articular o micro e o macro em configurações espaço-temporais singulares, muitas vezes de configuração efêmera, nas quais o espaço urbano se torna uma parte do “tabuleiro”, configurado pela interposição de camadas de espaços e informações. Tuters e Varnelis sugerem que a mídia locativa oferece uma estrutura conceitual pela qual é possível examinar certas assemblages tecnológicas e seus potenciais impactos sociais. Ao acionar uma rede que articula indivíduos, instituições, tecnologias em suas capturas e potências, torna públicas as práticas dos ocupantes de um dado território e seus colaboradores. As mídias locativas podem colocar em funcionamento os ruídos, as maquinações que emergem como condições de possibilidade. Trata-se de inventar modos de existência, “segundo regras facultativas, capazes de resistir ao poder, bem como se furtar ao saber, mesmo se o saber tenta penetrá-los e o poder tenta apropriar-se deles: os modos de existência ou possibilidades de vida não cessam de se recriar” (DELEUZE, 1992, p. 116). A partir da “redisposição” dos objetos e das imagens que formam o mundo já dado, redefinem situações e encontros existentes. Isso é possível porque, conforme afirma Machado, [...] ao mesmo tempo em que se abre às formas de produzir do presente, contrapor-se também ao determinismo tecnológico, recusar o projeto industrial já embutido nas máquinas e aparelhos, evitando assim que sua obra resulte simplesmente num endosso dos objetivos da produtividade da sociedade tecnológica. (MACHADO, 2007, p. 16).
Nesse sentido, a partir de tecnologias de segurança que são projetadas para controlar o nosso comportamento, o já citado projeto Biomapping promove uma partilha dos dados ao permitir que as pessoas compartilhem seletivamente e interpretar seus “bio”
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dados. Conforme afirma Holmes, “a maioria dos projetos alternativos ou obras de arte que utilizam o sistema GPS têm como premissa a ideia de que ele permite uma inscrição do indivíduo, um ornamento geodésico de diferença individual” (HOLMES, 2009, p. 1). Em 1992, o artista japonês Masaki Fujihata subiu o Monte Fuji com um grupo de pessoas para realizar a obra “Impressing Velocity – Mount Fuji”. Fujihata levava uma mochila com um GPS conectado a um laptop e um pequeno carro de controle remoto com uma câmera acoplada. Na escalada, além das imagens, foram documentados os dados de três dimensões: latitude, longitude e altura de todo o percurso. Os dados foram usados para determinar a velocidade em cada parte do caminho e correspondente aos dados de velocidade. Fujihata criou então uma modelagem 3D da montanha a partir do que os dados mostravam (Figura 3.6).
Figura 3.6 – Impressing Velocity – Mount Fuji, Masaki Fujihata, 1992. Frames do vídeo Fonte: . Acesso em: abr. 2019
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A obra tenta simular a percepção da velocidade, através da criação de um equivalente visual, realizado pela distorção de imagem de acordo com a velocidade do telespectador. Em alta velocidade, a montanha é encolhida e em baixa velocidade, os dados que representam a montanha expandem-se, para indicar o cansaço na escalada. Em Impressing Velocity – Mount Fuji, Fujihata realiza um mapeamento do espaço/tempo, que combina a realidade objetiva do registro e subjetiva da experiência da subida. Masaki Fujihata foi um dos primeiros artistas a trabalhar com o GPS e Impressing Velocity – Mount Fuji pode ser considerado um dos primeiros trabalhos de mídia locativa. A propósito do GPS, Fujihata afirma que GPS é mais interessante para além das suas funções “úteis”, além do fato de que ele te diz uma longitude, latitude e altitude, que é uma função muito simples. De certa forma, eu também acho que o GPS pode ser um objeto fascinante para os artistas e pessoas descobrirem novos pontos de vista. (FUJIHATA, 2008, p. 1).
Em resposta ao estreitamento do espaço público e do desaparecimento da invenção política na era do consenso, Rancière (2005b, p. 50) relaciona o político à própria capacidade do dissenso. Dentro desse contexto, conforme afirma Cresswell (2004, p. 39), subversões podem ser polissêmicas, ganhando impulso na sua diversidade dispersa e descoordenada e arrancando os significados oficiais e designações de locais urbanos. Assim, as mídias locativas possibilitam a realização de dissensos à medida que os promovem, mudando os modos de apresentação sensível e as formas de enunciação, “construindo relações novas entre a aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e sua significação” (RANCIÈRE, 2012b, p. 64). Nesse sentido, as mídias locativas apresentam novos sentidos para o mapa e para o mapeamento.
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CAPÍTULO 4
DO FIM DAS GEOGRAFIAS ÀS INTERFACES URBANAS51
A emergência da internet e o aumento dos espaços virtuais e interações on-line em fins do século XX levou vários estudiosos a declararem o fim eminente dos lugares físicos. Para esses autores, uma configuração social na qual as tecnologias de mídia, computação e telecomunicações convergem, os custos de equipamentos e transmissão despencam, tornando a distância virtualmente independente, redes integradas de banda larga começam a mediar todas as formas de interação social, a vida humana se tornaria liberada das restrições de espaço e dos efeitos de atritos da distância (GRAHAM 1998, p. 167). Nicolas Negroponte, um dos fundadores e professor do Media Lab, do MIT, afirmou que a vida digital criaria cada vez menos dependência de se estar em um lugar específico em um momento específico (NEGROPONTE, 1995, p. 165). Em direção similar, outros autores proclamaram o “fim da geografia” (O’BRIEN, 1992), “morte da distância” (CAIRNCROSS, 1997), dentre outros.Tal perspectiva se baseia, segundo Graham (1998, p. 167), na ideia de substituição e transcendência na qual a territorialidade humana e as dinâmicas espaciais da vida humana de alguma forma podem ser substituídas usando novas tecnologias. Entretanto, ao se buscar entender o que tem acontecido com o espaço urbano no contexto de emergência e disseminação das tecnologias informacionais se delineia um ponto de vista diferente dessa visão, como será possível observar a seguir.
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Uma versão resumida desse capítulo foi publicada em: FRANCO, Juliana Rocha. Mídias móveis como interfaces urbanas: espaço, tempo e memória. V!RUS - Nomads.usp, v. 2, p. 1-8, 2018.
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4.1 A cidade e a crítica ao “fim das geografias” Engel (2012), no seu relato do desenvolvimento da palavra “cidade”, mostra que, historicamente, o termo foi posicionado contra algum outro espaço ou prática: por exemplo, urbano/rural ou centro/periferia, na qual a definição de cidade estava condicionada ao seu oposto binário e não a suas possibilidades e multiplicidades. Segundo o autor, relativamente até há pouco tempo (final do século XX), essas distinções binárias em grande parte persistiam não apenas na cultura popular, mas também no meio acadêmico e profissional. Especialmente importante para a presente discussão, é a separação conceitual da cidade de “bits” e da cidade de “átomos” (GRAHAM, 2004, p. 5). Para Engel (2012) a construção opositiva é decorrente da percepção da cidade como um contêiner, posição apresentada por Mumford: Para Mumford, a cidade era um container, ou seja, ela era e tinha que ser um espaço finito. Ele acreditava que o “gigantismo disperso” da cidade do século XX a conduzia inexoravelmente à megalópole e daí para a necrópole, a morte da cidade. A divisão nítida entre o campo e a cidade não existe mais, escreveu ele. O container original desapareceu inteiramente. (WILSON, 1995, p. 147).
Na verdade, a ideia da cidade como contêiner possibilitou pensar que, com a emergência de novas formas de comunicação possibilitadas pela informática, o espaço das cidades se tornaria obsoleto, uma vez que o contêiner no qual se desenrolariam as relações sociais seria deslocado para o que Castells chama espaço dos fluxos: “O espaço de fluxos se refere à possibilidade tecnológica e organizacional de organizar a simultaneidade das práticas sociais, sem contiguidade geográfica” (CASTELLS, 2000, p. 14). O problema de tal leitura da cidade informacional encontra-se na sua abordagem como uma cidade dupla, fragmentada e polarizada. Entretanto, apesar das leituras que preconizam a desmaterialização
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do espaço físico em detrimento do espaço virtual, os espaços físicos e lugares urbanos persistem e proliferaram. Com a ascensão da economia da informação, as tecnologias tornaram-se cada vez mais entrelaçadas à vida da/na cidade. As mídias móveis tornam a tela de computador obsoleta: o referente é o espaço físico. Essas tecnologias possibilitam a vinculação de informações ao espaço tangível e reposicionam o espaço de dados, digital, como algo que não é mais separado do espaço tangível. Para tal fenômeno alguns autores utilizam os termos embodied virtualization (WEISER, 1991, p. 98) ou embodied interaction (Dourish, 1999, p. 1). Tal forma de pensar desafiaria a própria definição do que a cidade é. Para Tuters (2004, p. 2) estamos testemunhando uma transformação da noção histórica de cidade. A citação do livro Cidades invisíveis, de Calvino abaixo, nos lembra que precisamos considerar a cidades em sua complexidade. Ao narrar e descrever o que parece ser uma série de cidades, o autor sugere que, na verdade, está a falar de apenas uma cidade, a partir de diferentes perspectivas e diferentes versões: a mesma cidade em sua riqueza e sua multiplicidade. A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca mais retornar; cada uma merece um nome diferente; talvez eu já tenha falado de Irene sob outros nomes; talvez eu só tenha falado de Irene. (CALVINO, 1990, p. 53).
Dentro desse contexto no qual a cidade tornou-se um amálgama de espaço físico e digital, o espaço urbano não deveria ser considerado como uma construção puramente física em oposição a uma instância desmaterializada virtual. Aliás, conforme afirma Beiguelman (2013, p. 147), a oposição real/virtual é um mero anacronismo do século XX. Santaella (2009a, p. 205) explica o porquê: uma vez que a percepção se dá em um continuum sensório, não há por que postular uma separação drástica entre pretensos espaços virtuais. CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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Nesse sentido, o projeto Can You See Me Now? realizado em parceria entre o grupo Blast Theory e Mixed Reality Lab52 é emblemático. Jogos que operam na confluência dos espaços são chamados por Silva (2009, p. 404-424) de hybrid reality games. O trabalho é uma espécie de “performance jogo” (Figura 4.1). A primeira versão do jogo aconteceu na cidade de Sheffield, Reino Unido.
Figura 4.1 – Can you see me now? Tokyo, Frame do vídeo. Blast Theory. Desde 2001 Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Por ter sido desenvolvido em 2001, Can You See Me Now? não usou telefones com GPS53. Em vez disso, combinou dispositivos de GPS para localização e mapeamento e walkie-talkies para comunicação. Existem no jogo dois tipos de jogadores: os chamados 52
O Mixed Reality Lab (MRL) é um grupo interdisciplinar de pesquisadores University of Nottingham, Reino Unido, chefiado pelo professor Steve Benford. O MRL compreende cientistas da computação, programadores, designers de interface, etnógrafos e sociólogos em pesquisas que buscam explorar os limites entre o espaço real e virtual. 53 Nas versões mais recentes do Can You See Me Now? o tabuleiro de jogo on-line é um modelo 3D da cidade de espaço e de rua corredores estão equipados com telefones 3G com GPS.
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“corredores”, equipados com computadores portáteis, receptores GPS e walkie-talkies que correm pelas ruas de determinado espaço da cidade. Seus computadores de mão mostram as posições dos jogadores on-line próximos. Os jogadores on-line podem estar em qualquer lugar do mundo conectados a uma interface que apresenta um mapa baseado na cidade na qual estão os corredores (Figura 4.2). A interface permite que eles interajam com os jogadores de rua, representados como pontos em movimento no mapa. Os corredores (Figura 4.3) podem, como já afirmamos, ver a posição relativa (no mapa) dos jogadores on-line representados como pontos brancos em um mapa da mesma área em suas telas de PDA.
Figura 4.2 – Can you see me now? Tokyo, Interface. Frame do vídeo. Blast Theory. Desde 2001. Fonte: . Acesso em: abr. 2019
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Figura 4.3 – Can you see me now? Tokyo, Corredor. Frame do vídeo. Blast Theory. Desde 2001 Fonte: . Acesso em: abr. 2019
O objetivo dos jogadores on-line é fugir dos jogadores de rua. Se um corredor se aproxima pelo menos cinco metros de um jogador on-line, este é “capturado” e forçado a deixar o jogo. Ao registrar-se como jogador on-line para o jogo, você é convidado a escrever o nome de alguém que você não vê há muito tempo, mas ainda pensa. Em seguida, você/seu avatar é deixado em um local aleatório na cidade virtual, ao lado de cerca outros tantos jogadores on-line. O gráfico apresenta o avatar preto simples e com as setas do teclado você pode mover-se ao redor da cidade virtual. Se um corredor fica dentro de cinco metros de sua posição, você é “visto” e eliminado e seu jogo acaba. O corredor, em seguida, tira, na rua, uma foto do local exato correspondente ao que o jogador on-line estava e anuncia: “Ei vi você”. Entretanto, em vez de usar o seu nome, o 138
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corredor usa o nome inserido no início do jogo. Mais tarde, essas fotos são enviadas para o site em um banco de dados pesquisável. A sala de controle fica no coração do jogo. Nela, o servidor do jogo roda um software para manipulação de mensagens entre uma variedade de dispositivos, desenvolvida pelo Mixed Reality Lab e que recebe mensagens de jogadores on-line (posições e texto de bate-papo) e envia para o os corredores. Os “espaços” neste projeto são todos sobrepostos, misturados e turvos. O mapa é uma rede complexa de camadas de redes de interação. A posição dos corredores é enviada ao servidor do jogo e de lá para jogadores on-line através da internet. As interações entre os jogadores são reforçadas por algum tipo de comunicação oral em tempo real: um bate-papo ao vivo permite aos jogadores on-line enviar mensagens de texto para outros jogadores on-line. Os corredores se comunicaram uns com os outros e com os jogadores on-line via walkie-talkies. Essa comunicação é tanto estratégica para a elaboração de reconhecimento do espaço físico do jogo (eles falaram sobre as condições meteorológicas, locais e paisagem física da cidade para envolver jogadores on-line na localidade) quanto lúdica. Ela ocorre através do que os autores chamam “túneis de áudio” (ADAMS, 2005, p. 32). Os túneis de áudio atravessam os espaços e possibilitam todos se relacionarem ao mesmo tempo possibilitando, conforme afirma Jesus, que o espaço se torne [...] a um só tempo real e virtual, efetiva sobreposição, dada a velocidade com que ocorrem as repercussões em ambos os lados. Não se trata simplesmente de agir à distância, como no universo das obras telemáticas. Trata-se de criar um espaço-tempo, situado a meio caminho entre real e virtual, que abarca as ações, decisões e deslocamentos dos jogadores. (JESUS, 2008, p. 226).
Para Bambozzi (2011, p. 104), o “entranhamento” dos fluxos de informação nas formas físicas do mundo vem permitindo imaginar geografias possíveis, em processos experimentais e subjetivos CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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– em cartografias que se potencializam a partir de novos procedimentos de medição, localização e posicionamento. Dessa forma, o que viemos sugerindo ao longo do presente trabalho, para além das oposições, é uma justaposição dos espaços que poderiam ser lidos em camadas como existindo em várias esferas simultaneamente: global e local; físico e tecnológico, o espaço e o lugar etc.
4.2 Memória e cidade Ao longo da última década, a computação ubíqua, redes sociais e tecnologias móveis tornaram-se parte integrante de nossas vidas sociais e práticas de trabalho. É possível afirmar que tal processo permitiu enfatizar as cidades como um lugar de encontro social nos quais coexistem múltiplas experiências de tempo e espaço, resultante de suas teias relacionais sobreposição de diferentes ritmos de tempo e alcance geográfico. Dentro desse contexto é importante ressaltar que ao mesmo tempo em que “moldamos” nossas cidades, somos moldados por ela. A maneira como nos movemos e memorizamos nossa experiência espacial promove modificações na maneira como nosso cérebro é configurado. Pesquisas têm mostrado (MAGUIRE et al., 2000) que pessoas que lidam com grande volume de informação espacial em processos navegacionais (como taxistas, por exemplo) registram um aumento do volume do hipocampo posterior, que armazena uma representação espacial do ambiente e pode se expandir regionalmente para acomodar elaboração desta representação em pessoas com uma elevada necessidade de habilidades de navegação. Dessa maneira, se, conforme afirmamos acima, a maneira como experimentamos o espaço modifica nossa estrutura cerebral, a cidade, à medida que media nossa relação com o mundo e nos oferece acesso a informações, pode ser compreendida como uma interface que “conecta uma realidade objetiva e um sistema cog-
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nitivo, também real, mas que, para permanecer, teve que codificar esta realidade” (VIEIRA, 2007, p. 101). O que estamos denominando interface é, segundo Drucker, […] uma entidade, uma estrutura fixa ou determinada que suporta certas atividades, ela tende a reificar da mesma forma que um livro faz com a descrição tradicional. Mas nós sabemos que um códex não é uma coisa, mas um conjunto estruturado de códigos que suportam ou provocam uma interpretação que é por si só performativa. (DRUCKER, 2011, p. 8).
Uma rede de mediações que também funcionam como interfaces: acessamos a cidade através de outras interfaces, num contínuo “jogos de espelhos” (FRANCO, 2014). Dentro desse contexto, emerge a questão da importância que o espaço e especificamente o espaço urbano e sua experiência desempenha na formação e preservação de memórias coletivas. Rossi (1982) afirma que cidade é o lugar da memória coletiva: Pode-se dizer que a própria cidade é a memória coletiva de seu povo, e, como a memória, está associada a objetos e lugares. A cidade é o lugar da memória coletiva. Esta relação entre o locus e os cidadãos, em seguida, torna-se a imagem predominante da cidade, tanto da arquitetura e da paisagem, e como certos artefatos tornam-se parte de sua memória, novos emergem. Neste sentido inteiramente positivo, grandes ideias fluem através da história da cidade e dão forma a ela. (ROSSI, 1982, p. 130).
Ao tratar da memória coletiva, é importante fazer algumas considerações sobre o trabalho de Halbwachs sobre os quadros sociais da memória e a presença de lugares físicos e espaciais da memória coletiva. A leitura de Halbwachs é importante para nós à medida que indica que há uma associação entre memória, sociedade e alteridade. Segundo Santos (1998, p. 154), a afirmação central de Halbwachs sobre a memória é a de que, quaisquer que sejam as lembranças do passado que possamos ter, por mais que
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pareçam resultado de sentimentos, pensamentos e experiências exclusivamente pessoais, elas só podem existir a partir dos quadros sociais da memória. Halbwachs, ao considerar os quadros sociais da memória, está levantando a questão da presença do “outro genérico” em nossa percepção da realidade, e mostra a importância da informação como mediadora de construção de identidades: Se passamos a compreender que nossas lembranças relacionam-se a quadros sociais mais amplos, compreendemos também que o passado só aparece a nós a partir de estruturas ou configurações sociais do presente e que memórias, embora pareçam ser exclusivamente individuais, são peças de um contexto social que não só nos contém como é anterior a nós mesmos. (SANTOS, 1998, p. 155).
Ao ressaltar o caráter social da memória e explicar que nem mesmo as memórias mais íntimas podem ser pensadas em termos exclusivamente individuais, Halbwachs enfatiza tanto o caráter social quanto interativo da memória. A lembrança é resultado do convívio do indivíduo com outros indivíduos (SANTOS, 1998, p. 155). Esta rede de relações e interações está presente na memória que cada um guarda como “exclusivamente” íntima e pessoal. A memória é adquirida à medida que o indivíduo toma como sua as lembranças do grupo com o qual se relaciona: há um processo de apropriação de representações coletivas por parte do indivíduo em interação com outros indivíduos, um processo indissociável da linguagem. As reivindicações que são feitas e as histórias que são contadas em nome da memória podem alterar a compreensão do mundo das pessoas e, é claro, alterar as formas em que eles atuam em ou sobre aquele mundo. Um aspecto fundamental das mídias locativas é que elas possibilitam narrativas e estruturas não lineares e localizadas sobre a cidade. Uma série de projetos possibilita destacar a importância da memória coletiva, a fim de apreender e compreender o espaço
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urbano da cidade, bem como a importância do espaço urbano na criação e transmissão de tais memórias. Um bom exemplo é projeto Urban Tapestries (2002-2004) concebido pelo grupo Proboscis54. O projeto se configurou como uma plataforma de software que permitia que as pessoas anexassem suas próprias anotações virtuais da cidade (Figura 4.4), possibilitando que os cidadãos comuns incorporassem o conhecimento social na nova paisagem sem fio da cidade ao criar uma memória coletiva materializada em um “mapa coletivo mnemônico”.
Figura 4.4 – Urban Tapestries. Proboscis, 2002-2004 Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Entretanto, é preciso ressaltar que a tecnologia por si só não possibilita esse processo. Dessa forma, uma crítica possível a tais 54
Em parceria com as instituições London School of Economics, Birkbeck College, Orange, HP Research labs, France Telecom R&D UK, Ordnance Survey.
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processos seria a possibilidade de eles ficarem presos a seu caráter indicial e terminar por funcionar apenas como banco de dados de fotos, filmes e sons geolocalizados, como podemos observar em determinadas aplicações comerciais. Conforme afirma Silveira (1983, p. 17), “a simples acumulação de fatos passados, todos eles necessariamente particulares, seria incapaz de produzir ideias genuinamente gerais sobre os fenômenos e dar garantias reais de que a conduta futura alcançará – mesmo nos limites da probabilidade – os fins procurados”. Apropriar-se produtivamente de um material mediático pressupõe uma atitude reflexiva, uma capacidade de acionar experiências, histórias de vida, elementos presentes na memória coletiva, nos rituais ou nas narrativas disponíveis de uma dada comunidade para produzir novos sentidos e orientações simbólicas, que os próprios atores sejam capazes de reconhecer. Na mitologia Grega, quando Ariadne, enamorada por Teseu, condenado a morrer no labirinto, morada do temível minotauro, pediu a Dédalo, construtor do labirinto, por ajuda, ele não lhe deu um mapa comum, desenhado em papel, com a saída assinalada. Ele lhe deu um novelo de linha. A linha materializaria o rastro do herói em sua jornada através do labirinto funcionando como um método para anotar o espaço e permitiu a Teseu retraçar seus movimentos através do espaço e encontrar seu caminho através do labirinto. O rastro, não só no caso de Teseu, mas também no caso das mídias móveis, pode ser compreendido como uma interface para acessar o espaço e o tempo, como podemos observar no projeto Amsterdam Real Time (2002). Em outubro e novembro de 2002, a artista Esther Polak, em colaboração com Jeroen Kee e Waag Society55, realizou o projeto Amsterdam Realtime (Figura 4.5) no
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A Waag Society é um laboratório de mídia cultura e tecnologia. Vários membros da Waag Society, em particular Marleen Stikker, Tom Demeyer e Aske Hopman, estiveram envolvidos no desenvolvimento do projeto. Suas origens e experiências combinadas são ilustrativas de orientação geral do laboratório, que abrange sociologia, ciência política, teatro e informática e tecnologia audiovisual e multimídia.
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contexto de uma exposição cartográfica no Amsterdam Municipal Archive na qual uma seleção de mapas da cidade seria apresentada56.
Figura 4.5 – Amsterdam Real Time. Esther Polak, Jeroen Kee e Waag Society, 2002. Fonte: . Acesso em: abr. 2019
O projeto consistiu em uma instalação e mapeamento da cidade de Amsterdam feito pelos participantes que foram convocados através de convidados através de flyers e website57, para, durante dois meses (de 03/10 a 01/10 de 2002), serem equipados com um equipamento portátil com GPS, e traçarem suas rotinas diárias pelas ruas de Amsterdam. O projeto tentou fazer com que os participantes, pessoas tão diversas quanto possível, incluíssem uma parteira, um dogwalker, um motorista de bonde, um skatista, um mensageiro de bicicleta e um coveiro. O formulário de inscrição para o projeto58 solicitou uma quantidade considerável de informações biográficas e geográficas. Presumivelmente, a intenção era garantir um leque de participantes 56
Exposição Maps of Amsterdam 1866-2000, Amsterdam City Archives, 3 de outubro a 1º de dezembro de 2002. 57 . 58 Está acessível na versão arquivada pelo a versão original do site da Amsterdam RealTime: . Acesso em: maio 2012.
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com diferentes padrões de movimento na cidade. O dispositivo portátil foi desenvolvido pela Waag Society. Hopman nos fornece mais detalhes técnicos abaixo: A operadora KPN, ela própria no meio da introdução do GPRS, estava preparada para disponibilizar o tráfego de dados, mas ainda não podia oferecer suporte técnico. Um passo subsequente no desenvolvimento envolveu a criação de uma unidade portátil que combinaria Internet GPRS e as funcionalidades do GPS da forma mais compacta possível. Durante pesquisa e desenvolvimento, escolhas foram feitas em favor de determinado hardware e ficou claro que o projeto estava ligeiramente à frente do mercado e que, aquele hardware que estaria disponível em breve, ofereceria as funções desejadas. A solução escolhida era uma unidade de PDA/telefone no qual um módulo de GPS poderia ser anexado. (Hopman, 2005, p. 54).
Segundo Polak (2011), cada habitante de Amsterdam tem um mapa da cidade em sua cabeça. A forma como ele se move sobre a cidade e as escolhas efetuadas neste processo são determinadas por este mapa mental59. Através dessa premissa, Amsterdam Realtime buscou visualizar esses mapas mentais através do mapeamento da trajetória dos habitantes da cidade. Conforme afirmam Gordon e Silva (2011, p. 45), os mapas nessas peças não antecederam à obra. Em vez disso, eles foram construídos através de contribuições dos participantes e de suas experiências do espaço físico. Como resultado, eles poderiam ser transformadores das experiências do usuário do espaço urbano. Ao eliminar a malha viária urbana ou mapa base, Amsterdam Realtime mostra os percursos anteriores e em tempo real, sugerindo um sistema orgânico para representar os padrões de utilização que se altera em tempo real (Figura 4.6). Ao visualizar esses dados contra um fundo preto, aparecem pontos, traços e linhas. A 59
As reflexões de Polak sobre o processo criativo de Amsterdam RealTime foram registrados em um e-mail enviado aos amigos por Polak no início de 2002. Uma tradução em Inglês do texto deste e-mail está disponível no site: . Acesso em: dez. 2013.
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partir dessas linhas, um mapa de Amsterdam se constrói. As rotinas diárias desses cidadãos revelaram um novo mapa. Todas as participações individuais, quando colocadas juntas, deram um mapa extremamente realista da mobilidade dentro de Amsterdam. Em torno da noção de navegação concentra-se o processo de caminhar uma rota, enfatizando a memória e experiência.
Figura 4.6 – Amsterdam Real Time. Esther Polak, Jeroen Kee e Waag Society, 2002 Fonte: . Acesso em: abr. 2019
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Cada participante construía, com seu próprio traço, uma versão pessoal da cidade: como presente de aniversário, uma mãe escreveu o nome do filho em letras gigantes nas ruas da cidade em torno de lugares que foram significativas para ele: Alguém usou o padrão das ruas de Amsterdam para desenhar a pé, de bicicleta e de barco, um pombo (HOPMAN, 2005, p. 54). A curadora do projeto sugeriu rastrear os patos para que os canais da cidade aparecessem. Tecnicamente, não foi viável. Mas a proposta ressalta o fato de que o espaço só aparece no mapa, quando ele é percorrido. Nesse caso, a mediação, o contexto é condicionado a determinar a percepção, experiência e a criação de significado. Amsterdam Real Time, realizado em 2002, antecipou uma característica, hoje comum para os usuários, das mídias locativas: a convergência de tempo e espaço. As tecnologias de mapeamento location aware permitem visualizar a posição do usuário sobre a superfície do mapa (geralmente na forma de um ponto colorido). À medida que o usuário se movimenta, a marcação se move com ele. Este momento aparentemente banal traz algo de extraordinário: até onde pesquisamos, é a primeira vez que a representação do espaço se dá “ao mesmo tempo” que a do tempo.
4.3 Assemblages, mapas e os atores em rede A computação ubíqua, ou ubicomp, é o nome de uma agenda de pesquisa desenvolvida pelo cientista da computação Mark Weiser e sua equipe do Centro de Pesquisa de Palo Alto da Xerox (XeroxPARC) no final de 1980 e início de 1990, uma das várias variantes de um paradigma pós-desktop para calcular onde o processamento de informações é integrado em objetos do cotidiano e ambientes. A visão da computação ubíqua apresentada na década de 1990 por Mark Weiser e seus colegas do Xerox Palo Alto Research Center (PARC) se constituiu direta e explicitamente contra as ideias de realidade virtual. Weiser defendeu a noção de uma virtualidade encarnada cujas multidões de entidades computacionais fossem 148
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incorporadas em ambientes materiais, objetos e interfaces apropriadas para todos os tipos de práticas socioculturais cotidianas (WEISER, 1991; WEISER; BROWN, 1997). Em 2004, o escritor de ficção científica Bruce Sterling, no livro Shaping Things, cunhou o termo “spime” para definir um objeto que pode ser rastreado através do espaço e do tempo ao longo de sua existência. Para Sterling, SPIMES são objetos manufaturados cujo suporte informacional é tão esmagadoramente extenso e rico que eles são considerados como instâncias materiais de um sistema imaterial. Spimes começam e terminam como dados. Eles são projetados em telas, fabricado por meios digitais e precisamente rastreados através do espaço e do tempo durante toda sua permanência na terra. Spimes são sustentáveis, melhoráveis, exclusivamente identificáveis e feitos de substâncias que podem e deverão ser revertidas para a produção de futuros spimes. Eminentemente permitindo a mineração de dados, spimes são os protagonistas de um processo histórico. (STERLING, 2005, p. 11).
Ao realizar uma visita a um grande datacenter, Farman comenta (2013, p. 2) que ele tendia a pensar que as mídias locativas começavam e terminavam ao nível da interface. Segundo o autor, a grande maioria dos processos em mídias locativas ocorre bem abaixo do nível da interface, com tecnologias comunicando-se entre si de maneiras que excedem as próprias percepções sensoriais dos usuários. As mídias locativas dizem cada vez mais a respeito de uma articulação dos objetos dentro de uma rede na qual as conexões são centrais em vez de apenas as geolocalizações fornecidas por dispositivos com GPS, portanto, ligando a localização de um objeto com a Internet das Coisas. Pode-se dizer que as práticas pós-locativas, usando a Internet das Coisas ou ANT, revela as redes de relações de objetos (TUTERS, 2012, p. 8). As práticas de mapeamento em mídias locativas possibilitam mapear entidades, coletivos, locais e
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tornam visíveis relações e expõem a logística e as relações até então escondidos ou ignorados. Tuters (2012, p. 11) afirma que, ao tentar rastrear entidades em rede, podemos visualizar controvérsias, principalmente quando os movimentos dessas entidades, ou a sua falta, tornam-se visíveis. Tuters propõe repensar as mídias locativas menos como tecnologia e mais como uma metáfora na qual a localidade é articulada a objetos, entidades e atores em rede. Um bom exemplo de redes invisíveis tornadas públicas é o projeto Milk (2004) de Esther Polak e Leva Auzina (Figura 4.7), com o apoio do Rixc (Riga center of new media culture). O projeto venceu em 2005 o prêmio Golden Nica do festival Ars Electronica, e também foi exibido no evento Making Things Public, organizada por Bruno Latour e Peter Weibel na ZKM (2005).
Figura 4.7 – Milk. Esther Polak e Ieva Auzina. 2004 Fonte: . Acesso em: abr. 2019
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Usando GPS para rastrear os atores envolvidos na produção, transporte e distribuição de queijo na Europa, o projeto traça o caminho do leite, a partir de uma pequena fazenda da Letônia até um mercado de Utrecht, passando por uma fábrica, estradas e armazéns, até se tornar um queijo holandês. O leite sofre uma série de transformações e mudanças em seus deslocamentos. A exposição é construída a partir de vestígios deixados pelos envolvidos na produção, comercialização e distribuição do leite, utilizando os tracklogs do GPS, imagens, vídeos e entrevistas, além é claro, de mapas a partir das trajetórias. O projeto explicita os processos visíveis, revelando como o leite e o queijo são produzidos, distribuídos e negociados através da espacialidade efêmera realizada através do movimento e transformação dos atores envolvidos conectados em uma sociedade em rede e a mobilidade da economia globalizada. Segundo Tuters e Varnelis (2006, p. 362), nesse caso não há um espaço social, técnico ou natural, há apenas a circulação de atores e anexos que o projeto traça, sem perder de vista os intermediários e mediadores. Em outras palavras, não é apenas sobre algum local, e sim, é mais sobre as relações do objeto, não importando se o usuário é humano ou não-humano. Dessa forma, sugerimos que a mídia locativa oferece uma estrutura conceitual pela qual examinam-se certas montagens tecnológicas e seus potenciais impactos sociais. Em 2006, Bruno Latour realizou com Emilie Hermant um projeto de pesquisa sobre as múltiplas formas e espaços da cidade de Paris. O livro Paris Ville Invisible (LATOUR; HERMANT, 2006) mostra como a cidade se constitui no imbricamento de diferentes redes, simultaneamente. Os estudos urbanos são também um campo extremamente heterogêneo de programas multidisciplinares. Entretanto, se existe um ponto em comum da aplicação da ANT nos estudos urbanos, seria justamente o caráter híbrido, a heterogeneidade das relações estudadas (FARIAS, 2011). As redes de relações são observadas simetricamente a partir de uma ênfase sobre as relações transversais entre corpos, objetos, animais, tecnologia, materialidade, textos, indivíduos, isto é, entre elementos heterogêneos. CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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Farias (2011) destaca três princípios fundamentais que delineiam a contribuição que ANT pode ser capaz de fazer aos estudos urbanos. A primeira é a de que o que chamamos cidade se atualiza dentro de determinadas redes de práticas. Essas redes não se tornam práticas urbanas em virtude de estarem localizadas na cidade, mas, precisamente, porque performam a cidade. O segundo princípio decorre do primeiro e propõe pensar a cidade para além da noção de construção social porque, segundo Farias (2011, p. 28), a noção de construção social concebe os objetos como concebido constituído em um interior, que apela a uma noção homogênea da sociedade ou da cultura como um espaço simbólico e imaginário. Portanto, a noção de construção social não pode explicar o papel ativo dos corpos, tecnologias, materiais e naturezas humanas nas redes de práticas em que a cidade está atualizada e se torna um objeto. Como alternativa, Latour apresenta a ideia de “composição”. Dessa forma, o social seria pensado como uma composição de atores heterogêneos. A composição sublinha que as coisas têm de ser colocadas juntas, mantendo a sua heterogeneidade. A cidade, então, pode ser pensada como formas de composição de convivência entre os diferentes tipos de objetos e agentes. O terceiro princípio é que a cidade é um propósito múltiplo, isto é, composto simultaneamente, de várias maneiras. Entretanto, a cidade não é simplesmente um nível agregado ou redes, nem várias cidades sobrepostas, e sim um objeto múltiplo. A partir do ponto de vista de que a introdução de ANT para um novo campo de estudo não pode ocorrer sem alterações que promoveriam alguma ênfase para tratar de problemas específicos das áreas em questão, Farias (2011, p. 31) propõe a introdução do conceito de assemblage, derivada da filosofia de Deleuze e Guattari. Escobar (2007, p. 107) afirma que assemblages podem ser definidas como unidades cujas propriedades surgem das interações entre as partes; elas podem ser qualquer entidade: redes interpessoais, cidades, mercados, os Estados-nação etc. A ideia é transmitir 152
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um sentido da irredutível complexidade social do mundo. A teoria assemblage é, portanto, uma alternativa para as totalidades orgânicas ou estruturais postuladas pela ciência social clássica. Ela não pressupõe identidades essenciais e duradouras. A noção de assemblage permite compreender o todo como um conjunto de partes heterogêneas. Para Farias, [...] assemblages se baseiam em relações externas entre as partes. Essas relações externas são possíveis pelas capacidades destes componentes ou entidades de se afetarem mutuamente. (...) Assemblages têm assim, uma qualidade emergente, no sentido de envolver os conjuntos de relações que não são explicadas pelas partes, mas depende delas. As assemblages urbanas envolvem assim, a atualização de certas capacidades de produzir a cidade. (Farias, 2011, p. 30).
As assemblages estão interligadas e ligadas em vários níveis, fazendo proliferar planos e capacidades de ação na cidade. Assim, a cidade é entendida como uma entidade múltipla resultante do entrelaçamento das assemblages urbanas na trama das complexidades da produção urbana. Dentro desse contexto, destacamos o potencial das mídias locativas em oferecer um framework para se pensar as assemblages tecnológicas em sua relação com o espaço e seus possíveis impactos. As mídias locativas interferem/expandem nosso Umwelt ao permitir projetar realidades simultâneas em lugares específicos, ao mesmo tempo. Pontes que entrelaçam materialidade e imaterialidade, sendo, simultaneamente, experiências do ciberespaço e do mundo tangível operando em nossa construção da realidade. Por se configurarem em uma rede de atores humanos e não-humanos, tais como a tecnologia envolvida, o espaço, a localização, relações de poder, arte, dentre outros, as mídias locativas também podem ser pensadas como uma assemblage que abre a possibilidade sem precedentes para mapear vários topoi (e relações espaciais) e que possibilita a criação de mapas como um traçado das relações, redes de actantes. CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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Os mapas navegacionais que se configuram como um traçado das relações e configurações de uma dada assemblage que, neste caso, não é um contexto, a priori, mas um efeito de performatividade. Esses mapas não funcionam somente como uma ferramenta de orientação, mas também como um mapa habitado que é composto pelas inter-relações entre actantes, associações, objetos, pessoas. Assemblages em movimento no tempo: mapas que explicitam a sua semiose.
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CAPÍTULO 5
A CARTOGRAFIA EXPANDIDA DAS MÍDIAS LOCATIVAS
Brian Holmes sugere algumas possibilidades criativas nas apropriações do espaço quando apresenta a seguinte questão: “O que as lentes geopolíticas podem revelar, quando se tornam matéria para a intervenção artística?” (HOLMES, 2008a, p. 3). A partir de um enfoque crítico, o mapa como dispositivo tem sido repensado por construções colaborativas, artísticas e políticas que se reapropriam da cartografia e possibilitam formas de relação criativa com o espaço. Essas práticas produzem uma rede de discursos, possibilitam usos e apropriações do espaço público, problematizam e rearranjam fronteiras políticas. Esses mapeamentos possibilitam repensar e redesenhar o papel de representação dos espaços, regiões e identidades no mundo contemporâneo, funcionando como cartografias subversivas. Paraskevopoulo et al. (2008, p. 8) afirmam que, nesse contexto, o termo subversivo promove o vínculo entre a cartografia e os enfoques críticos. A partir de Holmes e de Paraskevopoulo et al. sugerimos que certas cartografias fariam parte de uma “Geopoética”. Entretanto, não encontramos um conceito bem definido do que seria Geopoética. A noção, bastante citada e utilizada, não encontra um corpo teórico unificado e uma conceituação delimitada. Percebemos o uso do conceito por muitos autores, sem a devida explicação do seu sentido, como, por exemplo, Paraskevopoulo et al. (2008), Holmes (2008a), Kwastek (2004), dentre outros. O conceito foi particularmente desenvolvido por White (2004), mas de maneira igualmente imprecisa e voltada para o próprio trabalho poético. Roca (2012) também desenvolveu a ideia
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para tratar da territorialidade e sua redefinição crítica a partir de uma perspectiva artística no âmbito curatorial da 8ª Bienal do Mercosul60. Segundo Leandro Nerefuh, a propósito dessa bienal, a ideia de geopoética abarcaria [...] trabalhos que refletem/reagem a uma vivência de deslocamentos, migrações e fluxos constantes que se impõem num mundo de cultura globalizada. Parece que há nisso uma nova bandeira à internacionalização – preocupação clássica das vanguardas do século XX – que dessa vez não é utópica, ou seja, não diz querer mudar o mundo e nem mesmo imaginar outros mundos, mas sim enfrentar o que está aí. (NEREFUH, 2012, p. 1).
Embora dialogue com o que estamos tentando delinear aqui, o conceito ainda soa por demais geral para se tornar um operador conceitual. Dessa forma, buscaremos nesse capítulo mapear, na arte, elementos que poderiam nos ajudar a compor o conceito de Geopoética, para em seguida, delimitar qual seria a especificidade no contexto das mídias locativas. Um elemento importante para se pensar a ideia de geopoética seria o mapa. O século XX foi marcado por um impulso de mapeamento que se configura de forma singular na arte. Especificamente, levando-se em conta as características das mídias locativas, apresentaremos o uso do mapa segundo quatro aspectos: primeiro, o mapa como elemento formal, segundo, o mapeamento como procedimento, terceiro, a preocupação com o lugar e, por fim, o caminhar como prática estética. Ao enfatizar o diálogo entre arte e cartografia no século XX, Cosgrove argumenta que, “durante o século XX (...) descobrimos uma contínua mas complexa conversa entre arte, ciência e cartografia ocorrendo” (COSGROVE, 2005b, p. 51). A propósito dessa emergência, Denis Wood afirma que 60
A 8ª Bienal do Mercosul, intitulada “Ensaios de Geopoética”, aconteceu de 10 de setembro a 15 de novembro de 2011, em Porto Alegre/RS.
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[...] cada artista conta uma história diferente, mas desde o início de 1990 mais e mais deles foram explicando aos entrevistadores como eles começaram a fazer arte com mapas. [...] Até havia map art antes, e no sentido em que usamos o termo hoje, mas não havia muito disso. (Wood, 2013, p. 5).
É importante ressaltar que demarcar essa confluência entre arte e cartografia, no início do século XX, não significa ignorar realizações cartográficas de artistas como, por exemplo, Vermeer e seu registro magistral da cartografia na pintura. Entretanto, antes do século XX, os mapas apareciam como detalhes dentro de pinturas e/ou pinturas eram inserções ou ilustrações em mapas (D’IGNAZIO, 2009, p. 190). Ao investigar as relações entre arte e cartografia, D’ignazio afirma que é no início do século XX que os artistas começaram a se envolver seriamente com cartografia de várias maneiras, abrindo possibilidades para o uso dos mapas e para a ideia de mapeamento como arte: Na verdade, a globalização não desempenha um papel pequeno na atual “virada espacial” das artes, igualmente como causa, objeto artístico e condição profissional de um campo caracterizado pela rápida proliferação de bienais, conferências e feiras de arte internacionais. O acúmulo e circulação acelerados de capital, o conflito e pessoas ao redor do mundo são um fenômeno que exigia (e ainda exige) diversas sociedades a desenvolver mecanismos visuais e culturais para articular suas relações com o mundo ‘todo’ – um mundo que, econômica e tecnologicamente falando, já está em seu quintal. (D’ignazio, 2009, p. 190).
Adicionamos ao argumento de D’ignazio, como já foi apontado, o fato de que, desde o final do século XIX vivenciamos uma proliferação e popularização dos mapas que se tornaram cada vez mais acessíveis, graças às tecnologias de produção e reprodução da imagem técnica e agendas de distribuição, tanto estatais quanto comerciais. Os mapas foram se transformando em uma ferramenta
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visual comum, acessível e legível em jornais e revistas, utilizada por ilustradores e artistas e, cada vez mais, um elemento do cotidiano. Devido à abrangência do tema, sabemos não ser possível abordar e analisar todas as manifestações artísticas que se utilizam de mapeamentos ou mapas ao longo do século XX em diante. Dessa forma, nossa intenção aqui é buscar algumas obras cuja inter-relação de vários elementos as coloca em uma teia de correferências para se pensar geopoeticamente as mídias locativas, questão nuclear deste trabalho. Estes elementos relacionam fatores tecnológicos, estéticos e artísticos. À maneira do diagrama em rede que constitui nossa metodologia, esse percurso não será exatamente causal ou linear, embora apresentado de forma razoavelmente temporal. Privilegiaremos afinidades e relações em detrimento de uma linha do tempo. Assim, ao empreender uma breve genealogia do que chamamos elementos geopoéticos em arte, a partir do início do século XX, nossos eixos norteadores serão as mudanças na percepção do que é arte, as relações desta com a tecnologia, bem como os novos tipos de percepção e formas de perceber o espaço. No decorrer desse processo, nota-se que os artistas foram progressivamente dedicando uma ênfase maior, tanto conceitual quanto prática, a questões que, de um lado, envolvem o artista, o trabalho artístico e a tecnologia e, por outro, o ambiente e a percepção do espectador. O resultado disso é que muitas vezes o mapeamento, a cartografia, assume um papel proeminente nos processos artísticos, enquanto o mapa, por sua vez, resulta muitas vezes efêmero. Nesse sentido, o que estamos chamando de cartografia pode ser definido como “um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem” (ROLNIK, 1987, p. 1). Nesse processo, será possível perceber que o caminhar muitas vezes assume importância preponderante.
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5.1 Do Dadá à Deriva Wood (2010, p. 190) é enfático ao afirmar que “de fato o mapa como arte emerge com o Dadá e o Surrealismo”. Conforme declara Richter (1993, p. 7), “determinar onde e como o Dadá surgiu é quase tão difícil em nossos dias quanto definir o dia e local do nascimento de Homero”. Entretanto, é possível afirmar que o principal foco de difusão do dadaísmo foi o Café “Cabaré Voltaire”61, fundado na cidade de Zurique, em 5 de fevereiro de 1916, na Suíça neutra. Durante a Primeira Guerra Mundial, artistas de várias nacionalidades, contrários ao envolvimento dos seus próprios países na guerra, exilaram-se na Suíça. O Dadá, em oposição a outros estilos, não possuía características formais. O que o distinguia era uma nova ética artística a partir da qual, posteriormente, de maneira inesperada, nasceram novas formas de expressão. Os dadaístas não tinham um programa, não propunham um projeto. Contudo, podemos afirmar que seus membros promoviam uma simbiose entre as artes à medida que se engajaram na busca de novas experiências sensoriais e artísticas. Podemos encontrar no grupo dadaísta de Berlim uma das primeiras aparições de um mapa na arte do século XX. É a fotomontagem de Hannah Höch, denominada “Schnitt mit dem Kiichenmesser Dada durch die letzte Weimarer Bierbauchkulturepoche” (Figura 5.1), datada de 1919-1920. Hannah Höch foi uma das primeiras artistas a trabalhar com técnicas de fotomontagem, e sua obra possui uma conotação fortemente feminista e política. No caso dessa obra, o mapa, que aparece no canto dianteiro inferior, mostra os países europeus que planejavam dar às mulheres o direito de voto.
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É nesse cabaré que a palavra Dadá aparece impressa pela primeira vez, em 15 de junho de 1916.
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Figura 5.1 – Schnitt mit dem Kiichenmesser Dada durch die letzte Weimarer Bierbauchkulturepoche, Hannah Höch, 1919-1920. (Neue Nationalgalerie, Berlim) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
A busca em religar arte e vida, que marca os movimentos artísticos do início do século XX, aparece no uso e articulação de elementos do cotidiano, tais como recortes de jornais e revistas, fotografias, letras e desenhos e, é claro, o mapa.
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A fotomontagem tem suas origens na manipulação da imagem fotográfica de Fox Talbot, técnica que foi utilizada a exaustão por Man Ray, Christian Schad e Moholy-Nagy em seus fotogramas de 1920. O termo “fotomontagem” foi inventado pelos dadaístas na busca de uma palavra para descrever a técnica de introdução de fotografias em suas obras. Essa técnica nasce ligada às tecnologias de produção e reprodução da imagem técnica que se popularizaram no começo do século XX62. Conforme afirma Chiarelli, A fotomontagem foi um método de criação e uma nova modalidade de expressão que, ao mesmo tempo, incorporava decididamente os elementos da nova realidade tecnológica que tomava conta do cotidiano – e a fotografia era o ícone máximo dessa realidade nova –, servindo igualmente para opor a produção dos dadaístas à produção burguesa de arte, fosse ela convencional ou moderna. (Chiarelli, 2003, p. 71).
Cosgrove (2005b, p. 41) afirma que, nesse momento, enquanto cartógrafos estavam lutando pelo rigor metodológico, em questões como a projeção, escala, representação topográfica e nomenclatura, e se ocupando da realização de tal rigor como base para a neutralidade e universalidade de suas imagens, a arte era dominada por uma série de movimentos vanguardistas, cuja intenção era a de criticar e subverter as ideias de objetividade e verossimilhança. Além do dadaísmo, o Devětsil, associação de artistas de vanguarda checos fundada em 1920, em Praga, também se utilizou de fotomontagens com mapas. Um exemplo é a obra de Karel Teige, denominada Pozdrav z cesty, de 1923 (Figura 5.2). Utilizando fotografia do litoral da Itália, recortes, cartão postal e mapas, Karel Teije une impressão e arte visual para construir um travelog, que apresenta a experiência da viagem através de uma cartografia pessoal, possível no contexto do pós-guerra no qual a mobilidade volta a ser possível. 62
Para mais informações sobre fotomontagem nas vanguardas artísticas, ver: DAWN, A., Photomontage, revised edition, Tharnes & Hudson, London, 1986, p. 18-39.
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Figura 5.2 – Pozdrav z cesty (Saudações de viagem), Karel Teige, 1923. (City Gallery Prague, Prague) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Um traço que permeia as fotomontagens é justamente a necessidade do embate com a realidade circundante, seja através do processo de incorporação de materiais típicos de uma sociedade de massa para a efetuação dos trabalhos, seja pela escolha de questões cotidianas para discutir em suas produções (CHIARELLI, 2003, p. 72). Mais que apresentar um caminho ou mostrar um lugar, os mapas nas 162
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fotomontagens assumem um sentido alegórico, à medida que são tirados de seu contexto usual, reapropriados e recontextualizados poeticamente. Nesse contexto, o mapa perde seu caráter prescritivo, herdado da razão cartográfica e se abre para uma produção de sentido mais livre, na qual o espectador é um elemento ativo na construção do sentido. Para Bonnett (1992, p. 74), os dadaístas representam um dos primeiros esforços conjuntos de artistas para subverter a noção de que a criatividade tem que ser uma atividade especializada confinada a espaços especializados. No entanto, eles permaneceram um movimento essencialmente artístico e articularam seu ataque à arte através de ideologias artísticas. Além de introduzirem objetos banais no espaço de arte, os dadaístas efetuaram a introdução dos artistas em “lugares banais” da cidade, através uma série de excursões para “lugares que não têm razão de existir”63. Em 14 de abril, em Paris, um grupo de artistas surrealistas que incluía, dentre outros, André Breton, Louis Aragon e Tristan Tzara, se reuniu no adro da igreja de Saint-Julienle-Pauvre. André Breton leu um manifesto e Georges Ribemont-Dessaignes parodiou um guia turístico oficial, lendo definições arbitrárias de um dicionário como chaves de leitura para os monumentos no pátio da igreja. Os surrealistas, por sua vez, enfatizaram a importância da libertação do inconsciente através da espontaneidade e acaso. Na introdução do Manifesto Surrealista, Breton definiu o surrealismo como um [...] automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral. (BRETON, 1924, p. 12).
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Conforme o texto do panfleto de publicidade do evento que também foi publicado em vários jornais.
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A afirmação de automatismo e da ação espontânea despontou na poesia, pintura e cinema surrealistas. Esta postura configurava o engajamento dos surrealistas com o espaço: os artistas tinham o hábito de deambular pela periferia de Paris, com “o objetivo de sondar a parte inconsciente de uma cidade que estava escapando das transformações burguesas” (CARERI, 2002, p. 84). Em 1924, Breton, juntamente com três outros surrealistas (Aragon, Vitrac e Morise), escolheram uma cidade (Blois) de forma aleatória, a partir de um mapa da França, e empreenderam uma viagem sem finalidade, que se converteu na experimentação de uma forma de “escrita automática no espaço real”, em uma errância no mapa de um território mental, a deambulação (CARERI, 2002, p. 84). Para os surrealistas, deambulação consiste em alcançar, a pé, um estado de hipnose, uma perda intencional de controle. É um meio através do qual se pode entrar em contato com a parte inconsciente do território. A cidade pode ser cruzada, como a mente, para revelar uma realidade não visível. Embora não tenham deixado mapas, tanto a excursão dadaísta quanto a deambulação surrealista são marcos no caminhar a partir de uma perspectiva estética. O próprio ato de andar, de se deslocar pela cidade, torna-se a obra. Eles são considerados um ponto nodal para a compreensão das vanguardas posteriores, bem como de artistas que lidam com o caminhar e mapear. Especificamente no caso das mídias locativas, Tuters e Varnelis (2006, p. 362) afirmam que, ao contrário de net art, produzida por uma classe sacerdotal tecnológica para um público de artes de elite, as mídias locativas, ao menos retoricamente, procuram atingir um público de massa, tentando envolver tecnologias de consumo, e redirecionando o seu poder. Embora não concordemos com essa abordagem, visto que a net art é diversa demais para ser generalizada dessa forma, é fato que as mídias locativas surgem reivindicando o espaço para além da galeria ou tela de computador como o seu território. 164
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Dentro desse contexto, o deslocamento no espaço, encarnado no ato de caminhar, especialmente (mas não obrigatoriamente) pela cidade, se torna muitas vezes fundamental, o que pode promover uma estreita ligação entre as mídias locativas e algumas vanguardas históricas. Ao se apropriarem das mudanças científicas e tecnológicas, em seus questionamentos acerca do estatuto da arte em uma sociedade em constante movimento, artistas iniciaram um processo de mutação em nossa percepção da realidade e, também, nas formas de apropriação de elementos presentes na vida e no cotidiano. Na primeira metade do século XX, os surrealistas, mais do que usar mapas em suas obras, começaram a criar seus próprios mapas como investigação perceptiva. Ao ressaltar a relação entre surrealismo e cartografia, Cosgrove (2005b, p. 39) afirma que o Surrealismo foi um movimento de vanguarda de arte moderna que explicitamente envolveu a cartografia como prática, ao invés de simplesmente usar o mapa como uma imagem. Seus interesses na percepção da imagem encontraram ecos no conceito científico de mapeamento cognitivo desenvolvido no final dos anos 1950. Em 1929, foi publicado na revista Variétés64, em Bruxelas, Le monde au temps des surrealistes (Figura 5.3). Trata-se de um mapa que rearranja o mundo e parodia as convenções cartográficas, colocando em xeque a projeção de Mercator, por meio da problematização da escolha do centro e o tamanho dos países. A linha do Equador serpenteia ao longo do mapa e a Rússia, que representava a esperança revolucionária, é colocada no centro com proporções aumentadas.
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Esta edição da revista Variétés foi reimpressa em 1994 na Collection Fac-Similé da Didier Devillez Editeur, em Bruxelas.
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Figura 5.3 – Le monde au temps des surrealistes. Anônimo. Variétés – junho de 1929. Bélgica Fonte: , . Acesso em: abr. 2019
Numa perspectiva similar, o trabalho do pintor Uruguaio Joaquín Torres-García, “América Invertida” (Figura 5.4), de 1943, apresenta um mapa da América Latina onde a porção sul do continente é colocada na porção norte. A linha equatorial é mostrada abaixo da linha de latitude para Montevidéu, localizado a 34º41’ sul, 56º9’ oeste. O mapa ressalta a arbitrariedade da escolha do norte como o topo do mapa e as implicações socioculturais decorrentes, reivindicando uma nova posição para a América Latina.
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Figura 5.4 – América Invertida, Joaquín Torres-García, 1943. (Fundación Joaquín TorresGarcía, Montevideo) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Em 1933, ano em que Hitler chega ao poder na Alemanha, Max Ernst finalizou uma pintura em gesso e óleo em madeira compensada chamada L’Europe après la pluie I (Figura 5.5). A obra é um mapa de relevo imaginário de uma Europa distorcida numa época de conflitos nacionais, remodelamento de fronteiras e alianças que culminariam na Segunda Guerra Mundial. Outro exemplo de Max Ernst é Le jardin de la France (Figura 5.6), uma composição topográfica que funde o espaço geográfico e o espaço onírico ao retratar o corpo de uma mulher deitada entre restingas e ilhas perto da confluência dos rios Indre e Loire. CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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Figura 5.5 – L’Europe après la pluie I, Max Ernst, 1933. (Coleção particular) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Figura 5.6 – Le jardin de la France, Max Ernst, 1962. (Musée National d’Art Moderne, Centre Georges Pompidou, Paris) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
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No contexto europeu do final dos anos 1950, as excursões dadaístas e as deambulações surrealistas foram reformuladas pelo conceito de deriva, adotado pela então recém-criada Internacional Situacionista para designar sua técnica de exploração do espaço urbano (CARERI, 2002, p. 88-89). As ideias, práticas e procedimentos do pensamento dos situacionistas eram baseados em quatro conceitos fundamentais: o urbanismo unitário, a deriva, a psicogeografia e a situação. De acordo com Jacques (2003, p. 13), a Internacional Situacionista (IS) foi um dos primeiros movimentos a criticar o modelo funcionalista de arquitetura e urbanismo, que predominou no contexto europeu dos anos 1950-1660. O funcionalismo era baseado nas premissas da Carta de Atenas65, tendo Le Corbusier como seu maior doutrinador. Jacques (2003, p. 15) afirma que o urbanismo unitário – unitário por ser contra a separação de funções (base da Carta de Atenas) – não propôs novos modelos ou formas urbanas, mas sim experiências efêmeras de apreensão do espaço urbano através da proposta de novos procedimentos como a psicogeografia e de novas práticas como a deriva. Em A Teoria da Deriva, texto publicado em 1958, Guy Debord (apud Jacques, 2003, p. 90), principal articulador do grupo, explica que a deriva situacionista implica um estudo prévio de mapas, sejam estes oficiais ou alternativos, de modo a estabelecer os pontos de partida e calcular as rotas de penetração no ambiente da cidade. Diferindo das propostas dadaísta e surrealista, a Internacional Situacionista visava não só à utilização, mas também à correção e melhoria dos mapeamentos disponíveis, e, ao contrário das excursões e deambulações, a deriva situacionista levou à criação de novos mapas.
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Segundo Jacques (2003, p. 31-32), “a proposta urbana de Le Corbusier, exposta como uma doutrina na Carta de Atenas, vinha sendo massificadamente construída na Europa do pós-guerra, principalmente sob a forma de inúmeros conjuntos habitacionais modernistas. Para os letristas (futuros situacionistas), esses conjuntos enormes e repetitivos, e sobretudo a separação de funções proposta por Le Corbusier, que virou ponto de doutrina na Carta, provocavam a passividade e a alienação da sociedade diante da vida cotidiana moderna.”
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A psicogeografia, por sua vez, foi definida por Guy Debord como “estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente ou não, que agem sobre o comportamento afetivo dos indivíduos” (DEBORD apud JACQUES, 2003, p. 65). A psicogeografia era, portanto, um tipo de geografia passional, cujo intuito era cartografar os ambientes da cidade a partir das flutuações afetivas experimentadas pelos participantes de uma deriva situacionista. Desse modo, a deriva, apresentada por Debord como “uma técnica de passagem rápida por ambiências variadas” (DEBORD apud JACQUES, 2003, p. 65) era um conceito coextensivo ao mapeamento de natureza psicogeográfica e, nesse aspecto, psicogeografia e deriva correspondiam à afirmação de um comportamento experimental lúdico-construtivo ligado às condições da vida urbana. The Naked City (Figura 5.7), um mapa afetivo realizado por Debord, pode ser descrito como uma síntese gráfica da psicogeografia e da deriva, sendo considerado um símbolo da própria ideia de urbanismo unitário dos situacionistas. O trabalho é composto por dois tipos de imagem, o primeiro consistindo em uma série de recortes do mapa de Paris, desenhado em preto e branco, como uma tomada de vista aérea.
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Figura 5.7 – The Naked City, 1957. Illustration de l’hypothèse des plaques tournantes en psychogéographique, Guy Debord, 1957 Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Cada um desses recortes corresponde a uma unidade de ambiência específica. “As unidades estão colocadas no mapa de forma aparentemente aleatória”, pois, como explica Jacques, “não correspondem à sua localização no mapa da cidade real, mas demonstram uma organização afetiva desses espaços ditada pela experiência da deriva” (JACQUES, 2003, p. 65). Setas vermelhas, retilíneas ou arqueadas, indicam as ligações latentes entre as diferentes unidades de ambiência, ou seja, as setas representam as possibilidades de deriva. Em 1957, Debord escreve que ideia central da IS é a construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em qualidade passional superior. Uma situação deve efetuar intervenções ordenadas sobre os fatores
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complexos dos dois grandes componentes que interagem continuamente: o cenário material da vida e os comportamentos que ele provoca e que o alteram (DEBORD apud JACQUES, 2003, p. 54). Nesse sentido, todo e qualquer condicionamento imposto ao homem pela arquitetura e pelo urbanismo, fosse no nível micro ou macroscópico da existência, deveria ser livremente reconfigurado pela força revolucionária dos novos desejos, vitais para a construção das situações urbanas. Assim, o interesse da IS pela cidade, afirma Jacques, decorria de sua valorização do meio urbano como “terreno de ação, de produção de novas formas de intervenção e de luta contra a monotonia, ou ausência de paixão, da vida cotidiana moderna. A crítica urbana situacionista permanece assim, em sua essência, pertinente” (JACQUES, 2003, p. 13) Os situacionistas são apontados frequentemente como precursores do movimento de mídia locativa (Berry, 2008a; Tanaka; Gemeinboeck, 2008; Tay, 2008; Flanagan, 2009, dentre outros). Entretanto, Shepard (2006, p. 1), comenta que recebeu com desconforto a reivindicação das práticas de mídias locativas a uma suposta herança situacionista ou uma aspiração a transpor conceitos de piscogeografia, táticas de deriva ou detournment para ambientes urbanos contemporâneos. O autor lembra que a deriva surgiu em um contexto histórico específico, em parte, como uma resposta às estratégias de planejamento urbano do século XX, promovidos por arquitetos modernos associados ao CIAM (Congrès Internacional d’Architecture Moderne). Segundo Shepard (2006, p. 1), a deriva procurou recuperar um espaço para as capacidades criativas de um sujeito em face de um ataque da racionalização funcional do capitalismo moderno. As estratégias dos CIAM eram destinadas a reorganizar a cidade, entendida como um doente que necessitava de ser curado através de uma segregação funcional da cidade em zonas de habitação, trabalho e recreação, ligadas por corredores de transporte racionalizados. A deriva foi concebida para contrariar explicitamente 172
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esta racionalização de padrões de movimento pela cidade e as limitações correspondentes impostas pela diversidade, a confusão, e a riqueza da vida urbana. Como uma forma de jogo lúdico, o objetivo da deriva era libertar as pessoas de seus motivos racionais e habituais para o movimento na cidade. A questão que Shepard (2006, p. 1) coloca é: até que ponto a adaptação de uma agenda situacionista aos projetos de mídia locativa promoveriam realmente o fim da reificação e da racionalização dos padrões de uso ou movimento? Nas palavras do autor, [...] que medidas as convenções para o uso de tecnologias móveis para o consumidor realmente contribuem para a agenda do CIAM em sua codificação dos modos de interação com e dentro da cidade contemporânea? Talvez a questão mais pertinente para mídias locativas deva ser: como essas tecnologias poderiam ser (mal)utilizadas em uma tentativa de contrariar (em vez de reforçar) uma persistente racionalização e mercantilização da vida urbana? Parece menos uma questão de “localizar” a si mesmo, mas talvez de se perder. (Shepard, 2006, p. 1).
Em uma crítica similar, Tuters e Varnelis também rejeitam com veemência tal abordagem, atribuindo uma postura acrítica, nostálgica e utópica a alguns projetos locativos que se reapropriaram do legado situacionista. E os autores comentam em tom irônico: Projetos anotativos geralmente procuram mudar o mundo adicionando dados a ele, tanto quanto a prática do desvio sugeria [...] mídias locativas baseadas em rastreamento sugerem que nós podemos nos reencarnar no mundo [...] adotando as táticas da deriva, fugindo assim da sensação dominante de que a nossa experiência de lugar está desaparecendo na atual sociedade capitalista. (Tuters; Varnelis, 2006, p. 359).
Dessa forma, embora exista um diálogo entre os situacionistas e a media locativa, as questões contemporâneas são outras e CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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segundo Tuters e Varnelis (2006), é necessário considerar dois fatos: primeiro, que a crítica ao urbanismo funcionalista não é mais o principal campo de resistência política, posição que ocupou no contexto europeu do urbanismo unitário do pós-guerra, e o segundo fato é que a mídia locativa faz uso de linguagens de programação, de redes teleinformáticas, de presença remota, bem como de sistemas via satélite, propiciando assim uma experiência espacial em escala que pode variar do local ao global, e que nem sempre acontece como os desvios e derivas presenciais dos situacionistas.
5.2 A cartografia de Duchamp Dentro desse desenho que estamos traçando, uma atenção especial deve ser dada a Marcel Duchamp, artista unanimemente considerado como pertencente ao movimento Dadaísta66, pelo amplo espectro de suas investigações, pela longevidade de seu pensamento e pelo impacto de suas ideias. A obra de Duchamp contém, mesmo que algumas vezes de forma embrionária, a semente do desenvolvimento daquilo que os artistas que vieram depois dele iriam fazer, como a busca de outros modos de expressão, o fim da noção de autor como sujeito livre e voluntário, além da incorporação do acaso na obra de arte (no caso de Duchamp, por exemplo, na escolha dos objetos). Os mapas também estão presentes na sua obra. Em 1943, o artista fez “Allégorie de genre” (Figura 5.8), uma obra realizada em Nova York, a pedido da revista Vogue para cobrir o número memorial do Dia da Independência dos Estados Unidos. Em uma “colagem-retrato” de George Washington, Duchamp construiu seu inconfundível perfil com gaze, com listras tingidas num tom marrom-avermelhado que davam a aparência de sangue seco, na qual estavam 66
Duchamp circulou não só pelo dadaísmo, mas também pelo futurismo, surrealismo e cubismo. Pintor, escritor e exímio jogador de xadrez, fundou o movimento Dadaísta em Nova York, em 1913, e foi membro do grupo surrealista a partir de 1924.
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espetadas treze estrelas douradas. Se olhado horizontalmente, o quadro mostra o contorno do mapa dos Estados Unidos.
Figura 5.8 – Allégorie de genre (Portrait de George Washington), Marcel Duchamp, 1943. (Musée National d’Art Moderne, Centre Georges Pompidou, Paris) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Em sua construção, Duchamp aciona símbolos caros à nação norte-americana: George Washington, o mapa de seu território e as treze colônias. Apresentados de forma questionadora no retrato, o CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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trabalho foi rejeitado pelos editores da revista, incomodados com o aspecto sanguinolento da imagem (TOMKINS, 2004, p. 378). Housefield (2002) faz uma interessante leitura das dimensões espaciais dos ready-mades de Duchamp. Para o autor (Housefield, 2002, p. 484-486), Duchamp utilizou os ready-mades para traduzir a paisagem urbana de Paris em forma escultural e, assim, criar uma paisagem familiar em seu estúdio transatlântico. Com essa leitura, Housefield propõe uma nova interpretação dos ready-mades, agora vistos como uma série coerente de obras que recriam a paisagem de Paris no estúdio do artista, em Nova York: O porta-garrafas de Duchamp transformou um objeto doméstico – uma peça de ferragem – em uma escultura de formas de metal igualmente estranhas. A ligação entre o Porta-garrafas e a Torre Eiffel foi reforçada pela companheira ready-mades no estúdio de Duchamp, a Roda de bicicleta montada em um banquinho, a roda tem um interesse visual que o artista comparava ao prazer de contemplar o fogo tremulando. Sua forma giratória também lembra a roda-gigante. Ao encontrar substitutos de pequena escala para locais da Paris monumental, os ready-mades de Duchamp empreendem uma abordagem estética paralela ao conceito modernista do retrato de objetos. Duchamp efetivamente definiu um “retrato” e um “mapa” de Paris que representavam sua paisagem em seus estúdios de Paris e Nova York. (Housefield, 2002, p. 484-486).
A partir da análise de Housefield, podemos observar que Duchamp criou um “mapa” pessoal, monumental e tridimensional, substituindo monumentos parisienses por objetos cotidianos de pequeno porte. Os ready-mades, ao provocarem a desintegração do objeto de arte tal como se conhecia, expandem a busca dos artistas modernos por novas formas de representar o espaço. Cauquelin (2005, p. 98), ao comentar a frase de Duchamp “é o contemplador que faz o quadro”, afirma que a ideia de Duchamp é que o observador faça parte do sistema que observa. Ao observar, ele produz as condições de sua observação e transforma o objeto observado. 176
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Não se trata mais de separar o artista e o fruidor, mas de perceber ambos ligados em uma mesma produção. Nos ready-mades, o ato criativo do artista é tão obviamente mínimo (ao deixar o mictório exatamente igual a todos os demais exemplares do gênero) que, em lugar da impressão de termos encontrado uma resposta, devemos nos confrontar com toda uma nova série de questões estéticas (Krauss, 1998, p. 91). Se uma leitura ordenada é um meio de dotar de inteligibilidade uma obra de arte, uma quebra da estrutura é um modo de alertar o observador quanto à futilidade das análises. É um meio de estilhaçar a obra como reflexo das faculdades racionais de seu observador, de turvar a transparência entre cada superfície do objeto e seu significado, tornando impossível ao observador reconstituir cada um de seus aspectos por intermédio de uma leitura única e coerente. É possível afirmar que os artistas desses movimentos, especialmente Marcel Duchamp, se interessaram por uma nova forma de comunicação, buscando uma ruptura com o contexto unidirecional que tomava o espectador como um mero receptor passivo, numa tendência que visava a participação do espectador na elaboração da obra de arte.
5.3 O Campo expandido No campo da pintura, Krauss (1979a, p. 51-64), faz uma análise do grid como um discurso estético estruturante da imagem na pintura moderna. Para Krauss, “o grid é um emblema da modernidade por ser apenas isso: a forma que é onipresente na arte do nosso século” (KRAUSS, 1979a, p. 53). Nesse contexto, a obra de Piet Mondrian é o exemplo maior do uso artístico do grid: seu quadro “Broadway Boogie Woogie” (Figura 5.9), por exemplo, é uma combinação de linhas multicoloridas em um grid com pequenos blocos de cor dentro das linhas retas. A pintura é conhecida por ser uma espécie de diagrama jazzístico CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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da cidade de Nova York. Shapiro (2001, p. 79-85) afirma que “ao conceber Broadway Boogie-Woogie, é bem possível que Mondrian tenha se inspirado nos cenários urbanos de Nova York – o deslumbrante espetáculo noturno de seus edifícios, os incontáveis pontos de luz e, especialmente os luminosos da Times Square”. Nesse sentido, é possível pensar a obra fortemente inclinada em uma direção geopoética.
Figura 5.9 – Broadway Boogie Woogie, Piet Mondrian, 1942-1943. (MoMa - Museum of Modern Art, New York) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
O grid é um conceito geocartográfico por excelência. Introduzido na cartografia ocidental moderna no século XV, através da geografia de Cláudio Ptolomeu, baseada no traçado da latitude e longitude, o sistema de coordenadas se arranja em forma de grid e pos178
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sibilita traduzir a esfera terrestre em um mapa bidimensional. Esse sistema é, segundo Cosgrove (2006, p. 151), uma das características mais importantes da cartografia moderna. O grid é um dispositivo de localização e de fixação de posições muito poderoso, é um padrão que se repete no traçado de cidades e uma forma urbana moderna. Como composição visual, o grid é antimimético e antinarrativo, rejeitando a identificação da verossimilhança fornecida pela perspectiva linear, bem como sua leitura sequencial (Figura 5.10). Krauss ressalta que, ao contrário da perspectiva, o grid não funciona mapeando e definindo o espaço de um quadro: “Com efeito, se ele mapeia nada, ele mapeia a superfície da própria pintura” (KRAUSS, 1979a, p. 52).
Figura 5.10 – Compositie met twee lijnen, Piet Mondrian, 1931. (Museu Stedeliijk, Amsterdam) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Ao ressaltar a dimensão autorreferencial do grid, Tassinari (2001, p. 29) sugere que não há mais nada de um espaço perspectivo CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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ou naturalista em tais pinturas. Em oposição à janela oferecida pela perspectiva, as coisas são vistas sobre um plano. Justamente por essas características, KRAUSS (1979a, p. 50) afirma que, no sentido espacial, o grid afirma a autonomia do campo da arte, já que o grid é o meio de excluir as dimensões do real e substituí-las com a expansão lateral de uma única superfície. Na regularidade total da sua organização, é o resultado, não de imitação, mas de decreto estético. À medida que a sua ordem é o da relação pura, o grid é uma maneira de anular as reivindicações dos objetos naturais de possuir uma ordem específica para si mesmos. Na pintura, o grid permitiu uma suspensão de todo e qualquer vestígio de discurso ou de narratividade, remetendo-a para um universo exclusivamente visual, autônomo e autorreferente. Ao se referir à escultura, Krauss nos mostra que um processo semelhante ocorreu com ela, quando a ideia de escultura como monumento, cuja lógica67 norteou sua produção até o século XIX, entrou em crise. Para a autora, o monumento é [...] uma representação comemorativa. Senta-se em um determinado lugar e fala em uma língua simbólica sobre o significado ou o uso daquele lugar. [...] Eles funcionam, portanto, em relação à lógica da representação e marcação, esculturas são normalmente figurativas e verticais, seus pedestais uma parte importante da estrutura, uma vez que medeiam entre o local e o signo representativo. (Krauss, 1979b, p. 33).
Em fins do século XIX, uma crise da lógica representacional do monumento é iniciada pela escultura de Auguste Rodin. Esse artista, ao fundir escultura e pedestal em um único bloco (como, por exemplo, em sua obra “Monumento a Balzac”, de 1897), não só coloca o monumento no chão, deixando-o funcionalmente deslocado, como abandona o corpus aristotélico, de contornos firmes e figurações fixas, e instala na forma tridimensional a instabilidade 67
Krauss se utiliza da expressão lógica para se referir um conjunto de princípios ordenadores.
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(Piza, 1999, p. 190). Nesse momento, no limiar da lógica do monumento, ocorre o que Krauss denomina perda absoluta de lugar: Com esses dois projetos esculturais, eu diria, atravessa-se o porta/beiral da lógica do monumento, entrando no espaço do que poderia se chamar sua condição negativa – uma espécie de falta de espaço, de lar, uma absoluta falta de lugar. O que significa dizer que entra-se no modernismo, já que o período modernista que opera em relação a essa perda de lugar, produzindo o monumento como abstração, o monumento como puro marcador ou base, funcionalmente sem lugar e amplamente autorreferencial. (Krauss, 1979b, p. 34).
Tal lugar alcançado pela escultura gerou uma dificuldade de definição, já que, ao poder ser qualquer coisa, a escultura acabou sendo definida por aquilo que não era. A escultura, na medida em que se relacionava com a arquitetura, sem se fundir com ela, tornou-se não arquitetura e embora estivesse na paisagem, não era paisagem, tornando-se não paisagem: era tudo aquilo que estava sobre ou em frente a um prédio que não era prédio, ou estava na paisagem que não era paisagem. Esse grau de indefinição foi tamanho que Barnett Newman (apud KRAUSS, 1979b, p. 34-36) anedoticamente afirmou que escultura seria aquilo com que você esbarra quando se afasta para ver uma pintura. A perda de local e a extrema autorreferencialidade pode ser percebida, também, na afirmação de Richard Serra a propósito de se colocar esculturas modernistas no espaço público: Esculturas de Noguchi e Calder falham por razões semelhantes. Elas não têm nada a ver com os contextos em que estão inseridas. Na melhor das hipóteses, elas são produzidas no estúdio e ajustadas no local. Elas são deslocadas, desabrigadas, objetos exagerados que dizem “nós representamos a arte moderna”. (Serra, 1994, p. 126).
Tal condição negativa do monumento possibilitou à escultura modernista um espaço a ser explorado, excluído de um projeto de CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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representação temporal e espacial. Alguns elementos marcam essa condição de negatividade, tais como autorreferência, desfuncionalização e desvinculação a lugar específico. Contudo, a partir do final dos anos 1950, esse modelo de autonomização deu mostras de exaustão e assistimos a certa recuperação da relação com o lugar e o retorno da escala monumental, mesmo que guiada por outros pressupostos. Essas duas características associavam-se à dissolução do escultural enquanto tal e da busca e utilização de novos materiais. Surge toda uma geração de artistas interessados em focalizar sua atenção nos limites externos das não-categorias que constituíam a arquitetura modernista (como não-paisagem, não-arquitetura). Diante da progressiva heterogeneidade de formas e processos associados à categoria escultura Krauss (1979b, p. 33) afirma que, na década de 1960, esse processo levou a ideia de escultura aos seus limites. A heterogeneidade do conjunto de práticas artísticas que se abrigavam sob a designação de escultura era tanta que levaria ao colapso do conceito. Na tentativa de apreender o processo e encontrar um lugar para a escultura, Krauss propõe pensar a escultura a partir de um campo dinâmico, elástico, e expandido, orientado por diferentes maneiras de se lidar como espaço, a paisagem e a arquitetura. A autonomia da escultura moderna em relação aos demais meios artísticos faliu e, com isso, tomou-se a nova escultura como participante de um campo de relações. Tal processo tornaria possível a recuperação de sua forma positiva pelo confronto com seus opostos. Krauss apresenta sua metodologia, baseada no diagrama estruturalista greimasiano (Figura 5.11).
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Figura 5.11 – Diagrama analítico de Rosalind Krauss (tradução nossa) Fonte: Krauss, 1979b, p. 38
Sua estratégia é gerar, a partir de um conjunto de binários, um campo quaternário que, para a autora, espelha e, ao mesmo tempo, abre a oposição original (Krauss, 1979b, p. 37): um encontro duplamente negativo, onde a não-arquitetura também poderia ser entendida como paisagem, e a não-paisagem como arquitetura. Ressaltamos aqui que o problema de tal abordagem é que a identidade dos elementos depende de uma relação opositiva binária. O conceito de campo expandido surge à medida que a escultura começa a explorar domínios fora de si, em uma crítica da moderna autonomia do objeto. O foco comum nessas práticas era a experiência perceptual, temporal ou espacial, que intervinha no modo de experimentar a obra. Krauss, ciente das limitações do modelo, explica que, na verdade, seu uso era metaexplicativo, na medida que ele assume, em suas problemáticas características, a mesma forma do modernismo criticado por ela. Para mim, o interesse pelo diagrama estruturalista vem de duas coisas. É uma maneira muito interessante de demonstrar certas coisas sobre o próprio modernismo. Por exemCARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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plo: que, uma vez estabelecidas as principais premissas do modernismo, elas não mudam. O modelo estruturalista é atemporal e a-histórico. Ele reforça a minha posição de que o modernismo é, em primeiro lugar, uma forma – a estrutura é uma forma. Em segundo lugar, é uma forma imutável. E, em terceiro lugar, é uma forma que trabalha para assegurar o que se convencionou chamar de “autonomia” da obra e do campo estético. É um tipo de muro ou quadro que exclui todo o resto. O diagrama estruturalista é, portanto, uma ótima imagem do próprio modernismo. Autônomo, a-histórico e lógico. (KRAUSS, 1994, p. 1).
Assim, o lugar assume um papel preponderante e os artistas encontram novas espacialidades para as suas intervenções artísticas, para além dos espaços da galeria68. A passagem da condição de neutralidade para a condição que a autora denomina “complexidade” implicou três formas de arte expandida: os “lugares demarcados”, os “lugares construídos” e as “estruturas axiomáticas”. Os “lugares demarcados” são definidos pela incorporação da paisagem, em trabalhos como “Spiral Jetty” (1970), de Smithson, e caracterizam as obras de Land art em geral. Por sua vez, os “lugares construídos” são marcados pela incorporação de condições tanto da paisagem quanto da arquitetura, e, por fim, as “estruturas axiomáticas” são definidas em sua intervenção no espaço físico da arquitetura, como nos trabalhos de Morris, e no minimalismo em geral, por exemplo. A ideia de campo expandido foi uma saída engenhosa, na medida em que reconhece um lugar para a escultura e consegue abarcar as demais práticas artísticas. A ideia de expansão do campo é um operador conceitual muito poderoso e tem sido utilizado até os dias hoje. Krauss aponta exemplos do minimalismo e da Land art, mas a ideia do campo expandido pode ser utilizada também nas instalações e happenings, além de outras formas de arte que estabeleçam relações dialógicas entre corpo, sujeito, objeto, espaço e tempo. 68
No ensaio Cultural Confinement, publicado em outubro de 1972 na revista Artforum, Robert Smithson afirma a necessidade de obras de arte que estejam fora dos sistemas de galerias e museus.
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5.4 A tridimensionalidade e a desmaterialização do objeto de arte: o mapa-processo Em Specific Objects, ensaio de 1965, o artista Donald Judd (1965, p. 1) afirma que grande parte dos melhores trabalhos realizados naquela época não podiam mais ser considerados nem pintura e nem escultura. Judd utilizou o termo new three-dimensional work para descrever a nascente produção artística. Essa produção era caracterizada, basicamente, por dois procedimentos, a “tridimensionalidade” e a “desmaterializacão” do objeto de arte (CHANDLER; LIPPARD, 2009; LIPPARD, 2009). Para Krauss (1998, p. 312-313), a tridimensionalidade investia na produção de “obras que refutassem o caráter singular, privado e inacessível da experiência”, enquanto a desmaterialização insistia na recusa em “dotar a obra de arte de um centro ou um interior ilusionistas”, reivindicando, assim, “que o significado fosse visto como originário – para estendermos a analogia com a linguagem – de um espaço público e não privado”. Dentro desse contexto, é importante ressaltar a importância de Robert Rauschenberg e Jasper Johns. Herdeiro do dadaísmo69, Rauschenberg inventou a “Combine Painting”, forma artística que, como o próprio nome indica, combinava a pintura com objetos reais. Essas obras se encontravam em uma posição intermediária ente a pintura e a escultura. Misturavam a aplicação altamente pessoal e gestual da tinta, típica do abstracionismo, com o lixo descartado da cultura ocidental e com objetos do cotidiano como fotos e recortes de jornal e mapas, como podemos observar na obra “Small Rebus”, de 1956 (Figura 5.12). Rauschenberg marca um ponto de inflexão, no qual a junção entre imagens e objetos tridimensionais sinaliza uma abertura para que o mapa se “descole” da tela. 69
A influência do dadaísmo e mais especificamente de Duchamp nos trabalhos de Rauschenberg é ressaltada por HOPPS, W. Rauschenberg’s art of fusion. In: RAUSCHENBERG, R. A retrospective. Nova York: Guggenheim Museum Publications, 1997.
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Figura 5.12 – Small Rebus, Robert Rauschenberg, 1956. (MoCA - Museum of Contemporary Art, Los Angeles, California) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Nos anos 1960, Jasper Johns fez também uma série de mapas dos Estados Unidos (Figuras 5.13 e 5.14). Ao resgatar objetos comuns do cotidiano e os transformá-los em pinturas, Johns neutralizou a lacuna entre vida e arte. Duchamp transformara o objeto ready-made numa arte; Johns foi agora mais além, e transformou o objeto numa pintura, desafiando toda a tradição da colagem, cuja principal técnica consistia em pôr numa superfície a imagem integral ou não, alusiva ou significante, de um objeto. Até então, as assemblages de todas as espécies, na sua imperfeita síntese de motivo e tratamento, tinham atuado “na lacuna” entre vida e arte. Johns neutralizou essa lacuna. Uma vez que se entendeu que a pergunta “É uma bandeira ou uma pintura?” não tinha resposta – não era importante –, estava completamente aberto o caminho da Arte Pop (LIPPARD, 1973, p. 78). 186
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Figura 5.13 – Two Maps I. Jasper Johns, 1966 (MoMa – Museum of Modern Art, New York) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
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Figura 5.14 – Map, Jasper Johns, 1961. (MoMa – Museum of Modern Art, New York) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
É possível perceber também o movimento de artistas que começam a pesquisar novos espaços. Nos anos 1960, o trabalho de artistas como Judd, Robert Morris, Dan Flavin e Carl Andre, cujo traço em comum estava no uso de materiais pré-fabricados, provenientes do universo comercial, recebeu por parte dos críticos o nome de Minimalismo. O fato de essas obras serem constituídas a partir de materiais que não foram fabricados pelo artista, tais como lâminas de metais diversos, tijolos refratários, lâmpadas, fórmica etc., bem como a simplicidade geométrica com que tais materiais são dispostos em composições modulares, fez com que Rosalind Krauss apontasse um vínculo entre o minimalismo e o ready-made duchampiano, a partir da constatação de que “os artistas minimalistas exploraram outra implicação ainda do elemento pronto para o uso. [...] Nesse sentido, os elementos ready-made são capazes de transmitir, em 188
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nível puramente abstrato, a ideia de pura exterioridade” (KRAUSS, 1998, p. 298-300): Os minimalistas se valiam de elementos aos quais nenhum tipo específico de conteúdo fora conferido. Por essa razão, conseguiam tratar o ready-made como uma unidade abstrata e concentrar a atenção nas questões mais genéricas, relativas a como poderia dispor deste. [...] A produção em massa garante que cada objeto terá uma forma e um tamanho idênticos, impedindo qualquer relação hierárquica entre eles. Por conseguinte, as ordens composicionais que, parece, devem concorrer para essas unidades são as da repetição ou da progressão em série: ordens desprovidas quer de pontos focais logicamente determinados, quer de limite externos ditados internamente. (KRAUSS, 1998, p. 300-301).
A importância que os minimalistas atribuíam ao lugar físico da obra, ao espaço real, ao respeito pela dimensão humana, contribuiu para que a escultura constituísse um campo de trabalho privilegiado. Como afirma Barros (1996, p. 36), as obras minimais, cujas dimensões, desvios e escalas são calculados milimetricamente, procuram sobretudo suscitar uma reação física. Com o minimalismo, a escultura passou a configurar uma situação espacial singular, justamente por ser compreendida em relação ao espaço e redefinida em termos de “lugar específico”. Para artistas minimalistas, as coordenadas de percepção foram estabelecidas como existentes não só entre o espectador e a obra, mas entre espectador, obra de arte e o lugar habitado por ambos. Isto foi conseguido através da eliminação das relações internas do objeto ou fazendo essas relações em função da repetição estrutural simples (Figura 5.15), de “uma coisa depois da outra” (CRIMP, 2000, p. 149).
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Figura 5.15 – Untitled, Donald Judd, 1969. (Panza Collection, Solomon R. Guggenheim Museum, Nova York) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
Suas peças representavam um lugar e um espaço a serem percorridos, as esculturas não ficavam mais em um pedestal, devendo ser observadas por todos os lados. Tratava-se de mudar a relação do objeto com o observador, colocando ambos no mesmo espaço existencial. Os objetos são colocados diretamente no chão, o que os torna parte integrante do espaço. A eliminação do pedestal passou 190
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a demandar do público um envolvimento perceptivo espacial e a necessidade de demarcar o território a ocupar, inclusive por razões práticas: para não trombar na obra e para poder apreciá-la melhor (BARROS, 1996, p. 36). Ao longo do século XX, o conceito de objeto veio sendo gradativamente alterado pela noção de processo. Muitas vezes, o processo de produção da obra revela-se como sendo a própria obra. A desmaterialização do objeto promoveu, dentre outras coisas, um retorno à ideia do caminhar como ato estético, na medida em que esse ato promovia uma ligação entre arte e vida. Segue-se, então, que a tridimensionalidade, em última instância, levou a uma apropriação do próprio espaço percorrido como tela, procedimento comum nas mídias locativas. Dentro desse contexto, o grupo Fluxus é emblemático para se pensar não só a criação de mapas, como também uma dinâmica geográfica que configuraria a prática artística. Higgins (2006, p. 270) desenvolve a ideia de haveria uma “Flux Geography” que se constituiria não apenas nas muitas obras que se configuraram de alguma forma como mapas, mas na própria configuração do grupo, uma rede geograficamente dispersa pelo globo. O grupo congregou artistas, poetas e compositores de todo o mundo e assumiu, em suas obras, um formato altamente elástico aliado a uma atitude experimental, muitas delas ocorrendo ao mesmo tempo, em diferentes partes do mundo. Começando em 1965, Mieko Shiomi realizou uma série de nove eventos que ela chamou “Poemas Espaciais” (Figuras 5.16 e 5.17).
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Figura 5.16 – Spatial Poem No. 1, Shiomi Mieko, 1965. (MoMa – Museum of Modern Art, Nova York) Fonte: . Acesso em: abr. 2019
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Figura 5.17 – Spatial Poem No. 2 Shiomi Mieko, 1965 (Convite com lista dos lugares e horários). MoMa – Museum of Modern Art, Nova York Fonte: . Acesso em: abr. 2019
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O trabalho é, ao mesmo tempo, uma performance e um poema. Shiomi enviou pelo correio um convite para um grande número pessoas ao redor do mundo, com um pedido/proposta para escrever sobre o que eles estavam fazendo em um dia e hora específicos. Com a marcação do fuso horário, todos os relatos seriam de fatos que ocorreram ao mesmo tempo. As respostas que ela recebeu por correio permitem vislumbrar da ampla rede transnacional de artistas conectados por meio de atividades do Fluxus. O trabalho ilustra o ponto de vista de Bazzichelli (2009, p. 26-33), de que o movimento Fluxus se configurou como uma rede na qual práticas artísticas, tecnológicas e sociais se articularam com relações e processos entre os indivíduos. Para a autora, essa própria rede se configuraria como o trabalho artístico. Denis Cosgrove (2006, p. 150) afirma que, no Modernismo, a conexão entre a arte e a cartografia envolvia uma rejeição consciente da estética tradicional e que os artistas conceituais e pósconceituais da década de 1970 até o presente têm sustentado esta conversa crítica com cartografia. Assim, progressivamente o mapa se expande nos mais diversos trabalhos artísticos, sendo tensionado desde a fusão de matérias de expressão até a sua dissolução material, funcionando inclusive como um procedimento artístico, mais que um simples objeto. Os artistas partem do mapa e o utilizam como um elemento cultural cotidiano a ser reapropriado, como fizeram os dadaístas, por exemplo, e vão progressivamente subvertendo seu uso, até o transbordamento de seus formatos tradicionais. Nessas obras, mais que um mapa a ser apresentado ou utilizado, a ideia de mapeamento passa a orientar o trabalho. Para Cosgrove (2005b, p. 41), o predomínio do impulso de mapeamento na arte contemporânea também pode ser visto não apenas por seus expoentes mais evidentes, mas no desfile de artistas bem conhecidos nas exposições de mapas que, embora famosos por diferentes tipos de arte, consideram o mapa uma ferramenta necessária. 194
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5.5 Mídia locativa como cartografia expandida Um tema recorrente na arte site-specific tem sido o uso de interações entre pessoas e coisas no espaço material para “mapear” locais, rotas e viagens dentro das cidades. Assim, a linguagem e a prática de mapas foram implantadas para estruturar tais viagens e interações (WATSON, 2009). Podemos citar também Robert Smithson que, além de criar obras como um lugar a ser cartografado pelo espectador, trabalhava com mapas para planejar, executar e documentar o seu trabalho. Ao descrever seu primeiro contato com o Grande Lago Salgado em Utah, no qual construiria sua obra “Spiral Jetty”, Smithson evoca a sensação vertiginosa que experimentou ao se perceber continuamente descentralizado em meio à vasta extensão de lago e céu: Contemplando o local, ele reverberava para os horizontes sugerindo um ciclone móvel, enquanto a luz bruxuleante fazia com que a paisagem inteira parecesse sacudir. Um terremoto dormente propagava-se por uma imensa circularidade. Desse espaço giratório surgiu a possibilidade do Quebra Mar Espiral. Nenhuma ideia, conceito, sistema, estrutura ou abstração podiam sustentar-se diante da realidade daquela prova fenomenológica. (SMITHSON apud KRAUSS, 1998, p. 336).
A land art é uma prática artística pensada e arquitetada na paisagem e não na galeria. São trabalhos cujo enfoque encontra-se no espaço experimentado, em detrimento do objeto. Na land art o corpo tem que percorrer as obras, as composições propõem trajetórias ativas e não um espectador contemplando algum provável centro da composição. Esse processo configuraria um ato radical de descentralização, que incluiria o espaço em que o corpo se fazia presente no momento de seu aparecimento (KRAUSS, 1998).
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Spiral Jetty (Figura 5.18) é uma terraplanagem escultural, composta por uma trilha espiralada formada pelo acúmulo de basalto e areia, com 4,5 m de largura e que avança 45 m pelas águas avermelhadas do lago em Rozelle Point. É um trabalho que deve ser fisicamente penetrado. No decorrer do percurso, a trilha vai se estreitando à medida que nos aproximamos do centro da espiral. Como enfatiza Krauss (1998, p. 336-341): “(...) uma espiral, essa configuração possui necessariamente um centro, que nós, como espectadores, podemos efetivamente ocupar (...) com a experiência de uma passagem momento a momento através do espaço e do tempo”.
Figura 5.18 – Spiral Jetty. Robert Smithson, 1970. Great Salt Lake, UT, EUA Fonte: . Acesso em: abr. 2019
A ideia central do site-specific é que o sentido de uma obra, o local onde ela é colocada e o efeito estético que dela se espera são indissociáveis entre si. Depois de uma audiência pública para deter196
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minar se Tilted Arc seria realocada70, Serra afirmou que “mover o trabalho é destruir o trabalho”. Essa seria a máxima do que definiria uma obra site-specific: Como eu apontei, Tilted Arc foi concebida desde o início como uma escultura site-specific e não foi concebida para ser ‘ajustada’ ou ‘realocada’. Obras site-specific lidam com componentes ambientais de determinados lugares. A escala, dimensão e localização das obras site-specific são determinados pela topografia do local, seja ele urbano, paisagístico ou arquitetural. As obras tornam-se parte do local, e reestruturam conceitual e perceptivelmente sua organização. (SERRA, 1994, p. 202).
Nas obras de Land art, assim como muitas vezes acontece na performance, o processo de formalização da obra conjuga, em condições de igualdade, as operações de efetiva construção e sua transformação em imagem. Se para Smithson (1996, p. 150) “A moviola torna-se uma máquina do tempo que transforma caminhões em dinossauros”, no caso das mídias locativas, o GPS é usado para registrar sua própria mobilidade e narrativas espaciais. Russell (1999, p. 1) afirma que as mídias locativas são “um lugar novo para discussões velhas sobre a relação entre a consciência do lugar e outras pessoas”. Dentro desse contexto, pensamos ser possível estabelecer um fértil diálogo entre as mídias locativas e algumas questões que permeiam o universo da arte nas últimas décadas, como, por exemplo: o lugar na arte, o campo da experiência artística e sua expansão, a experiência no espaço, os desdobramentos da relação entre o artista e o espaço urbano, o uso da tecnologia para descobrir novos pontos de vista, dentre outros. Para compreender melhor essas questões e como elas podem ser pensadas nas mídias locativas, utilizaremos noção de campo expandido de Rosalind Krauss (1979b, p. 51-64). Conforme já mostramos ao longo deste capítulo, é possível também reconhecer a 70
Em 1989, a obra de Serra foi removida da Federal Plaza pelo Governo.
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chegada de um campo expandido e do colapso de fronteiras fixas no universo da Cartografia e as mídias locativas contribuem para tal expansão. O locativo que nomeia a mídia locativa é uma categoria gramatical que exprime lugar, como “em”, “ao lado de”, indicando a localização final ou o momento de uma ação (LEMOS, 2008). Como um conjunto de tecnologias e processos infocomunicacionais cujo conteúdo informacional vincula-se a um lugar específico (LEMOS, 2008, p. 207), a questão da localização é central para as mídias locativas. Diferente de uma obra de land art, uma obra de arte locativa tem um componente tecnológico que rastreia a localização do usuário e que fornece sua posição. Dessa forma, as mídias locativas permitem acrescentar layers com informação digital nos lugares e permitem que os lugares possam ser lidos. Se Robert Smithson nos apresentava uma rede de sites/non-sites conexos por meio de fotografias e filmes, as mídias locativas possibilitam mais uma camada – a das tecnologias location aware em rede – ao ressaltar as possibilidades performativas, o abandono do modelo hegemônico de mapeamento em prol da ênfase na localização e navegação de performances realizadas por indivíduos (selfs) concretos e não como uma representação visual do espaço urbano. Como vimos nos capítulos anteriores, o mapa extrapola e reinventa a razão cartográfica e se apresenta como índice de um espaço vivido intimamente ligado aos deslocamentos no espaço. Dentro desse contexto, o mapeamento se configura como um desdobramento de camadas, acionado/construído pelo deslocamento, que envolve uma dimensão performativa, corporal, que vai muito além da simples reprodução de coordenadas físicas. Os processos comunicativos, a tecnologia envolvida, as relações entre diferentes espaços e tempos, a interação entre pessoas em diferentes lugares, são inseparáveis e constituem o trabalho de mídia locativa, que pode ser compreendido como uma assemblage. As pessoas, a tecnologia, o espaço, a cidade e seus elementos, suas 198
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implicações sociais e políticas, dentre outros elementos, se articulam nessa rede, que é cartografada pela obra locativa. A rede invisível formada por vários sites não indica exatamente um “lugar específico” nos termos de Richard Serra, no qual uma obra geralmente se refere a um determinado espaço. Percebe-se um alargamento da noção de lugar, para além da noção de um lugar como essencialmente ligado às materialidade físicas (Kwon, 2004, p. 164). Conforme afirmou Bueno (2010, p. 110), o lugar na mídia locativa seria um lugar composto por camadas de informação. Dessa forma, acreditamos que a grande singularidade das mídias locativas não está em seus desdobramentos tecnológicos, e sim em seu caráter mediador da experiência. Pensar as mídias locativas como mediadoras implica compreendê-las como parte de uma rede de sentido que abarca elementos materiais, imateriais, orgânicos e sintéticos. Dessa forma, as pessoas, a tecnologia, o espaço, a cidade e seus elementos, suas implicações sociais e políticas, dentre outros elementos, se articulam nessa rede, que é cartografada pela obra locativa. Nesse caso o site-specific, seria o espaço de potencialidades de acionamento dessa rede, que se atualiza no espaço tangível. A maneira que essa rede se configura, mesmo que provisória se constitui um mapa. Um mapa expandido, [...] aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política, uma meditação. (Deleuze; Guattari, 1995, p. 22).
As mídias locativas, justamente por serem uma assemblage que carrega e proporciona diferentes concepções espaciais, geram tensões e possibilitam a conexão de layers de espaço e a criação de CARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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mapas semiósicos. A cartografia expandida das mídias locativas se constitui como uma rede de atores humanos e não-humanos que configuram uma determinada partilha do sensível, mostra coisas “invisíveis” de outra forma e rearranja partilhas existentes: Conforme afirma Rancière (2005a, p. 59), “traçam mapas do visível, trajetórias entre o visível e o dizível, relações entre modos de ser, modos de fazer e modos do dizer”.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] para instaurar o reino da paz não é necessário destruir tudo e dar início a um mundo completamente novo; basta apenas deslocar ligeiramente esta taça ou este arbusto ou aquela pedra, e proceder assim em relação a todas as coisas. (Agamben, 1993, p. 44).
A palavra subversão, deriva do latim subversio, que significa “virar de cabeça para baixo”, derrubar, dentre outros. Cauter et al. (2011, p. 5-18)p. 5-18, ao realizarem uma breve genealogia do termo, afirmam que subversão é uma palavra recente, que surgiu na modernidade e carrega suas contradições: Subversion vem do latim subversio (do prefixo sub: sob, e verter: transformar) e significa literalmente virar, interrupção, derrubar, também destruição. Sua tradução mais comum é: minando a autoridade (em holandês: gezagsondermijnend). Através da palavra francesa subversion, a palavra se espalhou por todos os idiomas europeus. Em inglês, ocorreu pela primeira vez como um adjetivo por volta de 1644 (ou seja, durante o turbulento período Cromwell). Em holandês, foi usada pela primeira vez por volta de 1824 (perto da época da revolução belga). O substantivo também apareceu bem tarde em inglês: 1887. Subversion é, em outras palavras, um fenômeno moderno. Pelo menos: antes da Idade Moderna, na Idade Média, não havia um termo para isso. (Cauter et al., 2011, p. 6)2011, p. 6.
O projeto inicial, que originou a presente pesquisa, partiu de uma busca em compreender as cartografias subversivas, profundamente marcadas pelas críticas iniciais realizadas às mídias locativas tais como apontadas por Tuters e Varnelis (2006). Os autores nos lembram que as mídias locativas foram atacadas por se envolverem em interesses comerciais e pela sua dependência de sistemas de mapeamento cartesianos (SANT, 2004). 201
Dessa forma, o eixo central por meio do qual partimos, era a subversão da cartografia de orientação cartesiana e de um espaço absoluto. O caminho parecia fácil: de um lado cartografias que subvertiam o modelo tradicional em suas representações do espaço vivido e de outro lado, mapas tradicionais marcados pela representação do espaço absoluto. Na verdade, o nosso processo de pesquisa desvelou a complexidade do objeto. Ao perceber as armadilhas do pensamento binário e buscar sua superação, tal como fizemos no capítulo 1, percebemos que nosso objeto, conforme afirmam Bambozzi et al., trata-se de um fenômeno mais complexo do que se supõe, marcado por “um processo de negociação que incorre em aspectos negativos e positivos. Se em toda negociação há perdas ou ganhos, […] elementos complicadores surgem a cada passo” (BAMBOZZI et al., 2010, p. 28). Bambozzi ainda completa a ideia afirmando que isso implica em acreditar em potências micropolíticas, no nomadismo como um espaço de invenção, e talvez em novas nuances semânticas para a palavra “negociação” (BAMBOZZI, 2011). A negociação a que o autor se refere envolveria justamente ultrapassar um olhar que, ao invés de pares opositivos, busca justamente esses espaços de negociação, onde podem acontecer novos rearranjos e partilhas do sensível, como demonstramos no capítulo 3. Tuters e Varnelis (2006) indicam algumas abordagens nostálgicas das mídias locativas, invocando a noção de arte como autônoma dos circuitos de tecnologias de comunicação de massa. Tal abordagem nostálgica é marcada pelo que Cauter et al. (2011, p. 6) afirmam ser uma vaga nostalgia romântica por uma tradição de perturbação, que se estende desde os libertinos nos séculos XVII e XVIII aos luditas da Revolução Industrial, dos boêmios do século XIX à grande parte da vanguarda, até os situacionistas e a “contracultura” da década de 1960, e o ciberativismo dos anos 1980 e 1990; e até mesmo nostalgia pelos dias de cúpula do movimento antiglobalização, o período entre 1999 e 2003. 202
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Assim, o que chamamos de Cartografias Criativas se apresentam não tanto como embate, subversão política ou derrubada de um sistema, mas uma atitude de ruptura que tenta criar aberturas, possibilidades, fissuras em um sistema (Cauter et al., 2011, p. 6). Conforme afirmamos no capítulo 3, o caráter subversivo das mídias locativas se daria não por apresentar uma alteridade radical, uma ruptura, e sim por mobilizar elementos, configurações e relações que guardam o potencial de alterar a partilha do sensível dos habitantes de um determinado território. Quando as lógicas formais incorporadas em sistemas locativos são colocadas para trabalhar, para ordenar e orientar-nos no mundo físico, novas composições de energia são cultivadas, o que pode potencialmente impactar nossa relação com o ambiente urbano e a composição do espaço social como tal. Ou seja, a nossa forma de ver a cidade e a experiência de vida urbana. Paglen (2008, p. 14-34)r, ao enfatizar a questão “produção do espaço”, afirma que o conceito não se aplica apenas aos “objetos” de estudo ou crítica, mas nas próprias ações de uma participação na produção do espaço. Nesse sentido, tais cartografias estariam produzindo um espaço. São projetos que, conforme Bambozzi et al., poderiam [...] driblar as definições estritas de uso previstas para essas tecnologias por parte de fabricantes e operadoras. São projetos que em algum momento, no contexto em que foram criados, sugeriram ao mundo um campo de tensão entre localização e deslocamento, entre mobilidade e mobilização, inserindo pelas frestas das estratégias de consumo algumas possibilidades expressivas dissonantes. (Bambozzi et al., 2010, p. 30).
As mídias locativas, justamente por serem uma assemblage que carregam e proporcionam diferentes concepções espaciais, geram tensões e possibilitam a conexão de layers de espaço e tempo. A cartografia expandida das mídias locativas se constitui como uma rede de atores humanos e não-humanos que configuram uma deterCARTOGRAFIAS CRIATIVAS
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minada partilha do sensível, mostra coisas invisíveis de outra forma e rearranja partilhas existentes. Conforme afirma Rancière (2005a, p. 59), “traçam mapas do visível, trajetórias entre o visível e o dizível, relações entre modos de ser, modos de fazer e modos do dizer”. Assim, as Cartografias mostradas aqui apresentam mapeamentos de natureza muitas vezes provisória e parcial e que, de certa forma, promovem alterações em nossas percepções e visões de mundo. Não se trata de invalidar a Cartografia tradicional, mas sim considerá-la como mais um método de representar o espaço. Trata-se de compreender a Cartografia não somente, mas, sobretudo, como fato e fenômeno de linguagem no qual o espaço se configura como tecido vivo das relações sociais e campo de investimentos simbólicos.
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