CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Colecção HORIZONTE DE CINEMA Sob a direcção de: Salvato Menezes Eduardo Paiva Raposo
EDUARD...
28 downloads
880 Views
1MB Size
Report
This content was uploaded by our users and we assume good faith they have the permission to share this book. If you own the copyright to this book and it is wrongfully on our website, we offer a simple DMCA procedure to remove your content from our site. Start by pressing the button below!
Report copyright / DMCA form
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Colecção HORIZONTE DE CINEMA Sob a direcção de: Salvato Menezes Eduardo Paiva Raposo
EDUARDO GEADA
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO Prefácio de Eduardo Paiva Raposo e Jorge Leitão Ramos
LIVROS HORIZONTE
Título: Cinema e Transfiguração Autor: Eduardo Geada Livros Horizonte Capa: Estúdios Horizonte
Reservados todos os direitos de publicação total ou parcial para a língua portuguesa por LIVROS HORIZONTE, LDA. Rua das Chagas 17 - 1.° Dto. — Lisboa 2 que reserva a propriedade sobre esta tradução
UMA CRÍTICA MATERIALISTA
Poder-se-ia talvez dizer que, na história do cinema, os filmes se têm dividido em dois grandes tipos, à primeira vista independentemente das coordenadas temáticas, mitológicas, históricas e até políticas (num sentido restrito) que as suas ficções põem em jogo. Temos, por um lado, aqueles filmes que se baseiam primordialmente na faculdade de reprodução mecânica do mundo pelo objecto base do cinema (a câmara) através da obtenção de uma imagem e de um som analógicos em relação ao real; que se baseiam portanto numa ilusão de realidade complementada com o condicionamento específico do sujeito-espectador (sala fechada, às escuras, o «milagre» da projecção, o surgimento fascinante do real na tela branca, «janela aberta sobre o mundo»); que se apoiam, ainda, num dispositivo ficcional completamente enraizado na lógica que nos condiciona ideologicamente há séculos — a lógica aristotélica —, fechado sobre si próprio, exaustivo no que respeita ao sentido e, ao mesmo tempo, naturalizante, apostado em fazer-nos acreditar que aquilo que se passa na tela branca pode ter uma equivalência imediata e natural com a realidade; que se centram sobre um personagem através do qual é lida toda a ficção, e as suas variações/metamorfoses — esse «outro» eu que suporta uma leitura desde o início ideologicamente programada. Estes filmes submetem o sujeito-espectador a uma relação fantasmática com aquilo que vê no écran; fazem, em suma, que o espectador se perca (enquanto sujeito consciente) numa relação de natureza dual (fantasmática) com o écran ( com o que vê, com o suposto «mundo»). Este cinema, que foi e continua a ser o essencial do discurso ideológico cinematográfico da burguesia, independentemente do maior ou menor trabalho formal que os filmes que o representam incorporam (o que por vezes provoca efeitos de ruptura extrema-
8
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
mente interessantes — veja-se grande parte do «cinema clássico americano» até meados dos anos 60), pretende no essencial abolir toda e qualquer distância entre a realidade e a representação fílmica e, através da sujeição do espectador aos seus significantes fílmico-retórico-ideológico — a narração, o naturalismo da representação e dos décors ( naturalismo esse relativo, evidentemente, aos hábitos socioculturais e ideológicos do espectador), a ilusão dos raccords, etc., — sujeitá-lo igualmente aos temas ideológicos preferenciais que, em cada conjuntura histórica, a burguesia se vê forçada a alimentar (num jogo dialéctico em que o ideológico e o económico pesam igualmente — e os artigos do Geada bem no-lo mostram). Uma grande parte dos capítulos deste livro do Eduardo Geada consiste precisamente numa análise dos elementos ideológico-ficcionais que alguns desses filMes (sobretudo filmes recentes americanos e também filmes de série, talvez resultantes daquilo a que se poderá chamar uma «degradação dos géneros» do cinema clássico — o kung-fu, o western-spaghetti, o melodrama tipo Love Story, etc.) põem em jogo, situando esses elementos na intersecção, na articulação do duplo condicionamento funcional do cinema no sistema capitalista: o económico: o cinema é uma indústria, e os seus produtos, tal como quaisquer outros, não escapam à lei do capitalismo: os filmes têm de ser rentáveis, têm de dar lucro; sendo este aspecto determinante na escolha dos temas, ficções, géneros, etc., a lançar e a desenvolver em cada momento (de acordo com uma sábia análise «sociológica» da «procura» em cada momento); e o ideológico: há que defender um determinado sisema político (o capitalismo), um determinado status sociopolítico, e das duas uma: ou se lançam temas, mitos, que façam o espectador acreditar nesse sistema, que lhe dêem credibilidade, que o apresentem como imutável, universal — e temos aí, por exemplo, a representação da história em toda a cinematografia da burguesia, sobretudo no cinema clássico americano (não sem contradições interessantes, por vezes); ou então alimentam-se temas e mitos que impeçam o espectador de chegar sequer à esfera do social, do político, projectando-o num universo maniqueísta, moralista, violento, mitológico, do qual o «político» se encontra radicalmente excluído.
UMA CRÍTICA MATERIALISTA
Um outro grande tipo de filmes (cujos autores se encontram dispersos um pouco por toda a história do cinema: Einsenstein, Vertov, Pasolini, Bergman, Godard, Straub, entre outros) procura construir uma ordem simbólica mediadora entre o espectador e a «cena», que lhe permita referenciar-se, encontrar-se no seu próprio fundamento de sujeito-espectador. Esta ordem simbólica, que é antes de mais uma auto-reflexão do próprio aparelho-cinema enquanto produtor de significações, um debruçar-se sobre a especificidade da linguagem cinematográfica, uma tomada de consciência pelo cinema da sua espantosa capacidade de veiculação fantasmática, de «coisas vistas» que se tornam por isso em verdades aceites, vem permitir ao sujeito, através de uma certa «distanciação», referenciar-se a ele próprio durante a projecção, impedindo assim qualquer relação meramente dual, imediatamente projectiva com o que se passa no écran (poderíamos dizer, anedoticamente, que este cinema é aquele que dá a liberdade às pessoas de saírem no meio da projecção, se muito bem o entenderem). A relação do espectador com estes filmes é de natureza simbólica no sentido em que entre o sujeito potencial do fantasma (que é qualquer espectador) e o filme se vem interpor uma «grelha» (uma produtividade textual) de relações complexas entre aquele e a cena fílmica. A superfície do écran deixa, assim, de ser o lugar do «mesmo» (de uma projecção fantasmática) para se tornar objecto no verdadeiro sentido do termo, qualquer coisa de radicalmente diferente que é necessário ler, decifrar, na qual é necessário investir esforço e reflexão, para apreender as relações internas e, finalmente, para aceitar ou rejeitar (livremente). Este cinema, ainda que possa não possuir temas directamente políticos, é um cinema político em última instância, na medida em que constrói um efeito produtivo, de conhecimento sobre o mundo que nos rodeia ou sobre a história — logo, necessariamente político; e não um efeito meramente passivo de reconhecimento ( ideológico). Talvez não seja por acaso que muitos destes filmes sejam sobre a história e nos proponham através de uma escrita reflectida — métodos inteiramente diversos, não ilusórios, de tomada de contacto com o material histórico.
10
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
É também deste cinema que nos fala o Eduardo Geada, em análises nomeadamente de filmes de Eisenstein, Straub e Godard. Para finalizar, queria sublinhar o pressuposto, quanto a mim extremamente importante, que atravessa as análises do Geada, pressuposto esse sem o qual se cai inevitavelmente numa crítica completamente empirista e idealista, submetida à ideologia burguesa dominante: é a tese fundamental de que o cinema é, de uma ponta à outra, artificial, construído (a começar pelo próprio cinema clássico, da «transparência»), materialmente determinado por uma escrita da montagem e da construção interna ao plano, e que lhe confere unia natureza descontínua (ainda que o trabalho dessa escrita, em muitos filmes, possa ir precisamente no sentido da camuflagem dessa descontinuidade, dando-lhe a aparência da continuidade, da ilusão da vida real). Hoje em dia, a crítica de cinema que não tenha este facto em conta, na impossibilidade de construir adequadamente o seu objecto, passará necessariamente ao lado do seu alvo [e por vezes em cinema o (bom) alvo é bem pequeno — difícil de ver. A bom entendedor ...]. EDUARDO .PAIVA RAPOSO
DA MEMÓRIA AO CINEMA EM ACTO
Há várias razões que podem justificar uma recolha de textos escritos em jornais e revistas um pouco ao longo do tempo (1968-1977). Ou o seu autor é um nome marcante e interessa, por isso, recolher o que escreveu mesmo quando a prosa foi produzida por entre vários factores aleatórios, e não tem, assim, uma estrutura definida e exacta; ou os textos, independentemente ( ?) de quem os escreveu, são marcas importantes num discurso que um colectivo atomizado ergueu num determinado momento histórico, estético ou social. Creio que os escritos do Eduardo Geada que este livro comporta não se justificam em nenhuma daquelas duas razões. A razão, se a quisermos buscar e dela necessitarmos, temos de a ir procurar no mundo um pouco provinciano, um pouco auto-satisfeito, um pouco ignorante e um pouco cobarde da crítica de cinema em Portugal nos últimos anos. Só assim se percebe que textos escritos ao longo de dias, anos atrás, possam, ainda hoje, ser diferentes e modernos, no sentido em que essa diferença e essa modernidade não são apenas atributos de uma qualquer exótica singularidade mas contém em si traços longamente inexplorados até então e pouco mais aprofundados até agora. Antes de tudo, o trabalho do Eduardo Geada recusa ser uma crítica de gosto; uma tarefa de maitre d'hotel da burguesia a escolher no cardápio os pratos melhor confeccionados, uma crítica culinária, no sentido que Brecht deu ao termo. Em segundo lugar, os seus textos enjeitam situar-se no terreno fechado da cinefilia, esse mundo que remete sempre para si próprio, falando das formas e dos autores como se o que importasse fosse apenas uma coerência interna, um carácter comparativo (Hitchcock versus Wyler ou a montagem de atracções versus plano-sequência) cuja discussão e fundamento se fizesse exclusivamente no interior
12
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
do próprio cinema. Para Eduardo Geada o cinema é sempre entendido como reflexo dialéctico do histórico. E é nas esferas do político, do social, do psicanalítico e também da cinefilia que o seu trabalho crítico se desenvolve. Gostaria de acentuar aqui um dos aspectos que me parecem mais importantes desta aproximação do cinema: o seu carácter didáctico. Com efeito, nos textos do Eduardo nunca importa muito dizer se o filme é bom ou mau (categorias de um maniqueísmo redutor que estão muito longe dos seus objectivos). Ao invés, trata-se de penetrar a textura do filme e de o compreender nas suas várias coordenadas, de o situar quer no interior do cinema, quer no interior de uma determinada estrutura social, quer no seu modo de funcionamento junto do público. Não há, por isso, nos seus textos uma adjectivação fácil, mas um trabalho moroso, fascinante e arriscado de dissecação. E tudo isto numa linguagem que se procura tão clara quanto possível, onde não é bem a «prosa» que interessa («prosa» que, noutros, chega a ser brilhantista, gongórica, citante e vazia), mas aquilo que, nela, de objectivo se disser. Por outro lado, este trabalho crítico não esconde nunca a sua precariedade, nunca se afirma como violentamente definitivo, nunca ganha as coordenadas de um julgamento inapelável. E isto exactamente porque ele se não fecha num mundo chão e familiar, seguro, mas assume o risco de evoluir, de procurar noutras direcções. Creio que isso, neste livro, é facilmente detectável. Ganha em estímulo o que perde em homogeneidade. Mas quem gosta de rostos simétricos? Num país onde tanta ideologia apressada inundou o quotidiano, onde os critérios de valor se pautam, frequentemente, pelo ideológico, muito pouca gente que fala e escreve acerca de objectos culturais tem a humildade e o rigor de análise que os textos deste livro demonstram. Quando o «julgamento» de um filme (ou de uma canção, ou de um livro, ou de uma peça de teatro...) se baseia tantas vezes no que o filme mostra ou conta ao nível primário de uma leitura apressada da sua história é bom de ver que a aproximação que os textos deste livro fazem é bem diferente. Eles mostram e demonstram que a formação da ideologia ao nível do cinema tem a ver com várias coordenadas (o modo de produção, o local e o tempo desta, o modo de difu-
DA MEMÓRIA AO CINEMA EM ACTO
13
são e consumo, as formas e os códigos cinematográficos usados...), e é a partir delas que se procura estabelecer uma aproximação ideológica do cinema em geral e de cada filme em particular. Resta talvez dizer que estes textos nunca são gélidos, impessoais e distantes. E que eles não são produzidos por uma qualquer instância venerada de saber, mas nascem de um prazer pessoal, de unia quase paixão, face ao écran, prazer multiplicado na prática analítica da escrita, prazer que, afinal, gera a imensa vontade de saber que os informa. Teve tal prática crítica uma função reprodutora no sentido de fazer aparecer outras práticas que continuassem ou dela colhessem a estrutura evoluindo em outras direcções? Num país em que a crítica cinematográfica nunca se profissionalizou, onde a miséria teórica, a incompetência e, até, a cegueira puderam fazer escola e ter cartas de alforria, onde alguns dos melhores textos foram produzidos por instâncias não especificamente cinematográficas, onde os feudos e as personalidades florescem com um só olho e, às vezes, nem isso, é difícil falar de escolas e correntes críticas, sendo mais fácil falar de cortes e de serventuários. De qualquer modo podemos assistir a algumas esparsas tentativas no sentido de levar a prática da crítica cinematográfica para terrenos menos lodosos do que os habituais. Tentativas que colhem do trabalho do Eduardo Geada o carácter pioneiro em Portugal de arrastar o cinema do ghetto das capelinhas e das escritas concêntricas e ocas para a luz viva das contradições do quotidiano e das contribuições que da linguística à psicanálise, do marxismo à sociologia, ele vai recebendo. Não faz, porém, sentido ignorar que Eduardo Geada há já alguns anos que enveredou pela prática fílmica, trocando a caneta pela câmara e o cinema de memória por um cinema em acto. E não faz muito sentido porque seria escamotear o futuro destes textos naquilo que eles têm de mais interessante. O cinema de Eduardo Geada é, com efeito, um cinema que prolonga de certa maneira a sua escrita vocabular, um cinema que colhe da aturada reflexão teórica muitas das suas soluções. Não deixou, de resto, de surpreender muita gente que, 1973 fora, um crítico pegasse, sem licença, na câmara, sem IDHEC nem publicidade no currículo, sem assistência de realização ou estágios no estrangeiro como tarimba. E mais
14
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
ainda quando se soube que o título dessa obra primeira seria Sofia e a Educação Sexual. Era a erupção do universo do desejo, tratando as coisas pelos nomes, no cinema português. Sofia e a Educação Sexual, se surpresas levanta ancoram-se elas na calma e estranhamente segura textura do olhar, na progressão quase iniciática nas esferas obscuras da imagem que a burguesia de si revela, nos riscos que assume (como o célebre plano de Luisa Nunes, frente à câmara, monologando repetidamente «amo-te Jorge» durante minutos). E talvez se possa dizer que ele é o primeiro filme português por onde perpassam frémitos sensuais, onde se representam, extensamente, as pulgões erotizadas. Filme onde se reflectem, ainda, preocupações de um agudo didactismo, recusas de nomear o lugar donde o filme fala como o lugar da verdade e da omnisciência, recusas de erguer personagens positivos com quem estabelecer identificações, transferts. Trata-se de compreender, de perspectivar o real, de o articular em assumida representação, nunca de o manipular unidireccionalmente, nunca de escamotear contradições e dúvidas, de simplificar o Mundo. Tratar o cinema como forma de penetrar e compreender o real (a transformação deste não é do domínio do cinema e da arte mas da vida, isto é, da luta de classes) e tratá-lo enquanto forma declarada de representação, tais me parecem ser as duas grandes coordenadas que pontuam o primeiro filme de Eduardo Geada e se prolongam em todo o seu cinema até à data. O Direito à Cidade, produção da RTP em 1974, após Abril, vai lançar o seu autor num campo novo, alheio à ficção, um cinema de raiz documental. Ainda, e de novo, nele se faz um trabalho centrado na compreensão de uma entidade em mutação, Lisboa, a cidade que se organiza e articula com o político, com o estético, com o social, com o histórico, com o humano. De Lisboa cidade (onde se inclui a sua memória ficcional que uma música «já usada», hoje parte integrante da sua respiração, ajuda a introduzir) e das suas pessoas enquanto massas atónitas e involuntárias de um processo nos fala Eduardo Geada numa linguagem que se quer depurada e não redundante. Daqui nasce talvez o seu carácter não televisivo mas, propriamente, cinematografico.
DA MEMÓRIA AO CINEMA EM ACTO
15
1974 vai dar, ainda, a Eduardo Geada a hipótese de um terceiro trabalho, com parcas condições de produção (uma longa-metragem com 300 contos de orçamento, doze dias de rodagem e apenas quinze dias de montagem, com os actores a trabalharem a meio tempo): O Funeral do Patrão, sobre texto de Dario Fo. Em jeito de cinema de intervenção circunstancial, atravessado profundamente pelos entusiasmos, vivências e contradições do período político que então se vivia, O Funeral do Patrão é, dos seus filmes, aquele que mais se afasta de um projecto de cinema reflectido, teorizado, amplamente meditado, um cinema crítico. É, assim, também o filme de Eduardo Geada que se liga menos ao seu trabalho escrito. Trata-se, portanto, de uma outra via: a do «cinepanfleto». Uni filme que vem mostrar, porém, algumas coisas: que as condições de produção limitam de forma apreciável qualquer prática cinematográfica, que Eduardo Geada é, sobretudo, um cineasta de maturação prolongada e não um instintivo que funcione a qualquer ritmo, em qualquer prazo. Dizem-me que, três anos passados, o filme ganhou uma dimensão documental e histórica de que os seus próprios erros são testemunho. Que ele guarda a espontaneidade e o voluntarismo que, durante boa parte de 1975, fizeram, nas ruas, a festa impensável e irresistível. O que, claro, não impede que seja uma espécie de parêntesis na obra do Eduardo ou, talvez melhor, a direcção que uma vez experimentada se verificou não ser a melhor. Regressando ao universo de Sofia, com outro fôlego, outra profundidade, outros meios e mais rasgadas intenções, A Santa Aliança fecha o círculo. Eis-nos de novo perante a cena burguesa, eis-nos de novo ante o exemplo pesado e medido de um cinema que constrói e destrói as suas pistas, que se fascina e se repele, que se clarifica e se opaciza, um cinema de bisturi, preciso e precioso, exacto como o ritmo de um verso de Pessoa, sabendo guardar as distâncias, conter as emoções, os frenesins imediatos, e não esquecendo, sobretudo não esquecendo, que a demagogia é um vírus intolerável, que o simplismo é uma gangrena sem remédio, que o triunfalismo é uma ingenuidade indesculpável. Agora já não é apenas o sexo e o cinema que estão em cena. A cena burguesa estende-se aos domínios do financeiro, do poder concreto que veicula em cheques a sua domi-
16
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
nação, do religioso que se conluia em sintonia com aquele, da produção estética (teatral, no caso) e de comunicação social (a televisão), metáforas do próprio cinema e braços tentaculares de uma representação que assegura a reprodução ad eternum de uma ideologia, de um quotidiano, de um modo de produção. É a burguesia, no seu esplendor, acmsada de perto mas não vencida, que A Santa Aliança vem analisar. E se há chuva e morte no caminho, há também luta cerrada. Mas não há vitória. Ainda uma vez, o realizador não se substitui à história, à vida. Trajectória da palavra ao filme, a rota de Eduardo Geada é, assim, a de um intelectual que face ao seu tempo e ao seu objecto (o cinema) tem procurado inserir-se no percurso histórico, concreto, do seu país. Com a lenta paciência e a necessária lucidez de todos os que, de algum modo, nos ajudam a estar vivos e a prosseguir. E que com todos nós são solidários. É isso, no fundo, o que ele mesmo diz, em texto entregue à equipa de Sofia no primeiro dia de filmagens: «Ao contrário do que- acontece nos filmes pornográficos, demagógicos ou meramente comerciais no pior sentido do termo, eu insisto em que as pessoas sejam complexas, contraditórias, eufóricas ou desesperadas, alegres e tristes, enfim, que tenham dúvidas e muito entusiasmo, numa palavra, que sejam vivas. É por isso que, no nosso filme, a intriga não é uma desculpa para filmar as cenas de amor, mas estas são a desculpa que eu tenho para conviver com as pessoas, e, se possível, aprender a conhecê-las melhor.» Janeiro de 1978. JORGE LEITÃO RAMOS.
Aos meus pais
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA 1. À margem de «Love Story» O cinema americano tem sido sempre, devido ao contrôle cerrado que sobre ele, desde início, exerceram
os vastos interesses do capital, um objecto industrial estandardizado, programado para consumo mundial. Catalogada em géneros (o melodrama, o policial, a comédia, o western, o musical, etc.) que procuravam à partida interessar os diversos possíveis gostos dos públicos, a produção cinematográfica norte-americana habituava, assim, o consumidor do espectáculo a normas precisas, que eram, por sua vez, determinadas por uma «ideologia do modelo». Desta dependia em grande parte o funcionamento eficaz da indústria e das respectivas campanhas de publicidade. Tudo era arrumado em fórmulas concisas, reconhecidas e passivamente aceites. Até meados da década de sessenta, dominado por um tipo particular de censura moral, cujas restrições se encontram pormenorizadas no tristemente célebre código de produção Hays, o cinema de Hollywood via-se obrigado a aceitar que «o adultério», e qualquer comportamento sexual ilícito, por vezes necessário para a construção de uma intriga, não devem ser tratados explicitamente, nem justificados sob uma forma atraente». Assim, insistiase em que as «cenas de paixão, não devem ser introduzidas se não forem absolutamente essenciais à intriga» e que «não deve mostrar beijos, abraços demasiado apaixonados, poses e gestos sugestivos». Quase todos os problemas relacionados com a actividade sexual humana teriam estado, portanto, afastados do cinema que mais influência exerceu nos públicos de todo o Mundo, se não fossem as habilidades e os subter-
18
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
fúgios de alguns realizadores excepcionais como Lubitsch, Wilder, Preminger, Hawks, Nick Ray, Hitchcock e outros. Aos setenta e tal anos de existência, o cinema comercial americano, por necessidade de expansão de mercado e a fim de poder fazer concorrência aos programas de televisão e ao cinema europeu, cada vez mais «ousado» (isto em meados dos anos sessenta), decidiu livrar-se do fantasma de Hayes e da sombra das ligas de moralidade, quis enfim, pelo menos num aspecto, tornar-se adulto sem passar pela maturidade. O sexo, até então tema tabo, como vimos, passou a ser a obsessão nacional dos produtores apressados em obter lucros fáceis. Do erotismo velado à pornografia descarada, da violência à abjecção: eis a corrida acidentada de algum cinema americano, porventura interessante, que o público português não viu durante os últimos anos da década de sessenta. Como a promessa publicitária de que cada novo filme iria mais longe do que o anterior, em breve, sujeitos a várias pressões oficiais, os produtores ficaram sem distâncias para percorrer. Por outro lado, começou a verificar-se uma baixa assinalável de frequência nos filmes mais ou menos pornográficos. A monotonia de tais filmes era evidente porque, como diz Luc Moullet com humor, o problema deste género de fitas é o de o realizador ter poucos sítios para colocar a câmara. Havia pois, no fim dos anos sessenta, uma necessidade urgente de se encontrar um outro modelo para o rápido sucesso comercial dos filmes. Tratava-se, antes demais, de proceder a uma prospecção dos mercados, de circunscrever as preocupações actuais do consumidor, de romper aquilo a que em publicidade se pode chamar a barreira da rotina e do aborrecimento, de averiguar para que lado poderia vir a pender a receptividade do espectador e de ver como uma campanha minuciosa nos grandes órgãos de informação e deformação pública seria capaz de desencadear em pouco tempo a histeria colectiva de uma nova moda, imposta com a aparência da espontaneidade. Não foi preciso procurar muito. A audiência sempre crescente que, a altas horas da noite, seguia atentamente, pelos receptores de televisão, os velhos melodramas dos anos trinta e quarenta e o enorme sucesso internacional
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
19
de películas como Música no Coração, Um Homem e Uma Mulher, das superproduções de David Lean e de uma reposição como E Tudo o Vento Levou fez chegar os fabricantes de películas impressionadas à conclusão de que o factor comum a todos aqueles filmes era, vejam a novidade, uma história de amor. Agora habituado ao cinema em que o amor era apresentado apenas como um acto físico, o espectador começou a encaminhar-se, orientado pelas campanhas de promoção cada vez mais cuidadas, para o novo produto qualificado como um regresso ao «romantismo»: o amor voltava a ser um banho de rosas e de éter. Convinha agora saber de que amor se tratava, isto é, conhecer de antemão que tipo de público iria, em 1971, consumir em grande escala o correspondente da intriga lacrimosa que fez as delícias das gerações anteriores, sem perder a hipótese de incluir também estas entre o número dos virtuais espectadores. Ora, é aqui que entram em acção os serviços americanos de estatística a informar o produtor avisado de que, actualmente, nos Estados Unidos, como na maior parte dos países europeus, quase 80 por cento dos espectadores regulares de cinema oscilam entre as idades dos 15 e dos 35 anos. A personagem apaixonada ideal não deve ter hoje a idade de Humphrey Bogart ou de Ingrid Bergman, mas, antes, aproximar-se do convívio com o jovem espectador, da sua mentalidade, se possível identificar-se- com ele, razão por que não seria indicado, por exemplo, utilizar num novo filme «modelo» actores demasiado conhecidos. Em resumo, tratava-se de aplicar uma fórmula mais do que gasta com o embrulho ligeiramente modificado: o amor no cinema simultaneamente como um aparelho e uma zona de evasão. Mas quem são os jovens que têm, primordialmente, as disponibilidades económicas e de tempo para encher as salas de cinema? Para encontrar a resposta a esta pergunta não é preciso ir aos livros: os filhos da média burguesia, os estudantes ou os que o foram, e que desses tempos recordam o «romantismo» passado dos primeiros amores que se julgam, pois não, fatais e impossíveis... Escusado será dizer que seria útil, portanto, arranjar uma história de amor «universal», «eterna», tão vaga quanto possível, estribada nos mitos permanentes da pieguice sen-
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
timental, susceptível de abarcar e embarcar todas as classes sociais, ocultando prudentemente as implicações políticas de tal manobra. Por este motivo, se dava muito jeito arranjar um ambiente estudantil para a nossa história de amor, era bom que não se falasse na crise política das Universidades americanas, da contestação juvenil organizada, dos protestos contra a guerra, do racismo, e de outros pormenores de somenos importância, claro está! O que era preciso era conciliar todo um arsenal mitológico capaz de fazer confundir o anacronismo com a realidade, juntar a Gata Borralheira ao Príncipe Encantado, passando pelo Romeu e Julieta de receita garantida, e deste modo inserir a salada sentimental numa pseudo-actualidade apta a mobilizar o interesse e a curiosidade de todos os espectadores previstos. O resto viria por ricochete: palavra puxa palavra, publicidade puxa publicidade, banalidade puxa multidões. Alguém se lembra então de um pequeno livro que — curiosamente — fora escrito para o cinema e ninguém estivera interessado em produzir. Livro que se vende agora nos quiosques com uma rapidez espantosa: vinte e cinco edições, mais de cinquenta milhões de leitores. O título ? Love Story, feito à medida das exigências e do momento comercial que procurei resumir. Escrito por um professor universitário que alinha prosa cuidadosamente, lacrime jante como quem descasca cebolas, Love Story entra no cinema com o aparato publicitário mais espectacular dos últimos anos. Em breve outros filmes seguiriam este exemplo de promoção comercial, inaugurando assim um novo estilo de publicidade na indústria cinematográfica. 2. Iconografia do «western-spaghetti» Diz-se, com alguma razão, que o western-spaghetti é uma forma de cinema popular. Sendo o western europeu (italiano, espanhol, alemão ou jugoslavo)` um cinema feito em série e integrado num género com regras próprias, a designação de cinema popular, quer dizer, em primeiro lugar e incorrectamente, que se trata de um cinema destinado ao consumo de massa.
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA IND1,STRIA
21
Portanto, de um cinema oposto a qualquer pesquisa formal, um cinema de puro divertimento, mercadoria rentável por excelência. O cinema «popular» de grande consumo é, por definição e por exigências industriais óbvias, um cinema de estereótipos, isto é, um cinema industrial de protótipos que são todos do mesmo tipo. Quer dizer que, embora sendo os filmes todos diferentes uns dos outros, essas diferenças são mínimas e raramente pertinentes. O que faz o sucesso renovado do western-spaghetti, como de qualquer outra variante do cinema dito popular, do melodrama ao filme policial, é a repetição sistemática dos códigos, a utilização exaustiva da mesma retórica visual e sonora, da estrutura narrativa instituída. Assim, em cada filme, o espectador sente o prazer d e r econhecer a s re gra s do jogo a qu e se h a b i t u o u — porque foi habituado — a gostar. As indústrias cinematográficas italiana e espanhola, como de resto por toda a Europa, representam hoje sucursais de Hollywood, reduzidas à mecanização das receitas e dos truques que garantem a inevitável rentabilidade dos investimentos do capital americano. A produção em série de filmes estereotipados, como é o caso do western-spaghetti, condiciona o mercado consumidor até às fronteiras da saturação partindo do princípio, empiricamente aceite, de que o espectador médio procura no cinema um divertimento digestivo que obedece a uma operação de reconhecimento (ver aquilo que já se conhece empresta uma falsa sensação de inteligência) e nunca se organiza segundo um trabalho produtivo de conhecimento (reflexão activa e crítica sobre o material fílmico proposto). Para que a tal operação de reconhecimento seja extremamente acessível a qualquer espectador, o cinema «popular» utiliza todo um arsenal de chavões típicos que cristalizam, ao nível da imagem e do som, por um lado, e ao nível da proposta ideológica, por outro, num tecido iconográfico e mitológico que constitui o verdadeiro suporte e a matéria-prima dos filmes. É, pois, da iconografia e da mitologia do westernspaghetti que este artigo fala, em termos que se pretendem fundamentalmente didácticos. O artigo não pretende ser exaustivo, antes opta deliberadamente pela esquematização a partir de fotogramas de western europeus
22
CINEMA. E TRANSFIGURAÇÃO
banais, em exibição corrente no mercado português, de alguns dos temas mais frequentes nesses filmes, procurando, deste modo, contribuir para uma desconstrução ideológica do lugar-comum cinematográfico. Fotograma 1 —Não raramente, o western europeu começa, ainda durante o genérico, com a introdução do herói a cavalo no espaço tradicional do Oeste mítico. Quase sempre, um movimento brusco de zoom (travelling óptico que constitui uma verdadeira praga nos westerns europeus) vem mostrar a grandeza desse espaço em meia dúzia de imagens minuciosamente escolhidas para abertura do filme, uma vez que as condições precárias da rodagem ( normalmente efectuadas em zonas espanholas turísticas, como Almeri-a) não permitem que o realizador abuse dos planos à distância, com o perigo de mostrar uma zona de p lisagem de autenticidade duvidosa ou até — como parece já ter acontecido — fazer entrar em campo os actores e a equipa técnica de um outro western que se está a filmar ao lado. O herói surge, pois, montado a cavalo. É, de facto, graças ao cavalo que o herói do western se encontra à escala do espaço que o rodeia. Se a pistola é uma extensão do punho do herói, o cavalo é uma extensão das suas pernas, ou seja, da sua capacidade de locomoção. Sem pistola e sem cavalo o herói do western é um homem perdido. É também graças ao cavalo que o herói, dependente única e exclusivamente de si próprio numa época definida como violenta, pode arriscar-se a fazer confiança no seu profundo individualismo e a percorrer o espaço da aventura agitada que o espera. Percurso esse que, no western-spaghetti, se limita, a maior parte das vezes, a legitimar o estatuto justiceiro do herói, na medida em que este chega para executar uma vingança de ordem pessoal ou, simplesmente, para pôr os seus méritos ao serviço do bem, da justiça ou da revolução, qual Messias sem destino nem povo certo. No fotograma 1 pode ver-se que o herói, desta vez, se faz acompanhar por outro aventureiro. Trata-se, efectivamente, de um outro tema bastante frequente no western clássico que os filmes europeus se limitaram — como de resto em relação a muitos outros pormenores — a copiar sem grandes alterações. A solidariedade e a amizade entre os personagens que se encontram do
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
lado justo, tal com a traição e a desconfiança permanente nos personagens que se encontram à margem da lei, são os esquemas invariáveis de uma dramatur& maniqueísta em que a misogenia descarada ocupa quase sempre um lugar preponderante. Outras alturas há em que o herói principal se faz acompanhar de um candidato a herói, jovem pouco experiente para quem as façanhas do protagonista, invencível e esbelto, são um modelo que ele irá tentar aperfeiçoar. Deste modo, o itinerário do herói ao fim do qual não deixará de encontrar a inevitável conclusão moral da sua vitória sobre as forças do mal — associa-se de modo indelével à aprendizagem do mais novo e à maneira, deslumbrada, fascinada e fascinante com que este — primeiro espectador literalmente envolvido na acção — acaba por prolongar o mito do seu herói preferido. Fotograma 2 — Após o pioneiro e o aventureiro, é inevitável a proliferação dos parasitas nas novas cidades do Oeste ou nas zonas de fronteira. Entre estes, o jogador profissional tem, sem dúvida, um papel de destaque. Por isso, o western europeu não podia deixar de insistir nas famosas cenas de saloon, cenário ideal para as provocações gratuitas — invariavelmente explicadas pela abundância do álcool consumido — e para os ajustes de contas espectaculares. Se é verdade que o saloon representa, no western, o sítio privilegiado da corrupção, do vício e da decadência, tal como os entende a mentalidade puritana da burguesia colonial em ascensão, não é menos certo que as portas em batentes dos saloons são também muitas vezes aquelas que dão acesso ao paraíso dos prazeres proibidos, à oportunidade de o cow-boy desperdiçar o seu magro salário no whisky reconfortante, à tentação da roleta, às canções das coristas improvisadas, enfim, ao repouso do guerreiro, aos quartos em que, no primeiro andar, as amantes profissionais recebem e tranquilizam os desejos acumulados, a virilidade insuspeitada do nosso herói. No fotograma 2 podem ver-se os copos de whisky espalhados pelas mesas e pelo balcão, a caixa das fichas de roleta e do dinheiro nela gasto, os figurantes dispersos e, ao centro, a formação do conflito iminente e indispen-
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
sável. De notar, sobretudo, a posição da câmara no cimo do corredor que dá acesso aos quartos, o que poderia implicar a construção de um plano subjectivo. No entanto, neste caso, parece-nos que a vontade explícita de conseguir um enquadramento insólito se deve, antes do mais, à natureza da situação e ao acréscimo provável de emoção que do plano poderá resultar. Senão, repare-se como a composição, de resto ingenuamente formalista, procura • fazer incidir a atenção do espectador numa das zonas mais marcadas do plano, virtualmente dividido e emoldurado pelas travessas do corrimão em evidência. Da mesma maneira, a iluminação e os olhares dos figurantes se concentram nos dois personagens que são o centro do conflito, de modo que este se encontre simultaneamente isolado e localizado. Esta tendência formalista, rara num género em que a pressa e o lucro dos produtores ditam as regras do jogo, não passa frequentemente de um rasgo esporádico com que os realizadores procuram ornamentar as intrigas convencionais. Apenas Sergio Leone — ver fotograma 8 — e mais dois ou três realizadores (Sollima, Corbucci, Damiam} parecem ter sistematizado esta tendência com o fito de desmontar, pelo excesso, a retórica do género. Fotograma 3 — A cena de tiros é sempre um dos momentos fortes e esperados do western europeu. Num género em que o que conta são os sinais primários e espectaculares da violência, não admira que a arma de fogo seja alvo de um especial carinho por parte do herói. Muitas vezes, antes da sequência decisiva, assistimos ao ritual de adoração da arma, no qual o herói limpa cuidadosamente o colt ou a Winchester com um desvelo que só encontra paralelo na ternura com que trata do cavalo. A preferência da carabina em certos westerns deve-se, em primeiro lugar, ao carácter mais espectacular dos seus efeitos, à eficiência certeira dos seus recursos no tiro de longo alcance. Porém, se o tiro de pistola pode servir de aviso, quando apontado ao ombro, ao chapéu, ao charuto ou ao cinto das calças do adversário, o tiro de carabina é quase sempre disparado com a intenção de matar. Por isso, muitas vezes, o duelo de carabina vem marcar o ponto
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
25
culminante da acção e decidir, de uma vez por todas, o conflito do qual o herói sairá triunfante. Enquanto a pistola continua a ser a arma preferida para o duelo individual (ver fotograma 8), a carabina oferece ainda a vantagem de o herói poder eliminar os seus inimigos a grande distância, escondidos por entre os mais variados obstáculos (tapumes, celeiros, balcões, carroças, barris, paredes, telhados, cavalos, reféns, etc.), e isto sempre com uma pontaria impecável, favorecida pela segurança, pelo peso e pela mira da arma. No fotograma 3 pode ver-se como o herói, graças à potência e ao calibre da sua carabina, pôde atingir o adversário por entre as tábuas do telheiro e provocar, deste modo, uma queda convenientemente espectacular e convincente. Convém ainda acrescentar que o barulho dos tiros da carabina é superior ao da pistola, o que, num filme de efeitos como é o caso do western-spaghetti, não é para desprezar. Fotograma 4 — Sempre preocupados em inventar maneiras de tornar o western cada vez mais violento e espectacular, os argumentistas, realizadores e produtores europeus, na sua maioria italianos e espanhóis, não hesitaram em introduzir, nos quadros típicos do western, determinadas armas e acontecimentos que, caucionados pela sua insistência histórica efectiva, não pertenciam, contudo, à mitologia clássica do filme do Oeste americano. Mas, se no western norte-americano a violência era quase sempre justificada por um recurso constante a referentes históricos precisos, no western europeu a violência não se insere em qualquer contexto histórico necessário, antes procura automatizar-se e instituir-se em espectáculo sem outra finalidade que não seja a sua própria fascinação junto de um público sem grande preparação cultural ( ver também, a este propósito, os comentários ao fotograma 9). Embora as metralhadoras automáticas sejam relativamente recentes, não é raro, hoje em dia, encontrá-las no westerns italianos e espanhóis, tanto mais que o anacronismo parece ser o trunfo máximo deste género de filmes em que tudo é permitido desde que concorra para um acréscimo de violência e efeitos espectaculares.
26
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
O fotograma 4, extraído de um dos filmes da série Sartana, mostra como o herói, satisfeito com a posse do mortífero objecto e por ele escudado, se prepara para mais uma carnificina sem tréguas. Também aqui a composição do plano procura vincular, de um modo simbólico e esteticista, o herói à arma, como se o corpo daquele fosse apenas um feto minúsculo no enorme orifício circular da arma, fendida ao centro pela imponência fálica do cano e do carregador. Homem e arma encontram-se, deste modo, transcendentemente unidos e unificados. Fotograma 5 — Sendo o western europeu um género evidentemente maniqueísta (os bons de um lado, os maus de outro), não se espera que as razões da violência escapem a um código antecipadamente conhecido que faz do exercício retórico a sua razão de ser. O público fiel destes filmes confia em que a principal virtude do espectáculo esteja no que ele vê e ouve, na abundância dos socos, no ruído dos tiros, na surpresa das explosões, como se todas as causas e todas as consequências da violência tivessem sido abolidas a favor do consumo imediato desse excesso de retórica que oferece constantemente as provas do seu desperdício. E quanto maior for o desperdício, quanto mais excessivos forem os sinais da destruição, tanto melhor será o espectáculo, finalmente orgulhoso da sua infinita inutilidade. Trata-se, portanto, de multiplicar os efeitos gratuitos, de acumular situações (lutas, assaltos, vinganças, batalhas, revoluções, emboscadas, duelos, etc.) em que a passagem do banal para o excepcional se efectue sem interrogações, sem desequilíbrios aparentes, como se a violência, a morte, o sangue e os heróis invencíveis fossem o pão nosso de cada dia. Alguns estudiosos da sociologia do espectáculo afirmam que a moda dos filmes de violência (os peplums mitológicos, os westerns-spaghetti, os filmes belicistas e de espionagem, as produções do kung-fu, etc.) se deve ao tédio geral criado pela sociedade mecanizada e à banalização da violência neste tipo de sociedade através da televisão e dos noticiários quotidianos às diversas guerras nos mais variados pontos do Globo. Outros, utilizando
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
27
uma terminologia clássica, atribuem ao filme de violência uma função de catarse que teria por fim satisfazer os instintos naturalmente agressivos do homem e substituir, deste modo, a violência real por uma violência fictícia: a agressividade natural libertar-se-ia através do imaginário. Outros, ainda, entendem que, pelo contrário, o cinema tem um poder francamente mimético que levará o espectador intelectualmente menos preparado a reproduzir, a imitar, no seu comportamento real, a violência que observou no écran. Seja como for — e o fotograma 5 é a prova disso — muitos westerns-spaghetti procuram dar dos combates colectivos armados uma imagem semelhante às que se podem observar nos noticiários de televisão, banalizando assim as guerras que os imperialistas provocam e desenvolvem nos países do Terceiro Mundo. Fotograma 6 — Apesar dos tiros e das perseguições a cavalo, é talvez das cenas de pancadaria que o adepto do western espera o melhor do seu herói. Sem armas, de caras para o adversário, o herói pode mostrar na luta corpo a corpo a excelência das suas qualidades físicas, a força e a habilidade dos seus músculos preparados, a coragem e a lealdade do seu carácter. É aqui também que o actor do western pode conquistar facilmente os aplausos do espectador porque são as cenas de acção física que melhor o identificam com o herói: se a coragem pode pertencer aos atributos do personagem, a habilidade física e a força muscular são os do actor, porque é ele quem empresta o seu corpo às exigências da ficção. Recusando-se a violar as tradições da luta franca, consciente da sua forma impecável, o herói só é vencido — quando é — porque o adversário se mostra desleal ou porque forças numéricas superiores o atacam de surpresa. De qualquer modo, de um ponto de vista moral, o herói ganha sempre, na medida em que a traição dos inimigos é já um sinal ostensivo da sua vitória e da sua superioridade individual. O fotograma 6 mostra precisamente um personagem de um western espanhol ser espancado e humilhado por um grupo de bandidos. É de assinalar, para já, na composição do plano, o anonimato dos bandidos, que, colecti-
28
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
vamente, imobilizam a vítima. De facto, enquanto o herói se caracteriza, normalmente, pelo seu individualismo, solidão e auto-suficiência exemplares, os bandidos agem quase sempre em conjunto, na sombra ou à traição, incapazes que são de assumirem qualquer responsabilidade sem se protegerem ou destruírem mutuamente. Depois — para voltar ao fotograma 6 —, a fim de claramente sublinhar o carácter imoral da agressão, um dos bandidos espezinha com a bota a cara do herói, que, num esgar óbvio de dor, é, assim, obrigado a sujar-se num soalho viscoso, espelho excremencial de uma situação imunda e revoltante a que a vingança posterior, inevitável, irá dar, uma dimensão de justiça providencial. De notar ainda que a posição dos braços do herói, violentamente esticados e neutralizados, sugerem também uma reminiscência cristofânica que iremos encontrar no fotograma seguinte, de resto, aproveitado de um outro filme, desta vez de origem italiana. Fotograma 7 — Espancado, torturado e amarrado pelos bandidos, o herói é salvo por uma mulher: é ela quem o trata e lhe restitui a potência estrangulada. Se só agora falo da mulher é porque ela é, efectivamente, pouco importante no western europeu. Universo abstracto em que os homens organizam o espectáculo narcisista da sua destruição violenta, o western europeu não deixa outro lugar para a mulher a não ser o do ornamento erótico que nos vem lembrar, eventualmente, o desejo e a virilidade do herói (ver também, anotações ao fotograma 2), já que raramente se tratam de sentimentos, a não ser daquelas que explicam, como é de esperar, a peregrinação sagrada do herói que chega para vingar a morte da mãe, da irmã ou da esposa. Contudo, durante a acção propriamente dita, raro é o filme em que a mulher tem um papel decisivo ou sequer preponderante. Tal como os bandidos, o herói é invariavelmente um marialva recalcado a quem as boas maneiras para com o sexo chamado fraco lhe dão apenas um ar de aparente distinção. Este clima de misogenia, comum à maior parte dos westerns, é por vezes compensado com meia dúzia de cenas em que a mulher, cúmplice dos bandidos, ou
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
29
empregada do saloon ou ingénua casadoira, vem ajudar o herói a cumprir a sua tarefa messiânica e a mostrar a confiança e a dependência que a ligam ao macho. No fotograma 7, onde se refinem exemplarmente alguns dos temas acima apontados, pode observar-se ainda a estreita comunhão do sexo e da violência, o tronco nu do herói, ensanguentado e rígido, a ser acariciado pela mulher, visivelmente perturbada, ambos de bocas semiabertas, ofegantes, cabelos revoltos, olhar baixo. A tortura evidente a que o herói foi submetido reforça ainda mais o carácter da situação e faz que se estabeleça entre os dois uma relação íntima de prazer e sacrifício, simultaneamente passiva e activa, carnal e espiritual, perto do sado-masoquismo. Fotograma 8 - Um western sem, pelo menos, uma cena de duelo não é verdadeiramente um western. A norma do género indica que no duelo se resolvam definitivamente, de um modo tão convencional quanto simbólico, todos os conflitos, individuais ou morais, que, até então, opuseram o herói aos fora-da-lei. A crença na eficácia do duelo, antiga como os rituais litúrgicos, deve procurar-se, fundamentalmente, na conservação de uma longa tradição mística que acredita cegamente na justiça imanente e num fatalismo sobrenatural que rege a ordem das coisas: o bem acaba sempre por triunfar do mal. O duelo é também a situação-limite, fronteira decisiva onde se joga a vida e a morte, momento no qual o herói revela a sua extraordinária integridade física e intelectual, porque a vitória do duelo não depende apenas da pontaria ou da rapidez com que se saca da pistola, mas apoia-se também no poder de observação, na astúcia com que se aproveitam os deslizes do adversário. Se o comportamento do herói foi sempre, no filme, a manifestação de uma personalidade invulgar, a situação do duelo vem apenas provar-nos, uma vez mais, que o herói jamais nos pode desiludir. Muitas vezes (como é o caso da cena da qual faz parte o fotograma 8, extraído do filme Aconteceu no Oeste, de Sérgio Leone) o momento forte do duelo é introduzido logo no início da fita, a fim de que o espectador fique imediatamente ciente da capacidade excepcional do herói.
30
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
É neste conhecimento prévio, aliás, que o espectador, ao longo do filme, vai procurar inconscientemente a origem do seu prazer ao ver como o herói, exteriormente definido como invencível, aceita mordazmente todas as provocações desleais, condenadas ao fracasso e ao castigo: o espectador já sabe que o herói não pode perder, aconteça o que acontecer. No plano do fotograma 8 acentuam-se deliberadamente as desvantagens do herói, isolado ao fundo contra o céu límpido, tranquilamente a tocar harmónica e ainda com o saco da viagem na outra mão (ver fotograma 1, a propósito do itinerário do herói), enquanto os seus três inimigos mortais, estrategicamente afastados uns dos outros e impondo os seus vultos ameaçadores na proximidade do enquadramento, se preparam já para o massacre. Assim, quanto maiores forem as dificuldades do herói maiores serão os seus méritos, constantemente afirmados e confirmados. A principal implicação ideológica do princípio do duelo consiste na redução de todas as motivações da luta, sejam elas de carácter moral, social ou político, a um combate individual, que se resolve entre dois sujeitos, já que, regra geral, o herói se opõe a todos os outros. Sabendo o lugar central que a noção de indivíduo ocupa na ideologia dominante, não é de estranhar que os filmes feitos pela indústria para grande consumo popular insistam na ideia de que só o indivíduo, e o indivíduo só, pode liquidar os outros (a concorrência) com a sua força pessoal e, assim, conquistar, por mérito próprio, um lugar privilegiado na sociedade. Fotograma 9 — De há meia dúzia de anos a esta parte, começaram a aparecer alguns westerns-spaghetti cuja acção remete explicitamente para situações revolucionárias, quase sempre tendo por álibi histórico o período dos movimentos revolucionários no México depois da intervenção histórica e da morte do presidente Francisco Madero. Se bem que nem todos os westerns-spaghetti que recorrem ao tema da revolução sejam de uma clara política desejável, não deixa de ser interessante reparar como os cineastas, limitados pelas exigências da produção industrial, utilizam os pressupostos do género — western incluído na categoria mais vasta do cinema de aventuras — para ela-
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
31
borarem discursos vincadamente comprometedores que, na carência ou na impossibilidade de uma análise histórica rigorosa, se preocupam em apontar, embora de um modo esquemático, que as injustiças sociais se devem a determinados interesses e coordenadas políticas, dos quais os personagens maléficos são meras cristalizações. Na maior parte dos casos, os filmes limitam-se a mostrar como as tropas executam as ordens do superiores para exercer uma violenta repressão contra as massas populares, camponeses cuja miséria os levará à revolta. O fotograma 9 mostra como é possível, através da ênfase, solicitar a participação emotiva do público e propor uma leitura imediata da situação. Porém, em alguns westernsspaghetti, o período revolucionário não tem qualquer função que não seja a de fornecer ao filme um cenário exótico de violência no qual o herói se move agora com o propósito exclusivo de ganhar dinheiro, uma vez que a sua ética pessoal, individualista, lhe diz para servir aqueles que pagam melhor sem interrogar as causas sociais do conflito. Esta perspectiva mercenária do herói encontra-se às vezes mascarada por uma visão neo-romântica do herói, tecnocrata da violência (especialista de explosões, traficante de armas, atirador profissional, etc.) para quem contam apenas as oportunidades de enriquecer e os factores individuais da sua promoção social. De notar ainda que o México permite, ao nível dos códigos culturais, uma nítida aproximação iconográfica com as populações e os países da América Latina em geral, facilitando aos realizadores toda uma série de equivalências e de conotações que visam integrar as lutas históricas do passado numa leitura pouco rigorosa das lutas políticas actuais, travadas pelos países subdesenvolvidos contra as agressões do imperialismo americano. Conclusão. — Pode dizer-se, à vontade, que o western tem sido o produto economicamente mais rentável da indústria cinematográfica. Desde The Great Train Robbery ( 1903), primeiro grande êxito comercial do cinema americano, até aos últimos Trinitás, passando por toda uma série de cow-boys-vedetas, de Tom Mix a John Waine, de Clint Eastwood a Terence Hill, o western nunca deixou de estar na moda.
32
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Se, como lapidarmente afirmou André Bazin, o western é o cinema americano por excelência, é talvez porque, simplificando ao extremo a natureza específica do cinema, o grande teórico idealista definia aqui a essência do cinema como sendo a do movimento. É neste ponto, efectivamente, que ainda hoje reside o valor popular do western, cinema de acção, cinema em que a acção se opõe à reflexão, em que o movimento é antónimo de aborrecimento. Portanto, partindo do princípio de que o western não é feito para fazer reflectir o espectador, mas sim para o distrair, os produtores e os realizadores europeus insistem, pois, na noção do divertimento puro e simples, como se a acção pela acção e a violência pela violência fossem fórmulas ideologicamente inocentes. Trata-se, pois, de distrair o espectador. Mas distraí-lo como? Distraí-lo de quê? Distrair o espectador das preocupações da vida quotidiana, como afirmam irremediavelmente os comerciantes do espectáculo. Distrair o espectador no sentido literal do termo. O cinema é, deste modo, encarado como um exorcismo ou uma droga, o novo «ópio do povo». Pela ilusão e pela mistificação, o western-spaghetti, cinema de evasão por excelência, projecta o espectador num universo fascinante, exótico e longínquo, falso mas movimentado, impossível mas verosímil. Tendo cada género cinematográfico os seus códigos próprios de verosimilhança, de resto como qualquer outra forma de representação, o western cedo se definiu por toda uma série de convenções — algumas das quais tentei justamente sistematizar a partir de fotogramas dos westernsspaghetti — que tentavam, a todo o custo, neutralizar o espírito crítico do espectador médio e, mais ainda, levá-lo a acreditar nas façanhas épicas dos seus heróis. No que diz respeito ao cinema americano, tal ambição, perfeitamente conseguida a maior parte das vezes graças ao famoso processo estilístico da transparência, baseado na acumulação dos efeitos de realidade, devia-se à vontade expressa de a ideologia oficial servindo-se do arsenal mitológico — vir corrigir a história. O western clássico não foi outra coisa senão o sintoma do trabalho da ideologia sobre a história, trabalho esse
Fotograma 6
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
33
cuja finalidade consistia em salvaguardar os excessos da história nacional através de diversos paliativos morais que os filmes não deixavam de sublinhar. O passado era revisto pelos interesses do presente. Desenraizado de qualquer exigência histórica precisa, o western-spaghetti viu-se condenado a utilizar apenas a estrutura mitológica do western clássico e a perpetuá-lo pelo único meio ao seu dispor: a retórica. É por isso que os personagens dos westerns-spaghetti se podem permitir todas as liberdades possíveis e imaginárias, circular num tempo e num espaço indefinidos, porque eles não são já os legítimos representantes de um nacionalismo descomunal, mas, muito simplesmente, os herdeiros tardios de um paraíso cinematográfico tão lucrativo quanto narcisista. 3. O «Tubarão» e a desestabilização A) A máquina industrial Antes de ser um filme, Tubarão é uma enorme máquina industrial, concebida pela tecnocracia cinematográfica norte-americana para garantir lucros cada vez mais elevados e assegurar, pela extraordinária eficácia do espectáculo, o domínio do modelo ideológico de Hollywood no mercado internacional. Procuremos algumas causas dessa eficácia e os traços dominantes desse modelo ideológico. Adaptação de um best-seller da subliteratura de gare, como o foram Love Story, O Padrinho e O Exorcista, que se inserem no mesmo esquema industrial da fabricação de grandes êxitos mundiais de bilheteira, Tubarão foi lançado nos Estados Unidos juntamente com várias edições do livro homónimo de Peter Benchley totalizando mais de 10 milhões de exemplares (só em língua inglesa). O sucesso do livro faz vender o filme e vice-versa. As campanhas de publicidade, simultâneas, somaram nos primeiros meses de exibição do filme realizado por Steven Spielberg a módica quantia de cerca de 2 milhões de dólares, ou seja, mais de um quarto do orçamento do próprio filme, cujos custos de produção andam à volta dos 7,5 milhões de dólares.
34
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Mas tudo isto é uma ninharia quando sabemos, segundo dados fornecidos pela Variety, que só no primeiro ano de exibição na América e no Canadá Tubarão rendeu aos produtores nada menos do que 170 milhões de dólares, quer dizer, mais do dobro do que E Tudo o Vento Levou acumulou durante 35 anos de exibição nos écrans de todo o Mundo! Este autêntico fenómeno, cuidadosamente preparado para funcionar como tal, não se pode explicar apenas pela matraca publicitária que, da televião aos jornais, das camisolas aos brinquedos, transformou o Tubarão num objecto multifacetado de consumo quase obrigatório, tema repetido de muitas conversas de circunstância e, afinal, tema também deste artigo. B) O filme-catástrofe Assistimos, de há meia dúzia de anos a esta parte, a uma nova moda de cinema de grande espectáculo, cujas características, oscilando entre o género de aventuras e o filme de suspense, ultrapassam, no entanto, o quadro social específico daquele tipo de películas. São os chamados filmes-catástrofes, todos eles na lista dos filmes mais comerciais do respectivo ano em que foram lançados nos mercados americano e europeu. Enquanto esperamos pela remake de King Kong, fenómeno fabricado na esteira de Tubarão, lembremo-nos de Aeroporto, A Aventura do Poseidon, A Torre do Inferno e Terramoto. Trata-se, nestes filmes, de colocar um determinado modelo de comunidade, de preferência num espaço social exemplar (um avião, um barco, um edifício, uma cidade), em face a um perigo exterior e natural (a tempestade, a avaria, o terramoto, o fogo, a água, o tubarão, o monstro), de modo a exorcizar certo tipo de conflitos que se reduzem a preocupações de ordem sentimental, moral e económica. Perante o perigo que atinge igualmente todas as pessoas, seja qual for a sua condição ou profissão, ressalta a aceitação da responsabilidade colectiva e a urgência da fraternidade e da entreajuda. Os egoístas e os corruptos são imediata e providencialmente castigados pela evolução natural da própria catástrofe, enquanto os defensores da
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
35
família, dos fracos, da ética de grupo e do sacrifício colectivo serão salvos, graças a Deus e graças às forças da lei, aos chefes e aos heróis corajosos, hábeis manipuladores da sofisticada tecnologia moderna, que acaba sempre por garantir o triunfo da razão contra as fraquezas humanas e os elementos adversos da Natureza. Não é difícil reconhecer no esquema destes filmes o prolongamento dos temas que caracterizam a actual ideologia da crise capitalista. Materializada a crise do sistema numa catástrofe «natural» (daí o seu carácter fatalista, mesmo quando provocada pela maldade ou pelo erro humanos) faz-se em seguida a apologia dos valores ideológicos da classe dominante, justificada pelo excesso da própria situação dramática, sem esquecer de sublinhar as vantagens da tecno-estrutura aqui condensada numa amálgama fraternal de militares, polícias, engenheiros, técnicos, pilotos, comandantes, padres, políticos, industriais e outros quadros que orquestram o resto da comédia humana, tão variada e pitoresca quanto possível. Tubarão, filme-catástrofe por excelência, inscreve-se no modelo sumariamente acima descrito. C) O filme de efeitos Numa pequena ilha ao largo da costa leste, que se prepara para festejar o 4 de Julho, data da Declaração de Independência dos Estados Unidos, e receber o afluxo de turistas, que irá tornar mais próspero o comércio local, eis que surge a ameaça do tubarão e, com ela, o risco de pôr em perigo a vida dos veraneantes, o prestígio da estância balnear e o lucro dos comerciantes, que são a base da vida económica da cidade. Vemos, portanto, que o medo colectivo, cristalizado na presença do tubarão, não diz respeito apenas à vida física das pessoas que se atrevem a mergulhar nas águas do prazer ou do desconhecido, mas é o produto de uma série de factores em cadeia que envolvem a própria organização social e económica da comunidade. A primeira consequência do aparecimento do tubarão é colocar todas as pessoas, a população como os turistas, os civis como a Polícia, os especialistas como os curiosos,
36
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
os adultos como as crianças, numa mesma situação de igualdade perante o perigo. Daí que o tubarão seja uma ameaça aterradora não só para aqueles que, directamente, o combatem, como também para aqueles cuja sobrevivência, em sentido lato, depende do resultado desse combate. A presença do tubarão é tanto mais aterradora quanto é certo, durante a primeira parte do filme, ser o monstro invisível. Não vemos mas imaginamos (ainda aqui ajudados pela publicidade) a envergadura do tubarão pelos efeitos que ele provoca, nos corpos, nos objectos, no movimento das águas turvas. É neste contexto, como de resto ao nível da própria concepção técnica, que Tubarão é um filme de efeitos. Efeitos técnicos especiais (as várias maquetas mecânicas do tubarão custaram 750 000 dólares à produção) que procuram provocar, no espectador, o máximo de efeitos de medo. Medo do invisível, que é, evidentemente, medo do indizível, daquilo que é indescritível, tanto no sentido literal (o monstro), como no sentido figurado (as consequências da intromissão do monstro na via da comunidade). Depois virão os efeitos de medo, provocados pela presença visível do tubarão e pelo pormenor realista da execução cinematográfica desses efeitos. Urna vez tornado visível, descritível, reconhecível, isto é, circunscrito nos limites do conhecimento humano, o tubarão passa a ser o inimigo de um duelo desmedido — de um lado a força do monstro, do outro lado a força da razão —, para se tornar, finalmente, um alvo. D) O monstro e a castração A representação do caos e do indizível num animal (natural) cuja desproporção ou monstruosidade (anormal) possa funcionar imediatamente ao nível simbólico entronca-se numa tradição remota da cultura clássica, que levava Hegel, a propósito da esfinge na arte da Antiguidade, a considerar a figura do monstro como o símbolo do próprio simbolismo. Por outras razões, que se prendem intimamente com a ideia de harmonia universal ditada pelo Divino Criador, a Igreja proibiu durante muito tempo, após o Concílio
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
37
de Trento, a representação iconográfica da monstruosidade. Talvez por isso, ainda hoje, a pintura de Bosch, nomeadamente A Tentação de Santo António, incluída na colecção do Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, nos inquiete tanto no traço e na cor daqueles misteriosos peixes sempre prontos a carregar ou a devorar as pessoas, com a boca e os olhos gélidos. Se a figura do animal-monstro tem, ao longo dos anos, despertado no homem uma espécie de terror atávico e de medo colectivo é talvez porque, sendo também o homem um animal — basta ver os filmes com os célebres bichos antropomórficos de Walt Disney para disso ter a certeza —, o monstro desperta em nós a angústia do corpo fragmentado : o corpo estranho cujas proporções desafiam as leis da Natureza e o corpo humano, normal, que assim se vê ameaçado por uma violência que vai da mutilação dolorosa à morte. Precisamente, o tubarão gigante é um monstro que morde, desmembra, despedaça o corpo, deixa marcas, traumas, cicatrizes palpáveis. A meio da caça que os três protagonistas do filme movem ao predador, a camaradagem ganha uma nova e estranha consistência quando eles, num momento de prazer homossexual manifesto, mostram e se acariciam as cicatrizes que sulcam os corpos. A primeira vítima do tubarão, no filme, é uma jovem que nada, nua, ao luar, num jogo de sedução sexual inesperadamente interrompido. Mais nítida ainda, a ameaça castradora do tubarão atinge o auge quando este devora Quint (Robert Shaw) perante o olhar impotente dos seus irmãos de aventura. A originalidade sádica, bem explícita nesta cena, chega a representar, em dois ou três planos que provocam o calafrio das plateias, aquilo a que alguns psicanalistas chamam o fantasma da vagina dentada: qual falo em erecção, Quint é engolido pela boca descomunal do monstro e logo desaparece no ventre negro e profundo do mar de novo sereno. E) A normalidade e a legitimidade Por definição, o desafio às normas e às leis da Natureza, o fantástico — que não é forçosamente nem o fabu-
3 8
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
loso nem o mítico — opõe-se à suposta ordem natural das coisas e dos seres. Por isso, é importante vermos, no filme, um tubarão de tamanho médio, morto, inofensivo, frequente naquelas água, e facilmente liquidado pelos improvisados caçadores de feras marinhas. Porque o tubarão branco, embora real e verosímil, a acreditar nos tratados de fauna marítima que inspiram o livro e o filme (e que este cita), pertence ao reino do fantástico, na medida em que se opõe, de facto, a uma certa ordem natural, sendo esta, aqui, a ordem média da Natureza. Mas o tubarão opõe-se também, como já vimos, à ordem habitual de uma tranquila praia turística que passa a ser considerada uma zona perigosa — zona de guerra —, interdita aos banhos do mar e à presença dos civis. Esta oposição à ordem existente não é uma oposição natural (como a que distingue o tubarão gigante do pequeno tubarão morto), mas sim uma oposição de tipo social. Neste sentido, o tubarão não é só incompatível com a Natureza, mas, afinal, com a organização social e económica da comunidade. Desta maneira, o tubarão surge-nos como antinatural, porque é, fundamentalmente, anti-social. A extrema astúcia do filme consiste em confundir sub-repticiamente os dois níveis, de tal modo que a Natureza (a suposta ordem natural das coisas) seja identificada com o próprio sistema social (uma organização baseada na divisão do trabalho e no lucro). Sendo a administração da justiça a punição dos comportamentos anti-sociais, não é de admirar que seja um polícia, Brody (Roy Schneider), quem, por fim, elimina o monstro. Não sem que antes, porém, não tenha enfrentado o oportunismo e a corrupção do mayor da comunidade (equivalente do presidente da câmara municipal), ou seja, aquele que, ao contrário do polícia, foi eleito pelos cidadãos para cumprir os requisitos da administração local. Enquanto o mayor (Murray Hamilton) se serve da lei para defender os seus interesses imediatos e os da sua classe, o polícia serve a lei no interesse superior da comunidade. Este minúsculo conflito, equilíbrio instável à separação de poderes, vem reforçar a ideia de que a justiça não supõe necessariamente um direito expresso por regras
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
39
jurídicas, que não podem prever tudo (o tubarão), mas é inseparável do poder discricionário e da determinação com que os agentes da lei, fardados ou não, sabem enfrentar as circunstâncias excepcionais (novamente, o tubarão). Se o mayor possui a legitimidade e a autoridade garantidos pela representatividade eleitoral, o polícia tem do seu lado a legitimidade moral da razão e a coragem de enfrentar o perigo para assegurar a ordem. F) Os heróis do quotidiano Porém, o polícia não enfrenta sozinho o terrível predador. A ciência não podia deixar de estar presente na figura patusca e amável de um jovem especialista em tubarões. Hooper (Richard Dreyfuss), cuja fortuna pessoal lhe permite oferecer-se, juntamente com o barco e material próprios, como voluntário para todas as missões que apelam para a sua boa consciência e espírito de sacrifício, representa a nova geração de tecnocratas ao serviço da harmonia capitalista. Ele não está lá para colocar questões, mas para dar as respostas aparentemente necessárias, as únicas que interessam à acção do polícia e que são indispensáveis ao argumentista e ao realizador para introduzir na narrativa as informações específicas relativas aos mistérios do mar, autenticadas pelo prestígio da ciência e pela intrepidez do simpático estudioso. Mas a razão a da ciência e a da lei — não é suficiente num universo em pé de guerra. É preciso que o grupo dos notáveis do burgo, no mais puro estilo censitário, contribua para pagar os serviços de um outro especialista, marinheiro, pescador, caçador de tubarões, a que alguns não deixaram de chamar mercenário. Traumatizado pelas recordações do seu serviço militar, pela bomba de Hiroxima, que ajudou a transportar, pela morte dos companheiros em circunstâncias trágicas, que o levam a associar a guerra com os tubarões, Quint não acredita na eficácia nem da ciência nem da lei. Ele está, portanto, condenado.
40
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Cada um à sua maneira, Brody, Quint, Hooper e o mayor são personagens apagados, iguais a tantos outros do nosso quotidiano — é talvez por esta razão que, curiosamente, o filme não precisa de recorrer a grandes vedetas para se impor. Personagens medianos, de quem o espectador se sinta próximo e cujos pontos de vista possa, se não partilhar, pelo menos reconhecer e aceitar sem qualquer dificuldade. Por outras palavras, personagens de ficção que, enquanto produto ideológico, se mostrem adequadas aos propósitos da ideologia dominante. É porque o filme defende inequivocamente sobretudo o ponto de vista do polícia que o espectador deseja que ele entre em acção. À violência do caos, introduzida pelo tubarão, pelo monstro, pela irrupção do desconhecido, só poderá responder a contra-violência da autoridade armada, cujo desejo no espectador o filme convoca. Desejo de na violência se efectuar o regresso à normalidade. Fascínio da violência, fascínio a um passo do fascismo. Esta legitimação da violência policial, paralela ao elogio rasgado do polícia humilde e sacrificado, respeitado e respeitador, excelente marido, óptimo pai, chefe de família (e de esquadra) exemplar, em contraponto com a fraqueza e a corrupção da administração, filia-se numa corrente autoritária, constante no cinema americano, embora, em meu entender, não seja simples coincidência o sucesso de Tubarão e dos filmes-catástrofes ser contemporâneo da crise do imperialismo americano, da guerra do Vietname e do escândalo Watergate. G) A lei e a ordem É sempre em nome da lei e da ordem que o Poder reforça os seus aparelhos repressivos e ideológicos. Nos últimos treze anos, nos Estados Unidos, os orçamentos federal, estadual e local da Polícia passaram de 3 para 8,6 milhares de milhões de dólares e, no entanto, a criminalidade não deixou de aumentar. As estatísticas do FBI afirmam até que, no mesmo período de tempo, os homicídios aumentaram de 116 por cento, as violações de 199 por cento, os roubos à mão armada de 256 por cento.
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
41
O mais curioso é que o próprio FBI, que se vangloria de ser «a melhor Polícia do Mundo», foi recentemente acusado (Time e Newsweek de 6 de Outubro de 1975) de ter praticado 238 roubos por arrombamento nas sedes de catorze grupos militantes de esquerda. Um inquérito realizado pelo Massachusetts Institute of Technology concluía, surpreendentemente, que «um rapaz americano nascido em 1974 numa zona urbana corre mais riscos de ser assassinado do que um soldado americano corria o risco de ser morto em combate durante a segunda guerra mundial». Esse medo colectivo que se instalou em grande parte da população americana e que atinge as classes médias, clientes assíduos de armas de fogo e dos mais variados e sofisticados meios de protecção pessoal, não pode deixar de acolher com uma ilusória satisfação o reforço do aparelho policial. Esse medo colectivo, que se traduz no desespero de 8 milhões de desempregados no país mais rico do Mundo e onde, apesar de tudo, se calcula em 40 milhões o número de americanos, negros e brancos, que morrerão sem ter tido a possibilidade de alguma vez consultarem um médico, é o espelho de uma frustração sentida no quotidiano. Esse medo colectivo, que provoca o horror e a intolerância por tudo o que não se ajuste aos padrões sociais vigentes, é inseparável da actual crise económica e política do imperialismo. Esse medo colectivo, que Tubarão materializa habilmente no monstro que ameaça a segurança pessoal da população e a sobrevivência económica do sistema, está pronto a reconhecer os serviços inestimáveis dos mercenários, dos técnicos e, sobretudo, de uma Policia cuja imagem é preciso corrigir, modernizar e elogiar através dos meios de comunicação de massa, entre os quais o cinema de grande espectáculo, as séries de televisão e a actual literatura de cordel têm um papel decisivo a desempenhar. Esse medo colectivo, que, vertiginoso, atravessa o novo continente e o espaço que ele domina para se tornar indignação, é, simplesmente, o eco surdo de uma nova civilização que está a ganhar forma.
42
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
4. Brecht e o cinema: uma experiência sociológica Não é apenas na literatura que devemos combater o que é mecânico, a rotina, o formalismo; devemos combater na literatura e também na vida, sobretudo na vida; porque é da vida que tudo isso vem. Dizer aos homens politicos: «Não toquem na literatura» é ridículo, mas dizer à literatura: «É proibido tocar na política» é inconcebível. Bertolt Brecht (Les Arts et la Révolution).
Na Colecção Travaux, as edições francesas L'Arche publicaram, em Outubro de 1970, alguns textos fundamentais de Bertolt Brecht com o título genérico de Ecrits sur la Litérature et L'art, divididos em três volumes: Sur le Cinéma, Sur le Réalisme e Les Arts et la Révolution. Dos textos sobre o cinema, escritos (entre 1922 e 1932) em circunstâncias de ocasião, como a maior parte dos outros artigos, apontamentos e comentários que compõem os volumes, destaca-se um extenso estudo sobre o processo jurídico da Opéra de Quat'sous, a que Brecht chama, justificadamente, uma «experiência sociológica». Brecht entende que há «experiência sociológica» sempre que, através de medidas e atitudes apropriadas, se provam e tornam perceptíveis as contradições imanentes à sociedade. A experiência sociológica é uma tentativa de compreensão do funcionamento da cultura, verificando-se, neste caso, que «a cultura burguesa não é o pensamento da prática burguesa». Partindo de um ponto de vista absolutamente subjectivo e parcial (o que a distinge de outros métodos de pesquisa sociológica), a «experiência sociológica mostra os antagonismos sociais sem os resolver». (Todas as citações de Brecht são do volume Sur le Cinéma). Recusando as quantias consideráveis que a sociedade Nero-Film lhe oferecia para esquecer as faltas de contrato na adaptação da sua obra ao cinema, de que aquela firma era responsável — a realização do filme esteve entregue a G. W. Pabst Brecht, de acordo com o autor da música, Kurt Weill, instaura um processo à sociedade produtora, não pelo desejo de ter razão, como ele próprio afirma, mas pelo «desejo bem distinto de conseguir justiça».
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
43
Consciente das contradições da sua posição, uma vez que os «direitos de que dispomos são os direitos da sociedade privada» — direitos da sociedade capitalista burguesa que o compromisso ideológico e político de Brecht sempre refutou —, o escritor confiava precisamente em que a «especulação», tornada experiência sociológica pelo seu carácter sistemático e crítico, pudesse revelar um certo «número de representações características do estado actual da ideologia burguesa» e das contradições da sua prática social. Representações que se encontravam, evidentemente, na atitude conjunta de instituições com a imprensa, a indústria cinematográfica e os tribunais. Durante o processo, que acabou por perder, como de resto esperava, Brecht reuniu um corpo de documentos, recortes de imprensa e comentários a partir dos quais estabelece as catorze representações da ideologia burguesa, que passo a seguir por comodidade de exposição. 1. A arte pode passar sem o cinema Segundo a argumentação do advogado da sociedade cinematográfica, aceite pela maioria e pelo tribunal, a partir da data em que o escritor vende os direitos do seu trabalho intelectual, os novos proprietários podem dar-lhe o fim que muito bem entenderem. Surge desde então uma contradição flagrante entre o «autor» ou «autores» do filme e os chamados produtores, isto é, os detentores dos meios de produção. Como nota Brecht, esta representação corta a priori, aos cineastas, todas as possibilidades de utilização dos aparelhos de que têm necessidade para a sua produção artística. Portanto, para o cinema, como para a arte em wral, a socialização dos meios de produção é uma questão de vida ou de morte. «Dizer ao trabalhador intelectual que é livre de renunciar a estes novos meios de trabalho ( o cinema) significa colocá-lo à margem do processo de produção.» Ora, como sublinha Brecht a propósito da representação 12, não existem direitos legais fora da produção. Todo o trabalhador tem necessidade dos meios de produção para poder utilizar a sua força de trabalho.
44
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
2. O cinema não pode passar sem a arte Exigência normalmente aceite pelos produtores e pelos jornalistas cinematográficos. De facto, «como os filmes não se vendem senão sob a forma de produtos de luxo, tiveram, desde início, o mesmo mercado que a arte, e a representatação corrente segundo a qual é preciso embelezar os produtos de luxo e que essa é a tarefa da arte, ela própria o mais refinado de todos os produtos de luxo, assegurou o emprego regular de artistas no cinema.» E, portanto, necessário entendermo-nos acerca do que é o cinema de arte. Raramente a opinião dos críticos e a dos cineastas coincide com a dos distribuidores e a dos produtores, embora uns com outros concordem quanto à necessidade desta representação. A este propósito, Brecht faz ainda outras considerações indispensáveis contra os preconceitos dominantes do que seja o realismo no cinema (e que são hoje aplicáveis, por exemplo, a alguns realizadores cegamente adeptos do cinema directo): «a simples reprodução da realidade» não diz seja o que for dessa realidade. lima fotografia das fábricas Krupp ou da A. E. G. não nos diz praticamente nada sobre essas instituições. A realidade propriamente dita escorregou no seu conteúdo funcional. Não é possível, por exemplo, restituir a coisificação das relações humanas na fábrica. É preciso, efectivamente, «construir qualquer coisa», «qualquer coisa de artificial», «de colocado». A arte é portanto necessária; mas a velha noção de arte, a que parte da experiência, tornou-se caduca. Porque aquele que não dá da realidade senão o que pode ser vivido não reproduziu a realidade. 3. Pode-se educar o gosto do público É a fórmula preferida dos cinéfilos e dos críticos idealistas, mas também a dos «metafísicos, que consideram a organização do Mundo como uma questão de gosto». Comentando a representação n.° 5, escreve Brecht, com razões que se podem, hoje, em Portugal, aplicar a grande parte dos críticos da nossa Imprensa: «Enquanto não se criticar a função social do cinema, toda a crítica cinemato-
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
45
gráfica não passa de uma crítica de sintomas, não tendo ela própria senão um carácter sintomático. A crítica esgota-se nas questões de gosto e continua completamente prisioneira dos preconceitos de classe. Não vê que o gosto é uma mercadoria ou a arma de uma classe particular, situa-o no absoluto.» E noutro local, depois de definir a tarefa do novo crítico como sendo a de «tornar a crítica possível», acrescenta Brecht que é urgente tomar a palavra «crítica» na sua dupla significação, transformando dialecticamente a totalidade dos assuntos numa crise permanente, concebendo portanto a época como uma «época crítica», no duplo sentido do termo. O que torna necessária uma reabilitação da teoria nos seus direitos produtivos. Urna crítica de «descrição e recomendação selectiva» perdeu toda a justificação, tal como aquela parte da literatura cuja atitude para com o assunto consiste unicamente — ou sobretudo — na descrição, selecção e recomendação. A crítica de descrição e recomendação selectiva é substituída pela crítica teórica que — disso consciente, divulga essa tomada de consciência — renuncia assim à sua posição lucrativa no interior do processo de produção capitalista. Voltando à questão do gosto do público, anjo-daguarda da mediocridade e de todas as justificações dos produtores, dos distribuidores e dos exibidores cinematográficos, esclarece Brecht: «A luta dos intelectuais progressistas contra a influência dos comerciantes reside na afirmação de princípio de que as massas conhecem pior os seus interesses do que os intelectuais.» Quer dizer, «não melhoraremos o gosto do público eliminando dos filmes as faltas de gosto; pelo contrário, enfraqueceremos os filmes. Porque, sabemos ao certo tudo o que se retira quando se retiram as faltas de gosto ? O mau gosto do público está mais profundamente enraizado na realidade do que o bom gosto dos intelectuais». Mais claro ainda: «Não são filmes melhores que poderão modificar o gosto do público que têm os espectadores, mas somente uma transformação das suas condições de vida.» 4. Um filme é uma mercadoria Aqui estamos todos de acordo, se assentarmos que a primeira característica do modo de produção capitalista
46
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
é produzir mercadorias e que a natureza da mercadoria implica «a coisificação das condições sociais de produção e a personificação das bases materiais da produção» (Marx). A ideologia burguesa estabelece então duas categorias de representação que Brecht considera completamente erradas: a) O carácter mercantil («mau») da obra cinematográfica é anulado, ultrapassado, pela arte; b) O carácter artístico dos outros géneros artísticos não é afectado por este processo («mau») que afecta o cinema. Na verdade, todo o objecto artístico, cinematográfico ou não, produzido no seio do modo de produção capitalista é, antes de mais, uma mercadoria. 5. O cinema é uma distracção Outro dos argumentos favoritos dos comerciantes de cinema (vejam-se os comentários à representação n.° 3). Não se pretende aqui negar o prazer indispensável a qualquer participação activa no espectáculo; o próprio Brecht, num texto exemplar dedicado ao teatro (in Estudos sobre Teatro, Portugália Editora) escreve: Uma das características do teatro é justamente a transmissão de impulsos e conhecimentos sob a forma de prazer; a profundidade do conhecimento e do impulso é proporcional à profundidade do prazer. Substituindo, nesta citação, a palavra teatro por cinema temos certamente uma ideia aproximada do que Brecht — e a crítica materialista — entende ser também uma das primeiras funções sociais do cinema. Brecht insurge-se apenas contra a utilização sistemática do cinema por parte dos comerciantes como arma de alienação e de exploração dos espectadores. É precisamente esta oposição aguda entre o trabalho e o lazer próprio do modo de produção
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
47
capitalista que separa todas as actividades intelectuais em actividades que servem o trabalho e noutras que servem os lazeres, e que organiza estas num sistema de reprodução da força de trabalho. As distracções não devem conter nada do que contém o trabalho. As distracções, no interesse da produção, são votadas à não produção. Acontece, porém, que a possibilidade de conhecimento só se desenvolve a partir da relação activa entre dois trabalhos: o da produção do texto filmico e o da sua leitura crítica. A concepção burguesa de que o cinema é uma distracção, e somente uma distracção, pretende ocultar o problema da leitura dos filmes como trabalho produtivo. Daqui o desprezo da crítica idealista e dos comerciantes pelos filmes que não escondem as dificuldades implícitas de toda a leitura produtora de sentido, e que a ideologia dominante, pejorativamente, qualifica de «herméticos», «intelectuais», «aristocráticos», e outras baboseiras no género. Um apontamento sobre «a arte antiga e a arte nova», escreve ainda Brecht: A arte não deve apresentar as coisas nem como evidentes (encontrando eco nos nossos sentimentos), nem como incompreensíveis, se bem que ainda não compreendidas. 6. Os aspectos humanos devem desempenhar um papel no cinema Lema do humanismo conservador, à Thomas Mann, que, segundo Brecht, determina os filmes pequeno-burgueses. Consiste, para além do mais, em admitir os princípios da dramaturgia aristotélica baseada na mimese: o funcionamento ideológico dos filmes é condicionado pelo mecanismo de identificação que projecta o espectador na ficção cinematográfica sem lhe possibilitar um efeito de distanciação crítica indispensável. Esta representação é aplicável à maior parte dos filmes políticos ditos «progressistas» em exibição no circuito comercial, desde A Confissão, de Costas-Gravas, a O Soldado Azul, de Ralph
48
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Nelson, passando por Francesso Rossi, Elio Petri e Yves Boisset. 7. Um filme deve ser uma obra colectiva É a única representação burguesa aqui mencionada que Brecht considera realmente progressista. Mas, enquanto Brecht entende por colectivo um corpo orgânico que trabalha em conjunto com a mesma finalidade e as mesmas perspectivas, o colectivo da indústria cinematográfica capitalista é geralmente composto pelo «financeiro, os comerciantes (os especialistas do público), o realizador, os técnicos e os escritores», cada um querendo fazer vingar a sua participação e interesse individuais num trabalho que, a maior parte das vezes, só é colectivo por força das circunstâncias. 8. Um filme pode ser progressista pelo seu conteúdo e retrógrado pela sua forma Um dos falsos problemas que mais confusão têm provocado no esquema mental da crítica já aqui visada é na corrente teórica (cinematográfica) que encontrou em Lukács uma espécie de patriarca infalível. O ponto de vista de Brecht só podia ser um: Com efeito, não existe qualquer diferença entre forma e conteúdo, e o que diz Marx acerca da forma é válido neste caso: ela não tem valor senão por ser a forma do seu conteúdo. 9. É por razões artísticas que se tem de rejeitar a censura política 10. Uma obra de arte é a expressão de uma personalidade Representação dominante que oculta, em primeiro lugar, uma vez mais, o trabalho de produção da obra. Sobre este assunto, Pierre Macherey é peremptório:
IDEOLOGIAS E MITOLOGIAS DA INDÚSTRIA
49
As várias «teorias» da criação têm em comum o eliminarem a hipótese de fabricação ou de produção, quando analisam o problema desta passagem que é, precisamente, uma fabricação. E possível criar na permanência: neste caso, criar é libertar uma aquisição que, paradoxalmente, é um dado. Ou então assiste-se a uma aparição e, neste caso, a criação é irrupção, epifania, mistério. Em ambos os casos foram suprimidos os meios de explicar a modificação: no primeiro, nada aconteceu; no segundo, aconteceu algo de inexplicável. Todas as especulações sobre o homem criador se destinam a eliminar um conhecimento autêntico: «o trabalho criador» não é, afinal, um trabalho, um processo real, mas apenas a fórmula religiosa que torna possível celebrar as exéquias desse mesmo trabalho e erigir um monumento em sua honra (Para Uma Teoria da Produção Literária, Editorial Estampa). Voltando a Brecht, este verifica que, de qualquer maneira, o conceito da obra de arte como expressão de uma personalidade não resiste à divisão do trabalho a que é sujeita a produção de um filme, nem às exigências e arbitrariedades do mercado capitalista. «A obra de arte, que na ideologia burguesa é a expressão adequada de uma personalidade, deve sofrer, antes de chegar ao mercado, uma operação muito precisa durante o qual todos os seus elementos se encontram dissociados [...]. A obra pode ter uns vários novos autores (que são personalidades), sem que o autor original seja afastado por causa das necessidades de exploração da obra no mercado [...]. Pode mesmo utilizar-se a sua reputação de intelectual da extremaesquerda sem o produto do seu pensamento [...]». É indispensável, portanto, ter em conta a posição de Brecht a propósito da representação n.° 7. 11. Ás contradições do capitalismo, é a velha história 12. É preciso proteger os direitos do indivíduo
50
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
13. É preciso proteger o direito imaterial 14. O tribunal deve tornar a produção possível Brecht sabia de antemão que, num processo contra a indústria, o indivíduo isolado não podia ter razão. Mas como justificar a representação n.° 12 (extraída do Código Civil Alemão) no modo de produção capitalista, cuja engrenagem por definição — como vimos — implica a sujeição do indivíduo aos interesses da produção de mercadorias? Surge então a representação n.° 13, indicando a possibilidade metafísica da existência de «um direito acima dos fenómenos económicos e sociais, expressão de um sentimento inato do direito no homem, independente de tudo o que é material, crítico e lúcido a respeito do que é material». A posição contraditória do trabalhador intelectual progressista na sociedade capitalista define-se, pois — como foi indicado a propósito das representações n." 1 e 12 —, a partir do momento em que aceita forçosa e forçadamente participar de um modo de produção com o qual não concorda ideologicamente. «O direito, a liberdade, o carácter, tudo isto se tornou funções da produção, quer dizer, são variáveis. O próprio acto de conhecimento não é possível fora do processo geral da produção. É preciso produzir para conhecer, e produzir significa: estar dentro do processo de produção.»
II A CULTURA E O CINEMA AMERICANOS 1. O policial negro americano A) A violência quotidiana 1929, data em que Dashiell Hammett publica o romance O Falcão de Malta, é um ano particularmente agitado da história dos Estados Unidos. A crise geral do capitalismo, espectacularmente cristalizada nas falências em série que as especulações da bolsa iriam provocar, lançando milhares de trabalhadores no desemprego e na miséria, conhece então um dos seus períodos mais agudos. Em Fevereiro desse ano, um personagem célebre, Al Capone, ordena a execução de vários membros da quadrilha de Moran, seu rival, numa chacina que ficará, para a história e para a lenda, ligado ao dia de S. Valentim. A corrupção e o banditismo alastram pelo país, agora a coberto da utilização cada vez mais frequente de armas automáticas portáteis e de automóveis sempre mais velozes. E, no entanto, no abrir do ano, ao tomar posse do seu cargo na Casa Branca, o presidente Herbert Hoover declarara, respigado ainda pelo optimismo da vitória eleitoral: «Nada receio pelo futuro, que resplandece de esperança.» Apesar da sua confiança inabalável no futuro da América, Hoover sabia que nem tudo ia pelo melhor naquele que, nos discursos oficiais, teimava em ser o melhor dos mundos. E é assim que, ainda em 1929, o Presidente cria uma comissão de onze cidadãos prestigiados para estudar
52
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
a supressão ou a continuação da vigência da chamada Lei Seca. Tudo começara dez anos antes com a entrada em vigor, nos quarenta e oito estados da Confederação, do Volstead Act, que, aplicando a emenda 18 da Constituição, proposta dois anos antes por um abstémio senador do Texas e apoiada pelas várias ligas puritanas do país, proibia em todo o território o fabrico, o comércio e o transporte de bebidas alcoólicas. A depressão económica de 1929 veio aumentar ainda mais o sentimento antiproibicionista que, um pouco por toda a parte, ao longo da década, tinha crismado a figura do gangster com uma auréola quase romântica. Se é verdade que os mais belos filmes negros de Hollywood não deixaram de iluminar o rosto de revolta de muitos delinquentes, filhos da noite e da tragédia, o certo é que o clima generalizado de violência nos Estados Unidos entre as duas guerras atingiu uma dimensão que ultrapassava em muito o desespero da aventura individual. Em 1933, ano em que é abolida a emenda 18 da Constituição, o relatório do senador Kefauver sobre o crime na América calculava que, só nesse ano, tenham sido assassinados 12 000 americanos, 3000 raptados, 50 000 roubados e 100 000 assaltados. Abolida a Lei Seca intensificam-se outras actividades criminosas, como o jogo clandestino, a especulação imobiliária, os homicídios, a prostituição, a chantagem, os assaltos à mão armada, o tráfico de narcóticos e o gangsterismo sindical. É nesta conjuntura que surgem o romance e o filme negros, reflexos brilhantes de uma realidade social estilhaçada pelas cicatrizes da exploração, da miséria e da morte. A entrada fulgurante de Samuel Spade na literatura norte-americana, bem como a de Philip Marlowe meia dúzia de anos depois, ambos materializados no cinema pelo corpo e a voz inesquecíveis de Humphrey Bogart, marca uma ruptura importante na tradição do romance e da novela policiais. B) A tradição anglo-saxónica Inaugurado por Edgar Allan Poe e popularizado por Sherlock Holmes, o detective genial de Conan Doyle, o
A CULTURA E O CINEMA AMERICANOS
53
romance policial, herdeiro da novela gótica e das histórias de mistério e crime, é fruto do racionalismo científico, da organização da Polícia e da administração da justiça sedimentados durante o século XIX graças à evolução da sociedade industrial, da concentração urbana e da migração social. Vai sendo comum dizer-se que a novela policial desenvolveu, em termos vulgares e populares, uma filosofia da angústia que nasce oficialmente na história da cultura ocidental com Soren Kierkgaard. R. Gubern sintetiza muito bem o espírito da época ao escrever que «Poe e Kierkgaard representariam, pois, duas formas diferentes desta filosofia da angústia, que a nova sociedade industrial engendra e que também poderia definir-se como uma filosofia da insegurança, característica do desenvolvimento histórico do sistema capitalista, com a luta pela emulação económica e a competição individual». Assente em rigorosos critérios de dedução, dos quais se não excluía uma fina análise psicológica dos personagens, a tradição anglo-saxónica do romance policial mantém-se emoldurada pelos cenários fechados dos salões burgueses, dos castelos e das mansões aristocráticas, das carruagens cosmopolitas, entre a inteligência invulgar de detectives cultos, amadores de arte e de charadas, quase sempre abastados, e a elegância refinada de criminosos reputados mas sem escrúpulos. O romance-problema, onde não há lugar para contradições e no qual o investigador tem sempre razão, é invariavelmente elaborado a partir do adiar contínuo da resolução de um mistério — pontuado pelo aparecimento de cadáveres inesperados —, exposto e reposto de capítulo para capítulo, que o herói, no final do livro, como não pode deixar de ser, desvendará com uma minúcia mais ou menos surpreendente. Este esquema, burilado até à saturação por autores como Agatha Christie, Ellery Queen ou John Dickinson Carr, para citar apenas os mais conhecidos, fora pacientemente sistematizado por S. S. Van Dine, que chegou a publicar as regras a que devia obedecer o romance policial clássico. É precisamente contra esta tradição que se levanta o estilo hard-boiled de Dashiell Hammett, que, à frente
54
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
da revista Black Mask, irá desenvolver uma nova concepção do romance policial o thriller — e influenciar decisivamente a nova geração de escritores e cineastas ligados à produção do policial negro. A caça ao homem deixa de ser um mero exercício de raciocínio, facilitado pela comodidade dos belos cenários alcatifados, para se transformar num itinerário doloroso, vigiado pelos olhos do cansaço, cortado pela humidade da noite, esculpido pelo labirinto da cidade, povoado por seres estranhos, marcados pelo som e pela fúria de uma sociedade em que a sobrevivência se toma cada dia mais difícil. Não se trata já de partir do crime para o castigo, da lei para a consciência, mas sim de tentar compreender, activa e rudemente, como ambos se tornaram a face de uma mesma moeda que deixou de ter valor. Sem grande implantação no novo continente, o sujeito cartesiano — glória do modelo romanesco europeu — viuse preterido a favor de uma filosofia da acção, da utilidade e da eficácia: o pragmatismo. Assaz adequada no arrivismo mercantil da burguesia emigrada, que se não esquecia igualmente de aplicar o método experimental e a teoria evolucionista à metáfora da selva humana — the struggle for life — a filosofia da acção depressa se tomou uma espécie de ideário nacional. O entendimento dos homens passa, forçosamente, pela nossa relação com eles. A compreensão das coisas passava, prioritariamente, pela acção que sobre elas se exercia. Agir para transformar? Muito raramente, pois que a norma era: agir para possuir, agir para conservar. C) A fronteira interior Fechada a fronteira do Oeste, após a longa caminhada em que a força das armas era a força da lei, os emigrantes viram-se obrigados a procurar trabalho nas cidades, em breve ligadas entre si por imensas redes ferroviárias e rodoviárias. A conquista do Oeste, ritmada pela chacina dos índios e pela descoberta de horizontes sem fim, toma-se agora a conquista de espaço urbano, circunscrito nos limites da
A CULTURA E O CINEMA AMERICANOS
55
propriedade privada, do poder institucionalizado, do desenvolvimento industrial, da acumulação do capital, da exploração da mão-de-obra não qualificada, empurrada para a marginalidade e para o seio do crime. Em vez de se abrir, o espaço fecha-se cada vez mais à volta do cidadão, cerca-o irremediavelmente até fazer dele um possível foco de resistência e, por conseguinte, de violência. A liberdade e a aventura, mas também a sobrevivência e a esperança da terra prometida, continuam a passar pela descoberta de outros lugares e de outras gentes, num itinerário individual ou colectivo que se entronca num gesto cultural tão caracteristicamente americano como é e da procura das origens ou o da identidade pessoal e nacional. Não admira, portanto, que grande parte dos heróis da literatura americana sejam personagens desenraizados, estranhos mesmo na sua terra, exilados no interior do seu próprio corpo. E deste desfasamento inevitável entre o individual e o social que surgirão os traços mais amargos, desencantados e sublimes das figuras do aventureiro, do detective privado e do gangster, na literatura e no cinema dos anos trinta e quarenta, e que a nossa memória regista no recorte de uma geração de actores que não voltou a ter equivalente: Humphrey Bogart, Dana Andrews, James Cagney, Edward G. Robinson, Paul Muni, Georges Raft. Não se trata, como é óbvio, de heróis que queiram transformar a realidade, que façam de cada sonho traído outro projecto que não seja o de modificar apenas a sua própria vida. No policial negro, como na maior parte da literatura e do cinema americanos, o indivíduo continua a ser a referência fundamental de qualquer interrogação sobre o sentido de um sistema social baseado na exploração, na violência e na alienação. É por isso que os heróis do policial negro, estejam eles ou não do lado da lei, o que nem sempre é facil de distinguir, atacam com o mesmo à vontade as instituições, os valores e os mitos da sociedade americana, sem pôr em causa os verdadeiros mecanismos políticos do Poder.
56
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
É que, quase sempre, personagens, intelectuais, escritores e cineastas se limitam a ser testemunhas indignadas de um processo histórico que lhes escapa, mas que os fere ao ponto de provocar conscientemente a sua recusa. D) Os dois mundos da cidade Quando a noite cai sobre a cidade e o silêncio ganha a espessura do asfalto começa outro mundo. Underworld, assinado por Joseph von Sternberg em 1927, tido como o primeiro filme negro americano, abria justamente com a legenda: «Uma grande cidade no coração da noite.» Pouco importa que estejamos em Chicago, S. Francisco, Nova Iorque ou Los Angeles. Na América todas as grandes cidades se pintam com as cores das trevas e da amargura. Daí que o cinema negro seja, literalmente, a preto e branco. A noite é não só a hora mais propícia ao crime e ao vício como é também o tempo do anonimato, da solidão, da ternura, do desejo e das lágrimas. É talvez porque muitos dos romances policiais e dos filmes negros são contaminados pelo perfume da noite que nós conservamos dos seus heróis uma imagem quase onírica, deformada pelo trabalho do sonho, pelo trabalho da escrita e do filme, espelhada na perplexidade de personagens que gostariam, como nós, de saber se estão mergulhados no real ou se tudo não passa afinal de um pesadelo, antecâmara da morte, the big sleep. É de noite que o underworld adquire a sua verdadeira dimensão. Grupos clandestinos organizam e executam o crime segundo moldes paralelos aos que, no upperworld, os trusts e os homens de negócios enriquecem sob a capa de uma legalidade e uma respeitabilidade que são, paradoxalmente, muitas vezes compradas ao preço do suborno, da falsificação, da corrupção, da fraude, da chantagem e da ameaça. É que, quase sempre, o mundo inferior não só é decalcado do mundo superior como, na realidade, trabalha para ele, projecta-se nele, serve-lhe de matriz, duplica-o como o negativo e o positivo do mesmo filme.
A CULTURA E O CINEMA AMERICANOS
57
Por isso, tal como no mundo superior, o mu-do inferior tem as suas hierarquias, as suas regras, o Ru de valores. Também por aí passa a clivagem (h-is Américas de que fala John dos Passos, também aí há, imersos numa violência porventura mais sangrenta ainda, exploradores e explorados. Para uns e para outros, em contraponto com a claustrofobia da cidade, na cidade desenha-se um esboço de tranquilidade: lá se encontram os refúgios secretos, as bocas da estrada escancaradas aos carros, o motel de passagem, a Natureza amena, a matriz da terra que um dia há-de comer o silêncio do corpo enrugado, possivelmente esburacado por balas sem nome. No espaço aberto por estas dicotomias, que o mito moldou nas formas do maniqueísmo mais primário, tipificado nos personagens do gangster e do polícia exemplares, movem-se as figuras do detective privado, do jornalista, ou do aventureiro, homens de inspiração liberal para quem a justiça se não identifica com a lei nem com a razão, mas, tão-somente, com a deontologia profissional, a vingança, a teimosia ou a consciência de um dever cumprido.
E) Á imagem precisa A nova ética introduzida por Dashiell Hammett é inseparável de uma nova estética da narrativa policial. Ao contrário do romance-problema, baseado, como vimos, na análise psicológica, o romance negro funda a sua estrutura no olhar, nos diálogos curtos e sincopados, na descrição minuciosa do comportamento gestual, na acção dos personagens, na perseguição mais do que no mistério. Aos olhares cruzados com que os personagens medem a distância da sua relação com os outros vem juntar-se o olhar seco do autor (e, por conseguinte, o do leitor), do qual, em princípio, está ausente qualquer julgamento moral. Se é verdade que a obra de Dashiell Hammett, na literatura, na banda desenhada, no cinema, iria influenciar, directa ou indirectamente, o filme negro dos anos trinta e quarenta, é bem certo que o seu estilo, de uma economia visual sem precedentes, se encontra enraizado
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
58
numa assimilação crítica do melhor cinema mudo americano. Pode dizer-se que com Dashiell Hammett e, mais tarde, Raymond Chandler — este utilizando a narrativa do seu detective, Marlowe, na primeira pessoa — o romance negro ganha uma nova imagem de marca, imagem de uma precisão realista notável, que tinha mais a ver com um modo particular de entender o Mundo e a literatura do que com a mera reprodução naturalista da realidade. De resto, é o próprio Chandler que assim fala: Hammett colocou o assassínio nas mãos das pessoas que o cometem por razões sólidas e não para fornecer um cadáver ao autor. Que o cometem com os meios ao seu alcance e não com pistolas de duelo cinzeladas à mão, com curaré ou venenos tropicais. Ele colocou as pessoas no papel tal como elas são na vida e deu-lhes o estilo e as reacções que habitualmente têm em determinadas circunstâncias. Estamos longe, portanto, dos assassinos elegantes, dos cadáveres discretos, das investigações diletantes, dos raciocínios académicos. A partir de agora os homens abatem-se a sangue-frio, tombam feitos cadáver nas pedras frias do passeio. Entre dois tiros circulam dólares. O crime ganhou foros de mercadoria. Que filmes como A Relíquia Macabra, de John Huston, e À Beira do Abismo, de Howard Hawks, se tenham tornado o modelo cinematográfico do género e sejam hoje, mais do que qualquer tratado de sociologia, indispensáveis para o conhecimento da sociedade americana dessa época, eis o que não pode já surpreender-nos. F) Cumprir o contrato «Spade não é a imitação de um original. Ele é um sonhador no sentido em que representa aquilo que a maior parte dos detectives privados com quem trabalhei gostariam de ter sido e de que alguns deles, nos seus melhores momentos, pensavam ter-se aproximado. Ele não pretende — ou não pretendia, há dez anos, quando foi meu colega —
A CULTURA E O CINEMA AMERICANOS
59
ser um erudito decifrador de paciências, à maneira de Sherlock Holmes; ele procura apenas ser um tipo duro e correcto, capaz de tomar conta de si em qualquer situação e de conseguir o melhor de quem quer que conheça, seja ele um criminoso, um inocente ou um cliente.» Assim define Dashiell Hammett o seu famoso detective no prefácio à edição americana de 1934 de O Falcão de Malta.
Durante oito anos detective na Agência Pinkerton, Hammett conhece da profissão o suficiente para saber que o crime perfeito e o detective imaculado são coisas que só existem nos livros. Por isso Sam Spade — arquétipo de toda uma geração de detectives privados que, porventura, só Philip Marlowe, de Chandler, conseguiu igualar — não é um curioso fascinado pelo eterno duelo entre o bem e o mal, mas, antes de mais, um profissional. Quer isto dizer que Spade não combate o crime por dever moral mas porque lhe pagam para isso. A sua não é uma consciência moral mas sim uma consciência profissional. Spade, como Marlowe, espera no seu escritório, enrolando pacientemente o cigarro ao canto da boca ou bebendo whisky, que o cliente, de preferência uma mulher bela, lhe telefone ou entre pela sala e solicite os seus serviços. Todas as aventuras do detective começam por um simples contrato. O detective vende a sua força de trabalho sem se preocupar em saber se o seu cliente está dentro ou fora da lei. É por isso que, muitas vezes, ele se vê obrigado a enfrentar quer os bandidos quer os polícias, uns como outros regidos por códigos de comportamento e processos inquietantemente semelhantes. É esta condição de assalariado incerto que confere ao detective privado uma ambiguidade notável e o faz iludir constantemente o esquema moralista e maniqueísta da maior parte da literatura do género. Nem a lei, nem a justiça, nem sequer os seus próprios sentimentos, podem desviar o detective do cumprimento do seu contrato. Este é o único compromisso que ele assume. Compromisso que, não raras vezes, se volta contra o próprio cliente, apesar da fidelidade que o detective sempre lhe devota. O que está em causa, uma vez mais, não é o castigo providencial do verdadeiro criminoso, finalmente descoberto, mas a determinação inabalável de
60
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
cumprir o contrato até ao fim, sejam quais forem as consequências. O detective prende ou executa o criminoso não porque este seja criminoso mas eventualmente por defesa própria e, sobretudo, porque essa é a sua missão. G) Só e vulnerável A ausência de compromissos, indispensável à manutenção da sua integridade e da sua independência, faz do detective um homem só. Por detrás da máscara do duro esconde-se a dimensão de um ser generoso e sentimental. Se não procura aventuras amorosas também não procura escapar-lhes. Porém, o detective privado está condenado a não ter vida privada. Bela e perversa, ambiciosa e imprevisível, a mulher fatal não pode escapar ao seu destino de abelha-mestra, tão perigosa quanto sedutora. Tentado por um feiticismo que se alastra pelos quartos, pelos objectos, pelos adereços, pelas roupas, pelos cabelos, pelos lábios; o erotismo do policial negro, no cinema espartilhado pela censura do código Hayes, resvala constantemente para um sado-masoquismo contido, envolto numa ironia crítica ao matriarcado americano. O nosso homem não pode, pois, dar-se ao luxo de confiar na mulher, mesmo se ele a ama, mesmo se ela o ama. O amor não faz parte do contrato e é ele, quase sempre, que o põe em causa. É talvez por isso que, em face das mulheres, o privado fala pouco, como se tivesse medo que as palavras pudessem denunciar os seus sentimentos mais íntimos. Nada ou quase nada sabemos do passado do detective, embora, no fim de cada romance, adivinhemos um futuro incerto, partilhado entre a rotina do escritório, as garrafas de whisky, o cigarro enrolado, as amantes ocasionais, as noites densas, o acordar entorpecido e a atmosfera quente e sórdida, banhada pela raiva dos marginais (como ele) e a provocação dos milionários, de mais um caso por resolver. Só e vulnerável, o detective privado — cujo modelo aqui analisado continua a ser o de Sam Spade e o de
A CULTURA E O CINEMA AMERICANOS
61
Philip Marlowe — é um homem sem memória e, por consequência, impenetrável, aparentemente alheio à moral, ao medo, à corrupção, aos sentimentos, à dor. É desta aparência, única permeável ao olhar dos outros, que o personagem tira a força do seu mito e, simultaneamente, porque de aparência se trata, a fraqueza da sua condição humana. Indelével, marcada nas contracções do rosto, no compasso dos gestos e no grão da voz, esta dialéctica, feita de sofrimento e grandeza, encontrou em Humphrey Bogart o actor por excelência. Estranho num mundo que lhe é hostil por natureza, incapaz de ultrapassar os limites da sua acção individual e individualista, o privado faz sua a palavra de ordem da teoria social existencialista: num mundo sujo, manter as mãos limpas! Esta visão pessimista da vida, muito em voga na literatura americana do pós-guerra com a geração perdida, encontrou no romance e no filme negros um excelente ponto de partida. Alienados pela ambição do Poder e do dinheiro, mola real de todos os crimes, no escrever de Hammett, os personagens do policial negro, sem excepção, agitam-se num mundo confuso, em busca de uma felicidade impossível, feita de miragens, de ilusões, de sonhos, que, ao desfazerem-se, conferem à realidade e à existência um carácter absurdo. Para o nosso protagonista, o sentido da vida encontra-se na integridade profissional, na determinação em recusar tudo aquilo que faz dos outros seres desprezíveis que ele, pela diferença e pela indiferença que o caracterizam, se não atreve a julgar. A sua escolha existencial está feita: viver perigosamente até ao fim. H) Do compromisso à propaganda É curioso acompanhar, embora sucinta e esquematicamente, a evolução do filme policial americano desde o aparecimento do sonoro. O início dos anos trinta, vincados pela crise económica, pelo gangsterismo organizado e pelo lançamento das medidas de intervenção do presidente F. D. Roosevelt,
62
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
conhecidas pela designação eufórica de New Deal e destinadas a salvar as estruturas capitalistas da sociedade americana, viram surgir os famosos filmes da era do gangster, filmes como Scarface, de Howard Hawks, Little Caesar, de Marvyn Le Roy, Public Enemy, de William Wellman, City Streets, de Rouben Mamoulian, que dificilmente foram igualados, a não ser pela obra de cineastas como Sternberg, Allan Dwann, Raoul Walsh, Michael Curtis e Fritz Lang. Os livros de Dashiell Hammett são então adaptados ao cinema e ele próprio trabalha em Hollywood como argumentista. Mas é na década de quarenta que o filme negro, tal como o temos vindo a descrever, atinge a plena maturidade. John Huston lança o segundo fôlego do género, justamente com o já então clássico de Hammett, The Maltese Falcon. Estávamos em 1941. Nesse mesmo ano, os Estados Unidos entram na guerra mundial. Até 1948, início da chamada guerra fria, com o apogeu do maccarthysmo e a história anticomunista por todo o país, as medidas severas de repressão ao movimento operário e sindical, o lançamento do Plano Marshall na Europa e, finalmente, a criação da NATO, até 1948 — dizia — o filme negro constitui, do ponto de vista da denúncia da corrupção dos meios políticos, administrativos e financeiros, o que de mais progressista se fez em Hollywood. Durante este período é a vez de Raymond Chandler se instalar na capital do cinema e escrever directamente para a indústria. Filmes de Robert Aldrich, Budd Boetticher, Richard Brooks, Delmer Daves, William Dieterle, Edward Dmytryk, Samuel Fuller, Tay Garnett, Stuart Heisler, Alfred Hitchcock, Elia Kazan, Joseph Losey, Robert Montgomery, Jean Negulesco, Abraham Polonsky, Otto Preminger, Nicholas Ray, Robert Rossen, Robert Siodmak, Jacques Tourneur, Charles Vidor, Orson Welles, Billy Wilder e de alguns mais, além dos já acima citados, contam-se, ao longo dos anos quarenta e cinquenta, entre as películas de formação liberal socialmente mais comprometidas da indústria cinematográfica americana, apesar de (ou precisamente porque) muitas delas eram arrumadas pelos produtores e pela crítica na série B, vulgarmente reservada às obras de somenos importância.
A CULTURA E O CINEMA AMERICANOS
63
Com a intensificação do conflito mundial assistimos ao recrudescimento do filme de espionagem, cujos antecedentes cinematográficos, ligados ao retrato romântico de personagens históricos, se podem encontrar também em Joseph von Sternberg com Fatalidade, de 1931, um dos mais belos filmes com Marlene Dietrich. Antifascista durante a guerra, anticomunista depois da guerra, o filme policial e de espionagem americano depressa caiu na mais grosseira propaganda. Nos anos sessenta, dois outros escritores, estes de origem britânica — Ian Fleming e John le Carré estão na origem da nova moda do filme de espionagem, mais consentâneo com a realidade política mundial e com a internacionalização do sistema de produção cinematográfica. James Bond entra em acção. Filho bastardo da idade atómica, das multinacionais e da co-produção, o agente secreto não possui outra filosofia existencial que não seja um elitismo snob e a obediência cega à mecânica do poder imperialista em nome do chamado mundo livre, onde ele não passa, afinal, de um títere. 1) O fim do sonho Se excluirmos algumas excepções notórias, eivadas de um revivalismo que mais não faz do que acentuar a falsa inocência que as separa dos originais, o detective privado desapareceu, enquanto género, do cinema americano nos anos setenta. Harper, em 1966, de Jack Smight, Tony Rome, em 1968, de Gordon Douglas, e três ressurreições muito desiguais de Philip Marlowe (Marlowe, 1969, de Paul Bogart; The Long Goodbye, 1973, de Robert Altman; Farewell my lovely, 1976, de Dick Richards) são praticamente o que hoje resta de um cinema que, no entanto, continua a conhecer um êxito espantoso nas emissões tardias da televisão norteamericana. Se hoje, na realidade, o detective privado se vê confinado, como acontecia também nos velhos tempos da Pinkerton, a treinar fura-greves e a seguir monótonos casos de adultério, o mesmo não acontece com o polícia
64
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
das corporações estaduais e federais, mais activo e repressivo do que nunca. Lei e Ordem, eis o dístico de Goldwater para as eleições de 1964 que, quatro anos depois, os novos concorrentes, Nixon, Humphrey e Wallace, irão demagogicamente repetir até à exaustão. De facto, todos concordam em rebustecer o aparelho da vigilância policial, não só porque as taxas oficiais de criminalidade aumentam de uma maneira assustadora, acompanhando o desemprego, agitando a opinião pública, como os movimentos políticos e culturais de contestação do sistema, dos estudantes aos negros, das minorias às mulheres, se solidificam e se espalham pelos principais centros urbanos. A derrota do imperialismo no Vietname e no Cambodja, nas ex-colónias portuguesas em África, o escândalo Watergate e a corrupção existente nos vários sectores da vida política nacional, em parte denunciada publicamente, levam os grupos dirigentes a reforçar os respectivos aparelhos ideológico e repressivo de Estado. Entre estes, o cinema e a Polícia têm, por certo, um papel relevante a desempenhar. Deste modo, temos vindo a assistir, desde os anos sessenta, à proliferação dos filmes policiais que fazem a apologia descarada do sistema, da instituição repressiva e do polícia, recorrendo para tanto aos mais diversos álibis, sustentados, evidentemente, por uma longa tradição de Hollywood que ao cinema negro vai buscar algumas receitas. O comissário ou o agente, fardados ou à paisana, são agora tipificados sem qualquer ambiguidade. Competente e confiante, disfarçando amiúde um carácter pelo menos tão neurótico como o do assassino, o polícia actual tem justificada, a seu favor, toda a violência possível que vier a praticar, mesmo se anticonstitucional, porque ele se apresenta, por definição, como o guardião da lei e da ordem. De um lado os bons, do outro os maus. O mundo inferior e o mundo superior têm barreiras intransponíveis. Estamos longe do filme negro. Aproximamo-nos dos filmes brancos, se é permitida a expressão. E assim surgem Bullit (1968), de Peter Yates, French Connection (1970), de William Friedkin, que relançaram
A CULTURA E O CINEMA AMERICANOS
65
a moda das perseguições espectaculares de carro; In the Heat of the Night (1967), de Norman Jewison, e Shaft ( 1971), de Gordon Parks, que introduzem o polícia negro exemplar, a provar que o racismo na América é pura imaginação; Os Novos Centuriões (1971), de Richard Fleischer, filme que não hesita sequer em sublinhar abertamente a sua ideologia fascista. Muitos mais poderiam ser citados. Mas é à dupla formada pelo realizador Don Siegel e pelo actor Clint Eastwood, orgulhosamente homens de direita, que o cinema policial deve o seu tom contemporâneo. Filmes como Coogan's Bluff (1968) e Dirty Harry ( 1971) marcam uma época. Uma época em que o capitalismo e o imperialismo, a fim de assegurarem a reprodução das suas relações de produção e exploração à escala mundial, necessitam de intensificar a repressão e o autoritarismo, de impor a verdadeira face da violência, de aceitar o fim do sonho, chamado americano desde a aurora da Declaração da Independência. Porém, nem tudo está perdido. Continua a esperança de outra vida e de outro tipo de sociedade. Talvez seja este o sonho do velho detective privado tal como o idealizou Dashiel Hammett. «...certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a procura da felicidade.» No final de A Relíquia Macabra, Sam Spade, aliás Bogart, irónico mas sincero, afirma que a tão desejada estatueta, móbil dos crimes e da intriga, simples falsificação sem valor de uma fortuna imaginária, é afinal feita daquilo que são feitos os sonhos. Vinte e quatro anos mais tarde, na Europa, um cineasta do futuro, Godard, responde pela voz de Belmondo, aliás Pedro, «o Louco», que se nós somos feitos de sonhos os sonhos são feitos de nós. 2. Grandeza e decadência do filme musical A) A cena e o espaço fílmico O primeiro filme sonoro foi musical. Falado, dançado e contado como afirmavam os anúncios da época —,
66
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
o filme sonoro veio salvar da falência os grandes produtores de Hollywood, num período em que a crise económica e a baixa de frequência cinematográfica ameaçavam a nova indústria do espectáculo. O filme musical, tornado possível graças às inovações técnicas do sonoro, depressa se tornou um dos géneros mais apreciados do público americano. Ao contrário do musichall europeu, confinado ao espaço tradicional da opereta, do cabaré ou do café-concerto, o espectáculo musical americano ganhava consistência nas grandes revistas da Broadway, aptas a fornecerem os esquemas, os cantores e as bailarinas de que Hollywood precisava. O musical americano dos anos trinta, dominado pela geometria decorativa e pelos reflexos caleidoscópicos de Busby Berkeley, constitui bem um determinado tipo de sublimação, pelo imaginário, da miséria e dos conflitos sociais da época, cujos traços mais flagrantes, como a fome e o desemprego, alguns filmes ainda registam (exemplo : Gold Diggers, de 1933). Embora grande parte desses filmes se passassem no mundo do espectáculo, justificando assim de uma maneira mais ou menos verosímil a introdução dos números cantados e coreografados, a verdade, porém, é que, com Berkeley, surge uma nova maneira de entender o espaço fílmico, não redutível ao espaço da cena teatral em que os números musicais são montados. O rigor da planificação, o trabalho da câmara e da montagem dão ao filme um ritmo e uma originalidade que depressa afastam Hollywood das convenções da Broadway. Na década seguinte, é com Arthur Freed, Vincent Minelli, Stanley Donen, Gene Kelly, Fred Astaire e alguns mais que o filme musical conquista uma autonomia que o palco jamais conseguirá alcançar. A câmara move-se agora ao nível dos personagens, integrada na própria movimentação coreográfica, ora acompanhando os actores, ora abrindo-lhes o espaço necessário à marcação da dança e da música na exacta duração e dimensão do plano. Nesta perspectiva, pode dizer-se que o musical atingiu a sua maturidade nos filmes de Minelli e de Donen, ambos enraizados numa cultura americana sui generis que começava a perder o complexo de inferioridade em relação às formas culturais do velho continente.
A CULTURA E O CINEMA AMERICANOS
67
B) O sonho e a realidade Perfilados por uma dialéctica do sonho e da realidade, comum a quase todas as grandes comédias musicais americanas, os filmes de Minelli e Donen desenvolvem-se, contudo, a partir de pólos opostos: enquanto o primeiro procura traduzir, em termos de cinema e de espectáculo, a experiência da felicidade, o segundo prefere falar-nos, com uma simplicidade comovente, da felicidade da experiência. Se, com Freed, Minelli e Donen, Hollywood se libertara da Broadway, a partir de meados dos anos cinquenta a comédia musical cinematográfica volta a ser um mero sucedâneo dos êxitos comerciais do palco. A divulgação massiva da televisão no pós-guerra, com inúmeros programas musicais interpretados pelas grandes vedetas do momento, e o enorme aumento dos custos de produção do filme musical, fazem que os produtores se arrisquem apenas a pôr em filme as peças musicais cujo êxito, testado na Broadway, sabem garantido à partida. Deste modo, foi baixando o número de filmes musicais e aumentando o registo cinematográfico das peças musicais consagradas antes de se tornarem superproduções condicionadas ao marketing internacional dos grandes produtores. Numa interessante colectânea de ensaios (Acting out America, Pelican Books, 1972), o crítico dramático John Lahr sugere que a comédia musical se tornou a mais comercial e popular forma de teatro na América em parte porque constitui uma das extensões do sonho da classe média norte-americana. Da mesma maneira que os contos de fadas encantam as crianças com os seus pequenos reinos de maravilhas, a comédia musical aponta o escape contínuo da realidade quotidiana, a fuga prevista da sociedade actual. Mais eficaz do que o western ou o filme policial, ainda muito próximos da violência climatizada que envolve o sistema, a comédia concilia todos os elementos do melodrama mais choramingas com a descontracção das piadas inócuas e a boa vontade de um mundo construído sobre a alegria de viver, seja qual for o seu preço.
68
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Num país como a América, em que a pobreza é conscientemente recalcada a todos os níveis, o filme musical apresenta-se como um empreendimento privilegiado, fruto de enormes investimentos, tanto económicos como ideológicos. C) O dinheiro e a glória A comédia musical é o espectáculo por excelência, portanto o veículo por onde se infiltram com mais facilidade o sermão ideológico disfarçado, a opulência, o decorativo, a superficialidade, o deslumbramento, o saudosismo dos tempos áureos, o sentimentalismo hipertrofiado e as rábulas moralistas recheadas de conformismo. Habituados ao código omnipresente de que tudo tem o seu preço, os produtores de Hollywood não olham a despesas para capitalizar nas superproduções musicais os interesses óbvios da indústria para ideologia oficial. A publicidade não esconde os números dos orçamentos, antes deles faz o seu cavalo de batalha preferido. Helio Dolly custou 600 mil contos, mas o cachet de Barbra Streisand foi discretamente esquecido. Julie Andrews orgulha-se de ser uma das actrizes mais bem pagas dos últimos anos. Liza Minelli, até há pouco tempo mais conhecida por ser filha de Vicente e Judy Garland, merece as capas do Times e do Newsweek, coisa que algumas figuras eminentes ainda não conseguiram. Wall Street não dorme. Aliás, a própria engrenagem da produção da comédia musical favorece a ideia de que os conflitos de classe não resistem ao poder do dinheiro. Quando as «estrelas» pertencem, por nascimento, às classes sociais desfavorecidas, logo a publicidade adianta que vieram do nada para chegarem, de um dia para o outro, ao auge da fama e da glória. Neste ponto, a mitologia de Hollywood não difere da ideologia subjacente a quase todas as comédias musicais: os heróis são seres predestinados, colocam-se acima de quaisquer problemas sociais ou morais, são movidos apenas por uma pequena ambição — o dinheiro —, no fim reduzida às proporções devidas de uma quimera na qual não devemos acreditar. A felicidade não está no dinheiro, eis a missiva, em entrelinhas ou em entrefotogramas, dos filmes
A CULTURA E O CINEMA AMERICANOS
69
que fazem do dinheiro gasto na sua produção e ganho na respectiva exploração o alvo certeiro da sua pretensa qualidade. Vejamos como algumas das constantes acima indicadas se inscrevem em dois filmes musicais simultaneamente em exibição em salas de estreia de Lisboa em Dezembro de 1972: O Violino no Telhado, dirigido por Norman Jewison, e Cabaret, de Bob Fosse. Não é fortuito, como acima tentei indicar, que em ambos os filmes, produzidos por companhias diferentes fora de Hollywood (O Violino em parte na Jugoslávia; o Cabaret em parte na Alemanha), a fim de aproveitarem as vantagens financeiras da co-produção e a mão-de-obra mais barata — o que, para além do mais, no campo do cinema, revela a crescente internacionalização das forças produtivas capitalistas —, uma das canções centrais tinha como tema o «dinheiro»: If I Were a Rich Man (Se Eu Fosse Um Homem Rico) no Violino e Money, Money! (Dinheiro, Dinheiro) no Cabaret. Se virmos os filmes com atenção veremos que ambas as canções definem a preocupação fundamental dos protagonistas e que essa preocupação serve de base a todas as justificações morais da intriga. Em O Violino no Telhado, o leiteiro da aldeia (Topol) confessa-nos, com a carga de demagogia indispensável à exaltação sentimentalista, o que faria se fosse um homem rico e mostra-nos o que realmente faz não o sendo. Ele orgulha-se das suas ambições, ri-se da riqueza dos outros e ri-e da sua miséria, conforma-se com o estado de coisas, resigna-se porque tudo o que existe assim existe por vontade de Deus! O leiteiro é o estereótipo do velho compreensivo agarrado à tradição mas capaz de aceitar as propostas dos mais novos, irritável mas paciente, revoltado mas religioso, intransigente mas emotivo, bonacheirão mas trabalhador, preso à sua terra, ao seu povo, à sua família. O leiteiro é o modelo perfeito não só do «suplemento de alma» da tradição judaica (será impossível não descobrir no filme um cunho evidente de propaganda), mas um exemplo «simpático» da vontade de adaptação, espírito de sacrifício e tenacidade. Quando um homem com tantas qualidades elogia em cada canção, à média de duas por bobina, as vantagens do «pobre mas honesto», do «mais vale ser crente do que irreverente», da obediência à hierar-
70
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
guia e aos valores sagrados, então será altura de ver se, efectivamente, o filme musical não passa de um veículo poderoso para inculcar no espectador noções de que ele, à primeira vista (distraído com o écran gigante e as quatro pistas sonoras garantidas pela publicidade), talvez não se aperceba. Em Cabaret, a canção Money, Money! serve de contraponto à situação sentimental da bailarina-cantora (Liza Minelli), hesitante entre um pobre estudante inglês e um rico aristocrata para quem se sente irresistivelmente inclinada. É que este tem tudo o que o outro não tem: belos carros, belas casas, belos casacos, belas jóias, belas maneiras, numa palavra, segundo ela diz, tem classe; noutra palavra, tem dinheiro. As relações sentimentais que entre os três (a cantora, o inglês e o aristocrata) então se estabelecem são literalmente compradas pelas vantagens materiais que o barão oferece. A este nível, por exemplo, o que faz de Cabaret um filme ligeiramente mais interessante do que O Violino no Telhado é o grau de ambiguidade em que são abandonados os seus personagens, entregues à voragem das suas obsessões e das suas ilusões. D) Longe no espaço e no tempo Tal como O Violino no Telhado (cuja acção decorre na primeira década do século na Rússia), Cabaret situa-se na Alemanha dos anos 30, isto é, fora da América. Num como noutro filme, a América só surge virtualmente, referida como a terra prometida para os Judeus eternamente perseguidos. As tropas do czar em O Violino e os emblemas de Hitler no Cabaret invadem a história para esmagar a liberdade de um povo. Aparentemente ausente dos filmes, como convém aos seus propósitos, a América vem, porém, inscrever-se neles como sendo o sonho ambicionado da salvação: em O Violino os judeus acabam por emigrar para a América; em Cabaret a perspectiva histórica permite-nos saber, après-coup, que será a América a decidir o fim dos crimes de Hitler. Simples coincidência em dois filmes que de resto parecem ter tão pouca coisa em comum? Talvez assim con-
A CULTURA E O CINEMA AMERICANOS
71
sidere quem não souber que, desde os seus primeiros anos, a indústria de Hollywood passou a ser controlada por meia dúzia de famílias judaicas ligadas à alta finança. O que não é coincidência é os autores das peças e dos filmes musicais escolherem agora outras épocas (que não a nossa) e outros locais (que não a América) para lançarem o público no mundo do espectáculo ou, se quiserem, em mundos espectaculares. E que esta é, sem dúvida, a maneira mais simples de escapar à realidade quotidiana e aos problemas sociais presentes. Desta maneira, não apenas se consegue justificar todo o aparato decorativo dos cenários através das chamadas reconstituições de época como se remete o fascínio do espectador para os bons velhos tempos em que tudo era diferente, talvez mais belo, talvez mais pitoresco, talvez mais exótico, decerto maravilhoso e excitante! Esta tara era levada ao delírio no exercício no execrável Boy Friend, de Ken Russell, exemplo acabado da mitologia narcisista do filme musical, género que se encontra perfeitamente impotente para renovar a força dos últimos «clássicos». Os produtores e os autores dos filmes musicais parecem não querer compreender que se as obras de Minelli, Donen e Kelly continuam hoje mais actuais do que todas as superproduções recentes não é só porque elas traçaram, no seu tempo, um retrato ideal e fiel do sonho americano, mas também porque as canções e a coreografia eram perfeitamente integradas na estrutura e na lógica dramática dos filmes. Um Americano em Paris, de Minelli, ou Serenata à Chuva, de Donen e Kelly, são impensáveis sem essa articulação constante entre a intriga e os números musicais, uma vez que estes servem de motor ao próprio desenvolvimento do drama. Que acontece, por exemplo, num filme como Cabaret? Temos, por um lado, uma série de números de music-hall montados no palco de um café-teatro (números que servem para mostrar e promover Liza Minelli) e temos, por outro lado, a tradicional história sentimental. Para arejar a monotonia desta história vão-se intercalando os números de musci-hall a espaços de tempo mais ou menos irregulares. Nada existe de comum entre as canções e a coreografia e os acontecimentos a não ser a coincidência obrigatória
72
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
de uma personagem ser precisamente cantora num café-teatro. A cena do drama não coincide com a cena musical e esta só serve de comentário à primeira, como acontece no exemplo citado (o número Money, Money!). Quer dizer que as sequências passadas no café-teatro são, assim, uma espécie de interlúdio de um outro filme, banal, que é preciso salvar com as delícias do recheio musical. Pode, por isso, dizer-se que filmes como Cabaret e O Violino no Telhado, também obras recentes de tanto êxito como Música no Coração e Funny Girl, não só ignoram as propostas de Minelli e Donen, que fizeram do musical uma arte maior, como, em certos pontos, são formalmente anteriores a Berkeley. 3. O Padrinho americano A) Quem acredita na América O Padrinho, filme de Francis Ford Coppola, realizado segundo o livro homónimo de Mario Puzo, confirmou-se suficientemente comercial para justificar uma segunda parte, à qual não falta sequer uma dimensão histórica e crítica do capitalismo americano. O projecto inicial previa alguns dos resultados comerciais obtidos, tendo-se proposto, pelo sim pelo não, salvaguardar a imposição imediata do filme em todo o Mundo com o mínimo de desperdícios; é ver como a publicidade vinda do estúdio (nos anúncios de imprensa e no trailer), mesmo tendo o nome de Marlon Brando à disposição, encarrega-se de vender o título apenas com uma marca sugestiva e inconfundível (uma mão anónima que controla os cordelinhos). A palavra «padrinho», que no original em inglês se compõe de dois elementos cujo conhecimento é necessário ao ponto de vista deste artigo e informa alguma terminologia que emprego (Godfather: God-Deus; flather-pai) tem, efectivamente, um poder de apelo considerável. O primeiro plano do filme preenche uniformemente o espaço do écran e a sua escuridão completa confunde-se com a da sala. Preparados para mergulhar no mundo da ficção, os espectadores nada vêem, por enquanto, mas
A CULTURA E O CINEMA AMERICANOS
73
ouvem (ou lêem as legendas, brancas sobre o fundo negro): «Eu acredito na América». Importa saber, como aliás o próprio monólogo indica, que quem faz tal afirmação é um emigrante italiano, dono de uma agência funerária, filho da miséria e da violência, agora instalado num mundo novo que lhe ofereceu a possibilidade de enriquecer (literalmente à custa da morte), mas não ainda a da justiça. Superada a miséria, mantém-se a violência. E quem na violência vive na violência se entende. Descendente em linha directa da Europa, como o emigrante da Itália, a América herdou do Velho Continente algumas das suas tradições e o peso enorme da sua formação cristã. Se a noção de justiça é ainda primária («Quem com ferro mata com ferro morre»; «Olho por olho dente por dente») é porque esses homens, fugidos a um espaço geográfico — a Sicília — enterrado num tempo imobilizado, não conseguiram nunca libertar-se do seu antigo universo mental, do seu olhar paternalista, das suas obsessões arcaicas. Quando a organização social, suficientemente permeável para permitir o lucro fácil e o dólar abundante, continua a enfermar, como é óbvio, de uma repressão criminal oscilante e insuficiente, é bom saber que alguém, próximo, tem poderes para regular todas as questões pessoais, acima de qualquer norma social. Esse alguém, cuja afinidade familiar ou simbólica marca a importância decisiva da cultura patriarcal, chama-se, como não podia deixar de ser, o «padrinho», substituto do «pai» nos cânones religiosos. É, pois, ao Padrinho que se começa por dizer «eu acredito na América» porque foi a América que fez do Padrinho aquilo que ele efectivamente é. O Padrinho é a lei. O Padrinho é a autoridade. O Padrinho é o pai, o chefe da família. A família é a América. B) Uma sociedade mafiosa Vemos, portanto, que o filme de Coppola, ao falar da família, que a publicidade (redigida, disfarçada sob o aspecto de artigos de divulgação, reportagens de filmagens, entrevistas, etc.) e a maior parte dos espectadores associam imediatamente à Mafia, procura falar da sociedade norte-
74
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
-americana. O facto de quase nunca se mencionar no filme o nome de Mafia não se deve unicamente ao medo das represálias que sobre os colaboradores da produção poderia exercer aquela sinistra organização, mas à vontade expressa de Coppola transformar a Mafia num símbolo ideal do sistema capitalista e tia vida corporativa americana durante o pós-guerra. Curiosamente, em O Padrinho — ri parte surgem mais explícitas as referências à Mafia tal como surge perfeitamente articulada a relação estreita entre o gangsterismo e o mundo de negócios. Temos, pois, que a colónia italiana na América, pelo menos tal como o filme a apresenta, não pode escapar à protecção do Padrinho ou à cumplicidade com qualquer das outras quatro sagradas Famílias. Ninguém pode servir a dois senhores ao mesmo tempo, rezam as escrituras, como ninguém pode deixar de pedir protecção à autoridade que melhor lhe convém. Pedir auxílio ao Padrinho, personagem que marca a presença absoluta do Pai TodoPoderoso (com o consequente ritual de beija-mão, etc.), é reconhecer-lhe o Poder Supremo, passar a venerá-lo obrigatoriamente, aceitar o seu arbítrio e distingui-lo com o privilégio de ele poder, em nome da Família, expiar as culpas colectivas. De nada serve assassinar os acólitos ou os apóstolos do Padrinho enquanto se não destruir de uma vez por todas a própria efígie que vinca a vontade e o exercício do poder, a menos que se procure atingi-lo no único ponto em que ele é vulnerável: a descendência. É sabido que a tradição judaico-cristã exclui a mulher da vida pública e determina todas as relações de parentesco por via masculina. É em casa do pai que os filhos habitam, é através do Padrinho, se necessário, que a Família sobrevive. Quando, no fim dai parte, o filho predilecto do Padrinho assume o lugar de pai, mais não faz do que preencher uni vazio cuja manifestação significaria a destruição da Família. Os chefes das outras quatro influentes Famílias que entre si partilham a América foram eliminados. (Sequência do baptismo e dos assassínios, em montagem paralela, onde se procura estabelecer significações evidentes entre o ritual religioso e as ordens do novo Padrinho, pela primeira vez também realmente padrinho de baptismo de
A CULTURA E O CINEMA AMERICANOS
75
um membro da Família). Inicia-se o reino de outra geração, mantém-se a figura do Padrinho. A missão do filho cumpre-se quando este assume o lugar vago deixado pelo pai. Não se trata somente de uma sucessão ou correspondência, mas de uma identificação, no sentido idealista da palavra. C) Á moral é a alma do negócio O filme de Coppola, como aliás o livro de Mario Puzo, inscrevem-se numa ideologia particular, dominante no mundo ocidental, criticando-a e fazendo dela os traços de honra de personagens que se digladiam por questões aparentemente alheias à moral pública. Se o espectador reconhece facilmente o estatuto criminoso das acções do Padrinho e da sua Família, não esquece, porém, que ele sabe como ninguém impor a ordem e o respeito em sua casa. Eis, pois, outra tara comum à ideologia capitalista: a separação entre a vida familiar, sujeita às regras mais rígidas do puritanismo e de toda a espécie de preconceitos, e a vida dos negócios, onde o campo está aberto a todas as especulações, incluindo o crime. Sendo aqui o crime a alma do negócio, não devemos surpreender-nos por Coppola não insistir demasiado em nos esclarecer acerca desse negócio (fala-se vagamente em jogo, álcool e mulheres — uma vez mais pecados de origem remota), visto que lhes interessa sobretudo mostrar como o negócio também está limitado a uma zona de moral precisa. Este aparente paradoxo (o de que a prática do crime também tem uma moral própria) constitui o ponto de chegada do filme. O ponto de partida foi, determinantemente, o de transferir para a Mafia algumas preocupações sociais maiores do espírito capitalista americano. Ao servir-se da Mafia como metáfora da América, Coppola, de um ponto de vista moral, ataca os processos do banditismo organizado (as outras Famílias são «piores» que a do Padrinho, logo...) sem analisar as causas específicas que fazem da América um charco de violência. Falando da Mafia, Coopola pretende falar da América, dos seus defeitos e das suas qualidades, da sua desmesura e do seu espírito de iniciativa, da sua cegueira e
76
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
dos códigos de honra, da sua ambição e da sua ternura, das suas grandezas e das suas misérias. Talvez sem possuir a eficácia narrativa da 1 parte, a II parte oferece, no entanto, a vantagem de ensaiar uma análise política mais coerente e correcta da estrutura social que, nos Estados Unidos, favorece o desenvolvimento da actividade dos mafiosos. Utilizando blocos narrativos alternados da vida de Vito Corleone (Roberto de Niro no papel que Marlon Brando interpretou na 1 parte) e de seu filho dilecto Michael ( Al Pacino, em ambos os filmes), O Padrinho—II parte sugere, com uma ousadia rara no novo cinema americano, que a ascensão, a acumulação e a concentração capitalista, inseparáveis do contrôle e do alargamento dos mercados, não só são o fruto de uma série de crimes em cadeia como conduzem inevitavelmente ao isolamento e à sua própria destruição. É esta a trajectória que nos conduz de Vito a Michael. Porém, onde Coppola parece querer lançar-se numa análise quase marxista da Mafia é quando aponta muito claramente que o gansterismo da organização dirigida pelo Padrinho em nada difere do dos capitalistas e dos diplomatas americanos, todos eles aliados no mesmo movimento de corrupção e expansão imperialistas. Aqui a Mafia é de facto a metáfora ideal de uma certa América em que Coppola, ao contrário do Padrinho, se recusa a acreditar. A inscrição do movimento revolucionário cubano na ficção é, neste ponto, exemplar. Para Coppola os verdadeiros valores do sistema americano são aqueles que, paradoxalmente, o espírito da Família acaba por anular. Não deixa de ser sumamente irónico que Vito e depois Michael destruam todos os seus valores familiares, religiosos, comunitários e étnicos para se entregarem a um feroz individualismo competitivo e criminoso que, precisamente, procura salvaguardar a honra, a segurança, a unidade e a sobrevivência da Família. Esta contradição básica entre a tradição moral e a prática social tem ainda o seu correspondente exacto no irracionalismo capitalista, pois que a própria moral burguesa de paz, amor, respeito e legalidade se encontra sistematicamente excluída da violência que sustenta o lucro.
A CULTURA E O CINEMA AMERICANOS
77
Porque de tudo isto nos fala Coppola com uma sensibilidade e uma segurança admiráveis, sobretudo se consideramos que se trata de uma dispendiosa produção, certamente condicionada pelas normas da indústria, alguma crítica da esquerda americana não hesitou em comparar O P a d r i n h o , na sua totalidade, com O Mundo a Seus Pés. Mas se Coppola está longe de ter o génio de Orson Welles a verdade é que estes seus dois filmes ficarão como um portentoso, embora limitado, retrato do establishment.
III UM UNIVERSO FANTÁSTICO 1. A falsa inocência de Hitchcock A) Entre o mistério e o «suspense» Todo o cinema de mistério, como a literatura do mesmo género, consistem na provocação de um conhecimento adiado. Quer dizer que, geralmente, se mostram os vestígios da passagem do criminoso mas se oculta a sua identidade, sublinham-se os efeitos (o crime) para melhor suspender as causas (o criminoso). Enquanto o segredo não é revelado, o espectador é convidado a estabelecer as suas próprias hipóteses, a jogar com a ficção na tentativa de a esclarecer. Desta relação de espera, determinada desde o início, se constrói a narração: o mistério é o tempo que antecede a explicação final, a promessa de uma certeza que exige cumprimento. Na realidade, o filme indica os pormenores da solução ao mesmo tempo que estabelece o problema. A ficção de mistério é, portanto, a ocultação de qualquer coisa ou de alguém na elaboração da dúvida e da espera, partindo da norma implícita de que o esclarecimento final vem restabelecer o equilíbrio do universo racional. Como muito bem explicou mestre Hitchcok a um aluno brilhante chamado Truffaut, para existir no espectador uma tensão emocional suficiente para desencadear o suspense é necessário que, antes, se tenha fornecido ao público um número razoável de informações complementares acerca das personagens e, se possível, acerca do tempo e do espaço em que os conflitos se decidem. Se estivermos, por assim dizer, familiarizados com a personalidade do assassino e das respectivas vítimas, é natural que, mesmo inconscientemente, nos preocupemos com a
80
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
segurança de um e a vida de outros. Quer dizer que, deste modo, somos directamente envolvidos na acção explosiva ( o crime) pela acção aparentemente passiva (descritiva, narrativa, informativa) que precede aquela. É o perfeito domínio destes pormenores que torna, por exemplo, A Noiva Estava de Luto, de François Truffaut, um filme inesgotável. B) «Topázio» Os detractores habituais de Alfred Hitchcock vão ter uma grande oportunidade para atacar o autor de Psico. Com efeito, Topázio é um filme cheio das obsessões caras ao mestre, ideologicamente repugnante, que segue a par e passo os conceitos infantis que a polícia secreta norteamericana deve fazer dos seus inimigos. Pode acusar-se Topázio de ser uma fi' <4^ propaganda imperialista (o que, entre outras coisas, também ó), de ser inclusivamente um dos piores filmes de Hitchcock. Contudo, vejo em Topázio uma película admirável —cinematograficamente falando —, talvez pouco homogénea, mas com três ou quatro sequências de antologia. Parece-me perfeitamente irrelevante arrumar a fita (o que seria fácil) só porque Hitchcock, aliás com uma coerência que não surpreende, consegue ser tão reaccionário quanto mentiroso. Como já alguém disse, Topázio é o filme de um homem que tem medo e como tal deve ser entendido. Hitchcock conhece e vive profundamente a mentalidade americana. O seu desesperado anticomunismo não é mais do que o terror permanente de um perigo desconhecido. Mais do que demagogo, Hitchck é sincero. O perigo e o mal estão em todo o lado, diz Marion (Catherine Denueve) em A Sereia do Mississipi. Topázio é, portanto, o exercício do medo considerado como uma das belas artes. Depois, Topázio é um continuar de variações sobre o tema da fraqueza humana. O que distingue os homens não é tanto pertencerem a este ou àquele bloco político, mas o modo pelo qual se deixam comprar, isto é, o modo pelo qual escolhem viver. E aqui entra o inimigo número um da harmonia universal, ou, segundo o conceito hitchco-
UM UNIVERSO FANTÁSTICO
81
kiano, da «pax americana»: o espião. Ao contrário de muitas interpretações que se têm feito, creio que o espião nos filmes de Hitchocok nunca é um herói. Ele é o trampolim de uma série de molas que põem em perigo a segurança social e que acaba sempre, mais tarde ou mais cedo, por se tornar a sua própria vítima. Topázio é o verbo espiar, em todos os tempos e em todos os modos, conjugado por alguém que conhece bem a gramática. Porque cada um é o espião do outro e o seu próprio espião, o disfarce assume uma importância fundamental. Assim, Topázio é ainda um jogo sobre o poder do disfarce e, ao mesmo nível, o jogo sobre o disfarce do Poder. A acção de Deveraux (Frederick Stafford) é, tão-somente, um nó na cadeia indefinida das múltiplas recorrências que organizam o esquema vertical do Poder. Na base está toda uma amálgama de seres manipulados que funcionam como simples sinais de uma realidade que se procura escondida e, se possível, mistificada. Nesta ordem de ideias, o próprio filme é, muito logicamente, um disfarce e uma mistificação da realidade. De qualquer modo, é evidente que, ao nível da mise-enscène, Topázio nada acrescenta a tantos outros filmes do realizador. Hitchcock perdeu o gosto do risco. Os seus últimos filmes — e Topázio é disso um exemplo típico são um cuidadoso autoplágio de ideias, de planos, de sequências e de truques que fizeram a glória do mestre. Topázio tem por álibi a crise de Cuba e o conflito entre Norte-Americanos e Russos por causa dos mísseis. Escusado será dizer de que lado está Hitchcok e que de modo algum pode ser tomado a sério. Tudo é visto através de espelhos deformados (e intencionais) que perdem todo o contacto com a realidade à força de a distorcerem. Se Hitchcock aproveitou o livro de Leon Uris é porque este lhe servia às mil maravilhas como ponto de partida para um percurso de aparências onde a mentira fala pelo poder da eficácia. Compreendo perfeitamente que se possam recusar as preocupações de Hitchcock, a sua visão facciosa e vã da liberdade, mas entendo que é injusto negar-lhe a posição de grande realizador que ele efectivamente é. Desculpem, dos maiores.
82
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
C) «Frenzy» Hitchcock não se cansa de repetir que a razão de os seus filmes serem baseados nos mecanismos do suspense é estritamente comercial. Os espectadores foram habituados, condicionados, a esperar de Hitchcock um determinado tipo de filmes e o mestre não pode, agora, mesmo que queira, desiludi-los. Quer dizer, no sentido rigoroso da palavra, que Hitchcock se sente na obrigação de iludir constantemente o seu público. Iludir o público significa, em primeiro lugar, para Hitchcock e para os produtores de Hollywood, distraí-los, desviá-lo do verdadeiro sentido das coisas. Veremos que é desse desvio, ora imperceptível, ora exagerado, que trata o último filme de Hitchcock, intitulado entre nós Terror na Noite. Logo de início, à beira do Tamisa, um discurso municipal sobre a poluição e a presença de corpos estranhos no rio é a deixa (segundo a gíria teatral) para o aparecimento de um cadáver feminino, nu, de gravata no pescoço, corpo estranho por excelência em semelhante local, se o Tamisa e os crimes de índole sexual executados por estrangulamento não constituíssem elementos tradicionais desde os tempos do «Estripador». Operado o primeiro desvio, discreto, do filme (o realizador parece dar atenção a um discurso oficial, preocupado com a poluição, mas é para um outro crime que ele nos prepara), Hitchcock insiste na elaboração de novo equívoco, aquele que mais visivelmente procura perturbar a inocência do espectador, a inocência dos personagens e a falsa inocência do plano: da gravata, que a mulher estrangulada ostenta no pescoço — e que o orador público crê pertencer ao seu selecto clube —, passamos para a gravata que Richard Blaney, o protagonista (John Finch), coloca em frente do espelho. Estabelecida esta relação imediata entre o crime e um personagem preciso, por enquanto desconhecido, Hitchcock passa adiante, como se nada mais houvesse a dizer sobre semelhante relação, cujas provas parecem evidentes. Se é verdade que o espectador vai ver os filmes de Hitchcock para se distrair (é nessa constatação banal que assenta em grande parte o prestígio comercial do realizador, que ele próprio reconhece de boa vontade), se é verdade
U M UNIVERSO FANTÁSTICO
83
que os crimes existem apenas na ficção do écran, não é menos certo que o autor de Frenzy não acredita na total inocência dos espectadores, do mesmo modo que, nos seus filmes, quase ninguém acredita na inocência dos falsos culpados. O raccord (ligação entre dois planos consecutivos) entre a gravata da primeira vítima e a apresentação de Blaney levam os espectadores a identificá-lo como sendo o criminoso. Porquê? Como? Pela simples aparência de uma relação que, sendo arbitrária, não o é no filme de Hitchcock. Quer dizer que essa relação pretende «comprometer» o raciocínio do espectador, desviá-lo para um sentido necessário (o do filme), e, ainda, mostrar que a pretensa inocência do espectador é profundamente afectada pela manipulação do cineasta. Algumas bobinas adiante veremos que Blaney está inocente e que a nossa primeira dedução quanto à possível relação entre as gravatas estava errada. Quem não erra é Hitchcock. Por exemplo, no segundo crime praticado por Bob Rusk, o verdadeiro assassino ( Barry Foster), a câmara fica na escada depois de o assassino e a vítima terem entrado para o quarto daquele e recua num travelling lento para a rua, onde o grito desesperado e esperado da vítima (como acontece no crime precedente — o espectador é um animal de hábitos) é abafado pelo ruído ambiente. O espectador já não precisa de assistir ao crime para se tornar seu cúmplice: ele espera esse crime, goza-o antecipdamente, como espera e goza qualquer transgressão nos filmes de Hitchcock. É para isso mesmo que o espectador paga! Hitchcock sabe-o. E de tal maneira Hitchcock está seguro deste conhecimento que não hesita em provocar a identificação do público com o assassino: toda a sequência do cadáver escondido no saco de batatas tem o mecanismo do suspense baseado no «medo» virtual que o espectador pode sentir de que o assassino possa ser apanhado. A transferência sucessiva que o filme propõe dos pontos de vista prováveis do espectador (ora receoso pelas vítimas, ora receoso pelo falso culpado, ora receoso pelo próprio assassino) não é somente um exercício de estilo em que Hitchcock continua a ser incomparável, mas a finalidade do próprio filme.
84
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Que uns expiem as culpas dos outros é um puro acaso que a justiça e a ordem, a seu tempo, se encarregarão de remediar. Para tanto, Hitchcock esgravata o polimento das superfícies, arrisca-se ao fundo das aparências, tem a ousadia de enganar sistematicamente o espectador, de o distrair, de o desviar para a descoberta da «verdade», a sua verdade, de o encaminhar no sentido da «justiça» e da «ordem», sentido óbvio que, em última análise, constitui a obsessão máxima do mestre. A falsa inocência do plano consiste então em ocultar esses desvios de sentido, das aparências para a verdade, como se a ficção fosse providencialmente comandada por um cineasta-Deus. Todos os vestígios (pó de arroz, pó de batata) foram deixados na representação para que o inspector da Polícia descubra o verdadeiro assassino, tal como nos planos são deixados os vestígios de outra verdade, a do cinema, que a ficção comporta. Por exemplo, raramente o cinema inglês nos terá falado das aspirações sociais da classe média inglesa com o espírito da incisão e a ironia com que Hitchcock o faz através das refeições caseiras do inspector da Polícia. Como raramente o próprio sistema hitchcockiano terá sido definido numa frase apenas (aquela que o inspector lança ao estrangulador das gravatas quando o apanha em flagrante: «Já reparou que está sem gravata ?»): as normas respeitamse porque representam valores que asseguram a boa harmonia das coisas. Hitchcock respeita o estilo a que habituou os seus espectadores porque ele oculta também, tanto na produção como no consumo, o mais seguro dos valores comerciais, a suprema harmonia da indústria cinematográfica. 2. Uma odisseia no espaço e no tempo A) A ciência e a política O facto de termos de nos contentar com uma incompleta imagem científica do universo físico não se deve à natureza do Universo, mas sim a nós próprios.» (Albert Einstein).
UM UNIVERSO FANTÁSTICO
85
Pode dizer-se que algumas das descobertas científicas do século XX ultrapassaram de longe as previsões mais fantasiosas das ficções do século anterior. O conhecimento humano alcançou fronteiras até há pouco ignoradas. A cibernética, a energia nuclear, a conquista do espaço e vários dispositivos militares capazes de aniquilarem o Planeta em poucos minutos são uma realidade e, no entanto, cerca de um terço da população mundial continua a passar fome, a não ter assistência médica e a ignorar os benefícios de uma aquisição científica para nós tão banal como a electricidade. Significa isto que a investigação científica, sendo sem dúvida um dado indispensável da noção de progresso, nem sempre se reflecte imediatamente numa melhoria das condições de vida das populações. É que o conceito de progresso não pode ser apenas encarado como um avanço quantitativo e qualitativo do ser humano no campo do saber, mas deve sobretudo tomar em consideração o uso social que desse saber se faz. Daí a conclusão de que a ciência não é socialmente neutra, mas sempre balizada por conflitos ideológicos e morais que se encontram politicamente determinados. Que actualmente a pesquisa científica dependa estreitamente do financiamento e das encomendas militares eis o que não é, por certo, arbitrário nem tranquilizador. Basta relembrar Dr. Strangelove, filme realizado por Stanley Kubrick em 1964, em plena institucionalização da chamada coexistência pacífica, para nos apercebermos, no traço subtil da caricatura, dos problemas acima levantados. Mas se a ciência é hoje, mais do que nunca, uma questão política, ela é também, por excelência, a questão filosófica do nosso tempo. Talvez que a ciência não responda ainda a todas as inquietações do homem, a dúvidas tão gastas afinal como o destino da Humanidade e o sentido da vida. Talvez que a resposta a estas interrogações se não deva procurar apenas na ciência mas também na ficção, na imaginação, numa especulação porventura delirante que ultrapasse o rigor científico para ganhar em dimensão filosófica. É este o campo mais ambicioso da moderna literatura de ficção científica. É este o terreno escolhido por 2001: Odisseia no Espaço.
Fazer um filme de ficção científica levanta alguns problemas práticos de difícil solução que podem eventual-
86
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
mente arruinar as melhores intenções de qualquer produção. Stanley Kubrick parece não ter poupado esforços (e dinheiro) para imprimir ao seu filme uma perfeição técnica irrepreensível. Depois de três anos de inquéritos junto das maiores firmas industriais e associações astronáuticas e científicas dos Estados Unidos e Inglaterra, contando com o apoio técnico de peritos da N. A. S. A., da I. B. M., da Vickers-Armstrong, da Pan-American, entre outras, e tendo por colaborador no argumento o nome de Arthur C. Clarke, que é não só um notável escritor mas também um conhecido cientista e um dos animadores da Britsh Interplanetary Society, Stanley Kubrick pode orgulhar-se de ter realizado uma obra de indiscutível rigor científico, Na realidade, especialistas como o Dr. Marvin Minsky, professor de Cibernética no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, e o Dr. John Good, do Trinity College de Cambridge, afirmaram que a vida no ano 2000 será muito provavelmente como a vemos em 2001: Odisseia no Espaço e que então «será fácil fabricar computadores que compreendam a linguagem do homem e conversem com ele». Mas o mérito do filme de Kubrick não se revela apenas ao nível da preocupação documental e das intenções didácticas. Situa o homem numa sociedade que surgirá dentro de trinta anos e coloca-o perante forças desconhecidas de que ele tem necessidade de começar já a tomar consciência. 2001: Odisseia no Espaço aborda, entre outros, dois problemas clássicos da ficção científica: as relações do homem com a máquina e a possibilidade de existência da vida extraterrestre. B) O aprendiz de feiticeiro Tecnicamente mais eficiente do que o homem, o computador HAL 9000 não admite qualquer possibilidade de erro nas suas resoluções. Errar é humano, é um luxo perigoso a que o computador do futuro se não pode permitir. Mas as características fundamentais deste sensacional computador não se limitam à sua perfeição técnica. Foi programado para possuir sentimentos como qualquer simples ser humano, para sentir inveja ou medo se para tal
UM UNIVERSO FANTÁSTICO
87
lhe derem oportunidade. O puro ser cibernético será então capaz de se programar a si próprio, desenvolvendo uma inteligência autónoma susceptível de se revoltar contra o homem, tal como acontecia com os robots de Capek. Assim, num futuro próximo o homem encontrar-se-ia dominado por inteligências exteriores mecanizadas, entregue a uma escravidão que ele próprio forjara ao tentar encontrar o caminho da perfeição. E o aviso proposto por Kubrick e Clarke não fica por aqui. À humanização da máquina corresponde uma desumanização progressiva do homem, agindo de modo automático às ordens e aos conselhos que lhe dirige o computador. A pouco e pouco gera-se uma tensão de relações sociais normais e, consequentemente, surge um desajustamento de personalidade que vai conduzir a um novo tipo de angústia existencial. Evidentemente que esta posição ultrapassa a necessidade de integrar no filme um conflito dramático à estruturação da acção para ganhar um simbolismo trágico onde o homem do futuro (e do presente) regressa ao mito do aprendiz de feiticeiro. Se é verdade que o homem se constrói destruindo-se, é necessário aprofundar a análise de tal posição e ver até que ponto esta crítica pode possuir um carácter positivo. E, se pretendemos estabelecer uma diferença nítida entre os dois modos antagónicos de abordar o problema é porque ultimamente se tem verificado uma grande aceitação por parte do público de determinados filmes, francamente reaccionários, que podemos perfeitanente incluir nos temas de antecipação. Estamos a referirnos às séries dos agentes secretos tipo James Bond, onde, para além do perigo da sua ideologia fascizante e do carácter duvidoso dos seus processos éticos, o progresso científico nos aparece sempre ao serviço das forças do mal, utilizado por loucos que são geralmente grosseiras caricaturas de um totalitarismo abstracto. Claro que através deste prisma facilmente se poderá concluir do perigo da ciência e das vantagens de uma autoridade repressiva abertamente colocada ao lado de um «utópico» imobilismo social e científico. Desnecessário será mostrar a intenção falaciosa e demagógica invariavelmente contida em tais filmes. Ora, se Kubrick nos tenta mostrar também os possíveis perigos do progresso científico, a sua posição parece-
88
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
-nos completamente diferente. Sem cair na parábola fácil Kubrick elabora uma ambiciosa previsão didáctica onde o desafio à máquina e ao espaço nos surge como um desafio que o homem lança a si próprio em busca de uma superação que o conduz ao mundo distante do conhecimento total, onde, tal como nos sugerem as últimas imagens do filme, do apocalipse final, o homem possa renascer transformado. A este nível 2001: Odisseia no Espaço é uma apologia da ciência e a ficção o seu desenvolvimento natural, se aceitarmos a ficção como uma hipótese a discutir e não como uma fábula de velado intuito moralizador, se considerarmos a ficção como uma tentativa válida de apreensão do real e não como um jogo arbitrário da imaginação romanesca. Todavia, a autonomia da ciência não elimina o problema ético individual do homem nem pode fazer esquecer as novas relações morais que se estabelecem entre o homem e uma máquina perfeita que tem sentimentos, complexos, e é capaz de matar «voluntariamente» a tripulação de uma astronave para pôr em segurança uma importante missão espacial de que só ela conhece os segredos. É aqui que o tom documental da obra, demasiado imbuído de propósitos divulgativos, prejudica a economia dramática do conflito, fazendo os autores descurar determinados problemas escatológicos com que se debatem os cosmonautas. Do ponto de vista psicológico e moral, até que ponto está o homem preparado para acompanhar o desenvolvimento científico que elabora? C) A vida extraterrena Uma das teses interessantes do filme consiste no facto de se afirmar, embora de maneira ambígua, que a existência de inteligências extraterrestres é muito anterior ao aparecimento do homem na Terra. A sequência inicial confere ao filme uma originalidade que define perfeitamente os autores perante o assunto que se propuseram tratar. Os símios que, depois da descoberta de um misterioso monólito negro, adquirem reflexos e inteligência suficiente para utilizarem, como prolongamento do braço e da sua
UM UNIVERSO FANTÁSTICO
89
força, um instrumento artificial, iniciam um lento processo histórico de hominização que vai marcar a face do Universo. Com a constituição do fenómeno humano não surge uma nova espécie, mas surge uma nova forma de vida, que se irá sobrepor a todas as outras, dominando e transformando a própria Natureza. Porém, e se outras formas superiores de vida tivessem existido ou existissem na imensidão do espaço e do tempo que nós ainda não controlamos totalmente? Qual seria então a posição do homem no Cosmos? E hoje um facto assente que a maioria dos sábios não hesita em afirmar que muitos dos meteoritos recentemente caídos no nosso planeta contêm vestígios de vida extraterrena. Qual a forma de que essa vida se pode revestir é afirmação que, pelo menos até agora, ninguém se aventurou a assegurar. O próprio Arthur Clarke disse algures: «Uma vez que só a estrutura importa, não poderão o espírito e a inteligência existir sem o suporte da matéria? Não poderão existir na relação entre puras entidades como os circuitos electrónicos e as cargas de radiação ?» Se, pelo nosso lado, duvidamos em aceitar o misticismo latente desta posição, isso não impede de reconhecer a possibilidade da hipótese implícita no primeiro episódio de 2001: Odisseia no Espaço. A não ser que o famoso monólito negro não fosse um vestígio de inteligência extraterrestre, planetária ou mesmo divina, mas, afinal, a memória fabulosa e indestrutível de uma outra civilização humana, remota, perdida na vertigem do espaço e do tempo que, tal como parece ser o caso da nossa, não tenha resistido ao perigo de um saber-poder incontrolado. Neste sentido, quase seríamos tentados a afirmar que 2001 é a continuação de Dr. Strangelove, sendo aquele a versão optimista deste. Num como noutro filme estamos ainda na «pré-história da Humanidade», na alvorada de uma civilização que ponha de facto a ciência e a técnica ao serviço do progresso social e humano, do bem-estar de todos os homens, de modo que não possam servir para cavar ainda mais divisões, para instaurar o medo e a insegurança e, quem sabe, talvez para destruir o próprio homem. O cunho deliberadamente polémico das imagens finais vem reforçar o valor experimental que sentimos ao longo de todo o filme através de uma imagem minuciosamente
90
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
trabalhada para nos fazer participar do gosto de um esteta requintado, entregue constantemente a uma composição de elementos visuais e sonoros que poderiam muito bem estar na base de uma nova concepção da space-opera que só o cinema está em condições de realizar. Kubrick não se esquece um minuto sequer de que cinema significa também espectáculo. E é um espectáculo fabuloso o que ele nos oferece neste caleidoscópio de écran panorâmico onde a beleza plástica da imagem chega a atingir as raias de um abstraccionismo dinâmico em constante metamorfose. Com 2001 Stanley Kubrick não realizou apenas uma odisseia no espaço e no tempo, a sua tentativa de filme é também uma odisseia no cinema. Um cinema do futuro acaba de surgir.
IV A POLITICA DOS AUTORES 1. No reino de Orson Kubla Bane A) Os géneros e os estúdios Com o início da segunda guerra mundial, na Europa, e a consequente redução do mercado continental tudo levava a crer que a produção cinematográfica norte-americana viesse a sofrer, no despertar dos anos quarenta, uma alteração substancial. Para mais, o Governo tinha tomado medidas (que então se julgavam severas) para acabar com os monopólios em cadeia (produção-distribuiçãoexibição) e, a partir de 1937, as salas de cinema, nos Estados Unidos, deixaram de ser obrigadas a contratar «às cegas» — como então se dizia — toda a produção anual dos estúdios com os quais tinham contratos rígidos, quando essas mesmas salas não eram propriedade das próprias empresas que possuíam os estúdios em Hollywood. O rendimento anual bruto de Hollywood, entre 1939 e 1940, baixou de um terço e várias medidas de austeridade económica, com vistas à redução do preço médio das produções correntes, foram progressivamente postas em prática, a principal das quais veio a determinar todo o sistema de produção de Hollywood: compartimentou-se ainda mais a produção em géneros com convenções particulares ( o que fazia, por exemplo, que o mesmo cenário servisse para inúmeros filmes) e os estúdios passaram a assegurar uma especialização rotineira em determinados géneros cinematográficos. Assim, a Metro dedica-se ao melodrama e à comédia musical, a Warner vota-se ao filme de aventuras e à promoção espectacular de Bette Davis, a Paramount ilustra-se nas comédias, de que Lubitsch e Preston Sturges serão os representantes máximos, a Colúmbia, a
92
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Fox e a Universal procuram atrair os mercados social e culturalmente subdesenvolvidos, sobretudo a América Latina (mas não só), conciliando os westerns e as produções exóticas — Carmen Miranda na Fox, a série das Mil e Uma Noites na Universal — com as vedetas de acentuada mitologia erótica. Na R. K. O., que foi talvez a primeira companhia de Hollywood a ser inteiramente formada por capitalistas ligados à grande banca americana (Rockefeller-Morgan), a produção equilibrava-se com os filmes considerados de série B, que hoje se contam, no entanto, como alguns dos mais interessantes da década de quarenta. Se, por um lado, o cinema de géneros, apoiado no culto da vedeta, se mostrava particularmente sedutor, na medida em que tinha um custo de produção controlado e satisfazia os gostos condicionados do público, por outro lado, os produtores nunca desistiram de procurar as grandes fontes de receita e as operações de prestígio, que, muitas vezes, se encontravam num mesmo filme. B) Reinventar o cinema A entrada fulgurante de Orson Welles, com 25 anos apenas, nos estúdios da R. K. O., precedido pelo mito de menino prestígio que ele sempre favoreceu, assinala, porventura de modo exemplar, o fascínio que sobre os homens de negócios sempre exerceram os «artistas», a partir do momento em que estes se tornam comercialmente rentáveis, como é óbvio. De resto, toda a carreira de Orson Welles, como a de Stroheim, por exemplo, é um sintoma dessa posição ambígua, ora privilegiada ora maldita, que os «génios» encontraram na engrenagem de Hollywood: recebido com uma pompa e uma oferta de trabalho invulgares, Orson Welles foi, assim que os seus dois primeiros filmes se revelaram um desastre financeiro sem apelo, sistematicamente afastado dos projectos que ambicionara. É que os filmes de Welles nunca foram facilmente catalogáveis nos tais géneros a que a produção de Hollywood habituara os consumidores. Entretanto, em 1940, com a garantia de um contrato sem precedentes na história de Hollywood, Orson Welles
A POLÍTICA DOS AUTORES
93
compromete-se a fazer um filme por ano, do qual ele será, simultaneamente, o produtor, o realizador, o argumentista e o intérprete, sem que o estúdio tenha o direito de vigiar o seu trabalho ou alterar a montagem. Como cachet nada menos de 150 000 dólares de entrada para Citizen Kane e 25 por cento dos lucros de todos os filmes que viesse a realizar. O Mundo a Seus Pés (Citizen Kane — 1940) será o primeiro e o único filme de Welles realizado em semelhantes condições. O que mais surpreende nas críticas da época a Citizen Kane, tanto na América como na Europa, é o sublinhar insistente da técnica utilizada por Welles. À excepção de André Bazin, na fase antiga dos Cahiers du Cinéma, raros foram os críticos a assinalar que o factor importante não residia na inovação «milagrosa» da linguagem cinematográfica, de que a técnica seria o cúmplice indispensável, mas sim no carácter sistemático com que quase todos os processos e recursos do chamado cinema clássico eram inventariados (um pouco como Kane colecciona estátuas, objectos de arte e pessoal) e, por assim dizer, reclassificados. Entre Griffith, Eisenstein e Godard, Orson Welles ilumina uma etapa indispensável na evolução das formas cinematográficas. O partido das objectivas de curta focal, a obsessão da profundidade de campo, a construção de cenários com tecto, a colocação baixa da câmara, a direcção vincada dos actores, o recurso dos planos-sequência, a fragmentação temporal, a iluminação antinaturalista, não eram aplicados pela primeira vez no cinema (pouco importa aqui apontar exemplos, mas eles não seriam difíceis de encontrar em Murnau, Stroheim e Renoir), mas propõem decerto, em bloco, uma função primeira, que, do ponto de vista de Orson Welles, se pode designar como sendo a sua assinatura de autor. Welles não inventa mas assimila o cinema, digere-se, consome-o no próprio trabalho de sua produção. Quer dizer que Citizen Kane é não só um inventário de temas caros à ideologia oficial americana mas um índice de recursos, técnicos e estilísticos, que procura fechar (mais do que abrir) um capítulo na história do cinema americano. Orson Welles apresenta-se um autor completo, como tal contratado, como tal pago, como tal decidido forçosamente a assinalar no filme os traços da sua prepotência.
94
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
C) A marca do autor Porém, a força de inscrição do nome do autor no funcionamento do filme faz que este perca (no que ganha), em grande medida, o carácter realista, que, desde início, tanto Orson Welles como o director de fotografia, Gregg Toland, lhe procuraram dar. O próprio Toland escreveu: «Queríamos que o público tivesse a impressão de estar a olhar não um filme, mas sim cenas tiradas da realidade.» E mais adiante: «As cenas e as sequências devem ter uma progressão tão suave que o público se não aperceba da técnica de construção.» Ora, precisamente, ao contrário do que propunha a tradição da transparência no cinema americano clássico, de que Howard Hawks com a famosa câmara à altura do homem — é o mestre incontestado, Orson Welles exige os sinais da sua presença no filme, não só à frente como atrás da câmara, o que vai irremediavelmente contra a noção ambígua de realismo, expressa tanto no texto de Toland como na estética idealista de André Bazin. Não é por acaso que Orson Welles, sentindo porventura as contradições do seu método, insiste no emprego da objectiva 18,5 e no formato estandardizado contra os novos superformatos: pretende-se, seja como for, que a «visão» da objectiva coincida com a do olho humano, uma vez que «um filme não é realmente bom senão quando a câmara é um olho na cabeça do poeta», segundo as palavras de Orson Welles. Se é evidente, em Citizen Kane, o carácter narcísico de tal atitude, reforçada pelo personagem interpretado pelo próprio Orson Welles, não é menos verdade que se trata também de fazer trabalhar a mise-en-scène tendo em vista a mesma finalidade, que é, essencialmente, a de obter a todo o custo um suplemento de realismo. Escreve André Bazin (in Qu'Est-Ce Que le Cinéma?, vol. 1): Toda a revolução introduzida por Orson Welles parte da utilização sistemática de uma profundidade de campo inusitada. Enquanto a objectiva da câmara clássica foca sucessivamente os diferentes lugares da cena, a objectiva de Orson Welles inclui com
A POLÍTICA DOS AUTORES
95
igual nitidez todo o campo visual que se encontra simultaneamente no campo dramático. Já não é a planificação que escolhe o que devemos ver, conferindo-lhe assim uma significação a priori, é o espírito do espectador que se encontra obrigado a discernir na espécie de paralelepípedo de realidade contínua que tem o écran por secção o espectro dramático particular à cena. E, portanto, à utilização inteligente de um processo preciso que Citizen Kane deve o seu realismo. Graças à profundidade do campo da objectiva, Orson Welles restitui à realidade a sua descontinuidade sensível. Para Bazin, se a profundidade de campo fornece ao filme um suplemento de realismo é porque o cinema está, no seu sistema estético, predestinado a aperfeiçoar o seu «realismo ontológico»: o quadro que limita o plano seria uma janela aberta para o mundo, e a ficção identificar-se-ia com o real. D) A liberdade do olhar Como juntamente nota Gerard Leblanc (in Cinétique, n.° 6), a utilização dos processos acima descritos — nomeadamente a profundidade de campo e o plano-sequência — tem efeitos ideológicos precisos. Ao contrário do que acontece com a ditadura de sentido nos filmes de Einstein, nas sequências em profundidade de Orson Welles descobre Bazin a possibilidade de o espectador dirigir a consciência até ao sentido último das coisas e de libertar o olhar, na medida em que pode optar, na superfície do écran, pela procura da sua própria verdade, pela essência das «coisas tal como elas são». Justamente, toda a referência idealista começa e acaba com a impressão de realidade. Assim, a representação cinematogáfica procuraria dar a ilusão de que o Mundo está presente no écran. O erro fundamental da estética idealista no cinema é tomar a imagem pela coisa, confundir o significante com o referente. Ora se julga que o filme toma presente o mundo real, ora se acredita que o universo fílmico coincide com o universo interior de um
96
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
sujeito (o autor). O discurso idealista sobre o cinema não designa o filme como o resultado específico de um processo de produção, antes o concebe como uma relação simples, imediata, transparente, entre um mundo exterior (a realidade) e um mundo interior (o sujeito, o cineasta). Aproximando-se do carisma cristão do livre-arbítrio Bazin mais não faz que dar caução, de um modo empírico, às intenções humanistas de Orson Welles. No fundo, a liberdade que cada espectador tem, virtualmente, de descobrir no filme a secção de verdade que mais lhe interessa corresponde à perspectiva sob a qual é organizado o material da ficção e definido o personagem central de Charles Foster Kane. O jornalista que, no filme, faz o inquérito sobre o «cidadão Kane» procura justamente aquilo que Orson Welles mais violentamente pretende recalcar: um ponto de vista, isto é, uma posição ideológica não marcada pela ambiguidade. É hoje um lugar-L= comparar as diversas opiniões que os outros personagens têm de «Charles Foster Kane» a um enorme puzzle a que faltam algumas peças, comparação essa subtilmente sugerida pelo próprio filme (nas cenas em que Susan Alexander, abandonada ao tédio do castelo «fantasma» de Xanadu, compõe jogos de paciência, puzzles). A ideia de que a verdade, ou a objectividade, sairá forçosamente do resultado final da soma de vários pontos de vista diferentes constitui uma tara comum a todas as ideologias pequeno-burguesas, a começar, evidentemente, pelos programas liberais e democráticos, em que certamente podemos filiar o cineasta Orson Welles mas não o «cidadão Kane». Não é arbitrário que, por diversas ocasiões, Charles Foster Kane recuse qualquer filiação política acima do fascismo e do comunismo: ele será apenas um americano, nada mais do que um americano. Orson Welles será apenas um cineasta, nada mais de que um cineasta. Parte-se do princípio de que toda a gente sabe quanto custa ser apenas um americano e ser apenas um cineasta. O grande mérito do filme não será, pois, o de querer conciliar, numa síntese ideal (como abusivamente faz o Jornal de Actualidades que Welles caricaturiza), as versões particulares que se apresentam da vida de Kane, mas confrontar e provocar as diferentes ficções que formam
A POLITICA DOS AUTORES
97
a teia do filme. As narrações sucessivas que organizam Citizen Kane são por sua vez organizadas por uma narração outra que as transforma: Kane coincide com o mito que ele próprio forjou — que o filme de Welles forja — e nada resta senão a memória de uma ausência. 2. Mankiewicz: autópsia de uma retórica A) O poder da palavra
Dos mestres que aperfeiçoaram a retórica do cinema americano clássico, daqueles cujos filmes mais recentes assinalam a repetição exaustiva de temas e de estilos que hoje dificilmente surpreenderão alguém, de Hawks a Hitchcock, de Cukor a Wilder, de Preminger a Brooks, Mankiewicz é talvez aquele que melhor resiste à passagem do tempo, aquele que, continuando a servir-se do cinema com os propósitos que sempre o animaram, consegue ainda mostrar como os novos realizadores americanos como ele próprio diz — são apenas «impressionadores de pupilas», queixando-se ainda de que agora «vivemos numa época em que as pessoas já não ouvem os filmes». Isto porque o que interessa a Mankiewicz é a «oportunidade de examinar em profundidade tipos particulares de caracteres», convencido de que, no cinema, as «palavras são tão importantes como a objectiva». É possivelmente neste ponto que Mankiewicz se revela de unia confirmada modernidade, se tivermos em conta que os cineastas importantes da nossa década, de Rivette a Godard, de Staub a Bergman, de Eustache a Duras, são, antes do mais, cineastas da palavra. Portanto, contra o lugar-comum, tão difundido mesmo entre a tradição cinéfila, de que o cinema se limita à reprodução mecânica do movimento, Mankiewicz vem lembrar-nos, com esta admirável Autópsia de Um Crime, que o cinema pode começar apenas com um actor a falar e, sobretudo, com os actores a falarem das suas técnicas de representação até os personagens se tornarem suportes de um jogo em que o cinema é denunciado pelo teatro, o teatro é cons-
98
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
truído pela encenação, a encenação é conduzida pelo enigma da palavra. A virtude da fala nos filmes de Joseph Mankiewicz, de que Autópsia de Um Crime é um dos epígonos tardios e exemplares, não tem apenas a ver com a capacidade naturalmente narcísica da palavra (uma certa ideologia retórica que faz gravitar o sujeito à volta do seu discurso), mas tem, sobretudo, a ver com a vontade de os personagens inaugurarem, pela linguagem, a representação de um sentido oculto que contradiz ou mistifica deliberadamente o seu comportamento. Daqui que a mise-en-scène de Mankiewicz consista, em primeiro lugar, num progresso regular e contínuo (no que ele é ainda, afinal, um modelo típico do cinema americano clássico) que conduz o espectador da situação para a narração, da história para a descrição, da intriga para a emoção, da dúvida para a verdade, como se esta constituísse o ponto de chegada obrigatório do labirinto instaurado pela linguagem. Poder-se-ia, portanto, falar apenas da existência de um jogo de palavras em Autópsia de Um Crime, se as palavras não fossem aqui — como de resto é comum o suporte de uma lógica manhosa que exige do interlocutor ( do outro) a cumplicidade ou a destruição, a fraqueza ou a competência. Se é verdade que o discurso artístico pode ser definido como uma exploração cada vez mais vasta e mais profunda das possibilidades da linguagem específica que o informa, então aceitar-se-á facilmente que os dois personagens do filme de Mankiewicz assumam o seu jogo de palavras como uma arte (as boas maneiras, o cumprimento das regras, o saber viver) a que, certamente — como diz Laurence Olivier —, só os «espíritos superiores» saberão ou poderão entregar-se. B) O discurso da democracia Como nos habituou a tradição liberal dos cineastas americanos, Mankiewicz aposta, evidentemente, na possibilidade que todos têm (e não apenas os espíritos superiores, que ele, de resto, procura ridicularizar na figura do escritor policial aristocrata) de se entregarem ao jogo da vida
A POLÍTICA DOS AUTORES
99
e, melhor ainda, de transformarem a humilhação provisória numa vitória definitiva, mesmo se essa vitória se paga — como é o caso no filme— com a morte, único desfecho em que a batota não tem lugar. E talvez isto que leva Mankiewicz, com muita habilidade e pouca ingenuidade, a mimar, no duelo simbólico dos dois personagens, a luta de classe, como se os conflitos sociais se pudessem reduzir com tanta facilidade a sinais abstractos de uma atitude moralista que se justifica por si própria. Se todos têm possibilidade de se entregarem ao jogo da palavra é porque esta se revela não só o veículo privilegiado da consciência individual como ela é, sem dúvida, a mais consistente propriedade das virtudes democráticas: Hollywood sempre se apressou em demonstrar que cada um é mestre do seu discurso e do seu destino e que, muitas vezes, se não sempre, os dois se identificam. Não é por acaso que um teórico como André Bazin afirmava, a propósito das transformações introduzidas na linguagem cinematográfica pelo período sonoro: «A imagem sonora, muito mais maleável do que a imagem visual, reconduziu a montagem em direcção do realismo, eliminando assim, cada vez mais, tanto o expressionismo plástico como as relações simbólicas entre as imagens.» Ora, este realismo a que se refere Bazin não é outro, afinal, senão aquele que consiste em apagar os sinais da montagem como trabalho significante, dando, por consequência, à planificação e aos cortes de plano por raccord ilusionista uma preponderância que iria caracterizar praticamente todo o cinema de Hollywood, cinema este que os historiadores e os críticos designam normalmente pela noção de «transparência». C) Representação e planificação Se a questão da planificação clássica me parece particularmente pertinente no caso de Autópsia de Um Crime, não é por este ser um filme de estrutura nitidamente clássica (como continuam afinal a ser os novos filmes dos velhos mestres americanos de Viagens com a Minha Tia a Amor à Italiana, de Perigo na Noite a Amantes Desconhe-
100
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
eidos), mas, justamente, por ser um filme que, através de uma técnica de representação vincadamente teatral, procura regenerar as limitações estéticas e ideológicas da planificação à maneira de Hollywood. A planificação tradicional está ligada, no cinema, à ilusão da representação burguesa : a concepção metafísica de uma cena fílmica que reproduziria um determinado sentido já anteriormente existente. Bazin dava da planificação à maneira de Hollywood a seguinte definição : «Primeiro — verosimilhança do espaço, no qual o lugar do personagem se encontra determinado, mesmo quando um grande plano elimina o cenário; segundo — a intenção e os efeitos da planificação são exclusivamente dramáticos ou psicológicos.» Vemos, pois, como a função da planificação clássica reside sobretudo na vontade idealista de unificar e conciliar a cena fílmica enquanto reprodução e representação da cena social. A cena fílmica de Autópsia de Um Crime (digamos, para simplificar, que é um castelo isolado, protegido por um jardim labiríntico), modelo perfeito do espaço contínuo, homogéneo, orientado e ilusório que caracteriza o cinema clássico, encontrando-se minuciosamente repartida e codificada como sendo a cena do diálogo, isto é, o lugar da palavra, o centro do debate, o altar da ideia. Existe no filme uma homologia rigorosa entre a transparência da planificação (a ocultação da montagem e das rupturas de espaço e de tempo) e a transparência da palavra (o sentido do discurso manipulado pelo jogo da palavra). Ora, se os conflitos se cristalizam única e exclusivamente na palavra (o princípio e o fim são, aqui, o verbo) é porque a cena fílmica clássica, tal como acima foi definida, tem por principal função dissolver e unificar qualquer sintoma de contradição. O que é conseguido, em última análise, pela autonomia completa que a cena fílmica adquire em relação à sociedade: nunca existe qualquer tensão dialéctica entre o exterior concreto social e a cena simbólica em que o filme se inscreve. E isto porque a cena simbólica tem, precisamente, a pretensão de se assumir como modelo reduzido, microcosmos de toda a sociedade. Este princípio, que é, no fundo, o princípio subjacente aos modelos do cinema americano clássico, que
A POLÍTICA DOS AUTORES
101
tendem quase sempre dar uma autonomia muito cerrada aos locais da acção (o mundo do crime nos policiais, a alta sociedade nas comédias sofisticadas, o Oeste mítico nos westerns, o sonho e o espectáculo nos musicais, etc.), encontra-se, de alguma maneira, justificado em Autópsia de Um Crime pela insistência com que Mankiewicz denuncia os artifícios (a teatralidade) do local de acção (um palco recheado de adereços funcionais e de personagens que, entre o primeiro e o último plano do filme, adquirem momentaneamente um corpo e uma voz). Quer isto dizer que a cena filmica não mima uma cena social, mas, simplesmente, uma cena teatral (em última análise, a peça original de Anthony Shaffer) em que o texto escrito (as palavras dos actores) não esconde o seu carácter convencional, persuasivo, mistificador. A partir daqui Mankiewicz pode permitir-se o exercício da planificação certeira, mostrar em evidência os actores quando falam, segui-los através do cenário, apanhá-los sempre do ângulo mais favorável, porque o que interessa agora é forçar pela mise-en-scène a ilusão de que o espaço, o tempo e a palavra saberão sugerir, pela clareza do drama, os caminhos que, no labirinto do espectáculo, nos hão-de conduzir à descoberta da «verdade». 3. O corpo e a voz de Jerry Lewis Durante muitos anos, o actor Jerry Lewis foi inseparável de um outro actor que, como Jerry, tinha sido cómico e cantor de cabaré: Dean Martin. Desde 1949, ano em que se estreou no cinema, até 1956 Jerry interpretou com Dean Martin dezasseis filmes para a produtora Paramount, os mais interessantes dos quais foram dirigidos por Frank Tashlin. Depois de se ter separado de Dean Martin, apenas como actor, Jerry Lewis interpretou mais de vinte filmes, nem todos à altura das suas capacidades e do seu prestígio, coisas com que a máquina comercial de Hollywood nem sempre se preocupa. Como autor de cinema, Jerry Lewis produziu, escreveu, realizou e interpretou nove filmes entre 1960 e 1970. Portanto, para o espectador menos atento, aqui fica o aviso: distinguir os filmes em que entra
102
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
o actor Jerry Lewis dos filmes realizados (e normalmente interpretados) pelo cineasta Jerry Lewis. Hoje pode-se afirmar, medindo a responsabilidade das palavras, que Jerry Lewis, enquanto autor dos seus filmes, é, depois de Buster Keaton e de Charlie Chaplin, o cineasta mais importante da história da comédia cinematográfica norteamericana. As Noites Loucas do Dr. .Jerryl é o quarto filme dirigido por Jerry Lewis e aquele que marca decisivamente na sua obra um certo número de preocupações que o cineasta vai desenvolver de um modo sistemático e crítico. Assim, por exemplo, como em Jerry 8 e 3 / 4 , As Noites Loucas do Dr. Jerryl é, em primeiro lugar, uma reflexão sobre o cinema clássico de Hollywood, nomeadamente sobre a noção de «género cinematográfico» e sobre a mitologia própria que informa as variações dentro de esquemas antecipadamente definidos. Desde os heróis dos filmes de terror até aos galãs cantantes, de que Dean Martin era o protótipo nos filmes anteriores, tudo serve a Jerry Lewis para pôr em causa e meter a ridículo os lugares-comuns de um universo que o cinema de Hollywood ajudou enormemente a criar e a difundir. Ninguém melhor do que um cineasta, em princípio, deverá conhecer o poder das aparências e é com as aparências que Jerry Lewis joga para desmascarar, no sentido literal da palavra, os seus personagens típicos. O Buddy Love, que simboliza toda uma geração de play-boys cinematográficos (à maneira de Dean Martin, de Sinatra ou de Elvis) por quem as meninas se apaixonavam, é apenas a composição de um corpo e de uma voz que o actor Jerry Lewis transforma à nossa vista para melhor nos apercebermos da técnica do seu trabalho e dos propósitos dessa técnica. O mesmo corpo e a mesma voz, com aparências diferentes, são também a matéria que define o tímido Julius Kemp, professor universitário que as meninas olham com indiferença, se não mesmo com desprezo. Esta transfiguração, de professor de Química a sedutor oficial, que Jerry Lewis vai buscar a uma tradição cultural facilmente reconhecível (O Médico e o Monstro, de R. L. Stevenson), serve não apenas para indicar o estatuto social das aparências numa sociedade enfeudada às ilusões mais hipócritas (cena final da festa de gala em que Buddy
A POLÍTICA DOS AUTORES
103
Love se transforma progressivamente em Julius Kemp), como aponta, da mesma maneira, os meios específicos de que se serve o actor. Neste sentido, é característico que o tema dominante de todos os filmes de Jerry Lewis seja precisamente o do desdobramento da personalidade: dirigido pelo realizador Jerry Lewis o actor Jerry Lewis interpreta personagens que se desdobram, que mudam de aparências e que nessa mudança arrastam consigo um desencadear de equívocos significativos. A fim de conquistar a mulher dos seus sonhos, o professor Julius Kemp submete-se a uma «rigorosa» preparação, física e mental, para se transformar naquilo que ele efectivamente não é. Uma fórmula mágica (e porque não, se Artaud comparou o teatro com a alquimia), conseguida depois de horas de pesquisa demorada no seu laboratório, dá-lhe inesperadamente a satisfação dos seus desejos — só que Buddy Love já nada tem em comum, aparentemente, com o professor Kemp. Aparentemente, porque eles continuam a ser duas figuras do mesmo corpo e da mesma voz. O que é um actor senão um homem que empresta a seres imaginários o seu corpo e a sua voz? Pois os filmes de Jerry Lewis são também uma reflexão profunda sobre o trabalho do actor no cinema. A propósito, será preciso acrescentar que Jerry Lewis é, igualmente, um dos maiores actores do cinema moderno e que todo o cinema de ficção é, a este nível, teatro filmado ? 4. O «charme» indiscreto de Luís Builuel A) O escândalo Mais para caracterizar a força explícita de uma obra que sempre escapou às classificações prefabricadas do que para insistir na piada de circunstância, contam alguns amigos de Bufluel que este, no dia da estreia do seu primeiro filme, Un Chien Andalou (1928), realizado com a colaboração de Salvador Dali, levava as algibeiras do casaco cheias de pedras para agredir os espectadores que o assobiassem. Se o facto é ou não verdadeiro pouco im-
104
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
porta agora nem consta da anedota o resultado imediato de tal atitude. O que consta, e o que se vai tornando um lugarcomum quando se fala do autor de O Charme Discreto da Burguesia, é a maneira como Luís Buriuel, perseguido pelas instituições que nos seus filmes sempre derrotou, foi sistematicamente afastado dos grandes circuitos da exibição. O seu segundo filme, L'Âge d'Or, celebrado por André Breton corno o único filme verdadeiramente surrealista de toda a história do cinema, foi, dois anos mais tarde, o alvo preferido dos galões da extrema direita, numa época em que a França, eufórica e inquieta, se preparava para assistir ao triunfo da intolerância. No dia 3 de Dezembro de 1930, vários comissários e representantes das ligas patrióticas, entre as quais a tristemente célebre Liga Antijudaica, invadem o estúdio das Urselinas, onde o filme de Builuel era exibido conjuntamente com uma exposição de quadros surrealistas, e proclamam bem alto os valores sagrados do cristianismo e da Pátria, que a película ousava enfrentar com uma subtileza e uma violência pouco vulgares. Builuel era formalmente proibido. Mesmo que o não fosse, o caminho do desafio seria o itinerário constante dos seus filmes, incluindo Tristana e O Charme Discreto da Burguesia, quarenta e tal anos depois, obras distinguidas pela exibição em salas de luxo nos Campos Elíseos, nas plazas de Madrid, nos grandes cinemas dos Estados Unidos e na Avenida de Roma, em Lisboa. É que, entretanto, Luís Builuel fora designado «mestre de cinema», honra máxima do Festival de Veneza (1969) e, logo depois, solicitado como glória nacional pelo governo do generalíssimo Franco. Quem não percebe o charme discreto da burguesia ? Mas, que se passou entrementes que levou este «mestre» esquecido, perseguido e humilhado a não voltar a Espanha depois da Guerra Civil e a aceitar, na América, um modesto emprego de arquivista no Departamento de Curtas-Metragens da Metro Goldwyn Mayer? Em 1932 realizara o seu primeiro filme espanhol, e isso era coisa difícil de perdoar: Las Hurdes, Terra sem Pão, retrato desencantado de uma realidade marcada pelo título, documentário agreste e intransigente, falado por Pierre Unik e acompanhado por Brahms, que os cineclubes
A POLÍTICA DOS AUTORES
105
exibiram durante muito tempo numa cópia usada até ao limite. Subitamente foi despedido do seu cargo da Metro, ao que parece porque um belo dia o senhor director da companhia descobriu por acaso a existência de um filme ateu chamado L'Âge d'Or, que de resto nunca obteve licença de exibição pública nos Estados Unidos. Por seu lado, Roman Gubern, seguramente um dos mais interessantes críticos e historiadores de cinema do país vizinho, conta que Bufíuel foi rapidamente recambiado da América, por ter-se recusado, em termos pouco amáveis, a dirigir uma película com a medíocre actriz Lily Damita, que era, na altura, a amante preferida de Irving Thalberg, dono da Metro e um dos mais influentes produtores de Hollywood de todos os tempos. Seja como for, Luis Bulduel entra no cinema mexicano pela mão de óscar Dancigers, que o contratara para rodar meia dúzia de melodramas comerciais. Se é verdade que Builuel não conserva hoje uma opinião muito favorável acerca da maior parte dos filmes que dirigiu no México entre 1947 e 1955, o certo é que raros são os críticos europeus conhecedores da obra de Buflue/ que não colocam esses filmes entre os mais extraordinários de uma carreira sujeita a todas as pressões exteriores. Comparem, por exemplo, Susana, Carne y Demónio com Teorema, de Pasolini, ponham lado a lado El com qualquer das películas de Polanski, e digam-me em que é que os filmes de Buãuel perderam em agressividade, espírito crítico, rigor e lucidez ? Revejam Labirinto Infernal e Ensaio para Um Crime e digam-me como seria possível, a partir de intrigas tão convencionais, subverter sistematicamente todos os valores morais em que acreditam os personagens e, provavelmente, os espectadores? Entre o México e a França, entre as produções comerciais e uma liberdade provisória, sempre seguro na intransigência moral de que os seus últimos filmes, quase sempre rodados em França, são a melhor prova, Bufruel regressa a Espanha em 1961 para realizar Veridiana, filme galardoado nesse mesmo ano no Festival de Cannes. Uma vez mais, a ideologia oficial espanhola, preocupada com
106
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
o enorme sucesso comercial e crítico do filme no estrangeiro, vota Bufiuel ao mais completo silêncio. No ano seguinte, com El Angel Exterminador, Luís Bufiuel não deixava lugar para mais dúvidas quanto ao que ele pensava do charme discreto da burguesia espanhola e dos seus delírios religiosos. Quem ousaria assim perturbar as mais firmes ideias da reacção ? De um só golpe, objectivo até à crueldade (no sentido exacto em que Artaud entende a palavra), afiando de filme para filme o gume da sua observação crítica, Bufiuel demole os valores estabelecidos da religião, da família e do Estado. E tudo isto com uma serenidade em que se não detecta um partido antecipado, uma intenção preconcebida. Aceitando que a estética nada tem a ver com a piedade, então Bufiuel limita-se como ninguém a verificar a gravidade das feridas que o rodeiam, guardando para o público todos os juízos de valor definitivos. É talvez nisto que os filmes de Luís Bufíuel são literalmente escandalosos — obrigam-nos a repensar as ideias feitas, mal feitas, e passivamente recebidas, a pôr em causa toda uma estrutura de relações sociais, em suma, a submeter o esquema mental de uma sociedade enfeudada às mais diversas formas de alienação. B) «Tristana» Em 1970, agora com um prestígio que já ninguém ousará pôr em causa, Bufiuel regressa a Espanha para rodar Tristana (segundo uma novela de Pérez Galdós publicada em 1892). Se soubermos que Bufiuel transfere a acção da novela original dos fins do século XIX para os anos vinte deste século (época da primeira ditadura militar em Espanha) e a localiza numa Toledo provinciana, identificada pelo anacronismo da sombra medieval, em vez de se concentrar no bairro miserável de Madrid que Galdós propunha, podemos talvez perceber melhor o que interessou Bufluel neste regresso irónico e forçado a uma Espanha que o imobilismo ideológico parece querer marcar com o cinzel da eternidade. Não é por isso de estranhar que alguns críticos avisados possam ter invocado a propósito de Tristana os nomes
A POLÍTICA DOS AUTORES
107
de El Greco, Goya ou Garcia Lorca. Quem melhor do que eles pode fornecer uma caução cultural sólida a este cineasta que jamais se preocupou com semelhantes referências? Mas quem melhor do que eles, também, pode fazer deslocar o verdadeiro sentido de um filme que, nada interessado em procurar os caminhos da «arte universal», mergulha decididamente no inconsciente de um estrato social mais actual do que nunca? Interrogado sobre algumas das obsessões que dominam os seus filmes, Luís Bui-1'nel explicou, a propósito, que considerava a pornografia uma característica essencial de todo o erotismo casto. Esta distinção necessária, exacta, base da ambiguidade axiológica dos seus filmes, vem de novo mostrar que o fim da crítica aberta de Buriuel coincide com todas as formas da autoridade paternalista e repressiva. Se é certo, como escreveu George Bataille, que o domínio do erotismo é por excelência o domínio da transgressão, devemos arriscar-nos a defender na perversão de Tristana a conquista de uni desejo merecido que os outros lhe negam. Que as leis foram feitas para favorecer os homens, corno diz a irmã de Don Lope, ou para manter o privilégio dos poderosos, como insinua o próprio Don Lope, é coisa de que Tristana não duvida. Pois não é da destruição da figura obsessiva do pai que se trata neste filme blasfematório que ousa apontar as coisas pelo seu nome, dando delas a imagem mais justa? São talvez as perversões mais repugnantes que melhor acusam a participação psíquica da transformação do impulso sexual. Por muito horrível que seja o resultado, encontra-se ali uma parte da actividade psíquica que corresponde a uma idealização do impulso sexual. A omnipotência do amor nunca se manifesta tão fortemente como nestes desvios. O que há de mais elevado e de mais baixo na sexualidade mostram por toda a parte as mais íntimas relações. (S. Freud.) O desenvolvimento dos impulsos de Tristana, a sua libertação da autoridade sagrada (dada, no filme, entre outros pormenores, pela maneira como ela se desliga das pantufas do pai-amante, passando da posição de ajoelhada
108
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
à atitude de desprezo), é paralelo ao movimento repressivo que leva Don Lope a integrar-se nas fronteiras da ordem e da reacção. De início posto à margem pela irmã (família) e pela força oficial (Estado), porque recusa os rituais da Igreja e porque não abdica dos seus ideiais libertários, Don Lope acaba por oferecer parte dos seus bens à esmola pública, acaba por casar na Igreja e receber à mesa, agora confortável e recheada, a voracidade alegre dos curas locais. Objecto de uma interdição de que o seu pai-amante extrai uma densa satisfação, Tristana depressa aprende que o desejo exige da sua experiência pessoal a violação de todas as regras que lhe são impostas pelo puritanismo ( exemplo: cena em que os amantes são censurados por se beijarem na rua). Assim, Tristana recusar-se-á a casar com o homem que ama: se o casamento é o pior inimigo do erotismo é justamente porque organiza a sexualidade dentro de um esquema institucional, que a torna lícita, logo casta, obscena no dizer de Bufiuel. Quem não se engana é o padre confessor de Tristana, que a aconselha a casar com o tutor, precisamente para santificar uma situação até então pecaminosa, quer dizer, perversa ou desejável. Não se engana mas não compreende Tristana, como não compreendeu o filme — creio bem — que nele não viu a mais implacável das lutas contra a pornografia, isto é, contra uma sociedade mumificada que faz da repressão sexual e da hipocrisia os seus pontos de honra. Luta implacável, disse eu, porque o regresso de Tristana a casa do pai-amante mais não é do que o encontro decisivo com as armas por ele escolhidas: um duelo de morte. C) O charme discreto O Charme Discreto da Burguesia, galardoado este ano em Hollywood com o Oscar para o melhor filme estrangeiro, vem consagrar definitivamente o nome de Luís Bufluel entre os valores reconhecidos pela indústria cinematográfica norte-americana. Depois das operações de recuperação efectuadas em Veneza e em Espanha, é a vez de Hollywood fazer esquecer
A POLÍTICA DOS AUTORES
109
o desprezo que durante tantos anos votou a um dos mais extraordinários realizadores de toda a história do cinema. Aos 73 anos de idade, «esquecidas» as perseguições com que as censuras de vários países o reduziram ao silêncio forçado, Luís Bufiuel recebe finalmente carta branca para rodar os filmes que quer, mais bem pago do que as suas vedetas. E, desta vez, como é seu costume, Bufluel volta a falar da burguesia. De um certo encanto, o «charme discreto» pode dizerse que ele reside, em primeiro lugar, numa táctica defensiva da aparência e do disfarce que, tanto pela sua perfeição como pela teimosia, substitui o ser pelo parecer e a apresentação pela representação. O burguês é, fundamentalmente, um ser civilizado, educado na tradição dos vários manuais de civilidade. Se alguma coisa define, à partida, os burgueses do filme de Bufiuel é certamente a consciência permanente que eles têm de estarem a ser observados pelos outros. De resto, o seu espaço quotidiano, preenchido pelos salões de luxo, pelas salas de jantar com a mesa posta, pelos quartos de cama disponíveis, é o cenário ideal das farsas e dos melodramas que, nos teatros das avenidas, têm feito as delícias do hábito burguês pelo exibicionismo mundano e por um prestígio social que encontra na hipocrisia, no «charme discreto», a sua razão de ser. O «charme discreto» tem, portanto, as suas regras, determinadas pelo julgamento dos outros. Por exemplo, as «boas maneiras» obedecem a um código social e cultural que reduz o comportamento humano a um mero reflexo da situação dos preconceitos da classe que instituem esse código. Se o motorista do embaixador de «Miranda» desconhece que o martini deve ser mastigado aos poucos e não bebido de um só golo, como o vinho tinto, é porque ele nunca foi ensinado, preparado, «educado», realmente ensaiado para cumprir as regras desse jogo. A cena social a que pertence o motorista não é, pois, a mesma em que se movem o embaixador e os seus amigos burgueses, embora no espaço cénico do filme se marquem as diferenças evidentes que os separam. A bem dizer, só os burgueses têm lugar neste filme de Bufiuel, pois os que
110
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
não são burgueses não agem nem determinam, portanto, sentido da obra. Deste modo, se o comportamento social da burguesia é constantemente teatral, no sentido literal do termo, não admira que a discrição seja a vertente oposta, ou complementar, das suas preocupações. Tudo se passa com a maior naturalidade, como costumam dizer os públicos dos actores e dos filmes ou peças que procuram, precisamente, ocultar as técnicas de representação. Se a vida é, por definição, natural, porque não há-de a burguesia assumir com naturalidade o seu estatuto particular de classe? E é assim que, inculcando como naturais as suas boas maneiras de classe (os ricos carros, os belos vestidos, o beijamão, e as soirées elegantes, etc.), a burguesia procura legitimar o sistema de relações sociais que determina a sua posição privilegiada, ou seja, o seu poder económico e político. Porém, se os burgueses representam uns perante os outros naturalmente, na medida exacta em que a sua representação obedece a um código comum (daí a sua «naturalidade»), já o mesmo não acontece quando eles representam perante alguém que se encontra visivelmente excluído desse código. É ver, por exemplo, a diferença com que Cassel acolhe o bispo, quando este se apresenta vestido de jardineiro e, depois, de sotaina preta; é ver o modo como o embaixador de Miranda fala com Seyrig e com a jovem terrorista; é ver, finalmente, como todos fogem assustados do palco que os denuncia como personagens medíocres, actores de má memória. A autoridade ou o medo substituem a pretensa naturalidade. Mas se a memória atraiçoa invariavelmente os burgueses (Audran e Cassel logo no início do filme esquecemse de que têm, nessa noite, convidados para jantar; o bispo que confunde as pampas e as pirâmides sul-americanas com a paisagem da «República de Miranda», etc.), como se a memória curta apontasse ao de leve a evolução histórica da predominância burguesa, já o mesmo não se pode dizer das obsessões que, no filme, se cristalizam em forma de sonhos. Ensina-nos a psicanálise que o sonho é uma formação do inconsciente que remete sempre para vários elementos que podem organizar-se em sequências significativas difeo
A POLÍTICA DOS AUTORES
111
rentes, cada uma das quais, a um certo nível de interpretação, possuindo a sua coerência própria. De facto, se cada sonho de cada burguês, no filme de Buriuel, remete para vários elementos inconscientes que desembocam irremediavelmente no medo pela morte, real ou simbólica, do mesmo modo as várias sequências significativas diferentes em que os sonhos se organizam podem fazer parte de uma obsessão maior que garante a coerência do esquema mental da burguesia: e a morte é o fim dos privilégios de que na vida se usufrui. Quando, quase no fim do filme, o embaixador de uma república fascista da América do Sul acorda em sobressalto, depois de ter sonhado que um grupo político o assassinara, juntamente com os seus companheiros, e se dirige apressadamente para o frigorífico, bem recheado com a carne que, no sonho, o denunciou aos olhos dos terroristas, Builuel indica sem qualquer ambiguidade — como, aliás, a ciência do inconsciente nos propõe — que o sonho e a realidade adquirem exactamente a mesma dimensão dentro da economia dramática da obra. A partir daqui, seria necessário rever todo o filme, verificar até que ponto Buriuel joga de maneira dialéctica com a realidade e o sonho, tecendo com ambos a matéria de uma ficção que se interrompe a tempos regulares para denunciar os processos do seu próprio artifício e, por consequência, o carácter frustrante da intriga deliberadamente fragmentada. Enquanto os burgueses sonham inquietos uns com os outros, passeando paradoxalmente tranquilos num campo sem limites, protegidos pelos representantes do Exército, pelos dignitários da Igreja e pelos altos funcionários dos ministérios, Luís Buriuel mostra-nos como as várias formas sociais e individuais do complexo de castração se tornaram o lugar-comum de um determinado modo de vida, que tem, tal como a classe que o segrega, os seus dias contados. 5. Fellini: a memória excessiva A) Roma fabulosa Que Federico Fellini ocupa hoje, dentro da indústria cinematográfica italiana, um lugar único é coisa de que
112
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
ninguém duvida. A burguesia sabe recompensar os seus «génios» mais extravagantes quando lhe garantem uma rentabilidade infalível. Fellini é não só, ao lado de muito poucos realizadores, uma supervedeta do cinema mundial como uma das glórias nacionais italianas, e também, efectivamente, um cineasta alucinante que não pára de surpreender-nos de filme para filme como se os estúdios de cinema fossem na verdade essa máquina infernal de sonhos e pesadelos em que pouca gente hoje já acredita. Pode gostar-se ou não do filme de Fellini Roma, grotesca e delirante de percursos imaginários, mas não se lhe pode ficar indiferente. Dizia um poeta, Beaudelaire, que o meio-termo é o termo dos medíocres, e Fellini é tudo o que quiserem menos um cineasta medíocre. Trata-se pois de atacar ou defender Roma de Fellini sem dar azo a que os meios-termos nos façam passar ao lado daquele que considero um dos filmes mais extraordinários — no sentido literal da palavra — ultimamente fabricados (fabricar: é este o termo) nos estúdios italianos. Que outro realizador italiano teria tido a oportunidade de dispor, durante várias semanas consecutivas, do estúdio número 5 da Cineccitt à, um dos maiores da Europa, para reconstruir, num cenário com mais de 70 metros de comprimento, a famosa Via Albalonga, cujo traçado foi ligeiramente modificado pelos cenógrafos e arquitectos da produção a fim de satisfazer as exigências da câmara de Fellini? A quem, no cinema europeu, os produtores concederiam a construção de 500 metros de auto-estrada, à escala natural, equipada em todo o seu percurso com dezenas de projectores cuidadosamente camuflados, para filmar um pesadelo de circulação automobilística no qual a figura imponente de Fellini aparece a dar indicações ao camer aman instalado numa das gruas Chapman? Quem, senão Fellini, ousaria animar os personagens de algumas pinturas sagradas (e forjadas) do século xvI para, numa sequência que desafia a cólera dos censores do Vaticano, os tornar espectadores fantasmáticos de um desfile mundano em que são apresentadas as últimas criações fictícias da moda eclesiástica ao ritmo de música de cabaré? Quem se lembraria de forjar uma reportagem cinematográfica sobre as obras do metropolitano romano para nos mostrar, numa casa da antiga Roma, sepultada há
A POLÍTICA DOS AUTORES
113
mais de 2000 anos, frescos pintados nas paredes onde se descobrem vagamente os rostos da equipa de filmagem do próprio Fellini? Tudo isto porque Roma, no filme de Fellini, quer se trate da cidade de há 2000 anos ou de há 30, quer se trate da cidade actual, quer estejamos no teatro (a barafunda do Jovinelli no começo dos anos 40), no cinema (os peplos grandiosos e melodramáticos da época de Mussolini) ou perante uma inovação passageira da história, Roma — dizia eu — é para o cineasta um plateau imenso onde tudo é construído à medida dos seus desejos. A verdade, no filme de Fellini, é que tudo pode ser mentira. Singular e omnipotente, o cineasta reconstrói Roma (o filme) à sua imagem. Por estes breves exemplos se pode facilmente compreender que Federico Fellini ocupa hoje um lugar privilegiado no cinema italiano, a ponto de se permitir todas as extravagâncias que seriam obviamente recusadas a qualquer outro realizador que não tivesse, como ele, os filmes vendidos para toda a parte do Mundo antes mesmo de começarem a ser rodados. Não nos iludamos, portanto, quanto à posição económica de Federico Fellini dentro do sistema de produção cinematográfica italiana, dependente por esmagadora percentagem das grandes companhias norte-americanas. É sintomático que, numa entrevista concedida aos Cahiers de l'Arc (número 45), que lhe é inteiramente dedicado, Fellini declare ter filmado Roma por sequências isoladas, como se cada sequência por si só constituísse um pequeno filme, devido às condições de produção. E acrescenta: «Rodei o filme livre de qualquer constrangimento. O único limite que me foi imposto foi o do dinheiro. Quando o dinheiro dos produtores acabou, então também o filme tinha acabado.» Sabendo que as produções de Fellini estão entre as mais dispendiosas que regista a indústria cinematográfica italiana (para mais, Roma é uma co-produção ítalo-francesa), fácil é concluir por que razão alguns dos novos cineastas italianos se têm insurgido contra o custo astronómico das suas produções. O cinema de Federico Fellini pode ser, como de facto é, transgressor a um determinado nível da actividade estética, mas é também o exemplo típico de como uma
114
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
certa forma de mercadoria fílmica, paralelamente qualificada de artística e de escandalosa, satisfaz as preocupações e o gosto «requintado» da burguesia que frequenta as mais caras salas de cinema, onde os seus filmes encontram um sucesso comercial garantido e porventura justificado. Roma, de Fellini, dá da cidade chamada eterna o retrato simultaneamente mais fabuloso e incisivo, porque não recua perante os traços com que o inconsciente marca a memória nem teme as mitologias e as obsessões a partir das quais o realizador trabalha a matéria do seu filme e com ela constrói os vestígios de uma outra cidade. Tal como em Oito e Meio e em Os Palhaços, Fellini coloca-se a si mesmo em cena, não ilude o carácter profundamente narcisista da sua ostentação. As recordações de Fellini, em contraponto com a sua actual visão alegórica da cidade, servem para conferir a Roma e ao artista cineasta um estatuto ambíguo de eternidade. A biografia de Fellini, assimilada com a de Roma (daí os dois nomes no título — «Fellini-Roma» —, e o facto de ele ser o único cineasta-vedeta a assinar com o próprio nome no título dos filmes, levando assim até às últimas consequências os pressupostos da famosa política dos autores), respondem à necessidade, cada vez mais premente, de o realizador não querer filmar outra coisa que não sejam os seus próprios fantasmas. Roma, mãe eterna e omnipotente, alimenta o delírio do cineasta e confere-lhe a sua dimensão exacta dentro do sistema social dominante: a de um demiurgo iluminado que nos conduz aos labirintos sem fim da «memória», da «imaginação» e da «criação» artísticas. Uma legenda, que o distribuidor português entendeu por bem colocar desnecessariamente, antes do filme, é, a este nível, significativa: «Roma criou-me, é tempo de eu criar Roma.» (Fellini.) As declarações do realizador vão praticamente todas no mesmo sentido : «O filme é a imagem de um diário íntimo e nostálgico escrito livremente, contendo tantos factos reais como acontecimentos imaginários.» Ter-se-á, por certo, reconhecido na terminologia («diário íntimo», «nostálgico», «acontecimentos imaginários») as preocupações que definiam a concepção romântica da arte.
A POLÍTICA DOS AUTORES
115
Dispensando, por consequência, qualquer análise social da cidade ou da sua formação histórica, Fellini serve-se de Roma como um pretexto para nos mostrar até que ponto, para si próprio, único tema do filme, a arte e a vida se confundem. Chegado a Roma aos 18 anos, o jovem Fellini passeia o seu olhar atento e surpreendido pelas pessoas e pelos ambientes, sublinhando deste modo a posição predestinada que o espera: sendo o cinema também uma forma de olhar, é natural que o cineasta-artista se defina em função de uma determinada maneira de olhar. É ao olhar do artista enquanto jovem que o Fellini actual acrescenta os prodígios da «imaginação criadora», transformando as imagens da cidade que o criou num objecto estético, grandioso e desmedido. Assim, não é tanto Roma que Fellini nos oferece em espectáculo, mas a cidade tal como ele a vê, ou seja, uma outra cidade como reflexo de si próprio. Daí que nos últimos filmes de Fellini, não exista rigorosamente uma intriga, no sentido tradicional do termo. De facto, o realizador recusa quaisquer «histórias», porque os seus filmes não são já outra coisa senão fragmentos da sua história pessoal. As pessoas fizeram uma ideia mítica do génio de Fellini; ele acabou por acreditar que era genial; e é essa ideia que Fellini agora nos dá de si mesmo. Portanto, Federico Fellini cria o seu universo assim como Deus teria criado o Universo. Então, satisfeito com a sua obra, o artista, o «criador», contempla-se nela, embevecido com as artimanhas da sua metafísica. Se esta posição é perigosa para o artista, na medida em que conduz irremediavelmente a um discurso suicida, Fellini parece não ter conseguido sair do impasse que se cristalizava em Oito e Meio e que dava já da prática cinematográfica a noção de um olhar à beira da vertigem. É ainda dessa vertigem que nos fala Roma. Se em Os Clowns havia o álibi de o cineasta andar a realizar uma hipotética reportagem, justificando deste modo a sua intromissão e a intromissão da equipa de filmagens no interior do próprio filme, em Roma Fellini delicia-se abertamente com o fetichismo que dedica à câmara de filmar. Quer dentro de campo quer em off,
116
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Fellini comanda os movimentos da câmara montada na grua, símbolo fálico da erecção e da potência do artista. Sendo a grua o protótipo normal do fetichismo técnico e a metonímia do espaço das grandes produções, que em Hollywood conheceu uma idolatria sem rival (Fellini define a Cinecittà como a mini-Hollywood da era fascista), não admira que Federico Fellini insista em nos mostrar agora, agradecido pelo estatuto invulgar do artista «genial» que lhe conferiram a crítica e o comércio cinematográfico, os recursos que lhe possibilitaram um estilo único e uma perícia técnica impecável. Tal como o prestidigitador que mostra o segredo dos seus truques, Fellini faz dos truques o segredo do espectáculo. B) O Mundo como circo Na noite da sua infância, Federico Fellini abre a janela para o Mundo e descobre uma tenda de circo que, diante de si, como num sonho, se ergue misteriosamente. O olhar surpreendido da criança sobre uma realidade (o circo, o Mundo) que ele ainda desconhece e que irá, mais tarde, tentar compreender, justamente através de uma forma de olhar organizado e significante (o cinema), investe, desde logo, o estatuto particular do artista, como sendo aquele que em si assume o privilégio de se deixar marcar interiormente pela experiência e pelo desconhecido. Fellini criança, deslumbrado pelas maravilhas que o circo esconde e, simultaneamente, ostenta, anuncia já o Fellini adulto, cineasta que transforma as maravilhas da sua infância em espectáculo. A este nível, poucos cineastas terão, como Fellini, confessado tão abertamente o carácter obsessivo dos seus filmes. Em Os Clowns Fellini mostra desde início como o circo é apenas o pretexto ideal para o «autor», único sujeito do seu próprio discurso, falar de si, apenas de si, e do modo como ele entende o Mundo, fabricando através desse entendimento particular e público, um outro mundo, ou seja, neste caso, o mundo felliniano. Este processo de transferência ideal, que é ainda hoje aquele que informa, também, a maior parte das interpre-
A POLÍTICA DOS AUTORES
117
tações da crítica cinematográfica, encontra em Os Clowns um objectivo estético modelar. De facto, o circo seria, para Fellini, um microcosmos perfeito da sociedade burguesa (o palhaço descendente do bobo), do espectáculo da decadência que ela se oferece e, finalmente, da própria noção de espectáculo que Federico Fellini ilustra de filme para filme. Tomando como referente o espectáculo de circo em geral, de que nos fala Fellini no filme? Dos palhaços, evidentemente. Mas porquê evidentemente ? Não somente porque, como o título do filme indica, Fellini se limita, no circo, aos palhaços, recalcando tudo o resto, mas porque, praticamente, todo o discurso ideológico de Fellini tem procurado descobrir, na vida, aqueles que assumem, teatral e socialmente, o papel de palhaços. Como adiante veremos, o palhaço é, no sistema dramático de Fellini, a cristalização das «qualidades» e dos «defeitos» simplesmente humanos. Portanto, de certo modo, são palhaços personagens aparentemente tão distintos como o «xeque branco», os vitelloni, Cabida, a burguesia fútil da Dolce Vita, a protagonista e os fantasmas de Julieta dos Espíritos, os figurantes de Satyricon, etc. Não é, pois, por acaso que, antes de nos mostrar a reportagem imaginária que o lança na «ressurreição» dos ricos palhaços do passado, Fellini evoca os pobres palhaços da terra em que nasceu. Palhaços eram, fora do circo, à beira da convivência, o chefe de estação anão que os miúdos (Fellini miúdo) insultavam das janelas do comboio, a freira que falava com os anjos e que dividia o seu tempo entre o convento e o manicómio, a loira fatal que visita o café com o amigo, os galãs de bairro que passam a vida a jogar bilhar, o soldado louco que se julga em guerra, o oficial de Mussolini, etc. Palhaços são o realizador Fellini e a sua incrível equipa de filmagem: um operador zarolho de som, sempre com a mãezinha atrás, um electricista que não precisa de maquilhagem para ficar com um rosto digno de circo, uma secretária armada em vamp-clown, etc. Quer isto dizer que, se no circo os grandes palhaços começam a desaparecer, na realidade os palhaços não
118
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
deixam de existir. E, tal como no circo, os palhaços nos são apresentados segundo uma hierarquia estipulada à partida (o palhaço rico, o palhaço pobre, o palhaço músico, o palhaço acrobata, o que agride e o que é agredido, etc.), também na vida essa hierarquia é mantida. Na verdade, o que se diz no filme de Fellini não é que o palhaço tenha desaparecido do circo (da vida), mas sim que o palhaço de hoje já não merece a glória e o prestígio do palhaço de outrora. Hoje, os palhaços limitam-se a imitar os grandes palhaços do passado, a repetir os seus truques, a multiplicar os efeitos que, à força de serem vistos e revistos, perdem todo o seu interesse ou, para empregar uma expressão de Tristan Remy (célebre historiador de circo a que Fellini recorre para emprestar ao filme um falso tom de seriedade), deixam de ter uma função social. O desaparecimento (a morte) do palhaço-artista no circo corresponde então ao desaparecimento do artista-palhaço na sociedade moderna: a decadência do palhaço é o sinal ostensivo de uma decadência social que envolve a própria função do artista. Ao contrário dos mestres do passado, que fundavam a sua arte numa certa tentativa de «originalidade» e «criação» (Fratellini, Furia, Fanfulla, Rizzo, Scotti, Sbarra, Pistani, etc.), os estigmas perfeitos da função artística na sociedade burguesa, os palhaços de hoje mais não fazem do que mastigar indefinidamente os mesmos processos e truques (os gags de repetição, o plágio dos modelos, etc.): o trabalho do palhaço actual consiste, única e exclusivamente, numa retórica esvaziada de qualquer significado; o trabalho do palhaço é, de alguma maneira, um discurso inútil na medida em que é um discurso cujos significantes se reduzem a um jogo sem sentido: o máximo de esforço para nada dizer. Assim, também Fellini entende que a possível «mensagem» dos seus filmes é coisa de somenos importância: quando um jornalista pergunta ao cineasta qual é a mensagem do filme, dois oportunos baldes de plástico vêm calar e ridicularizar os interlocutores. Estamos em plena palhaçada. Federico Fellini não pretende, portanto, fazer-nos crer, por um só instante, que a sua reportagem sobre os palhaços e o circo tenha seja o que for de objectivo ou documental.
A POLÍTICA DOS AUTORES
119
De resto, trata-se, confessadamente, de uma reportagem impossível, visto que os palhaços que Fellini nos quer mostrar ou já não existem ou existem apenas fora do circo. Daí o carácter deliberadamente frustrante do filme: o «documento» visionado dos estúdios da televisão francesa não possui qualquer utilidade; o «precioso e raro» filme em poder de Pierre Etaix queima-se durante a projecção; os velhos palhaços entrevistados têm pouco para dizer e só dizem banalidades (pelo que, a outro nível, revelam a sua condição de palhaços); a conversa com os especialistas, entre os quais Tristan Rem y, revela-se infrutífera, como não podia deixar de ser. É outra coisa que está em jogo. O que fica dos palhaços é, afinal, uma certa imagem que Federico Fellini atribui mais à imaginação do que à memória. Os números reconstituídos para o filme existem, rigorosamente, em função daquilo que Fellini pensa que sejam os palhaços: o velho palhaço, doente, que foge do hospital e morre para ver e aplaudir os companheiros; o desfile dos palhaços ricos; os Fratellini exibindo-se em diversas casas de alienados; etc. Quer dizer que, para Fellini, o palhaço é o ser humano por excelência, invulgarmente desmedido e generoso, ridículo e humilde, engraçado e louco, altivo e patético. Em poucas palavras, a monstruosidade (o que é excessivo no anormal) em Fellini nunca é pitoresca mas simplesmente trágica, isto é, humana. Tal como para nos poder falar à vontade dos palhaços Fellini recalca os outros componentes do circo, também para nos falar do humano, em abstracto, Fellini recalca sistematicamente o político. Se Fellini criança e artista é atraído, no circo, apenas pelos palhaços é porque eles exibem, até mais não poder, a máscara da alegria e da anormalidade, o que, como toda a gente sabe, é a própria essência do espectáculo popular. Ao falar dos clowns e da sua arte é ainda e sempre de si que Fellini nos fala. Com a melhor das vontades, que é sem dúvida aquela com que Federico Fellini tem reconstruído algumas das máscaras mais grotescas da nossa sociedade, se o Mundo é um circo a vida é, certamente, uma palhaçada.
A INSCRIÇÃO DO REAL NO FILME
139
Loach se limitou a filmar os actores e a gravar os diálogos sem insistir em qualquer ideia definida de mise-en-scène a não ser (como é seu hábito) naquela que consiste em tentar disfarçar a ficção sob os mais diversos tiques de um naturalismo favorecido pelo som directo, pelas câmaras ligeiras e pelo tom de representação dos actores: trata-se de reforçar a impressão de realidade própria do cinema. C) «Regresso de África» No texto do filme-anúncio Alain Tanner explica Regresso de África da seguinte maneira: É um filme de quatro personagens: Françoise, Vincent, uma câmara que os filma e um espectador que ao olhar Françoise e Vincent vê que eles estão a ser filmados por uma câmara. Como Françoise e Vincent são casados, diremos que é um filme de três personagens: Françoise-Vincent, a câmara e o espectador, sendo cada um deles vértice de um triângulo. O filme só existe quando o triângulo se fecha, isto é, depois de visto por um espectador e de este saber que é o vértice de um triângulo, o que pressupõe que ele compreende que não deve só observar Françoise e Vincent, mas Françoise e Vincent vistos pela câmara, que se esforça por lho fazer sentir de modo a esse espectador não se julgar na rua, mas no cinema. Se bem que, em minha opinião, o filme não corresponda exactamente àquilo que o próprio realizador descreve, o texto citado revela um certo tipo de reflexão a que não é alheia a maneira como o cineasta organiza com habilidade a ficção e, deliberadamente, insiste em remetê-la para as convenções próprias da representação cinematográfica. Notar-se-á, portanto, em Tanner uma tendência cuidada para exigir de uma determinada classe de espectadores uma participação activa (digamos cumplicidade) no desenvolver da intriga e, por vezes, até no sistema simultaneamente discreto e artificial da mise-en-scène.
A POLÍTICA DOS AUTORES
121
fissão e a absolvição na religião cristã, o que não seria despropositado invocar acerca de alguns filmes antecedentes de Bergman) se desenvolver inteiramente no campo da linguagem, não comportando outra intervenção que não seja aquela que é favorecida pelo poder imediato, simultaneamente libertador e purificador da palavra. Àquele que fala — o paciente, neste caso Alma — exige-se que tudo diga, que dê liberdade às associações inesperadas do seu discurso e às existências múltiplas que não deixará por certo de conter. Àquele que escuta — o analista (neste caso Elizabeth e, virtualmente, o espectador do filme) — pede-se que não seja nem mais nem menos do que o suporte indispensável sobre o qual se funda a linguagem do outro. Existe assim comunicação sem que se estabeleça propriamente diálogo, porque ao silêncio de uma corresponde o monólogo da outra, ambas compartilhando das necessidades afectivas no discurso. É desta transferência implícita, tão fantástica quanto natural, que nos fala, em primeiro lugar, Persona. O reflexo de Alma no espelho das águas do lago, a junção transcendente dos rostos —máscaras— das duas mulheres no mesmo plano, sinais dispersos, insistentes, fulgurantes, de um desdobramento em que a personalidade do outro surge no próprio, em que os traços do mesmo marcam de igual modo o seu duplo. Alma e Elizabeth as duas faces de Persona. Assim, tal como a actriz se apodera irremediavelmente do seu personagem e o absorve até se transformar nele, até que a pessoa seja máscara (duas vezes p e r s o n a ) também Elizabeth absorve progressivamente Alma — sendo o contrário igualmente justo —, numa operação vampírica que Bergman cristaliza nas cenas nocturnas: tudo se passa na antecâmara da morte, entre o sono e o sonho, a noite e a madrugada, do desfalecer ao despertar. Destas passagens secretas se constrói a matriz da metamorfose, a representação. Um beijo no pescoço, a boca num fio de sangue, imagens que atravessam o filme e no qual o cineasta, agora senhor absoluto da sua arte, marca a natureza vampírica do seu trabalho humano, das suas obsessões, matériaprima dos seus infinitos recursos.
122
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Elizabeth absorve pelo silêncio a palavra de Alma, do mesmo modo que a banda sonora consome os sons do filme, o écran branco esgota as imagens do cineasta e este se apodera dos seus actores. Não é por acaso que Persona começa e acaba com planos em que se vêem e ouvem indícios da prática cinematográfica, rastos luminosos de uma actividade — o fazer do filme — em que se gastam e se reconquistam as energias e as vontades, a vitalidade e o prazer do cineasta. Um filme, imagens e sons a que o corpo e a voz dos actores, fantasmas perfeitos, máscaras eternas, vêm finalmente emprestar uma realidade indesmentível, nas manchas de luz que atravessam a sala, no tempo exacto da projecção, agora memória repetida vezes sem conta do filme que se fez e que se dá a ver e a ouvir ao espectador. Persona é o mais extraordinário e o mais secreto dos filmes de Ingmar Bergman, um marco na evolução das formas cinematográficas. B) «Lágrimas e Suspiros» Quatro personagens, apenas. Ou quase. Mulheres num tempo indefinido, cercados por uma membrana vermelha o décor. Mulheres cujo desespero e alegria se manifestam num simples olhar, num gesto brusco, numa carícia, num silêncio forçado ou num sorriso inesperado. Sorrisos de uma noite de Verão, olhares na doçura dos dias quentes de Outubro. Sonhos que regressam, desejos que não voltam. Sonhos. Creio que, a propósito de Hollywood — como quase sempre —, passou a dizer-se do cinema, em geral, a partir de determinada altura, que este era uma máquina de fazer sonhos por excelência. Não tardou sequer quem comparasse o estado do espectador imerso nas salas obscuras de cinema com o estado particular do sonhador, eufórico e adormecido. Sociólogos das mais diversas tendências arrumam assim o assunto enquanto alguns cineastas, mais lúcidos acerca das capacidades específicas da nova arte, se limitavam a comparar o trabalho do sonho com o funcionamento do filme. Destes cineastas sobressai justamente o nome de Ingmar Bergman, um dos raros «génios» europeus que se
A POLÍTICA DOS AUTORES
123
recusaram sistematicamente a trabalhar nos Estados Unidos e para quem o écran branco como o palco vazio se oferecem ao olhar calculado do espectador corno o lugar singular de uma representação que possui a sua lógica própria. No teatro, no cinema, na literatura tradicional, as coisas têm sempre um ponto de vista qualquer : é este o fundamento geométrico da representação, uma vez que a representação consiste em traçar minuciosamente os limites ópticos da cena e da ilusão que ela provoca, para empregar uma excelente expressão de Barthes. Para Ingmar Bergman, os limites da cena são os limites do humano, já que o cineasta se não preocupa demasiadamente em analisar os fundamentos sociais que suportam todo e qualquer drama, antes procura descobrir os efeitos do drama nos sinais mediatos que os personagens, sujeitos como ele e como ele sujeitos às mais diversas pressões exteriores, ostentam num súbito gesto, num olhar estranho, num comportamento invulgar, na vergonha ou no silêncio. Signos de uma linguagem interior. Daqui, talvez, que os filmes de Ingmar Bergman se prestem com tanta coerência às interpretações de carácter psicanalítico e se recusem intransigentemente a ser reduzidos aos estereótipos pseudomaterialistas que a crítica mecanicista e os «resumidores oficiais de conteúdos» teimam em oferecer-lhe com evidente incompetência. Porventura um dos últimos humanistas que, no cinema, à força de sinceridade e talento, conseguiu ainda não se tornar ridículo ou grotesco, Ingmar teima, muito naturalmente, em que o ponto de vista dos seus filmes isto é, o ponto de vista do autor — estabeleça uma corrente interna de harmonia com os pontos de vista dos personagens, variando assim um jogo de múltipla cumplicidade em que os factores mais importantes serão a transferência de personalidade, o sentimento e o afecto, se por eles entendermos essa relação de simpatia para com o próximo que já deixou de estar enraizado numa tradição religiosa ou mística, como foi o caso de alguns dos seus filmes anteriores, marcados pela obsessão de Deus, para mergulhar directamente numa tentativa humana, simultaneamente humilde e teimosa, de compreender os outros.
124
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
É talvez por este motivo que os filmes de Ingmar Bergman constituem uma experiência sempre renovada, na qual as emoções, o desejo e o prazer — o corpo e a «alma» — são sempre mais importantes do que a compreensão exaustiva da simples intriga ou do sistema de representação, afinal clássico, em que o cineasta se inscreve. Poucos cineastas modernos terão levado tão longe o dispositivo da representação e da narração cinematográficas como Bergman, e poucos também, como ele, terão compreendido que a estética do instante perfeito — modelar em Lágrimas e Suspiros — não tem a ver com o puro prazer formalista, mas tem, sobretudo, a ver com a necessidade de a arte saber escolher os seus referentes e se denunciar abertamente irreal, irrealista, artificial, ou, se quiserem, demonstrativa, exemplar. Assim, se o cinema de Bergman corre efectivamente o risco de se tornar abstracto não é porque o cineasta se desligou da realidade para se fechar, como os nostálgicos do romantismo, na sua torre de marfim intocável, mas sim porque ele escolheu percorrer os caminhos da indecisão, da dúvida e das questões individuais sem resposta preparada. Os filmes de Bergman são também, a seu modo, uma poderosa máquina de fazer sonhos, mas no sentido oposto ao do cinema americano tradicional. Porque a aventura de Ingmar Bergman é a do espírito, a de urna membrana interior a que ele, aliás sem ingenuidade, chama alma e a que nós — à falta de melhor — poderíamos afinal dar o nome tão simples de consciência. E a pouco e pouco apercebemo-nos de que, finalmente, a aventura do espírito é inseparável da da carne e que tudo, em Bergman, depende de um conjunto de relações em que a sensualidade ocupa um lugar primordial. A este nível, Lágrimas e Suspiros é uma súmula da obra de Ingmar Bergman, porventura — ao lado de Persona — o mais belo dos seus filmes.
V A INSCRIÇÃO DO REAL NO FILME 1. Da realidade à ficção A) Acontecimentos reais A ocupação preferida e a mais inventiva da criança é a brincadeira. Talvez estejamos no direito de dizer que toda a criança que brinca se comporta como um poeta, na medida em que cria um mundo próprio, para onde, mais exactamente, ela transporta as coisas do inundo em que vive, segundo a nova ordem das suas conveniências. Seria então injusto dizer que ela não toma este mundo a sério; pelo contrário, leva muito a sério a sua brincadeira e precisa de grandes quantidades de afecto. O contrário da brincadeira não é a seriedade mas a realidade. (Sigmund Freud.) Vem esta citação a propósito de alguns filmes que reivindicam terem sido exclusivamente baseados em acontecimentos reais. Depois da célebre frase, frequentemente difundida no genérico das produções correntes, «qualquer semelhança entre este filme e a realidade é pura coincidência» eis que surge a moda das reconstituições «fiéis», dos filmes que fazem da realidade e do seu grau de realismo, da «objectividade» e do «rigor histórico», uma hipotética garantia de qualidade, uma pretensa isenção ideológica e um especial interesse. Freud compara o jogo da criança com o jogo do poeta, do artista em geral, na medida em que ambos criam, portanto, um mundo próprio. A arte seria, deste modo, uma actividade destinada a corrigir a realidade por meio
126
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
de uma representação imaginária, na qual o desejo do artista, do poeta, ocuparia um lugar central. A arte é um jogo sério, porque, como sublinha Freud, «o contrário da brincadeira não é a seriedade mas a realidade». Se a arte é, pois, uma coisa séria, porquê esta vontade de valorizar os acontecimentos reais, de consequências directamente políticas, atribuindo a uma possível «objectividade dos factos» um valor intrínseco (uma mais-valia ideológica), em detrimento das construções imaginárias que, do mesmo modo, nos vêm obrigatoriamente falar da realidade ? Basear um filme em acontecimentos reais parece, no entanto, garantir aos cineastas e ao público a existência de uma «seriedade» suplementar e o acréscimo de efeitos de realidade que seriam o fundamento de todo o sucesso popular do cinema. De facto, segundo a teoria comum da filmologia, é a impressão de realidade característica do cinema (na medida em que os processos mecânicos da fotografia cinematográfica duplicam as aparências da realidade) que solicita em grande parte a participação afectiva do espectador. Ao apoiarem-se nos factos reais como garantia de «objectividade» e de «autenticidade», sugerindo assim que a realidade inerente aos seus filmes é superior (mais «séria»?) a qualquer especulação (brincadeira ?) artística, os cineastas não fazem mais do que ocultar, uma vez mais, que um filme é sempre uma teia de ficção e que o cinema é constituído apenas por imagens em movimento e por sons. Ou seja, o filme, como qualquer outra obra de arte, é uma realidade outra, com uma lógica própria e uma coerência interna distintas do real. Valorizar um filme por ser baseado em acontecimentos reais, sobrecarregando deste modo a participação afectiva do espectador, sem interrogar as determinações ideológicas a que esse filme obedece — como qualquer outro —, é cair no logro que a indústria dominante parece ter reservado, desde início, ao cinema. Como diz Godard, a burguesia criou um mundo à sua imagem, mas ela criou também uma imagem para o seu mundo. Existe sempre uma diferença fundamental entre o referente que dá origem ao filme (a realidade, os acontecimentos verídicos, um personagem, um universo imaginário,
A INSCRIÇÃO DO REAL NO FILME
127
um romance, uma peça de teatro, enfim, qualquer texto literário ou outro) e o produto fílmico acabado. Um filme não é a reprodução simples de uma dada realidade, mas uma representação ideológica assente numa linguagem e num discurso específicos constituindo um simulacro do real social que, em última instância, lhe serve de modelo. B) O «Assassínio de Trotsky» Por exemplo, Joseph Losey, realizador de O Assassínio de Trotsky, afirma expressamente, antes do genérico, ter baseado o seu filme apenas em acontecimentos rigorosamente comprovados. Porém, escusado será procurar no filme de Losey qualquer esboço de análise dos acontecimentos ou sequer urna simples ilustração significativa dos factos que foram historicamente determinantes. Surpreendentemente, sobretudo se tivermos em conta que Joseph Losey declara abertamente nas entrevistas ser um cineasta comunista, o filme aborda de um modo extremamente esquemático e redutor as relações divergentes entre o estalinismo e o trotskysmo, como se se tratasse simplesmente de duas facções em que apenas conta a rivalidade individual entre duas personalidades políticas influentes. Para além do facto de a cópia do filme exibida em Portugal apresentar algumas lacunas que não deixam entrever mais claramente a posição e as intenções de Joseph Losey, a verdade é que se fala menos de Trotsky do que das relações sentimentais e das possíveis frustrações pessoais do seu assassino. Se exceptuarmos meia dúzia de planos, logo no início do filme, sobre fotografias da época, informando-nos de que Léon Trotsky foi, com Lenine, a figura principal da Revolução Russa e o organizador do Exército Vermelho, e se exceptuarmos, também, algumas frases anódinas que Trotsky dita para o gravador ou para um dos seus colaboradores, nada mais ficamos a saber sobre o homem que marcou a história e que dá origem ao título do filme. E se as breves citações e informações acerca de Trotsky têm
128
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
sequer lugar é apenas para caucionar, com o peso histórico dos documentos, uma ficção convencional, hesitante entre o melodrama psicológico e o esquema policial. Em contrapartida, temos oportunidade de acompanhar Marcader, o assassino de Trotsky, às touradas, aos passeios de barco (vendo nas águas a silhueta de Estaline, imagine-se!) e às discussões amorosas com a amante. Para que serve afinal o filme ser baseado em acontecimentos rigorosamente comprovados senão para dar da história uma imagem sentimental, a transbordar de hesitações psicológicas, histórica teleológica, entre o suspense prefabricado (quando e como vai Trotsky ser assassinado?) e a tradição do herói fatalista que informou os filmes mais académicos e reaccionários do cinema de Hollywood? Nada do filme justifica o prestígio de Joseph Losey ou as posições sociais e políticas de que ele se reclama, porque, como é provado, não é possível pensar a existência material da ideologia separada dos aparelhos ou das práticas em que ela se constitui. E a prática cinematográfica de Losey espelha aqui o mais completo enfeudamento em relação aos modelos dramáticos do chamado cinema histórico da indústria do espectáculo. Na verdade esvazia-se por completo o conteúdo político do processo histórico para traçar da história uma visão idealista, subordinada a mitificação dos grandes personagens agora transformados também em vedetas de cinema. C) «Lua de Mel de Assassinos» «O assassínio político é sempre, por definição, uma informação parcial; o fait divers, pelo contrário, é uma informação total, ou, mais exactamente, imanente; ele contém em si todo o seu saber: não é preciso conhecer nada do Mundo para consumir um fait divers; ele não remete formalmente para nada além de si próprio. Evidentemente, o seu conteúdo não é estranho ao Mundo: desastres, assassínios, raptos, agressões, acidentes, roubos, tudo isso remete para o homem, a sua história, a sua alienação, os seus fantasmas, os seus sonhos, os seus medos: uma ideologia e uma psicanálise do fait divers são possíveis. Mas trata-se aí de um mundo cujo conhecimento é apenas
A INSCRIÇÃO DO REAL NO FILME
129
intelectual, analítico, elaborado em segundo grau por aquele que fala do fait divers, não por aquele que o consome. Ao nível da leitura, tudo é dado num fait divers, as suas circunstâncias, as suas causas, o seu passado, o seu desenlace; sem duração e sem contexto, ele constitui um ser imediato, total, que não remete, pelo menos formalmente, para nada do implícito. É nisso que o fait divers se aparenta mais com a novela e o conto do que com o romance. É a sua imanência que define o fait divers (Roland Barthes). Creio que esta citação serve perfeitamente para indicar os mecanismos em que se funda o excelente filme de Leonard Kastle. Ao contrário de Losey, Kastle escolhe um simples fait divers para nos falar de uma certa realidade americana. Portanto, em oposição a O Assassínio de Trotsky a «história» de Lua de Mel de Assassinos apresenta-se como uma estrutura fechada, constitui por si só uma informação total (que ficamos no outro filme a saber de Trotsky e das dissidências no seio do movimento comunista ?), é, pois, utilizando a expressão de Barthes, uma comunicação imanente que contém em si todo o seu saber. No filme de Kastle não precisamos de caução histórica para ficar a conhecer algumas das razões sociais que levam aqueles personagens anónimos à solidão, à miséria moral e ao crime. Enquanto Losey se serve da história para autentificar a ficção, poder-se-ia insinuar que Kastle, pelo contrário, se serve da ficção para autentificar a história. Num caso como noutro, é na lógica textual dos filmes que devemos procurar a interpretação da realidade, dos acontecimentos, e não o inverso. A história de Ray e Martha, itinerário do fingimento e da transgressão, traça a problemática de uma certa relação que, progressivamente, ganha, através da construção do próprio filme (isto é, através da forma pela qual o filme organiza a matéria da ficção), um sentido preciso. As relações de casualidade (o motivo dos crimes: o dinheiro, a paixão doentia, a ingenuidade e a solidão das vítimas, etc.) e de coincidência (tudo acontece daquela maneira a partir do momento em que Ray e Martha se conhecem: a noção de destino é já uma estrutura dramática) transformam irremediavelmente os protagonistas dos acontecimentos em «personagens dramáticos», que irão acabar a farsa na melhor tradição da tragédia clássica.
130
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
É talvez por esta razão que Leonard Kastle, filmando nos «cenários naturais dos acontecimentos verdadeiros», prefere dar ao filme um carácter vincadamente teatral, a começar pela direcção de actores. Aqui, a missão dos actores não é viver no cinema aquilo que aconteceu na realidade, mas apenas mostrar como todo o processo da miseen-scène é uma forma subtil de mentir. Ray e Martha mentem permanentemente às velhas solitárias a quem vão extorquir o dinheiro, representam exemplarmente o seu papel exemplar. Sendo a mentira comum que os une, é, portanto, a mentira o interdito que entre eles se levanta. Ora, o único crime que Martha não perdoa ao seu amante é justamente a mentira, de que ela também acaba por ser vítima, porque as mentiras de Ray a tornam afinal objecto e não agente dos crimes, mesmo se é ela que mata, por amor, por ciúme ou por desespero. O amor é a única maneira de cumplicidade que não admite compromissos. A virtude maior do filme de Leonard Kastle é vir mostrar-nos que se a traição é, por consequência, uma forma desonesta de mise-en-scène, toda a mise-en-scène cinematográfica é, também, afinal, uma forma confessada de traição. D) O rebelde «genial»: Ken Russell Adaptando um livro de H. S. Ede, coleccionador de arte, o filme de Ken Russell, cineasta que se tornou rapidamente famoso devido a uma série de filmes que tinham tanto de «escandaloso» como de gratuito, é um repositório exaustivo e cansativo dos lugares-comuns burgueses sobre a vida ideal do artista e a função social da arte. A biografia romanceada do escultor francês Henri-Gautier Brzska, morto em combate durante a primeira guerra mundial, aos 23 anos, é apenas um pretexto mais ou menos plausível para Ken Russell debitar todas as suas obsessões estéticas através de um discurso desmedido, exibicionista e grotesco, que pretende, ele próprio, assumir um indiscutível estatuto artístico, uma vez que se baseia, precisamente, nos conceitos de normalidade com que o
A INSCRIÇÃO DO REAL NO FILME
131
realizador procura definir a posição do «artista genial» numa dada sociedade. Assim, Gautier (desastrosamente interpretado por Scott Anthony) é-nos apresentado como um excêntrico, como um marginal que goza a miséria em que vive e que ousa, evidentemente, insultar os comerciantes de arte sem perder aquele tom de estranha dignidade que o distingue dos outros mortais. Gautier apregoa bem alto que a missão da arte não é ser adorada num museu-cemitério e que o artista precisa sempre de um público a quem comunicar o produto das suas experiências e do seu trabalho. Tudo isto porque Gautier, o artista maldito, condenado a morrer injustamente antes de ter dado as provas definitivas do seu enorme talento, faz gala da sua filosofia miserabilista, aceita o amor platónico de uma mulher mais velha com quem vive e a quem chama «irmã», numa palavra, sublima, por intermédio da criação artística, todas as frustrações individuais e sociais que o cercam e o condenam praticamente a ser um génio, isto é, um anormal. As razões do comportamento eufórico do escultor encontram-se deste modo justificadas, porventura desculpadas aos olhos da ideologia dominante. Porém, se a finalidade última da arte não é, de facto, o museu, não se pode dizer que ela seja, de igual modo, destinada a alimentar os filmes de Ken Russell. E de que filmes se trata, afinal, senão de ilustrações, irreverentes é certo, de grandes nomes da música, da escultura e da literatura? Que faz Russell senão servir-se de referentes já carregados de valor artístico, objectos de museu, citações na história das artes ? Aliás o sistema de Ken Russell repete-se de filme para filme: tentar identificar as excentricidades dos artistas e o estatuto da arte com o trabalho do próprio filme — novo produto artístico — de que Ken Russell é agora o autor. Tudo se passa como se o barroquismo desenfreado do filme, digamos a sua loucura, correspondesse exactamente á ideia que Ken Russell faz do artista e do génio: uma anormalidade prolixa, mas inofensiva, cheia de vitalismo, mas, ao mesmo tempo, impotente. Aliás, não é por acaso que os heróis-artistas dos filmes de Ken Russell, como Tchaikovsky, Gautier e outros, são sexualmente anormais e recuperam essa «anormalidade»
132
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
com a dimensão artística da sua própria vida. É que os heróisartistas de Ken Russell respiram e vivem a arte como se esse fosse o único problema material da sua existência. Raramente o idealismo estético terá conhecido tamanha mistificação. Raramente o cinema terá conhecido um realizador tão ajustado a essa mistificação como Ken Russell. E) O caso Rosi A consagração obtida no Festival de Cannes de 1972 pelos filmes italianos O Caso Mattei e A Classe Operária Vai para o Paraíso, respectivamente realizados por Francesco Rosi e por Elio Petri, ambos interpretados pelo actor Gian Maia Volonté e ambos premiados no respectivo festival, vem confirmar que a produção generalizada dos filmes ditos políticos obedece a uma necessidade evidente que a indústria cinematográfica estabelecida tem de recuperar certos temas que, à força de se tornarem eventualmente incómodos, passam a constituir uma fonte garantida de lucro, tanto mais que esses filmes são, regra geral, politicamente assaz ambíguos. Os filmes de Rosi e Petri vieram, pois, marcar um festival espectacularmente comercial, com a convicção nada inocente de que mesmo o cinema dos grandes circuitos comerciais internacionais pode abordar, dentro de certos limites, problemas políticos e sociais, nacionais e contemporâneos. Mattei foi uma das personalidades italianas mais importantes no pós-guerra ao nível internacional. Em 27 de Outubro de 1962, Mattei morria em circunstâncias trágicas e misteriosas, na altura presidente do Ente Nazionale Idrocarburi. Depois de o seu avião particular se ter esmagado no solo e desintegrado, provocando-lhe morte imediata, falouse oficialmente num acidente, embora a hipótese de crime nunca tenha sido posta de parte. O filme aborda quase vinte anos de vida italiana, que são os anos durante os quais o Terceiro Mundo
A INSCRIÇÃO DO REAL NO FILME
133
avança com autoridade na cena mundial para reivindicar os seus justos direitos. E Mattei entra também no Terceiro Mundo para tentar modificar as regras do jogo aceites desde sempre. Não me compete fazer o balanço do que ele realizou, tal como não me compete emitir um julgamento sobre as consequências da sua política no seio das indústrias italianas. Para mim, a importância do filme residia de facto em dar a conhecer Mattei ao público e, ao mesmo tempo, chegar eu próprio a conhecê-lo. ( Declarações de F. Rosi em Cannes.) Portanto, para Francesco Rosi, o cinema será um meio de apropriação do real, um processo de conhecimento específico do qual está excluída, à partida, qualquer competência para emitir um julgamento crítico sobre os factos sociais concretos de comprovada importância histórica. Esta posição ideológica, nitidamente determinada pelos conceitos liberalistas que preconizam uma pseudo-objectividade perante os acontecimentos reais, vai por sua vez determinar o sistema de realização do filme. Tudo se passa efectivamente como se a verdade fosse o resultado puro e simples da justaposição de opiniões, de testemunhos, que o filme vai desesperadamente coleccionar e oferecer, em amálgama, ao espectador. Este pressuposto empírico, em si mesmo de uma importância indiscutível (o inquérito, a indagação, a documentação, se não criteriosa pelo menos extensa, dos acontecimentos visados), não seria um dos pontos fracos dos filmes de Rosi se o realizador soubesse resistir à tentação idealista de apresentar os factos, sem os interrogar, sem os contradizer, numa palavra, sem os construir segundo uma análise política coerente. F) Da opinião à verdade Na tradição dos velhos espíritos democratas, Francesco Rosi pensa que uma opinião justa estará tanto mais garantida quanto maior for o número de opiniões individuais em que se fundamenta. Daí que ele afirme não ter
134
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
uma opinião própria sobre a actividade de Mattei e prefira recorrer constantemente às entrevistas, aos depoimentos e aos artigos daqueles que conheceram pessoalmente Mattei e nele presenciaram o fazer-se da «história». Assim, um pouco por procuração, Francesco Rosi pode convencer-se a si próprio e aos espectadores de que o seu filme é objectivo, «verdadeiro». Como duvidar daqueles que estiveram lá, que conheceram pessoalmente Mattei? É esta ilusão a que um historiador tão insuspeito como Lucien Fèbvre chama o «fetichismo do acontecimento», que conduz Rosi a acreditar piamente no seu método estilístico: «A realidade é tão rica que não precisamos de inventar nada.» (F. Rosi, in Nouvel Observateur, 28-10-73.) Ora, o real nunca conta histórias porque, como responderia C. Metz, é preciso que um acontecimento tenha de alguma maneira terminado para que — e antes que a sua narração e a sua análise possam começar. Contrariando esta teoria, Francesco Rosi vai, pois, reconstituir os acontecimentos nos próprios locais em que eles se passaram, como se a manutenção dos cenários e o rigor aparente da acção assegurassem irremediavelmente a imobilização do referente (a história) e a sua apreensão directa pelas técnicas cinematográficas, nas quais se vão incluir, como era de esperar, aquelas que mais facilmente provocam a ilusão da realidade : câmara à mão, som directo, entrevistas, falsos enquadramentos — técnicas -a que o espectador se habituou nas reportagens de televisão, associando-as, inevitavelmente, às transmissões em directo. Porém, sendo do conhecimento geral que em política a verdade não é tão simples como parece, Rosi vai estruturar o filme à maneira de um puzzle em que os acontecimentos se sucedem sem uma ordem definida, como se da confusão nascesse a complexidade, como se a aparente falta de organização do filme bastasse para nos convencer de uma evidente falta de manipulação, quando afinal o filme se perde incansavelmente em inúteis malabarismos formais para forjar uma objectividade impossível. No seu livro sobre cinema diz B. Brecht que a simples reprodução da realidade não diz seja o que for dessa realidade e que, por exemplo, a fotografia de uma fábrica não nos diz nada sobre a coisificação das relações humanas
A INSCRIÇÃO DO REAL NO FILME
135
nessa fábrica aquele que não dá da realidade scnão o que pode ser vivido não reproduziu a realidade. E entre estes dois equívocos que se joga o filme de Francesco Rosi: por um lado, ocultar a manipulação cinematográfica como caução de objectividade, por outro lado, sujeitar essa manipulação a uma reprodução mecânica e simplista da realidade e dos acontecimentos, numa palavra, do vivido. E porque no fundo o realizador está muito mais preocupado com o personagem do que com a sua actividade, isto é, mais interessado no indivíduo do que no social, a perspectiva política de O Caso Mattei limita-se, finalmente, a traçar uma lamentável apologia camuflada do herói tecnocrata, símbolo perigoso mas simpático das contradições inevitáveis da sociedade neocapitalista. Trata-se apenas de criticar uma situação e um indivíduo apresentados como excepcionais e nunca de pôr em causa o sistema social que os legitima. Francesco Rosi não se cansa de repetir ao longo do filme o lado desmedido e genial — por isso incompreendido se não incompreensível — de Enrico Mattei, o seu oportunismo, mas também a sua lucidez, coragem e espírito de decisão. Se Rosi ousa por vezes insinuar os interesses ocultos do herói e chega mesmo a denunciar os seus compromissos, ilegais, é apenas para, como bom reformista que se confirma, salvaguardar as instituições da ordem social existentes. Para Rosi, as injustiças sociais não dependem das relações de força mas directamente dos indivíduos extraordinários, pelo que os erros sociais são, afinal, simplesmente, erros humanos. Dai que Mattei, bem como todos os que o rodeiam, esteja sujeito a diversos tipos de comportamento, todos com cabimento numa «natureza humana» universal e eterna, sem que se chegue a sugerir sequer que esses comportamentos individuais são afinal sintomas sociais das contradições do modo de produção capitalista. 2. Da contestação ao modernismo A) As normas e as formas
Uma das tendências mais marcadas e marcantes do cinema modernista é, sem dúvida, a insistência num deter-
136
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
minado número de dispositivos temáticos e estilísticos que procuram assinalar, de uma maneira crítica e comprometida, a um nível de ruptura simplesmente ideológico, o funcionamento repressivo das consagradas instituições e práticas da sociedade burguesa. O método consiste, geralmente, em levar o espectador a interrogar-se em termos ideológicos e morais sobre as questões sociais que a ficção inscreve à margem de qualquer perspectiva radicalmente política. Para tanto, os filmes são quase sempre constituídos em volta de um personagem central, de alguma maneira «inocente» ou «anormal», em relação ao qual se procuram demarcar e denunciar as taras ideológicas mais comuns do sistema social vigente. Essa inocência, exigida pelo carácter monolítico e exemplar do personagem central, a fim de que nele melhor se possam vincar as diferenças que o separam da sociedade «normal», é, até certo ponto, um sintoma de regressão simbólica a um estado em que o homem ainda não terá sido (ou já deixou de ser) contaminado pelos vícios da mentalidade social predominante, fruto do modo de produção capitalista. É por isso que, hoje, na arte modernista, e não só no cinema, todas as formas de inocência e de anormalidade são aproveitadas como excelentes armas virtuais para denunciar a repressão social, familiar, sexual, política e judicial dos sistemas políticos da Europa. Quantos filmes recentes não transformaram a criança (O Mensageiro, de Joseph Losey; Os Dois Indomáveis, de Kenneth Loach; O Menino Selvagem, de François Truffaut, o louco (Schock Corridor, de Samuel Fuller; The Devils, de Ken Russell; Vida em Família, de Kenneth Loach), o selvagem (A Ilha dos Homens Selvagens, de Allan Dwann; O Menino Selvagem, de François Truffaut), o condenado (Homens Sem Amanhã, de Tom Gries; O Enforcamento, de Nagisa Oshima) e o marginal (O Ultimo a Rir e Regresso de África, ambos de Alain Tanner, filmes em que a recusa consciente das normas sociais é assumida como sinal de contestação) em heróis exemplares em luta contra as nossas formas culturais? Quase todos estes filmes se ocupavam sobretudo em combater, talvez de um modo idealista, as respectivas instituições em que a repressão social e política se faz sentir com mais vio-
A INSCRIÇÃO DO REAL NO FILME
137
lência: a escola, no caso da criança; o asilo psiquiátrico, no caso do louco; a missão e a linguagem, no caso do selvagem; a prisão, no caso do condenado; o emprego, no caso do marginal. B) «Vida em Família» O personagem central de Vida em Família é uma esquizofrénica. O filme defende as noções mais divulgadas da «antipsiquiatria», de que Cooper e Laing são os representantes fundamentais da escola inglesa. Uma pessoa a quem foi colada a etiqueta de esquizofrénica por outras pessoas, com determinados propósitos que o filme tenta sistematizar e denunciar. Segundo a nosografia tradicional (descrição e classificação metódica das doenças), chama-se esquizofrenia a uma categoria da psicose que se caracteriza essencialmente por uma ruptura mais ou menos total entre a sensibilidade do sujeito e o real. De um modo geral, a acusação fundamentada contra os métodos da psiquiatria clássica começa por mostrar e demonstrar como e por que razão todo o tratamento psiquiátrico não só é violento como não pode deixar de o ser. Autores tão diferentes como Basaglia, R. D. Laing, David Cooper, Jacques Hochmann, Michel Foucaud, Maud Mannoni ou Jacques Lacan têm provado de modo inequívoco que as determinações ideológicas da cura psiquiátrica — como, em muitos casos, da cura analítica — derivam sobretudo do seu carácter adaptativo: trata-se de adaptar os indivíduos às exigências do sistema social que está na origem do aparecimento dos próprios sintomas. Quer isto dizer que, bastantes vezes, aquilo que se considera um caso clínico — como acontece em Vida em Família — não passa de uma reacção de protesto individual, mais ou menos adequada, contra a ordem social estabelecida. Sabendo hoje que as estruturas económicas e políticas de uma sociedade são inseparáveis das representações mentais que essa sociedade elabora acerca de si própria, a noção de loucura também só pode ser considerada em relação a uma dada sociedade. Anormal é, por definição, aquele que se afasta da norma. Numa sociedade burguesa, por
138
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
exemplo, serão anormais todos aqueles que escapam à norma burguesa. Daqui se compreenderá facilmente por que motivo a questão da «anormalidade» é uma questão política. Se é verdade que a família é a instituição social central, então é muito provável, como afirmou W. Reich na Psicologia de Massa do Fascismo, que a família seja o principal veículo de transmissão da ideologia dominante. De resto, é isto que dizem David Mercer e Kenneth Loach em Vida em Família, filme cujo mérito principal consiste em sistematizar, através do seu esquema dramático, quase todos os lugares-comuns com que a ideologia dominante, através da moral familiar, institui o conceito social de normalidade que mais convém à manutenção dos seus interesses de classe. Em última análise, se a protagonista do filme se vê qualificada pelos pais e pelas autoridades de irresponsável (forma social de anormalidade) é apenas porque deixou de ser rentável no processo de produção capitalista. O percurso da cura vai, portanto, coincidir com a adaptação da «doente» às normas sociais consideradas produtivas pelo sistema, como sejam a constituição de uma nova família, a aceitação passiva do emprego violento, enfim, um lugar anónimo numa sociedade que proíbe terminantemente qualquer forma de contestação que ponha em causa as leis de rentabilidade e do lucro. No hospital psiquiátrico, a direcção do mesmo, legítima representante das ideias da classe dirigente, acaba por destituir o defensor da escola da antipsiquiatria (cujo método de cura utiliza apenas a palavra e os meios de que o doente dispõe para passar da crise à recuperação), substituindo-o pelos esquemas tradicionais de violenta repressão moral e de electrochoques e a interdição formal de manter relações sexuais. Se atendermos à clareza com que David Mercer (argumentista e célebre dramaturgo inglês) esquematiza e simplifica estas questões poderemos considerar Vida em Família um filme extremamente útil, na medida em que suscita a discussão dos problemas que o informam e procura provar, pela evidência, que a repressão quotidiana da nossa sociedade se exerce onde ela por vezes melhor se oculta. Foi talvez por se ter apercebido da importância da matéria dramática proposta por David Mercer que Kenneth
A INSCRIÇÃO DO REAL NO FILME
139
Loach se limitou a filmar os actores e a gravar os diálogos sem insistir em qualquer ideia definida de mise-en-scène a não ser (como é seu hábito) naquela que consiste em tentar disfarçar a ficção sob os mais diversos tiques de um naturalismo favorecido pelo som directo, pelas câmaras ligeiras e pelo tom de representação dos actores: trata-se de reforçar a impressão de realidade própria do cinema. C) «Regresso de África» No texto do filme-anúncio Alain Tanner explica Regresso de África da seguinte maneira: É um filme de quatro personagens: Françoise, Vincent, uma câmara que os filma e um espectador que ao olhar Françoise e Vincent vê que eles estão a ser filmados por uma câmara. Como Françoise e Vincent são casados, diremos que é um filme de três personagens: Françoise-Vincent, a câmara e o espectador, sendo cada um deles vértice de um triângulo. O filme só existe quando o triângulo se fecha, isto é, depois de visto por um espectador e de este saber que é o vértice de um triângulo, o que pressupõe que ele compreende que não deve só observar Françoise e Vincent, mas Françoise e Vincent vistos pela câmara, que se esforça por lho fazer sentir de modo a esse espectador não se julgar na rua, mas no cinema. Se bem que, em minha opinião, o filme não corresponda exactamente àquilo que o próprio realizador descreve, o texto citado revela um certo tipo de reflexão a que não é alheia a maneira como o cineasta organiza com habilidade a ficção e, deliberadamente, insiste em remetê-la para as convenções próprias da representação cinematográfica. Notar-se-á, portanto, em Tanner uma tendência cuidada para exigir de uma determinada classe de espectadores uma participação activa (digamos cumplicidade) no desenvolver da intriga e, por vezes, até no sistema simultaneamente discreto e artificial da mise-en-scène.
140
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Tal como a maior parte dos filmes da nova vaga francesa, que encontraram em Truffaut, em Eustache, em Rohmer e em Berri os exemplos mais cristalinos de uma tendência artística a que chamarei «estética da verdade», Regresso de África sublinha constantemente a importância imperceptível do pormenor justo, da arte da simples observação, como se a ideologia do vivido bastasse para julgar da verdade ou da justeza daquilo que se vê e ouve no cinema. Daqui, porventura, um certo prazer de reconhecimento — por parte do público mais culto e informado — que poderá advir de se verem e ouvirem os protagonistas do filme discutir ora sobre meras questões do quotidiano ora, logo a seguir, interrogarem-se sobre a experiência conjugal, a situação política dos países do Terceiro Mundo, os militantes emigrados e perseguidos, a profissão e a amizade, o amor e a felicidade, o prazer e a liberdade, como se todas as conversas, desligadas da prática social, servissem igualmente para contestar tranquilamente as delícias estereotipadas da sociedade de consumo e a força repressiva que, a todos os níveis, do emprego aos meios de comunicação, se faz sentir. Lançadas as regras do jogo, que se baseiam, como vimos, na tentativa de identificar a posição ideológica dos protagonistas (à qual não deixaria de ser útil acrescentar, por exemplo, a mitologia do «casal» unido mesmo na adversidade) com a dos espectadores das salas de arte e ensaio, virtuais cinéfilos progressistas aos quais se dirigia evidentemente o texto do filme-anúncio, Alain Tanner pode simplificar à vontade as implicações políticas da situação dos seus protagonistas, modelos de pureza ideológica, «inocência», contra quem vão esbarrar todos os sinais de opressão social exterior. Fechados nas paredes de um apartamento que os investimentos de capital irão destruir, Françoise e Vincent, eternamente à espera da viagem que não farão, escolhem uma viagem ao imaginário, optam pelo exílio voluntário no próprio país, o que será, pelo menos para Tanner — como já acontecia em O último a Rir —, um esquema ardiloso e subtil de contestar o pseudo bem-estar da sociedade suíça, modelo da reacção e do consumo automatizado.
A INSCRIÇÃO DO REAL NO FILME
141
Tal como Charles Dé, protagonista da primeira longametragem de Tanner, Françoise e Vincent recusam as normas da sociedade em que vivem, escolhendo a marginalização, a recusa passiva das imposições que o patronato e a classe dominante instituíram. Porém, agora, ao contrário do que acontecia em O Ultimo a Rir, a recusa das normas sociais é também imposta aos personagens por um acaso em que eles deliberadamente se deixam envolver. Impossibilitados de agir, de partir, Françoise e Vincent refugiam-se no imaginário, falam-se mutuamente de países distantes, mergulham em livros, embalam-se em música de disco, quer dizer, servemse de produtos culturais, ideológicos, para adquirirem as vantagens de -uma revolução interior à qual não faltará, como é óbvio, o tempero de uma tomada de consciência tão lúcida quanto pessimista. Porventura ciente das limitações sociais do filme, Alain Tanner tenta salvá-lo chamando a atenção do espectador para a realidade «estética» de estarmos no cinema: «Tudo isto parece um mau argumento de filme», diz várias vezes Vincent, como se o facto de o personagem ser também um cinéfilo declarado não viesse possibilitar um acréscimo de identificação com os espectadores das salas-estúdio. Como se a má ou boa consciência dos espectadores se dissolvesse finalmente no écran luminoso e a realidade social se limitasse apenas às fronteiras vagas desse país longínquo a que todos os dias faremos a tal viagem imaginária. A lucidez de Tanner consiste, afinal, em reconhecer e aceitar a impossibilidade de o cinema ir mais longe do que os seus personagens. A revolução não se pode limitar ao imaginário, mas é aí que ela começa.
VI O CINEMA E A HISTÓRIA 1. A tomada do Poder por Rossellini A Tomada do Poder por Luís XIV, filme que Roberto Rossellini dirigiu em 1966 para a televisão francesa (argumento e diálogos de Jean Gruault, segundo a notável monografia de Phillipe Erlanger, publicada em 1965 pelas edições Fayard), é uma das raras obras fundamentais estreadas em 1972 em salas portuguesas. Porque o filme coloca, de maneira exemplar, uma série de questões decisivas na prática do cinema, nomeadamente ao nível de certas noções que informam grande parte do cinema moderno, proponho, a título provisório, alguns elementos para uma leitura plural do filme. A) O material da ficção Em 1661, ano em que morre o cardeal Mazarino, ministro regente de França, íntimo de Ana de Áustria, o rei Luís XIV, até então discípulo obediente dos conselhos do cardeal, formula o desejo de se tomar o único senhor do governo e dos destinos do país. Mais tarde, numa carta dedicada ao marquês de Villars, o rei escreveria que «engrandecer-se é a mais digna e a mais agradável ocupação dos soberanos». A fim de engrandecer a França e o seu reinado, Luís XIV exalta, em cada uma das suas atitudes políticas, a soberania totalitária do governo monárquico e a tradição dogmática do chamado direito divino. A famosa expressão «o Estado sou eu», atribuída com bons motivos a Luís XIV, vale indiscutivelmente como o sinal emblemático de uma vontade que parece não se ter ainda perdido : o monarca
144
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
dispõe dos súbditos assim como a religião dispõe dos fiéis, uns e outros devotados à adoração de um ideal que se situa acima de escala humana. Bons (ou maus) motivos existem também para se ter cognominado Luís XIV de o Rei Cristão; ele era, segundo reza a imagem da época, o Eleito. Eleito não pelo povo, que, na altura, dizem Racine e Bossuet, entre outras testemunhas distinguidas com os favores do rei, atravessava um período prolongado de miséria geral. O regime agrícola da monocultura e os impostos excessivos servem apenas para satisfazer os caprichos da nobreza e da economia mercantil. É talvez por isso que o povo está ausente do filme de Rossellini, a não ser nos primeiros planos — para afirmar desde logo a sua condição, por enquanto impotente, e para ousar dizer que, afinal, apesar dos privilégios, quer o cardeal quer o rei são pessoas como quaisquer outras! Daí para a frente, Rossellini segue de perto os personagens que então marcam a história e mostra-nos, através deles, uma outra imagem da história. Morto Mazarino, enterrado com a pompa das honrarias reservadas apenas aos membros da família real, Luís XIV, sem hesitação, luta pelo triunfo de uma certa ordem: aquela que faz depender da sua pessoa todos os interesses de França. Sendo o rei o centro do país, a Corte torna-se o albergue dourado dos grandes senhores. Versalhes ilumina-se para receber quem de direito. E como o direito está sempre do lado do Estado, e como o Estado é Luís XIV, o rei dita as razões da sua vontade (a vontade do Estado), escolhe quem pode assistir aos conselhos, elimina aqueles cuja prepotência se torna perigosa (Fouquet), protege os que salvaguardam os desígnios do seu programa político. Enquanto Colbert se esforça por equilibrar o orçamento dos cofres reais, Luís XIV não olha a despesas para assegurar a ordem e a glória do seu reino. Em que moldes se processa a tomada do Poder por Luís XIV é do que trata o filme de Roberto Rossellini. Embora, de facto, Rossellini tivesse filmado Luís XIV como se fosse seu contemporâneo, como se o cinema (ou a televisão) já existisse no século xvii (filmagem por processos de reportagem, som directo, travelling óptico, etc.), convém distinguir a história da ficção e lembrar
O CINEMA E A HISTÓRIA
145
este primeiro pressuposto cinematográfico: todo o filme, seja qual for o seu índice de aparente não manipulação, «realismo», «objectividade» ou «verdade», constitui uma ficção, isto é, uma forma narrativa ou descritiva sujeita a convenções próprias. O material da ficção de A Tomada do Poder por Luís XIV é a História, mas o discurso do filme não se limita a reflectir sobre a História (reflexão de resto deliberadamente limitada a um aspecto particular da História), procura também fornecer elementos para um outro tipo de análise, directamente relacionada com as formas específicas do processo cinematográfico. Como veremos. B) O filme histórico O filme de reconstituição de época, com todo o arsenal de efeitos especiais, cenários sumptuosos, centenas de figurantes, vedetas, convidados e outros recursos de produção a que Hollywood nos habituou, foi, praticamente desde os primórdios da organização da indústria cinematográfica, tanto na Europa como na América, um dos géneros comercialmente mais rentáveis. Depois das superproduções que em Itália, na primeira década do século, conheceram um prestígio sem precedentes, graças às realizações de Mario Caserini e de Giovanni Pastrone, os produtores norte-americanos lançaram-se na aventura «histórica», de que os nomes de Griffith e de Cecil B. de Mile, entre os mais importantes, se tornaram justificadamente os mais mencionados nas histórias do cinema. Esta preocupação em transformar a História num espectáculo fértil em acontecimentos heróicos deve-se não apenas a uma certa concepção do espectáculo cinematográfico (que seria, por princípio, algo de exuberante, exótico, monumental, grandioso, portanto longe dos dramas intimistas e das comédias de boulevard que serviram as séries correntes dos primeiros anos do cinema sonoro), mas, sobretudo, a uma determinada concepção idealista da História (que seria, por princípio, uma acumulação linear de datas significativas, nomes ilustres, batalhas, reis e heróis míticos). É ver, por exemplo, em filmes relativamente recentes, como os directores americanos ou italianos, de
146
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Hollywood à Cinecittà, passam de A Queda do Império Romano para o Cid, da Cleópatra para o Ben-Hur, de Camelot para Lawrence da Arábia, de Hércules para Maciste, misturando a seu bel-prazer figuras históricas com personagens lendários e emprestando a quase todas as reconstituições de época o ar de anacronismo indispensável à ornamentação dos cenários e dos actores. O espectacular reside aqui no acessório. Resumindo, quero eu dizer que o cinema dito «histórico», classificado pela indústria como um género de consumo, ao lado do «policial», do western ou do «melodrama», não passa, a maior parte das vezes, de uma fórmula para justificar o fausto das produções e veicular cuidadosamente propósitos ideológicos reaccionários, convenientes à exaltação dos heróis exemplares. De resto, o filme histórico produzido em Hollywood é normalmente uma camuflagem de luxo do filme de aventuras ou do melodrama, de uma maneira ou de outra alimentados pelas intrigas sentimentais, pelas peripécias romanescas e por um moralismo forjado a partir de necessidades presentes. Dir-se-ia que o cinema entra na história mas a História não entra no cinema. Mesmo conhecendo o esquematismo de tal afirmação, creio não ser totalmente incorrecto dizer que os escassos modelos disponíveis de uma tentativa de conceber um cinema histórico, não limitada pelos vícios acima esboçados, se encontram sobretudo nos filmes de Sergei Eisenstein, cujo Alexandre Nevsky é precisamente um exemplo equívoco. As tentativas fundamentais de Eisenstein estão do lado de Outubro, O Couraçado Potemkin e Ivan, «o Terrível». Em Itália, à parte Rossellini, com Francesco e Vanina Vanini, não vale a pena mencionar mais ninguém a não ser Visconti, por dois filmes cujo romantismo exacerbado parece reduzir as perspectivas da análise histórica: Sentimento e O Leopardo. Mais recentemente, haveria, sem dúvida, que discutir os filmes dos irmãos Taviani, Sotto il Signo dello Scorpione, San Michelle Aveva Un Gaio e Allonsafan. A Tomada do Poder por Luís XIV pode considerar-se um filme histórico, não só porque a reconstituição da época obedece a uma documentação minuciosa e neces-
O CINEMA E A HISTÓRIA
147
sária, mas porque, efectivamente, o filme de Rossellini procura revelar de uma determinada época histórica a ilusão própria dessa época e mostrar que a produção das ideias, das representações, do comportamento social, da consciência e da moral está directamente ligada à actividade material dos homens e às relações de força que asseguram e parecem justificar a posição da classe dominante: as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias. Adiante veremos como a reconstituição da época, rigorosamente fiel aos rituais da corte de Luís XIV, e dispensando o luxo das tradicionais aventuras sentimentais ou heróicas, deixa de ser um acessório ornamental (como, por exemplo, em Cleópatra ou em Camelot) ou sequer um referente legítimo (como nos filmes de Visconti já citados) para constituir a própria matéria significante do filme. C) O filme didáctico A definição mais simples de filme didáctico será talvez aquela que se limita a apontar que é didáctico todo o filme que, mostrando determinadas coisas, nos dá a ver (compreender) o sistema de relações que entre elas se forma e as informa. É sabido que qualquer filme nos mostra sempre alguma coisa, até porque, a maior parte das vezes, as coisas que nos são mostradas nos filmes servem justamente para ocultar (não dar a ver) o sistema concreto de relações que as determina. Assim, por exemplo, como sublinhei, no cinema histórico que segue o modelo tradicional de Hollywood, a reconstituição de época pode ter um carácter puramente decorativo, acessório, espectacular, isto é, dis tractivo, no sentido preciso do termo : distrair, desviar o espectador do essencial. Ora bem, o cinema de Roberto Rossellini não distrai o espectador do essencial, mesmo quando nos mostra o que é aparentemente acessório, não desliza nunca para o supérfluo, antes vai directo à razão de ser das coisas e das pessoas, tenta compreendê-las e transmitir-nos o entusiasmo dessa compreensão sem se atrever a emitir juízos definitivos acerca do que se passa diante da câmara. Rossellini mostra, o espectador que demonstre.
148
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
A famosa liberdade que Rossellini concede ao espectador não é mais do que isto: um olhar atento que desperta a atenção, um olhar curioso que provoca a curiosidade, um olhar compreensivo que sugere a compreensão, um olhar generoso que chama a generosidade. É, portanto, exactamente o contrário de um olhar neutro ou pretensamente inocente; nada mais comprometido, logo comprometedor, do que um filme de Roberto Rossellini. É para nos obrigar a tomar uma posição que Rossellini nos concede a liberdade. E, ao nível dos efeitos, como no teatro didáctico de Brecht, este filme de Rossellini evita que o espectador participe na ficção, para o tornar, de certo modo, testemunha da história e da História, desperta-lhe a actividade racional, dispensa-lhe os sentimentos, mas exige-lhe decisões, transforma as sensações e as emoções estéticas em elementos de conhecimento e de análise crítica, enfim, não projecta o espectador no universo da história (ou da História) mas coloca-o diante dela. A Tomada do Poder por Luís XIV é um filme que recusa categoricamente todo o investimento sentimental que os espectadores possam fazer nos personagens; estes não são nunca definidos pelos traços psicológicos característicos das formas narrativas burguesas mas por determinações materiais e políticas precisas. Daí que os intérpretes debitem os seus diálogos num tom quase monocórdico; daí que Rossellini escolha não privilegiar os chamados momentos fortes da acção e que, portanto, insista constantemente em não dramatizar a História. Se Luís XIV nos parece, apesar de tudo, uma figura extraordinária, grandiosa na sua desmesura, finalmente tímido e solitário, é para que melhor o possamos destacar dos reis-heróis dos manuais de escola primária e dos filmes falsamente ingénuos de Hollywood, é para que mais facilmente possamos pôr em dúvida as ideias feitas e mecanicamente transmitidas que circulam numa roda infinita de lugares-comuns. «A técnica da dúvida, dúvida perante os acontecimentos usuais, óbvios, acontecimentos jamais postos em dúvida, foi cuidadosamente elaborada pela ciência, e não há motivo para que a arte não adopte também uma atitude tão profundamente útil como essa» (Brecht). Portanto A Tomada do Poder de Luís XIV é um filme que procura dar-nos o máximo de informações com um
O CINEMA E A HISTÓRIA
149
mínimo de efeitos (o que é, decididamente, o contrário do cinema dito histórico, concebido segundo os moldes da superprodução americana) e que consegue fazer-nos compreender um sistema político — o de Luís XIV — justamente através daquilo que, nos outros filmes «históricos», nos sugere como acessório ou ornamental: o ritual da Corte, o código da etiqueta, a imposição das modas, os esquemas morais e de honra, as representações sociais e, em primeiro lugar, a função política do espectador em determinado contexto social. D) O filme político Não é fácil estabelecer uma definição satisfatória de filme político. Mesmo no seio da crítica cinematográfica, aqui como noutros sectores, reinam a confusão e o empirismo. Na imprensa especializada estrangeira, o filme político aparece já classificado, recuperado pelo comércio como género de consumo : ao lado da comédia musical, do drama e do filme histórico, aparece agora o chamado «filme político». Quase sempre, essa classificação jornalística engloba de preferência os filmes cujos temas estejam estreitamente ligados à actualidade política (caso dos filmes de Costa-Gravas e de Yves Boisset) e não os filmes que elaboram realmente um discurso político fílmico, isto é, aqueles que, considerando o cinema uma prática significante específica, procuram pôr em causa o sistema capitalista de produção, o modo dominante da estrutura narrativa idealista e da visão passiva do cinema (exemplos: os últimos filmes de Godard e de Straub). Por outro lado, haveria que distinguir prudentemente entre filme militante e filme de propaganda, entre filme progressista e filme revolucionário. De uma maneira ou de outra, estes filmes têm um carácter acentuadamente político e, em última análise, todo o cinema é político na medida em que veicula obrigatoriamente uma determinada ideologia. Os filmes que se dizem alheios à política veiculam, evidentemente, a ideologia dominante. Para simplificar, define-se aqui como filme político todo e qualquer filme que inculque, através dos diversos códigos cinematográficos, princípios ideológicos que animam uma classe na
150
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
sua luta contra outra classe. Convém, pois, distinguir entre os possíveis discursos políticos no filme e o discurso político do filme. Á Tomada do Poder por Luís XIV desmonta, sem mais nem menos, os propósitos dos vários discursos políticos dos personagens (Mazarino, Luís XIV, Colbert, Fouquet) e traça, ao mesmo tempo, um discurso político sobre a natureza da sua própria materialidade (modo de produção dos seus significantes). Quer isto dizer que Rossellini não toma o cinema por um simples transporte ideológico (como Costa-Gravas) mas opera um aturado trabalho de escrita ao nível do discurso ffimico. Vamos aos exemplos concretos. Luís XIV, que a si mesmo se designa como o Rei-Sol, faz gravitar à sua volta a nobreza francesa e institui-se, aos olhos do país, como o espectáculo modelar da magnificência, da grandeza e do Poder. Herdeiro submisso do direito divino e do absolutismo monárquico, que os seus antecessores e ministros prepararam demoradamente, Luís XIV organiza e controla uma perfeita mise-en-scène da qual ele próprio será a primeira figura. Transformado em palco de uma enorme mascarada, carnaval e festa permanentes, Versalhes projecta-se na Europa como um símbolo ofuscante. O mundo torna-se écran de Luís XIV em grande plano. Tudo, na Corte, literalmente tudo, se transforma em espectáculo: o despertar do rei, as orações do rei, os passeios do rei, os trajes do rei, os amores do rei, as caçadas do rei, as maneiras do rei, as refeições do rei. Vedeta máxima de uma «companhia teatral» que em breve abrangerá praticamente toda a nobreza, Luís XIV propõe um espectáculo que (ao contrário do filme de Rossellini) tem por missão distrair os súbditos do essencial, isto é, da legitimidade do seu governo e das questões políticas urgentes. A este nível, a refeição final do rei, composta por catorze soberbos pratos acompanhados com música, assistida religiosamente por toda a Corte, assinala o completo funcionamento do totalitarismo monárquico, garantido pelas regras do jogo teatral. Ora, o jogo teatral da classe dominante, em qualquer sociedade, consiste justamente em ocultar as relações de força que são o fundamento do seu domínio, intervindo
O CINEMA E A HISTÓRIA
151
aqui o espectáculo como o meio público ideal para distrair as pessoas dos problemas sociais da vida quotidiana. O privilégio não é apenas do teatro (e, hoje, do cinema, da televisão e do desporto), mas de todos os rituais institucionalizados e transmitidos pela tradição social. De novo Brecht, a propósito da teatralidade do fascismo: Proponho que examinemos como actuam os opressores, não nos teatros mas na rua e nos locais de reunião, em suas casas, nas suas chancelarias e nas salas de audiência. Por jogo teatral quero eu dizer que eles não se comportam apenas consoante a exigência dos seus actos, mas que agem com a plena consciência de estarem expostos aos olhares do mundo e que fazem tudo para que os seus actos e atitudes se imponham aos olhos do público como evidentes e exemplares. Se considerarmos que, no filme, a mise-en-scène de Luís XIV obedece a outra mise-en-scène — a de Roberto Rossellini — verificamos até que ponto o acessório e o ornamental (factores indispensáveis à mise-en-scène do rei) constituem a própria matéria significante do filme, e até que ponto o cineasta confessa implícita e explicitamente a função política de espectáculos diametralmente opostos: ao contrário da mise-en-scène de Rossellini, que é por excelência o cineasta da liberdade, a mise-en-scène de Luís XIV é a prova evidente da sua ditadura. 2. Eisenstein: a arte e a revolução A) À margem de «Alexandre Nevski» Recentemente «descoberto» em Portugal com a estreia de Ivan, «o Terrível» (1945-1948), um dos filmes decisivos da história do cinema, Sergei Eisenstein arrisca-se agora, com a exibição de Alexandre Nevski, a ser alvo de uma revisão crítica parcelar, limitada por uma informação irremediavelmente deficiente. As propostas de leitura implícitas neste artigo não ocultam o seu carácter fragmentado, acunar, apenas procuram contribuir para uma discussão
152
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
necessária dos múltiplos problemas que provoca, entre nós, a exibição tardia de um filme complexo como Alexandre Nevski. Estão, portanto, fora de causa a importância do filme de Eisenstein e o significado da sua entrada no circuito comercial português. Toda a obra de Eisenstein, tanto filmes como textos teóricos, se encontra indissoluvelmente ligada à época revolucionária da arte soviética durante os anos vinte e trinta e a uma prática social que marcou o curso da história na Rússia, e não só. A primeira dificuldade, para falar abertamente de Eisenstein, surge quando a abordagem de filmes como A Greve (1924), O Couraçado Potemkin (1925) e Outubro (1927), por exemplo, é praticamente impossível nas condições da nossa exibição e informação cinematográficas. Os filmes de Sergei Eisenstein são contemporâneos da Revolução Soviética, quer isto dizer que participam activamente dos seus pressupostos ideológicos e políticos, e também da sua transformação. O formalismo de que muitas vezes se acusa Eisenstein, e de que Alexandre Nevski é um exemplo epigonal, é o reflexo, na prática especificamente cinematográfica, de um movimento social por vezes pouco definido, sujeito a algumas contradições. Contradições inevitáveis que, tanto ao nível das formas estéticas significantes como ao nível do itinerário político, assinalam a distância que surge entre O Couraçado Potemkin (1925) e Alexandre Nevski (1938). A produção do filme Alexandre Nevski começa em fins de 1937, treze anos depois da morte de Lenine, que afirmava, justamente, ser o cinema, para os bolchevistas, a mais importante de todas as artes. Entre 1923 e 1927 Estaline toma progressivamente conta do Poder. Em 1936, a direcção do Partido Bolchevista é substituída na sua quase totalidade por um novo grupo, que assegura a eficiência absoluta do domínio estalinista. Em 1929, Estaline não aprovara algumas cenas do filme A Linha Geral, pelo que Eisenstein se vê obrigado a rodar novas sequências, a alterar a montagem e a designar o filme com um novo título: O Antigo e o Moderno. Em 1935, depois das suas experiências malogradas em Hollywood e no México, Eisenstein começa a rodar, de novo
O CINEMA E A HISTÓRIA
153
na Rússia, O Prado de Bezhin. Em 1937, as filmagens são interrompidas por Chumiatsky, director-geral da cinematografia soviética, com o pretexto inegável de que Eisenstein não aplicava ao cinema as teses oficiais que Zhdanov instaurava para as artes. Publicada a autocrítica das suas actividades, Eisenstein aceita o projecto de Alexandre Nevski, filme que ele próprio, nas Reflexões de Um Cineasta (edição Arcádia), define como sendo uma exaltação nacionalista. Em 1938, antes da estreia na Rússia de Alexandre Nevski, Eisenstein é condecorado com a Ordem de Lenine. Nesta altura, o espectro sinistro de Hitler caíra já sobre a Europa e os seus ataques histéricos visavam sobremaneira os países e os partidos comunistas. Depois da anexação da Áustria em 1938, as tropas nazis invadiam, no ano seguinte, a Checoslováquia e a Polónia. Falhadas as tentativas de suster o crescimento alarmante do nacional-socialismo na Alemanha, Estaline prepara cuidadosamente na União Soviética todos os pontos de resistência contra o inimigo, a começar pela exaltação patriótica do povo TUSSO.
Ora, Alexandre Nevski, figura histórica e lendária, príncipe-herói a quem a canonização oficial da igreja ortodoxa oferece o indispensável suplemento sobrenatural, salvara no século XIII a Rússia do inimigo germânico. Com o auxílio das milícias da cidade de Novgorod, Alexandre Nevski repele os cavaleiros teutões, os quais derrota espectacularmente na chamada Batalha do Gelo, no lago Peipous. À volta deste acontecimento central (na versão original, segundo escreve Jean Mitry no livro que dedicou a Eisenstein, a Batalha do Gelo ocupava sensivelmente metade da duração do filme) constrói Eisenstein uma simbologia cerrada sobre a actualidade política do momento. Desde as referências iconográficas (exemplos: Alexandre surge das águas, puro, confiante, sorridente, seguro de si; a missa campal dos Teutões e o misticismo de massa dos nazis) até aos discursos nacionalistas do protagonista, tudo no filme pode ser considerado como o sintoma de outra situação histórica, facilmente decifrável, legível a cada instante. O filme não só sublinha insistentemente o seu carácter antigermânico, determinado pelo conflito aberto entre a
154
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
União Soviética e a Alemanha nazi, como traça, ao mesmo tempo, o elogio do chefe e o culto da personalidade, características conhecidas do governo de Estaline. Alexandre é distinguido pela vontade do povo para combater e aniquilar o exército invasor; Alexandre é apresentado como sendo o chefe providencial que salva a Rússia de todos os seus inimigos (anteriormente esmagara uma invasão sueca); numa palavra, Alexandre é mitificado. Por outro lado, a oposição entre os Teutões e os Russos, nas cenas da batalha, é nitidamente construída segundo um esquema maniqueista, de inteligente composição plástica e extrema eficácia visual. O exército dos invasores germânicos avança como uma máquina uniforme (a começar pelos uniformes brancos), pesada, lúgubre; exército sem rostos, viseiras maciças, gestos silenciosos e silenciadores, lanças em riste, propósitos desumanos. A assegurar a integridade do solo pátrio encontram-se as milícias do povo russo, formadas à pressa, assistidas pela razão. De rosto descoberto, plenos de esperança, mesmo de alegria, os Russos defendem-se atacando sob as ordens de Alexandre Nevski. Então, pela primeira vez no filme, a figura beatífica de Alexandre quase desaparece para dar lugar à acção conjunta dos combatentes. Breve instante, porém, porque logo a entrada triunfal de Alexandre às portas da cidade faz ressaltar novamente aquilo que nunca esteve ausente do filme: o culto da personalidade e a retórica nacionalista. A este nível, é evidente que Alexandre Nevski não constitui de modo algum uma análise marxista da guerra nem se pode colocar ao lado de filmes que tentavam uma perspectiva materialista da história, como é o caso de O Couraçado Potemkin, Outubro e Greve. Sendo Alexandre Nevski o primeiro filme sonoro de Eisenstein, não admira que o realizador nele tenha concentrado um determinado número de experiências em que vinha pensando. A partitura de Prokofiev procura amiúde criar um contraponto audiovisual graças ao qual o filme pudesse assumir uma verdadeira dimensão coral. Assim, por exemplo, sempre que os Teutões entram em cena, a música torna-se «grave»; quando se trata de acompanhar os populares russos, a música torna-se discretamente mais «ligeira». O exemplo extremo é-nos dado nas sequências
O CINEMA E A HISTÓRIA
155
da Batalha do Gelo : quando os Teutões estão a ser vencidos ou perseguidos, a música tem quase «burlesco»; quando são os Russos os derrotados ou feridos, o acompanhamento musical surge naturalmente «trágico». Num livro fundamental, The Film Sense, Eisenstein explica minuciosamente as preocupações estéticas a que obedeceu a concepção plástica de Alexandre Nevski. Preocupações legítimas que ultrapassam o sentido político do filme mas que nele não podem deixar de se inscrever. Ainda aqui, a complexidade do filme e as suas contradições mais não fazem do que denunciar-se como sintomas da posição de Eisenstein («cineasta», «artista», «génio») num determinado contexto político, o da sociedade regida pela vontade totalitária de Estaline. Embora chegasse a estar proibido durante o breve pacto de não agressão germano-soviético (1939), o filme de Eisenstein obteve depois um assinalável sucesso na União Soviética. Em 1942, Estaline proclama o príncipe Alexandre Nevski herói nacional e institui a Ordem de Alexandre Nevski. B) Ivan, a história e a representação Ao iniciar com a sagração de Ivan, o filme escreve, desde logo, a figura do czar numa cadeia simbólica. Ivan recebe a coroa em nome de Deus-Pai para poder transgredir imediatamente o pacto que deste modo estabelecera com a ordem tradicional: «A partir de hoje as terras russas formarão um só estado. Deste modo ponho fim ao poder odioso dos boiardos. Do mesmo modo, os mosteiros passam a participar das despesas militares» (do discurso de Ivan na cena da coroação). Assim, enquanto os dignitários da Igreja encaram as atitudes inesperadas de Ivan como sendo «artimanhas do Diabo» (palavras do bispo Filipe, no filme), a figura mítica do czar cristaliza nos enquadramentos obsessivos, no olhar de outros personagens ao mesmo tempo que no olhar dos espectadores (exemplo : cena em que Basmanov aponta ao filho a presença do czar junto da tenda de campanha, como que projectado no céu). De uma maneira como de outra, Ivan pertence já a uma realidade mitificada, exemplificada nas formas rituais do sagrado.
156
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Quando, na sequência final da primeira parte do filme, o czar regressa a Moscovo para assumir o sofrimento e o luto do povo russo, a evocação do Pai apresenta-se, de uma vez por todas, explícita. É a solicitação do despotismo patriarcal, marcado pela superstição religiosa, que introduz o curso da nova ordem. Se a missão de Ivan pertence, por diversas condições, às zonas do divino e do interdito ( qualidades essenciais do Pai), apenas a vontade do povo — como ele próprio confessa — lhe dará um poder ilimitado. É natural, portanto, que a transgressão violenta de Ivan em relação à ordem do velho mundo se defina na constituição de um poder revolucionário contra os privilégios. Coerente com o exercício do Poder em detrimento da sua origem, contra os valores da sua própria classe, Ivan vai transferindo para os elementos populares os cargos fundamentais do contrôle político, que até então tinham deslizado ao sabor do arbítrio feudal. Para Ivan, ao contrário de Vladimir, o trono é apenas um meio, nunca um fim. Não será, pois, acidental que Vladimir se revele, no sentido clínico da palavra, um idiota. Um trono sem razão é, efectivamente, um condão de loucos. Ligado pela origem e pela tradição a urna classe a que agora inevitavelmente se opõe, mas ainda separado dos que o servem, Ivan debate-se com a solidão a dois níveis definida: o político e o psicológico. Da interdependência destes dois níveis surgem todas as contradições que caracterizam o personagem e, simultaneamente, orientam o texto fílmico. «Todas as coisas contraditórias estão inter-relacionadas, e não só coexistem numa identidade, em certas condições, como também se transformam umas nas outras, em certas condições; é este o significado total da identidade das contradições» (Mao Tsé-Tung). Ivan é o signo da coincidência e das transformações, é a lei, numa outra palavra, é único. De facto, em Ivan, talvez melhor do que em qualquer outro personagem de Eisenstein, «as máscaras alternadas de um mesmo rosto» procuram na oposição dos outros a razão e as condições da sua existência. «Rosto que é a incarnação de uma ideia final: conseguir a unidade» — para utilizar uma expressão do próprio realizador. Vemos assim que se a preocupação política de Ivan é conseguir a unidade do estado; por outro lado, a obsessão
O CINEMA E A HISTÓRIA
157
plástica de Eisenstein traduz-se também na ideia de unidade necessária. Mas, ao contrário do cinema idealista corrente na época (1943-1946), que em Hollywood, com a célebre teoria da transparência, dera já o seu equilíbrio máximo, Eisenstein procura a unidade no conflito entre os elementos fílmicos (espaço cénico, olhares, gestos e movimentos dos actores, cenários, diálogos, música, ruídos, etc.), no descentramento sistemático de toda a representação apoiada nos modelos idealistas de percepção. Nisto, os filmes de Eisenstein são, possivelmente, o primeiro modelo de uma prática materialista do cinema. Escreve o autor de O Couraçado Potemkin: «A propósito do emprego dos meios de expressão em cinema existe um ponto de vista, largamente difundido, que, em minha opinião, constitui uma enormíssima extravagância. Consiste esse ponto de vista em pretender que a música de um filme é boa quando a não ouvimos, que a fotografia é óptima se não prende a atenção, que a encenação é perfeita quando não chegamos a distingui-la» (Eisenstein, Reflexões de Um Cineasta, Editora Arcádia, 1961). C) A montagem materialista Partindo do princípio, correcto em toda a medida, de que a montagem cinematográfica (especificamente depois do filme rodado) é apenas um caso particular da montagem em geral, Eisenstein constrói o filme como se de uma polifonia audiovisual se tratasse. A música de Prokofiev irrompe para se destacar e com ela destacar o ritmo da acção, as réplicas dos actores comentam-se mutuamente, opõem-se por vezes mais do que se completam, provocando deste modo um significado múltiplo permanenete (exemplo: cena do funeral de Anastásia, em que a leitura dos salmos por Pimene e a relação das deserções dos traidores feita por Maliouta são o comentário directo à situação e às reflexões de Ivan — as duas leituras representam, no plano visual e no discurso sonoro, o combate interior de Ivan nesse preciso momento). Da mesma maneira, o ritmo dos gestos na composição de cada plano, da distorção da cor numa sequência da segunda parte ou a rigorosa disposição geométrica de alguns cenários, são
158
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
o sinal ostensivo de uma realização que se quer comprometida em todos os pormenores. Por outras palavras, Eisenstein manipula intencionalmente os vários códigos e subcódigos, cinematográficos e não cinematográficos, que compõem as matérias de expressão do cinema. É portanto da resistência, do confronto e da interpenetração constante dos diversos elementos fílmicos que Eisenstein vai obter a unidade dialéctica. Referindo-se à montagem, Eisenstein citava como exemplos de montagem dialéctica os ideogramas japoneses, nos quais dois sinais diferentes produzem, pela sua justaposição, um conceito novo. Assim, também a justaposição das particularidades pró-fílmicas e dos fragmentos de filme produz um resultado qualitativamente diferente de cada um dos seus componentes. Uma teoria semelhante encontra-se hoje, por exemplo, em Lacan: «a frase [...] não termina a sua significação senão com o seu último termo, estando cada termo antecipado na construção dos outros, e de modo inverso marcando o seu sentido pelo efeito retroactivo». Porém, se estas observações são, de um modo geral, justas para a maioria das formas críticas da montagem, a prática de Eisenstein propõe outra perspectiva mais radical. No modo de produção do filme idealista, a montagem tem por função estabelecer a continuidade-linearidade narrativa no espaço fílmico, continuidade necessária à constituição do «sentido» e ao reconhecimento do sujeito, ele próprio constitutivo desse «sentido» (a continuidade espácio-temporal é um atributo do sujeito); portanto — risco ideológico vital na procura de uma tal continuidade narrativa pelo cinema do capitalismo — trata-se de salvaguardar a unidade sintética do centro desse «sentido» (o sujeito), segregando ele próprio, «naturalmente», a continuidade da sua história. Pelo contrário, a montagem eisensteiniana faz surgir uma descontinuidade ameaçadora ao nível da sequência narrativa [...] A fragmentação da sequência narrativa pela montagem eisensteiniana consiste em fazer apreender verticalmente na linearidade da narração os traços da rede de códigos múltiplos a infinitos
O CINEMA E A HISTÓRIA
159
(políticos, económicos, ideológicos) que crivam o texto do filme e o constituem. A montagem eisensteiniana, ao contrário da montagem «natural» (idealista), é sistemática e exige uma leitura sistemática ( materialista), o que lhe dá a reputação de ser «ditatorial» (mas de uma outra ditadura; o totalitarismo não está do lado que se julga) — efectuando uma desmontagem sistemática dos modelos idealistas de percepção (de conhecimentos). (Cine-Forum, Poitiers, Abril 1971.) A des-montagem e a fragmentação produzidas pelo cinema de Eisenstein começam, como já indiquei, antes da montagem especificamente cinematográfica. É este processo produtor de sentido que leva Eisenstein a distinguir — no termo preciso em que cada distinção implica uma oposição «a vida do personagem imaginário» do «jogo do actor real», uma e outro subordinados a uma «concepção histórica do tema» e ao «desenvolvimento geral do drama» (terminologia de Eisenstein in Algumas Palavras sobre os Meus Desenhos, Moscovo, 1967). É nesta teia complexa que os vários sentidos se jogam e, ao jogarem-se, se formam. Quer dizer, a figura histórica de Ivan não é exactamente o personagem imaginário de Eisenstein e muitos menos a presença envolvente do actor Tcherkassov. Sublinhar que cada um não pode surgir, no filme, sem os outros e forma mesmo a condição básica da sua existência é o primeiro passo para uma leitura correcta da obra. Simplificando, o próprio cineasta afirmava procurar «directamente na imagem ou na combinação das imagens o meio de provocar as reacções emotivas previstas». Ou seja, «trata-se de realizar uma série de imagens compostas de tal maneira que provoquem um movimento afectivo que, por seu turno, desencadeie uma série de ideias. Da imagem ao sentimento, do sentimento à tese». (Eisenstein, Conferência da Sorbonne, 1930.) D) A transfiguração da História Ivan IV (1530-1584) faz-se coroar em 1547, pela primeira vez na história, czar de todas as Rússias. Numa época em que o domínio russo se estende desde o Norte
160
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
de Kiev até ao mar Branco, do Báltico ao rio Petchora, abrangendo mais de um milhão de quilómetros quadrados, Ivan IV é talvez o primeiro monarca russo a aperceber-se da necessidade de unificar o país, consequentemente, de retirar à aristocracia rural, ligada a interesses económicos estrangeiros (os boiardos), os privilégios que até essa altura lhes facultavam a detenção abusiva do Poder. É com perfeito conhecimento de causa que Eisenstein é levado a acentuar alguns dados «progressistas» do governo de Ivan e a estilizar na classe dos boiardos as características de reacção contra a centralização do Poder, a independência nacional e a atenção pelos interesses comuns da população. O que fascinava realmente Eisenstein, segundo uma expressão sua (publicada na lzvestia, 30 de Abril de 1941), era pois «recriar no filme os traços desse poeta da ideia estatista do século XVI». Desta maneira, acusar o filme de ignorar as contradições históricas do reinado de Ivan ou de deturpar voluntariamente a personalidade do czar é passar ao lado do filme, isto é, da ideia que o move e o justifica. Erro que tem sido o de muita «crítica», a começar pelos funcionários que, em 1946, na própria União Soviética, sob as ordens de Estaline, proibiram a segunda parte do filme (desmontagem crítica da ascensão mitológica do czar, que caracteriza a primeira parte do filme, esta galardoada no mesmo ano com o Prémio Stáline do Cinema) com o pretexto de que «Eisenstein manifestou ignorância na representação dos factos históricos» e, pecado maior, apresentara «Ivan, o Terrível, homem de uma grande força de vontade e de carácter firme, como um ser fraco e hesitante, como uma espécie de Hamlet» (segundo o documento publicado pela Comissão Central do Partido Comunista da U. R. S. S. na revista Litteratounaia Gazeta em 14 de Setembro de 1946). O filme só foi autorizado na Rússia em versão integral, incluindo portanto a segunda parte, em 1958. É enorme, efectivamente, a tentação de comparar o Ivan do filme com Hamlet, personagem de Shakespeare. Se é verdade que têm em comum o facto de em si concentrarem algumas tangentes que delimitam a tragédia da solidão, do Poder e da loucura, poder-se-ia desde logo contrapor que a dúvida de Ivan é diametralmente oposta à de Hamlet, embora em ambos os casos ela instaure a
O CINEMA E A HISTÓRIA
161
grandeza do drama. Onde a dúvida de Hamlet define a fraqueza essencial do personagem, afastado de toda a eficiência prática, logo política, refugiado na loucura por medo da loucura, é precisamente onde se assegura a força de Ivan, consciente do seu poder, confiado na lucidez, decidido a preservar a integridade de um ideal justo mesmo se o preço, porventura excessivo, for o da incerteza da sua justiça. As transfigurações de Ivan, quer no interior do filme, quer nas interpretações díspares de que tem sido objecto, mais não fazem do que precisar a via a que Eisenstein submeteu a produção do sentido da obra. A grande força de vontade e o carácter firme de Ivan IV podem certamente ter modificado o curso da História (o que continua suficientemente explícito no filme), mas as consequências particulares dessa acção não deixaram também de se reflectir na transformação da personalidade que as desencadeou. Mesmo um indivíduo excepcional numa situação excepcional (postulado do filme) não pode, objectivamente, determinar o curso dos acontecimentos sociais sem que essa imposição o determine por sua vez. Esta é a mais clara «lição» do filme, implícita no artigo que Eisenstein publicou mais tarde em resposta às acusações injustas com que o atacavam: Sabemos que Ivan, o Terrível, era um homem dotado de uma grande força de vontade e de um carácter firme. Mas isso exclui a presença de certas dúvidas em casos particulares? É difícil de admitir que um homem que realizou para o seu tempo actos inauditos e sem precedentes jamais tenha meditado sobre a escolha dos meios a utilizar, jamais tenha hesitado quanto ao modo de agir consoante os casos... (In jornal Koultoura i Jizn de 20 de Outubro de 1946.) Na verdade a repressão de que foi alvo a segunda parte de Ivan e a maior parte das censuras que, esporadicamente, ainda hoje se fazem ao filme são a consequência de uma nova mentalidade académica que durante bastantes anos limitou praticamente toda a pesquisa marxista do processo artístico. Quando se acusa Eisenstein de ignorar «os factos históricos» pretende-se denunciar, por essa su-
162
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
posta ausência de fidelidade aos acontecimentos, a falta de realismo («histórico») de Ivan, «o Terrível», partindo da ideia simplista, aliás incorrecta, de que o realismo se pode medir em graus de aproximação com as aparências, a convenção e o típico, tornando-se deste modo mais acessível às massas. (Ver John Berger, Art and Revolution, Penguin Books, 1969.) Com uma atitude puramente dogmática demitia-se o filme por razões que lhe eram alheias. Ivan não é a reconstituição circunstancial de uma época dada a uma tentativa de biografia «romanceada», mas, sobretudo, um apelo à análise materialista de certas constantes políticas centradas no exercício do Poder. De resto, como tentei mostrar, é através de um aturado trabalho de escrita que Eisenstein expõe as condições míticas que favorecem a inviolabilidade do Estado, sendo, neste aspecto, Ivan uma das acusações (cinematográficas) mais radicais da mistificação do Poder e do poder da mistificação. O formalismo de que se acusava Eisenstein ocultava, de um só golpe, todo o aspecto deliberadamente monumental do filme. Para empregar uma palavra de ordem de Brecht, esquecia-se que «o realismo não é mostrar como são as coisas verdadeiras, mas como são verdadeiramente as coisas». É, ou devia ser, evidente que o Ivan da História apenas estabelece semelhanças de analogia com o Ivan de Eisenstein, do mesmo modo que o personagem deste pode, ainda por analogia (mas não por equivalência) assemelhar-se a outras figuras políticas mais actuais. E decerto este o motivo que tem levado muitos espectadores a verem em Ivan, «o Terrível», uma crítica directa ao culto da personalidade. Não é de facto indiferente que a segunda parte do filme, onde Eisenstein aborda mais claramente as contradições do Poder (caminho que seria continuado na terceira parte do filme, não rodada mas de que se conhecem bastantes anotações do argumento e desenhos), tenha sido proibida durante os anos em que os tenentes do estalinismo continuavam a controlar toda a actividade artística na Rússia. Digamos que o interesse ímpar do filme de Eisenstein não consiste na análise rigorosa de um tempo histórico ou na representação exacta de um homem, mas na indi cação de um movimento social em que a ditadura, justificada de passagem pela necessidade de sobrevivência da única causa verdadeiramente humana já não encontra lugar.
VII POR UM OUTRO CINEMA
1. Jean-Luc Godard A) O olhar de Aristóteles a Godard
Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: uma prova disso é o prazer das sensações, pois fora até da sua utilidade elas nos agradam por si mesmas, e, mais que todas as outras, as visuais. Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propomos operar coisa nenhuma, preferimos, por assim dizer, a vista ao demais. A razão é que ela é, de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre. É com este belo parágrafo que Aristóteles começa a sua Metafísica e com ela inaugura, de certa maneira, os vícios do logocentrismo idealista que virão a marcar, praticamente, toda a evolução da cultura e da filosofia ocidentais até à ruptura instaurada pela teoria das formações sociais e da sua história. No esquema mental dominante determinado por um sistema de linguagem em que a noção de «ver» é, obviamente, assimilada à de «compreender» (ainda hoje, em tom coloquial, «estou a ver» é sinónimo de «estou a compreender») é relativamente fácil atribuir ao cinema uma espécie de poder mágico que consistiria na capacidade de apreender e de dar a conhecer directamente a realidade, uma vez que os processos mecânicos do registo e da reprodução cinematográficos se definem, de um ponto de vista ontológico e fenomenológico, em relação ao visual e ao
1 64
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
sonoro, isto é, em função de imagens e de sons que são produzidos na realidade e constituem fonte de sensações. Deste modo, as teorias idealistas sobre o cinema que encontraram nos escritos de André Bazin e a sua única sistematização verdadeiramente operatória sugeriam que a passagem efectuada pelo cinema do real ao visual não sofreria qualquer distorção ou desperdício assinaláveis desde que se conservasse, tanto quanto possível, a unidade espácio-temporal do real e dos elementos filmicos. Daqui o pressuposto de que a rodagem em continuidade e em directo, através do famoso plano-sequência, e a recusa da montagem a posteriori (tal como a praticava Eisenstein, por exemplo) eram os sintomas da não manipulação cinematográfica, e, por consequência, da integridade moral do realizador, que deixava ao espectador a liberdade de escolher os pormenores mais significativos do filme e de julgar ele próprio os personagens. A imagem propunha, o espectador dispunha. Como se o cinema não fosse sempre manipulação! Voltando a Aristóteles: «[...] Não só para agir [...] preferimos [...] a vista ao demais. A razão é que ela é, de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre.» Portanto, o cinema não faria mais do que vir confirmar esta hegemonia do visual sobre os outros sentidos, ao ponto de se chegar a fazer coincidir a razão com a visão, o conhecimento com o visível. De resto, os temas preferidos da crítica empírica continuam a ser a afirmação teológica de que «o cinema é o exercício de um olhar» e de que «um filme é uma visão pessoal do Mundo feita pelo seu autor.» Filmar é olhar, olhar é conhecer. Aquilo a que hoje se chama cinema clássico (e que designa, de um modo geral, o cinema norte-americano dos anos trinta a cinquenta, portanto o período economicamente mais rendoso do cinema sonoro capitalista), inteiramente dominado pelo predomínio que a indústria americana exerceu, e ainda exerce, no mercado cinematográfico internacional, veio reforçar peremptoriamente esse pendor assertivo da imagem e assegurar a continuidade ilusória dos planos (raccords) e da intriga («linearidade»), factores
POR UM OUTRO CINEMA
165
Rue na altura passaram a ser conhecidos pelo nome genérico de cinema da «transparência». Cinema, imagem transparente, porque o real se tornava arte diante dos nossos olhos sem que existisse, «à primeira vista», qualquer truque. Daí o elogio da não manipulação, da câmara à altura do olhar humano, da utilização de objectivas que não deformassem a perspectiva óptica que normalmente temos da realidade. Virtude que foi a dos grandes mestres americanos, de Ford a Hawks, de Walsh a Hitchcock. Jean-Luc Godard, que, por altura do seu primeiro filme ( O Acossado, 1959), afirmava que «a liberdade é olhar em volta», foi porventura o primeiro dos novos cineastas a compreender as inúmeras contradições da herança cinematográfica idealista imposta pelo cinema clássico. Mas Godard não se limitou a compreender essas contradições — correu o risco de as assumir e delas tirar o máximo de consequências. Se filmar é um acto de liberdade, pois «a liberdade é olhar em volta», é preciso ter em conta, em primeiro lugar, aquilo que se filma e, depois, a maneira como se filma aquilo que se filma. Filmar implica, portanto, a existência de um referente que é exterior ao filme: o real social concreto que lhe serve de modelo e de caução. Porém, filmar implica também a existência de um outro referente que é interior (inerente) ao filme: o tipo de imagens e de sons que o filme produz, o discurso que o próprio filme forma e transforma. Neste sentido, a realização de uma película pode reflectir um determinado trabalho de conhecimento na medida em que o seu discurso não se limita a repetir de um modo mecânico o referente que lhe é exterior, mas, pelo contrário, transforma esse referente noutra coisa: um filme. Com Godard o cinema aprende a distinguir entre os processos reais e os processos de pensamento, entre o ser e o conhecer. Portanto, como o real prevalece sobre o conhecimento que dele se possui, aquilo que Godard vê à sua volta e q ue ele const rói a pa rt ir do que vê : o re a l i z a d o r exerce, pelo cinema, o seu direito de liberdade. É por isso que, num texto famoso, Godard afirmava que se pode meter tudo num filme.
166
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Porque numa obra de Godard cabem os elementos mais heterogéneos, como num programa de televisão ou numa página de jornal dedicada aos fait divers, os filmes tendem a apresentar-se como uma sucessão de imagens ou sequências isoladas, quadros dinâmicos de um pensamento que não deixa de integrar constantemente os acontecimentos e os personagens numa dialéctica produtiva, logo materialista. Não é por acaso que Godard insiste em chamar aos seus filmes «fragmentos de filmes», uma vez que as películas jamais ficarão completas, fechadas sobre o universo particular de heróis exemplares ou de uma intriga sentimental, como acontecia e acontece invariavelmente com os modelos mais interessantes do chamado cinema clássico. Ao acabar com o herói típico, defensor consciente ou inconsciente dos valores sociais consagrados, Godard acaba simultaneamente com os dramas ordenados, justamente fundados no desequilíbrio provisório que os personagens reflectiam em relação às coordenadas psicológicas, morais e políticas da ideologia dominante. É por isso que os filmes de Jean-Luc Godard constituem porventura o mais extraordinário documento filmado sobre a história da França dos últimos vinte anos. Godard segue a actualidade como se fosse um repórter ao qual tivessem dado a capacidade de inventar os acontecimentos que mais gostaria de filmar. Contar uma história é já arquivar a memória do passado e Godard prefere olhar para o presente. É assim que o cineasta vai metendo tudo nos seus filmes, como se estes fossem efectivamente o registo directo fragmentado, livre, incompleto, de um eterno presente em que a vida e o cinema se confundem. Daí o gosto pelas citações e pelas colagens, como se tudo estivesse em tudo, como se tudo remetesse para tudo. Como diz Pierrot, le Fou, lendo Elie Faure: «No fim da vida, Velásquez deixou de pintar coisas definidas e passou a pintar o que havia entre as coisas definidas.» A maneira como Godard filma aquilo que olha à sua volta é uma consequência inevitável de tudo querer olhar e de tudo querer mostrar, se bem que nem tudo o que olha e mostra possa ser imediatamente explicado — um documento nem sempre explica as coisas a que se
O CINEMA E A HISTÓRIA
167
refere, embora seja possivelmente um utensílio indispensável para a sua justa compreensão. Aliás, não era Engels quem dizia que «o poeta não é obrigado a fornecer ao leitor a solução acabada dos conflitos sociais que descreve»? Assim são os filmes de Jean-Luc Godard. Se tudo pode, deve e vai entrar num filme, então é desnecessário, e mesmo imprudente, escrever um argumento monolítico, tabelado pelas normas da dramaturgia tradicional. Se Godard vai improvisando à medida que filma, ao ritmo em que vive e se transforma ele próprio sob a influência de todas as experiências do quotidiano (trabalho, leituras, outros filmes, conhecimentos, notícias, emoções, etc.), é precisamente para conjugar a liberdade com o presente, o acaso com a reflexão crítica. Muitos dos que censuraram Jean-Luc Godard pelo seu confusionismo e até oportunismo nunca compreenderam que a coerência não tem nada que ver com o imobilismo. De câmara na mão, olhando à sua volta, lançando os actores num jogo em que os preconceitos foram abolidos, Godard observa as mutações, procura descobrir os motivos das suas preferências, a razão de ser dos referentes sociais que utiliza e, finalmente, o funcionamento ideológico e estético dos seus próprios filmes. Enquanto, através dos vários processos estilísticos da transparência, da ilusão e da continuidade, o cinema clássico procurava deliberadamente confundir a realidade com as imagens e os sons, ou seja, assimilar abusivamente o referente concreto exterior com os significantes fílmicos, Godard insiste em sublinhar que se os seus filmes possuem algum significado, político ou outro, é enquanto forem apreendidos e compreendidos como meros produtos de uma actividade cinematográfica, artística, ideológica. Assim, porque de certo modo o cinema é o assunto fundamental dos seus filmes — arte que se quer reflexão sobre a evolução e a interveniência das formas artísticas —, Jean-Luc Godard alude constantemente às convenções próprias do cinema e dos métodos de representação. Desta maneira, recusando as técnicas do ilusionismo — «nos seus filmes não há sangue, há vermelho» — e da identificação cinematográfica, geralmente resultantes das normas psicológicas vigentes e dos recursos da narração linear,
168
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Godard desconfia da lógica aristotélica, do racionalismo metafísico, das unidades aristotélicas de espaço e tempo, enfim, de tudo o que possa contribuir para prender e submeter o espectador às ilusões da fábula. É nisto que Godard se revela como um dos poucos cineastas modernos que soube aproveitar os ensinamentos fundamentais com que Bertolt Brecht transformou o teatro e as técnicas de representação. De facto, Godard, como Brecht, faz de cada espectador um observador ao qual se procura não só provocar emoções mas também, e sobretudo, um determinado índice de conhecimento. Com Godard, os personagens de cinema deixam de ser modelos de virtudes, almas imutáveis, para se tornarem um feixe de contradições, um objecto de inquéritos em permanente mutação. Em Aristóteles, ver é sinónimo de compreender; em Godard ver é sinónimo de interrogar. Pôr em questão e repensar criticamente o Mundo e o cinema. Medindo o risco das tais afirmações, pode dizer-se que Jean-Luc Godard está para o cinema sonoro clássico assim como Cézane está para a pintura figurativa, Weber está para a música melódica e Marx está para a filosofia idealista ocidental. Com Godard começa um outro cinema, um outro olhar. B) O Mundo e a escrita de Godard No segundo dos onze quadros em que Nana (Anna Karina) vive a sua vida, uma vendedora de discos, sua colega eventual de emprego, observa a propósito da novela sentimental que lê à socapa, entre dois clientes desencontrados: «uma história idiota mas admiravelmente bem escrita». Semelhante afirmação — em que a variante «uma história admirável idiotamente mal escrita» teria o mesmo peso — comum a muitos dos falsos problemas que certa crítica tem descoberto no cinema de Godard, pode servir aqui para assinalar, desde já, o que constitui um dos focos com que este artigo procura, modestamente, iluminar os filmes Vivre Sa Vie (1962) e Made in U. S. Á. (1966). É evidente, creio eu, que não existem histórias admiráveis idiotamente escritas nem histórias idiotas admiravel-
POR UM OUTRO CINEMA
169
mente escritas. Todo o cinema de Godard é justamente uma tentativa, a um tempo lúcida e desesperada, para provar que os filmes não contam outra história que não seja a da sua própria aventura de fabricação. Ao interrogar-se sobre o significado da literatura, foi Mallarmé quem primeiro verificou que um texto não se diz, escreve-se. Como nota Philippe Sollers, este enunciado é decisivo na medida em que põe em questão não apenas a ordem habitual da literatura e da retórica mas também o próprio pensamento e, simultaneamente, a economia deste pensamento no Mundo, a economia do Mundo com o pensamento e, por consequência, toda a organização social. O erro estético fundamental, que Mallarmé marca em relação à literatura e que Godard descobre em relação ao cinema clássico, consistia em considerar a linguagem apenas como um simples instrumento representativo. Ora, como Mallarmé, Godard considera o Mundo como uma escrita e filma-o como tal. O cinema não é mais, portanto, do que urna sugestão do Mundo apresentada através de uma representação. Num texto de 1950, escrito nove anos antes de realizar a sua primeira fabulosa longa metragem, O Acossado, diz Godard: «O verdadeiro cinema consiste apenas em colocar qualquer coisa diante da câmara. No cinema, nós não pensamos, somos pensados. Um poeta chama a isto tomar o partido das coisas.» Que a representação seja, pois, vincadamente teatral, como em Viver a Sua Vida, ou obedeça à imagem caótica que do Mundo dá a imprensa, a publicidade e o próprio cinema, como em Made in U. S. A. não altera fundamentalmente os dados do problema: Godard confessa-se um cineasta da prospecção, não inventa nada. É certamente esta a razão que o leva a tomar tanto em conta as informações oficiais, os dados objectivos a partir dos quais são elaborados os seus filmes. É ouvir, em Viver a Sua Vida, o juiz Marcel Sacotte ler um pormenorizado relatório sobre a prostituição; é ver como em Made in U. S. A. os personagens lêem, de plano para plano, Le Monde, OuestFrance, La Quinzaine Litteraire, L'Express, Newsweek, Le Nouvel Observateur, etc. Tomar o partido das coisas é mostrá-las tal como elas são, no sentido de realismo que
170
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
Brecht propunha: não mostrar apenas as coisas verdadeiras mas mostrar como são verdadeiramente as coisas. Aliás, é precisamente sob a influência do teatro de Bertolt Brecht que Jean-Luc Godard decide dividir Viver a Sua Vida em quadros e chamar ao filme uma composição de «teatro-verdade». Porém Godard joga com «a palavra quadro no duplo sentido do teatro e da pintura», na medida em que o filme é, antes de mais, o retrato de uma mulher e do mundo que a envolve até à destruição. «Como era o retrato de alguém, era preciso fazer quadros», acrescenta Godard. Daqui a compartimentação da película, na qual os doze quadros, rigorosamente separados por títulos (que são simultaneamente uma referência ao teatro de Brecht e unia homenagem explícita ao cinema mudo, sobretudo Dreyer) assumem uma autonomia relativa dentro da estrutura do filme. Estamos agora em condições de compreender até que ponto Made in U. S. A. significa na obra de Godard uma experiência levada até ao limite. Digamos que a fragmentação é aqui não o resultado de uma composição em quadros mas a conclusão arbitrária e provisória de uma colagem de recortes. Trata-se agora de fazer o retrato de uma época através das impressões recolhidas no panorama nebuloso da imprensa mundial e dos órgãos audiovisuais de distorção, impressões essas marcadas pela mitologia do cinema policial americano que formou o cineasta. Se Viver a Sua Vida é uma galeria de quadros numa exposição, que convém ver segundo uma determinada ordem — que a montagem do filme estabelece —, Made in U. S. A. é, por outro lado, uma recolha de recortes, notícias, filmes, figuras de banda desenhada, posters, anúncios, slogans, personalidades políticas, personagens míticas, temas musicais, enfim, imagens e sons muitas vezes aleatórios que apenas uma necessidade de carácter prático (a exploração comercial do filme) faz projectar pela ordem de montagem. Quero eu dizer que Made in U. S. A. deve ser um dos raros filmes da história do cinema europeu (excluo portanto as experiências de Andy Warbol e do resto do underground norte-americano) a adoptar a estrutura serial desenvolvida noutro campo pela música dodecafónica. De resto, convém sublinhar que Godard tinha previsto para uma única sessão a projecção simultânea de Made
O CINEMA E A HISTÓRIA
171
in U. S. A. e Deux ou trois chores que je sais d'elle (filmados ao mesmo tempo), alternando as bobinas de um e de outro filme, tal como William Faulkner fizera com os capítulos desse espantoso díptico do amor louco que se chama Palmeiras Bravas e O Homem do Rio. Desde modo, levando um pouco mais longe a analogia acima esboçada, podia designar Made in U. S. A. por uma série de recortes ou quadros são figurativos vistos e provocados por uma mulher («uma mulher é uma porta aberta para o desconhecido», no dizer do escritor David Goodis, na ficção) que veste e age como Humphrey Bogart num filme de Howard Hawks. E este o motivo por que Made in U. S. A. é talvez o mais fragmentado e elíptico dos filmes de Godard e precisamente aquele onde o plano atinge a sua maior autonomia. Dir-me-ão, mesmo assim, que é um filme confuso. Responder-lhes-ei que é, primeiro, um filme sobre a confusão da actualidade política. Sobre a confusão dos meios de comunicação de massas. E, evidentemente, sobre a confusão do próprio Jean-Luc Godard. Se fosse necessário procurar uma chave para Made in U. S. A., eu dar-lhes-ia duas cenas (a conversa absurda do cliente no bar; a travessia pelo estúdio onde se pintam cartazes de cinema) em que, resolutamente, se dissipa o equívoco: as frases não podem fazer sentido se forem mal formuladas ou mal montadas; é urgente que o cinema actual acabe com os mitos consagrados de Hollywood. Quer dizer, para empregar uma expressão que Godard põe na boca de Paula (Anna Karina), Walt Disney com sangue dá um filme político. Made in U. S. A. é um filme político sem Walt Disney e sem sangue, mas com personagens heterodirigidos e tinta vermelha. O material da ilusão constitui aqui o seu próprio meio de destruição. No último dos doze quadros em que Nana vive a sua vida, num café, o filósofo Brice Parain faz-lhe compreender que se o erro é necessário à descoberta da verdade, não podemos, de qualquer forma, separar o pensamento da palavra que o contém. Eis a razão por que não existem histórias idiotas admiravelmente escritas. Para que uma história exista é preciso que alguém a conte. Todo o cinema de Godard é um cinema de risco, dialéctico e contraditório,
172
CINEMA E TRANSFIGURAÇÃO
isto é, um cinema do erro e da verdade, uma aventura intelectual que procura filmar o pensamento em acção. Escreveu Godard em 1961: A mise-en-scène é como a filosofia moderna, digamos Husserl e Merleau Ponty. Não existem as palavras dum lado e o pensamento do outro. O pensamento e, em seguida, as palavras. A linguagem não é qualquer coisa em si, não é uma simples tradução. Com a mise-en-scène acontece o mesmo. Quando digo que a mise-en-scène não é uma linguagem quero dizer que é, ao mesmo tempo, um pensamento. Ela é a vida e a reflexão sobre a vida. É por isso que, nos meus filmes, ponho os personagens a falar de tudo. A partir dos pretextos mais superficiais escreve Godard as suas crónicas mais profundas, como se de todos os erros menores dos seus filmes nascessem também as verdades maiores do cinema moderno.
ÍNDICE Pág.
Uma crítica materialista ...
7
Da memória ao cinema em acto ... I — Ideologias e mitologias da indústria
11 ...
1. À margem de Lave Story
17 17
2. Iconografia do western-spaghetti Fotograma 1 Fotograma 2 Fotograma 3 Fotograma 4 ••• ••• Fotograma 5 Fotograma 6 ••• ••• Fotograma 7 ••• ••• Fotograma 8 ••. ••• Fotograma 9 ••• ••• Conclusão ...
20 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31
3. O Tubarão e a desestabilização ... ... ... A) A máquina industrial ... ... ... ... ... B) O filme catástrofe ... ... ... ... ... ... C) 0 filme de efeitos ... ... ... ... ... ... D) O monstro e a castração ... ... ... ... E) A normalidade e a legitimidade ... s.. F) Os heróis do quotidiano ... ... ... ... G) A lei e a ordem ... ... ... ... ... ... ...
33 33 34 35 36 37 39 40
4. Brecht e o cinema: uma experiência sociológica
42
II — A cultura e o cinema americanos ... 1. O policial negro americano ... ... ... A) A violência quotidiana ... ... ... ... 13) A tradição anglo-saxónica ... ... ... C) A fronteira interior ... ... ... ... ... D) Os dois mundos da cidade ... ... E) A imagem precisa ... ... ... ... ... F) Cumprir o contrato ... ... ... ... ... G) Só e vulnerável ... ... ... ... ... ... H) Do compromisso à propaganda ... 1) O fim do sonho ... ... ... ... ... ...
51 51 51 52 54 56
57
58 60 61 62
2. Grandeza e decadência do filme musical A) A cena e o espaço fílmico... B) O sonho e a realidade ... C) O dinheiro e a glória ... D) Longe no espaço e no tempo ... 3. O «Padrinho» americano ... A) Quem acredita na América B) Uma sociedade mafiosa... C) A moral é a alma do negócio
...
65 65 67 68 70 72 72 73 75
... ...
III — Um universo fantástico ...
79
1. A falsa inocência de Hitchcock A) Entre o mistério e O suspense
79 79 80 81
2. Uma odisseia no espaço e no tempo A) A ciência e a política ... ... ... ... B) O aprendiz de feiticeiro ... ... ... C) A vida extraterrena ... ... ... ... ...
84 84 85 86
IV — A política dos autores
91
...
1. No reino de Orson Kubla Kane A) Os géneros e os estúdios ... B) Reinventar o cinema ... C) A marca do autor ... D) A liberdade do olhar ...
91 91 92 94 95
2. Mankiewicz: autópsia de uma retórica A) O poder da palavra ... ... ... ... B) O discurso da democracia ... ... ... C) Representação e planificação ... ...
97 97 98 99
3. O corpo e a voz de Jerry Lewis
101
4. O charme indiscreto de Luís Bulluel A) O escândalo ...
103 103 106 108
B)
Tristana C) O Charme Discreto
5. Fellini: A memória excessiva A) Roma fabulosa ... B) O Mundo como circo ...
...
111 111 116
6. Ingmar Bergman: o corpo e a alma ... A) O outro e a metamorfose: Persona
120 120 122
B) Lágrimas e Suspiros... ...
V — A inscrição do real no filme
...
125
1. Da realidade à ficção ... ... ... ... ... ... A) Acontecimentos reais ... ... ... ... ...
125 125 127 128 130 132 133
2. Da contestação ao modernismo A) As normas e as formas ...
135 135 137 139
B) O Assassínio de Trotsky ... ... ... ... C) Lua-de-Mel de Assassinos ... ... ... ... D) O rebelde «genial»: Ken Russell ... ... E) O caso Rosi ... ... ... ... ... ... ... ... F) Da opinião à verdade ... ... ... ... ...
B) Vida em Família ... ... ... ... C) Regresso de África ... ... ...
VI —O cinema e a história
...
143
1. A tomada do Poder por Rossellini A) O material da ficção ... B) O filme histórico... ... C) O filme didáctico ... D) O filme político ...
143 143 145 147 149
2. Eisenstein: a arte e a revolução ... ... ... A) À margem de Alexandre Nevski ... ... B) Ivan, a história e a representação ... C) A montagem materialista ... ... ... ... D) A transfiguração da história ... ... ...
151 151 155 157 159
VII— Por um outro cinema 1. Jean-Luc Godard A) O olhar de Aristóteles a Godard... B) O Mundo e a escrita de Godard...
163 ... ... ...
163 163 168
1 . du a r d o G e a d a
(Jin
de \faio de 194'5. pela I iiiiaddiit1(2 de I e i t r a s d e L i s b o a , d e d ico u- te ìi a e iitid a d e etnecluhism enquanto ei;iudante. F i l t r e 1 % 8 c 1 9 74 rcc critica de cinema em .i.arrai, pubhcações. nonicn c i n m c n n i n a s te n ista ' , Vértice, Seara Nora, Vida 'Mundial, e nos ¡oleai, , 1 Capital e República, Cinte outros. Lm 1977 puh11,...;1 o I R r o O Imperialismo t , o Fascismo no ('
incuta
Foi bok.eiro da laniuliiçaii (alosia (lulbenkiiin no l)epartaimi.nio da Geraria S iado
11m \ cri;irit Led-
lege E s erct e u e
£1111!111.1
me-
tragens: 1 9 7 3 Sofia e a Educação Sexual ( 35 m i n P13) 1974-1:ixboa, o Direito à Cidade (16 oiro E Y '5
() Funeral do Patrão (16 ima [ ' f t Semindo a peça hoinonield rle Elito 1 e)
1975—A Revolução 1;st . á na Ordem do Dia (lei rara —Cor. I mi c:Lb.u.1()) A Santa ,kliança
(:r i9,8--() Judeu (em nramin(içii