NORBERT ELIAS
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NORBERT ELIAS
TCP A JJA T\\ rAL.1 UVr'TTAr'AA A RT BUoLA lALAU %J
MEMfifiiA e SOCIEDAOE DIFEL
Difusao Editorial. Lda. Lisboa
A colecgao M E M O R I A E SOCIEDADE dirige-se a um publico diversificado, composto por professores dos diversos graus de ensino, estudantes dos anos terminals do ensino secundario e do ensino universitaric, quadros e empregados de servigos, novas profissoes urbanas, profissoes liberais, agentes culturais de diferen'tes sectores, etc. Cobrira um campo muito vasto, procurando apresentar estudos de reconhecida qualidade sobre problemas pertinentes do presente e do passado. Os autores previstos para a primeira fase da colecgao constituem uma garantia da divers'idade de temas e de pontos de vista. As suas obras tern vindo a instalar rupturas e a por em causa as divisoes tradicionais do saber. Ao mesmo tempo, esta em preparagao um conjunto de obras sobre a realidade portuguesa que, elaboradas no silencio do gabinete ou no colorido trabalho de campo, interessam vastos circulos de opiniao. Contra uma falsa ideia que faz da obra de difusao sinonimo de simplificagao fbrgada, serao dados a conhecer os resultados de cuidadas investigates, porque so estas estimulam reflexoes aprofundadas. Finalmente, havera que revalorizar textos classicos, tanto no seu estatuto, como na forga da sua * actualidade. Criterio que implica recupera^ao do olvidado ou recoloca^ao do demasiado conhecido, na linha da conciliagao das obras pertencentes ao patrimonio internacional com as obras portuguesas.
A BUSCA DA EXCITAgAO
I
Centre JU - lei; S33-23S* $33 2237-FAX. $331277
NORBERT ELIAS E ERIC DUNNING
A BUSCA DA EXCITAgAO
Tradugao de Maria Manuela Almeida e Silva
Memoria e Sociedade
DIFEL
Difusao Editorial, Ida Lisboa
Titulo original: The Quest for Excitement ©1985 by Norbert Elias and Eric Dunning Todos os direitos para publicacao desta obra reservados so para Portugal por:
DIFEL
Drfusao Editorial. Lda. Ltsboa
Denominac.ao Social — DIFEL 82 — Difusao Editorial, Lda. Sede Social — Rua D. Estefania, 46-B 1000 LISBOA Telefs.: 53 76 77 - 54 58 39 - 352 23 10 Capital Social — 60 000 000$00 (sessenta milhoes de escudos) Contribuinte n.° — 501378537 Matrfcula n.° 3007 — Conservatoria do Registo Comercial de Lisboa Memoria e Sociedade Colecc,ao coordenada por Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto Capa: Emtlio Tavora Vilar Revisao: Maria Manuela Vieira e Ayala Monteiro Composigao: Maria Esther — Gab. Fotocomposi$ao Impressao e acabamento: Tipografia Guerra, Viseu 1992 Deposito Legal n.° ISBN 972-29-0203-2 Proibida a reproduc,ao total ou parcial sem previa autoriza^ao do Editor
Para Stephen, Barbara, Richard, Bebe, Judy, Michael e Rachel
J
NOTA DE APRESENTAgAO
Com a tradugao para lingua portuguesa de A busca da excitagao — desporto e lazer no processo civilizacional\ (precedida de A Condi$ao Humana, nesta mesma colecgao) passam a estar disponiveis em lingua portuguesa cinco obras de Norbert Elias. Este numero, sem duvida significativo, corresponde a uma redescoberta dos trabalhos do autor, falecido vai para dois anos, e impoe uma reflexao cruzada sobre a sua pratica intelectual e as condigoes de recepgao ou de leitura da sua obra1. A Sociedade de Corte foi editada pela Estampa, em 1986, tendo a tradugao sido feita com base na primeira tradugao francesa. Ora, desta nao constava o longo e importante prefacio escrito por Elias para a primeira edigao alema de 1969, em que o autor tratou os problemas da relagao entre a sociologia e a historia. Do ponto de 1
Sobre o autor e a sua obra os melhores estudos, incluindo as discussoes criticas, sao os de Peter Gleichmann, John Goudsblom e Hermann Korte, eds., Materialen zu Norbert Elias' Zivilisationstheorie, Francoforte, Suhrkamp Verlag, 1979; idem, eds., Macht und Zivilisation. Mater ialen zu Norbert Elias' Zivilisationstheorie 2, Francoforte, Suhrkamp Verlag, 1984; Theorie, Culture and Society, vol. 4, numero 2-3: Norbert Elias and Figurational Sociology (1987); Hermann Korte, Uber Norbert Elias, Suhrkamp Verlag, 1988; C. Lasch, «Historical Sociology and the Myth of Maturity: Norbert Elias' Very Simple Formula», Theory and Society, vol. 14 (1985), pp. 705-720; S. Mennell, Norbert Elias, Civilization and the Human Sciences, Oxford, Basil Blackwell, 1989; R. van Krieken, «Violence, Self-Discipline and Modernity: Beyond the Civilizing Process», The Sociological Review, vol. 37 (1989), pp. 193-218; Roger Chartier, A Historia Cultural — entre prdticas e representafies, Lisboa, Difel, 1988, pp. 91-119; idem, «Conscience de soi et lien social», in Norbert Elias, La Societe des individus, trad. Jeanne Etore, Paris, Fayard, 1991. Os textos autobiograficos de Elias foram publicados sob o titulo de Norbert Elias Uber sich selbst, Francoforte, Suhrkamp, 1990 (trad, francesa de Jean-Claude Capele, Norbert Elias par lui-meme, Paris, Fayard, 1991).
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vista do autor, interessa notar que esta obra se encontrava escrita desde ha muito. Die hofische Gesellschaft constituira a tese apresentada em 1933 na Universidade de Francoforte, mas que nunca chegou a ser discutida, dada a emigra^ao de Elias para Inglaterra (com uma breve passagem por Paris), logo apos a subida ao poder dos nacional-socialistas. Assim, a distancia entre o momento da elaboragao e o tempo da difusao desta obra assinala a figura de um autor exilado, tardiamente reconhecido. De O Processo Civilizacional as Edigoes D. Quixote publicaram em 1989 e 1990 os dois volumes, numa tradugao feita directamente do alemao, por Lidia Campos Rodrigues. Uber den Process der Zivilisation conheceu uma primeira edigao em Basileia, em 1939, precisamente numa colecgao que se propunha editar textos de autores alemaes exilados. Mas so em 1969 surge uma segunda edigao. A partir de entao, tem-se assistido por toda a Europa e nos Estados Unidos a uma redescoberta desta obra, concretizada em sucessivas tradugoes. A Introdugao a Sociologia foi publicada em 1980, pelas Edigoes 70, em tradugao de Maria Luisa Ribeiro Ferreira, a partir da versao inglesa (l a edigao alema: Munique, 1970). Relativamente as duas obras anteriores, elaboradas antes da Segunda Guerra, Was ist Soziologie? marca o momento da redescoberta da obra de Norbert Elias, que durante quase trinta anos ficara limitada a artigos de revista ou publicagoes especializadas (a excep^ao do livro escrito com John L. Scotson, The Established a d the Outsiders, Londres, Frank Cass & Co., 1965). Perante estas tres publica0es, o problema esta em saber qual o melhor contexto para ler Norbert Elias. A questao — inerente a todo o acto de leitura — pode ser extensiva a outras obras, num mercado editorial como o nosso em que as tradugoes, na area das
NOTA DE APRESENTA^AO
ciencias humanas e socials, embora ocupem lugar de destaque, raramente obedecem a criterios rigorosos de estabelecimento e apresentagao do texto. Neste sentido, nao se trata apenas de inquirir da «qualidade das tradugoes», o importante e tambem por em causa o proprio acto da publicagao em lingua portuguesa dos trabalhos de Norbert Elias. Ora, a tradugao dispersa e incompleta de uma serie de trabalhos do mesmo autor favorece apropriagoes fragmentadas da sua obra. Tais apropriagoes — investidas de um sentido utilitario em relagao aos objectos ou aos metodos, apresentados pelo autor — raramente atendem as operates de construgao da propria obra, a partir dos varios contextos em que esta e produzida. Assim, a apropriagao fragmentada de uma obra implica o risco da sua descontextualizagao. Reconstituir esses contextos obriga a pensar em con junto um percurso intelectual nas suas constantes e nas suas mutagoes. Sem a intengao de proceder a um levantamento exaustivo, sera possivel detectar tres grandes con juntos de temas — tematizagoes — que percorrem os diversos trabalhos do autor e que adquirem diversas modalidades, consoante os objectos em analise e os tipos de investigagao. Em primeiro lugar, a atengao e dada ao con junto das pulsoes e dos comportarnentos violentos, a par dos dispositivos de controlo que sobre eles incidem: discursos ou praticas normativas, poderes mais ou menos institucionalizados e mecanismos de autocensura ou de autocontrolo. Se esta preocupagao pelas atitudes pulsionais pode ser relacionada com a propria obra de Freud, nao se podera omitir o facto de Elias ter comegado por seguir estudos em medicina, psicologia e filosofia na Universidade de Breslau (cidade onde nasceu em 1897) e, uma vez em Inglaterra, ter exercido a psicoterapia de grupo. E esta preocupagao pelas pulsoes que Ihe permite
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pensar, em referenda a um mesmo campo, fenomenos tao diferentes quanto a guerra, o desporto e as emogoes. Fazendo variar as escalas de analise e afinando os pontos de vista comparativos, Elias apresenta na obra que agora publicamos a nogao de ciclo de violencia, enquanto momento de um determinado processo. Em segundo lugar, Elias procura definir configurates sociais especificas. Inicialmente determinadas a partir da analise da corte, nomeadamente da corte de Luis XIV, e do Estado em construgao nos alvores da epoca moderna, tais configurates definem-se -— em trabalhos mais recentes — com base no estudo concrete das comunidades de uma cidade operaria inglesa, das equipas desportivas, do grupo de apoiantes de um clube («hooligans»), bem como das grandes potencias actuais, isoladas ou em confronto (como vemos em A Condigao Humana). Do ponto de vista da analise sociologica, a nogao de configuragao (figuragao) permite simultaneamente identificar os diversos modos de inter-relagao e ultrapassar as separagoes teoricas entre o individuo e a sociedade. Neste sentido, a configuragao enquanto unidade de analise do social funda-se numa logica relacional, o que permite a Elias resolver o dualismo entre integragao e conflito. O ultimo tema que atravessa a obra de Norbert Elias diz respeito a nogao de processo, que em boa medida se filia no valor do progresso, no duplo sentido de evolugao da humanidade e de avango no conhecimento da natureza e da sociedade. Para o autor, nao se trata de postular um valor e de o projectar em analises, particularmente interessadas no estabelecimento de comparagoes entre diferentes configuragoes sociais. O que Elias intenta releva de uma dupla preocupagao. Em primeiro lugar, trata-se de recuperar para a sociologia a sua orientagao inicial, particularmente visfvel na obra de Augusto Comte, e fazer conciliar a analise das estruturas
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sociais com as marcas da evolugao temporal, isto e, o seu processo. Neste sentido, a divisao entre a sociologia e a historia desaparece. Em segundo lugar, Elias pretende reiterar a confianga no progresso, num seculo que tern procurado demmciar a fragilidade dos seus resultados. Na defesa desse ponto de vista, essencialmente etico, o autor aponta as formas crescentes de controlo sobre a natureza e sobre a sociedade, ao dispor do homem ocidental, ao mesmo tempo que reivindica para a ciencia a vontade de descobrir as relagoes inscritas na propria realidade e, assim, orientar de forma proficua a acumulagao de conhecimentos. Em A busca da extita$ao, Norbert Elias e um dos seus principals colaboradores, Eric Dunning (num dos capitulos acompanhado de Patrick Murphy e John Williams), analisam a partir do caso concreto do desporto — em particular do fiitebol e do rugby, incluindo os grupos de hooligans — uma sociologia historica atenta as configuragoes e ao processo da civilizagao1. Centrados sobretudo na sociedade inglesa, os autores recorrem sistematicamente ao ponto de vista comparativo, tendo em vista identificar a especificidade dos processos e as diferengas na caracterizagao de cada configuragao social. O controlo da violencia, no modelo da sociedade inglesa do seculo XVIII, conduz Norbert Elias a estabelecer uma analogia entre a emergencia e difusao do futebol, e um sistema politico em que se enraizam os habitos parlamentares. As regras estabelecidas, na inter-relagao dos grupos em conflito, o face-a-face de tais grupos, que os agentes incorporam e a que se habituam, passam a 1 De Eric Dunning, Patrick Murphy e John Williams, cf. ainda Hooligans Abroad. The Behaviour and Control of English Fans at Continental Football Matches, Londres, Rout ledge, 1984; The Roots of Football Hooliganism — An Historical and Sociological Study, Londes, Routledge, 1988.
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constituir um padrao de civilizagao horizontal. Este modelo contrapoe-se ao da sociedade francesa do seculo XVII, onde a corte impoe, do alto, regras e comportamentos, deflnindo um processo de civilizagao vertical. Neste sentido, a analise das praticas desportivas integra-se no vasto campo de analise da sociedade global, fugindo as compartimentagoes dos especialistas do desporto e convidando-os a reflectir com maior profundidade sobre um dos fenomenos essenciais da nossa civilizagao. Memoria e sociedade — os coordenadores
AGRADECIMENTOS Gostaria de aproveitar esta ocasiao para assinalar a minha grande divida para com Norbert Elias. Sem o estimulo e o encorajamento que dele recebi — primeiro, como estudante universitario, mais tarde, como pos-graduado e jovem assistente — duvido de que tivesse concretizado a carreira sociologica, em face do modesto prestigio que esta profissao gozava. Com efeito, se nao tivesse tido a sorte de me encontrar com Norbert Elias quando comecei a estudar economia na entao University College, de Leicester, em 1956 — nao tinha ouvido falar de sociologia antes de iniciar os meus estudos universitarios, e nao conhecia Elias nem sabia que ensinava em Leicester —, duvido de que, na verdade, tivesse seguido uma carreira sociologica. Na epoca, o tema encontrava-se enredado num impasse de grande esterilidade — em termos teoricos caracterizava-se, sobretudo, por modelos estaticos de funcionalismo e, sob o ponto de vista empirico, por formas de empirismo igualmente estaticas e aridas. Por certo, isso nao me teria interessado mais do que a economia, assunto que depressa descobri nao ser do meu agrado. No entanto, as li^oes de Elias e as suas orientagoes como professor, com o seu enfase na perspectiva do desenvolvimento, o fulcro dos estudos orientado a partir da realidade e o acento tonico colocado na interdependencia entre a teoria e a observagao, a sociologia e a psicologia, atrairam-me desde o inicio. Tive sorte pelo facto de o acaso me ter levado a ser formado por um dos maiores sociologos do nosso tempo e sinto-me privilegiado por ter sido possivel trabaIhar com ele nos artigos reunidos e publicados neste volume. Desejo que os meus esforgos independentes, aqui incluidos, representem alguma coisa, ainda que diminuta, contribuindo para o desencadear da reorientagao da sociologia na direcgao pela qual Elias tern lutado ha tanto tempo, uma reorientagao que, entre outras coisas, coloque o estudo do desporto e do lazer mais no centro das preocupagoes sociologicas do que ate agora tern acontecido.
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A BUSCA DA
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Tambem gostaria de agradecer a alguns dos meus actuals colegas, em particular, a Pat Murphy, John Williams, Ivan Waddington e Tim Newburn. E um privilegio trabalhar com sociologos de tanto talento e tao empenhados, e gosto de pensar que desempenhamos um pequeno papel na continuidade e no desenvolvimento da «tradigao de Leicester» no ensino e na investigagao sociologica, cujas bases foram bem langadas por Elias nos anos de 1950 e I960. Finalmente, devo agradecer ainda a Eve Burns e a Val Pheby pela simpatia e inabalavel bom humor com que levaram a cabo a ardua tarefa de dactilografar este manuscrito.
PREFACIO Eric Dunning
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A maior parte dos artigos incluidos nesta obra ja foi publicada. Contudo, esta e a primeira vez que aparecem reunidos e que se publicam as versoes completas de alguns. O seu aparecimento numa obra constitui um facto de algum significado e, em particular, mostrara ao leitor que sao o resultado sistematico de um unico corpo de teoria e de investigate — o trabalho pioneiro de Norbert Elias sobre o processo de civilizagao e a formagao do Estado1. Com efeito, constituem exemplos e ampliagoes deste corpo teorico e de investigate e, por esse motivo, sao representatives da abordagem especifica «configuracional» e do «desenvolvimento» que Elias aprofundou na sociologia2. Dado parecer que o trabalho de Elias encontrou, por vezes, no mundo dos sociologos de lingua inglesa3, ouvidos de surdos, aproveitarei esta oportunidade para relacionar este con junto de artigos Elias, The Civilizing Process, Oxford, 1978; Sate Formation and Civilization, Oxford 1982. 2 Para uma caracterizagao geral desta abordagem, ver a obra de Norbert Elias, What is Sociology, Londres, 1978; e, tambem, de Johan Goudsblom, Sociology in the Balance, Oxford, 1977; e, de Peter Gleichmann, Johan Goudsblom e Hermann Korte (eds.), Human Figurations, Amsterdao, 1977. 3 Ha uma ou duas excepgoes. Por exemplo, Philip Abrams refere-se a The Civilizing Process como sendo «a tentativa recente mais extraordinaria para abranger o social e o individual no quadro de um projecto unitario de analise sociologica». Ver a sua Historical Sociology, Shepton Mallet, 1982, p. 231. Ver tambem, Zygmunt Bauman, «The Phenomenon of Norbert Elias», Sociology, 13 (1), Janeiro, 1979, pp. 117-25. Para um estudo critico do artigo de Bauman, ver Eric Dunning e Stephen Mennel, «Figurational Sociology. Some Critical Comments on Zygmunt Bauman's vvThe Phenomenon of Norbert Elias"», Sociology, 14 (2), Julho, 1979, pp. 497-501.
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com a estrutura do seu trabalho na sua globalidade. Antes disso, no entanto, utilizarei uma abordagem «eliasiana» para tratar da questao ligada ao facto de o desporto e de o lazer, em particular o primeiro, terem sido desprezados como areas de investigate da sociologia. A seguir, depois de fornecer alguns pormenores biograficos e de situar a perspectiva de Elias no «mapa sociologico», apresentarei o que considero serem os principais aspectos da sua abordagem. No final, direi uma ou duas palavras sobre os artigos que integram este volume.
Na verdade, a sociologia do desporto enquanto area de especializagao e recente, embora tenha sido efectuada uma tentativa para Ihe atribuir uma ancestralidade respeitavel, atraves da referencia as observances feitas por sociologos «classicos» como Weber4. O seu crescimento foi consideravel, em especial, nos Estados Unidos, Canada e Alemanha Ocidental, desde os primeiros anos da decada de 60. Todavia, tal como se encontra no presente, ela e em grande medida o resultado de especialistas de educagao fisica, um grupo cujo trabalho, devido ao seu envolvimento real nesta area, nao possui, por vezes, o distanciamento necessario para uma analise sociologica fecunda e aquilo que pode designar-se como uma implantagao «organica» nas preocupagoes centrais da sociologia. Ou seja, muito do que tern escrito situa o fulcro das suas preocupagoes, em grande parte, nos problemas especificos da educagao fisica, cultura fisica e desporto, falhando na apresentagao das relagoes sociais mais alargadas. Alem disso, esta analise parece possuir um caracter meramente empirista5. Existem algumas excepgoes 4 Ver, por exemplo, John W. Loy e Gerald S. Kenyon, Sport, Culture and Society, Macmillan, Londres, 1969, p. 95 Para exemplificagao desta tendencia empirista deve ser suficiente, no contexto presente, registar os titulos dos artigos publicados em The International Review of Sport Sociology, 1 (17), 1982. Sao os seguintes: «Factors Affecting Active Participation in Sport by the Working Class»; «The Social Role of Sports Events in Poland and Hungary»; «Sport and Youth Culture»; «The Development of Play and Motoric Behavior of Children Depending on the Existing Socio-Spatial Conditions in Their Environment»; «Sports Activity During the Life of Citi-
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notaveis6. Contudo, tenho a certeza de que a maioria dos sociologos concorda que muito do trabalho realizado ate ao momento, na area da sociologia do desporto, se encontra longe de despertar interesse fora do quadro da educagao fisica ou de chamar a atengao das «principais correntes» sociologicas. Outro aspecto desta questao consiste no facto de poucas correntes sociologicas terem teorizado sobre o desporto ou realizado investigates sobre qualquer aspecto deste — com a evidente excepgao dos hooligans* do futebol, que atrairam a atengao de alguns teoricos dos fenomenos de desvio e de marxistas7. E esta a situagao, mesmo quando o desporto parece constituir uma parte integrante das instituigoes com as quais um grupo particular de especialistas da sociologia se encontra envolvido, por exemplo, na educagao8. Talvez seja sintomatico deste quadro geral o facto de a tese de mestrado apresentada por Anthony Giddens, em 1961, na London School of Economics, tratar da sociologia do desporto e, desde ai — periodo em que este adquiriu a fama de ser um dos teoricos mais avangados da sociologia na Gra-Bretanha —, o mesmo ter sido incapaz, o que nao deixa de ser significative, de regressar ao campo do desporto ou de o considerar, em qualquer zens»; «Sports Clubs and Parents as Socializing Agents in Sport»; «The Flemish Community and its Sports Journalisms, « Demystifying Sport Superstition». 6 Intelectuais como Alan Ingham e, embora discorde de muitos aspectos da sua abordagem, John Loy e Gerald Kenyon sao proeminentes entre estas notaveis excepgoes. 7 Ver, por exemplo, John Clark, «Football and Working Class Fans: Tradition and Change», em Roger Ingham (ed.) Football Hooliganism, Londres, 1978; Ian Taylor, «Football Mad: a Speculative Sociology of Football Hooliganism», em Eric Dunning (ed.), The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971; e «Soccer Consciousness and Soccer Hooliganism», em Stanley Cohen (ed.), Images of Deviance, Harmondsworth, 1971. 8 A negligencia quanto ao desporto e talvez mais comum entre sociologos da educagao na Gra-Bretanha do que nos Estados Unidos, porque ai existem analises bastante profundas do desporto em Willard Waller, The Sociology of Teaching, Nova lorque, 1932; e James S. Coleman, The Adolescent Society, Nova lorque, 1961. *Termo ingles que significa «vadios». No entanto, a expressao inglesa generalizou-se e passou a designar, na Europa, os elementos jovens do sexo masculino que fazem parte do publico do futebol e estao directamente associados aos distiirbios, entre adeptos, que ocorrem por ocasiao destes acontecimentos desportivos. (N. da T.)
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das dissertagoes teoricas que elaborou, como um tema que merecesse uma discussao sistematica. Para ele, como para outros, os valores e o quadro das oportunidades no seio da sociologia determinaram que os trabalhos se efectuassem em areas mais convencionais, tendo resultado disso o facto de o estudo sociologico do desporto ter sido abandonado, na maior parte, as maos dos que nao sao sociologos. Tambem aqui existiram excepgoes notaveis. For exemplo, Pierre Bourdieu9 e Gregory P. Stone10 deram importantes contributes neste campo. No entanto, continua a ser verdade afirmar-se que poucos dos principais sociologos se comprometeram com um trabalho sistematico de investigate do desporto, se ocuparam com a sua teorizagao ou debate nos seus livros de textos e outros trabalhos, ou integraram o estudo do desporto nos cursos onde ensinam. As possiveis razoes que explicam este desprezo da sociologia nao sao muito dificeis de encontrar. As reflexoes de David Lockwood sobre os motivos por que «o conceito de raga nao tinha representado um papel central no desenvolvimento da moderna teoria social» podem fornecer algumas indicates sobre o assunto. Lockwood afirma que «e inevitavel o facto de a raga nao ter emergido como um conceito-chave na explicate sociologica» porque o desenvolvimento da tradigao sociologica «impediu, do exterior, o estudo de aspectos biologicos e, em vez disso, conduziu a atengao para estes aspectos basicos e universais do sistema social como a religiao e a divisao do trabalho...». Lockwood defende que esta tendencia se formou porque nao existia «nenhum problema racial, susceptivel de comparagao com aquele que o presente conhece, na situagao historica em que a base da estrutura da teoria sociologica se consolidou»u. Independentemente de saber como ou ate onde e que isto se pode aplicar ao estudo sociologico da raga ou das relates raciais, esta analise parece, a primeira vista, poder ajustar-se, em termos potenciais, a negligencia da sociologia em relagao ao desporto. De 9
Pierre Bourdieu, «Sport and Social Class», Social Science Information, Vol. 17, n.° 6, 1978. 10 Ver, por exemplo, Gregory P. Stone, «American Sports: Play and Display», em Dunning, The Sociology of Sport. n David Lockwood, «Race, Conflict and Plural Society», em Sami Zubaida (ed.), Race and Racialism, Londres, 1970, pp. 57-72.
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facto, no tempo em que os contornos basicos da moderna sociologia se estabeleceram12, tal como a raga, o desporto nao era — ou, mais propriamente, nao era considerado pelos «fundadores» — o espago de problemas sociais serios. Alem disso, muitos teriam argumentado que o desporto, tambem, nao constitufa nem uma propriedade basica nem universal do «sistema social». Contudo, embora as estruturas destas actividades e o seu significado variem para aqueles que nelas participam, ate hoje nenhuma sociedade humana existiu que nao tivesse algo de equivalente ao desporto moderno. Mais significative ainda e o facto de muitos desportos possuirem, de certo modo, raizes religiosas, e a analise de Durkheim sobre a «efervescencia colectiVa» suscitada nos rituais religiosos dos aborigenes australianos pode ser transferida, mutatis mutandis, para a emogao e o excitamento criados atraves dos desportos modernos13. Ate agora, apesar da evidencia dos factos, poucas tentativas foram realizadas para integrar o estudo do desporto quer no quadro da religiao14, quer no da divisao do trabalho15. O que sugere que a emergencia daquilo que se tornou o foco basico das preocupagoes da sociologia moderna, mais do que parece sugerir a analise de Lockwood16, foi um processo que nao se encontrava isento de influencias, o que, em termos de Elias, sao as «avaliagoes heteronimas». De modo resumido, parecia que os sociologos actuais revelavam os seus valores de compromisso, entre outras maneiras, pelo facto de os paradigmas dominantes a que aderem limitarem o seu campo de visao a um conjunto comparativamente estreito de 12 Na Gra-Bretanha do seculo XIX, pelo rnenos, os conflitos quanto a tentativas no sentido de persuadirem as classes trabalhadoras a desistirem do que era considerado como desportos e actividades de lazer «Barbaras» e a adoptarem formas de recreagao mais «racionais» constituiram um problema social de consideravel dimensao. 13 Ver Emile Durkheim, The Elementary Forms of the Religious Life, Londres, 1976. 14 Foi levada a efeito uma tentativa semelhante por Robert Coles no seu «Foot ball as a Surrogate Religion», em M. Hill (ed.), A Sociological Yearbook of Religion in Britain, n.° 3, 1975. 13 Para um debate sobre o desporto e a divisao do trabalho, ver Bero Rigauer, Sport and Work, Nova lorque, 1981. 16 Para uma discussao sobre esta questao, ver Norbert Elias, «Problems of Involvement and Detachment», British Journal of Sociology, Vol. 7, n.° 3, 1956, pp. 226-52. Ver tambem a sua obra What is Sociology!
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actividades socials, apesar do empenho da maioria quanto ao ideal de «neutralidade etica» ou da «liberdade corno um valor» e da ideia de sociologia enquanto ciencia que trata das sociedades em todas as suas dimensoes. O abandono da sociologia do desporto tern sido uma das consequencias dessa situagao. Alem do mais, a sociologia orientou-se para o campo restrito dos aspectos «serio» e «racional» da vida, o que teve como efeito que o divertimento, o prazer, o jogo, as emogoes e as tendencias «irracionais» e «inconscientes» do homem e da mulher tivessem merecido escassa atengao no ambito da teoria e da investigagao sociologicas17. Desporto, guerra e emogoes podem parecer um saco de farrapos de topicos esquecidos, mas, se reflectirmos um pouco sobre isso, verificamos que existem, possivelmente, sobreposigoes significativas entre eles. Deste modo, o desporto e a guerra envolvem formas de conflito que se encontram entrelagadas, de maneira subtil, com formas de interdependencia, de cooperagao e com a formagao do «nosso grupo»* e do «grupo deles»18. Alias, tanto um como o outro podem desencadear quer emogoes de prazer quer de sofrimento e compreendem uma mistura complexa e variavel de comportamento racional e irracional. A existencia de ideologias diametralmente opostas — que sublinham, por um lado, que o desporto pode constituir um substitute da guerra19 e, por outro, que este fenomeno e o veiculo ideal de treino militar, devido a dureza e a agressividade demonstradas pelos que nele participam — e tambem muito sugestiva quanto ao caracter homologo e, talvez, da inter-relagao das duas esferas. Num piano mais elevado de generalizagao, uma das implicagoes desta discussao consiste nas orientagoes dominadas por valores que informam os paradigmas dominantes da sociologia contemporanea, que se inclinaram no sentido de equacionar «o sistema 17 Tentativas para destruir o modelo habitual quanto a alguns destes aspectos podem encontrar-se em Christopher Rojek, «Emancipation and Demoralization: Contrasting Approaches in the Sociology of Leisure», Leisure Studies, Vol. 2, n.° 2, 1983, pp. 83-96; e John D. Ferguson, «Emotions in Sport Sociology», International Review of Sport Sociology, 4 (16), 1981, pp. 15-25. 18 Estes termos sao introduzidos por Norbert Elias em What is Sociology?, p. 122 e seguintes. 19 Tambem foi igualmente sugerido com bastante frequencia que o desporto poderia constituir um substitute da delinquencia. *We-group e they-group, sem tradugao precisa. (N.da T.)
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social» com o Estado-nagao contemporaneo e, correspondentemente, conduziram a negligencia das relagoes internacionais enquanto foco de teorizagao e de investigate. Permitam-me agora que elabore uma reflexao sobre algumas das vias pelas quais os valores heteronimos, que restringiram o campo de visao dos sociologos, podem ter contribuido para o desprezo da sociologia do desporto.
Nas minhas primeiras afirma^oes esta implfcita a ideia de que os sociologos tern esquecido o desporto, principalmente porque so alguns conseguiram distanciar-se o suficiente dos valores dominantes e das formas de pensamento caracteristicas das sociedades ocidentais, enfim, para terem a capacidade de compreender o significado social do desporto, os problemas que este coloca ou o campo de acgao que oferece para a exploragao de areas da estrutura social e do comportamento que, na maior parte, sao ignoradas nas teorias convencionais. O desporto parece ter sido ignorado como um objecto de reflexao sociologica e de investigate, em especial, porque e considerado como algo que se encontra situado no lado que se avalia de modo negativo no complexo dicotomico de sobreposigao convencionalmente aceite, como, por exemplo, entre os fenomenos de «trabalho» e «lazer», «espirito» e «corpo», «seriedade» e «prazer», «economico» e «nao economico». Isto e, no quadro da tendencia que orienta o pensamento reducionista e dualista ocidental, o desporto e entendido como uma coisa vulgar, uma actividade de lazer orientada para o prazer, que envolve o corpo mais do que a mente, e sem valor economico. Em consequencia disso, o desporto nao e considerado como um fenomeno que levante problemas sociologicos de significado equivalente aos que habitualmente estao associados com os negocios «serios» da vida economica e politica. No entanto, apesar do desprezo verificado quando se comparam estas areas, o desporto demonstra com toda a clareza que constitui um campo de consideravel significado social, o que — de acordo com o grau de pretensao, que os sociologos levam tao a serio, segundo o qual a sua disciplina e uma ciencia de compreensao da
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sociedade, que estuda as sociedades em todos os seus aspectos — reclama teorizagao e investigagao sociologica. Existem muitos indicadores do significado social do desporto. Pelo menos, nos circulos masculines das sociedades industrials do Ocidente, por exemplo, enquanto tema de interesse e de discussao, o desporto e um assunto que rivaliza com o sexo. Alias, hoje em dia, em paises de todo o mundo, o desporto e quase ubiquo como actividade de lazer. Laurence Kitchin chegou a sugerir de um desporto, o futebol, que, «para alem da ciencia, ele e o unico idioma comum»20, e poucos duvidariam da importancia internacional de acontecimentos com os Jogos Olimpicos e o Campeonato do Mundo. Estes factos estao repletos de oportunidades para a investigagao sociologica. O mesmo se verifica, tambem, quanto a utilizagao dos boicotes desportivos como uma arma no seio das relagoes internacionais. Existem outras areas, igualmente, a merecer investigagao, quer sincronica quer diacronica, como sejam: o desporto enquanto «lazer» e o desporto como «trabalho»; padroes de emprego e modelos de mobilidade social no desporto e em seu redor; amadorismo, profissionalismo e «shamadorismo» no desporto; as relagoes entre o desporto e a industria; a economia do desporto; a comercializagao do desporto; o papel do Estado no desporto; a politica e o desporto; a politica do desporto; padroes de administragao, organizagao e controlo nas organizagoes desportivas internacionais, nacionais e regionais; as relagoes entre sectores no ambito destes diferentes niveis de organizagao; os padroes de controlo das organizagoes desportivas nas sociedades «capitalistas» e «socialistas» e os padroes de autoridade nas primeiras; o desporto nos paises do Terceiro Mundo; os meios de comunicagao social e o desporto; o desporto e a educagao; o desporto e as classes; o desporto e a raga; o sexo e o desporto; o desporto e a violencia; as multidoes do desporto e o comportamento desordeiro que por vezes desencadeiam; e muitos mais. Finalmente, o desporto pode ser utilizado como uma especie de «laboratorio natural» para a exploragao de propriedades das relagoes sociais, como, por exemplo, a competigao e a cooperagao, o conflito e a harmonia, que parecem ser, segundo a logica e os valores correntes, alternativas que se excluem mutuamente mas que, neste contexto, no que se refere a estrutura intrmseca 20
Laurence Kitchin, «The Contenders», Listener, 27 de Outubro de 1966.
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do desporto, possuem uma interdependencia evidente e muito complexa. Julgo ter atingido o momento em que posso resumir as principais caracterfsticas da distinta teoria sociologica de Elias. Como se podera ver, no fundamental trata-se de uma teoria em que a tentativa de superar o jugo das avaliagoes heteronimas e das tendencias dominantes de pensamento dicotomico e dualista foi bem sucedida, tendo em vista desenvolver, no sentido do que Elias designa «o desvio no sentido da distanciagao», a compreensao dos seres humanos e das sociedades que constituem21. Alias, como o demonstram nitidamente os trabalhos incluidos neste volume, e uma teoria que permite avaliar o significado social do desporto e que, nessa linha, se esforga, entre outras coisas, por estabelecer os fundament os da teoria sociologica das emogoes. Esta teoria procura tambem sublinhar o controlo individual e social da violencia e os processos de longa duragao que podem ser observados a este respeito. Em sintese, e uma teoria, acima de tudo, de desenvolvimento. Contudo, antes de me alargar sobre esta e outras questoes, vou apresentar alguns dados biograficos de Elias e situar a sua teoria no quadro do «mapa sociologico».
Norbert Elias nasceu em 1897, sendo de ascendencia germano-judaica. Iniciou a sua carreira de sociologo em 1925, em Heidelberg, como amigo e colaborador de Karl Manheim, tendo-se convertido, na sequencia disso, em seu assistente, no Departamento de Sociologia da Universidade de Frankfurt22. Nessa altura, como agora — embora partilhasse o mesmo .edificio e abordasse, ate certo ponto, problemas similares23 —, o Departamento de Sociologia de 21
A ideia de «desvio no sentido do distanciamento» e proposta por Elias em «Problems of Involvement and Detachment». 22 Ver Johan Goudsblom, «Responses to Norbert Elias's Work in England, Germany, the Netherlands and France», em Gleichmann, Goudsblom e Korte, Human Figurations, pp. 37-97. 23 Ver Use Seglow, «Work at a Research Programme», em Gleichmann, Goudsblom e Korte, Human Figurations, pp. 16-21.
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Frankfurt afastava-se do mais conhecido Instituto de Investigagao Social de Adorno e Horkheimer, que foi a base institucional da chamada «Escola de Frankfurt». Menciono este facto so para situar, num local especifico, a emergencia das smteses de Elias sobre o desenvolvimento, numa conjuntura historico-politica particular e num estadio especial do desenvolvimento da propria sociologia. Com maior rigor, Elias iniciava a elaboragao da sua teoria em Frankfurt, quando os nazis chegaram ao poder. Alias, neste estadio critico e frutuoso da sua carreira sociologica, aventurava-se numa questao especifica a que os alemaes dao o nome de methodenstreit — a «luta pelo metodo» — que foi a pratica pela qual varias escolas se debateram, ao longo dos anos, no sentido de determinar que metodos «cientificos» eram apropriados ao estudo dos seres humanos e das sociedades que estes formam, e que conceitos e metodos eram os mais adequados para o efeito. Em seguida, irei focar as caracteristicas sociologicas da smtese que Elias esta a desenvolver. No entanto, antes de aprofundar estes aspectos, talvez merega a pena assinalar que Elias e um humanista que detesta a violencia e que o seu interesse constante pelas relates entre violencia e civilizagao nao e so «academico» ou «intelectual». Para ser mais exacto, surge, pelo menos em parte, da sua experiencia na Alemanha, na decada de 1920 e infcios de 1930, do facto de a sua mae ter morrido em Auschwitz e do seu exilio, primeiro em Franga e mais tarde em Inglaterra. O que significa que o seu interesse sociologico pela violencia — em todas as suas forma^oes e manifestagoes — radica num profundo desejo de alargar o nosso conhecimento sobre as suas raizes sociais e psicologicas, na esperanga de que essa compreensao ajude as pessoas a conciliar as suas vidas — os seus padroes de vida em comum — segundo formas que Ihes permitam evitar toda a especie de tragedias violentas com que a humanidade tern sido particularmente afectada. Mas deixem-me voltar a considerar a smtese de Elias e o que ela implica. Johan Goudsblom, num convincente relato circunstanciado, observou com razao que a preocupagao de Elias consiste no estudo «global»* dos seres humanos e nao apenas de aspectos particulares das suas vidas, como ideias, valores e normas, modos de produgao
*ln the round. (N. daT.)
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ou instintos e sentimentos e a sua sublimagao24. Ou seja, Elias atribui nitida prioridade a sintese em relagao a analise, e esforga-se por evitar a compartimentalizagao das pessoas e das sociedades humanas segundo categorias como «economico», «politico» e «social» — como se «o economico» e «o politico» nao fizessem parte, de algum modo, da «sociedade» — ou «biologico», «psicologico» e «sociologico» — como se as pessoas pudessem existir sem corpos, como se os seus «espiritos» fossem de alguma maneira fenomenos nao ffsicos ou biologicos, ou como se «as sociedades» pudessem existir, de certa forma, independentemente e separadas do homem e da mulher individuals que as constituem. Contudo, para atingir estes objectivos, uma parte importante do trabalho de Elias consiste na tentativa de resolver o dualismo que, de modo geral, separa a sociologia das outras disciplinas que com ela se relacionam, aspecto que tern constituido um dos principals centros de tensao no methodenstreit. Refiro-me a tendencia conceptual para reduzir o estudo das pessoas e das sociedades a um ou a outro piano, num con junto de sobreposigoes dicotomicas, orientagao que levou, no passado como no presente, a formagao de escolas que se contestam com maior ou menor clareza a proposito de questoes como «materialismo» e «idealismo», «racionalismo» e «anti-racionalismo», «operagao» e «estrutura», «voluntarismo» e «determinismo» e muitas outras25. Estas escolas encaminham-se no sentido de se comprometerem firmemente com uma, ou duas, perspectivas das multiplas dimensoes do mundo social, e este e um dos pontos de desacordo de Elias, tendo em vista a necessidade de resolver os dualismos que se encontram na base dessas escolas — uma tarefa que so pode ser bem sucedida por meio da constante fertilizagao cruzada entre o raciocinio teorico e a investigagao empirica — algo que e indispensavel realizar no estadio actual de desenvolvimento da sociologia, a fim de facilitar-se o mais vasto crescimento. Este crescimen24
Goudsblom, «Responses to Norbert Ella's Work», p. 79Uma lista mais completa de tais dualismos incluiria: envolvimento -versus distanciamento (valor-predisposigao versus valor-liberdade ou neutralidade etica); subjectividade versus objectividade; nominalismo versus realismo; indugao versus dedugao; analise versus sintese (atomismo versus holismo); absolutismo versus relativismo; natureza versus sociedade; individuo versus sociedade; mudanga versus estrutura (dinamica versus estatica); harmoriia versus conflito; consenso versus for^a; ordem versus desordem (estrutura versus caos). 25
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to compreendera o aperfeigoamento de teorias e de modelos que possuam uma «forma» mais adequada aquilo que possa ser de facto observado, e ajudara a combater a tendencia no sentido da decomposigao e fragmentagao entre escolas que se atacam mutuamente, o que tern sido corrente no desenvolvimento da sociologia e, talvez, no quadro de outras ciencias ligadas ao estudo dos seres humanos. A smtese de Elias e uma tentativa para orientar as ciencias humanas atraves do labirinto constituido por este conflito entre uma ou duas dimensoes — mesmo parciais — de problemas e solugoes. Em particular, o objective e contribuir para o desenvolvimento de uma sintese mais adequada ao objecto — uma smtese baseada, igualmente, na teoria e na observagao — e para um quadro das pessoas e das sociedades, atraves do qual estas possam ser descritas como sao realmente e nao como se supoe que sejam, segundo o discurso de politicos, ideologos, filosofos, teologos ou homens de leis. Um dos objectives e contribuir para o aperfeigoamento de um metodo que seja adequado ao estudo da integragao natural do nivel humano-social, um metodo nao «cienticista» no sentido em que se entende erradamente o metodo, apenas porque se demonstrou que ele estaria apropriado ao estudo de outros niveis de integragao natural. De acordo com Elias, para alcangar estes objectives, e necessario desenvolver, acima de tudo, um instrumento conceptual e uma terminologia que se ajustem, de forma mais profunda do que aquela que ate aqui se conseguiu, a dinamica e as caracteristicas das relagoes dos seres humanos e das suas sociedades. Mas permitam que eu seja um pouco mais concrete e discuta um ou dois aspectos da teoria emergente de Elias. No espago de que aqui disponho, poderei apenas debater uma ou duas pequenas questoes deste todo complexo e em desenvolvimento. Consideremos, por exemplo, a posigao de Elias quanto a dicotomia26 «naturalismo/antinaturalismo». De acordo com o que Elias defende, os seres humanos e as suas sociedades constituem parte da «natureza». No entanto, a «natureza» nao e um tecido homogeneo mas um todo diferenciado e estruturado, compreendendo uma serie de niveis emergentes. Estes niveis estao inter-relacionados, porem 26
Ver, por exemplo, Norbert Elias, «The Science Towards a Theory», em Richard Whitley (ed.), Social Process of Scientific Development, Londres, 1974, pp. 21-42.
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sao relativamente autonomos. Em primeiro lugar, variam em termos de graus de estruturagao dos elementos e, em segundo lugar, a medida que o padrao que estes formam se transforma e evolui. Basicamente, existem tres niveis: o nivel inorganico, o nivel organico e o nivel humano-social. Todos se podem submeter ao estudo cientifico, mas os metodos adequados a cada um destes niveis nao sao necessariamente apropriados aos outros. Deste modo, o nivel humano-social emerge dos niveis inorganico e organico e, por isso, e sempre influenciado por processos que se realizam a estes niveis (por exemplo, gravidez, nascimento, crescimento e morte). Todavia, ao mesmo tempo, ele e relativamente autonomo e possui um numero de propriedades que e unico, por exemplo, linguagens, codigos morais, Estados, greves, parentescos, casamentos, economias, crises economicas, guerras, formas «pre-desportivas» de concursos agonisticos e desportos27. De acordo com Elias, este conjunto unico de propriedades emergentes da integragao natural do nivel humano-social caracteriza-se por regularidades proprias que nao podem ser explicadas de forma reducionista, isto e, em termos de metodos, conceitos e modelos derivados do estudo de fenomenos dos niveis inorganico e organico. No entanto, verifica-se a tendencia para que isto nao seja reco| nhecido pelos filosofos. Popper, por exemplo, que continua a ser I altamente considerado em alguns circulos sociologicos, defende que / so as explicates em termos de leis_<^i^>^ere- I 28 ; cem estatuto cientifico . Elias submete esta perspectiva a multi-| \ plas criticas, demonstrando que o conceito de leis universais emergiu de um estadio inicial do desenvolvimento da ciencia, ou seja, quando a fisica classica se encontrava em pleno processo de libertagao das concepgoes teologicas e metafisicas29. Da mesma maneira, ! tal como Elias demonstra, o conceito de leis universais constitui uma tentatiya_para descobrir algo imutavel e eterno para alem de I mudangas observaveis, mas falta-lhe a forma adequada ao objecto i dado que, para explicar qualquer mudanga, tern de Fazer-se referen27
Sobre a discussao do «desporto» como um termo global, e referindo-se a actividades que sao especificas das sociedades modernas, ver o ensaio de Norbert Elias «The Genesis of Sports as a Sociological Problem», Cap. Ill deste volume. 28 K. R. Popper, The Poverty of Historicism, Londres, 1957. 29 Elias na edigao de Whitley, Social Process of Scientific Development, p. 23.
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cia a alguma mudan$a prioritaria e nao a alguma «primeira causa» estatica, inalteravel e eterna. No entanto, segundo Elias, o reconhecimento do facto nao constitui uma observagao de que o conceito de leis nao possui, num sentido global, adequagao ao objecto quando este diz respeito a fenpmenos estruturados de forma vaga e desenvolvendo-se lentamente, como os gases, mas nao possuem a capacidade de se adequarem ao objecto no caso de fenomenos cada vez mais estruturados, desenvolvendo-se rapidamente, como acontece com os que dizem respeito aos organismos e as sociedades. Os modelos de estrutura e/ou processo devem ter precedencia relativamente as generalizagoes da lei. Sao exemplos disso: o modelo de dupla espiral de DNA; a teoria da evolugao de Darwin; a teoria do modo de produgao capitalista de Marx; e a propria teoria de Elias quanto a relagao entre o processo de civilizagao e a formagao do Estado30. Segundo Elias, uma das razoes que estao na base da falta de adequagao ao objecto do conceito de leis universais, a nivel humano e social, e a relativa velocidade a que o desenvolvimento das sociedades — um tipo de fenomeno que e altamente estruturado — acontece. Como tal, a este nivel do conhecimento, o conceito representa um bloqueio. Outro obstaculo relacionado com este e o que deriva de algumas caracteristicas de linguagem. Na verdade, procuramos exprimir movimento constante ou mudangas continuas de acordo com formas que implicam que ai existe um objecto isolado em estado de repouso e, entao, acrescenta-se um verbo para expressar o facto de que este objecto isolado se movimenta ou se transforma. Dizemos, por exemplo, «o vento sopra», como se o vento fosse uma coisa em repouso, e que, num dado momento, comega a soprar. Isto e, falamos como se o vento estivesse separado do soprar, como se o vento pudesse existir se nao soprasse31. Em sociologia, a separagao conceptual de «estrutura» e «mudanga», «estrutura» e «processo», e «estrutura» e «actividade» ou «acgao», e um exemplo desta tendencia. Deste modo dizemos, por exemplo, que «a estrutura do desporto na Gra-Bretanha se transforrriouentre 1850 e 19<50», como se esta «estrutura» fosse uma «coisa>> que de alguma maneira esta separada das pessoas envolvidas no desporto e das alteragoes nas suas formas de pratica desportiva.
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p. 40. Elias, What is Sociology!, p. 112.
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| Estas formas dicotomicas e reificadas de conceptualizagao sugerem que podem existir estruturas sociais sem^acgao, sem^ransfbrmagqes^ | sem processes, uma nogao que nao tern consistencia perante aquik) que pode observar-se. Elias refere-se a esta tendencia como zustan-^ dsreduktion, um termo alemao que significa, liferalmente, « estado {de redujao», nomeadamente, a reduglo^onaspFual de processes , observaveis em estado de repouso, embora Mennell e Morrissey o tenham traduzido, nao sem razao, por «processo de redu£ao»32. De acordo com Elias, a tendencia conceptual para separar os «objectos» do pensamento, incluindo pessoas e as relagoes em que estas se encontram envolvidas, esta intimamente relacionada com isso. Neste caso, as duas orientagoes conceptuais — «estado de redugao» ou «processo de redugao» e a separagao dos objectos das relagoes — tiveram consequencias infelizes para a sociologia. Na verdade, contribufram para uma forma de conceptualizagao duplamente inadequada, por exemplo, para a tendencia em conceptualizar «objectos» do pensamento sociologico como sendo, por um lado, estaticos e, por outro, desligados e separados das relagoes em que se encontram envolvidos33. De modo a contribuir para a resolugao do que Elias considera como a propensao constante para reificar e separar em termos conceptuais individuos e sociedades, enquanto se reduzem ambos, ao mesmo tempo, a objectos isolados em estado de repouso, Elias criou os conceitos relacionados de «conflguragoes»34 e homines aperti ou «seres humanos abertos»35. O primeiro refere-se a teia de relagoes de individuos interdependentes que se encontram ligados entre si a varios niveis e de diversas maneiras. O ultimo refere-se ao caracter aberto, pessoal e, por inerencia, «orientado para os outros» dos atomos individuals que estao compreendidos nestas configuragoes36. Estes dois termos nao se referem a objectos que existem de modo independente mas denotam niveis diferentes, ainda que inseparaveis, do mundo huma-
p. 133 e seguintes. p. 15. pp. 125, 135. 36
O termo other-directed [«Orientado para os outros». (N. da T.)} e usado aqui num sentido geral e nao com o sentido especifico introduzido por David Riesman, em The Lonely Crowd.
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no. Contudo, as configurates nao sao apenas amontoados de atomos individuals «orientados para os outros»: as acgoes de uma jDluralidade de pessoas interdependentes interferem de maneira a formar uma estrutura entrela
Enquanto representarmos para o outro uma parte de uma relagao, como uma fungao e, por isso, como um valor, um individuo de qualquer sexo nao esta desprovido de poder, por rnaior que seja a discrepancia na relagao de forgas estabelecida entre os dois. Do que foi apresentado ate aqui, pode verificar-se que a teoria das «confi37
Elias, What is Sociology?, p. 74 e seguintes. pp. 74, 93.
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guragoes» e do «desenvolvimento» de Elias rejeita a forma de abordagem mais comum, de tipo analitico, segundo a qual cada sociedade se fragmenta em partes de «factores», «variaveis» ou «esferas», como o «factor polftico», a «variavel educativa» ou a «esfera economica». De acordo com esta forma de procedimento, procura-se, entao, determinar qual o «peso causal» relative que existe no processo social, ou em certos aspectos deste, dos «factores», «variaveis» ou «esferas». O que aqui esta subjacente nao e tanto uma rejeigao total do «factor teorizador», mas antes um recurso da sociologia no sentido de encontrar o equilibrio entre a analise e a smtese, de modo a favorecer esta ultima. Isso implica uma preocupagao maior na determinagao da posigao estrutural de «factores» particulares em configuragoes mais vastas e em relagao a estrutura dessas configuragoes per se do que tern sido evidenciada ate agora em muitas teorias sociologicas. Com efeito, o que foi exigido foi uma sensibilidade e um conhecimento mais elevados, pois da mesma maneira que a estrutura da molecula de DNA, estudada por Crick e Watson, nao e apenas uma fungao dos seus constituintes particulares, ou das suas quantidades, mas antes da sua combinagao como uma dupla espiral, tambem a estrutura das configuragoes humanas — por exemplo, a sua ligagao enquanto configurates de tribos, cidades-Estado ou Estado-nagao — e uma fungao nao so das caracteristicas quantitativas, como da sua dimensao ou das particularidades dos individuos que as constituem, mas, tambem, da forma segundo a qual os seus constituintes individuals se relacionam ou combinam. Alem disso, em contraste com as suas equivalentes fisico-quimicas, nas configuragoes sociais existe uma tendencia para as qualidades constituintes variarem em fungao das «totalidades» de que representam uma parte. Daqui se deduz que nao podem efectuar-se generalizagoes universais, por exemplo, sobre a proeminencia da «esfera economica» e o «modo de produgao» na dinamica social — pelo menos, generalizagoes nao universais de caracter nao tautologico, que vao para alem daquilo que as pessoas necessitam para seu alimento — porque a «esfera economica» e o «modo de produgao» nao sao manifestamente os mesmos em todos os tipos de configuragoes sociais. Distinguem-se, por exemplo, nos graus em que se encontram separados de modo institucional da «esfera politica» e da «esfera religiosa», o que significa dizer, em termos da sua autono-
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mia relativa. Diferenciam-se, tambem, segundo o papel representado nesse ambito pela violencia manifesta e pela forga. Mas, para os objectivos do presente, isso tern menos importancia do que o facto de a sintese de Elias, nao obstante a critica que faz das teorias unidimensionais, nao poder constituir uma forma de «interaccionismo vazio», uma perspectiva que considera que nas sociedades humanas e nos processos sociais «qualquer coisa e tao importante como qualquer outra». Nada poderia afastar-se mais da verdade, uma vez que a posigao que Elias defende, na realidade, e a de que a questao da importancia relativa e um problema empirico e tern de ser definida em termos estruturais e de relagao,; "cpmo no caso do significado estrategico de instituigoes particulares de controlo de recursos valiosos e de gestao dos problemas correntes. Dado que esses recursos, problemas e institutes sao cruciais nas questoes do desenvolvimento especifico, e impossivel fazer acerca delas generalizagoes universais significativas; deste modo, o Estado e uma instituigao estrategica nas sociedades industrials, no entanto, em tipos especificos de sociedades tribais, ele nem sequer existe. Alias, nas sociedades industrials, a luta pelo controlo do Estado, em particular o duplo monopolio da forga e dos impostos, e, na verdade, um aspecto chave do processo social; em especial, desde que as sociedades-Estado se estabeleceram em redes internacionais, o Estado goza de um grau de autonomia em relagao a economia ou ao modo de produgao de uma sociedade. Elias e critico, por exemplo, relativamente a propensao da teoria marxista para tratar sociedades particulares como se estas existissem por si mesmas e se desenvolvessem apenas de acordo com a sua dinamica endogena39. Tal como o demonstra, a consideragao das relagoes intersociais isoladamente leva a conclusao de que as sociedades humanas formam unidades de «ataque e de defesa» ou de «sobrevivencia» e que estas constituem uma das bases para a emergencia do Estado40. Na perspectiva de Elias, pode dizer-se que, a par da disputa para controlar as institutes industrials, financeiras e educativas 39 A este respeito, algumas excepgoes sao apresentadas pelo trabalho de Immanuel Wallerstein, a «teoria da dependencia», de Andre Gunder Frank, e outros. O seu trabalho, contudo, tende ainda a ser economicista. 40 Elias, What is Sociology?, pp. 138-9.
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— e, nas sociedades-Estado menos desenvolvidas, para dominar tambem as institutes religiosas —, a luta quanto ao controlo do Estado constitui uma das principals caracteristicas de comportamento da dinamica de todas as sociedades-Estado. Esta luta, por assim dizer, e canalizada pela « configurable anatomica» da sociedade, o que e o mesmo que dizer: 1) pela sua «divisao do trabalho» ou, nos termos mais precisos e menos economicistas de Elias, pela dimensao e pela estrutura dos seus «cadeias de interdependencia»41; 2) pelo equilibrio entre as pressoes «centrfpetas» e «centrffugas» nomeadamente, o grau de eficacia com que ocorreu a centralizagao estavel do Estado; 3) pela forma adquirida pelo Estado (por exemplo, se e «capitalista» ou «socialista») e pelo grau em que impregnou outras institutes; 4) se a sociedade possui, por exemplo, uma economia baseada na troca de generos ou de dinheiro e, possuindo a ultima forma, se essa economia esta integrada em estruturas intersociais, e ate onde; e, 5) o equilibrio de poder estruturalmente determinado entre os grupos constituintes. Este equilibrio e afectado, no fundamental, pelo grau em que a cadeia de interdependencias facilita a «democratizagao funcional», nomeadamente, o exercicio de formas de controlo reciproco no interior dos grupos e entre estes42. O equilibrio tambem e influenciado pelo grau segundo o qual a posigao dos grupos no sistema global de interdependencias favorece a comunicagao e a organizagao entre os seus membros e Ihes permite o acesso a instituigoes-chave e aos seus recursos, incluindo o acesso ao conhecimento estrategicamente significative. 41
O conceito de interdependency chains [«Cadeias de interdependencia». (N. da T.)] refere-se aos lac,os que existem entre seres humanos unidos por meio de um sistema de diferenciagao funcional. Tais lagos podem existir quer entre sociedades quer dentro das sociedades. O conceito e semelhante aos conceitos mais vulgares de «divisao do trabalho» e «diferenciac.ao de papel», mas faltam-Ihe as conotagoes economicistas do primeiro e a enfase formalista do ultimo. Tambem e usado num sentido nao harmonico e sem uma conotagao de igualdade, isto e, as interdependencias tern tendencia a envolver urn elemento de conflito e podem variar ao longo de um continum «simetria-assimetria». Finalmente, o termo chains transporta consigo uma conotac.ao do caracter constrangedor das liga^oes sociais. 42 Para uma discussao do conceito de democratizac.ao funcional, ver Elias, What is Sociology?, pp. 63-4 e 99-100.
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A expressao «dinamica imanente das configurates» refere-se ao processo de comportamento que adquire grande parte da sua energia a partir dessas lutas. Trata-se de um processo que e canalizado pela estrutura social das configurates, mas que, ao mesmo tempo, e transfbrmado por elas. A longo prazo, possui um caracter «cego» e «nao planeado», em grande medida porque e o resultado de imimeros entrelagamentos, de acgoes nao intencionais de grupos e de individuos que as realizam43. Contudo, embora nao planeado, este processo possui uma estrutura determinada, que adquiriu a forma do «processo de civilizagao» nas sociedades europeias, desde a Idade Media. Os principais elementos deste processo de civilizagao foram: a formagao do Estado, o que significa dizer o aumento da centralizagao politica e administrativa e da pacificagao sob o seu controlo, processo em que a monopolizagao do direito de utilizagao da forga fisica e da imposigao de impostos, efectuada pelo Estado, constitui uma componente decisiva; um aumento das cadeias de interdependent; uma mudanga que e niveladora no quadro do equilfbrio de poderes entre classes sociais e outros grupos, o que e o mesmo que dizer pelo processo de «democratizagao funcional»; a elaboragao e o refinamento das condutas e dos padroes sociais; um aumento concomitante da pressao social sobre as pessoas para exercerem o autocontrolo na sexualidade, agressao, emogoes de um modo geral e, cada vez mais, na area das relagoes sociais; e, a nivel da personalidade, um aumento da importancia da consciencia («superego») como reguladora do comportamento. Dado que a teoria do processo de civilizagao foi interpretada algumas vezes como se possuisse uma orientagao simples, unilinear, progressiva e irreversivel, direi uma ou duas palavras sobre a teoria de Elias, antes de concluir este prefacio com uma apresentagao dos trabalhos reunidos nesta obra. A interpretagao da teoria de Elias torna-se mais clara atraves de um conceito, introduzido em What is Sociology?, utilizado como um meio para determinar e medir o estadio de desenvolvimento que a sociedade atingiu, um conceito que Elias designa por «triade dos controlos basicos». De forma mais precisa, como Elias demonstra, 43
Para uma analise dos processes sociais «cegos» e «nao planeados», ver, acima de tudo, as obras de Elias The Civilizing Process e State Formation and Civilization.
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o estadio de desenvolvimento de uma sociedade pode determinar-se pela dimensao: 1) das hipoteses de controlo das relagoes de acontecimentos extra2 -humanos, isto e, sobre aquilo a que nos referimos, por vezes, de um modo vago, como «acontecimentos naturais»; 2) das hipoteses de controlo das relagoes inter-humanas, isto e, sobre aquilo a que nos referimos habitualmente como «relates sociais»; 3) do que cada membro individual aprendeu, desde a infancia, no sentido de exercer o autocontrolo44. O desenvolvimento cientifico e tecnologico corresponde a primeira destas tres formas de controlo basico; o desenvolvimento da organizagao social ao segundo; e o processo de civilizagao ao terceiro. De acordo com Elias, em qualquer dos estadios considerados, todas as formas de controlo sao interdependentes, quer no seu desenvolvimento quer no seu funcionamento. Todavia, previne acerca da «ideia mecanicista de que a interdependencia dos tres tipos de controlo e compreendida em termos de aumento paralelo nas tres formas». De maneira mais precisa45, o desenvolvimento dos tres tipos de controlo nao ocorre em todos os estadios na mesma proporgao, e o desenvolvimento de um tipo de controlo basico pode contradizer, impedir ou ameagar o desenvolvimento dos outros. Por exemplo, como Elias afirma, «e bastante caractenstico das sociedades modernas o facto de a dimensao das suas hipoteses de controlo sobre as relagoes extra-humanas naturais ser superior e crescer com maior rapidez do que a dimensao relativa as hipoteses de controlo das relagoes inter-humanas sociais»46*. Dizendo o mesmo, de outro modo, o desenvolvimento das ciencias «naturais» 44
Para uma explicagao deste conceito, ver Elias, What is Sociology?, pp. 156-7. De modo a conservar estritamente autenticas as formulagoes de Elias, tive de confiar, em certa medida, no original alemao. Ver Was ist Sociology?, Munique, 1970, pp. 173-4. 4 ^Was ist Sociologie?, p. 173. A discussao correspondente aparece na p. 156 da tradugao inglesa. 46 Was ist SociologieP, p. 173. A discussao correspondente surge na p. 156 da tradugao inglesa. *Ver, tambem, na p. 161 da tradugao portuguesa de 0 que E a Sociologia?, .Lisboa, Edigoes 70. (N. da T.)
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avangou rnais e corn maior rapidez do que o desenvolvimento das ciencias «sociais» e, em consequencia disso, a nossa capacidadeJe controlo das relagoes extra-humanas e jjuperior a nossa capacidade de controlo das sociedades. Um corolario desta situagao e o facto de que, quanto menos submissa for para o controlo humano determinada esfera de acontecimentos, mais emocional e repleto de fantasia tende a ser o pensamento sobre ela. E, quanto mais emocional e repleto de fantasia for o pensamento sobre determinada esfera de acoritecimentos, menor capacidade se possui para construir modelos das relagoes com maior adequagao ao objecto e, desse modo, de os controlar. Em resumo, eles ficam presos num processo de retorno* negativo, ou no que Elias designa por «configura^ao duplamente limitada»47. Na verdade, o facto de as chamadas ciencias naturais se terem desenvolvido mais rapidamente do que as ciencias sociais, atraves da aceleragao das mudangas tecnologicas e sociais, e de terem aumentado, desta maneira, as incertezas e os medos das pessoas contribuiu de modo activo para uma das principals «configuragoes duplamente limitadas» em que hoje estamos aprisionados. Contribuiu tambem para o medo e as tensoes que se produziram, nestas condi^oes, pela autorizagao de fabrico de armas — quer biologicas ou nucleares — com capacidade de destruir a nossa civilizagao e, talvez, por intermedio de um «inverno nuclear», de destruir por completo a vida na Terra. A existencia dessas armas intensifica os medos e os receios mutuos dos antagonistas no quadro da actual «guerra fria», de tal maneira que os encerra, cada vez mais, numa «configura^ao duplamente limitada» de escalada mutua dos medos e das hostilidades. E, quanto mais se munirem de armas, maior e a hostilidade e a suspeita com que se encaram e, a partir desse momento, aumentam, de modo reciproco, as suas hostilidades e suspeitas, e assim por diante, numa escalada em espiral. E obvio, a questao e que nao existe, a nivel internacional, um «monopolio de violencia» equivalente ao que existe no quadro dos Estados-nagoes, que possuem efeitos pacificadores e civilizadores nas relagoes sociais, o que significa que as relagoes internacio47
Este conceito e introduzido por Elias no seu trabalho Engagement und Distanziemng, Frankfurt, 1983, pp. 79 e seguintes. Uma tradu^ao inglesa, sob o tltulo Involvement and Detachment, esta planeada para aparecer em 1986. ^Feed-back. (N. da T.)
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nais continuam a «reger-se», de varias formas, a um nivel de civilizagao relativamente mais baixo. O que se traduz no seguinte: como resultado da ausencia de um monopolio da violencia estavel e eficaz, as relagoes internacionais, comparadas com as relagoes sociais «domesticas» nos Estados-nagoes mais avangados, caracterizam-se por um nivel muito elevado de tensoes incontroladas. E quando, como frequentemente acontece, estas tensoes se declaram num estado de guerra, produzem-se efeitos de «descivilizagao» com vastas ramificagoes, nao so em relagao aos que combatem directamente e as suas vitimas imediatas mas, tambem, como a experiencia americana no Viet name o demons trou claramente, em relagao as pessoas que ficaram no pais. Para os objectives actuals, este breve resumo, e necessariamente abstracto, da teoria das «configuragoes» e do «desenvolvimento» que Elias aprofundou sera suficiente. Deixem-me voltar agora aos trabalhos deste volume como exemplos e ampliagoes da sua abordagem especifica. Como se podera verificar, a relagao de oposigao, a que atras nos referimos, entre «tensoes contrpladas» que se encontram no desporto e «tensoes incontroladas» que sao referidas a proposito dele constitui uma questao central.
«A Busca da Excitagao no Lazer» e «O Lazer no Espectro do Tempo Livre» constituem, nos seus aspectos principals, exemplos da abordagem caracteristicas de Elias. Em primeiro lugar, porque abandonam as limitagoes que sao impostas a teorizagao e investigagao do lazer atraves da, 1) tradicional dicotomia do «trabalho-lazer», e da, 2) tendencia dominante para compreender as tensoes como unicamente negativas, como algo inteiramente «mau». Em segundo lugar, constituem exemplos dessa forma de abordagem, no sentido em que langam as bases de uma adequada teoria do lazer, na medida em que procuram subtrair-se as restrigoes impostas pela actual divisao do trabalho academico e, em particular, libertar-se das propensoes para a compartimentalizagao do estudo dos seres humanos que resulta dos -inumeros e descoordenados inqueritos efectuados sobre esta materia e problemas relacionados com ela, por sociologos, psicologos e biologos. O problema do lazer, diz-se, so
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pode ser abordado de forma adequada se tais llmitagoes forarn abandonadas e se os seres humanos envolvidos no problema forem estudados «de modo global». Ou seja, as caracteristicas e as fungoes especificas das actividades de lazer de diversos tipos so podem compreender-se se forem consideradas em relagao nao so com a ocupagao professional mas, tambem, com as rotinas do tempo livre. Alias, dado que a sua principal fungao parece ser a de activar formas de excitagao agradaveis, estas nao podem ser devidamente compreendidas por meio de uma abordagem sociologica que ignore as suas dimensoes psicologicas e fisiologicas. De facto, estes dois trabalhos constituem as bases para uma teoria multidisciplinar dasemogoes—sociologica, psicologicaefisiologica.Contribuem, tambem, para a teoria do processo de civilizagao atraves da apresentagao de algumas das vias atraves das quais as sociedades enfrentam com exito a rotina que o processo de civilizagao desencadeia. Os trabalhos de Norbert Elias «A Genese do Desporto: Um Problema Sociol6gico» e o «Ensaio sobre o Desporto e a Violencia» contribuem, igualmente, para a teoria do processo de civilizagao. O primeiro analisa os concursos de jogos da Grecia Antiga e demonstra que estes eram menos civilizados que os desportos modernos. Perante a ausencia, nas antigas cidades gregas, deste tipo de controlo relativamente firme, central e estavel (isto e, do Estado) sobre os meios de violencia, como aquele que gozam os modernos Estados-nagoes, de acordo com a teoria do processo de civilizagao seria isso que se poderia esperar. No «Ensaio sobre o Desporto e a Violencia» esta teoria submete-se a um desenvolvimento mais alargado, atraves de uma analise sobre a caga a raposa, um desporto que muita gente pode considerar hoje como uma contradigao da teoria. Contudo, por meio de uma analise minuciosa de fontes primarias, Elias demonstra que a caga a raposa, tal como esta se desenvolveu em Inglaterra no seculo XVIII, evoluiu para a forma que entao existia como um aspecto de uma orientagao civilizadora. Apresenta, tambem, novos esclarecimentos sobre as condigoes previas desta tendencia e, de uma maneira geral, sobre o desenvolvimento do desporto em Inglaterra. Finalmente, atraves de uma compreensao precisa exposta em «A Busca da Excitagao no Lazer» e «A Dinamica dos Grupos Desportivos — Uma Referencia Especial ao Futebol», avanga, pela primeira vez, com elementos de uma teoria sociologica mais geral do desporto.
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«O Futebol Popular na Gra-Bretanha Medieval e nos Imcios dos Tempos Modernos» apresenta urna analise sociologica bastante aprofundada do desenvolvimento dos antecedentes do futebol e do raguebi. Constitui, de igual modo, uma contribuigao para a teoria do processo de civilizagao. «A Dinamica dos Grupos Desportivos — Uma Referencia Especial ao Futebol» e, tambem, uma contribuigao para esta teoria. Naquele artigo, desenvolve-se a critica da tendencia corrente que considera o processo social como cooperagao e competigao, harmonia e conflito, em termos de oposigao dicotomica, e conceptualiza os grupos desportivos como «grupos em tensao controlada» nos quais o «equilibrio de tensao» tern de ser atingido entre opostos, num «complexo de polaridades independentes». «A Dinamica do Desporto Moderno» procura aprofundar esta teoria do desporto, mas e, principalmente, uma tentativa para construir uma explicagao configuracional do fenomeno respeitante ao crescente significado social do desporto nas sociedades modernas e da tendencia observada nessas sociedades para o desporto se caracterizar pela luta dos resultados. «As Ligagoes Sociais e a Violencia no Desporto» desenvolve uma tipologia preliminar da violencia e propoe uma explicagao, com base no conceito de «configuragao» da mudanga observada, na longa duragao, no equilibrio entre as formas de violencia «afectiva» («expressiva») e «racional» («instrumental») do desporto, nos pafses ocidentais. «A Violencia dos Espectadores nos Desafios de Futebol» (elaborado por Eric Dunning em colaboragao com Patrick Murphy e John Williams) aplica a perspectiva de Elias ao problema do «hooliganismo do futebol» na Gra-Bretanha. Este trabalho analisa o problema na perspectiva do desenvolvimento e propoe uma explicagao configuracional da sociogenese do «estilo masculino agressivo» das comunidades das classes mais baixas dos trabalhadores, o qual, como se afirma, acabou neste pais por estar habitualmente associado ao futebol. No final, em «O Desporto como Uma Area Masculina Reservada», desenvolvem-se e aplicam-se os contornos de uma explicagao configuracional quanto a mudanga de equilibrio de poder entre os sexos a partir de alteragoes especificas observadas na identidade e comportamento masculino, que, segundo a hipotese apresentada, pode ser definida pelo enfraquecimento do «patriarcado» e pelo crescente poder das mulheres.
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6 Nenhum dos trabalhos aqui apresentados pretende ser, de modo algum, a «ultima palavra» sobre a materia a que respeita. Nem nenhum deles, tao-pouco, deve ser entendido como tal. Todos sao a consequencia de uma sintese emergente que procura tragar o rumo de um novo caminho para a teoria e investigagao sociologica — em geral, e nao apenas dos temas do desporto e do lazer. Representam uma forma de abordagem no quadro do estudo dos problemas sociologicos que irao, temos esperanga, diminuir as possibilidades de disputas estereis as quais caracterizaram, com tanta frequencia, a sociologia no passado. Tambem, com boas perspectivas, poderao aumentar, ao mesmo tempo, as nossas possibilidades de concentragao nos «objectos» da investigagao sociologica, nomeadamente nos seres humanos e nas sociedades que estes formam. Desta maneira, e na medida em que se mostrarem a altura dos seus objectivos, contribuirao para revelar algo mais das complexidades do mundo humano-social real, e para estarmos menos sujeitos a uma linguagem incompreensivel desnecessaria e aos sofismas que, ate agora, conduziram a ruma dos resultados de algumas pretensas teorias sociologicas. Seria absurdo, decerto, afirrnar que todos os aspectos da sintese emergente de Elias sao novos. Nao e esse o caso. Noutros lugares podein encontrar-se outras enfases. Assim, podem ver-se elementos similares para uma abordagem configuracional — ainda que em ambos os casos mais estatica — em certos trabalhos de Simmel ou, mais recentemente, em algumas formas de analise «em rede»*. Da mesma maneira, existe nos nossos dias um vasto consenso entre sociologos quanto a necessidade de uma smtese entre a sociologia e a historia, mais do que existia nos anos 50 e 60, quando formas estaticas de funcionalismo e aquilo que C. Wright Mills chamou o «empiricismo abstracto» se inclinaram para um qualquer dominio supremo48. O que e novo e a synthesis, a reuniao de varios estudos num con junto coerente que e l ) conduzido por uma teoria central — 48 C. Wright Mills, The Sociological Imagination, Hardmonsworth, 1970, pp. 60 e seguintes. *Network analysis. (N. da T.)
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a teoria do processo de civiliza^ao; 2) simultaneamente, e de modo equivalente, teorica e empfrica, no sentido em que transcende a dicotomia tradicional entre teoria e investigagao, razao e observa£ao; e, 3) ambas, consideradas segundo a perspectiva configuracional e do desenvolvimento; alem disso, 4) tratam os seres humanos e as sociedades de uma maneira « global», contribuindo assim para evitar a compartimentaliza^ao e a fragmenta^ao que tende a resultar da actual divisao do trabalho academico. Esperamos que os trabalhos apresentados nesta obra possam ajudar a clarificar, mais do que ate agora tern sido feito por um grande numero de sociologos de lingua inglesa, o que a sintese «eliasiana» pretende e o que realmente implica. Acreditamos que estes trabalhos ajudarao tambem a persuadir mais sociologos «dorninantes» que o desporto, o lazer e a sua constru^ao social e respectivas inter-relagoes constituem materias interessantes e importantes para a teorizagao e para a investigagao e, nessa via, podem contribuir para retirar a sociologia do lazer e do desporto do esquecimento em que parece ter permanecido ate hoje.
INTRODUgAO Norbert Elias
Como podera verificar-se, alguns dos trabalhos apresentados nesta obra constituem o resultado da colaboragao levada a efeito entre Eric Dunning e eu proprio. Agora que, pela primeira vez, o produto desta cooperagao e reunido num volume, valorizado em grande parte pelo trabalho do primeiro, gostaria de contribuir para a apresentagao e explicagao de alguns dos principals problemas levantados por esta obra1. Quando iniciamos este estudo, a sociologia do desporto dava os primeiros passos. Lembro-me bem de Eric Dunning debater comigo a questao de saber se o desporto, e particularmente o futebol, poderia ser considerado pelos especialistas das ciencias socials como um tema de investigate respeitavel e, em especial, de uma tese de mestrado. Penso que contribuimos um pouco para que assim tivesse sucedido. As investigates sociologicas sobre o problema do desporto tern a responsabilidade de explicar alguns dos seus aspectos que nao se conheciam antes ou que, se eram conhecidos, o seriam apenas de uma forma muito vaga. Nesses casos, a tarefa consistia em dar maior seguranga ao saber. Tinhamos a profunda consciencia de que a compreensao do desporto contribufa para o conhecimento da sociedade. Varios tipos de desporto integram um elemento de competigao. Sao confrontos que envolvem forga fisica ou proezas de tipo nao militar. Para reduzir os danos fisicos ao minimo, existem regras que obrigam os adversaries a adoptar um determinado tipo de comportamento. Deste modo, por tras destes estudos do desporto, existe Stephen Mennell e Eric Dunning ajudaram a aperfeigoar o manuscrito, Rudolf KniyfF a realiza-lo. Estou-lhes profundamente reconhecido.
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sempre a pergunta: que especie de sociedade e esta onde cada vez mais pessoas utilizam parte do seu tempo de lazer na participagao ou na assistencia a estes confrontos nao violentos de habilidades corporais a que chamamos «desporto»? fi claro que, em alguns desportos, existem areas pouco nftidas onde a violencia se pratica. Mas, na maioria dos confrontos desportivos, as regras existem com a finalidade de manter essas praticas sob controlo. Pode perguntar-se: que especie de sociedade e esta onde as pessoas, em numero cada vez maior, e em quase todo o mundo, sentem prazer, quer como actores ou espectadores, em provas ffsicas e confrontos de tensoes entre individuos ou equipas, e na excitagao criada por estas competigoes realizadas sob condigoes onde nao se verifica derrame de sangue, nem sao provocados ferimentos serios nos jogadores? Muitas investigates continuam ainda por fazer ate ser possfvel encontrar uma solugao nao controversa sobre um problema como este. Contudo, ha que o dizer, essa e a tarefa da pesquisa sociologica. As ciencias sociais, e a sociologia em particular, estao em risco de se desintegrarem num amontoado de especializagoes profissionais sem ligagao entre si. Espero que ainda continue a ser possivel o entendimento entre elas, situagao para a qual os trabaIhos apresentados neste volume contem algumas contribuigoes modestas nao so quanto ao conhecimento do desporto mas, tambem, quanto a compreensao das sociedades humanas. Tanto quanto me parece, a dificuldade que aqui se encontra esta intimamente relacionada com uma certa incerteza que existe entre os sociologos quanto ao objective da investigagao cientffica. Esta finalidade, tal como eu a entendo, e a mesma em todas as ciencias. O fim, apresentando-se a questao de uma maneira simples e rapida, e tornar conhecida qualquer coisa previamente desconhecida para os seres humanos. E alargar o conhecimento humano, torna-lo mais seguro ou mais ajustado e, de certo modo, em termos mais tecnicos, alargar o fundo dos simbolos humanos a areas do conhecimento ainda nao abrangidas por ele. Como disse, a finalidade e a descoberta. Esta simples finalidade essencial tern sido bastante obscurecida por discussoes formais sobre o «metodo» de investigagao cientffica. Esta mudanga de enfase, da discussao do objectivo e da fungao da investigagao cientffica para a discussao do metodo, e, em termos sociologicos, sintomatica de uma luta de poderes. Os cientistas das areas das ciencias naturais, juntamence
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1 com o tipo de filosofbs da ciencia, que estao profundamente j empenhados na crenga do primado do tipo de leis das ciencias ii naturais, usaram todo o seu poder intelectual e social com o fim de :! convencerem os outros de que o «metodo» destas ciencias, e, em 1 particular, o da fisica classica, constituia o unico metodo legitimode descoberta cientifica. Os defensores desta perspectiva possuem, de um modo geral, uma experiencia muito limitada de investigagao nas ciencias sociais. A sua estrategia de investigacjio e acima de tudo filosofica ou orientada para uma «historia das ideias» tradicional. No entanto, e precise dizer claramente e sem equivoco que e possivel fazer progredir o conhecimento e realizar descobertas no campo da sociologia com metodos que podem ser muito diferentes dos que sao utilizados pelas ciencias naturais. O que legi-i tima uma investigac,ao cientifica nao e o metodo mas, sim, a descoberta. Como exemplo esclarecedor, utilizarei uma das minhas proprias experiencias. Talvez contribua para a melhor compreensao dos resultados de uma investigagao apresentada nesta obra. Uma pesanos, agora publicada sob o tftulo geral de ^Jdemonstra, para o dizer de maneira breve, que os modelos sociais de conduta e de sensibilidade, particularmente em alguns circulos das classes sociais altas, comegam a transformar-se muito drasticamente, numa direc^ao especifica, desde o seculo XVI em diante. O domfnio da conduta e da sensibilidade tornou-se mais rigoroso, mais diferenciado e abrangendo tudo, mas, tambem, mais regular, mais moderado e banindo quer excesses de autopunigao quer de autocomplacencia. A mudanga encontrou a sua expressao num termo novo, langado por Erasmo de Roterdao e utilizado em muitos outros paises como simbolo de um novo refinamento das maneiras, o termo «civilidade», que mais tarde deu origem ao verbo «civilizar». Investigates posteriores tornam provavel que o processo de formagao do Estado, e, em particular, a sujeigao da classe guerreira a um controlo mais severo, a «curializagao» dos nobres nos paises continentais, possuia algo de comum com a mudanga verificada no codigo de sensibilidade e de conduta. De forma identica, a investigagao sobre o desenvolvimento do 2
Norbert Elias, The Civilizing Process, Oxford, 1978.
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desporto mostrou que existia uma transfbrmagao global do codigo de conduta e de sensibilidade na mesma direcgao. Se compararmos os jogos populates realizados com bola nos fmais da Idade Media, ou ate nos inicios dos tempos modernos, com o futebol e o raguebi, os dois ramos do futebol ingles que emergiram no seculo XIX, pode notar-se que existe um aumento da sensibilidade em relagao a violencia. A mesma mudanga de orientagao pode ser observada no caso do desenvolvimento do boxe. As formas mais antigas de pugilato, uma maneira popular de resolver conflitos entre os homens, nao eram inteiramente desprovidos de regras. Porem, o uso dos punhos desprotegidos era acompanhado, frequentemente, pela utilizagao das pernas como uma arma. O padrao popular de luta desarmada envolvendo os punhos, ainda que nao estivesse totalmente desprovido de regras, era bastante flexivel. A luta com os nos dos dedos desprotegidos, como muitos outros combates corporais, assumiu as caracteristicas de um desporto em Inglaterra, onde foi, pela primeira vez, sujeito a um rigoroso conjunto de regras que, entre outras coisas, eliminava por completo, o uso das pernas como armas. O aumento da sensibilidade revela-se pela introdugao das luvas e, com o tempo, pelo acolchoamento destas e a introdugao de varias categorias de jogadores de boxe, o que garantia um mvel superior de igualdade de oportunidades. De facto, a forma popular de luta so assumiu as caracteristicas de um «desporto» quando se verificou a conjugagao entre o desenvolvimento de maior diferenciagao e, de certo modo, de formas mais estritas de um conjunto de regras, e o aumento de protecgao dos jogadores quanto aos graves danos que podiam advir dos confrontos. Estas caracteristicas do boxe enquanto desporto permitem explicar o motivo por que a forma inglesa de boxe foi adoptada como padrao em muitos outros paises, substituindo, muitas vezes, formas de pugilato tradicionais, especificas de uma regiao, como sucedeu em Franga. Do mesmo modo e em grande medida por esta razao, outros tipos de confrontos fisicos com as caracteristicas de desportos foram exportados de Inglaterra e adoptados por outros paises, entre eles as corridas a cavalo, o tenis, a corrida e outros generos de provas atleticas. A transi^ao dos passatempos a desportos, a «desportivizacao», assays,se -_e~ que possoHjtilizar esta «=3*=Sfe^^SS!r-_^--3=^2f«. -^ ^ v-^xmtasfv-^ - --«"--» jaitjbaiiwpLw —- ^•H»»«=»~«' -=-=»•«» expressao como abreviatura de transformacaoaos passatempos em desportos, ocornda na sociedade inglesa, e a exporta^ao de alguns A
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dificil observar e compreender as caracterfsticas especificas dos «desportos» sem efectuar uma abordagem na perspectiva do desenvolvimento e, deste modo, utilizando o metodo comparativo. Ate hoje, estas duas vias de estudo foram largamente ignoradas. Existe, pois, campo para a descoberta. Segundo creio, os sociologos tern de descobrir por si proprios quais sao os metodos de investigagao mais adequados a realizagao de descobertas no seu campo particular de pesquisas. A minha experiencia demonstra, por razoes ^ que nao preciso de referir aqui, que, para introduzir progresses no V estudo da sociedade humana, e indispensavel uma abordagem na perspectiva do desenvolvimento. Sociologos de espfrito filosofico, ou que efectuam a analise da «historia das ideias», terao dificuldades, decerto, em compreender que a minha convicgao quanto a utilidade de uma abordagem no sentido do desenvolvimento adquiriu forma atraves do proprio trabalho de investigagao. Nao se trata de uma doutrina filosofica, nem de um axioma escolhido em consequencia de uma predilecgao pessoal. O que nao se pode refutar comx argumentos fllosoficos, desprovidos de preocupagoes pela evidencia y empirica. Isso so podera ser contestado por intermedio da demonstragao elaborada com o auxilio da prova adequada que, tal como no ^ ^ caso dos avangos de civilizagao, em termos de longa duragao, nao ^*^; ocorreram as mudangas de direcgao verificadas no codigo de condu- - v ta humana e de sensibilidade que revelei. / Alias, uma outra pesquisa orientou-se no mesmo sentido. Pediram-me que escrevesse um artigo sobre o tempo. Iniciei-o e fui conduzido pelos intrigantes problemas que uma investigagao sociologica sobre o assunto sugere. Explorei essas questoes em si proprias e no ambito de um perfodo consideravel sem qualquer consciencia de que o estudo do tempo, e especialmente a analise do desenvolvimento do tempo social na longa duragao, fornecia, uma vez mais, a demonstragao de mudangas realizadas na estrutura da personalidade social, na mesma direcgao das que havia conceptualizado no processo de civilizagao. Embora, retrospectivamente, parega obvio o facto de serem as condigoes sociais que atribuem ao conceito do tempo o seu primeiro significado, estas condigoes nao se alteram simplesmente de uma maneira fortuita, caracteristica de uma descrigao historica, mas sofreram, em vez disso (ainda que
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com muitos altos e baixos), mudangas observadas na longa duragao, numa orientagao especffica e com uma ordem de sucessao claramente identificavel. O sentido das mudangas no uso do tempo, quer ao nivel social quer ao nivel ffsico do universe, como meio de orientagao, e o sentido das alteragoes no seu uso, como um meio regulador da conduta humana, completam e confirmam aquilo que eu havia dito anteriorniente sobre a natureza e a direcgao do processo de civilizagao3. Em poucas palavras, a regularnentagao do tempo, exigida pela vida numa comunidade relativamente indiferenciada de cagadores ou de agricultores, compreendendo duzentas pessoas no maximo, e diferente da que existe numa comunidade industrial que compreende muitos milhares, ou mesmo milhoes de pessoas. Para as primeiras, as necessidades de orientagao quanto ao tempo eram as que se prendiam a pequenas referencias e sinais que se repetiam, como o nascer do sol, de manha, o por do sol, a noite, ou a chegada da lua nova, Os membros da segunda comunidade necessitam, para sua orientagao e para regularem o seu comportamento, de instrumentos que diferenciam o tempo por minutos. Perdem o autocarro se estiverem dois segundos atrasados! Para a vida que a maioria deles tem nao e suficiente ter uma parcela de informagao publica do tempo na esquina da rua mais proxima. A maioria transporta consigo um relogio de pulso. A sua vida, com estes instrumentos, atinge facilmente a medida do tempo que regula o seu comportamento de dia ou de noite. Para eles, ha muito que passou o tempo em que, para alguem estar perfeitamente regulado, bastava ouvir, de hora a hora, os sons do relogio da torre mais proxima. Mencionei, resumidamente, tres tipos de testemunhos das mudangas verificadas, em termos de longa duragao, nos padroes de conduta e de sensibilidade do genero e na direcgao conceptualizada aqui como processo de civilizagao. Alguns dos trabalhos reunidos neste volume serao, espero, mais bem compreendidos, se dispusermos do conhecimento do contexto mais alargado a que pertencem. Deste modo, como e o caso do artigo sobre a genese do desporto ou daquele sobre o futebol popular, ha a possibilidade de se contribuir para a elaboragao de uma visao mais akrgada sobre o desen-
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Norbert Elias, Uber die Zeit< Frankfurt, 1984.
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volvimento e as caracteristicas do desportq. Mas podem servir, tambem, para o conhecimento das mudangas nos habitos das pes-' soas e das sociedades que elas constituem. Talvez va longe de mais ao sugerir que esses artigos, assim como outros reunidos neste volume, podem estimular reflexoes sobre as pessoas consideradas como individuos e as pessoas entendidas como sociedades, ou, na versao mais tradicional e, de algum modo, a mais enganadora, sobre as relagoes entre «individuo» e «sociedade», No decurso do seculo XX, as competigoes fisicas, na forma altamente regulamentada a que chamamos «desporto» chegaram a assumir-se como representagao simbolica da forma nao violenta e nao militar de competigao entre Estados, e nao nos devemos esquecer de que o desporto foi, desde o primeiro momento, e continua a ser, uma competigao de esforgos dos seres humanos que exclui, tanto quanto possivel, acgoes violentas que possam provocar agressoes serias nos competidores. O facto de a escalada de tensao entre nagoes, conduzir no piano das competigoes desportivas, muitas vezes, os atletas participantes a agredirem-se, devido ao excesso de esforgos ou ao uso de esteroides, e urna caracteristica do desenvolvimento actual, Esta situagao e um indicador do aumento da importancia atribuida as proezas no desporto, compreendidas como simbolo do estatuto das nagoes. Mas isso nao nos preocupa aqui, excepto, talvez, como sintoma de um rumo seguido na longa dura^ao, no decurso do qual o balango do pendulo, em vez de se manter moderado, atinge, em certos casos, formas extremas. Quando isso se verifica, a pressao social exercida sobre as actividades desportivas no sentido do autocontrolo conduz estas a um nivel que chega a levar o atleta a prejudicar-se a si proprio, na medida em que tenta evitar agredir os outros. Neste contexto, o que merece alguma discussao e a questao de saber por que razoes e que a civiliza^ao dos jogos de competigao e a restrigao da violencia efectuada sobre os outros, alcan^adas at raves de regras sociais que exigem uma certa grandeza de autocontrolo, se desenvolveram, em primeiro lugar, em Inglaterra. A aceitagao relativamente rapida dos modelos do desporto ingles pelos outros paises parece indicar que ai existia tambem a necessidade de competigoes que envolvessem esforgos fisicos reclamando uma grande capacidade de sublimagao, uma firme regulamentagao e menor violencia, e, contudo, mantendo-se agradaveis.
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Evidentemente, esta necessidade tornou-se conhecida pela rapida e facil adopgao de alguns dos varios desportos ingleses, embora nao de todos, realizada por outras sociedades e, em certos casos, pelo seu desenvolvimento posterior nesses locais, de acordo com condigoes sociais especificas. Subsiste a questao de saber por que razoes e que se manifestaram em Inglaterra, em primeiro lugar, modelos de confronto fisico nao violento, e ai foram representadas de modo simbolico, com um evidente sentido de novidade e distingao, atraves de um uso novo e mais especializado de um antigo conceito de «desporto». Por que razao e que confrontos altamente regulamentados, exigindo esfor^os fisicos e competencia tecnica, caracterizados na sua forma de espectaculo como «desporto», aparecem primeiro durante o seculo XVIII entre as classes inglesas altas, a aristocracia proprietaria de terras e a pequena nobreza? Desde esses tempos, o termo desporto nunca esteve confinado apenas ao participante isolado: incluiu sempre confrontos realizados para satisfagao de espectadores, e o esforgo fisico principal tanto podia ser dos animais como dos seres humanos. Um jogo de criquete podia ser organizado entre os servos de dois cavalheiros proprietaries de terras. No entanto, em certas ocasioes, jovens cavalheiros tambem podiam participar no jogo. Neste periodo, os proprietarios de terras abastados de Inglaterra, nobres e cavalheiros ja nao tinham qualquer receio de revolta das classes agrarias mais baixas. As enclosures* eliminaram por completo a influencia dos camponeses livres ingleses enquanto classe social distinta. Em geral, os servidores e os outros que dependiam dos proprietarios abastados tinham consciencia do seu lugar. Isso tornava as relagoes mais faceis. E, ao mesmo tempo, explica porque e que, em certos casos, as regras do costume dos jogos populares, modificadas de acordo com as necessidades dos cavalheiros, desempenharam o seu papel no desenvolvimento dos desportos. Neste volume pode encontrar-se um breve estudo de um dos passatempos que assumiram, durante o seculo XVIII, entre as classes de proprietarios de terras ingleses, as caracteristicas de um desporto: a caga a raposa. Era considerada entao um desporto e ja mostra*«Veda£oes». A introdugao das enclosures corresponde a um fenomeno de profundas mudangas economicas e sociais que ocorreu em Inglaterra neste periodo. (N. daT.)
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va, com grande clareza, algumas das caracteristicas que distinguiam passatempos do tipo conhecido como desporto dos outros que nao possuiam esses tragos. Da forma como surgiu nesse tempo, a caga a raposa em Inglaterra constituia um tipo altamente regulamentado de caga, bastante associada ao codigo especifico de maneiras. Pode gostar-se, ou nao, de cagar. Mas, quer se goste ou nao, a caga a raposa fornece um quadro vivo de um dos primeiros estadios do desenvolvimento do desporto e pode assim contribuir para uma melhor compreensao da genese e das caracteristicas do desporto em geral. E esta a tarefa do capitulo sobre a caga a raposa incluido nesta obra. Perante as caracteristicas do nosso tempo, pode nao ser facil, de facto, estudar este tipo de caga de acordo com um processo social, como qualquer outro desporto colectivo, segundo uma configuragao em mudanga contmua formada pelos seres humanos como, por exemplo, o comportamento num jogo de futebol. Nao desconhego as dificuldades inerentes a uma abordagem que requer elevado nivel de distanciamento, que exige o afastamento de cada um do seu objecto de estudo, o que nao e ainda muito comum nos trabalhos sociologicos. Mas deve considerar-se que isso e produtivo. Abre perspectivas obscurecidas por um excessivo envolvimento do investigador4. Vejamos, por exemplo, a mudan<~a particular na natureza do prazer sentido pelos participantes, que se descobre ao comparar o padrao caracteristico da caga a raposa em Inglaterra e as primeiras formas de caga. Segundo a feigao inicial, o prazer de matar, combinado talvez com o de comer o animal que se havia morto, esconde outros aspectos da caga. Como tentei demonstrar, a caga a raposa integra uma mudanga na natureza do prazer que era — e continua a ser — algo caracteristico de muit& outras variedades de desporto. Assim, quando se assiste a um jogo de futebol, nao e apenas o climax representado pela vitoria da nossa equipa que oferece emogao e prazer. Com efeito, se o jogo e, em si mesmo, desinteressante, ate o triunfo da vitoria pode ser, de 4
Pode encontrar-se uma discussao bastante extensa sobre os problemas do envolvimentoedodistanciamento em Norbert Elias,« Problems of Involvement and Detachment», British Journal of Sociology, Vol. 7, n.°3,1956, pp. 226-52. Para uma pesquisa mais vasta, ver Norbert Elias, Engagement und Distanzierung, Frankfurt, 1983.
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certo modo, uma desilusao. Isso tambem e verdade quando uma equipa e de tal maneira superior a outra que marca urn golo a seguir a outro. Neste caso, o proprio confronto e demasiado efemero e nao se desenvolve como devia ser: esta situagao tambem e decepcionante. A caga a raposa revela o mesmo padrao. A rnorte da raposa era, de algum modo, desvalorizada, porque esta nao surgia como prato, a mesa de jantar: embora cagada, ela nao era comida pelos seres humanos. O climax da caga, a vitoria sobre a raposa, so se tornou realmente um prazer quando se assegurava urn periodo de antecipagao suficientemente longo. Tal como no caso do futebol, sem um periodo de antecedencia do prazer bastante extenso e excitante, o climax da vitoria perde alguma coisa da sua sedugao. Ainda que pouco notada, esta enorme enfase colocada na agradavel tensao-excitagao da fase que antecede o prazer, isto e, a tentativa de prolongar o ponto essencial do prazer da vitoria no confronto simulado do desporto, era sintomatica de uma mudanga de grande alcance na estrutura da personalidade dos seres humanos. For sua vez, isto estava fortemente relacionado com mudangas especificas verificadas na estrutura da sociedade em geral.
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Desde a primeira edigao do artigo sobre «A Genese do Desporto: Um Problema Sociologico», que chama a atengao para a origem inglesa do desporto, pediram-me, com frequencia, mais informagoes que pudessem ajudar a explicar este facto. Quanto a esta questao, apresentei uma breve resposta preliminar no trabalho sobre a caga a raposa, incluido neste volume, e aproveito a oportunidade oferecida por esta introdugao para fornecer, pelo menos, um esbogo sumario, indicando um dos aspectos centrais da relagao entre o desenvolvimento dos passatempos com as caracteristicas de desportos e o desenvolvimento da estrutura de poder da sociedade inglesa. Dificilmente se podera encontrar melhor esclarecimento para um dos principals objectives desta obra —jiemonstra|^que-os J^ffldos ^^jdesEorto^ue nao se jam sinmltaneamente estudos^da \ sociedade sao analises desryi^a^.d^ppjtit^xtoA^^ aumento da que temas como «desporto» ou
INTRODU^AO
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«sociedade» paregam assumir uma identidade_prppria. Existem" '"^sjpeciafisfasndorestudo da sociedade, especialistas do estudo da personalidade e "muitos outros, cada grupo a trabalhar como se estivesse na sua propria torre de marfim. Dentro dos seus limites, cada grupo produz, sem diivida, important^ resultados de pesquisa, mas existem varios problemas que nao podem ser explorados dentro das fronteiras de uma unica especialidade. A relagao entre o desenvolvimento da estrutura de poder inglesa e o desenvolviT mento dos passatempos com caracteristicas de desportos, no seculo XVIII, constitui um bom exemplo. / A emergencia do desporto como uma forma de confronto fisico I de tipo relativamente nao violento encontrava-se, no essencial, relacionada com um raro desenvolvimento da sociedade considerada sob a perspectiva global: os ciclos de violjmcia abrandaram e os conflitos de interesse e de confianga eram resolvidos de um modo que permitia aos dois principais contendores pelo poder governamental solucionarem as suas diferengas por intermedio de processes inteiramente nao violentos, e segundo regras concertadas que ambas as partes respeitavam. Os ciclos de violencia sao configurates formadas por dois ou mais grupos, processes de sujeigoes reciprocas que situam estes grupos numa posigao de medo e de desconfianga mutua, passando cada um a assumir como coisa natural o facto de os seus membros poderem estar armados ou serem mortos pelo outro grupo caso este tenha a oportunidade e os meios para o efectuar. Uma configuragao de grupos humanos com estas caracteristicas possui, habitualmente, um forte impulse de auto-escalada. Pode terminar num acesso particularmente virulento conduzindo a vitoria de um ou de outro. Pode levar a desfechos tais como um enfraquecimento crescente ou a destruigao reciproca de todos os seus participates. Tanto quanto se pode assinalar uma data especifica para o inicio de um ciclo deste tipo, em Inglaterra comegou um ciclo de violencia no ano de 1641, quando o rei Carlos I, a frente de um grupo de cortesaos, entrou na Camara dos Comuns para prender alguns membros do Parlamento que se haviam oposto aos seus desejos. Estes conseguiram fugir, mas, a partir desse dia, a tentativa do rei ao recorrer a violencia arrastou consigo mais violencia do outro lado. Deste modo, comegou o processo revolucionario no decurso do
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qual o rei foi executado pelos puritanos. Cromwell, o seu lider, tomou o lugar do rei e o ciclo de violencia prosseguiu, ainda que de forma menos violenta e explosiva, embora tenham existido tentativas de acalmar o odio, o medo e a desconfianga que muitos membros das classes altas sentiam pelos puritanos das classe media e das classes mais baixas. Os puritanos, derrotados, nao so ficaram sujeitos a obrigagoes legais como foram assolados por perseguigoes e, por vezes, atacados violentamente. Estas condigoes ofereceram um incentive muito forte a emigragao para as colonias na America. Aqueles que permaneceram, os ingleses «dissidentes», aprenderam a viver na sombra do seu passado revolucionario. Apesar de terem diminuido bastante as suas hipoteses de chegar ao poder, muitos membros no seio do grupo dos proprietarios de terras das classes altas continuaram a considera-los como possiveis conspiradores de ! uma rebeliao. Ao procurar descobrir por que motivos a moderagao da violencia nos passatempos, que e uma das caracterfsticas especificas do desporto, apareceu em primeiro lugar, no seculo XVIII, entre os ingleses das classes mais altas, nao se pode evitar uma consideragao mais atenta sobre o desenvolvimento, na sociedade global, das tensoes e da violencia que envolviam estas classes. Quando um pais passou por ciclos de violencia, de que as revolugoes sao exemplos, e necessario, em geral, muito tempo ate que os grupos que estiveram envolvidos numa tal experiencia a possam esquecer. Muitas geragoes podem passar ate que os grupos adversarios confiem de novo o suficiente um no outro, de forma a viverem pacificamente e permitirem, se acaso forem membros do mesmo Estado, um regime parlamentar que funcione como deve ser. Um regime deste genero apresenta exigencias muito especificas aos que dele fazem parte. A condescendencia para com estas imposigoes nao e facil. Contudo, e frequente julgar-se que assim e. De um modo geral, acredita-se que todas as formas de sociedade podem facilmente adoptar e manter a democracia no sentido de um regime multipartidario, seja qual for o nfvel de tensoes que existam no seu interior ou da capacidade dos seus membros para as conservarem. De facto, sao necessarias condigoes especiais para que semelhante regime se desenvolva e se perpetue. Isso e delicado e so pode continuar a funcionar enquanto essas condigoes existirem em toda a sociedade. Um regime parlamentar esta em risco de ruptura se as tensoes
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sociais se aproximarem ou atingirem os limiares de violencia. For outras palavras, o seu funcionamento depende da eficiencia do monopolio de violencia fisica de um pais, da estabilidade da pacificagao interna dessa sociedade. Porem, esta estabilidade depende, ate certo ponto, dos niveis de constrangimento individual dos seres humanos que integram essas sociedades. Por outro lado, este nivel nao e o mesmo para os membros de todas as sociedades humanas. Em geral, pode dizer-se que os membros das sociedades do passado possuiam um limiar de violencia inferior ao dos membros das sociedades mais recentes. Mas, entre os ultimos, podem observar-se diferengas consideraveis na capacidade de tolerar tensoes, traduzindo aspectos do que e designado, com frequencia, pelo «caracter nacional». E, desde que a contengao de tensoes constitua uma parte integrante do regime parlamentar, dando lugar a numerosos confrontos nao violentos, de acordo com as regras solidamente estabelecidas, o nivel de tolerancia a tensao, que faz parte do costume social de um povo, constitui um apoio ao funcionamento de semeIhante regime. Neste aspecto, o regime parlamentar apresenta certas afinidades com os jogos desportivos. Esta aproximagao nao e acidental. Um tipo especifico de actividades de lazer, como, por exemplo, a caga, o boxe, a corrida e alguns jogos de bola, assumiu as caracteristicas de desporto e, de facto, foi designado por desporto pela primeira vez em Inglaterra, durante o seculo XVIII, isto e, no mesmo periodo em que as antigas assembleias de estado, a Camara dos Lordes e a Camara dos Comuns, representando camadas da sociedade restritas e privilegiadas, constituiram a principal area de confronto onde se determinou quern deveria formar governo. Entre as principals necessidades do regime parlamentar, tal como este emergiu no decurso do seculo XVIII, encontra-se a capacidade de uma facgao ou partido no governo dominar os seus adversaries atraves de um cargo publico sem usar a violencia, desde que as regras do jogo parlamentar assim o exigissem, como sucede no caso de uma importante votagao no Parlamento ou uma eleigao na sociedade serem contra isso. Esta regra basica so tinha oportunidade de ser respeitada enquanto a hostilidade e o odio dos grupos oponentes no pais e dos seus representantes no Parlamento nao se aproximassem ou transgredissem os limiares de violencia. Para entregar, de modo pacffico, a um grupo de rivais ou inimigos os imensos recursos de poder que
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os departamentos governamentais colocavam nas maos dos seus ocupantes tinha de existir uma grande confianga neles; havia de possuir-se a certeza de que, uma vez no poder, os adversaries nao seriarn vingativos. Teria de haver a certeza absoluta de que os rivais ou inimigos nao utilizariam os recursos do governo para acusar, perseguir, fazer ameagas ou forgar a partir para o exilio, aprisionar ou matar os seus ocupantes anteriores. No final do seculo XVII, algumas figuras proeminentes como o marques de Halifax, a quern chamavam, de modo significative, o Rectificador', tentaram sarar as feridas, moderar a desconfianga, o medo e o odio deixados pela revolugao puritana, provocados em especial pela execugao do rei e tambem pelas sucessivas tentativas, levadas a efeito pelos Stuarts e seus seguidores, de estabelecerem em Inglaterra um regime despota semelhante ao de Luis XIV em Franca, no qual a influencia das assembleias de estado seria virtualmente abolida. Nos inicios do seculo XVIII, o profundo medo e odio gerados pelos violentos acontecimentos do seculo XVII continuavam muito vivos. Os puritanos dissidentes mantinham-se associados a rebeliao e a ditadura, os reis Stuart e os seus seguidores jacobitas* as tentativas de introdugao de um regime catolico. Entre os dois extremos situava-se a trave mestra do grupo mais poderoso do pais, o dos proprietaries de terras do Reino Unido, que chegou a dominar as duas camaras do Parlamento. Mas eles estavam divididos entre si. Como se pode esperar num caso destes, os whigs, dominados por uma aristocracia muito rica e de ascendencia totaimente recente, eram mais firmes na sua oposigao, nos seus sentimentos de antipatia contra os pretendentes Stuart, e inclinavam-se mais para serem clementes em relagao aos dissidentes. Os tones que integravam uma proporgao superior de familias da pequena nobreza sem titulos, com frequencia muito mais antigas do que as grandes familias aristocraticas whig, mas com herdades mais pequenas, eram mais inflexiveis na sua hostilidade contra os dissidentes, embora conservassem, muitas vezes, uma ligagao sentimental corn a dinastia Stuart. Contudo, no fundamental, mesmo estes, tal como os whigs, opunham-se aos Stuarts, inclinados para o absolutismo e o catolicismo. *Termo peio qual se designavam os partidarios de Jaime II apos a sua abdicao. (N. da T.)
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Assim, em Inglaterra, durante o seculo XVIII, a principal divisao politica era a que existia entre facgoes de grupos proprietarios rurais, entre whigs e tories, cuja rivalidade nao se encontrava enraizada num antagonismo entre classes sociais diferentes, com um estilo de vida, objectives sociais e interesses economicos tambem diferentes. Este facto desempenhou, sem duvida, um papel significative na transformagao das tradicionais camaras de estado inglesas em camaras de Parlamento no sentido corrente da palavra e, por conseguinte, no desenvolvimento do governo parlamentar. Em muitos paises continentais existiarn divisoes fortes e declaradas entre a classe media urbana e os proprietarios rurais da nobreza. Em Franga, a descendencia dos primeiros, uma classe hereditaria de proprietarios de cargos publicos, encabegada por uma «nobreza de offcio» (noblesse de robe)* cujos membros permaneciam, sob a perspectiva legal, homens do povo, interpos-se entre a classe comercial e a aristocracia proprietaria rural. Em Inglaterra, uma posigao semelhante era assumida pela pequena nobreza sem titulo**, como grupo intermediario entre os artifices urbanos, comerciantes e mercadores, por um lado, e a aristocracia proprietaria de terras, por outro. Era uma fbrmagao social unica, tao caracteristica do desenvolvimento e da estrutura da sociedade inglesa como a noblesse de robe o era na estrutura social francesa e no seu proprio desenvolvimento. Uma classe de proprietarios rurais que nao pertencia a nobreza nao se poderia ter desenvolvido em Franga ou, pelo mesmo motivo, na Alemanha, porque nesses paises a posse de terras, relacionada, em certa medida, com a tradigao feudal que ligava a possessao de grandes propriedades rurais a servigos de guerra prestados ao soberano, ou estava reservada aos nobres, ou transportava com ela o direito ao titulo e aos privilegios do estatuto de nobre. Em Inglaterra, a situagao nao era essa. Nao e necessario considerar aqui o encadeamento total das circunstancias que conduziram ao aparecimento desta formagao total unica, a pequena nobreza inglesa. Mas, sem fazermos referenda a isso, nao se pode compreender correctamente a natureza do processo de pacifica^ao pelo qual passou Inglaterra no decurso do seculo XVIII, e que se encontrava intimamente associado a emer*Emfrances no original (N. da T.) **Gentry (N. da T.)
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gencia do governo parlamentar em Inglaterra e, tambem, aos passatempos existentes sob a forma de desportos. A presenga de uma classe de proprietarios rurais que nao pertencia aos pares do reino e que nao se sentava na Camara dos Lordes, mas que se encontrava representada em numero consideravel na Camara dos Comuns, teve consequencias importantes na forma que tomou o processo de distribuigao das oportunidades de poder no pais. Os interesses dos proprietarios, em varios dos mais importantes paises continentais, eram representados, habitual mente pelas camaras de estado dos nobres, enquanto a assembleia dos comuns representava, em geral, os interesses dos grupos urbanos e, algumas vezes, dos camponeses. Mas em Inglaterra, devido, em parte a existencia da pequena nobreza, os interesses dos proprietarios tambem estavam fortemente representados na Camara dos Comuns. Nos finais do seculo XVIII, os representantes da pequena nobreza detinham dois quintos dos lugares nos Comuns. A outra quinta parte era detida pelos filhos mais novos das famflias aristocraticas de pares irlandeses que, legalmente, tinham o estatuto de homens do povo. For outras palavras, os interesses dos proprietarios nao dominavam apenas a Camara dos Lordes mas tambem a Camara dos Comuns. O desaparecimento dos camponeses ingleses como classe social foi, em certa medida, devido ao facto de as oportunidades de poder dos soberanos ingleses, depois de Isabel I, nunca terem sido tao grandes como as dos seus equivalentes continentais. Isso ficou a dever-se igualmente a menor dependencia que os monarcas ingleses tinham em relagao aos camponeses naturais do pais, enquanto campo de recrutamento para os seus exercitos. De certo modo, os governsntes continentais protegiam os seus camponeses contra a tentativa dos nobres se apropriarem das suas terras por meio das enclosures, embora existissem excepgoes. E possivel que a aceleragao do movimento de implantagao de enclosures, na ultima fase do seculo XVIII, e o novo metodo que consistia em faze-lo por meio de leis privadas no Parlamento em Inglaterra, fosse sintomatico do interesse comum que as classes proprietarias de terras, whigs e tories, nobres e cavalheiros, tinham em relagao aos grupos de pequenos proprietarios que, juntamente com as suas famflias, e talvez com um pequeno numero de trabalhadores, faziam uma boa parte do trabalho exigido pelos proprietarios de terras.
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O trabalho manual permanente constituia a caracteristica que distinguia um campones proprietario rural ,de um cavalheiro lavrador. Demonstrava o elevado poder da razao dos proprietarios rurais ingleses _das_classes mais ~aitas, que conseguiram aniquilar os camponeses livresj^jgleses, ao obrigarem o poder dos reis a inclinar-se por meio da^sua sujeigao ao controlo do Parlamento, ao subjugarem os puritanos e, tambem, ao manterem um determinado grau de controlo sobre as corporagoes urbanas, incluindo as da capital. Esses interesses dos -proprietarios rurais, grupos de cavalheiros e nobres com terras em controlarem nao so a Camara dos Lordes mas tambem a Camara dos Comuns tern de ser entendido como um factor importante na posigao dominante que as classes de proprietarios mantiveram no pais, durante a maior parte do tempo, no seculo XVIII e nos inicios do seculo XIX. Como foi que, entre eles, ocorreu a transformagao dos passatempos mais antigos em desportos e um facto de alguma relevancia neste contexto. Pode dizer-se que a emergencia do desporto em Inglaterra, durante o seculo XVIII, constituiu uma parte integrante da pacificagao levada a cabo pelas classes mais altas inglesas. O mesmo se pode dizer da transformagao das tradicionais assembleias de estado inglesas3, que em muitos aspectos se assemeIhavam as assembleias de estado de outros paises, num parlamento de duas fileiras no sentido moderno da palavra e, desse modo, numa parte integral do governo parlamentar que dificilmente tinha paralelo no tempo, em qualquer outro lugar. O crescimento desta forma de governo estava profundamente ligado a forte oposigao das classes proprietarias de terras em Inglaterra. Existiam entre elas muitas divisoes. As mais evidentes eram as diferengas de hierarquia e de propriedade. Grandes proprietarios rurais, sendo a maior parte duques e condes, podiam ter cada um mais de dez mil e talvez cerca de vinte mil acres, dos quais gozavam rendimentos mais vastos do que os que eram usufruidos por muitos dos mais pequenos soberanos que governavam no continente, e bastante mais elevados do que os rendimentos que tinham os mercadores ingleses 5
Se utilizarmos o termo «parlamento» indiscriminadamente, tanto para as institutes medievais como as instituic.oes representativas modernas, e se evitarmos o termo «assembleias de estado», facilmente pode deixar de se notar a mudanc.a inovadora do Parlamento no seculo XVIII.
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mais ricos. No outro limite da escala os fidalgos rurais podiam possuir mil acres ou menos e viver no quadro de uma pobreza distinta. Mas eles estavam unidos nao so pelos seus interesses comuns, enquanto proprietarios rurais independentes, como tambem pelas conven^oes sociais que dominavam a sociedade dos que tinham terras, uma tradigao cultural propria que distinguia as classes com terras, nobreza e pequena aristocracia, das outras classes sociais, cujos membros masculinos, em termos de categoria social, assim como pelas suas maneiras, nao eram considerados «cavalheiros». Esta unidade de base das classes proprietarias de terras foi, certamente, uma das condigoes que permitiram que, em Inglaterra, durante o seculo XVIII, se acalmassem gradualmente as grandes tensoes provenientes do seculo XVII caracterfsticas de um periodo de perturbagoes revolucionarias, com a sua heran^a de odio e de medo, apesar das profundas divisoes existentes no seio dessas classes, entre as quais os whigs e os tones foram as mais consequentes. As facgoes hostis, unidas por um codigo de sensibilidade e de conduta «proprio de cavalheiros», aprenderam a confiar o suflciente uns nos outros, determinando o aparecimento de um tipo de confronto nao violento no Parlamento. No decurso do seculo XVIII, as duas principals facgoes das classes dos proprietarios rurais ingleses modificaram tanto o seu caracter quanto a sua fun^ao. Os whigs e os tories reuniam no seu seio membros da aristocracia e da pequena nobreza. Seria falso atribuir esta divisao social das classes com terras apenas a uma separagao em termos da sua categoria e bens. Mas talvez se possa afirmar que, por tradigao, os aristocratas detinham uma posigao dominante entre os whigsy enquanto os cavalheiros que nao pertenciam aos pares do reino, ainda que pudessem ter sido cavaleiros ou baronetes, predominavam entre os tories. Alguns dos problemas que originalmente os dividiram perderam o seu significado inicial ou desapareceram no decurso de seculo XVIII. Ao longo do tempo, tornou-se evidente que os Stuarts nunca mais voltariam. Os hanoverianos tinham vindo para ficar. Os dissidentes nao possuiani, como era obvio, a capacidade nem a intengao de derrubar o governo pela for^a. As duas fac^oes hereditarias das classes mais altas acabavam por se legitimar e identificar gradualmente, como representativas de diferentes principios politicos ou filosoficos, sendo os predecessores dos programas dos partidos. Em norne destes principios, as duas facgoes competiam
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entre si no Parlamento para acederem aos cargos governamentais e, durante o tempo de eleigoes, em todo o pais. Competiam entre si segundo regras que haviam acordado e conforme as necessidades de um codigo de sensibilidade e de conduta proprio de cavalheiros, que os whigs e os tones partilhavam. Neste perfodo, o respeito pelas formalidades do Parlamento e a obediencia ao codigo proprio de cavalheiros estavam associados entre si. Para que as geragoes posteriores o possam compreender, pois a familiaridade pode obscurece-lo, e necessario sublinhar que a luta competitiva nao violenta, entre dois grupos essencialmente hostis, pelo direito de formar governo era alguma coisa absolutamente nova no tempo. Observa-se aqui^um aspe desenvolvimento social que, com frequencia, e mal compreendido. lOs seres humanos podem ser conduzidos, amiude, por circunstancias coincidentes, para novas disposigoes institucionais ou combinagoes de organizagoes, que, se funcionarem bem, aparecem; rapidamente aos participantes como sendo tao evidentes que as consideram «naturais» ou simplesmente «racionais». Foi assim > que, durante o seculo XVIII, os grupos dirigentes de Inglaterra se movimentaram no sentido de qualquer coisa de original, o governo de tipo parlamentar, e sem notarem a inovagao em causa. Durante o primeiro quarto do seculo XVIII ate cerca de 1722, quando Robert Walpole adquiriu o controlo do governo, as tensoes em Inglaterra mantinham-se muito elevadas. O profundo ressentimento e a desconfianga entre facgoes hostis da sociedade inglesa, a heranga da turbulencia do seculo XVII, continuavam demasiado vivas. Os dissidentes, herdeiros da revolugao puritana, embora dificilmente pudessem ser uma forga politica activa, continuavam a trazer consigo o estigma do seu passado revolucionario. Os cavalheiros torus acreditavam com firmeza que os dissidentes planeavam, uma vez mais, um violento derrube da monarquia e do governo. Por seu lado, ainda nao podiam esquecer a sua associagao a dinastia Stuart e as conspiracies reais ou imaginarias, para voltar a conduzir, pela forga, um Stuart ao trono. Nos inicios do seculo XVIII, as mudangas de governo de whigs para tones ou de tories para whigs continuavam a despertar o medo de que um dos governos no poder pudesse ser muito vingativo para com os seus adversaries. Nenhum dos lados poderia ter a certeza de que o outro, uma vez no poder, nao os perseguisse, enviasse para a prisao ou, sob qualquer pretexto,
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os conduzisse a morte. For este motivo, quando a rainha Ana designou um governo tory, os seus membrps comportaram-se com grande espfrito de vinganga para com os seus predecessores whigs. Procuraram humilhar o-mais que podiam os dirigentes whigs mais notaveis. Depois da morte da rainha, uma eleigao colocou de novo os whigs no poder. Estes, por seu lado, comegaram a perseguir e a humilhar os seus inimigos tories. Em consequencia disso, os dirigentes tones fugiram para o continente, uniram-se ao pretendente Stuart e iniciaram o projecto da invasao de Inglaterra e, atraves da forga, do derrube do governo Whig. Robert Walpole, que chegou ao poder em 1722, comegou a dirigir os acontecimentos, evitando a violencia. Ele possuia, em razoavel medida, a competencia diplomatica e de manipulagao necessarias ao lider do governo parlamentar e deu um forte impulse ao desenvolvimento nesse sentido. Mas, por vezes, era capaz de tratar asp&ramente um adversario tory. Antes de chegar ao poder, ele os seus amigos movimentaram-se de forma a conduzir um lider tory ao exilio, acusando-o de participagao num conluio dos Stuart. Cerca de meio seculo depois, um orador da Camara dos Comuns advertiu os. membros do Parlamento de que o objecto dos debates, enquanto orientagao da politica ministerial6, nao deveria ser o de vincar diferengas, mas o de tomar decisoes de comum acordo. Mais tarde ainda, Burke justificava a existencia de duas facgoes diferentes pela necessidade de uma oposigao regular. Sugeriu mesmo que se podia organizar a oposigao ao governo existente, pois, dessa maneira, haveria sempre um governo alternativo aquele que estivesse no lugar. Em menos de cem anos, duas facgoes das classes mais altas, whigs e tories^ que numa epoca conturbada se haviam tratado mutuamente com dureza e, por vezes, violentamente, transformaram-se em partidos das classes mais altas, confiando apenas num eleitorado relativamente pequeno de grupos privilegiados e lutando entre si por meios de que nao se podem excluir a negociagao de votos e o suborno, mas que eram, completamente, isentos de violencia. Isto constituia um exemplo notavel de um avango de civilizagao. A pacificagao das classes mais altas e, de facto, de uma
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J. H. Plumb, England in the Eighteenth Century, Harmondsworth, 1950.
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grande parte da sociedade inglesa desempenhou um papel nesse movimento. O mesmo determinou a crescente prosperidade das classes proprietarias rurais. As manifestagoes deste impulse sao faceis de reconhecer. A entrega pacifica do governo a um adversario pressupunha um elevado nivel de automoderagao. O mesmo determinou a boa vontade de um governo em nao usar os seus grandes recursos do poder na humilhagao ou destruifao de predecessores hostis ou opositores. A este respeito, a emergencia de um governo parlamentar em Inglaterra, no decurso do seculo XVIII, com uma rotagao regular de grupos rivais de acordo com regras combinadas, pode servir como ensinamento. Foi um dos raros exemplos de um ciclo de violencia, cumprido no quadro de um processo de dupla moderagao, enleando dois ou mais grupos numa situagao de medo reciproco da violencia de cada um, que se resolveu atraves de um compromisso sem vencedores ou vencidos absolutos. Como ambos os grupos perderam gradualmente a sua desconfianga mutua e desistiram da violencia e respectivas tecnicas, tiveram de aprender, por esse facto, ao mesmo tempo, a desenvolver novas competencias tecnicas e estrategicas exigidas pelo confronto nao violento. As tecnicas militares deram lugar as tecnicas verbais do debate feitas de retorica e de persuasao, a maior parte das quais exigia mais / contengao geral, identificando de modo nitido, esta mudanga com/ um avango de civilizagao. Foi esta alteragao, a maior sensibilidadej quanto a utilizagao da violencia, que, reflectida nos habitos sociais dos individuos, encontrou tambem expressao no desenvolvimento dos seus divertimentos. A <<parlarnentarizagao>> das classesjjnglesas que possufam terras teve a sua Jfos seus^passatempos7. A transformagao do regime parlamentar, tal como se verificou no caso dos divertimentos, teve os seus aspectos economicos. O crescimento da comercializagao contribuiu para a prosperidade dos mais abastados e, mais modestamente, para a dos pequenos 7
Pec.o que me perdoem o uso de neologismos. Mas, sem duvida, que tambem o termo «industrializagao» fez com que as pessoas sentissem mal-estar quando era um neologismo. Que melhor maneira existe para facilitar a consciencia do facto do que considerar que a emergencia do governo parlamentar e do desporto no seculo XVIII teve o caracter de um processo?
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proprietaries rurais. Esse aspecto ajudou, tambem, a moderar as paixoes sectarias. Mas e um erro considerar os aspectos economicos do desenvolvimento sob uma forma isolada. E muito diffcil saber como teriam as classes proprietarias rurais mais altas inglesas usado as oportunidades economicas que o comercio Ihes oferecia se a luta pelo poder tivesse tornado um rumo diferente, se, como os seus equivalentes Franceses, estivessem submetidos ao governo de reis absolutos e dos seus ministros, em vez de terem ascendido a uma posigao de paridade, e mesmo de superioridade, em relagao ao rei e a corte, enquanto oligarquia mais ou menos autogovernada. A emergencia do governo parlamentar baseou-se no processo de formagao do Estado de Inglaterra8, e, em particular, a mudanga no equilibrio de poder entre o rei e os proprietaries rurais das classes mais altas desempenhou um papel activo, e nao meramente dependente, no desenvolvimento da sociedade inglesa. Ao procurar saber porque e que os divertimentos, sob a forma de desportos, se desenvolveram em Inglaterra, nao se pode deixar de dizer que o desenvolvimento do governo parlamentar e, desse modo, de uma aristocracia e de uma pequena nobreza autogovernada, desempenharam um papel importante no processo. Algumas palavras podem ser ditas sobre a tarefa que impus a mim proprio nesta parte da introdu^ao. Assinalei o problema colocado relativamente a origem inglesa do desporto. A considerate de tal problema nao implica louvor nem reprovagao. Tragar as origens e o desenvolvimento de institutes aparentemente tao evidentes para quern nelas vive e um trabalho excitante e que, por si mesmo, recompensa. Mas isso nao pode realizar-se facilmente nem com horizontes pouco claros, is to e, nao se pode concretizar se o desporto for encarado, a maneira de alguns especialistas, como se fosse uma instituigao social do nosso tempo que se constitui em completa autonomia e independentemente de outros aspectos do desenvolvimento das sociedades. O desporto e um empreendimento de seres humanos e muitas das acgoes humanas, que sao exploradas academicamente em termos de objectos de estudo diferentes e como se existissem em compartimentos separados, sao, de facto, empreendimentos dos mesmos seres humanos. As mesmas pessoas que, en8
Cf P. Corrigan e D. Sayer, The Great Arch, Oxford e Nova lorque, 1985, p. 88 e seguintes.
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quanto poiiticos, elegem on se assumem como membros do Parlamento, podem tambem ganhar as suas vidas por meio do trabalho como entidades economicas, rezarem como seres religiosos, ou andarem de barco ou esquiar no seu tempo de lazer como desportistas. Por esse motivo,, se e certo que, no decurso do seculo XVIII, o conceito de desporto passou a estar associado aos divertimentos das classes inglesas mais altas, como se fosse uma especie de marca distintiva, nao se pode limitar a sua investigagao isolando-o de outros aspectos da realidade. Ha que considerar as riquezas, o desenvolvimento e, em particular, as mudangas verificadas na estrutura da personalidade e na sensibilidade em relagao a violencia dos seres humanos que integram estas classes. Se, entao, se descobrir que, durante o seculo XVIII, em Inglaterra, a riqueza das classes repercutia-se num pronunciado impulso do seu longo processo de pacificagao, pode bem sentir-se que se esta no caminho certo. Contudo, para adquirir maior seguranga quanto a este problema, a comparagao constituiu urn auxilio positivo. As caracterfsticas do desenvolvimento ingles podem observar-se numa perspectiva melhor se for possivel analisar um desenvolvimento comparavel em Franga. Indiquei, noutro lugar, o papel desempenhado pela corte do rei, em Franga, como um processo de civilizagao9. Mencionei, de forma abreviada, a pacifkagao dos guerreiros. Uma classe poderosa de nobres guerreiros proprietaries rurais, donos de grandes propriedades, razoavelmente independentes, transformou-se numa classe de cortesaos e de funcionarios militares, totalmente dependentes do rei, ou nobres de provincia, privados quase por completo das suas fungoes militares. Esta transformagao representou um aspecto central na pacificagao e na civilizagao da sociedade francesa. A corte do rei frances, particularmente no seculo XVII, constituiu o principal processo de civilizagao das classes mais altas francesas. Era ai que o caracter de civilizagao se revelava na sua totalidade como um impulso nao so em relagao a maiores constrangimentos mas, tambem, relativamente a padroes mais diferenciados de conduta e de sensibilidade e de sublimagao. A aprendizagem das competencias tecnicas altamente especializadas do cortesao e a aquisigao dos habitos sociais do homem de corte eram exigencias indispensaveis, as condigoes de sobrevivencia social e de sucesso nos confrontos da 9
Norbert Elias, The Court Society, Oxford, 1983.
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vida na corte. Esta reclamava um padrao caracterfstico de individuo na sua globalidade, tanto dos movimentos como da aparencia e da sensibilidade, segundo modelos e padroes que distinguiam os cortesaos dos individuos dos grupos. Os testemunhos encontrados nas fontes dessa epoca mostram, com grande clareza, de que modo e quando mudaram os padroes e, desta maneira, os sentimentos das pessoas, por exemplo, quanto a vergonha e a repulsa, primeiro na sociedade de corte e, em seguida, tambem num circulo mais alargado, na direcgao caracterfstica de um avango de civilizagao. Em Franga, foi a turbulencia do seculo XVI que deu lugar, no seculo XVII, a um periodo de pacificagao interna. Nesse caso, o ciclo de violencia terminou por uma serie de vitorias que revelaram a superioridade inequivoca dos recursos do poder do rei e dos seus representantes em comparagao com os das duas classes mais altas de proprietaries rurais e da classe media urbana. Foi por essa razao que, no seculo XVII, em Franga, a corte do rei se tornou o maior e talvez o mais poderoso processo de civilizagao. Como se pode observar, o contraste com o desenvolvimento e as caracteristicas das classes proprietarias de terras nao podia ser maior. As consequencias destas diferengas entre as riquezas e as caracteristicas das classes de categoria mais alta, no seculo XVIII, e no seculo XVII, em Franga, fazem-se sentir actualmente nas diferengas entre as linguas francesa e inglesa e entre os habitos sociais respectivos, por vezes chamados o «caracter nacional» de cada um destes dois povos. Da mesma maneira que o impulse de pacificagao e de civilizagao do seculo XVII em Franga nao foi o inicio de um processo nessa direcgao, tambem em Inglaterra o avango comparavel verificado no seculo XVIII nao foi o unico entre varios impulses desse genero, embora tenha sido talvez o mais decisivo. Os esforgos bem sucedidos de Henrique VIII para submeter os seus baroes foi um passo neste sentido. A energica vida de corte no tempo da rainha Isabel I teve uma fungao similar. Mas, no seculo XVIII, a longa luta pelo poder, por um lado, entre os monarcas e os seus representantes e, por outro, a classe mais elevada com terras e a classe media urbana teve como consequencia que as classes proprietarias de terras, aristocracia e pequena nobreza, adquiriram paridade, senao mesmo supremacia, em relagao ao rei e a corte. A sua posigao dominante nas duas Camaras do Parlamento, e em todos os gover-
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nos, tambem Ihes deu uma posigao dominante em relagao a classe media urbana. Contudo, a superioridade dos seus recursos de poder nao era suficientemente grande para tratar com indiferenga os interesses do rei e da corte ou os das corporagoes urbanas. Conservar o controlo do pais sern recorrer a sublevagoes violentas, das quais muitas pessoas se cansaram ao longo da sua vida, impunha uma cuidadosa apreciagao dos seus interesses em relagao a esses grupos e um vivo compromisso. O regime parlamentar desenvolveu-se durante o seculo XVIII em resposta a um equilfbrio de poder do rei, equilibrio esse que garantia que os reis de Inglaterra, de modo diferente aquele dos reis de Franga, nunca transformariam as suas classes mais altas em cortesaos, nem governariam de modo tiranico sobre os seus interesses. Mas os recursos do poder do monarca, no seculo XVIII, continuavam a ser bastante consideraveis e assim permaneceram por mais algum tempo. Os ministros tinham de proteger cuidadosamente a vontade do rei, bem como a das outras pessoas influentes na corte. Por outro lado, no seculo XVIII, os reis de Inglaterra ja nao eram suficientemente poderosos para assegurar que a corte fosse o fulcro das questoes do pais, o centro a partir do qual o pais era governado, onde todas as decisoes eram tomadas, ate mesmo nos aspectos relatives ao bom gosto. Muitas destas fungoes haviam sido transferidas para as residencias palacianas dos nobres mais importantes e, acima de tudo, para o Parlamento. A transformagao das tradicionais assembleias de estado de Inglaterra, em camaras do Parlamento, no sentido moderno do termo, denotava nao so uma mudanga institucional mas, tambem, uma transformagao da estrutura da personalidade das classes inglesas mais altas. O desenvolvimento nao planeado que permitiu as classes mais altas de proprietaries ingleses desafiar todas as tentativas esbogadas para restabelecer um regime autocratico, quer de baixo quer de cima, de puritanos ou de reis, deu um forte estimulo aos grupos que emergiram dessas lutas, praticamente como as classes dominantes no sentido de atenuar o ciclo de violencia, moderar as querelas entre facgoes e aprender, em vez disso, a lutar apenas por meio de formas nao violentas, de acordo com regras mutuamente estabelecidas. Esta foi uma das grandes diferengas entre o desenvolvimento das classes mais altas francesas e inglesas. Em Franga, a supremacia do rei, o modo autocratico de governo, nao permitiu que os desentendimentos e lutas entre facgoes revelassem as suas intengoes. Em
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Inglaterra, o regime parlamentar nao so autorizava os confrontos abertos entre fac^oes rivals mas tornava necessaria a sua declara^ao. A sobrevivencia social e, por certo, o exito social numa sociedade parlamentar dependia da capacidade de lutar, nao com punhais ou espadas, mas com o poder do argumento, a habilidade da persuasao, a arte do compromisso. Por maior que fosse a tentagao de batalhas eleitorais ou de confrontos parlamentares, esperava-se que os cavaIheiros nunca perdessem, involuntariamente, a serenidade e nunca recorressem a violencia entre iguais, mas que agissem de acordo com as normas regulamentadas de um duelo. Pode ver-se, de imediato, a afinidade que existia entre os debates parlamentares e os confrontos desportivos. Estes ultimos eram tambem competigoes nas quais os cavalheiros reprimiam o recurso a violencia ou, no caso dos espectadores desportivos, como, por exemplo, nas corridas de cavalos ou no boxe, onde se procurava eliminar ou moderar, sempre que possfvel, a violencia. Se compararmos o desenvolvimento da Inglaterra com o da Franga, existem aspectos do desporto que podem ser compreendidos com maior clareza. Em Franga, o processo de formagao do Estado, que, sob as institutes, dissimulava a ascensao dos reis relativamente aos nobres e homens do povo, originou, como referi antes, a acentuada divisao entre a nobreza de corte e a nobreza de provincia. A ultima possuia um estatuto vincadamente inferior ao da primeira porque nao tinha acesso aos lugares do poder, aos centros de refinamento. Em Inglaterra, o diferente equilibrio de poder que existia entre os reis e as classes proprietarias de terras teve como resultado uma tradigao segundo a qual, ja no seculo XVII, se estabeleciam, pelo menos entre os sec tores mais ricos da aristocracia e da pequena nobreza, lagos estreitos entre a vida rural e a vida na corte e, no seculo XVIII, em Londres, quando o Parlamento se reunia, entre a vida do campo e a vida social das familias mais ricas de proprietarios. A instituigao que ligava a vida rural a vida urbana era the London Season*. Todas as familias do campo que dispunham dos meios para o efeito iam, durante a «estagao», para Londres, ai viviam alguns meses nas suas casas de cidade, gozavam os prazeres da vida urbana — o jogo, os debates e os mexericos da
*«A estagao londrina». (N. da T.)
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sociedade. Desta forma, o modo de vida da aristocracia e da pequena nobreza com terras ou, pelo menos, dos seus sectores abastados, ligava a vida da cidade a vida do campo, e deste modo pode explicar-se porque e que, no seculo XVIII, divertimentos de ar livre tais como o criquete, que associava costumes rurais e maneiras das classes mais altas, ou a realizagao de confrontos urbanos como o boxe, que adaptou o costume das classes de niveis mais baixos ao gosto das classes mais altas, sofreram a transformagao particular verificada nos desportos. Esta tradigao persistiu mesmo quando a influencia formativa das classes com terras sobre o desenvolvimento do desporto havia terminado e transitara para as maos das classes urbanas industrials. Outro aspecto do que habitualmente e designado por «desenvolvimento politico» relaciona-se com o desenvolvimento do desporto e merece ser aqui referido. Mais uma vez, ao comparar-se o desenvolvimento ingles com o frances, isso torna-se mais claro. Tal como em muitas outras monarquias autocraticas, em Franga, o direito dos subditos quanto a formar associates por sua propria iniciativa estava, em geral, naturalmente limitado senao mesmo abolido. Em Inglaterra, os cavalheiros reuniam-se como entendiam. Uma das manifestagoes do direito dos cavalheiros a reunir-se livremente foi a instituigao de «clubes». Um dos aspectos significativos desta facilidade de reuniao foi o facto de este termo ter sido adoptado pelos Franceses quando, tambem eles, foram capazes de reclamar o direito de livre associagao. A tradigao francesa de direito autocratico nao havia dado origem a nenhum procedimento anterior deste tipo, nem a um conceito especifico para este genero de associagoes. A formagao de clubes, levada a efeito por pessoas interessadas como espectadoras ou executantes numa ou noutra das suas variedades, representou um papel crucial no desenvolvimento do desporto. Na fase anterior ao desporto, divertimentos como a caga e uma diversidade de jogos de bola eram regulamentados de acordo com as tradigoes locais que variavam com frequencia, de uma localidade para outra. Talvez algumas das aldeias mais antigas, um patrono local, quern sabe, tenham procurado assegurar que os costumes tradicionais fossem respeitados pelas geragoes mais novas; talvez ninguem o tenha feito. Uma das caracteristicas que distinguem os divertimentos emer-1
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gentes com o cunho de desportos era o facto de serem regulamentados, para alem do nivel local, por meio de uma dessas associates livres de cavalheiros que acabei de referir, os clubes. O recente desenvolvimento do criquete e um exemplo tipico. Quando se tornou um habito organizar confrontos de jogos ultrapassando o nivel local, devido a deslocagao das equipas de criquete de um local para o outro, tornou-se necessario garantir a uniformidade do jogo. Numa fase inicial, talvez dentro de um condado, os cavalheiros formavam, deste modo, um clube regional, cujos membros concordavam na unificagao das tradigoes locais. A este nivel elevado de integragao, o acordo quanto as regras, a concordancia quanto a sua alteragao, caso se verificasse nao serem totalmente satisfatorias, representou uma condigao importante no desenvolvimento de um divertimento tradicional na direcgao do desporto. O acordo quanto ao quadro das regras e quanto aos costumes sociais associados ao jogo seguia habitualmente de mao dada, com o desenvolvimento de um orgao fiscalizador que garantia o respeito pelas regras e designava os juizes para os jogos, se fossem necessaries. Isto foi o primeiro passo no caminho para um desenvolvimento que hoje e habitualmente considerado garantido e, como resultado dessa atitude, faltam conceitos apropriados. Pode dizer-se que as variantes de desporto comegam a assumir um caracter proprio, que se manifesta e se sobrepoe as pessoas que o jogam. Ao nivel dos confrontos de ar livre das tradigoes locais, sem regras solidas e fixas, o jogo e os jogadores continuavam a ser bastante identicos. Uma improvisao, a extravagancia de um jogador que pudesse agradar aos outros, podia alterar o padrao tradicional do jogo. O mais elevado nivel de organizagao de um clube regulador e supervisor dotava o jogo de um grau de autonomia em relagao aos jogadores. E essa autonomia desenvolveu-se, como agente de controlo, para um nivel mais elevado de integragao, tomou o controlo efectivo do jogo, como quando, por exemplo, um clube de Londres, o M C C, retirou o controlo efectivo do criquete aos clubes regionais. Nao e necessario ir mais longe. Nao seria dificil demonstrar como e quando e que o desenvolvimento do desporto ingles atingiu o nivel de varios clubes locais, de uma associagao nacional coordenadora de todos os clubes locais e, em alguns casos, o desenvolvimento de varias associates nacionais numa associagao internacional a coordena-las.
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Esta breve visao do desenvolvimento organizativo pode ajudar a precisar o aspecto do desporto a que acabei de me referir. Pode dizer-se que^qualquer^ vjTiedbide^d£^desporto_possui uma fisionomia propria. Ela atrai as . sso a.cpntece porque ppssui uma certa^ autononao so aos individuos que jogam num determinado mornenfo^mas, tambem,ja socieda^ onde sg^desenvplyeu. E por dos desportos que se desenvolveram, inicialmente, em Inglaterra, puderam transferir-se e ser adoptados por outras sociedades como se fizessem parte delas. O reconhecimento deste facto abre um vasto campo de futuras investigates. Porque e que, por exemplo, algumas das variedades iniciais de desportos ingleses, tais como o futebol e o tenis, foram adoptadas por muitas sociedades diferentes, em todo o mundo, enquanto a expansao do criquete se confinou principalmente a um circulo exclusive dos paises da Commonwealth? Porque e que uma variedade do futebol, o raguebi, nao se expandiu tao largamente como o futebol? Porque e que os EUA, sem abandonarem por complete as variantes do desporto ingles, desenvolveram a sua propria variedade de futebol? A compreensao da^relativa autonomia do desporto pode contribujjTpara uma anSis^lna^T^rc^^dri^ eqmvjlentesTTIHeia de que as investigates sociologicas possmam um caracter necessariamente reducionista tern sido difundida. A demonstragao de que alguns aspectos da sociedade, tais como a ciencia ou a arte, podem ser explicados numa perspectiva economica, parece esgotar o programa de trabalho dos sociologos. O que eu aqui tenho referido de uma forma resumida e um vasto piano de acgao para a sociologia. Procurarei mostrar a teia de factos ou, pelo menos, de alguns dos seus aspectos que contribuiram para a formagao do desporto em Inglaterra. No ambito deste ultimo, muitos destes factos eram coincidentes. Por esse motivo, se alguem tenta dar uma ideia de algumas das razoes por que o desporto se desenvolveu em Inglaterra, como eu aqui o flz, apresenta o quadro de um desenvolvimento, de uma sequencia ordenada de passos numa direcgao particular; mas, tal como disse antes, ao mostrar que o ultimo passo, no caso do desporto, foi precedido por uma sucessao de passos anteriores enquanto sua condigao necessaria, dificilmente se pode dizer que, partindo da sucessao dos acontecimentos ante-
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riores, o ultimo passo estava prestes a emergir10. Neste caso tambem, a ligagao entre aquilo que e designado com frequencia por diferentes esferas do desenvolvimento social, por exemplo, entre o regime parlamentar das classes mais altas e os divertimentos das classes mais baixas na forma de desportos, nao possui o caracter de uma relagao causal. Vejrificou^jipenas q u e o jpaesmp grupp^jdgjgessoas que^ partki^oj^no^vango_da_pacificagao e no>jmmento ^da, tegularizagao dos confrontos entre facgoes no Parlamento era resjxmsavel pelo jiumento da pacificagao e da regujarizaja^dos seus diverti^ mentos. Dificilmente se podera dizer que, neste caso, a parlamen^ tarizagao das antigas camaras inglesas dos Lordes e dos Comuns foi a causa da qual o desporto seria o efeito. Tal comq^emergiram no seculo^XVIII, querjo^ dejj:grt^^uer o ParlauSiehto eTafiT cajrac-^ ^r^kos^dajnesma^modificagao na estrutura do poHeFem Inglaterra e nos Jhabkos sociais desse grupo de individuos que emergiu" de lutas^nteriores como o grupo dirigente. "™
Diz-se, por vezes, que o desporto possui uma fungao complementar nas sociedades altamente industrializadas — a de permitir a pratica de actividades fisicas a uma populac.ao com varias profissoes sedentarias e, por esse motivo, com insuficientes oportunidades de se exercitar sob o ponto de vista corporal. Este pode ser um aspecto de complementaridade, mas existem outros que tern despertado menor atengao, ainda que, em termos da sua importancia para os seres humanos, possam ser de signifkado nao menor. Julgo que a sua descoberta conduz ao esclarecimento de alguns aspectos do desporto e de outras ocupagoes do tempo de lazer que, de certo modo, tern sido negligenciadas. Nas sociedades avangadas do nosso tempo, muitas profissoes, muitas relagoes privadas e actividades, so proporcionam satisfagao se todas as pessoas envolvidas conseguirem rnanter uma razoavel harmonia e um controlo estavel dos seus impulses libidinais, afectivos e emocionais mais espontaneos, assim como os dos seus estados de espirito flutuantes. Nestas sociedades, a sobrevivencia social e o 10
Ver Norbert Elias, What is Sociology?, Londres, 1978, p. 158 e seguintes.
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sucesso dependem, por outras palavras, em certa medida, de uma armadura segura, nem demasiado fragil nem demasiado forte, de autocontrolo individual. Nas sociedades como estas ha um campo de acgao muito limitado para a demonstragao de sentimentos fortes, de acentuadas antipatias e de aversoes relativamente a outras pessoas, para a entrega a intensos acessos de colera, a um odio feroz ou ao impulso de atingir a cabega de alguem. As pessoas que se agitam demasiado, sob o dominio de sentimentos que nao podem controlar, sao casos para hospital ou para prisoes. Determinadas condigoes de elevada excitagao sao consideradas como anormais em qualquer pessoa e, no caso de multidoes, como um perigoso preludio de violencia. No entanto, a contengao de sentimentos fortes, no sentido de alguem preservar um controlo regular firme e completo dos impulsos, afectos e emogoes e um factor de origem de novas tensoes. Algumas pessoas tern sorte. Possuem a capacidade de facilmente transformarem e canalizarem os seus impulsos e sentimentos para actividades que sao, ao mesmo tempo, beneficas para os outros e satisfatorias para si proprias. Noutros casos, porem, revelam dificuldades, senao mesmo impossibilidade em conciliar as exigencias da vida em comum, que exige uma restrigao regular e bem moderada de cada individuo, a acgao-contengao designada por «consciencia» ou «razao», com as necessidades de satisfagao dos seus instintos e impulsos afectivos e emocionais. Nestes casos, os dois tipos de necessidades — ou algumas delas — mantem-se em permanente conflito. Em geral, nas sociedades onde grande parte dos elevados padroes de civilizagao sao salvaguardados e assegurados por meio de um estado interno de acentuado controlo efectivo da violencia fisica, as tensoes pessoais resultantes desse genero de conflito, numa palavra, as tensoes, determinadas por essa dificuldade, estao muito espalhadas. Ate onde se pode verificar, a maioria das sociedades humanas desenvolve algumas contramedidas em oposigao as tensoes do stress que elas proprias criam. No caso das sociedades que atingiram um nivel relativamente avangado de civilizagao, isto e, com relativa estabilidade e com forte necessidade de sublimagao, as restrigoes harmoniosas e moderadas, na sua globalidade, podem ser observadas, habitualmente, numa consideravel multiplicidade de actividades de lazer, que desempenham essa fungao, e de que o desporto e uma variante. Mas, para cumprir a fungao de libertagao das tensoes
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derivadas das pressoes, estas actividades devem conformar-se a sensibilidade existente face a violencia fisica que e caracteristica dos habitos socials das pessoas no ultimo estadio de um processo de civilizagao. Ao comparar as actividades de lazer contemporaneas com as dos primeiros estadios, pode notar-se facilmente que apenas sobreviveram aquelas que conseguiram adaptar-se a repugnancia normalmente muito forte dos seres humanos em relagao a possibilidade de infligirem ferimentos ffsicos aos outros. Durante seculos, os combates de gladiadores, ou entre seres humanos e animais ferozes, constituiram um divertimento apreciado pelas populates urbanas do Imperio Romano, e as diversoes medievais da queima dos gatos, a suspensao publica na forca ou a luta de galos teriam, provavelmente, desencadeado um diminuto prazer as audiencias contemporaneas, e poderiam ser sentidas por algumas pessoas como algo intoleravel e horrivel. A variedade das actividades de lazer nas sociedades mais diferenciadas e muito grande, as diferengas entre elas sao acentuadas. Alem disso, a maioria possui, em comum, caracteristicas estruturais basicas. E estes tragos comuns apontam para a fungao que preenchem como actividades de lazer em sociedades de um tipo de diferenciagao elevado e complexo. Enquanto, nestas sociedades, as rotinas publicas ou privadas da vida exigem que as pessoas mantenham um perfeito dominio sobre os seus estados de espirito e sobre os seus impulsos, afectos e emogoes, as ocupagoes de lazer e de algumas formas reminiscentes da sua realidade exterior autorizam-nas, de um modo geral, a fluir mais livremente num quadro imaginario especialmente criado por estas actividades. Enquanto, no caso das ultimas, o conjunto de oportunidades de manifestagoes de sentimentos e pouco claro, ou confinado a sectores especiais, as actividades de lazer destinam-se a apelar directamente para os sentimentos das pessoas e anima-las, ainda que segundo maneiras e graus variados. Enquanto a excitagao e bastante reprimida na ocupagao daquilo que se encara habitualmente como as actividades serias da vida — excepto a excitagao sexual, que esta mais estritamente confinada a privacidade —, muitas ocupagoes de lazer fornecem um quadro imaginario que se destina a autorizar o excitamento, ao representar, de alguma forma, o que tern origem em muitas situagoes da vida real, embora sem os seus perigos e riscos. Filmes, dangas, pinturas, jogos de cartas, corridas de cavalos,
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operas, historias policiais e jogos de futebol — estas e muitas outras actividades de lazer pertencem a esta categoria. Se perguntarmos de que modo e que se animam os sentimentos, como e que a excitagao e favorecida pelas actividades de lazer, descobre-se que isso e dinamizado, habitualmente, por meio da criagao de tensoes. Perigo imaginario, medo ou prazer mimetico, tristeza e alegria sao produzidos e possivelmente resolvidos no quadro dos divertimentos. Diferentes estados de espfritos sao evocados e talvez colocados em contraste, como a angustia e a exaltagao, a agitagao e a paz de espirito. Deste modo, os sentimentos dinamizados numa situagao imaginaria de uma actividade humana de lazer tern afinidades com os que sao desencadeados em situagoes reais da vida — e isso que a expressao «mimetica» indica — , mas o ultimo esta associado aos riscos e perigos sem fim da fragil vida humana, enquanto o primeiro sustenta, momentaneamente, o fardo de riscos e de ameagas, grandes e pequenas, que rodeia a existencia humana. Uma tragedia representada num teatro, tal como Aristoteles revelou, pode evocar nos espectadores sentimentos de medo e de piedade, que estao profundamente relacionados com aqueles que sao experimentados pelos seres humanos quando sao testemunhas proximas da condigao real de outros, presos tragicamente nas ciladas das suas vidas. Porem, o quadro imaginario da tragedia teatral e construido por humanos. A opressao do sentimento produzido pelo fardo irredimivel do sofrimento humano na vida e iluminado, o sentimento e em si mesmo purificado pelos simbolos mimeticos da musica ou da poesia, dos movimentos do corpo ou mascaras, e pela tensao mimetica experimentada por aqueles que testemunharam o sofrimento humano e a dor, num quadro imaginario da construgao humana de uma tragedia. Desta maneira, uma crianga langada ao ar em seguranga nos bragos estendidos do pai pode sentir o prazer da excitagao mimetica do perigo e do medo, sabendo que o medo e imaginario e que existe seguranga nos bra^os do seu pai. Do mesmo modo,^os£S£^t^ores^um jogo de fut eboljgodem entre duas equipas, eyohjJii£lx3j^^ de logo, sabendo ^qiie^nenhum mal-acont-eGera^os ji^ga^orcs^^^^a sijjxesm€)Sv^Ial como na vida real, podem agitar-se entre esperangas de sucesso e medos de derrota; e, nesse caso, activam-se sentimentos muito fortes, num quadro imaginario, e a sua manifestagao
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aberta na companhia de muitas outras pessoas pode ser a mais agradavel e libertadora de todas, porque na sociedade, de um modo geral, as pessoas estao mais isoladas e tern poucas oportunidades para manifestagoes colectivas de sentimentos intensos. E, contudo, se as tensoes despertam numa sociedade mais alargada, se ai as restrigoes sobre os sentimentos intensos enfraquecem e o nivel de hostilidade e odio entre os diferentes grupos se eleva a serio, a linha divisoria que separa o jogo e aquilo que nao e jogo, confrontos mimeticos e reais, pode ficar pouco nitida. Nesses casos, a derrota no terreno de jogo pode evocar a amarga sensagao de derrota na vida real e um apelo de vinganga. Uma vitoria mimetica pode apelar a continuagao do triunfo numa batalha fora do terreno de jogo. O reconhecimento do facto de os divertimentos com as caracteristicas de desportos terem tornado forma definida em Inglaterra, em ligagao com o apaziguamento de um ciclo de violencia e a sua resolugao num confronto politico nao violento, de acordo com regras, torna mais facil a compreensao de que o desporto altera a sua fungao e o seu caracter se, uma vez mais, a mare das tensoes e da violencia dentro ou entre Estados se elevar. Caso isso acontega, as tensoes mimeticas e a excitagao controlada que com elas se relaciona podem perder as suas caracterfsticas especificas, bem como a oportunidade de uma resolugao agradavel das tensoes, as quais estao no fulcro do desporto de lazer e de muitas outras actividades deste tipo. Na sociedade global, estas tendem a atenuar-se ou a fundir-se com tensoes de tipo diferente. As proezas desportivas que hoje culminam nos Jogos Olfmpicos fornecem exemplos notaveis. Ai a luta pelos recordes mundiais suscitou uma direcgao diferente ao desenvolvimento do desporto. As tensoes mimeticas do lazer desportivo sao dominadas e padronizadas por tensoes globais e rivalidades entre varios Estados, sob a forma de um acontecimento desportivo. Quando assim sucede, o desporto assume um caracter que, em certos aspectos, e nitidamente diferente daquele que se revela enquanto ocupa^ao de lazer. So neste caso e que as tensoes mimeticas conservam autonomia, um grau de distingao em relagao ao tipo de tensoes caracterfsticas das situagoes da «vida real». Contudo, dentro de certos limites, um tipo de realizagao desportiva pode conservar as suas fungoes como ocupagao de lazer: quando assume a qualidade de desporto espectaculo. Considerado nesta
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perspectiva, o desporto pode resultar numa agradavel excitagao mimetica, que e susceptivel de contrabalangar as tensoes, normalmente desagradaveis, das pressoes derivadas do stress inerente as sociedades, proporcionando uma forma de restauragao de energias. Um dos principals tragos fisionor^ ^jLgresratarcm rer superiQr a sssa fc=aualquer outra _ ___ .^^.^^^^^^^^^^^ea^^ que se possaTImaginar. Muitas dessas ocupagoes de lazer, entre as quais o desporto nas suas formas de pratica ou de espectaculo, sao entao consideradas como meios de produzir um descontrolo de emogoes agradavel e controlado. Com frequencia, elas oferecem (embora nem sempre) tensoes mimeticas agradaveis que conduzem a uma excitagao crescente e a um climax de sentimentos de extase, com a ajuda dos quais a tensao pode ser resolvida com facilidade, como no caso de a sua equipa veneer uma prova desportiva. Nesta linha, as tensoes mimeticas das actividades de lazer e a excitagao com elas relacionada, isenta de perigo ou de culpa, podem servir como um antidoto das tensoes provenientes do stress que, no quadro da repressao global estavel e harmoniosa caracteristica das sociedades complexas, se veriflca entre os Jndividuos. A grande variedade das actividades de lazer, em geral, e dos desportos, em particular, que as sociedades complexas tern para oferecer permite aos individuos uma vasta possibilidade de escoIhas. Uma ou outra podem ser adoptadas, de acordo com os temperamentos, constituigao fisica, necessidades libidinais, afectivas ou emocionais. Algumas destas actividades de lazer podem evocar, de forma mimetica, arrependimento ou medo, tanto quanto alegria e triunfo, afeigao e amor ou odio. No contexto de uma pega ou de um concerto, de um quadro ou de um jogo, ao permitir-se que estes sentimentos fluam livremente no seu contexto simbolico, alivia-se o fardo global que e inerente a vida das pessoas, fora do ambito do lazer. Poucas sociedades humanas existem, se e que existe alguma, que nao possuam um equivalente as nossas actividades de lazer, que nao tenham dangas, confrontos simulados, exibigoes acrobaticas ou musicais, cerimonias de invocagao dos espiritos — em resumo, sem institutes sociais que proporcionam, por assim dizer, a renovagao emocional por meio do equilibrio entre os esforgos e as pressoes da
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vida ordinaria, com as suas lutas a serio, os perigos, os riscos e os seus constrangimentos. No entanto, a natureza e a fun^ao destas formas de restrigao sao facilmente mal compreendidas. Com frequencia, sao consideradas como um corolario da vida social. Dado que os seres humanos vivem uns com os outros, julga-se que devem possuir controlo sobre si proprios, impor restrigoes as manifesta^oes das suas energias, afectos e emogoes. Mas os seres humanos, para beneficio pessoal, tambem tern de aprender a colocar esses impulses sob o seu proprio controlo. Uma pessoa que seja incapaz de o fazer constitui um perigo nao so para os outros mas tambem para si propria. A incapacidade de controlar estes impulses e, pelo menos, tao dolorosa e tao escusada como a necessidade de os controlar demasiado. Os seres humanos possuem restrigoes dos seus poderosos afectos, das suas impetuosas energias instintivas, que nao sao aprendidas. For este motivo, a vida social dos seres humanos, a sua vida em comum, pode oferecer pouca satisfagao se os membros de uma sociedade seguirem os seus proprios afectos e impulsos sem quaisquer constrangimentos. Contudo, os seres humanos sao organizados de uma maneira tao curiosa que a mobilizagao e a padronizagao das suas disposi^oes naturais, no sentido de se constrangerem por meio de aprendizagem, e indispensavel nao so para a sobrevivencia dos grupos humanos como, tambem, para a sobrevivencia de cada um dos seus membros. Alguem que seja incapaz de adquirir o autodominio, um ser humano que nao consiga reprimir os seus impulsos continuara a merce das suas proprias manifestagoes. Uma pessoa incapaz de controlar qualquer necessidade primaria interior ou uma excitagao animada por acontecimentos externos nao pode harmonizar os impulsos insatisfeitos com as fontes da sua satisfagao, nao pode ajustar os afectos as realidades de uma situagao e, por esse motivo, sofrera bastante devido a dor, a pressao irresistivel dos impulsos espontaneos vindos do seu interior mas orientados para o exterior. Sendo incontrolaveis e, portanto, desajustados, estes impulsos, ou antes, as pessoas dominadas por eles, hao-de falhar ou errar os seus alvos e, por isso acabavam por frustrar a descoberta da satisfagao. De facto, tal pessoa nao sobrevivera durante muito tempo para alem da sua primeira infancia e se, por acaso, o fizer dificilmente sera humana. Por outras palavras, a aprendizagem do autodominio e uma
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condigao humana universal, uma condigao comum da humanidade. Sem ela as pessoas, enquanto seres individuals, nao chegariam a tornar-se humanas, assim como as sociedades, que rapidamente se desintegrariam. O que pode mudar, e aquilo que de facto mudou durante o longo desenvolvimento da humanidade, sao os padroes sociais de autodominio e a maneira segundo a qual eles se forjam no sentido de activar e modelar o potencial natural dos individuos, no sentido de retardar, suprimir, transformar, em resumo, de controlar de varias formas energias elementares e outros impulses espontaneos. O que mudou, em suma, foram as operagoes de controlo engendradas no decurso do processo de aprendizagem individual de uma crianga e con,hecidas actualmente por designagoes tais como «razao» ou «consciencia», «ego» ou «superego». A sua estrutura e padrao, as suas fronteiras e, em con junto, a sua relagao com os impulsos libidinais, e outros em grande medida nao aprendidos, sao nitidamente diferentes em estadios distintos no desenvolvimento da humanidade e, desse modo, no decurso do seu processo de civilizagao. Com efeito, as modificagoes deste genero constituem o fulcro estrutural deste processo demonstravel, assim como dos ligeiros arranques de civilizagao ou de descivilizagao que se podem observar. E por esse motivo que, no desenvolvimento social da especie humana, nao existe o ponto zero da civilizagao, nenhum momento do qual se possa dizer que foi aqui que a barbaric chegou em absoluto ao fim, ou foi aqui que, entre os humanos, a vida civilizada comegou. Dito de outra maneira, o processo de civilizagao e um processo social sem inicio absoluto. Uma sequencia de mudangas puramente sociais, sem correspondentes modificagoes biologicas da especie, foi desencadeada sem descontinuidade absoluta, em consequencia de uma evolugao biosocial e, finalmente, biologica. Em contraste com esta ultima, o processo de civilizagao, tal como outras sequencias sociais de mudanga de uma direcgao particular, pode seguir um mecanismo inverse. Um processo de civilizagao pode ser adquirido, pode ate ser acompanhado, por avangos de direcgao oposta, pelo processo de descivilizagao. Contudo, a direcgao de um processo de civilizagao e frequentemente mal compreendida. Como o desporto esta intimamente ligado as condigoes de civilizagao na sociedade em geral e, deste modo, aos efeitos reciprocos dos impulsos de civilizagao e de des-
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civilizagao, facto que hoje e bem visivel, podem ser uteis algumas palavras introdutorias sobre a orientagao de tal processo. Uma das ideias que podem ocorrer facilmente quando se menciona a orientagao de um processo de civilizagao e a das mudangas no sentido de um maior autocontrolo. Embora isto seja uma simplificagao grosseira, nao se pode dizer que seja errado. Termos de comparagao tais como «maior» ou «menor» nao tern necessariamente de se referir a relagoes de quantidades mas podem sem dificuldade dar a impressao de que e esse o seu significado. Por esse motivo, se neste contexto se fala de «maior autocontrolo» ou de «menor autocontrolo» pode parecer que tal se faz, da mesma maneira, quando se fala de beber mais ou menos vinho. As actuais limitagoes da lingua tornam um pouco mais diffcil o encontro de expressoes menos equfvocas. Alias, se alguem referir que a direcgao do processo de civilizagao nao se pode apresentar, de modo adequado, como uma mudanga em termos de quantidade, a unica alternativa que os usos actuais da linguagem e do pensamento oferece e a hipotese de a supor como uma mudanga de qualidade. Este e um dos varios casos em que estas utilizagoes demonstram perfeitamente a marca do conhecimento acerca da natureza fisica. O estudo da natureza tern dado uma base solida a ideia de que a redugao da qualidade a quantidade e o unico caminho para a descoberta e, por esse motivo, o unico tipo de procedimento cientffico valido. Mesmo no caso de substancias altamente organizadas, tais como os cromossomas, isso ja nao e inteiramente verdade. A este nivel, os modelos de configuragao tern de completar em termos e quantidades as representa£oes simbolicas das qualidades. O uso linguistico correcto, que propoe a qualidade como a unica alternativa para a quantidade, comega a revelar as suas limitagoes. E tal facto ainda e mais revelador no que diz respeito ao estudo dos grupos sociais. Se se utilizar o desenvolvimento comparado da humanidade, como mais tarde ou mais cedo se tera de fazer, como uma grade basica de referenda para estudos sociologicos, se se estender ao longo caminho percorrido pelos seres humanos desde o tempo das cavernas, como as unidades de sobrevivencia de um perfodo anterior, ate ao tempo das Estados-nagoes industriais, como as unidades de sobrevivencia de um perfodo posterior, a mudanga na quantidade de pessoas que formam uma unidade de sobrevivencia em qualquer lado e, quase de certeza, um criterio relevante desse desenvolvimento. Porem,
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nao se ira muito longe se entao se procurarem as «qualidades» destes grupos de seres humanos que possam ser reduzidas a quantidades. O termo «qualidade», que possui um significado muito precise se alguem se refere a substancias fisicas, ja nao possui um significado igualmente precise se alguem menciona as sociedades humanas. A espontaneidade com que «qualidade» ocorre ao pensamento como a unica alternativa linguistica correcta para «quantidade» e uma das muitas circunstancias que mostra que, no estudo das sociedades humanas, nos encontramos presentemente prisioneiros de linguagens cujas influencias mais decisivas na nossa formagao foram experiencias de tipo fisico ou metafisico. Nem todos os idiomas se encontram correctamente ajustados ao estudo dos seres humanos, quer como individuos quer como sociedades. Se se utilizarem os exemplos mencionados antes, os primeiros e os ultimos tipos conhecidos de sociedade humana, e facil reconhecer que o que se oferece como alternativa a disparidades nas dimensoes, na quantidade de pessoas que constituem estes grupos, nao sao tanto diferengas nas qualidades do grupo mas antes as que existem na estrutura desses grupos, na maneira como as pessoas se encontram ligadas umas as outras ou, por outras palavras, nas configuragoes que formam entre si e com a natureza nao humana. Neste caso, o termo configuragao e designado de modo a evitar a ideia, inerente a muitos termos tradicionais, de que as pessoas e as sociedades sao substancialmente diferentes. Os dois conceitos denotam apenas diferengas na perspectiva de um observador que, em determinado momento, observa as pessoas que constituem um grupo e, noutra circunstancia, o grupo que elas formam entre si. Ao compreender^ 5bC0 bs grupos humanos, pequenos ou grandes, como configuragoes que Vp ;/«. Ll os seres fiumano^ cBnTeitos-ao^dldos^pBservaveis do que o p^ermite a habitual pola^rizagao do individuo e da sociedade. E aceitavel dizer-se queTas estruturas sociais sad estfuturas formadas por seres humanos. Isso , tambem indicaria que o estudo das sociedades enqimnto_acum I gao de individuos pafTconhecer as "qualidades daj jgciedades^mas nar as suas estruturas ou as configuragoes ^ humanos. Pode verificar-se que o termo estrutura resiste um poucb* a esta uniao com seres humanos. E mais facil referir configuragoes de seres humanos, por exemplo, no caso da configuragao dinamica
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formada pelas duas equipas de jogadores no terreno de futebol. Contudo, configuragao e uma nova expressao nao totalmente compreendida. O seu uso necessita de uma medida de distanciamento justa. O melhor que se pode fazer, neste ambito, e referir exemplos que podem servir como um modo de comunicagao mais aceitavel do que afirmagoes gerais que incluem um termo nao familiar. Os exemplos abundam. So e necessario voltar ao que foi dito antes sobre a sociogenese do desporto, acerca do avango de civilizagao do qual o desporto constitui um aspecto e sobre as suas categorias distintivas em relagao aos divertimentos de um estadio anterior do desenvolvimento. Pode ver-se ai que as regras para confrontos nao violentos entre facgoes rivais no Parlamento e para a entrega pacifica do poder governamental a uma facgao vitoriosa ou partido emergiam mais ou menos ao mesmo tempo que o aumento de rigor introduzido na restrigao da violencia, na maior exigencia de autocontrolo individual e na tecnica de sublimagao, que atribui caracteristicas de desporto as provas que envolvem forga muscular e agilidade, realizadas no quadro do lazer. For esse motivo, ao afirmar-se que os confrontos do Parlamento ou dos desportos exigem maior autocontrolo do que os confrontos politicos de um periodo anterior, regulamentados com menor rigidez e, com frequencia, mais violentos, tal nao se aplica a uma modificagao na quantidade do autocontrolo, a qual poderia ser medida, de forma aceitavel, isoladamente; nem se reporta a uma modificagao na qualidade dos seres humanos que formam entre si configurates tais como o Parlamento ou as equipas de criquete, que eram, como se pode demonstrar, regulamentadas de forma mais severa do que aquelas que as precederam e exigiam das pessoas que as constituiam mais rigor, equilfbrio e controlo estavel de si proprios. Mas nos confrontos parlamentares, embora os confrontos verbais e as intrigas partidarias possam fornecer alguma excitagao agradavel aqueles que nao estao demasiado envolvidos, as oportunidades de riqueza, estatuto e poder estavam em jogo. A caga a raposa, tal como emergiu no seculo XVIII, ainda que os proprios cagadores negassem o prazer de matar e embora estivesse na sua totalidade, mais firmemente regulamentada do que formas de caga anteriores, permitia aos cavalheiros e as senhoras cagadores todos os prazeres e o excitamento da perseguigao, por
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assim dizer, de forma mimetica, por meio de um jogo violento, interpretado por eles enquanto espectadores participantes, pelos caes de caga e pela raposa (ver «Ensaio sobre o Desporto e a Violencia» neste volume). Neste caso, tambem, j3 d avango de^civilizagao nao se baseavajia m^i isoladas 4e, ,autoconjtt^o~Jm^^ por todo o quadro, pela configuracao formada por seres humanos, neste caso juntamente com cavalos.^caes de caca e raposa. /****' O desporto, tal como outras actividades de lazer, no seu quadro especifico pode evocar atraves dos seus designios, um tipo especial de tensao, um excitamento agradavel e, assim, autorizar os sentimentos a fluirem mais livremente. Pode contribuir para perder, talvez para libertar, tensoes provenientes do stress. O quadro do desporto, como o de muitas outras actividades de lazer, destina-se a movimentar, a estimular as emogoes, a evocar tensoes sob a forma de uma excitagao controlada e bem equilibrada, sem riscos e tensoes habitualmente relacionadas com o excitamento de outras situagoes da vida, uma excitagao mimetica que pode ser apreciada e que pode ter um efeito libertador, catartico, mesmo se a ressonancia emocional ligada ao designio imaginario contiver, como habitualmente acontece, elementos de ansiedade, medo — ou desespero11. Mas apesar de o desporto partilhar com muitas outras activida*<-
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Por vezes, o quadro imaginario do desporto como uma luta que e, em ultimo recurso, um jogo, e como tal relacionado, apesar de diferente, com as lutas reais e os combates da vida das pessoas, deu origem a sugestao de que o desporto e uma imitagao dos confrontos da vida real. Nao e inteiramente irrelevante que neste contexto ocorra o problema da imitagao, como acontece no contexto da arte. O mais antigo e talvez o mais famoso debate sobre o caracter de imitac.ao da arte e o que se pode encontrar na obra Poetica de Aristoteles. Surgiram duvidas sobre a autenticidade do texto actual que, de alguma maneira, e fragmentar. Mas aquilo que temos e suficiente para mostrar que Aristoteles parece ter sido o primeiro a considerar o problema do que e ser a imitagao, por exemplo, de uma tragedia. «A tragedia e uma imitagao nao dos seres humanos mas da acgao e da vida, da felicidade e da miseria» (John Jones, On Aristotle and Greek Tragedy, Londres, 1962, p. 30). Embora o sentido exacto desta aflrmagao nao seja totalmente claro, parece apontar numa direcgao que, acredito, continua a proporcionar, pelo menos, parte da resposta ao problema do caracter mimetico das actividades do lazer. Nas suas ligoes sobre algumas das ocupagoes de lazer dos Atenienses, Aristoteles empregou, e talvez tenha criado, dois dos conceitos que sao dos mais uteis para as investigates nesta area de problemas.
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des de lazer o seu caracter mimetico, ter a capacidade de estimular emogoes semelhantes aquelas que sao experimentadas noutras situagoes e ate a possibilidade de catarse, apresenta diferengas relativamente a maior parte delas e, em especial, as artes, pelo papel representado em todos os desportos pelas lutas in toto entre seres humanos. Em todas as formas de desporto, os seres humanos lutam entre si directa ou indirectamente. Algumas formas de desporto cujas intengoes se parecem profundamente com as de um confront o real entre grupos hostis, tern uma propensao muito forte para desencadear emogoes, para evocar excitagao. For esse motivo, elas representam um^j^xen^^ de um dos principals problemas de muitos desportos: como conciliar, for m o dos objectiyos do desporto, duas fungoes ^gntr^itorias_r--_por3i|n^ lado, o prazer de desencadear sentimentos humanos, a^evqcagap plena de uma excitagao agradavel, e, por outro, aj:onservagao de um con j unto jie dispositivos de vigilancia para manter^o -agradavej^ controlo. O problema dos desportos centrados em simulagoes de confrontos pode talvez sobressair com maior nitidez se lembrarmos, uma vez mais, que o desporto partilha com muitas ocupagoes de lazer do
Refiro-me aos conceitos de rnimese e de catarse. Nao se pode ter a certeza do seu sentido original. Mas talvez seja possfvel sugerir o que podem significar hoje. «Mimesis» teria adquirido um sentido mais nitido se nao fosse usado somente como uma expressao mais culta de «imita^ao». A Madonna de Rafael, o Auto-Retrato de Rembrandt e os Girassois de Van Gogh nao sao simplesmente imitagoes da coisa real. O que se pode dizer e que elementos do objecto vivido entram na vivencia da representagao do mesmo objecto numa pintura. Mas a vivencia do objecto pintado, ainda que em alguns aspectos se assemelhe a vivencia do objecto da vida real, dificilmente pode ser designado uma imitagao da experiencia do objecto da vida real. Ao ser pintado, o objecto e transposto para o interior de um quadro diferente. A vivencia do objecto e, em particular, o complexo de sentimentos a ele associado e, por assim dizer, como se alguem passasse da contemplagao do objecto real para a contemplac.ao do mesmo objecto como parte de uma pintura, transposto para o interior de uma montagem diferente. Os aspectos-sentidos da vivencia sofrem, particularmente, neste caso, uma transformagao bastante caracteristica, uma metabasis eis allo genos {Em alemao no original. (N. da T.)}. O termo mimese pode servir como um simbolo conceptual que explica essa transformagao. Usado neste sentido, preencheria uma lacuna. Algo muito semelhante acontece se compararmos uma luta fisica real entre seres humanos numa prova desportiva. O caracter mimetico de uma prova despor-
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nosso tempo a fimgao de controlar uma agradavel ausencia de controlo de sentimentos. Um concerto tambem pode cumprir essa fungao. Mas, neste caso, o movimento fisico dos executantes, excepto talvez os do maestro, nao estao no centro da atengao. A audiencia tern de conservar os seus movimentos sob rigoroso controlo de modo a que nao parta dela nenhum ruido que perturbe os sons produzidos pela orquestra. Na verdade, ao longo de anos, tern aumentado nitidamente a tendencia para restringir os movimentos dos espectadores. Um jorro subito de auto-escalada da civilizagao pode estar a ocorrer neste caso. Actualmente, o codigo de conduta daqueles que vao aos concertos limita os aplausos, remetendo-os para o final de uma sinfonia ou qualquer pega de musica com andamentos multiplos. O aplauso no fim de um andamento e refreado, se nao mesmo censurado. No tempo de Haydn ou Beethoven, contudo, o aplauso depois de cada andamento nao so se verificava como era esperado. Muitos andamentos tinham tambem a intengao de favorecer os aplausos, como forma bem-vinda de libertar a excitagao da tensao produzida pela musica. Hoje, a audiencia permanece em silencio no fim do andamento que havia sido escrito e reclamava o aplauso.
tiva como uma corrida de cavalos, um combate de boxe ou um jogo de futebol e devido ao facto de aspectos da vivencia-sentida associados a luta fisica real entrarem no campo da vivencia-sentida de uma luta «de imitagao» propria de um desporto. Mas, na experiencia dos desportos, a vivencia-sentida de uma luta fisica real e deslocada para um mecanismo diferente. O desporto permite as pessoas a experiencia da excitagao total de uma luta sem os seus perigos e riscos. O elemento do medo na excitagao, ainda que nao desaparega por completo, e bastante reduzido, e o prazer da excitagao do combate e, por esse motivo, elevado. A partir dai, se falarmos dos aspectos «mimeticos» do desporto, referimo-nos ao facto de que ele imita, de forma selectiva, uma luta da vida real. O esquema de um jogo desportivo e a destreza de um homem ou de uma mulher desportista permitem que o prazer do confronto se desenvolva sem ferimentos ou mortes. E neste contexto, tambem, que o conceito de catarse de Aristoteles pode preencher uma lacuna no nosso equipamento conceptual. Os confront os do desporto permitem alcangar a vitoria sobre os outros atraves de uma luta fisica sem provocar danos ffsicos. O desfecho da tensao do confronto e o esforgo para atingir a vitoria podem ter um efeito alegre e purificador. E possivel usufruir da confirmac.ao do seu proprio valor sem ma consciencia, um aumento justificado do amor proprio, na certeza de que a luta foi justa. Nessa linha, o desporto proporciona amor proprio sem ma consciencia.
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A descrigao que se segue proporciona um quadro nitido de uma situagao equivalente. Mostra, tambem, que a fungao de produzir uma excitagao emocional controlada mas agradavel nao se limita ao desporto: O pulso acelera; a mao esquerda do musico torna-se uma mancha assim que os dedos do pianista correm de um lado para o outro do teclado. O momento construfdo para a serie final e acordes triunfantes: Ta tab! Turn tummmm! O violinista esboga uma longa e intensa inflexao para baixo; ao desprender os seus brakes estes voam, exultando, para o ar. Entao: incomodo silencio, um pouco de tosse, algumas mudangas de posigao nos lugares; o solista olha para o chao; o brago inclina-se timidamente para baixo. Para retomar a sintoniza^ao, uma nota ou acorde do pianista, assim que os executantes retomam alento do intenso excitamento que construiram sem que se desprendesse uma resposta de confirmagao. Onde estamos? Num grande auditorio, entre uma sofisticada assistencia. De outro modo, algumas pessoas que tenham sido estimuladas por toda esta actuagao teriam feito aquilo que parecia obvio, e os seus vizinhos conhecedores te-los-iam feito calar imediatamente. E porque? Porque e apenas o final do primeiro andamento embora a musica diga «aplauda, por favor», o decoro, num concerto nos finais do seculo XX, diz «Por favor, aguarde12.» A restrigao imposta desta maneira a uma audiencia e tanto maior quanto mais intensamente forem estimuladas as suas emogoes. E, no entanto, ate onde for possivel, nenhum miisculo se deve movimentar. Devem mover-se sem se deslocarem. So no final e que a assistencia pode denunciar, pela forga e duragao dos seus gestos, dos seus aplausos, o quanto esteve antes tab comovida em silencio13. 12
Will Crutchfield, «To Applaud or Not to Applaud», International Herald Tribune, 1-2 de Junho de 1985. 13 Uma variedade de exemplos demonstra que, no decurso de um avango de civilizagao, os movimentos tendem a ser refreados, por yezes, refmados. Em sociedades que se encontram num estadio anterior de um processo de civilizagao, o discurso dos movimentos tende a associar-se de forma mais profunda aos movimentos dos membros ou de outras partes do corpo de uma pessoa. Num estadio posterior de um processo de civilizagao, gestos efusivos e que chamam a atengao sao, de uma maneira geral, condenados. O discurso dos movimentos tende a ser isolado. No
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No caso de um jogo de futebol, movimento e emogao estao intimamente ligados um ao outro, pelo menos na situagao dos jogadores. Mesmo o publico tern um campo de possibilidades maior para transmitir os seus sentimentos entre si e aos jogadores, por intermedio de movimentos, incluindo os da lingua, dos labios e das cordas vocals. Porem, nao so o futebol, mas o desporto, de uma maneira geral, possui o caracter de um combate mimetico controlado e nao violento. Uma fase de luta, ou conflito de tensao e excitagao, que pode ser exigente em termos de esforgos fisicos e de tecnica mas que pode tambem ser, em si mesmo, hilariante, uma libertagao das tensoes e dificuldades da rotina exterior ao lazer e, habitualmente, seguida de uma fase de decisao e de alivio do conflito de tensoes, quer seja pelo jubilo da vitoria ou pelo desapontamento da derrota. O desporto pode traduzir-se num combate entre seres humanos que lutam individualmente ou em equipas. Pode ser uma luta de cavaleiros e de uma matilha de caes em perseguigao de uma raposa veloz. Pode assumir a forma de uma corrida de esqui, desde o cimo da montanha ate ao vale, um tipo de desporto que nao e so um desenvolvimento do desporto, podem encontrar-se tambem exemplos desta tendencia. Por exemplo, em Franga e no Japao, formas anteriores daquilo a que nos chamamos «boxe» autorizavam o uso das pernas ou dos bragos como armas. Na forma inglesa, o boxe limitava o uso das pernas a tarefa da movimentagao de um lado para o outro. Por outro lado, as regras do futebol ingles proibem a utilizagao dos bracks e das maos (a todos os jogadores, excepto ao guarda-redes, e nos langamentos laterals de «reposic.ao» da bola em jogo) como meios de movimentar a bola e limitar as pernas e pes a func.ao de propulsao. Os psicologos investigam, com frequencia, as emogoes dos indivfduos da sua propria sociedade, como se elas tivessem apenas um caracter fisiologico, como se nao fossem muito afectadas pelos contra-impulsos incrustados sob a forma de controlos sociais aprendidos. Em qualquer caso, na sua forma primaria, as emogoes estao profundamente ligadas aos movimentos. Os bebes ou as criangas revelam isso com bastante clareza. So gradualmente e que o potencial humane natural para as restrigoes e activado, e so quando os contra-impulsos aprendidos se interpoem entre os impulses de sentimentos e os orgaos motores e que os primeiros assumem o caracter das emogoes depois observadas nos indivfduos mais velhos de sociedades em que um elevado nivel de restrigoes civilizadoras constitui uma parte integral dos habitos sociais da maioria dos adultos que sao considerados «normals». Duvido que seja possfvel uma adequada teoria das emogoes enquanto os psicologos procederern como se a sua disciplina fosse uma ciencia natural. Sem uma teoria do desenvolvimento social em geral, e em particular de processes de civiliza^ao, nao se pode explorar de modo adequado semelhantes aspectos dos seres humanos.
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confronto entre seres humanos mas e, tambem, um desafio com a propria montanha coberta de neve. Assim e o montanhismo, em que os seres humanos podem ser derrotados por uma montanha ou, f> depois de muitos esforgos, podem atingir o topo e gozar a sua j vitoria. O desporto e sempre, em todas as^sua^variedades, uma luta / controlada, rium quaHfo^ ] montanha. o mar, a raposa ou outros sere i por exemplo, o futeBol. E a imaginagao humana que faz de o facto de os homens conduzirem uma bola de couro — apenas com os pes — o objecto de uma contenda animada mas controlada, entre dois grupos de seres humanos. O problema para resolver, aqui como nos outros jogos desportivos, reside em saber como manter um reduzido grau de riscos e de ferimentos nos jogadores e, alem disso, como sustentar, a um nivel elevado, o prazer desencadeado pelo excitamento da oposigao. Se a estrutura de regras e de tecnicas que proporciona o quadro imaginario do desporto e capaz de o assegurar, na pratica, assim como aos respectivos equillbrios, pode dizer-se que atingiu a maturidade. As variedades do futebol ingles alcangaram esta condigao depois de um periodo de crescimento e de harmonizagao funcional, e os seus designios chegaram muitas vezes a proporcionar regularmente aos jogadores uma boa oportunidade de conflito de tensao nao violento, bastante duradouro para ser aprazivel e, tambem, uma boa ocasiao de libertar e concluir tensoes sob a forma de vitoria ou derrota14. Se muitos jogos terminam em empate, isto e, sem que a tensao seja resolvida por meio da vitoria, isso significa que as regras do jogo necessitam de ser rectificadas. Da mesma forma, um jogo desportivo pode ficar comprometido se a vitoria for conseguida, demasiadas vezes, depressa de mais. Nestas circunstancias, a tensao agradavel provocada pela excitagao esta ausente ou e excessivamente breve15. Pode afirmar-se assim que o futebol, como outras modalidades de desportos de lazer, se apoia no equilfbrio precario entre o enfado e a violencia. O drama de um bom jogo de futebol, segundo a forma atraves da qual se manifesta, 14
Ver a obra de Eric Dunning e Kenneth Sheard, Barbarians, Gentlemen and Players: a Sociological Study of the Development of Rugby Football, Oxford, 197915 No artigo «A Dinamica dos Grupos Desportivos — Uma Referenda Especial ao Futebol» (ver pp. 291-297), e apresentado um exame mais minucioso dos equillbrios desenvolvidos no quadro dos objectives de um desporto como o futebol.
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possui qualquer coisa de comum com uma boa pega teatral. Ai tambem e construida durante algum tempo uma agradavel tensao mimetica, talvez a excitagao, orientada para o climax e, deste modo, para a resolugao da tensao. Porem, uma pega teatral e, em muitos casos, o resultado do trabalho delineado por uma determinada pessoa, enquanto muitas formas de desporto atingiram a maturidade no decurso de um desenvolvimento social nao planeado. A maneira de introdugao, foram aqui apresentados alguns aspectos da sociogenese do desporto. Isso pode ser encarado como um produto derivado que langou tambem algum esclarecimento sobre a natureza do proprio desenvolvimento social. Nao deixa de ser elucidative observar como alguma coisa, de inicio perfeitamente inovadora e, a sua maneira, bastante perfeita, como o criquete, o futebol, o tenis e outras variedades de desporto, tomou forma no decurso de um desenvolvimento nao intencional de longa duragao. Tambem se pode dizer o mesmo do jogo de xadrez, das variantes inglesa ou alema, ou das formas iniciais do governo parlamentar. Muito se tern escrito sobre a origem individual daquilo que se chama «ideias». Tentar saber quern expressou uma ideia, em primeiro lugar, e um tema muito considerado como materia de investigagao. Um passatempo de caracter competitive, favorito de homens e de mulheres cultas, e a descoberta de que uma certa ideia tera visto a luz do dia mais cedo do que se acreditava anteriormente, de acordo com o consenso de especialistas. Todavia, muitos aspectos das sociedades humanas nao podem ser explicados segundo o modelo de explicagao da historia-das-ideias. Quern falou primeiro a lingua inglesa e uma pergunta sem sentido. Nem tao-pouco tern sentido perguntar: quern foi o primeiro ingles a conceber a ideia de governo parlamentar ou, neste caso, do criquete ou do futebol? Estes e muitos outros aspectos da sociedade humana nao podem explicar-se em termos de ideias de individuos considerados isoladamente, nem sequer em termos de uma acumulagao dessas ideias. Pelo contrario, exigem uma explicagao em termos de desenvolvimento social. Num outro local, utilizei um exemplo simples para indicar um dos aspectos cruciais da diferenga entre os dois tipos de explicagao16. Usei um tipo especial de modelo de jogo para mostrar que 6
Ver Elias, What is Sociology ?, p. 71 e seguintes.
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um movimento efectuado durante o jogo — digamos, o vigesimo movimento de um jogo de xadrez — nao pode mais explicar-se em termos dos pianos e das intengoes de um ou de outro jogador. A interligagao dos seus pianos e das suas acgoes tern como resultado um padrao nao intencional e talvez nao previsto por nenhum deles. Contudo, embora nao desejado, esse padrao e o respectivo processo do jogo podem, em retrospectiva, ser claramente reconhecidos como algo estruturado. E por essa razao, que sem irmos mais longe, a simples declaragao de que acgoes intencionais podem ter consequencias nao intencionais e um pouco mais do que um paliativo para a nossa ignorancia. Imaginem a interligagao de pianos e de acgoes, nao de dois, mas de dois mil ou de dois milhoes de jogadores interdependentes. O processo de comportamentos que se encontra neste caso nao acontece independentemente dos individuos cujos pianos e acgoes o mantem em movimento. Porem, ele tern uma estrutura e reclama uma explica^ao sui generis. Nao pode explicar-se em termos de «ideias» ou de «acgoes» de individuos isolados. Expressoes como «processo social» ou «desenvolvimento social» sao simplesmente simbolos conceptuais que reflectem o modo singular de existencia deste continuo entrelagar de pianos e de acgoes de seres humanos em grupos. Estes conceitos sao designados para ajudar na exploragao do unico tipo de estrutura que resulta desta interligagao de acgoes individuals e de experiencias, da interdependencia funcional de actores individuals nos seus varios agrupamentos. O divulgado termo «interacgao» nao presta justiga ao entretecer de experiencias nem tao-pouco as acgoes das pessoas. Ele esta demasiado associado ao modelo de explicagao tradicional que considera a sociedade como uma unidade puramente cumulativa de um certo numero de seres humanos encarados individualmente e isolados a partida. A observagao das condutas num jogo de futebol pode ser um contribute valioso como introdugao para se compreender tais termos enquanto interligagoes de pianos e de acgoes. Cada equipa pode ter planeado a sua estrategia de acordo com o conhecimento que possui de si propria e das competencias tecnicas e pontos fracos dos seus opositores. Todavia, no decurso do jogo, produzem-se, com frequencia, configurates que nao foram intencionais ou previstas por cada um dos lados. De facto, o modelo dinamico formado
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pelos jogadores e bola num jogo de futebol pode servir como explicate grafica nao so do conceito de «configuragao social» mas, tambem, do conceito de «processo social». O processo do jogo e exactamente este: uma configuragao dinamica de seres humanos cujas acgoes e experiencias se interligam continuamente, representando um processo social em miniatura. Um dos aspectos mais esclarecedores do modelo profundamente dinamico de um jogo de futebol e o facto de este ser constituido pelos jogadores de ambos os lados, em movimento. Se concentrarmos a atengao apenas nas actividades dos jogadores de uma equipa e nao observarmos as actividades de outra, nao podemos seguir o jogo. A observagao das acgoes e das experiencias dos elementos de uma equipa, que se procura observar de maneira isolada e independente das acgoes e das percepgoes da outra equipa, permanecerao incompreensiveis. No comportamento em jogo, as duas equipas constituem, entre si, uma unica configuragao. Exige-se a capacidade de distanciagao de si proprio em relagao ao jogo, de modo a reconhecer-se que as acgoes de cada lado se interligam constantemente com as dos seus adversarios e, por esse motivo, e que os dois polos opositores formam uma unica configuragao. O mesmo sucede com os Estados antagonistas. Os processos sociais sao, com frequencia, incontrolaveis porque sao alimentados pela hostilidade. Os partidarios de uma ou de outra facgao podem confundir, facilmente, esse facto. No caso de um jogo de futebol, possivelmente, nao e muito dificil reconhecer a interdependent dos adversarios, a interligagao das suas acgoes e, desse modo, o facto de os grupos rivais constituirem uma unica configura^ao. Talvez, no tempo presente, seja muito mais dificil reconhecer isto na sociedade em geral, onde igualmente, numerosos grupos sao totalmente interdependentes e na qual, tambem, as acgoes e sentimentos reciprocos nao podem ser reconhecidos se nao compreenderem os oponentes em, causa como uma unica configuragao. A este respeito, talvez o exemplo mais elucidativo seja a corrida aos armamentos entre duas superpotencias. E um exemplo de um processo autoperpetuado, o qual nao pode ser compreendido se alguem tentar perceber cada um dos lados de maneira isolada, isto e, independentemente do outro. Nesta situagao, o equivalente de um processo de jogo, a corrida em auto-escalada aos armamentos, tern, tambem, uma relativa autono-
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mia em relagao aos objectivos e intengoes dos grupos de dirigentes dos dois lados. Cada parte pode acreditar ser um agente livre, mas ambos sao, de facto, cativos do processo de jogo que, tambem neste caso, provavelmente, toma um curso que nao era intencional para nenhum dos lados. A dificuldade reside no envolvimento pessoal forte e profundo a favor de um sector ou de outro, facto que impede a percepgao quer da configuragao em mudanga constituida pelas duas partes como da sua dinamica relativamente autonoma que conduz os inimigos interdependentes, encerrados nas suas posigoes, para situagoes que nenhum deles tinha a intengao de seguir. Para perceber a configuragao em mudanga dos adversaries interligados num processo unitario, e indispensavel um grau de distanciamento bastante elevado. Isso pode perceber-se com maior facilidade na observagao de um jogo de futebol. Mesmo para os sociologos, no caso de adversaries politicos, continua a ser muito dificil atingir um distanciamento maior e compreender os dois lados como um processo. Neste contexto, outro exemplo de alguma relevancia e o problema da violencia no futebol. Nao existem diividas de que o jogo endureceu, mas os jogadores, de um modo geral, mantem a pratica da violencia dentro de certos limites. As penalizagoes devidas a clara falta de respeito pelas regras sao muito severas, a fim de impedirem os excesses cometidos atraves de infracgoes de autodominio e de agressoes dos jogadores. Mas mesmo o endurecimento do jogo nao pode ser explicado se os desafios de futebol profissional forem considerados isoladamente. As razoes tern de ser encontradas, quase por certo, no nfvel crescente das tensoes que existem na sociedade em geral. O mesmo se pode dizer dos actos de violencia cometidos, com bastante regularidade, por espectadores. Procurei demonstrar que o desporto e, em particular, os jogos de competigao realizados por jogadores profissionais perante um publico amador envolvem um controlado mas agradavel descontrolo de afectos e de emogoes. A excitagao contida forma uma parte integrante do prazer do desporto, porem, o que acontece se as condigoes na sociedade em geral nao dotam todos os sectores com formas de controlo suficientemente fortes de modo a conterem a excitagao, se as tensoes na sociedade em geral se tornarem tao intensas que anulem as formas de controlo individual contra a
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violencia e, de facto, introduzem um jacto de descivilizagao, se induzern sectores de uma populagao a sentirem a violencia como algo agradavel? Nao e, de modo algum, somente no contexto do desporto que questoes como estas assumem relevancia. As formas parlamentares de governo tambem funcionam razoavelmente bem nas sociedades onde um autocontrolo estavel e harmonioso constitui parte integrante dos habitos sociais da maioria da populagao. Se, em determinados sectores, a capacidade para a estabilidade do autodominio enfraquece, se a consciencia que inibe as pessoas de cometerem actos de violencia esta corroida, devido talvez a um ciclo em escalada de violencia, tambem o governo parlamentar pode ser corroido. Se a inimizade e o odio de diferentes sectores da popula^ao aumentam ate um certo nivel, a rota^ao pacifica dos governos, de acordo com regras estabelecidas, nao pode continuar a funcionar devidamente. Nem semelhante regime parlamentar pode funcionar facilmente numa sociedade com uma longa tradigao autocrat ica, onde o con junto da populagao se habituou a ser constrangido, em grande medida, por formas de controlo externas e nunca dispos de uma oportunidade para desenvolver o seu autoconstrangimento individual que e indispensavel para o funcionamento regular de um regime multipartidario, no qual o confronto entre partidos e, desse modo, as oportunidades de governo estao estritamente limitados a utilizagao de estrategias de nao violencia. Nesta linha, o inflamar periodico de estrategias violentas no caso do publico de futebol pode ser considerado, talvez, num contexto mais alargado, como um sintoma de algum defeito na sociedade em geral, mais do que apenas neste aspecto particular, a qual sente prazer em cometer actos de violencia — um defeito que se aninhou sob esta forma. A interrogagao sobre as razoes por que alguns grupos de espectadores cometem semelhantes actos foi largamente estudada por Eric Dunning e pelos seus colegas. Eles contribuiram muito para a compreensao deste problema. Alguns dos resultados das suas investigates podem encontrar-se neste volume. Talvez eu possa acrescentar uma ou outra coisa. As observagoes que pretendo fazer estao relacionadas com uma investigagao realizada por mim ha um certo tempo, em colaboragao com John Scotson. Chamava-se The
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Established and the Outsiders11. Trata-se de uma investigagao muito recente sobre as relagoes entre um grupo de familias instaladas desde ha muito tempo e os habitantes de bairros vizinhos, que revela as atitudes de desprezo da parte das familias dos ocupantes antigos em relagao aos outros habitantes dos bairros e uma forte tendencia para cerrar fileiras contra eles, para os excluir de qualquer tipo de contacto social com o grupo instalado. Esta situagao era tanto mais surpreendente na medida em que ambos os grupos de familias eram ingleses e ambos pertenciam a classe operaria. Com excepgao de um grupo relativamente pequeno de familias que vivia nos bairros que pertenciam aquilo que Eric Dunning e os seus colaboradores chamaram os «mais rudes» das classes de trabalhadores, nao existiam diferengas visiveis nos respectivos padroes de higiene ou moralidade. As suas vidas familiares eram menos ordenadas, as suas casas menos asseadas do que as das outras familias nos bairros. As suas criangas eram tambem mais «rudes» e controladas com menos facilidade do que todas as outras criangas da vizinhanga. Um olhar mais atento sobre este grupo de criangas e de adolescentes revelava as suas dificuldades. Na vizinhanga eram tratados por todos como marginais. Sabiam muito bem que os seus pais tambem eram tratados com desprezo por toda a vizinhanga. Provavelmente, nao deve ser facil para as criangas o desenvolvimento de auto-estima solida e alguns sentimentos de orgulho, se elas virem, dia apos dia, que os seus proprios pais sao considerados com pouco aprego por todas as outras pessoas. As proprias criangas eram recebidas com um olhar frio e repelidas para longe, sempre que apareciam. Deste modo, faziam questao de se mostrar, com especial prazer, nesses lugares onde eram menos desejadas. Preferiam os patios situados nas ruas onde viviam as familias antigas. Ai revelavam-se o mais ruidosamente que podiam e desfrutavam da atengao que recebiam quando os vizinhos tentavam livrar-se delas. Foram a um clube de juventude que ai existia e, depois de algumas tentativas desordenadas para se distrairem com brinquedos e equipamentos, comegaram, tanto quanto podiam, a incomodar e a destruir tudo o que era possivel. Neste caso, e bem evidente que uma explicagao em termos de 17
Norbert Elias e John L. Scotson, The Established and the Outsiders, Londres,
1965.
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«agressividade» destes jovens nao vai muito longe. Porque sao agressivos? A referenda ao desemprego nao nos levaria longe. O exemplo pode ajudar como indicador de que, em casos semelhantes, explicates em termos de uma causa isolada, ou mesmo de um feixe mais completo de causas isoladas, sao inadequados. Em casos como este, a explicagao necessita de incluir a situagao humana das pessoas envolvidas e a sua experiencia desse facto. Na verdade, se nao se fizer referenda a relagao instalados-marginais e ao impacte disso na estrutura da personalidade dos marginais, nao se pode compreender o comportamento agressivo e destrutivo dessas pessoas. Para se ser mais claro, uma explicagao em termos de «agressividade» pode parecer a descoberta de um remedio adequado mais do que uma explicagao em termos de relagao entre instalados-marginais. Mas isso acontece pelo facto de se atribuir a um sintoma a aparencia de uma causa. A maioria dos que se relacionam com a violencia no futebol parece ser proveniente do nivel mais baixo das classes trabalhadoras. Mas, para compreender a relagao, ha que proceder a tradu^ao do estatuto que possuem para a experiencia das suas vidas. A maior parte nao so provem de familias consideradas com pouco aprego na sua sociedade mas sao, tambem, encarados sem estima pela maioria dos que se situam entre os instalados. O desemprego, sem duvida, tern muito a ver com isso. Mas e a experiencia humana, caracteristica deste con junto social, que tern de ser sentida e evocada, se pretendemos encontrar a explicagao para a erupgao da violencia. Estes jovens, na sua vida normal, pertencem a um pequeno grupo de estatuto mais baixo. Na sua sociedade conservam uma posigao muito inferior. Sempre que contactam com o mundo instalado, sentem a sua inferioridade. O desprezo da sociedade e provavelmente agravado porque os mais novos sabem que Ihe pertencem. Sabem que existem outros marginais de origem exterior e de aspecto estranho. Esses nao interessam; podem ser tratados com desprezo. Mas eles proprios sentem que sao daqui; sabem que sao ingleses, ou escoceses, ou galeses. E, no entanto, sao tratados como se fossem elementos externos. Existe pouca excitagao na sua vida normal; talvez nao exista nenhum desporto nem entusiasmo para o praticarem. Podem estar sem trabalho, se e que alguma vez o tiveram. De um modo geral, a vida e particularmente monotona. Nada de especial acontece. Talvez uma rapariga, talvez um filme.
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Nao existem perspectivas; nao tern objectivos. Deste modo, o desafio de futebol entre equipas locais surge como o maior, o mais excitante dos acontecimentos numa vida que, de qualquer maneira, e, acima de tudo, vazia. Entao, pode mostrar-se a todo o mundo que se faz parte dele. E pode voltar-se as costas a sociedade que nao o parece notar. E nao parece preocupar-se. Ja no caminho para o jogo, no seu proprio pais ou no estrangeiro, nao se esta mais sozinho, nao se esta mais com um pequeno grupo de amigos diarios. Agora sao centenas, ate mesmo milhares, do seu genero. Esta situagao da forga a uma pessoa. Na vida quotidiana de uma multidao, cada um passa a ter poder. Na estagao do comboio, no caminho para o jogo e, ainda mais, no campo de futebol, pode chamar-se a atengao sobre si proprio. Qualquer um pode atrever-se a fazer coisas que nem sequer se atreveria a fazer se estivesse so. E, deste modo, sem saber exactamente o que esta a fazer, mas gozando com a excitagao desencadeada, volta as costas ao sistema. Cada um pode vingar-se de uma vida vazia e sem esperanga. A vinganga e um motivo forte. Rasgam-se os compartimentos dos comboios; quebram-se mesas e garrafas nos bares. E, depois, no campo de futebol encontram-se milhares e milhares, muitos mais do que a policia, os representantes da ordem estabelecida. Ou ainda jmelhor, sao estrangeiros. E possivel fazer troga deles. Fazer parte de uma multidao transmite coragem. Faz com que aqueles que nao tern poder paregam poderosos. E assim acontece, pessoas que normalmente levam uma vida humilde e decerto frustrante, voltam-lhe as costas por meio do ridiculo. Perdem o autodommio que, em geral, limita a excitagao criada pelo confronto entre duas equipas de futebol. Procuram a excitagao de uma luta real desenvolvida sob condigoes tais que permite o envolvimento sem que corram grandes riscos. Aqueles que habitualmente sao marginais, tornam-se, por um breve e ilusorio momento, os chefes; os oprimidos destacam-se. De forma resumida, creio que a violencia no futebol, qualquer que possa ser a sua explicagao, deve ser tambem considerada como uma sindroma, como uma forma de comportamento e de sentimento caracteristica de jovens marginais quando podem reunir-se e formar uma grande massa. Le Bon, no seu estudo bem conhecido, The Crowd*, tomou como ponto de partida os tumultos dos Franceses, principalmente, *Psychologie des Foules na versao francesa original. (N. da T.)
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segundo parece, os da populagao parisiense18. Nesse tempo, os disturbios provocados pela fome dos mais pobres continuavam a ocorrer com grande frequencia. Eles ofendiam e amedrontavam cidadaos respeitaveis e, embora a figura de instalados e marginals estivesse fora do seu horizonte, permitiram a Le Bon observar alguns aspectos das desordens que ainda se verificam na violencia dos espectadores de futebol. Talvez seja interessante reflectir sobre o facto de as desordens internas terem desaparecido completamente nos paises mais desenvolvidos e organizados, enquanto os disturbios do futebol persistem. Algumas das injustices que se encontravam na origem do primeiro tipo de violencia, tais como o perigo de fome, podem ter desaparecido em grande medida destas sociedades de abundancia. Outras injustices, nao menos prementes, encontram agora a sua expressao nos disturbios. A falta de pao, que foi mais ou menos remediada, e agora seguida pela ausencia de sentido. A partir das areas cinzentas de marginais que se formam a volta da maior parte das grandes cidades mais desenvolvidas, as pessoas, em especial os jovens, olham atraves das janelas para o mundo estabelecido. Podem ver que e possivel uma vida com mais sentido e mais realizada do que a sua propria vida. Seja qual for o seu sentido intrinseco, isso possui um significado para eles e sabem, ou talvez apenas possam sentir, que estao privados disso para toda a vida. E embora por vezes acreditem que Ihes foi feita uma grande injustiga, nem sempre e claro saber por quern foi cometida. Por esse motivo, a vinganga e, com frequencia, o seu grito de guerra. Um dia a gota de agua transborda e eles procuram vingar-se sobre alguem. Estas observances sobre a violencia no futebol chamam a atengao, uma vez mais, para uma das principals questoes deste volume, a complementaridade do desporto como ocupagao de lazer dos praticantes ou dos espectadores e as condigoes da vida das pessoas fora do lazer. A complementaridade que se observa entre as violagoes do controlo da violencia em acontecimentos desportivos e a vulgar existencia social dos jovens marginais das classes trabalhadoras e, a este respeito, nao menos reveladora da complementaridade que existe entre a excitagao agradavel controlada, proporcionada 18
Gustave le Bon, The Crvwdy Nova lorque, I960 (publicado pela primeira ve2 em 1895).
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pelas lutas regulamentadas, com firmeza, de um desporto de lazer, e o bem moderado controlo de emogoes que se torna uma segunda natureza, uma caracterfstica quase inevitavel do habito social dos membros das sociedades mais complexas, em todas as actividades fora do lazer. Quanto a este aspecto, a genese do desporto na Inglaterra do seculo XVIII e altamente reveladora, enquanto parte de um impulso muito pronunciado de pacificagao. A restrigao da violencia na arena polftica que, no caso das classes inglesas mais altas, muito mais do que na dos seus pares Franceses e alemaes, teve o caracter de uma autopacificagao, uma restrigao imposta nao por um principe e os seus ministros mas pelos membros de uma oligarquia autogovernada sobre si propria e sobre os outros, teve a sua contrapartida na maior sensibilidade a respeito da violencia, mesmo nos divertimentos destas classes. Existe uma boa razao para pensar que estes divertimentos regulamentados com maior rigor, cada vez mais conhecidos no tempo por desportos, comegaram a adquirir uma importancia crescente devido a sua complementaridade face a autopacificagao dessas classes. O lazer desportivo proporcionava-Ihes, e, tanto quanto se pode ver, continua a proporcionar hoje, a solugao para o problema humano de particular significado nas sociedades, no quadro de um nfvel elevado de pacificagao, e, por isso, com uma sensibilidade comparativa elevada dos seus membros contra a violencia e, de facto, contra todos os generos de ferimentos ffsicos inflingidos pelos seres humanos uns aos outros. O problema resolvido pelos divertimentos sobre a forma de desportos consistia em encontrar a maneira de experimentar a plena alegria de um combate sem magoar seres humanos, is to e, com um minimo de ferimentos ffsicos. Pode bem perguntar-se por que motivo e que a luta, que esta no fulcro de todo o desporto, proporciona uma excitagao que e sentida como agradavel. Uma tensao que causa prazer, uma agradavel excitagao que culmina num clfmax deleitante e a libertagao de tensao, e bem conhecida como o trago caracterfstico do acto sexual. Podemos ser tentados a considerar a agradavel tensao e a excitagao de uma luta que culmina em vitoria como um derivativo das forgas naturais em acgao. Isto nao e improvavel, mas talvez nao seja suficiente. Estou mais inclinado a considerar a agradavel excitagao desencadeada num confronto como a satisfagao de uma necessidade basica, por certo induzida socialmente de uma necessidade humana em si
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mesma, particularmente se o confronto exige esforgos corporals, como se verifica no caso do desporto. For outras palavras, o que procure dizer e que a sociedade que nao oferece aos seus membros, e, em especial, aos mais jovens, oportunidades suficientes para a excitagao agradavel de uma luta que nao exige, mas pode envolver, forga e tecnica corporal pode, indevidamente, arriscar-se a entorpecer a vida dos seus membros; pode nao proporcionar correct!vos complementares suficientes para as tensoes nao excitantes produzidas pelas rotinas regulares da vida social. Isto nao e, apresso-me a acrescentar, uma afirmagao filosofica. A importancia dada a luta e a agradavel excitagao que ela origina, que proporciona um complemento imprescindivel as restrigoes da vida, igualmente indispensaveis, nao foi uma opgao pessoal. Se eu fosse livre de escolher o meu mundo, provavelmente nao teria escolhido uma humanidade onde as lutas entre seres humanos sao consideradas excitantes e agradaveis. E nao teria por certo escolhido apresenta-lo atraves de uma teoria. Teria talvez optado por dizer: evitem a luta. Vamos viver em paz. Mas acontece que, enquanto cientista, nao posso apresentar o mundo tal como eu gostaria que ele fosse. Nao sou livre de o apresentar de outra maneira para alem daquela que descobri. E descobri que os seres humanos, tal como eu os posso observar, para alem da excitagao agradavel do sexo tambem necessitam de outras formas de excitamento deleitante, sendo a excitagao da luta uma delas, e que, na nossa sociedade, quando se atingiu um nivel razoavelmente elevado de pacificagao, esse problema foi ate certo ponto resolvido pela provisao de combates mimeticos, confrontos realizados por meio do jogo num context o que pode originar uma excitagao agradavel, desencadeada pelo combate, com o minimo de ferimentos nos seres humanos. Tal como a quadratura do cfrculo, e uma tarefa quase impossivel. Apesar disso, foi resolvida sem planeamento, como se fosse por acidente. Nas ciencias humanas do nosso tempo, toma-se, com frequencia, por certeza que os impulses humanos e outros impulsos espontaneos constituem uma parte da natureza humana, mas que o seu controlo e uma propriedade socialmente adquirida e, como tal, nao faz parte da natureza humana. De facto, o constrangimento dos impulsos e frequentemente considerado, nos nossos dias, como oposto a natureza humana, isto e, «antinatural.» Contudo, ne-
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nhum controlo podia ser, decerto, adquirido por meio de aprendizagem e integrado na estrutura humana como uma das suas forrnas permanentes, se a const ituigao natural dos seres humanos nao possuisse, como parte integral, uma disposigao biologica de controlo dos impulsos e se os impulsos humanos e outros impulses elementares nao possuissem, pela sua propria natureza, um potencial para serem contidos, desviados e transformados de variadas maneiras. De facto, a disposigao natural dos seres humanos no sentido do controlo dos impulsos tern de considerar-se entre as suas propriedades especificas, uma das quais possui uma importancia muito grande na sobrevivencia. Dado que Ihes faltam formas de controlo instintivas ou inatas, a vida em grupos — a vida social tal como nos a conhecemos — seria impossivel entre seres humanos se estes nao possuissem uma disposigao natural para aprenderem o controlo dos impulsos e, deste modo, para se civilizarem a si proprios e entre si. Nem, como indiquei, um ser humano poderia sobreviver individualmente sem uma disposigao natural para controlar, retardar, transformar, em resumo, para padronizar impulsos espontaneos segundo uma grande variedade de maneiras, por meio de impulsos opostos apreendidos. Ninguem poderia adquirir as caracteristicas essenciais de um ser humano se alguem se mantivesse, como um recem-nascido, totalmente a merce de impulsos. Neste ambito, existe, perante nos, um trabalho de pesquisa a realizar. Porque a mobilizagao e a padronizagao do controlo dos impulsos tern sido mal compreendida. O conhecimento destes processos continua no seu estado inicial. No que se refere a este assunto, basta colocar o problema com clareza. Uma parte integral da constituigao natural dos seres humanos traduz-se na capacidade de aprender formas de controlo social. Nos primeiros anos de vida de uma pessoa, a constituigao natural dos seres humanos remete, de modo evidente, a aprendizagem do controlo de impulsos para um piano bastante firme. Alem disso, a constituigao natural dos seres humanos equipou-os com instituigoes especiais de libertagao, e estas disposigoes, que, nao sendo aprendidas, sao unicamente activadas, aqui e agora, por situagoes sociais especificas ou por processos de aprendizagem social, proporcionam alivio do stress provocados pelas tensoes que podem surgir se as operagoes de controlo lutarem, temporaria ou permanentemente, contra os impulsos, e os impulsos contra os
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controlos. Neste contexto, a descoberta de instituigoes biologicas e de disposigoes planeadas para proporcionarem aiivio e, por vezes, uma sensagao de libertagao das pressoes derivadas do acentuar das tensoes possui um significado particular. A excitagao agradavel motivada pelo combate simulado de um confronto desportivo e um exemplo elucidative de uma instituigao que utiliza uma forma natural especifica para contra-atacar, e talvez resoiver, as tensoes provocadas, as quais se desencadeiam em ligagao com o controlo dos impulses. Ha uma piada muito conhecida sobre um estrangeiro que, ao ouvir falar de um jogo de futebol, disse: «Porque e que nao dao uma bola de couro a cada lado e acabam com isso?» Seja qual for o combate mimetico, um jogo de futebol ou de basebol, um torneio de tenis, um desafio de hoquei no gelo, uma corrida de bicicleta, um combate de boxe, uma corrida de esqui ou qualquer outra variedade de confrontos desportivos que abundam no nosso mundo, e apesar de todos os excessos e distorgoes, pode observar-se, muitas vezes, o efeito de alivio, a libertagao das tensoes provenientes do stress, que e favorecida, em primeiro lugar, pelo espectaculo da simulagao do combate e, depois, pelo seu climax de libertagao das tensoes, com a vitoria de um ou de outro lado. Neste caso, a libertagao das tensoes por intermedio da vitoria nao foi alcangada por actos de violencia, infligindo sofrimentos fisicos ou causando a morte de outros seres humanos. Creio que a satisfagao de uma necessidade humana atraves do prazer, e, em particular, por intermedio da agradavel excitagao que equilibra o controlo regular dos sentimentos na vida exterior ao lazer, e uma das fungoes basicas que a sociedade humana possui para a sua satisfagao. O desporto nao e, decerto, a unica forma pela qual a disposigao biologica de libertagao das tensoes provenientes do excesso de stress pode ser socialmente activada e padronizada. Uma destas disposigoes humanas naturais mais elementares e universais e a propensao para o riso. Como o sorriso, o riso e basicamente, uma forma pre-verbal de comunicagao que nao e aprendida e, desse modo, presume-se que, em termos evolutivos, e bastante antigo. E flexivel, is to e, modifica-se atraves da experiencia, embora nao seja, de modo algum, na mesma medida da instituigao biologica que forma a base natural da comunicagao verbal. O riso, como uma instituigao biologica, ainda que seja, sem duvida, derivado de antecedentes pre-humanos, e caracteristico da singularidade do ser humano.
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Revela, de modo grafico, o fornecimento, por intermedio de instituigoes biologicas, de formas e de processes de contrabalangar as tensoes e cargas do controlo dos impulses. Pode ser que problemas como os que aqui foram abordados nao tenham encontrado a atengao que merecem porque a maioria dos grupos de especialistas neste campo, biologos e psicologos, tern tendencia para considerar, principalmente, como natural nos seres humanos, as caracteristicas constitucionais que estes partilham com outros animals19. Em consequencia disso, estao mais ocupados com um conceito de evolugao entendida como um processo linear do que com caracteristicas que, embora sejam o resultado genetico de um desenvolvimento continuo, possuem o caracter de uma ruptura, de novos aspectos para os quais nao se pode encontrar equivalente nos estadios anteriores do processo evolutivo. Tanto as disposigoes biologicas para o controlo dos impulses, que tern de ser activadas por meio de aprendizagem, como as disposigoes biologicas tendo em vista a liberta^ao das tensoes e do stress pertencem a esta categoria. Ambas sao caracteristicas da factura resultante da evolugao do nivel humano. A forma segundo a qual a procura de excitagoes agradaveis, contrabalangando as tensoes e as dificuldades da vida exterior ao lazer, encontra expressao em institutes sociais e costumes pode variar muito de sociedade para sociedade. Os combates de vida ou de morte entre gladiadores, ou entre animais selvagens e seres humanos, representaram na sociedade romana um papel comparavel ao das corridas de cavalos, desafios de futebol ou torneios de tenis, nas sociedades actuals. Numa perspectiva de tempo breve, pode acontecer que a atengao se fixe apenas no facto de, em alguns desportos, o modelo de restrigao quanto a violencia se ter reduzido. Faz-nos esquecer que, considerado numa perspectiva de longa duragao, o modelo de restrigao nos divertimentos e hoje muito elevado. O mesmo se passa quanto a transformagao em termos de sublimagao. Ou seja, do nivel de competencia tecnica necessario a um executante professional numa das inumeras ocupagoes de tempo de lazer. E possivel que o aparecimento do profissionalismo no desporto 19 Estou consciente do facto de que existem ai excepgoes, entre as quais o ensaio de Julian Huxley The Uniqueness of Man e um exemplo que nao se esquece.
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tenha desviado a atengao do desporto de lazer. As actividades desportivas realizadas por nao profissionais mostram, inevitavelmente, um nivel de tecnica inferior ao que e realizado por profissionais nessas modalidades. Por outro lado, o desporto realizado com fins profissionais pode ser desprovido de alegria para aqueles que o praticam; pode estar sujeito ao mesmo tipo de constrangimentos que conhecem outras actividades profissionais. E, assim, pode resultar um nivel de perfeigao que dificilmente podera ser alcangado por pessoas que se dedicam as actividades desportivas no seu tempo de lazer e apenas por prazer. E, no entanto, o desporto-lazer, quer a nivel da pratica quer do espectaculo, esta muito divulgado nas sociedades mais abastadas do nosso tempo. Comparado com o desporto profissional e de alto nivel, pode chamar a atengao como instituigao social. Contudo, como podera suceder com outras ocupagoes de lazer, a sua importancia pode bem aumentar se o tempo de trabalho continuar a decrescer. Deste modo, procurarei esclarecer, de forma breve, quais as suas fungoes sociais e individuals. Um jogo de tenis, num jardim suburbano, uma longa corrida de esqui pelo Parsenne a baixo ou um jogo de criquete no relvado da vila, num dia de sol de Verao — qualquer destas praticas desportivas pode ser uma experiencia plena de prazer. Pode ainda ser mais agradavel se a nossa equipa conseguir a vitoria. E, assim, se foi um bom jogo, em si proprio bastante agradavel, mesmo em caso de derrota sera um grande prazer.
CAP1TULO I A bmca dia excita^m no lazer Norbert Elias e Eric
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A excitagao que as pessoas procuram no seu lazer e, em certos aspectos, singular1. Trata-se, em geral, de uma excitagao agradavel. Embora possua algumas caracteristicas basicas em comum com a excitagao que as pessoas experimentam em situagoes criticas serias, revela qualidades especificas. Em comparagao com as sociedades menos desenvolvidas, verifica-se que nas sociedades industriais mais avangadas sao menos frequentes as situates criticas serias que originam comportamentos de excitagao nos individuos. Outro aspecto do mesmo desenvolvimento e a progressiva capacidade das pessoas para agirem dessa maneira, em publiox Nesta linha, segundo essas contradigoes, aumentou o controlo social e o autodominio da excitagao exagerada. Nas sociedades industriais mais avan^adas, ainda que esta situagao nao se tenha verificado no quadro das suas relagoes entre si, algumas das circunstancias mais elementares de crise da humanidade, como a fome, as inundagoes, as epidemias e a violencia efectuada por pessoas de condigao social mais elevada ou por estranhos, foram submetidas progressivamente a um rigoroso controlo, mais acentuado do que havia sucedido no passado. E o mesmo aconteceu com as paixoes. Explosoes incontroladas ou incontrolaveis de forte excitagao colectiva tornaram-se menos frequentes. Os individuos que e a versao revista de uma comunicac,ao («The Quest for Excitement in Unexciting Societies»), que foi proferida, em 1967, na conferencia anual da British Sociological Association, em Londres, e publicada pela primeira vez em Sport and Leisure, n° 2, 1969.
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agem de forma bastante excitada, sujeitam-se a serem conduzidos a um hospital ou a prisao. A organizagao social do controlo da excitagao individual, no sentido de conter excitagoes apaixonadas em piiblico, e ate em privado, tornou-se mais forte e mais efectiva. A comparagao e significativa. Nas sociedades contemporaneas altamente desenvolvidas, os padroes de controlo da excita^ao, tal como a excitagao de uma maneira geral, podem parecer desequilibrados e reduzidos se considerados em si mesmos. A diferenga so se revela com toda a nitidez quando se utiliza uma medida de comparagao que os confronta com os padroes de controlo das sociedades num estadio de desenvolvimento anterior. Estudos comparativos sistematicos mostram que nao so aumentou o controlo publico e privado de acgoes fortemente emotivas mas tambem que as situagoes de crise publicas e privadas, com a progressiva diferenciagao das sociedades, se tornaram mais diferenciadas do que era habitual suceder. As crises publicas tornaram-se mais impessoais. Nesta sociedade de grande dimensao, muitas destas situagoes — na sua maioria, de facto, excluidas das guerras — e a transformagao, comparativamente rara, das tensoes e conflitos internos e dos grupos em violencia aberta nao estimulam qualquer excitagao espontanea, embora a organiza^ao cuidadosa e a propaganda possam simula-lo. Nas sociedades industrials avangadas, as mas colheitas locais deixaram de ser uma catastrofe suscitando o desespero da fome e da morte. Nem as colheitas abundantes permitem grandes jubilos. Os seus equivalentes nestas sociedades sao as flutuagoes economicas e as crises que, nas sociedades cada vez mais ricas do nosso tempo, se encontram menos abertas ao despoletar de excitagoes fortes e espontaneas. As flutuagoes deste tipo, em comparagao com as que ocorrem nas sociedades predominantemente agrarias, sao mais impessoais. As oscilagoes de sentimento, as tristezas e as alegrias relacionadas com elas sao diferentes. Nestas sociedades industrials avangadas, as pessoas podem nao ser indiferentes face ao desemprego, mas sao menos sensfveis a fome e as privagoes. Os altos e baixos deste tipo tern o caracter de vagas comparativamente longas, lentas e baixas, de mudangas que se verificam a partir de uma atmosfera relativamente equilibrada de bem-estar e de prosperidade para uma atmosfera tambem moderada de abatimento e depressao, quando comparado com as vagas curtas, rapidas e altas de regozijo e de depressao, com transigoes
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relativamente rapidas e siibitas de um extreme ao outro, que podem observar-se nas sociedades menos diferenciadas e de tonica rural, por exemplo, nos casos de superabundancia e de femes. Mesmo nas situagoes de grandes crises da vida privada dos individuos, quando ocorrem erupgoes repentinas de sentimentos fortes, estas escondem-se, de um modo geral, na intimidade do circulo mais mtimo. Rituals socials e cerimonias de casamentos e funerais, por ocasiao do nascimento das criangas ou da entrada na maioridade e situates semelhantes, dificilmente proporcionam ja assinalavel excitagao publica como acontecia nas sociedades mais simples. Enorme medo e profimda alegria, acentuado odio e extremo amor, tern de apresentar-se sob outra aparencia. So as criangas saltam e dangam com excitagao, apenas estas nao sao censuradas de imediato como descontroladas ou anormais, se choram e solugam publicamente, em lagrimas desencadeadas pelos seus sofrimentos siibitos, se entram em panico num medo selvagem, ou se cerram os punhos com firmeza e batem ou mordem o odiado inimigo, num total abandono quando se excitam. Ver homens e mulheres adultos agitarem-se em lagrimas e abandonarem-se as suas amargas tristezas em publico, ou entrarem em panico dominados por um medo selvagem, ou a baterem-se uns aos outros de forma selvagem debaixo do impacte da sua excitagao violenta, deixou de ser encarado como normal. Habitualmente e motivo de embarago para quern assiste e, com frequencia, motivo de vergonha ou arrependimento para aqueles que se permitiram ser dominados pela excitagao. Para serem considerados normais, espera-se que os adultos vivendo nas nossas sociedades controlem, a tempo, a sua excitagao. Em geral, aprenderam a nao se expor demasiado. Com grande frequencia ja nao sao capazes de revelar mesmo nada de si proprios. O controlo que exercem sobre si tornou-se, de certo modo, automatico. O controlo — em parte — ja nao se encontra sob o seu dommio. Tornou-se um aspecto da estrutura profunda da sua personalidade.
Nas sociedades industrials avangadas, as actividades de lazer constituem um enclave para o desencadear, aprovado no quadro
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social, do comportamento moderadamente excitado em publico. O caracter e as fungoes especiflcas que o lazer tern nestas sociedades nao pode compreender-se se nao se esta ciente que, em geral, o nivel publico e mesmo privado do controlo emocional se tornou elevado em comparagao com o das sociedades menos diferenciadas. Tanto quanto e possivel afirmar-se, pode encontrar-se certo tipo de restrigoes sociais e individuais em todas as sociedades humanas, mas as restrigoes relativamente fortes e dominadas de forma equilibrada, caracterfstica dos individuos nas sociedades mais diferenciadas e complexas, como foi apresentado noutro lugar2, emergiram no decurso de uma transformagao das estruturas sociais e individuais. E sintomatico de um processo de civilizagao bastante longo que permane^am, por sua vez, nunia interdependencia circular com o avango da eficacia da organizagao especializada de controlo das sociedades complexas, da organizagao do Estado. Tanto quanto se ve, as actividades de lazer enquanto area social de libertagao das restrigoes do nao lazer podem encontrar-se nas sociedades em todos os estadios de desenvolvimento. Os festivais a Dionisio dos antigos gregos — a excitagao religiosa ou «entusiasmo», como Aristoteles Ihe chamou — e os carnavais das comunidades medievais constituem exemplos. Nos primeiros tempos, numerosos tipos de actividades religiosas possuiam fungoes analogas as que as actividades de lazer tern hoje — varias actividades de lazer do nosso tempo, em particular as de tipo «mimetico», possuem fungoes semelhantes aquelas que alguns tipos de actividades religiosas tinham nesses tempos. Mas enquanto parecem existir pressoes e restrigoes, assim como areas especiais de lazer para alivio e libertagao das mesmas, em todas as sociedades conhecidas, o seu caracter e o equilibrio global existente entre elas modifica-se ao longo de um processo de civilizagao. No decurso de tal processo, generalizam-se as restri^oes sobre o comportamento dos individuos. Tornam-se mais equilibradas, oscilam menos entre os extremes e tornam-se interiorizadas, constituindo uma armadura pessoal, mais ou menos automatica, de autocontrolo. Contudo, a analise profunda do processo de civilizagao na longa duragao indica que os desenvol-
2
Ver Norbert Elias, The Civilizing Process, Oxford, 1978; e State Formation and Civilization, Oxford, 1982.
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vimentos sociais registados nessa direcgao produzem movimentos opostos no sentido de um equilfbrio da libertagao das restri^oes sociais e individuals, Podem observar-se movimentos opostos de equilfbrio deste tipo em certas areas da vida contemporanea, entre elas, no campo do lazer. Novos desenvolvimentos na musica e no teatro e novas formas de cantar e de dangar sao exemplos disso. Talvez a participa^ao mais activa dos espectadores nos acontecimentos desportivos, que se observa mesmo em paises que tradicionalmente sao bastante reservados, como a Inglaterra, possa constituir outro exemplo. Representam uma interrupgao moderada no manto habitual das restrigoes e, em particular, no caso dos jovens, urn alargamento do alcance e da profiindidade da excitagao manifesta. Nas sociedades contemporaneas deste tipo, como se pode observar, ja nao e a organizagao das actividades religiosas e crengas que proporciona a esfera de acgao para uma equilibrada relaxagao das restrigoes. Mas, seja qual for o seu caracter, a excita^ao e a emogao compensadora, reclamadas em algumas actividades de lazer, nestas sociedades — em ligagao com mudangas especificas na sua estrutura e, em especial, na distribuigao de poder entre diferentes grupos de idade — sao limitadas igualmente por restrigoes civilizadoras. Simultaneamente, a maior tolerancia publica, nos tempos recentes, quanto a exteriorizagao de manifesta excitagao apenas demonstra, de uma forma mais pronunciada e directa, a fungao geral das actividades de lazer, em particular as da categoria especifica de que falamos. Dado que nao existe um termo sociologico precise para este tipo, chamamos-lhe «mimetico». A maior parte das actividades de lazer, embora nao todas, pertence a esta categoria, do desporto a musica, da caga e pesca a corrida e pintura, dos jogos de azar ao xadrez, da nata^ao a danga rock e muitas outras. Aqui, como noutras situagoes, a busca de excitagao, o «entusiasmo» de Aristoteles, e, nas nossas actividades de lazer complementar relativamente ao controlo e restrigao da emotividade manifesta na nossa vida ordinaria. Uma nao se pode compreender sem a outra.
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3 A polarizagao que come^a agora a emergir aqui difere de maneira consideravel da orientagao dominante, no momento actual, quanto as questoes do lazer — ou seja, a que se situa na discussao dos problemas entre o lazer e o trabalho. Hoje em dia, a nogao de que as actividades de lazer podem ser explicadas como complementares do trabalho parece ser, com frequencia, evidente. Isso raramente e considerado problematico; e habitual ser tratado como um ponto de partida obvio para a investigate. O divulgado estereotipo tradicional, expresso em frases que rapidamente chegam aos labios, tais como «trabalho e lazer», foi elevado, deste modo, sem exame critico, ao estatuto de axioma cientifico. Alem disso, a familiaridade tende a obscurecer a imprecisao dos dois conceitos de «lazer» e «trabalho». Da forma como o problema se situa no presente, as caracterfsticas que os distinguem um do outro estao longe de ser nitidas. Ambos os conceitos foram distorcidos por uma heranga de juizos de valor. O trabalho, de acordo com a tradi^ao, classifica-se a um nivel superior, como um dever moral e um fim em si mesmo; o lazer classifica-se a um nivel inferior, como uma forma de preguiga e indulgencia. Este, alias, e identificado com frequencia com o prazer, ao qual tambem se atribui uma avaliagao negativa na escala de valores nominal das sociedades industrials. Apesar da recente preocupagao com os problemas da satisfagao no trabalho, de uma maneira geral, como uma heranga de Adao, este e considerado, por inerencia, a antitese do prazer. O raciocfnio de Kant, segundo o qual o trabalho a partir do momento em que e fonte de deleite deixa de ser moral, conserva um vago eco na polarizagao contemporanea do «trabalho» e «lazer», sendo o ultimo dominado pelo prazer e o primeiro totalmente desprovido do mesmo. Contudo, nas socieda4es-Estado profimdamente organizadas do nosso tempo, onde a pressao de formas de controlo externo e interno de um tipo relativamente permanente e extensivel a tudo, a satisfagao do lazer — ou a falta desta — pode ser da maior importancia para o bem-estar das pessoas enquanto individuos ou sociedades, mais do que nos permitiria crer o valor relativamente inferior que ate agora se associa ao lazer. Como se pode ver, a continuidade da tendencia para considerar as actividades de lazer como um mero acessorio do trabalho deve-se mais a sobrevivencia de um esquema de valores
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tradicional do que a qualquer outro exame sistematico dos dois conceitos e das estruturas socials e fungoes das actividades humanas a que se referem. Se comegarmos a examina-los, e facil reconhecer que ate mesmo nas discussoes sociologicas os conceitos de «trabalho» e de «lazer» sao, com frequencia, usados de uma forma vaga. As utilizagoes actuais causam dificuldades quando se trata de decidir se os deveres de uma dona de casa, ou, do mesmo modo, os trabalhos de jardinagem de um professor, devem ser classificados como trabalho, ou a pratica de um jogador de futebol profissidnal ser considerada como lazer. Se o trabalho teorico e empirico na sociologia do lazer nao esta tab avangado como seria de desejar, isso deve-se, em grande medida, a heranga destes valores e as ambiguidades conceptuais que daf resultam.
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Na polarizagao convencional do trabalho e lazer, o termo «trabalho» refere-se habitualmente a uma unica forma especifica de trabalho — o tipo de trabalho que as pessoas executam como modo de ganhar a vida. Nas sociedades mais diferenciadas e urbanizadas, este e um tempo rigidamente regulado e, na maior parte dos casos, um tipo de trabalho altamente especializado. Em paralelo, no seu tempo livre, os membros destas sociedades tern em geral de fazer uma boa parte de trabalho sem remunerate. So uma porgao do seu tempo livre pode ser votada ao lazer, no sentido de uma ocupagao escolhida livremente e nao remunerada — escolhida, antes de tudo, porque e agradavel para si mesmo. Nas sociedades como as nossas, cerca de metade do tempo livre dos individuos e, em geral, dedicado ao trabalho. Um dos primeiros passos para o estudo mais adequado do lazer nos factos observaveis traduz-se na exigencia de uma distingao mais penetrante e na definigao mais nitida das relagoes entre o tempo livre e lazer. Tempo livre, de acordo com os actuais usos lingufsticos, e todo o tempo liberto das ocupagoes de trabalho. Nas sociedades como as nossas, so parte dele pode ser votado as actividides de lazer. Podem distinguir-se cinco esferas diferentes no tempo livre das pessoas, as quais se confundem e se sobrepoem de varias maneiras, mas que, todavia, representam cate-
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gorias diferentes de actividades, que, ate certo ponto, levantam problemas diferentes.
Actividades de tempo livre: dassificagdo prdiminar* 1) Trabalho privado e administra$ao familiar — A esta categoria perterice a maioria das actividades da familia, incluindo a propria provisao da casa. Todas as ocupagoes maiores ou menores, as variadas transacgoes financeiras pessoais, os pianos para o future pertencem a esta categoria. O mesmo se verifica no que diz respeito a orientagao dos proprios filhos, toda a estrategia familiar, incluindo as controversias e as inumeras tarefas relacionadas com essas questoes. Todas estas actividades exigem aptidoes especiais que tern de ser aprendidas. Esta esfera, em conjunto, tende a ocupar mais tempo a medida que o padrao de vida se eleva. Com excepgao de alguns problemas, tais como as despesas com as actividades familiares, a area do trabalho privado e da organizagao familiar continua bastante inexplorada enquanto campo de investigagao. Muitas das actividades relacionadas com ele constituem trabalho duro. Muito deste trabalho tern de ser realizado, quer se goste ou nao. Depois de algum tempo, em maior ou menor dimensao, tende a fazer parte da rotina de cada familia. Dificilmente poderemos chamar-lhe lazer. 2) Repouso — A esta categoria de actividades pertence o estar sentado e o estar a fumar ou a tricotar, os devaneios, as futilidades sobre a casa, o nao fazer nada em particular e, acima de tudo, o dormir. Pode considerar-se este grupo de actividades no ambito do lazer, mas sao nitidamente distintas de um grande numero de outras actividades de lazer mencionadas mais adiante como representativas da classe mimetica, tais como o desporto e o teatro. 3) Provimento das necessidades biologicas — Para nao deixar lugar a mal-entendidos: todas as necessidades biologicas as quais ha que atender, no nosso tempo livre e noutras circunstancias, 3
Este e o esbo^o preliminar do qual emergiu, depois de uma serie de exames, a tipologia mais precisa e compreensiva do «espectfo do tempo livre». Ver Capftulo II deste volume.
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estao socialmente padronizados — comer e beber, bem como defecar, fazer amor, tal como dormir. Estas necessidades reaparecem: procura-se satisfaze-las, Surgem: exigem satisfa^ao. A satisfagao e agradavel. Estao apaziguadas e eliminadas, para despertarem de novo, mais tarde, quando o ritmo se repete. Comer, beber e fazer amor irradiam para outras categorias, directa ou indirectamente, em particular para a categoria da sociabilidade. Todas podem estar — e habitualmente assim e — ate certo ponto, submetidas a rotina, mas podem ser, e poderiam ser, de facto, realizadas sem rotina, de tempos a tempos, de uma forma mais deliberada do que com frequencia e o caso. Ao mesmo tempo, todas elas tern em comum com a categoria mimetica o seguinte: podem proporcionar um acentuado prazer, desde que se seja capaz de obter satisfagao, de uma maneira nao rotineira, como comer fora de casa, a fim de introduzir-se a mudanga. 4) Sociabilidade — Tambem nao e trabalho, embora possa envolver esforgos consideraveis. Evolui desde uma sociabilidade muito formal ate uma sociabilidade bastante informal, com numerosas escalas intermedias. A esta categoria pertencem actividades que se relacionam com o trabalho, tais como visitar colegas ou superiores hierarquicos, sair numa excursao da flrma, assim como outras que nao estao relacionadas com o trabalho, tais como ir a um bar, a um clube, a um restaurante ou a uma festa, falar de futilidades com os vizinhos, estar com outras pessoas sem fazer nada de mais, como um fim em si mesmo. As categorias de sociabilidade como uma forma de passar o seu tempo livre, tanto quanto se pode ver, diferem grandemente nos diferentes estratos da sociedade. Tal como sucede em 1) e 2), esta categoria de actividades de tempo livre continua largamente inexplorada. 5) A categoria das actividades mimeticas ou jogo4 — Numerosas inves4 O termo play pode ser aplicado com varios sentidos e o caracter vago com que e usado com frequencia abre o caminho a dificuldades especificas e a equivocos. Embora tenhamos procurado indicar claramente o sentido em que usamos o termo, parece util ter a disposicjio um termo mais especifico para o tipo de actividades de tempo livre a que nos referirnos no ponto 5. A escolha do termo «mimetico» tornar-se-a mais clara no decurso do nosso ensaio.
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tigagoes e discussoes acerca das actividades de lazer incidem sobre actividades deste tipo. Essa investigate preocupa-se, em particular, com esta categoria; ainda que um numero crescente de pesquisas Ihe seja dedicado, as caracteristicas distintivas desta categoria de actividades nao surgem a nossa compreensao, em nenhuma delas, com muita clareza. Tem-se dedicado muita atengao a aspectos ou a problemas singulares, relativarnente pequenos para a estrutura basica, para as caracteristicas comuns desta categoria de actividades. As proprias actividades apresentam uma enorme diversidade. A esta categoria pertencem actividades de lazer, tais como a ida ao teatro ou a um concerto, as corridas ou ao cinema, a caga, a pesca, jogar bridge, fazer montanhismo, apostar, dangar ou ver televisao. As actividades deste tipo sao actividades de tempo livre que possuem o caracter de lazer, quer se tome parte nelas como actor ou como espectador, desde que nao se participe como se participasse numa ocupagao especializada atraves da qual se ganha a vida; neste caso, deixam de ser actividades de lazer e tornam-se uma forma de trabalho, implicando todas as obrigagoes e restrigoes caracteristicas do trabalho em sociedades do tipo da nossa — mesmo que as actividades como estas possam ser sentidas como sendo muito agradaveis. Esta tipologia, provisoria como e, pode servir como um ponto de partida para numerosas elucidagoes teoricas. Ilustra as insuficiencias, quer para fins praticos quer para fins de estudo, de uma conceptualizagao que utiliza o termo «tempo livre» e «lazer» mais ou menos como sinonimos. A tipologia mostra, de forma muito nitida, que uma parte consideravel do nosso tempo livre nao se pode identificar com o lazer. So por esta razao, a polarizagao do lazer e do trabalho na sua forma tradicional e inadequada. Sugere que todo o tempo que nao e despendido no trabalho, no sentido de uma ocupagao de trabalho remunerado, ou seja, todo o tempo livre, pode ser dedicado a actividades de lazer. Como esta classificagao sugere, o trabalho, no sentido de uma profissao, e apenas uma das esferas que reclamam a subordinagao regular e equilibrada dos sentimentos pessoais, por mais fortes e apaixonados que possam ser, as necessidades sociais impessoais e a tarefas. Em sociedades como as nossas, o manto relativamente
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equilibrado das restrigoes estende-se ate ao campo das actividades de tempo livre. Com diferengas de grau, a restrigao impregna numerosas relagoes sociais privadas estabelecidas com pessoas fora do proprio circulo familiar. Mesmo ai, a esfera de acgao socialmente consentida para o atenuar das restrigoes e relativamente pequena. O controlo social, ate mesmo o controlo do Estado, modera as relagoes entre marido e mulher, pais e filhos. As explosoes apaixonadas, a total ausencia de controlo dos excitamentos, tornaram-se cada vez mais raras, ate mesmo no seio do proprio circulo familiar. Nas complexas sociedades industrials com uma elevada diferenciagao de fungoes sociais, a correspondencia altamente independente de todas as actividades, tanto publicas como privadas, profissionais e nao profissionais, exige e produz uma cobertura global das restrigoes. A uniformidade e o rigor do leque de restrigoes podem ser um pouco atenuados na relagao mais intima, mas, comparado com as sociedades mais simples, o manto perdeu o seu caracter segmentar. Ja nao tern as fendas e aberturas que permitem a indulgencia sem restrigoes que se encontra nas sociedades menos diferenciadas, entre outras razoes devido as diferengas mais vincadas que existem no poder e no estatuto dos diferentes estratos sociais; estas diferengas permitem uma esfera de acgao mais vasta quanto a moderagao emocional e a ausencia de restrigoes, por exemplo, na conduta de um chefe nas relagoes com os seus escravos ou servidores ou na de um pater familias nas relagoes com a sua mulher e com os seus filhos. O leque de restrigoes nas sociedades menos desiguais, como as nossas, estende-se, agora com pequenas diferengas relativas de grau, a todas as relagoes humanas. A estrutura destas sociedades permite um reduzido campo de acgao, mesmo as pessoas mais poderosas, para explosoes apaixonadas de excitagao espontanea e irreflectida. Ate estas raramente podem abrandar a circunspecgao e a previsao, que sao concomitantes as restrigoes emocionais, sem colocarem em perigo as suas posigoes na sociedade5. As restrigoes emocionais do trabalho profissional alargam-se a um habito de restrigao inabalavel, incluindo a vida nao profissional das pessoas. As fungoes especificas do desporto, teatro, corridas, festas e de 5 Ver Elias, The Civilizing Process, para urn tratamento mais extenso deste problema.
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todas as outras actividades e acontecimentos de uma maneira geral associados ao termo «lazer», em especial de todas as actividades mimeticas e dos acontecimentos do mesmo genero, tern de ser estabelecidas relativamente a esta ubiquidade e estabilidade de controlo das excitagoes. E com esta polaridade que nos preocupamos aqui. Sob a forma de factos de lazer, em particular os da classe mimetica, a nossa sociedade satisfaz a necessidade de experimentar em publico a explosao de fortes emogoes — um tipo de excitagao que nao perturba nem coloca em risco a relativa ordem da vida social, como sucede com as excitagoes de tipo serio.
Pode bem acontecer que algumas pessoas assinalem uma nota de ironia na descrigao que e feka do nosso tipo de sociedade, como sendo «mon6tonas». O que foi dito pode contribuir pafa precisar o sentido em que o termo e utilizado. Refere-se ao tipo de restrigoes impostas no nosso tipo de sociedade, sob a forma de excitagao espontanea, elementar e irreflectida, na alegria como na tristeza, no amor como no odio. Os excesses das explosoes fortes e apaixonadas foram amortecidos por restrigoes embutidas conservadas pelo controlo social, que, em parte, sao incrustadas de modo tao profundo que nao podem ser abaladas. Contudo, o termo «excitante» e usado hoje, habitualrnente, num sentido menos especffico e mais figurativo. Poderiam surgir mal-entendidos se nao dissessernos que, neste sentido mais vasto e figurativo, as nossas sociedades estao longe de ser insipidas. Nesta perspectiva, nao seria totalmente injustificado considerar as sociedades em que vivemos como das mais excitantes no quadro do desenvolvimento da humanidade. Talvez uma citagao possa contribuir para ilustrar este outro sentido. E retirada de um artigo de Jean-Luc Godard: Estou particularmente satisfeito por viver.., hoje, no nosso tempo, porque as rnudangas sao enormes. Para um peintre en lettres* isto e profandamente excitante. Na Europa, e especialmente em Franga, *Em frances no texto original.
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tudo esta hoje em movimento. Mas e precise estar atento ao que se passa. A juventude, o desenvolvimento das cidades, das provmcias, da industrializagao — vivemos num tempo extraordinario. Para mim, a representagao da vida rnoderna nao consiste apenas em certas invengoes ou no desenvolvimento industrial, segundo o modo como alguns jornais pretendem, ela consiste, sim, na representagao desta metamorfose total6. Este tipo de excitagao pode ser compartilhado por muitos de nos. Provavelrnente sera verdade afirmar que, desde a Renascenga, poucas epocas ofereceram uma oportumdade tao grande para experiencias com novos pensamentos e formas e para a gradual libertagao da imaginagao das grilhetas habituais, Apesar da ameaga de guerra, existern grandes promessas no ar, e isso e excitante. Mas a excitagao de que falamos neste ensaio e de um genero diferente. E menos reflectida, menos dependente da previsao, do conhecimento e da capacidade para libertar cada um, por pouco tempo, das cargas opressivas de sofrimento e perigo que nos rodeiam. Nos estamos preocupados com a excitagao espontanea e elementar que provavelmente tern sido inimiga da vida ordeira, atraves da historia humana. Numa sociedade em que as inclinagoes para as excitagoes serias e de tipo ameagador diminuiram, a fungao compensadora da excitagao-jogo aumentou. Com o auxilio deste tipo de excitagao, a esfera mimetica oferece uma vez mais a oportunidade, por assim dizer, de um novo «desanuviar» no seio da sociedade que, pelo contrario, na vida social comuin possui um conteudo uniforme. Quanto a alguns aspectos, sobre os quais mais havera a dizer adiante, a excitagao-jogo difere do outro tipo. E uma excitagao que procuramos voluntariamente. Para a experimentar, temos muitas vezes que pagar. E, em contraste com o outro tipo, e sempre uma excitagao agradavel sob uma forma que, dentro de certos limites, pode ser desfrutada com a anuencia social e da nossa propria consciencia, E possivel justificar que a nossa sociedade permite um razoavel campo de acgao para excitagoes agradaveis de um tipo totalmente realista, fora da esfera mimetica. E obvio que se pense na excitagao 6
Jean-Luc Godard, Le Nouvel Qbservateur? 1966. Ver tarnbem Die Zeit, 10 de Margode 1967.
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inerente as relagoes homem e mulher. Talvez possamos ilustrar melhor a linha de pensamento que tern sido seguida ate agora considerando este desafio. Na nossa sociedade, a grande excitagao inerente ao encontro dos sexos foi limitada de uma maneira muito especifica. Nesta esfera, tambem, a paixao brutal e a excita^ao constituem um grande perigo. Neste caso, podemos esquece-las tambem porque entre as formas de controlo desenvolvidas nestas sociedades mais complexas, onde a perda de controlos tende a ser classificada quer como aberrante quer como criminosa, um nivel bastante elevado de restrigao tornou-se uma segunda natureza. A descoberta do outro sexo, a maior e a mais excitante das experiencias, de acordo com as normas e tradigoes da nossa sociedade, e regulamehtada de modo a ser um acontecimento unico na vida pessoal. A maior excitagao possivel socialmente reconhecida, simbolizada pelo conceito de amor, e ajustada a ordem da nossa vida, limitando-a, em principio, pelo menos, a uma unica experiencia na vida de cada pessoa. Talvez nada ilustre melhor a fungao peculiar da esfera mimetica na nossa sociedade do que a parte importante que a representagao do amor desempenha em numerosos dos seus produtos. A necessidade aparentemente interminavel de representagao de historias de amor em filmes, pegas de teatro e novelas, nao e suficientemente explicada pela simples referenda a propensao libidinosa das pessoas. O que estas representagoes mimeticas proporcionam e a renovagao da excitagao especifica associada a primeira, e talvez mais tarde com uma outra, uma grande ligagao de um homem e de uma mulher, que se encontra inacessivel a muitas pessoas na vida real. Para esclarecermos o nosso problema, e fundamental proceder a distingao, neste contexto, entre a satisfagao, incluindo a satisfagao sexual, inerente a uma vida de casado duradoura e bem organizada, e a excita^ao especifica inerente a ligagao de amor unica, que e fresca e nova. Aquilo que inumeras representagoes mimeticas do amor proporcionam e a experiencia ou o reviver desta excitagao, atraves de todas as extensoes e conflitos no sentido da satisfagao que e agradavel, quer o resultado final da historia seja feliz ou triste. A experiencia mimetica do amor movimenta e anima emogoes que se podem tornar sem importancia na vida quotidiana, mesmo que nao fake satisfagao sexual, no sentido vulgar. A partir deste exemplo, pode ver-se melhor por que motivo nao
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e suficiente estudar o trabalho professional isolado enquanto polo oposto do lazer, ou tentar explicar as caracterfsticas e as fungoes das actividades de lazer das pessoas fazendo referenda apenas as caracterfsticas e fungoes do trabalho professional. Nas sociedades relativamente bem organizadas como as nossas, a rotina abrange todas as esferas da vida, incluindo as de maior intimidade7. Nao se confina ao trabalho numa fabrica ou num escritorio administrative e de outras actividades similares. A menos que o organismo seja intermitentemente congestionado e agitado por algumas experiencias excitantes com a ajuda de sentimentos fortes, a rotina global e as restrigoes, como condigoes de ordem e de seguranga, estao em condigoes de engendrar uma secura de emogoes, um sentimento de monotonia, do qual a monotonia emocional e apenas um exemplo. Porque nao e na qualidade do trabalho, mas antes na qualidade dos sentimentos engendrados nos que o executam, que se avalia o caracter da monotonia. A estimulagao emocional peculiar e a renovagao de energias proporcionada pelas actividades de lazer da categoria mimetica, culminando numa tensao agradavel, representam um equivalente mais ou menos institucionalizado face ao poder e a uniformidade das restrigoes emocionais exigidas por todos os tipos de acgoes intencionais dos individuos nas sociedades mais diferenciadas e civilizadas. A agradavel excitagao-prazer que as pessoas procuram nas suas horas de lazer, representa assim, ao mesmo tempo, o complemento e a antitese da tendencia habitual perante a banalidade das valencias emocionais que se deparam nas premeditadas rotinas «racionais» da vida8; enquanto a estrutura das 7
O conceito de «rotina» aqui usado difere, em certos aspectos essenciais, do conceito utilizado por Joffre Dumazedier na sua Toward a Society of Leisure, Nova lorque e Londres, 1967, e por Georges Friedmann na sua Industrial Society, Glencoe, Illinois, 1955. Estes autores utilizam o termo para se referirem, principalmente, a maneira como a mecanizagao e a racionalizagao conduzem a monotonia e ao caracter repetitivo nas tarefas do trabalho que originam sensagoes de aborrecimento naqueles que as realizam. Contudo, tal como aqui e aplicado, o conceito refere-se ao controlo social e individual dos sentimentos, a rotina que desempenha um papel em todas as situagoes em que as pessoas tern de subordinar, por instantes, sentimentos e impulses ao conjunto de exigencias que se exerceu sobre elas directa ou indirectamente, pelas expectativas sugeridas aos outros dada a sua posigao social. 8 Norbert Elias, «Sociology and Psychiatry», em S. H. Foukles (ed.), Psychiatry in a Changing Society, Londres, 1969. Ver tambem Norbert Elias, What is Sociology?, Londres, 1978.
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proprias organizagoes e das institutes mimeticas representa a antitese e o complemento das rotinas formalmente impessoais e das institutes orientadas para o trabalho, que deixam pouco espa^o as emogoes apaixonadas ou as oscilagoes de disposigaa Como um complemento ao mundo prerneditado, as actividades altamente impessoais orientadas para o trabalho, as institutes de lazer, quer sejam teatros, concertos, corridas ou jogos de criquete, nao sao mais do que forrnas de representagao de um mundo de fantasia «irreal». A esfera mimetica constitui uma parte distinta e integral da «realidade» social.
Considerando esta polarizagao como ponto de partida, poderemos ver, com maior clareza, o problema basico que se nos deparam ao estudar o lazer. Este resolve-se discorrendo, em ternios gerais, a proposito de duas questdes interdependentes: 1) Quais sao as caracteristicas das necessidades individuais de lazer desenvolvidas nas sociedades mais complexas e civilizadas do nosso tempo? 2) Para a satisfagao destas necessidades, quais sao as caracteristicas dos factos especificos de lazer desenvolvidos nas sociedades deste tipo? No sentido de facilitar um exame mais rigoroso e mais distanciado, parece util destacar a necessidade de um tipo particular de excitagao agradavel e coioca-la no centro da primeira questao. Pode demonstrar-se que esta necessidade se encontra no fulcro da maior parte das necessidades de diversao. A excitagab e, por assim dizer, o condimento de todas as satisfies proprias dos divertimentos. Talvez nao seja tab facil compreender os objectives e as implica^oes da segunda questao. Uma das razoes por que parece conveniente usar um termo especifico para todos os factos de lazer que podem ser justamente classificados como mimeticos foi o reconhecimento de que todos esses factos possuem uma estrutura particular que Ihes perrnite satisfazer as necessidades especfficas de lazer. Parece util pensar, como inerentes as suas estruturas, as carac-
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teristicas que fazem com que as actividades de lazer, como desportos, concertos, cinema e televisao, sirvam para prover as necessidades de satisfagao do lazer. Nao sera presungoso afirmar que, embora seja habitual falar da estrutura das fabricas ou das familias, ainda nao se atingiu o momento em que seja um habito falar de lazer. Uma vez alcangado este ponto, nao sera diffcil verificar que o fulcro do problema do lazer se encontra na relagao entre a estrutura das necessidades caracteristicas do lazer, do nosso tipo de sociedades e a estrutura dos factos designados para a satisfagao dessas necessidades, Primeiro, fomos confrontados com este problema nos nossos estudos do futebol. No decurso desses estudos foi impossivel deixar de notar que um grupo particular de dinamicas, um equilibrio de tensao especiflco do jogo, em resumo, a estrutura que poderia ser organizada com nitidez, era vivida como imensamente excitante e agradavel, enquanto outro tipo de configuragao, tambem aberta para esclarecer a analise configuracional, era considerado como desinteressante e decepcionante. Foi neste contexto que nos confrontamos, pela primeira vez, com o problema que, mutatis mutandis, se pode levantar a respeito de todos os factos mimeticos: o problema que ja formulamos, o da correspondencia que existe entre as necessidades de lazer socialmente elaboradas e a estrutura dos factos de lazer socialmente instituidos, que sao designados para a satisfagao das mesmas. Nao estamos a sugerir que o motivo e o esclarecimento do problema sejam, por si proprios, suficientes para indicar uma solugao definitiva. E um problema complexo e algumas das dificuldades que se encontram na sua exploragao tern de ser determinadas de um modo explicito. Mas, enquanto nao sugerimos que podemos, ou iremos, apresentar uma solugao completa neste ensaio, aquilo que esperamos e ser capazes de dar alguns passos no sentido da resolugao do problema. Uma das maiores dificuldades deste tipo de questoes, e provavelmente uma das razoes por que ate agora se fizeram tao poucos progresses neste campo, reside no facto de este ser um problema que ultrapassa as fronteiras de diversas ciencias. E controverso saber se Ihe poderemos chamar um problema interdisciplinar porque nao surge como tal, quando se prossegue uma pesquisa estritamente dentro das fronteiras tradicionais de qualquer uma das ciencias humianas. O problema possui os seus aspectos fisiologico, psi-
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cologico e sociologico. Mas, embora estas distingoes sejam suficientemente reals em termos dos limites disciplinares actuals, elas andam, com frequencia, associadas a ilusao de que o objecto de cada uma destas disciplinas possui uma existencia separada. Em termos da realidade que defmimos com a finalidade de a explorar, as areas com as quais estas tres especialidades estao envolvidas, ainda que distintas, sao inseparaveis e interdependentes. Todas estao relacionadas com seres humanos e estes nao sao constituidos por compartimentos estanques e independentes. O que foi separado, para efeitos de estudo, deve ser reunido de novo para o mesmo fim. 1) Alguns aspectos fisiologicos da sindroma da excitagao foram estudados por especialistas, tais como Walter B. Cannon e outros9. Estes autores fornecem um quadro das principals mudangas somaticas de animais e de seres humanos, quando confrontados com uma situagao critica subita. O quadro e suficientemente claro para nos permitir sugerir, pelo menos atraves de tentativas, algumas das possibilidades de correspondencia entre as estruturas organicas de uma reacgao desencadeada pela excitagao e as estruturas sociais dos factos que as legitimam. Mas as pesquisas fisiologicas tem-se concentrado sobre tipos de excitagao mais desagradaveis. Os resultados tern sido resumidos com a ajuda de conceitos como reaches de «emergencia» ou de «alarme»10. O quadro fisiologico da excitagao foi estudado quase inteiramente a proposito da fome, do medo, da raiva e, em geral, como uma reacgao especifica ao perigo subito. Parece-nos que sabemos relativamente pouco sobre a sindroma da excitagao associada ao prazer. Mas, apesar destas limitagoes, as investigates fisiologicas mostram, como nada mais o pode
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W. B. Cannon, The Wisdom of the Body, Londres, 1947; ver tambem o seu Bodily Changes in Pain, Hunger, Fear and Rage, Nova lorque, 1929- Para leituras suplementares ver M. L. Reymert (ed.), Feelings and Emotions: the Moosehart Symposium, Nova lorque, 1950; A. Simon, C. Herbert e R. Strauss, The Physiology of Emotions, Springfield, Illinois, 1961; I. J. Saul, «Physiological Effects of Emotional Tension», em J. M. Hunt (ed.), Personality and the Behaviour Disorders, Nova lorque, Vol. 1, 1954. 10 Ver, por exemplo, P. C. Constantinides e N. Carey, «The Alarm Reaction», em D. K. Candland (ed.), Emotion: Bodily Change, Nova lorque, 1962.
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fazer, a sindroma da excitagao como uma «alteragao de velocidade» na massa de espectadores, que nos conceptualizamos como excitagao. 2) Tanto quanto se sabe, os aspectos psicologicos da smdroma da excitagao foram estudados somente em areas proximas do nivel fisiologico, em criangas de idades muito baixas. Existem provas de que a reacgao generalizada de excitagao e uma das primeiras a ocorrer nas criangas com menos de sete anos de idade11. Estudos sobre a excitagao na infancia sugerem que o embalar e outros movimentos ritmicos estao entre as primeiras manifestagoes de uma smdroma da excitagao. Estas podem ter um efeito calmante e podem estar relacionadas com sensagoes agradaveis. Provavelmente, nao sera demasiado rebuscado admitir que um tipo de actividades de lazer agradavel, a excitagao ludica atraves de movimentos ritmicos repetitivos, em algumas formas de danga, deriva de uma excitagao muito elementar que se pode observar na infancia. Para alem disso, os psicologos contribuiram muito pouco para a compreensao destes problemas. Os estudos sistematicos experimentais sobre o controlo, bem como os estudos dos movimentos opostos no sentido de uma libertagao dos controlos e de todas as questoes da dinamica de equilibrio de tensao,relacionadas com movimentos, no sentido de um controlo superior, e os movimentos opostos correspondentes, mantem-se um campo em aberto. Quanto a esta questao, tivemos de confiar nos nossos proprios recursos. 3) Pode dizer-se mais ou menos o mesmo a respeito do estudo sociologico dos factos de lazer. A estrutura destes factos sociais e, particularmente, as qualidades que encontram ressonancia na satisfagao desencadeada pela representagao de actores e de espectadores, atingindo com frequencia o climax, estao em grande parte inexploradas. Ja nos referimos a tentativa que efectuamos para clarificar este tipo de estruturas a respeito do futebol.
H
Ver, porexemplo, K. M. B. Bridges, The Social and Emotional Development of the Pre-School Child, Londres, 1931.
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7 Para uma melhor compreensao das dificuldades que se deparam no tratamento de problemas que nao se ajustam perfeitamente aos limites de uma ou outra das especialidades academicas actuals, talvez possa ser util considerarmos a maneira segundo a qual muitos dos mesmos problemas foram abordados num estadio em que esta divisao do trabalho, este fraccionamento na busca do conhecimento em diferentes especialidades, ainda nao tinha ocorrido. Num estadio anterior, esses problemas erarn considerados no quadro da matriz global da filosofia. Um dos melhores exemplos dessa abordagem de pre-especializagao deste mesmo problema pode ericontrar-se em Aristoteles. Ainda que isso possa parecer estranho, e talvez um pouco suspeito nesta fase cientifica, o facto de ser referida a abordagem aristotelica dos problemas da excitagao do lazer numa investigagao sociologica, um resumo breve e necessariamente apressado das suas hipoteses pode mostrar as vantagens desta referencia. De acordo com a estrutura diferente da sociedade grega, o conceito de «lazer» nao possuia exactamente o mesmo sentido do nosso. O facto de se poderem ver numa melhor perspectiva as limitagoes dos nossos proprios conceitos, de certo rnodo estereotipados, de lazer e de trabalho constitui uma vantagem acrescida desta rapida perspectiva, permitindo que sejam confrontados com os conceitos correspondentes de outra sociedade. Aristoteles dedicou grande atengao ao estudo daquilo que poderia ter designado por problemas do lazer12. Os tradutores, contudo, tern obscurecido a realidade e o esquema de valores diferentes representado pela sua maneira de pensar e de escrever; de um modo geral, procuram traduzir nao so as nossas palavras para as suas mas, tambem, a nossa maneira de pensar, sem qualquer com-
12 Sobre a sua posigao quanto a musica, ver em particular Aristoteles, Pol. VII e VIII. A respeito das suas perspectivas quanto aos afectos ern geral, ver Pol. I. Catarse (purga.<~ao) psicologica (extatica) e catarse sornatica assemelham-se em alguns aspectos e diferem noutros. Semelhan^as: a expulsao de substancias perturbadoras contribui para restaurar o equillbrio perdido. Diferengas: a catarse extatica produz apenas um restabelecimento temporario e e sempre acompanbada de sensagoes agradaveis.
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preensao clara do caracter dissemelhante da sua experiencia numa sociedade distinta. Consideremos as proprias palavras que Aristoteles usou para discutir problemas do lazer e trabalho. A palavra grega para designar «lazer» e o antepassado directo da nossa palavra «escola». E schole. O termo podia ainda referir-se as ocupagoes dos homens de lazer, aquilo com que preenchiam o seu tempo de lazer — a conversar, em debates cultos e discussoes, em conferencias, ou num grupo ao qual se oferecia as conferencias. Nesta perspectiva, aproximou-se gradualmente do sentido do nosso termo «escola». Mas so se aproximou dele. Porque aprender era e conservava-se ainda, em larga medida, um privilegio dos «homens de lazer». Contudo, os membros da classe de lazer grega tinham inumeras coisas para fazer, o que os mantinha afastados da schole, entendida como lazer, como a administragao das suas propriedades, os negocios civicos, a guerra e o servigo militar. Estas e muitas outras ocupagoes preenchiam grande parte do seu tempo, e quando se referiam a elas usavam o termo proprio para designar trabalho. Nada ilustra melhor a diferenga entre o seu quadro de valores e o nosso do que a sua palavra para significar o trabalho de um cavaleiro. So o podiam expressar negativamente, formando uma palavra que significava «nao ter lazer» — ascholia. Sem referencia as palavras gregas actuais, nao se podem compreender declaragoes de Aristoteles tais como esta: «Trabalhamos para ter lazer», que quer dizer simplesmente: trabalhamos com o fim de termos tempo para coisas melhores e mais significativas. Apenas se conservam13 fragmentos da teoria de lazer de Aristoteles, mas, geralmente, estes sao bastantes esclarecedores. A sua teoria baseia-se no efeito da miisica e da tragedia nas pessoas. Hoje podem ainda verificar-se hesitagoes quanto a explicagao dos efeitos dos factos de lazer como estes, que se situam num ponto muito elevado da nossa escala de valores, em termos modelados a partir dos efeitos de uma purificagao. Aristoteles, para quern dificilmente estes efeitos seriam menos importantes, nao teve hesitagoes em faze-lo. De facto, uma das principals diferengas entre a
13 A versao que existe da Poetica de Aristoteles e somente um fragmento da obra original.
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abordagem cientifica contemporanea dos problemas humanos e a de Aristoteles, e de varios outros filosofos da Antiguidade, era esta: muitos cientistas contemporaneos das ciencias humanas parecem ter olhado com desprezo os paradigmas obsidiantes das ciencias nao humanas, acima de tudo os da fisica. Talvez o fundo do conhecimento empirico mais seguro, para o qual muitos dos maiores pensadores da Antiguidade olhavam como modelo, tenha sido a medicina. Nao surpreende, porem, que Aristoteles, ao determinar os efeitos da musica e do drama nas pessoas, formulasse a sua interpretagao a partir das observagoes factuais dos fisicos. A sua teoria sobre os efeitos da musica e do drama tern, como pega central, o conceito de catarse. Esta palavra derivava do conceito medico utilizado em liga^ao com o expulsar de substancias nocivas do corpo, com a limpeza do corpo por meio de uma purga. Aristoteles sugeriu que, num sentido figurado, a musica e a tragedia provocavam algo similar nas pessoas. Possuiam, tambem, um efeito curativo desencadeado nao atraves dos intestinos, mas atraves de «um movimento da alma» (kinesis tes psyches). Se as pessoas estao demasiado excitadas ou tensas, a musica excitante podera ajudar a acalma-las. Se estao entorpecidas com o desespero e o desanimo, podem encontrar alivio na estimulagao dos seus sentimentos atraves de musicas melancolicas. A essencia do efeito curativo destes actos mimeticos consiste no facto de a excitagao que produzem, em contraste com a excitagao de situagoes criticas serias, ser agradavel. Aristoteles usou explicitamente, neste contexto, o termo pharmakon. Ainda podemos ver aquilo que foi talvez suprimido, ou na maior parte esquecido na tradigao do pensamento europeu, apesar da absorgao do pensamento de Aristoteles pelas tradigoes da igreja crista: que o prazer sob uma forma comparativamente moderada, proporcionada pelos factos mimeticos, pode ter um efeito curativo. Sem o elemento hedonista do «entusiasmo», da excitagao produzida pela musica e pelo drama, nenhuma catarse e possivel. Seria importante considerar outros aspectos da teoria de Aristoteles sobre os efeitos do lazer nas pessoas. Aquilo que se disse pode ser suficiente para mostrar que neste estadio ainda se podia analisar com bastante clareza um problema que e muito mais dificil de observar no estadio de desenvolvimento onde o estudo dos seres humanos se encontra nitidamente dividido entre numerosas especialidades diferentes, cuja relagao entre si e incerta e onde falta
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qualquer esquema redentor de integragao. Talvez seja util tambem — nurn periodo em que ate mesmo nas teorias cientificas da psicologia e da sociologia os problemas do prazer, em geral, e os problemas de excitagao agradavel, em particular, se chegarem a ser abordados, se encontram em condigoes de serem tratados com o maior cuidado — ver como Aristoteles considerou tao seriamente o efeito restaurador da satisfagao do lazer. Dado o fundo muito maior do conhecimento factual disponivel hoje em dia, nao surpreende que possamos avangar. Mas, como ponto de partida, a sua abordagem e sugestiva. E dificil acreditar que seja possivel desenvolver uma adequada teoria do lazer sem prestar atengao aos aspectos agradaveis das actividades de lazer.
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Aristoteles propunha na sua tese que o prazer e um ingrediente necessario ao efeito curativo, catartico, das ocupagoes de lazer, que se encontravam em destaque no seu pensamento, sem fazer qualquer referenda particular a esse facto. Dirigia-se de forma polemica a outros filosofos gregos, como Platao e os estoicos, que se inclinavam no sentido de considerarem os sentimentos das pessoas com desconfianga, senao mesmo com desprezo, mas ele nao teve de combater uma heranga social de tabus. Dentro do contexto de uma tradigao como a nossa, as discussoes sobre problemas de prazer tendem a ser desequilibradas: a propensao para banir o prazer como tema de conversas serias ou de investigagao corresponde a^tendencia para vincar excessivamente a sua relevancia, o que e caracteristico do esforgo que e necessario fazer quando alguem se aproxima de uma zona de tabus. Pode bem acontecer que seja devido a estas dificuldades para encontrar o equilibrio certo que, mesmo hoje, com frequencia, a fungao das actividades de lazer nao e considerada como significativa, se e que chega a ser mencionada. No entanto, mesmo na tradigao europeia, nos seculos passados, a tese aristotelica auxiliou, de tempos a tempos, aqueles que combatiam a tendencia para diminuir ou suprimir as actividades que favoreciam o prazer, tal como aquelas para se confrontarem sob a forma de jogos. Milton e um exemplo. Quando os seus amigos puritanos procuravam suprimir nao so os brilhantes entretenimen-
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tos teatrais, mas ate mesmo a representa^ao de tragedias, ele escreveu o seguiinte: «A tragedia, tal como era elaborada antigamente, foi mantida para sempre o mais grave, o mais moralista e o mais util de todos os poemas; por isso, afirmoti Aristoteles, possuia o poder de despertar a piedade e o medo, de pnrifkar o espirito destes e elas paixoes, isto e, no sentido de as moderar e redozir a justa medida com uma especie de prazer, desetieadeado pela leitiira on pelo visao destas paixoes bem imitadas. Nem a natureza pretende, com a sua influencia, faze-lo melhor: por isso, no pensamento da inedicina, as coisas de matiz e qualidade melancolica sao usadas contra a melancolia, a tristeza contra a tristeza, sao um sal para modifkar humores.14 O efeito catartico das fortes paixoes despertadas pela representagao e como tal difundido com prazer, por mais desagradaveis e terrfveis que pudessem ser as mesmas paixoes na vida real — o problema e a tese aristotelicos — era conhecido das pessoas cultas do tempo de Milton. A sua concordancia com a medicina homeopatica continua ainda a fazer com que soem a algo familiar e convincente. Face as tecnicas de investigate muito mais desenvolvidas do nosso tempo e do fundo de conhecimento muito maior que esta hoje disponfvel, a teoria de Aristoteles pode julgar-se simples e sem subtileza, mas ela fbrnece ao pensamento aspectos do problema do lazer que hoje sao frequentemente esquecidos. Um deles e o de que grande parte dos factos de lazer desperta emogoes que estao relacionadas com aquelas que as pessoas experimentam noutras esferas: despertam medo e compaixao ou ciume e odio por simpatia com os outros, mas de uma rnaneira que nao e serianiente perturbante e perigosa, como e o caso, com frequencia, na vida real. Na esfera mimetica sao, por assim dizer, transpostos numa combinagao diferente. Perdem o seu ferrao, Confundem-se com «uma especie de prazer». O termo «mimetico» refere-se a este aspecto de um tipo de factos e experiencias de lazer. O seu sentido literal e «irnitativo», mas ja na Antiguidade era usado nuni sentido mais alargado e 14 John Milton, prefacio para Samson Agonhtes, Obras Reunidas, Vol. 1, II Parte, Nova lorque, 1931,p. 331.
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figurado. Referia-se a todas as especies de formas artisticas na sua relagao com a «realidade», quer possuissem um caracter de representagao ou nao. Contudo, o aspecto mimetko que e uma caracteristica comum de todos os factos de lazer classificados sob esse nome, destacado ou minimizado segundo as avaliagoes correntes, desde as tragedias e sinfonias ate ao poquer e a roleta, nao significa que se trate de representagoes de factos da «vida real», mas antes que as ernogoes — os sentimentos desencadeados por elas — estao relacionadas com as que se experimentam em situagpes da «vida real» transpostas apenas e combinadas com uma «especie de prazer». Social e individualmente, possuem uma fungao e um efeito diferente sobre as pessoas. A comparagao entre a excitagao gerada pelas situagoes da «vida real» e aquela despertada pelos factos de lazer revela, de forma bastante clara, quer as similariedades quer as diferengas. Embora a investigagao fisiologica nao se encontre bem esclarecida nestas linhas, existe uma certa razao para pensar que os aspectos fisiologicos basicos de uma sindroma da excitagao sao os mesmos nos dois casos. Seria interessante e recompensador descobrir quais sao as diferengas especificas. Psicologica e sociologicamente, a diferen^a e mais facil de reconhecer. Na excitagao seria, nao mimetica, as pessoas podem perder o autocontrolo e tornarem-se uma amea^a, tanto para si proprias como para os outros. A excitagao mimetica e, na perspectiva social e individual, desprovida de perigo e pode ter um efeito catartico. Mas a ultima forma pode transformar-se na primeira. Exemplos disso sao as multidoes excitadas do futebol ou os fas da musica pop que se tornarn impossiveis de dominar.13 Deste modo o termo «mimetico» e usado aqui num sentido especifico. Pode ser aplicado para se referir, essencialmente, a relagao entre os proprios factos mimeticos e certas situagoes crfticas serias as quais parecem assemelhar-se, mas, na verdade, a relagao a que se refere o termo «mimetico», tal como ele e aqui utilizado e, em prirneiro lugar, a relagao entre os sentimentos mimeticos e as 15
Nao e possfvel apresentar aqui com rninucia as conduces em que e provavel que isto acontega, ainda que a partir de tais premissas elas possarn ser susceptiveis de analise. Talvez seja suficiente dizer que um dos factores de semelhante metabasis eis allo genos, para uma tal transigao, de uma para outra categoria, e a relativa falta de autonomia de um facto mimetico em relagao aos factos na sociedade em geral.
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situagoes serias especificas da vida. Assim, os conflitos, as vitorias e as derrotas, representadas de forma dramatica e tragica, numa actuagao teatral como A Mulher Troiana de Euripides, podem criar, ou nao, qualquer relagao directa com as situates da vida de um publico do seculo XX, mas os sentimentos a que apelam podem ser imediatos, intensos, espontaneos e, se e que se pode usar esta expressao, totalmente contemporaneos. Sao eles, os sentimentos motivados por toda a serie de factos caracteristicos da esfera deste nome, que tern, de uma maneira divertida e agradavel, uma semeIhanga com os sentimentos experimentados em situagoes criticas serias, mesmo se os proprios sentimentos mimeticos nao se assemeIharem, de modo algum, aos factos «reais». O padrao e o caracter dos factos de representa^ao nao sao, certamente, os mesmos, em todas as sociedades. A forga e o padrao das necessidades emocionais diferem de acordo com o estadio que a sociedade atingiu num processo de civilizagao. Os factos mimeticos que servem estas necessidades diferem de acordo com eles. Mas o facto de alguns tipos de factos mimeticos, tais como as pegas teatrais ou composigoes musicais, poderem ser apreciadas em sociedades de tipos muito diferentes constitui um dos dados que indicam por que motivo a alusao a imitagao contida no termo «mimetico» seria mal entendida, se fosse interpretada de maneira a signiflcar imitagao de situagoes da vida real por meio dos proprios factos mimeticos. Com frequencia, esta rela^ao e muito tenue, ao mesmo tempo que existe uma relagao muito especial e muito directa entre os sentimentos com os quais os factos mimeticos estao de acordo e os sentimentos que se encontram em harmonia com situagoes criticas serias.
De facto, nao e so a maneira segundo a qual as pessoas do passado consideravam o divertimento e o prazer como ingredientes essenciais na ressonancia emocional dos factos que tornam o regresso as suas reflexoes valioso mas, tambem, a sua compreensao do paradoxo aparente que a ressonancia emocional dos factos de lazer apresenta. Aristoteles refere a capacidade das tragedias de despertarem o medo e o sofrimento por simpatia, a compaixao a que da origem. Santo Agostinho, nas suas Confissoes, ao reprovar a si
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mesmo o facto de haver frequentado teatros e outros divertimentos, interrogava-se sobre a questao muito incisiva de saber porque seria que assistimos aos divertimentos que estimulam em nos medo, ansiedade, raiva, colera e muitos outros sentimentos que, se pudessemos, teriamos evitado na vida real, como a praga.16 A luz de semeIhantes reflexoes de epocas passadas, algumas das maneiras de pensar do nosso proprio tempo constituem uma leitura impar. Nao e raro, nos nossos dias, encontrar essas explicates dos factos de lazer como formas de «recuperagao do trabalho», «descontracgao da fadiga da vida diaria» e, acima de tudo, «libertagao das tensoes». Aqui estao dois exemplos. M. H. e E. S. Neumayer, a este proposito, afirmaram que os factos de lazer sao: Actividades que distraem o corpo e o espirito, resultando na recrea£ao das energias perdidas de cada individuo, atraves da descontracC,ao das ocupagoes mais serias da vida. Quando uma pessoa esta cansada do trabalho fisico e mental e continua sem vontade de dormir, reage bem a recreagao activa.17
E G. T. W. Patrick afirmava que: Todos os jogos sao passatempos, mas nem todos os passatempos sao jogo. Alguns deles parecem satisfazer meramente uma ansia de
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Santo Agostinho, Conftssoes, III, ii. 2. Rapienbant me spectacula theatrica plena imaginibus misererium mearum et fomitibus ignis mei. Quid est, quod ibi homo uult dolere cum spectat luctuosa et tragica, quae tamen pati ipse nollet? Et tamen pati uult ex eis dolorem spectator et dolor ipse est voluptus eius. Quid est nisi miserabilis insania? Nam eo magis eis monetur quisque, quo minus a talibus affectibus sanus et, quamquam, cum ipse patitur, miseria, cum aliis compatitur, misericordia dici solet. Sed qualis tandem misericordia in rebus fictis et scenicis? Em Latim no original (N. da T.) A questao aplica-se nao so as tragedias, mas a urn campo mais vasto de divertimentos. Aos combates de gladiadores e de animais selvagens nos circos das cidades romanas, caracteristicos do nfvel de civilizagao na sociedade romana; aos combates de boxe, incluindo luta, corridas de automoveis, saltos de esqui ou basebol, bem como a representa^oes teatrais de todo o genero, caracteristicas do nfvel de civilizagao nas sociedades avangadas do seculo XX. Aplica-se, em resume, as actuates mimeticas de todos os tipos e a toda a variedade de emogoes envolvidas. 11 Leisure and Recreation, Nova lorque, 1931, p. 249-
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excitacao. Porque sera que, dado o facto de toda a nossa vida moderna ser tao excitante, comparada com outras formas de vida anteriores, no nosso tempo de Iazer procuramos passatempos excitantes?.., Felizmente, os psicoiogos resolveram o problema por nos e agora compreendemos bastante bem a psicologia do jogo. Aprendemos que nao e a excitagao no jogo, mas a liberta^ao de outras formas de actividades mentals que se esgotam na nossa vida diaria de trabalho mon6tono.18»
Nao so as observagoes dos antigos mas, tambem, quase todas aquelas que caracterizam o nosso proprio tempo acentuam o facto de que aquilo que as pessoas procuram nas suas actividades mimeticas de Iazer nao e o atenuar das tensoes mas, pelo contrario, um tipo especifico de tensao, uma forma de excitagao relacionada, com frequencia, como notou Santo Agostinho, com o medo, a tristeza e outras emogoes que procurariamos evitar na vida quotidiana. Podfamos dar uma grande variedade de exemplos, de forma a mostrar que o aumento das tensoes e um ingrediente essencial em todos os tipos de divertimentos de Iazer integrados na esfera mimetica, mas talvez seja suflciente, para os objectives actuais, apresentar tres tipos diferentes de factos mimeticos. Aqui esta a representagao sintetica de um poeta, de um modelo de comportamento da multidao, durante uma actuagao dos Beatles: Os Beatles no Shea Stadium Sons preliminares dominam as sessenta mil pessoas num unico corpo ululando na margem do conhecimento Nervos inquietos esperam acordes exploratorios, a imersao e imediata o climax prolongado
«The Play of a Nation», Scientific Monthly, XIII, 1921, pp. 351-3.
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Raparigas bdquicas derramam fremsim vibrante, ou desmaiam, os bragos caidos Paces distorcidas esgares para crer batem contra uma veda$ao arranham, soltam, corpos esguios arqueados brac^os suplicantes procuram
Este poema descreve muito bem um padrao particular que se repete num grande numero de acontecimentos mimeticos: o percurso gradual para atingir a tensao e a excitagao, como o poeta diz, um climax prolongado, no caso de uma audiencia de musicapop, de quase delirio, que lentamente entao se resolve a si proprio. Pode encontrar-se um padrao similar em muitas pegas de teatro, um crescendo gradual de tensoes conduzindo, atraves de um climax, a uma forma de tensao-resolugao. Considere-se, como exemplo o resumo da pega de teatro e da reacgao do publico na seguinte critica: Nao foi uma noite muito confortavel que nos deram... Mas, para os que estavam preparados para isso, foi magniflcamente gratificante. O campo de batalha, e claro, era a vida de casado, e a primeira exigencia de uma criagao digna do seu autor era a presen^a de dois actores capazes de dar mais for^a as representagoes, mais do que as da vida, como Edgar, o marido, e Alice, a mulher, que durante toda a pega defrontam a ultima e tempestuosa cena de guerra em que estao envolvidos nos vinte e cinco anos de casamento. Podia admitir-se, com total conflanga, que Edgar, comandante de um pequeno destacamento de tropas, numa ilha onde o odio e a frustragao tinham todas as oportunidades para se inflamarem e para se transformarem em violencia, seria um papel que daria a Sir Laurence Olivier ocasiao para afastar todas as dificuldades e oferecer uma representagao esmagadora. Antecipadamente, nao se poderia ter tanta certeza de que a
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David Kerr, «The Beatles at Shea Stadiurn», Twentieh Century, Autumn, 1966, p. 48.
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A BUSCA DA EXCITA^AO NO LAZER menina Geraldine McEwan seria capaz de desencadear for^a suflciente para conduzir a sua actuagao de forma conveniente para a inevitavel vitoria de Strindberg da astucia da rnulher sobre o poder do hornern. Contudo, ela consegui-o. Os seus efeitos nao foram diminufdos ou prejudicados pelas explosoes ocasionais de risos na audiencia. Era obvio que as gargalhadas ocorriam nao por troc,a, mas porque as pessoas necessitavam de alguma libertagao da tensao sentida.20
A libertagao de tensao, referida nesta recensao crftica, e muito mais especifica e possui um caracter de prova superior ao do vago e mal defmido conceito de libertagao de tensao utilizado, com frequencia, como uma hipotese de explicagao para as actividades de lazer. A tensao aqui mencionada e a que foi desenvolvida pelo proprio facto de lazer. O riso a que se alude possui a fungao de uma valvula de seguranga. Ele impede a tensao mimetica de se tornar excessiva. No quadro social habitual de um teatro, uma audiencia nao se pode abandonar a si mesma, como o publico do Shea Stadium. Aparentemente, uma audiencia de teatro e, em geral, mais refreada. Os movimentos que constituem uma parte integral da sindroma espontanea da excitagao sao limitados com maior rigidez aquilo que, de modo habitual, chamamos o nivel de sensibilidade. Existem diferengas consideraveis, como e evidente, entre diferentes grupos de idade e categorias diferentes na franqueza com que most ram a sua tensao e excitagao atraves de movimentos corporais. Existem diferengas em todo o quadro social dos diversos factos mimeticos. Todos oferecem um grande campo de acgao para a investigagao sociologica. Mas, acima de tudo, isto e evidente: para uma explicagao de problemas deste tipo, nao e suflciente confiar nas hipoteses em termos de «libertagao das tensoes» ou «recuperagao do trabalho», as quais podiam ser mais adequadas se a maior parte das pessoas gastasse o seu tempo livre em actividades caracteristicas da esfera 2), se apenas desse uma volta, se descontraisse ou descansasse.
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Critica de W. A. Darlington, The Dance of Death, de Strindberg, no Teatro Old Vic, com Geraldine McEwan e Sir Laurence Olivier, Daily Telegraph, 23 de Fevereiro de 1967.
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Tomamos contacto, pela primeira vez, com este problema, a proposito do estudo do futebol. Numa fase posterior, teremos de considerar as diferengas entre categorias de factos mimeticos que situamos mais acima ou mais abaixo na ordem hierarquica que Ihes for atribuida. Mas, para chegarmos a um estadio de investigagao em que isso seria possfvel, e necessario, em primeiro lugar, determinar com a maior precisao as caracteristicas que todos os factos mimeticos tern em comum. Talvez se veja melhor o problema se acrescentarmos um exemplo de futebol aos que ja foram apresentados. As pessoas podem falar em termos diferentes da excitagao agradavel que procuram em todos os passatempos. Depois de uma actuagao dos Beatles, os jovens podem dizer que «foram postos na rua». Depois de uma pega de que gostaram, as pessoas mais velhas e serenas podem dizer «fiquei bastante emocionado». Os adeptos de futebol podem dizer que ficaram «arrebatados». Mas, ainda que existam diferengas que devam ser exploradas, encontra-se sempre presente um forte elemento de excitagao agradavel e, como um ingrediente necessario do prazer, um grau de ansiedade e de medo, quer seja uma tensao-excitagao derivada da ida as corridas, especialmente quando se experimenta uma pequena agitagao ao lado, quer seja a mais serena, mas a mais profunda excitagao derivada da audigao da Nona Sinfonia de Beethoven, quando o coro, cantando «An die Freude» de Schiller, atinge o seu tremendo climax. Existem grandes variagoes na maneira como a excitagao agradavel, a deleitante vibragao das emogoes proporcionadas pelas actividades de lazer, se pode expressar e, ate que se estudem com maior detalhe as ligagoes entre a estrutura das actividades de lazer e da ressonancia emocional que provocam em act ores ou espect adores, seria premature avangar explicates, ainda que a titulo experimental, para as variedades de prazer proporcionadas. Com todas as limitagoes, descobrimos que o estudo do futebol adapta-se muito bem, e talvez melhor do que muitos outros, a um esclarecimento de, pelo menos, alguns dos problemas basicos que se encontram no campo mimetico. Aqui pode estudar-se, de forma rigorosa, a complexa correspondencia que existe entre a dinamica do proprio facto mimetico e a dinamica psicologica dos espectadores.
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Considere-se o seguinte extracto de um dos nossos estudos de caso: A equipa da casa marcou inesperadamente o primeiro golo. A multidao comprimida, constituida na sua esmagadora maioria por adeptos da equipa da casa, rejubilava. Ondularam as suas bandeiras e cegarregas de forma excitada e cantararn, alto e triunfalmente, em apoio dos seus favorites. O grupo bastante mais pequeno de adeptos que tinha viajado com a equipa visitante, no principio tambem ruidoso e excitado, flcou em silencio, atordoado. A equipa convidada, considerada na regiao como, de longe, a melhor, nao contra-atacou de imediato. Concentrou-se numa marcagjio cerrada ao ataque da equipa da casa, de tal modo que o seu avanc, ado-cent ro e, de vez em quando, ate os seus pontas vinham atras jogar a defesa. Primeiro, algumas vezes e, depois, cada vez mais, os apoiantes da equipa convidada comegaram a cantar em unissono: «Ataca! Ataca!... Ataca! Ataca! Ataca!» Mas os jogadores tinham evidenternente o seu piano e estavam a espera do seu momento. O coro oposto dos adeptos da casa aceitou o desafio. Cantaram: «N6s somos os campeoes», trogando da equipa rival e incitando a sua propria equipa. Durante algum tempo, o jogo oscilava de modo indeciso, para um lado e para outro. O seu vigor era reduzido. A tensao entre os espectadores que agitavam as bandeiras era igual a do jogo. As pessoas encolhiam os ombros. Comegavam a flcar descontentes. Falavam sobre o jogo da semana anterior. De repente, a atengao regressou. A bola foi chutada pelo medio da equipa visitante para longe da baliza; fora recebida, por um companheiro desmarcado, num espa^o livre. Centrou rapidamente, antes que a equipa da casa o pudesse impedir. O avangado-centro tinha a baliza aberta a sua frente. Nao dando nenhuma oportunidade ao guarda-redes, pontapeou a bola, com forga e precisao, para dentro da rede. Poucos o teriam esperado. Gritos de radiante surpresa chegaram dos apoiantes da equipa visitante, misturados com manifestagoes irritadas do outro lado. Houve ai uma breve troca de palavras nas bancadas, com ironias e agitagao de bandeiras. Tres rapazes excitados correram para felicitar os seus herois e foram perseguidos pela policia. Podiam ouvir-se alguns dos adeptos a praguejar pelo canto da boca. Outros batiam com as maos na cabega em desespero, blasfemavam de maneira audrvel. Um a um, e so faltavam vinte minutos! Se alguem olhasse para o rosto dos jogadores da equipa da casa quando tomaram de novo as suas posigoes, podia notar que estavam
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series e determinados. O jogo tornou-se mais rapido e agressivo. O avangado-centro da equipa visitante, mais uma vez ao ataque, levou uma canelada dentro da area de grande penalidade, mesmo quando parecia certo que ia marcar. Soou o apito do arbitro. O medio-direito concentrou-se, o destino do jogo estava aos seus pes. Um silencio caiu sobre a multidao. Falhpu: a bola bateu num poste e foi rapidamente afastada para longe pela equipa da casa. Houve sinais de amolecimento e assuada dos seus apoiantes. Entao, surgiu uma grande confusao em frente da baliza da equipa da casa: foi desfeita e langaram a bola para fora, com uma combinagao inteligente de passes e dribles. Agora tomavam a iniciativa. Na multidao, cabegas e corpos agitavam-se de um lado para o outro acompanhando o movimento da bola. Ouviram-se alguns gritos daqui e dali, tornando-se cada vez mais altos com o aumento do estado de tensao do jogo. A posse da bola alternava e deslocava-se rapidamente de um limite do campo ate ao outro. A tensao cresceu, tornou-se quase insuportavel. As pessoas esqueciam-se do lugar onde se encontravam. Eram empurradas e empurravam para tras, eram outra vez empurradas para tras e para diante, para cima e para baixo das bancadas. Exist ia um confronto no lado esquerdo da baliza da equipa visitante, um centre rapido e um golpe de cabega. De repente, a bola estava na baliza e a alegria, o jubilo dos adeptos da equipa da casa subiu num estrondo enorme que se podia ouvir em metade da cidade, um sinal para todos: «Ganhamos!». Pode nao ser facil encontrar um consenso nitido a respeito das caracteristicas dos jogos ou sinfonias que proporcionam um maior ou menor grau de satisfagao ao publico, embora as dificuldades nao sejam insuperaveis, mesmo no caso de concertos, apesar da maior complexidade dos problemas. A respeito de jogos-desporto tais como o futebol a questao e simples. Se seguirmos o jogo regularmente pode aprender a ver-se, pelo menos em tragos gerais, que tipo de configuragao de jogo proporciona o prazer Optimo: e um confronto prolongado no campo de futebol entre duas equipas bem preparadas em tecnica e for^a. Um jogo que uma grande multidao de espectadores segue com excitagao crescente, produzida nao so pelo proprio confronto mas, tambem, pela perfcia demonstrada pelos jogadores. Um jogo que oscila de um lado para o outro, no qual as equipas estao tao bem equilibradas entre si que uma e, depois a outra, marcam, e a determinagao de cada uma das equipas para marcar o golo decisive cresce a medida que o tempo passa.
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A tensao do jogo comunica-se visivelmente aos espectadores. A sua tensao, a sua excita^ao crescente comunica-se, em contrapartida, aos jogadores, e assim por diante, ate que a tensao atinge um ponto em que apenas se pode suportar e conter, no limite, sem ficar incontrolada. Se, desta maneira, a excitagao se aproxima do climax e se entao ai, de repente, a sua equipa marca o golo decisivo, a excitagao resolve-se deste modo a si mesma na felicidade do triunfo e do jubilo, este e um grande jogo que ha-de ser recordado e sobre o qual cada um falara por muito tempo — um jogo realmente agradavel. Existem muitos «matizes» e graus de prazer e de satisfagao que o cognoscenti pode encontrar nestas actividades de lazer. Nem todas, de modo^algum, proporcionam uma satisfagao optima. Um jogo muito excitante pode ser perdido pela sua equipa. Nesse caso, as pessoas continuarao em geral a levar ainda para casa o gosto da sua excitagao agradavel, mas este divertimento nao sera tao puro como no primeiro caso. Mas um jogo muito bom pode acabar num empate. Nesta situagao, entra-se numa area de controversia. O consenso — muito elevado nos casos que temos mencionado — parece diminuir logo que se atinge o unico limite da escala que mencionamos, onde se encontra de novo um vincado nivel de consenso. No futebol, como em todos os outros factos mimeticos, existem sem duvida insucessos. Para uma pesquisa sobre os prazeres do lazer, nao e menos relevante estudar o caracter distintivo dos fracassos do que estudar aqueles que proporcionam uma satisfagao. Os jogos que nao satisfazem sao, por exemplo, aqueles em que uma equipa e tao superior a outra que a tensao esta ausente; sabe-se, de antemao, quern vai ganhar. Dificilmente existe ai qualquer surpresa e sem ela nao ha excita^ao. As pessoas nao sentem grande prazer em semelhante jogo. Poderiamos dar outros exemplos, mas foram referidos os essenciais. Nao seria dificil, pois, situar os factos mimeticos de um tipo particular ao longo de uma escala. Um dos seus polos pode ser representado pelos factos de lazer que proporcionam um prazer Optimo, o outro, por aqueles que, com um nivel elevado de consenso, sao considerados um fracasso. A maioria dos factos, como e evidente, ficaria situada entre os dois polos, mas uma boa parte da informagao pode obter-se a partir de uma analise dos dois extremos. Poderia servir-nos, em certa medida, como um estudo-piloto para
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a preparagao de estudos numa escala mais alargada. A investigagao sobre a estrutura dos factos que proporcionam satisfagao maxima e minima contribui por si mesma, em larga medida, para a compreensao da correspondencia entre a dinamica social de um tipo particular de facto de lazer como o futebol e a dinamica individual que conduz a uma maior ou menor satisfagao da parte dos participantes individuais. Embora estivessemos aptos para classificar o ultimo como psicologico e o primeiro como sociologico, eles existem, na verdade, de modo totalmente inseparavel, para o maior ou menor prazer daqueles que participam num tipo particular de facto de lazer, como actores ou como espectadores, e a raison d'etre* da existencia desses factos. Aquilo que fornece o criterio para a estrutura distintiva dos factos de lazer, para distinguir aqueles que sao bem sucedidos e os que sao um fracasso. Uma vez mais pode imaginar-se o desenvolvimento dos factos de lazer que, pela sua parte, tornam sensfvel e educam o seu piiblico para uma maior percepgao e enriquecimento. Desta forma, as divisoes academicas nao podem impedir o reconhecimento da fntima relagao existente entre aquilo que, de outra maneira, pode ser separado sob a forma de problemas fisiologicos, psicologicos e sociologicos. Nao seria muito diffcil referir tipos de investigates a respeito do futebol e de outros desportos que permitiriam atacar o mesmo problema a partir dos niveis individual e social ao mesmo tempo, desde que se estivesse preparado para utilizar um quadro tecnico mais complicado. Aquilo que foi dito aponta nessa direcgao. Seria perfeitamente possfvel, por exemplo, pelo menos ao nivel fisiologico, por meio de medidas efectuadas as variances de pulsagoes, ritmos cardfacos e de respiragao dos espectadores durante um jogo de futebol, determinar os aspectos mais elementares de subida e descida das ondas de excitagao assinaladas entre eles. Seria igualmente possfvel, em particular se forem utilizados filmes, determinar as vagas de elevagao e quebra no equilibrio de tensao de um jogo. Podia tentar encontrar-se quais, e de que modos, os aspectos fisiologicos de prazer e de excitagao dos espectadores sao diferentes perante jogos ao nfvel Optimo e aqueles que estao no limite oposto da escala. Nem seria diffcil apontar um con junto de pesquisas, de
*Em Frances no texto original. (N. da T.)
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A BUSCA DA EXCITA^AO NO LAZER
forma a aumentar o nosso conhecimento acerca das correspondencias entre a dinamica social dos jogos e a dinamica individual e da multidao de espectadores. Estes exemplos indicam um dos caminhos em que investigates empiricas, no campo relativamente controlavel do desporto, podiam servir como modelos para pesquisas sobre outras actividades de lazer, desde corridas de caes a tragedias, desde artefactos a poesia. De_um modo geral, continuamos num estadio em que ideias acerca daquilo que as pessoas devem fazer com o seu^temgp IrvrejDodem ter precedencia relativamente aos estudos sobre o que jj elas fazem de facto. For este motivo, trabalhos anteriores nem sempre se baseiam num conhecimento seguro da natureza e da( estrutura das actividades de lazer existentes tal como elas realmente ||\ sao.
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Do mesmo modo, ninguem pode dizer que possuimos ja um razoavel conhecimento adequado sobre as necessidades a que respondem as actividades de lazer. Tentamos assinalar, a este respeito, o que nos parece ser o problema central e fizemos uma proposta inicial mostrando a direcgao a partir da qual se pode encontrar uma resposta. Mesmo que esta seja insuficiente, parece util como um meio de colocar o problema numa perspectiva mais clara. Reunimos varios exemplos de diferentes tipos mimeticos, indicando como caracteristica comum nao a libertagao de tensao mas, antes, a produgao de tensoes de um tipo particular, o desenvolvimento de uma agradavel tensao-excitagao, como a pega fundamental de satisfagao no lazer. Na nossa sociedade, como em muitas outras, faz-se sentir uma necessidade corrente de motivagao de fortes emogoes que aparecem e, se encontram satisfagao, desaparecem, para so voltarem a manifestar-se algum tempo depois. Seja qual for a relagao que esta necessidade possa ter com outras necessidades mais elementares como a fome, a sede e o sexo — todos os dados acentuam o facto de -que esta representa um fenomeno muito mais complexo, um fenomeno muito menos puramente biologico —, pode bem consi-
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CAPITULO I
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derar-se que o desprezo quanto a atengao dedicada a esta necessidade constitui uma das maiores lacunas na abordagem dos problemas da saude mental. Em certa medida, o problema e obscurecido pelo sentido negativo com que o conceito de tensao e utilizado, tanto no discurso sociologico como no psicologico. Sublinhamos ja o facto de um jogo de futebol constituir, em si mesmo, uma forma de dinamica de grupo com uma determinada produgao de tensao21. Se esta tensao, se o tonus do jogo se torna demasiado fraco, o seu valor enquanto facto de lazer diminui. O jogo nao tera interesse e sera magador. Se a tensao se torna demasiado elevada, pode proporcionar bastante excitagao aos espectadores, mas tambem ocasiona, de forma identica, graves riscos para jogadores e espectadores. Passa da esfera mimetica para a esfera nao mimetica da crise grave. Ja neste contexto ha que abandonar-se o sentido negative do conceito convencional de tensao e substitui-lo por outro que permita uma tensao optima normal que pode, no decurso da configuragao dinamica, tornar-se demasiado alta ou demasiado baixa. Este conceito mais dinamico de tensao aplica-se nao so ao jogo de futebol enquanto tal, mas tambem aos participantes. Os individuos tambem podem viver com uma tensao produzida que e mais elevada ou mais baixa do que o normal, mas so nao possuem tensao quando morrem. Em sociedades como as nossas, que exigem uma disciplina emocional global e circunspecgao, a serie de sentimentos agradaveis fortes manifestamente expresses e severamente vedada. Para muitas pessoas nao e apenas na sua vida profissional, mas tambem nas suas vidas privadas, que um dia e igual ao outro. Para muitas delas nunca acontece nada de interessante, nada de novo. A sua tensao, o seu tonus, a sua vitalidade, ou o que quer que seja que se Ihe possa chamar, e, antes do mais, baixo. De uma maneira simples ou complexa, a um nivel baixo ou a nivel elevado, as actividades de lazer proporcionam, por um breve tempo, a erupgao de sentimentos agradaveis fortes que, com frequencia, estao ausentes nas suas rotinas habituais da vida. A sua fungao nao e simplesmente, como muitas vezes se pensa, uma libertagao das tensoes, mas a renovagao dessa medida de tensao, que e um ingre-
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Ver Cap. VI deste volume.
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A BUSCA DA EXCITA^AO NO LAZER
diente essencial da saiide mental. O caracter essencial do seu efeito catartico e a restauragao do tonus mental normal atraves de uma perturbagao temporaria e passageira da excitagao agradavel. O efeito pode nao ser totalmente compreendido a menos que se considere o risco muito elevado que as pessoas correm se se permitirem ficar excitadas. E a antitese do autodominio, da conduta racional ou razoavel. Aqueles que sao responsaveis pela lei e pela ordem, tal como se pode descobrir se estudarmos o desenvolvimento do futebol, lutaram muitas vezes amargamente contra o aumento subito da excitagao nas pessoas e, em particular, da excitagao colectiva, como uma grave perturbagao social. A agradavel excitagao que as pessoas experimentam em relagao a factos mimeticos representa, deste modo, um enclave social onde a excitagao pode ser desfrutada sem as suas perigosas implicates sociais e individuals, a qual muitas vezes e fruida a par de outras formas de aumentar o prazer. Isto significa que nesta perspectiva, e dentro de certos limites, uma outra forma perigosa de elevagao siibita de sentimentos fortes pode fruir-se se houver a aprovagao dos companheiros. ^ambiguidade peculiar que circunda a excitagao do lazer pode observar^s^jrutidamente, no nosso tempo, quando as pessoas oferecem a si proprias, em termos de experiencias, novos horizontes de excitagap. Sem uma nitida compreensao da fungao da excitagao mimejtica^as^activida^ des de lazer, sera dificil estabelecer as suas implicagoes individuals e sociais a partir dos factos,
CAPITULO II 0 lazer no espectro do tempo livre Norbert Elias e Eric Dunning
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O facto de as decisoes humanas se entrelagarem nao e nitido, provavelmente, senao para um filosofo1. Mas a maneira segundo a qual o fazem e diferente no trabalho profissional e nas actividades de tempo livre das pessoas. Alias, em relagao a estas ultimas, e diferente nas actividades que sao ou nao dedicadas ao lazer. Em certos aspectos, todas as actividades de um individuo tern outros individuos como quadro de referenda; noutras, o quadro de referenda e o proprio agente. No caso das actividades de trabalho, o equilibrio entre estes dois aspectos inclina-se a favor do primeiro, no caso das actividades de lazer, a favor do ultimo. O que significa que, no trabalho profissional, tal como ele esta estruturado nas nossas sociedades, as decisoes das pessoas no sentido de fazerem isto ou aquilo sao sempre tomadas, em grande medida, tendo em consideragao outros de quern se possa dizer «eles», ou jnesmo, a respeito de unidades mais impessoais, das quais se possa dizer «esse», embora, na verdade, o aspecto «eu» nunca se encontre ausente por completo2. Nas decisoes sobre actividades de lazer, como veremos, as referencias aos outros sao mais relevantes do que pode parecer a primeira vista, a consideragao por si proprio pode ter mais peso do que a que tera no caso do trabalho profissional ou no
^oi publicado um extracto desta comunicac.ao na obra de Rolf Abonico e Katarina Pfister-Binz, Sociology of Sport: Theoretical Foundations and Research Methods, Basle, 1972. 2 Para um debate sobre os pronomes pessoais como um modelo configuracional, ver Norbert Elias, What is Sociology?, Londres, 1978, p. 122 e seguintes.
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0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
das actividades de tempo livre que nao possuem o caracter de lazer. Quando se trata da escolha das suas proprias actividades de lazer, a consideragao pelo seu proprio prazer, pela sua propria satisfagao, pode ser soberana dentro de certos limites socialmente estabelecidos. Que tipos de satisfagao propprcionam e como as desencadeiam sao as questoes que continuam por esclarecer. Na actual literatura sociologica, pode notar-se uma tendencia para considerar o lazer como um rnero acessorio do trabalho3. A satisfagao agradavel, proporcionada pelas actividades de lazer, tende a ser considerada como um meio para atingir um determinado fim — o de perrnitir o alfvio das tensoes e de melhorar as capacidades das pessoas para ele. Contudo, se perguntarmos, desde logo, qual e a fungao "do lazer relativamente ao trabalho, a possibilidade de resposta torna-se dificil. SujaliabiLJSJEK^ de trabalho o lazer e a unica esfera publica em que as decisoes individuals podem ser tomadas considerando, antes de tudo, a satisfagao agradavel de cada um constitui ja um passo em frente no sentido do afastamento desse bloqueio. E um avango no sentido da crftica da abordagem sociologica, tanto teorica como empirica, que e dominante quanto aos problemas do lazer/ Nao pretendemos sobrecarregar este ensaio com a elaboragao de semelhante crftica. Parece mais adequado utilizar o espago disponivel para indicar, de uma forma positiva, ate onde se pode chegar se estas limitagoes forem abandonadas. J^rem,_j£lvezj^ resump de alguns, (f l)jO predominio de uma abordagem dos problemas do lazer centrado no trabalho garante uma certa consistencia no tratamento dos mesmos, mas esta solidez e, em larga medida, devida a um sistema de valores e de crengas aceite vulgarmente e que, no entanto, nao e indiscutivel. Nao seria totalmente injustificado afirmar que e nisso que reside a consistencia de uma ideologia do lazer: a essencia actual, as coisas boas e validas na vida de uma pessoa, que parecem ser a sua propria essencia, e o trabalho 3
Para examples representatives desta bibliografia, ver Stanley Parker, The Future of Work and Leisure, Londres, 1971; Joffre Dumazedier, Toward a Society of Leisure, Nova lorque, 1967; The Sociology of Leisure, Amesterdao, 1974; e Alasdair Clayre, Work and Play, Londres, 1974.
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que um individuo realiza. Durante as horas em que nao precisam de trabalhar, as pessoas fazem coisas que sao de menor valor ou, por inerencia, sem valor, e a sociedade e tolerante face as suas inclinagoes para os prazeres da ociosidade. No fundamental, diz-se que isto e uma mera forma de atenuar a fadiga e a tensao do trabalho. De acordo com esta ideologia do lazer, a principal fungao das actividades de lazer e a relaxagao dessas tensoes. Para colocar a questao de uma forma mais extrema, enquanto proposigao cientifica, este tipo de raciocinio, a ideia de que! as actividades de lazer devem ser consideradas como auxiliaresjj do trabalho, e uma hipotese que exige verificagao. Actualmente,jj ninguem parece ter uma ideia muito clara sobre o tipo de; esforgos do trabalho em relagao ao qual as pessoas procuraml alivio nos seus lazeres, a nao ser que o que se pretende dizer seja apenas fadiga e que, nesse caso, seria melhor ir para a cama do que ir ao teatro ou a um jogo de futebol. E visto que ninguem [ sabe que especie de «fadiga» ou de «tensao» o trabalho produz nas pessoas, ninguem sabe, tambem, como e que as nossas actividades de lazer actuam de forma a proporcionar relaxagao. |, Em vez da aceitagao cega das hipoteses convencionais integras das na linguagem de todos os dias e, decerto, muito melhor ; criar um novo ponto de partida e cada um dizer a si proprio: » i estajum problema^ein^er^^> Ninguem deve aceitar a tradicional de que a fungao das actividades de lazer se destina a permitir que as pessoas trabalhem melhor, nem sequer a ideia de que a fungao do lazer e uma fun^ao que so existe na perspectiva do trabalho. De modo equivoco, isto parece um julgamento de valor representado como uma declaragao de facto.^Existe uma boa dose de evidencia sugerindo que as estruidad^^]^ ^ ppr direito proprio, in^terdep^ndejnit^ de_a^i^ nao lazer, mas,_dp ponto ^jdite^£injcional^dej^alor_^ nao subordinadas a elas.Tantoas actividades de lazer como ^_ Ajjuestao reside no facto de descobrirjuais^sao. 2) iProvavelmente, isto e um sintoma 3o mesmo quadro de valores tradicionais que, apesar da importancia crescente que as activi-
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dades de lazer representam na vida actual das pessoas, tern como efeito que o lazer continue a ser relativamente desprezado como area de investigagao sociologica. Uma outra manifestagao do sentido negativo desta avaliagao pode ser encontrada em declaragoes que sublinham que o lazer e «irreal», «fantasia» ou, simplesmente, uma «perda de tempo», o que implica que so o trabalho e «real»4. Numerosas teorias actuals da sociedade revelam o impacte destas hipoteses. Os modelos das relates humanas integrados nos seus conceitos — em conceitos tais como «papel», «estrutura», «fungao», «sistema» e muitos outros, como vulgarmente se usam — desenvolveram-se, antes de tudo, a partir do tipo de relagoes humanas encontrado naquilo que pode chamar «as coisas serias da vida», na vida de nao lazer. Raramente assinalam tipos de relates de certo modo diferentes que, como veremos, estao por descobrir em muitas actividades de lazer. Sem a consideragao de diferentes tipos de relagoes, como os que estao por descobrir no lazer e no trabalho, as teorias sociologicas dificilmente podem afirmar que domixs^nam os factos observaveis da vida. n 3) A tendencia para explicar as actividades de lazer em termos da v^ sua fungao, como um meio de proporcionar «relaxagao das tensoes» ou «recuperagao das fadigas do trabalho», e um indicador dessa hipotese largamente divulgada nos textos contemporaneos da sociologia, traduzindo a ideia de que as tensoes devem ser avaliadas como algo negativo. Elas nao sao entendidas a partida como factos para serem investigados, mas, antes, como alguma coisa de que as pessoas se devem «ver livres». Deste modo, as investigates que abordam o lazer, acima de tudo, como um modo de libertar as tensoes podem induzir em erro; as avaliagoes dos seus proprios autores tomam o lugar de uma investigagao sobre as fungoes. S^^jensoes^evem ser , como perturbagoes das quais as 4 No que diz respeito a afirmagao de que o desporto e «irreal» ver, por exemplo, Gregory P. Stone, «American Sports: Play and Dis-play», Chicago Review, Vol. 9, n.° 3 (Fall, 1955), pp. 83-100, reeditado em E. Larrabee e R. Meyersohn (eds.), Mass Leisure, Glencoe, Illinois, 1958; e Eric Dunning (ed.) The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Lon.dres, 1971. Ver tambem Peter Mclntosh, Sport in Society, Londres, 1963, pp. 119-20; e Roger Caillois, Man, Play and Games, Londres, 1962, pp. 5-6.
CAPITULO II
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proprias pesspas se j^o£urani^^ tempo de lazer elas yoltafn^s^empre a progKarjimaJjQt£ns^fica^ao das tenspes? Em vez de condenar as tensoes como algo que prejudica, nao se deveria antes explorar as necessidades que as pessoas revelam por uma dose de tensao, enfim, como um ingrediente normal nas suas vidas? Nao se deveria antes tentar distinguir com maior clareza entre tensoes que sao sentidas como agradaveis e tensoes que sao sentidas como desagradaveis? E bastante facil ver que um denominador comum de todos os factos de lazer e o de estimular o aparecimento de tensao agradavel. Entao, o que significa dizer que a fungao do lazer e proporcionar relaxagao das tensoes? Esta e uma das questoes que exigem demonstra^ao. As pesquisas sociologicas de problemas do lazer tendem a ser prejudicadas pela consideravel confusao que existe na utilizagao dos termos. As vezes, por exemplo, nao ha uma clara distingao entre «lazer» e «tempo livre» como conceitos sociologicos5. Os dois termos sao utilizados, com frequencia, alternadamente. Os tipos de actividades a que se aplicam variam muito. Nao existe uma classificagao adequada destes tipos. Sem uma classificagao, como tern sucedido ate agora, continua obscuro o lugar do lazer no tempo livre das pessoas e a relagao entre os numerosos tipos de actividades de tempo livre. O «espectro do tempo livre» e uma tentativa de proporcionar uma tal classificagao. As deficiencias que mencionamos tiveram consequencias no piano e na direcgao do estudo sobre os problemas do lazer. Talvez seja suficiente apresentar dois exemplos: a) Os esforgos das investigates sociologicas tendem a concentrar-se em certas areas-limite das actividades de lazer. Por exemplo, os meios de comunicagao social sao um tema favorito de investigagao. Teatro, desporto, dangas com caracter social, a ida ao bar, concertos, touradas e um vasto campo de outras actividades de lazer raramente tern sido tratadas como temas 5
Dumazedier e alguns outros comegaram a delinear semelhante distingao, mas continua a ser comum, em escritos de sociologia do trabalho onde o Ia2er e referido, a dicotomia incorrecta entre «trabalho-lazer» e a tendencia para usar os termos «tempo livre» e «lazer» alternadamente.
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centrais de investigagao. A concentragao da investigagao na televisao, radio, jornais e outros meios de comunicagao social pode dever-se, em parte, a sua importancia como meios de socializagao politica e de controlo social e, tambem, a hipotese de que, enquanto actividades de lazer, preenchem uma fracgao de tempo maior do que outras actividades. Contudo, mesmo que fosse este o caso, sem uma investigagao mais alargada nao se pode afirmar que o tempo despendido pelas pessoas num tipo especifico de actividades de tempo livre e, necessariamente, uma medida do significado que ele tern para estas. Nao e impossivel que os meios de comunicagao social sirvam, como formas de preencher o tempo, como outra maneira de «se ocupar de futilidades», sendo isso uma das razoes para o aumento do tempo que Ihe e dedicado, num periodo em que o tempo livre talvez tenha aumentado mais depressa do que a capacidade das pessoas para o utilizar; b) Falta uma teoria central do lazer, capaz de servir como um quadro comum de investigagao relativamente a todas as especies de problemas especificos do lazer. Podera duvidar-se de que esta se desenvolva, enquanto a investigagao empirica estiver largamente confinada a areas muito limitadas das actividades de lazer. Sobre bases tao delicadas, nao se pode nem determinar nem explicar as caracteristicas e as fungoes que todas as actividades de lazer possuem em comum. Nao se pode dizer o que e que distingue as actividades de lazer de todas as outras actividades humanas. Este estudo tenciona ser um passo nessa direcgao. E um movimento no sentido de uma teoria do lazer unificada. Como veremos, por meio da clarificagao das caracteristicas comuns das actividades de lazer, tambem e possfvel apresentar de forma mais completa as caracteristicas que distinguem os diferentes tipos de actividades de lazer entre si.
2 0 espectro do lazer do tempo livre Observances criticas como estas indicam desde ja que e necessaria uma nova orienta^ao do pensamento antes que seja possi-
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vel compreender as relagoes e as diferengas entre as variadas actividades de tempo livre, entre as quais se inscrevem as actividades de lazer. O «espectro do tempo livre», que se encontra nas paginas a seguir, e uma tentativa de tragar um breve esbogo destas relagoes e diferengas. Propoe-se delinear aquilo que ate agora tern faltado, nomeadamente, uma ampla tipologia compreensiva e detalhada das actividades de tempo livre. Mostra, em smtese, que as actividades de lazer sao apenas um tipo entre outras. Ao mesmo tempo, indica a relagao entre o lazer e outras actividades de tempo livre. Como pode ver-se, a distingao e bastante obvia: todas as actividades de lazer sao actividades de tempo livre, mas nem todas as de tempo livre sao de lazer. Esta afirmagao, considerada de forma isolada, nao e particularmente reveladora. A sua pertinencia so e visivel no contexto do quadro teorico alargado integrado neste pequeno trabalho. Seria bastante estranho que fosse possivel, sem um tal esquema teorico, compreender com clareza o facto de que um grande numero de actividades de tempo livre nao sao dedicadas ao lazer. Isso nao permitiria, por assim dizer, que se atingisse o alvo em cheio. Qualquer classificagao de dados observaveis que seja arbitraria e inutil. Se o quadro de classificagao do espectro do tempo livre nao corresponder aos resultados de outras investigates neste campo, pode ser eliminado mas so no caso de estarmos em condigoes de Ihe oferecer, em bases novas, um substitute mais adequado. Tal como esta, o espectro do tempo livre revela, pelo menos, algumas caracteristicas estruturais que ligam entre si as varias categorias de actividades de tempo livre e que as distinguem de actividades de tempo nao livre do trabalho professional. O quadro teorico de base nele integrado emergira, progressivamente, no decurso deste artigo. Comegamos a organiza-lo em «A Busca da Excitagao no Lazer» (Capitulo I). No presente capftulo, vamos desenvolve-lo tendo em atengao uma classificagao mais compreensiva do lazer e de outras actividades. Nao se deve pensar que, para desenvolver este quadro de classificagao, a teoria unificadora que suporta o espectro do tempo livre tenha constituido a priori um ponto de partida. Este so emerge, de forma gradual, em constante fertilizagao cruzada com uma classificagao alargada de observances sobre as actividades de tempo livre. Tal como Brisaeus afirmou em relagao a Terra, na investiga^ao sociologica o pensamento teorico so conserva a sua
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0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
forga enquanto nao perder o contacto com o terreno firme dos factos empiricos. > Chamamos a tipologia que se segue um «espectro» devido a os varios tipos de actividades de tempo livre, como cores no espectro das cores, se confundirem entre si; sobrepoem-se e fundem-se com frequencia. Muitas vezes, combinam caracteristicas de varias categorias. Mas as propriedades de tais amalgamas, de todas as fronteiras e tipos em transigao, so podem ser compreendidas a partir das suas proprias caracteristicas. Uma vez que se comece de novo e o problema se encontre definido, a descoberta de caracteristicas estruturais comuns em actividades de lazer aparentemente diversas, de tragos que as distinguem como actividades de lazer das actividades de nao lazer, nao e particularmente dificil. For exemplo, como um indicador da orientagao do fio teorico que percorre o espectro, pode dizer-se que todas as actividades de lazer integram um controlado descontrolo das restrigoes das emogoes. Como se pode ver, as categorias do espectro do tempo livre consideradas como um todo podem distinguir-se pelo grau de rotina e de destruigao da rotina ou, por outras palavras, pelo diferente equilibrio entre os dois aspectos que nele se encontram integrados. A destruigao da rotina da-se mais rapidamente nas actividades de lazer mas, mesmo ai, e uma questao de equilibrio. A destruigao da rotina e o descontrolo das restrigoes sobre as emogoes estao bastante relacionados entre si. Uma caracteristica decisiva das actividades de lazer nao so nas sociedades industriais altamente ordenadas mas, tambem, tanto quanto se pode ver, em todos os tipos de sociedades, e a de que o descontrolo das restrigoes sobre as emogoes e controlado, ele mesmo, social e individualmente.
0 espectro do tempo livre
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1) Rotinas do tempo livre a) Provisao rotineira das proprias necessidades biologicas e cuidados 6
Seria possivel esbogar uma tipologia correspondente de formas de ocupagao fora do tempo livre baseadas no mesmo quadro teorico de referenda e apresentar nao so a diferenga mas, tambem, a continuidade do espectro do trabalho e do espectro do tempo livre. Num dos limites da escala, situam-se tipos de trabalho quase total-
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com o proprio corpo, por exemplo, comer, beber, descansar, dormir, fazer amor, fazer exercicios, lavar-se, tomar banho, resolver questoes relativas a alimentos e a doengas; b) Governo da casa e rotinas familiares, conservar a casa em ordem, organizar as rotinas, cuidar das lavagens de roupa, comprar alimentos e roupas, fazer preparativos para uma festa, resolver assuntos de impostos, administragao da casa e outras formas de trabalho (isto e, nao professional) privado para si proprio e para a sua familia; lidar com tensoes e fadigas familiares; alimentar, educar e cuidar das criangas; tratar dos animais. 2) Actividades intermediarias de tempo que servem, principal mente, necessidades de formagao e, ou tambem, auto-satisfagao e autodesenvolvimento. a) Trabalho particular (isto e, nao professional) voluntario para outros, por exemplo, participagao em questoes locais, eleigoes, igreja e actividades de caridade; b) Trabalho particular (isto e, nao professional), antes de tudo, para si proprio, de uma natureza relativamente seria e com frequencia impessoal, por exemplo, estudo privado com vista a progresses proflssionais, passatempos tecnicos sem valor proflssional obvio mas que exigem perseveranga, estudo especializado e competencia, tais como construir radios ou ser amador de astronomia; c) Trabalho particular (isto e, nao professional), antes de tudo, para si proprio, de um tipo mais ligeiro e menos exigente, por exemplo, passatempos como fotografia amadora, trabalho em madeira e colecgao de selos;
mente desprovidos de oportunidades intrmsecas e autonomas de ressonancia emocional agradavel, embora as pessoas consigam, com frequencia, processos de se desviarem de rotinas de trabalho, aridas, por inerencia, do ponto de vista emocional, atraves de formas especiflcas heteronimas de agradavel desempenho, por exemplo, as conversas futeis de camaradagem, o importunar recem-chegados, o brio quanto a competencia com que se realizam as rotinas, as vitorias em competigoes e lutas. No outro limite da escala, situam-se tipos de trabalho proflssional com oportunidades intrmsecas de comunicativa ressonancia emocional, como no caso do ensino ou da investiga^ao numa universidade, da participagao em confrontos parlamentares, de dirigir ou de tocar numa orquestra proflssional, de praticar um desporto ou actuar sobre o pako como um proflssional, de escrever romances e outras formas de satisfazer, do ponto de vista proflssional, as necessidades de lazer dos
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d) Actividades religiosas\ e) Actividades de formagao de cardcter man voluntdrio, socialmente menos controlado e com frequencia de cardcter acidental^ ordenadas a partir de formas de conhecimento mais serias, menos divertidas, para formas menos serias e mais interessantes^ de adquirir conhecimento, com muitas tonalidades interrnedias, tais como a leitura de jornais e de periodicos, audigao de debates politicos, assistencia a conferencias de educagao de adultos, visao de programas de televisao inforrnativos. 3) Actividades de lazer a) Actividades pura ou simplesmente, sociaveis: (i) Participar como convidado em reunioes mais formais, como casamentos, funerais ou banquetes; ser convidado para jantar em casa de um superior; (ii) Participar em lazer-gemeinschaften* relativamente informal, com um nfvel emocional manifesto e amigavel consideravelmente acima de outras actividades de tempo livre e de trabaIho, por exemplo, reunioes no bar ou em festas, encontros familiares, comunidades de conversa banal; b) Actividades de jogo ou « mimeticas »: i) Participar em actividades mimeticas (relativamente) de elevado nfvel organizativo, como um membro da organizagao, por exemplo, um teatro amador, clube de criquete, clube de futebol. Em tais casos, chega-se ao fulcro das actividades mimeticas de destrui^ao da rotina e de descontrolo e de experiencias, atraves de uma concha de rotinas e de formas de controlo aceites e partilhadas voluntariamente. Nesta categoria, a maior parte das actividades mimeticas envolve um grau de destruigao da rotina e de alivio das restrigoes, por meio de movimento do corpo, isto e, por meio da mobilidade corporal; (ii) Participar como espectador em actividades mimeticas bastante organizadas sem fazer parte da propria organizagao, com pouca ou nenhuma participagao nas suas rotinas e, de acordo com isso, com a destruigao relativamente diminuta da rotina, atraves de movimento, por exemplo, ver fiitebol ou ir a um
*«Lazer-comunitario» (N. da T.)
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iii) participar como actor em actividades mimeticas menos organizadas, por exemplo, danga e montanhismo; c) Miscelanea de actividades de lazer menos especializadas, com o cardeter vincado de agraddvel destruigao da rotina e com frequencia multifuncional, por exemplo, viajar nos feriados, comer fora para variar, relagoes de amor destruindo a rotina, cuidados nao rotineiros com o corpo, tais como banhos de sol, dar um passeio a pe. O espectro do tempo livre e um quadro de classificagao que indica os principais tipos de actividades de tempo livre nas nossas sociedades. Com o seu auxflio, podem observar-se rapidarnente factos que estao, com frequencia, obscurecidos pela tendencia para equacionar o tempo livre enquanto actividades de lazer: algumas actividades de tempo livre tern o caracter de trabalho, ainda que constituam um tipo que se pode distinguir do trabalho profissional; algumas das actividades de tempo livre, mas de modo algum todas, sao voluntarias; nem todas sao agradaveis e algumas sao altamente rotineiras. As caracteristicas especiais das actividades de lazer so podem ser compreendidas se forem consideradas, nao apenas em relagao ao trabalho profissional mas, tambem, em relagao as varias actividades de nao lazer, no quadro de tempo livre. Desta maneira, o espectro do tempo livre contribui para dar maior precisao ao problema do lazer. O campo de exploragao aberto pelo espectro do tempo livre e francamente extenso. Como se podexver, para ele e fundamental o grau da rotina caracteristico das suas varias ligagoes. Entendemos «rotinas» como sendo canais correntes de acgao reforgada por interdependencia com outros, e impondo ao individuo um grau bastante elevado de regularidade, estabilidade e controlo emocional na conduta, e que bloqueiam outras linhas de acgao, mesmo que estas correspondam melhor a disposigao, aos sentimentos, as necessidades emocionais do momento. O grau de rotina pode variar. Em geral, o trabalho profissional e muito rotineiro e, deste modo, numerosas actividades de tempo livre sao classificadas em 1, sendo um pouco menos aquelas que se classificam em 2 e ainda menos as que se classificam em 3. Algumas das outras actividades de tempo livre, como se pode ver, transformam-se em actividades de lazer. Com o decorrer do tempo nao poderemos deixar de Ihes prestar atengao. Contudo,
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dado que so se pode avangar gradualmente, um numero consideravel de problemas levantado pelo espectro do tempo livre nao pode ser aqui resolvido. As caracteristicas distintivas que se encontram no fulcro das actividades de lazer ja foram mencionadas. Numa sociedade em que a maior parte das actividades estao submetidas a rotina, em ligagao com uma interdependencia forgada de grande numero de pessoas, e com os tipos correspondentes de objectivos pessoais e impessoais que reclamam uma elevada subordinate as necessidades emocionais imediatas, em relagao aos outros ou a um trabalho impessoal, as actividades de lazer proporcionam — dentro de certos limites — oportunidades para experiencias emocionais que estao excluidas dos sectores altamente rotineiros da vida das pessoas. As actividades de lazer sao uma categoria de actividades em que a restrigao rotineira de emogoes pode, ate certo ponto, ser publicamente reduzida e com aprovagao social, mais do que qualquer outra. Neste caso, um individuo pode encontrar oportunidades para um intenso despertar de agradaveis emogoes de nivel medio sem perigo para si proprio, quer se trate de um individuo de sexo masculino ou feminino, e sem perigo ou risco persistente para outros, visto que noutras esferas das actividades da vida, acompanhadas por sentimentos fortes e intensos, tao pouco comprometem o individuo para alem do momento do intenso despertar ou o levam a incorrer em graves perigos e riscos — se nao estao todos bloqueados pela subordinate rotineira dos sentimentos pessoais imediatos e objectivos exteriores a si proprio. Nas actividades de lazer, a consideragao de si proprio e, em especial, da sua satisfagao sob uma forma mais ou menos publica e, ao mesmo tempo, socialmente aprovada, pode ter prioridade sobre todas as outras. O grau de compulsao social, no sentido da participagao, tambem e marcadamente mais baixo e a serie de escolhas voluntarias individuais e, por correspondencia, mais elevada nas actividades de lazer do que noutras actividades de tempo livre, em particular as de tipo 1, para nao mencionar as actividades profissionais. Atraves de todo o espectro situa-se um piano inclinado de maior ou menor decrescimo de constrangimento social — com numerosas variedades e matizes entre estes tipos de compulsao e de vontade individual — em relagao as actividades de lazer no limite inferior. Tal como ficou aqui entendido, as ocupagoes de lazer oferecem um
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campo de acgao mais vasto para um divertimento individual intenso e relativamente espontaneo de curta duragao do que qualquer outro tipo de actividades publicas. Representam uma esfera de vida que oferece mais oportunidades as pessoas de experimentarem uma agradavel estimulagao das emogoes, uma divertida excitagao que pode ser experimentada em publico, partilhada com outros e desfrutada com aprovagao social e boa consciencia. O despertar de emogoes agradaveis nas actividades de lazer esta, em muitos casos, relacionado com tipos especificos de tensao aprazivel, com formas de excita^ao agradavel que sao especificas desta esfera da vida, embora se pudesse esperar que estivessem geneticamente relacionadas com outros tipos de excitagao. Como veremos, a excita^ao no lazer implica o risco de se transformar a si mesma nos outros tipos. O risco — indo ate ao limite — e essencial para inumeras actividades de lazer. Com frequencia, constitui parte integrante do prazer. De que modo e por que motivos e que as institutes e factos de lazer oferecem oportunidades para este tipo de experiencias e uma questao que exige estudo. Mas pode ja dizer-se que esta fungao e um aspecto-chave da maioria senao de todas essas experiencias. No con junto das actividades de lazer, todas integram um tipo peculiar de risco. Sao capazes de desafiar a rigorosa ordem da vida rotineira das pessoas sem colocar em perigo os meios de subsistencia ou o seu estatuto. Permitem as pessoas tornar mais faceis ou ridicularizar as normas da sua vida de nao lazer, e todos o fazem sem ofender a consciencia ou a sociedade. Envolvem «brincar com as normas» como um «brincar com o fogo». Por vezes, vao longe de mais. A renovagao emocional proporcionada por este acto de brincar com as normas merece um exame mais profundo, quer para o seu proprio conhecimento quer para o beneficio do que, a partir dela, podemos aprender sobre nos proprios.
E facil verificar que as instrugoes e factos de lazer se estruturam a fim de proporcionar uma excitagao agradavel ou, pelo menos, um agradavel estimulo das emogoes, em combinagao com um grau relativamente elevado de escolha individual. A questao e a seguinte: como e que eles actuam no sentido de propiciar este tipo
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de experiencia e porque e que oferecem uma forma de recuperagao emocional especifica? Porque e que a necessidade deste tipo de renovagao esta tao disseminada e, pelo menos, no nosso tipo de sociedade, porque e tao premente que as pessoas gas tern tan to dinheiro em busca dela? E que correspondencia existe entre a estrutura das institutes e dos factos de lazer e a estrutura dos seres humanos, das pessoas que procuram estas satisfagoes especificas atraves da participagao neles? De modo a responder a estas questoes de uma maneira geral, sera util analisar, por momentos, algumas hipoteses mais alargadas, que sao bastante comuns nas teorias sociologicas contemporaneas, antes de as considerarmos de uma forma mais detalhada, com o auxilio de alguns tipos especificos de actividades de lazer. Nao se pode esperar que seja possfvel examinar este tipo de questao sem proceder a consideragao critica destas hipoteses. Eis aqui uma das areas em que se torna visfvel o apoio da sociologia do lazer aos problemas gerais da teoria sociologica e, num sentido mais vasto, a propria imagem dos seres humanos. O exame que se torna necessario pode ser realizado, da melhor maneira, em dois passos. O primeiro consiste na reflexao sobre algumas das teorias sociologicas, traduzidas, com frequencia, pela utilizagao actual de conceitos tais como «normas» e «valores». De acordo com esta ideia, verifica-se a tendencia para pensar e falar, por exemplo, como se os seres humanos que formam a sociedade se regessem, em todas as suas actividades, por um unico con junto de normas7. E facil ver que, de facto, as pessoas em sociedade seguem, frequentemente, normas diferentes em esferas distintas das suas vidas. As normas, por outras palavras, sao, ate certo ponto, a «esfera-limite»: determinada conduta, que pode ser normal numa esfera, pode ser um desvio noutra. Se o lazer for considerado como uma esfera e o nao lazer como outra, isto e precisamente aquilo que se observa: em ambas as esferas os seres humanos seguem certas normas, mas as normas sao diferentes, por vezes contraditorias. Deste modo, quando Laurel e Hardy trazem uma arvore de Natal a um cliente, ela flea presa na porta e atiram a porta ao chao, e o cliente Ihes bate e todos ficam loucos numa orgia de destruigao, nos rimos as gargalhadas, embora, tanto eles como nos, estejamos a agir 7
Esta tendencia e, talvez, mais comum no trabalho de Talcott Parsons.
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em oposigao as normas da vida de nao lazer, eles por baterem uns nos outros, nos por nos rirmos devido a isso. Num combate de boxe, as normas da vida de nao lazer, como aquelas que proibem a agressao ffsica sobre os outros, sao suspensas e outras normas tomam o seu lugar. As comunidades de bebidas desenvolvem, tambem, normas especificas de lazer; por exemplo, que se pode beber mais, mas nao se deve beber menos do que os outros e que se pode ficar um pouco embriagado, mas nao demasiado. Em resumo, nao se podem determinar as inter-relagoes funcionais das actividades de lazer e de nao lazer sem integrar nesse modelo teorico a pluralidade de codigos interdependentes adequados a cada um deles. Este e o primeiro passo que e necessario dar no sentido da critica de uma hipotese muito difundida na sociologia contemporanea, is to e, a presungao de que as normas de todas as sociedades sao monoliticas e todas formando um so bloco. Mas ha que ir um pouco mais alem no estudo critico destes conceitos. Num exame mais minucioso, depressa se descobre a forma surpreendente como se mantem o uso destes termos. Nao se pode passar inteiramente por cima deste facto mesmo que nos preocupemos apenas com a sociologia do lazer. Assim, tal como hoje e usado, o termo sociologico «norma» pode bem referir-se a uma quantidade de tipos diferentes de fenomenos. Pode referir-se pura e simplesmente a preceitos morais que se considera serem validos para todos os seres humanos. Pode referir-se a normas seguidas num grupo nacional particular, mas nao por outros. Pode ser aplicado a questoes linguisticas. As pessoas podem dizer: «Voce tern de formar a primeira pessoa do singular dizendo "eu sou" e nao "eu ser".» Ou noutros casos (porque as normas gramaticais nao sao, de modo algum, o unico tipo de normas linguisticas): «Esta e a forma como deve pronuncia-lo: "Beaver" e nao "Belvoir".»8 Noutras circunstancias, a palavra pode referir-se a regras de um jogo. Deste modo, as normas nao tern a forma de preceitos muito generalizados, tais como «os soldados tern de obedecer as ordens dos seus ofkiais-comandantes», que Parsons menciona como um exemplo do seu conceito de normas9; elas podem, tambem, por exemplo, 8
Belvoir Street (pronuncia-se Beaver Street) e uma rua bem conhecida em Leicester. 9 Ver Talcott Parsons, The Struture of Social Action, Nova lorque, 1949, p. 75.
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tomar a forma de um quadro de referenda para os movimentos entrelagados dos jogadores num tabuleiro de xadrez ou num campo de futebol. Desta forma, num jogo particular pode nao ser possfvel deslocar A se o seu adversario estiver em condigoes de movimentar B, mas pode faze-lo se o seu opositor nao estiver em situagao de fazer mover B. Contrariamente as normas do tipo das leis morais, que parecem nao ser delimitadas por configurates especiais, as normas do tipo daquelas das regras do jogo sao limitadas por uma configuragao10. Este e um dos muitos casos que mostra que as afirmagoes sobre aquilo que as pessoas deviam ou nao deviam fazer nao necessitam de seguir o modelo altamente organizado que, frequentemente, parece determinar o uso da palavra «norma» no discurso sociologico, o modelo de uma lei moral geral para casos individuals identicos. As normas podem seguir tambem modelos que constituem um nivel inferior de generalidade e um tipo de abstracgao tal como as regras de um jogo. Nao existe razao, excepto no ambito de uma tradigao filosofica nao verificada, que permita aceitar que menor generalidade significa exactamente o mesmo que menor valor epistemologico ou cientifico. As caracteristicas dos diferentes tipos de normas podem ser avaliadas, como as do tipo de lei moral e o tipo de regra do jogo, independentemente de quaisquer associates de valor. Ambas constituem regulamentos sociais de individuos que actuam em grupos. Todavia, o primeiro tipo e modelado por regulamentos altamente interiorizados. Como as ordens de consciencia de cada um, as normas sociais deste tipo parecem nao exigir, nem sequer serem capazes de qualquer outra explicagao adicional. Nao se pergunta como tiveram origem ou se podem mudar ou desenvolver e, se assim for, o que as leva a isso. Sao entendidas como a origem, a fonte da acgao social, que, mais uma vez, como a nossa propria consciencia, parecem nao vir de parte alguma — as quais, embora obriguem as pessoas a reunir-se em sociedades, parece que nao descendem nem sao dependentes de qualquer outra coisa. Normas deste tipo possuem o caracter de leis gerais para decisoes que cada indivfduo tern de tomar por si mesmo, seja de que sexo for, independentemente de todos os outros. 10 Para uma discussao do conceito de configurates, ver Elias, What is Sociology?, p. 13 e seguintes.
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O outro tipo de normas que e util considerar aqui, o tipo de norma concebido atraves das regras de jogo, tern, em muitos aspectos, caracterfsticas diferentes. Ainda que ambos representem regulamentos de individuos e as do tipo daquelas que constituem as regras do jogo, estao centradas no grupo. Dado que esta centrado no individuo, o tipo de normas das leis morais nao se refere explicitamente a grupos especificos. As normas das regras do jogo, por outro lado, sao preceitos bastante explicitos para individuos integrados em grupos especificos limitados. O primeiro refere-se habitualmente a actos singulares de individuos num determinado momento, o ultimo diz respeito as dinamicas de entrelagamento de actos individuais, a estrategias individuals na sequencia do tempo e aos movimentos dos jogadores numa configuragao dinamica de pessoas. Alem disso, de acordo com o modelo de consciencia, as primeiras sao habitualmente concebidas como absolutas, rigidas e inalteraveis, e as ultimas representam um quadro flexivel para as actividades do grupo dentro do qual cada jogador, seja do sexo masculino ou feminino, pode desenvolver regras proprias ou mesmo novas regras, no quadro de uma progressao. Deste modo, no futebol, um jogador de campo ou um guarda-redes podem criar a sua propria tecnica, que desenvolvem e respeitam na situagao concreta das suas experiencias de jogo. Uma determinada equipa especifica de jogadores cria a sua propria tradigao, uma maneira de jogar integrando normas especificas, que sao normas dentro das normas, isto e, no quadro daquelas em que todos os jogos de futebol ou de netball* se realizam. Por seu lado, estas sao regras no ambito de outras regras de variados niveis, por exemplo, das regras comuns a todos os jogadores amadores, tal como se encontra estabelecido pelo Comite Olimpico, ou das regras legais de um pais, que integram, por sua vez, algumas prescribes morais nao escritas que se considera serem validas para todos os seres humanos e assim por diante. A seu tempo veremos, sem duvida, como e inadequado o conceito de nfvel-unico de normas, modelado nas prescribes individuais profundamente interiorizadas. Nao so a analise particular *Jogo de equipa no qual a bola tern de ser lan^ada de forma a ser introduzida num aro colocado na horizontal a uma altura relativamente elevada e que possui uma rede suspensa. (N. da T.)
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de uma equipa de futebol, mas uma analise mais profunda das estrategias de entrelagamento de individuos em grupos revela, geralmente, normas de varios niveis — normas dentro de normas ou regras dentro de regras — que podem mudar de acordo com novos desenvolvimentos e experiencias na sociedade. Investigates empiricas, tais como as do processo de civilizagao e de desenvolvimento do futebol, mostram com muita clareza que, de facto, as normas desenvolvem-se como parte da estrutura da sociedade11. Ate agora, contudo, nas teorias sociologicas, as normas foram habitualmente tratadas como absolutas, como o final de todas as questoes: e assim que as normas de consciencia sao compreendidas na imediaticidade da propria experiencia de cada um, mesrno que se possa saber — ao nivel da reflexao — que elas foram assimiladas e interiorizadas atraves da aprendizagem, no decurso de um processo de civilizagao. Nao existe ponto zero, nao existe um inicio para o jogo-envolvimento dos seres humanos e, por isso, tambem nao existe inicio de normas ou regras. Um ser humano envolve-se a partir do exterior num jogo de comportamentos com os outros e, juntarnente com eles, sejam do sexo masculino ou feminino, pode, conscientemente ou nao, contribuir para uma mudanga nas regras de acordo com as quais ele se joga.
4 O segundo dos dois passos mencionados consiste na utilizagao de jogos como modelo para as relagoes entre as actividades de lazer e de nao lazer. Ao proceder desta maneira e encorajado por avaliagoes ocultas e nao testadas, pode ser mais facil compreender a relagao entre aquelas actividades; pode ser menos diffcil perceber que ambas nao sao simplesmente as actividades de individuos, mas as actividades de individuos no quadro de grupos especificos. Isto e perfeitamente obvio se alguem estudar as actividades de lazer de sociedades menos urbanizadas e menos diferenciadas que sao quase sempre as dos comunitarismos. Isso e menos obvio, mas nao menos n Ver Norbert Elias, The Civilizing Process, Oxford, 1978, e Eric Dunning e Kenneth Sheard, Barbarians, Gentlemen and Players: a Sociological Study of the Development of Rugby Football, Oxford, 1979-
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correcto, a respeito de sociedades urbanas e industrials, ainda que o campo de acgao para a escolha individual a respeito de actividades de lazer seja muito mais vasto. Contudo, por maior que ele seja, nao e de maneira nenhuma ilimitado. Nas sociedades mais desenvolvidas, a escolha individual das actividades de lazer tambem depende das oportunidades construidas antecipadamente, e estas mesmas actividades sao habitualmente moldadas por fortes necessidades de estimulagao social, directamente ou em convivencia com o lazer mimetico. A teoria do lazer aqui exposta permaneceria incompreensivel enquanto nao se percebesse, com toda a clareza, que as actividades de lazer sao actividades sociais tanto nas sociedades muito diferenciadas como nas sociedades mais simples. Mesmo que tomem a forma do isolamento de um indivfduo, elas sao intrinsecamente dirigidas tanto a partir dos outros, como e o caso de alguem, de qualquer sexo, que ouve um disco ou le um livro, ou desse individuo relativamente aos outros —- quer se encontrem presentes em carne e osso ou nao —, como e o caso de alguem que escreve poesia ou toca violino sozinho. Em resumo, sao comunicagoes recebidas ou enviadas por pessoas dentro de configuragoes de grupo especificas. E isso o que se procura transmitir atraves do modelo de jogos. Com frequencia, o caracter essencialmente social das actividades de lazer nao e verificado nas reflexoes que procuram avaliar se as actividades de lazer sao «reais» ou simples «fantasias». Por exemplo, nao e pouco frequente encontrarem-se afirmagoes como as de William Stephenson, de acordo com as quais a distingao entre trabalho e jogo «depende do que e a fantasia e, de certo modo, a irrealidade do mundo que constitui o jogo, e o que e real no mundo que const itui o trabalho »12. Tambem se pode referir Roger Caillois, que acentua, frequentemente, a «irrealidade» dos jogos13. As dificuldades inerentes a toda esta discussao sao essencialmente devidas a dois factores. O primeiro e a avaliagao implicita que frequentemente determina aquilo que e considerado como real e aquilo que o nao e. Deste modo, a avaliagao do trabalho como real e do lazer como irreal encontra-se profundamente relacionada com 12
William Stephenson, The Play Theory of Mass Comunication, Chicago, 1967,
p. 46. 13
Caillois, Man, Play and Games, pp. 5-6.
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as tradigoes e valores de uma sociedade em que o trabalho e um dos valores mais elevados, enquanto o lazer e, com frequencia, encarado como uma futilidade inutil. Representantes de certas sociedades, por exemplo Aristoteles, com um sistema de valores que avaliava o lazer de forma mais digna do que o trabalho, dificilmente teriam concordado com a considerable do lazer como «irreal». O segundo factor e a incapacidade de levar em linha de conta o unico contexto em que o termo «real» possui um significado factual, o qual pode ser verificado a luz de uma prova susceptivel de demonstragao. Isto e, a utilizagao do conceito «real» como antonimo daquilo que sao sonhos e fantasias puramente individuals, em particular os sonhos e as fantasias de pessoas doentes, os quais nao se podem comunicar no sentido comum dessa palavra, e que nao fazem sentido para os outros, excepto para um medico. Nesta linha, «realidade» e uma propriedade de todas as actividades humanas que se sujeitam a disciplina da comunicagao, enquanto «irrealidade» e uma propriedade de todas as fantasias individuals nao partilhadas por outros. Este esclarecimento nao estipula mais uma divisao estatica e absoluta entre o que e real e o que e irreal deixa espago para diferentes tipos e niveis de realidade. Isso implica que todas as actividades humanas que se baseiam na comunicagao, possuindo o caracter de movimentos realizados pelas pessoas num jogo, sao reais. Os agrupamentos de pessoas no lazer e fora das suas actividades de lazer sao, sem qualquer duvida, diferentes entre si. E esta a diferenga que nos procuramos expressar ao dizer que o lazer e o nao lazer sao jogos realizados por grupos de pessoas entre si, de acordo com regras diferentes. Nao ha duvida de que no lazer as fantasias de jogo e emogoes de todos os generos sao permitidas em proporgao muito maior do que na vida de nao lazer das pessoas, mas sao fantasias socialmente padronizadas e comunicadas, fantasias cristalizadas numa pega teatral, numa pintura, num jogo de futebol, numa sinfonia, numa corrida de cavalos, danga ou aposta. Em contraste com fantasias puramente privadas, nao socializadas, elas sao tao reais em termos de participagao de seres humanos como o tempo livre em que se dedica atengao aos seus filhos ou a sua mulher ou, ne§se caso, ao seu trabalho. Talvez se torne possivel facilitar a compreensao deste esclarecimento essencialmente simples por meio de uma ligeira mudanga na
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utilizagao dos termos. Pode hesitar-se em considerar pinturas, romances, pegas de teatro e filmes como «reais» enquanto estes se agruparem teoricamente sob o titulo de «actividades de lazer»; pode considerar-se mais facil aceita-las como «reais» se elas forem em teoria agrupadas sob o titulo de «cultura». Muitas vezes impede-se a compreensao do que e obvio devido, simplesmente, a diferengas de valor ocultas no sentido das palavras. Mas se o facto de as actividades de lazer e as de nao lazer serem actividades sociais, isto e, jogos realizados por grupos de pessoas, assegura a sua realidade, apesar disso estes sao jogos de um tipo diferente. O estudo a fazer e, porem, determinar a sua interdependencia funcional na sociedade, assim como as suas caracteristicas distintivas (das quais uma boa parte ja foi referida). Isso contribui para uma melhor compreensao das nossas sociedades, para se ver que, neste caso como noutros, as pessoas jogam entre si, nao so um mas diversos jogos interdependentes com regras diferentes. Os jogos de lazer e de nao lazer sao um exemplo destes jogos complementares. Existem muitos outros. Em certos casos, sao praticados dois ou mais jogos em simultaneo como, por exemplo, no caso das relagoes «formais» e «informais». Diversos outros jogos interdependentes sao jogados em tempos diferentes, como no caso de «jogos de guerra» e «jogos de paz». A relagao entre lazer e nao lazer e do ultimo tipo. A estrutura distintiva dos dois tipos de jogos, a sua relagao entre si, bem como as fungoes de cada um deles para aqueles que jogam, exige um exame mais profundo. Alguns aspectos destas diferengas podem ser apresentados com grande brevidade. O espectro do tempo livre e os comentarios que se seguem pretendem evidencia-los. As actividades dominantes nos jogos de nao lazer sao dirigidas por objectives. Possuem o caracter de vectores em linha recta. As suas fungoes primarias sao fungoes para outros, para «eles» ou para organizagoes impessoais, tais como casas de negocios ou Estados-nagoes, embora elas possam ter tambem fungoes secundarias para si proprio. Isto pode envolver, e de facto assim sucede habitualmente, satisfagao atraves de mensagens e de estimulagao recebida dos outros, mas a satisfagao pessoal para aqueles que estao envoividos no jogo permanece a sua fungao primaria. Neste sentido, pode dizer-se que o lazer constitui um enclave socialmente consentido, de concentragao sobre si proprio, num mundo de nao lazer que necessita e obriga a predominancia
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de actividades centradas nos outros. Enquanto as ultimas sao dirigidas por objectivos e actuam como vectores, as primeiras, em sentido figurado, possuem o caracter de «ondas». Os sentimentos despertados pelas actividades de lazer tornam-se tensos entre polos opostos tais como medo e exaltagao, e actuam, por assim dizer, de um lado para o outro. E so a falta de adequagao dos nossos conceitos tradicionais e dos nossos utensilios de linguagem que torna dificil expressar e compreender que, nas ocupagoes de lazer, sentimentos aparentemente antagonicos como o medo e o prazer nao sao apenas opostos um ao outro (como «logicamente» parecem estar) mas partes inseparaveis de um processo de satisfagao de lazer, porque as satisfagoes de lazer so podem ser conceptualizadas como processes. Nesse caso, pode dizer-se que nao e impossivel nenhuma satisfagao a partir das ocupagoes de lazer sem pequenas fracgoes de medo a alternarem com agradaveis esperangas, breves alvorogos de ansiedade a alternarem com alvorogos de antecipadas agitagoes de delei te e, em alguns casos, atraves de vagas deste genero, resultando num climax catartico, no qual todos os medos e ansiedades podem resolver-se temporariamente, deixando so por breves momentos, o gosto da fruigao da agradavel satisfagao. E este o motivo por que as formas de excitagao desempenham um papel central nas actividades de lazer. So deste modo se pode compreender a fungao do lazer na destruigao da rotina. As rotinas integram um nivel elevado de seguranga. Sem se expor a si proprio a um certo nivel de inseguranga, a um maior ou menor risco, a incrustagao das rotinas nao se perderia nem se deslocaria, ainda que temporariamente, e a fungao das actividades de lazer perder-se-ia. Contudo, as actividades especificas de lazer podem perder a sua fungao de destruigao da rotina. Conservam-na somente em relagao a um dado con junto de rotinas. Actividades que hoje possuem uma fungao de destruigao da rotina podem tornar-se rotineiras atraves da repetigao ou atraves de um grau de controlo demasiado rigido e, deste modo, perdem a fungao de proporcionar excitagao. Nesse caso, deixam de proporcionar um grau de inseguranga, de satisfazer a expect at iva de algo inesperado e arriscado, a tensao, a excitagao da ansiedade que as acompanha. Estes altos e baixos, vagas breves ou longas de agradaveis sentimentos antagonistas tais como esperanga e medo, exaltagao e abatimento, sao uma das fontes de renovagao emocional de que ja falamos antes. Ate mesmo os preparati-
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vos para passar um feriado num lugar que e novo — o que, em face disso, pode parecer francamente agradavel — implica saborear em antecipagao o inesperado que se pode encontrar ai e, ao mesmo tempo, possivelmente no temor de uma ligeira incerteza, a possibilidade de encontros desagradaveis ou instalagoes desconfortaveis, ou a esperanga de fazer alguns conhecimentos novos totalmente encantadores. For conseguinte, mesmo neste caso existem feixes de ansiedade misturados com uma agitagao de antecipado prazer. Pode ver-se, desde ja, que a interdependent funcional do lazer e do nao lazer (para o qual nao possuimos no presente, nenhum termo de classifkagao adequado), entre os aspectos que constituem a rotina das nossas vidas e os enclaves de destruigao de rotina situados no seu interior, so podem ser expresses em termos de equilibrio. As proprias actividades de lazer podem tornar-se rotineiras, podem facilmente, se nao houver mais nada, esvaziar-se de qualquer fimgao. E as rotinas? Poderemos nos prosseguir uma vida equilibradamente rotineira sem enclaves de lazer? Formular esta questao e avangar para o fulcro do problema. Nao pretendemos dizer que nao existam pessoas que nao vivam de maneira semelhaate. E possivel que nas nossas sociedades grande numero de pessoas viva uma vida totalmente rotineira, completamente sem interesse e sem qualquer relevo, nao so as pessoas idosas, entre as quais parecem ser bastante frequentes as faltas de lazer — em parte, porque, nao obstante continuarem vivos, as suas vidas tornam-se gradualmente menos «reais» a medida que deixam de participar nos jogos do trabalho e tambem nao podem encontrar ou nao podem iniciar uma participagao adequada nos jogos de lazer —, mas, igualmente, entre pessoas de meia-idade, porem, talvez menos entre os jovens. Existe ai uma certa evidencia sugerindo que a ausencia de equilibrio entre actividades de lazer e de actividades de nao lazer implica um determinado empobrecimento humano, alguma secura de emogoes que afecta toda a personalidade. Talvez aqui se possa ver com maior nitidez os perigos inerentes a qualquer classificagao das actividades de lazer como «irreais». Pode avangar-se mais um passo ao apresentar, pelo menos, um modelo provisorio das fimgoes de equilibrio das actividades de nao lazer e das que pertencem ao lazer nas nossas sociedades. A con-
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ceptualizagao que e dominante em relagao a esta interdependencia entre lazer e nao lazer, em termos de relaxagao das fadigas e das tensoes, e enganadora porque, entre outras razoes, sugere que o trabalho professional, tal como as actividades de tempo livre profundamente rotineiras, produz tensoes, enquanto a natureza dessas tensoes permanece obscura. De modo vago, o termo «tensao » surge neste contexto com frequencia identificado com fadiga. Nesta base, o caracter das actividades de lazer, o facto de elas proprias criarem tensoes, que respondem a necessidades de estimulagao, a uma procura de excitagao, como o dissemos antes, permanece incompreensfvel. Que genero de tensao e esta que e contrabalangada atraves de outro genero de tensao, e encontra uma fesolugao atraves dela, que e motivada e talvez agradavelmente solucionada pelas actividades de lazer?
5 Nao e possivel responder a este tipo de questoes sem ter em consideragao aspectos de lazer que, segundo as actuais convengoes, permanecem fora do campo de pesquisa da sociologia. O problema que aqui se nos depara foi sentido do principio ao fim desta investigagao. E tempo de o colocar abertamente. E possivel, e esta a questao, elaborar uma teoria de lazer razoavelmente adequada no quadro de qualquer ciencia humana particular, como a sociologia, a psicologia ou, neste dominio, a biologia humana, se as suas relagoes permanecem obscuras, tal como sucede hoje em dia? De facto, os problemas de lazer pertencem a esta vasta classe de problemas que, no estadio actual do desenvolvimento da especializagao cientifica, dizem respeito nao so a dois mas a diversos ramos do conhecimento. Eles nao se ajustam inteiramente ao quadro de referenda de qualquer uma destas ciencias segundo a maneira como estas se encontram constituidas no presente, mas pertencem antes ao territorio inexplorado da terra de ninguem que existe entre elas. Se a sociologia e considerada como uma ciencia que negligencia aspectos psicologicos ou biologicos dos seres humanos, se a psicologia ou a biologia humana se consideram ciencias que podem intervir isoladamente, sem ter em atengao os aspectos sociologicos, os problemas do lazer serao deixados de lado. De facto, estes problemas
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mostram de forma clara que as limitagoes inerentes a compartimentagao dos seres humanos podem constituir um tema de estudo cientifico. O espectro do tempo livre, como um modelo classificador, revelou ja que nunca sera suficiente distinguir diferentes aspectos separados das pessoas sem um quadro global de referenda que assinale as suas relagoes. A concepgao actual das varias ciencias considera estes aspectos como se eles existissem, de facto, independentemente uns dos outros. A separagao e total. Nao existe um quadro global de referencia que indique como e que estes diversos aspectos se ajustam entre si. Ao situar as actividades de lazer no quadro mais alargado do tempo livre, referimos ja que os problemas com que se defronta o investigador, embora reclamem uma distingao, nao autorizam a separagao entre os aspectos da realidade que habitualmente sao estudados por uma das ciencias humanas. Se as pessoas vao ao teatro, a um baile, a uma festa ou as corridas, e porque no lazer elas podem, tal como dissemos antes, escolher como se ocupar de uma maneira que favorega a experiencia do prazer. Deste modo, o prazer, as perspectivas de um tipo especifico de estimulagao agradavel, e um elemento essencial na estrutura social destas institutes, do teatro, da danga, das festas ou corridas e de todas as outras que foram mencionadas no decurso desta investigagao. Os problemas do prazer pertencem, pode dizer-se, ao dominio da psicologia ou da fisiologia; mas integram-se, contudo, na esfera de competencia dos sociologos. Estes procuraram, em toda a historia da sua ciencia, distinguir os seus proprios tipos de problemas daqueles que eram estudados por psicologos e biologos. Em determinada epoca, tornava-se indispensavel definir que os fenomenos sociais eram um nivel de investigagao com caracteristicas distintivas proprias. Neste sentido, a luta dos sociologos pela relativa autonomia do seu tema revelou-se frutuosa. Admite-se que esta autonomia se encontra agora estabelecida com solidez, permitindo aos sociologos considerar nao so a especificidade dos seus problemas mas, tambem, a sua relagao com os dos campos vizinhos. Nas suas investigagoes, foi frutuoso para os sociologos abstrairem-se dos problemas da psicologia e da biologia que se encontravam e percorrerem, durante algum tempo, um caminho separado, tendo em vista um melhor entendimento dos seres humanos. Mas esta separagao conduziu, como seria inevitavel, ao desprezo de grandes grupos de problemas, um dos quais e o pro-
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blema do lazer. A investigate actual e um exemplo do tipo de bloqueios que se encontram ao tentar analisar problemas sociologicos sem olhar para alem das fronteiras do campo da sua ciencia. No caso dos factos e das institutes de lazer, cuja raison d'etre* e uma experiencia psicologica especifica, qualquer tentativa que a nao considere e prejudicial a concretizagao do objective. A este respeito, o estudo da estrutura social e o das emogoes nao pode avangar em compartimentos separados. Contudo, isso nao significa que um se dilua no outro. For vezes, biologos e psicologos mostram-se inclinados a acreditar que podem, numa fase posterior, responder a todos os problemas sociologicos nos seus proprios — biologicos e psicologicos — termos. Neste ambito, a luta dos sociologos pela autonomia dos seus problemas particulares foi bem justificada. Talvez se possa pensar que nem todos os sociologos contemporaneos sao capazes de ver com clareza a relativa autonomia e irredutibilidade dos problemas sociologicos em relagao aos biologicos e psicologicos14. Existe, evidentemente, uma certa perplexidade quanto a saber como se pode encontrar um caminho entre a ideia de que o estudo da sociedade e totalmente autonomo, desprovido por inteiro de relagao com o da psicologia e da biologia, e a ideia de que os problemas da sociedade, enquanto campo de estudo, serao todos resolvidos, mais tarde ou mais cedo, atraves do estudo psicologico e biologico de individuos considerados isoladamente. O estudo do lazer, como dissemos, e um dos numerosos casos em que nao e possivel descurar o problema da relagao entre os fenomenos do nivel social e os que se encontram nos niveis psicologico e fisiologico. A este respeito, nao se pode evitar o trabalho de uma analise multipla dos niveis, isto e, o de considerar, pelo menos em tragos gerais, como e que no estudo do lazer os tres niveis — sociologico, psicologico e biologico — se relacionam.
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Georges Homans, por exemplo, aflrmou na sua Presidential Address to the American Sociological Association, em 1966, que a sociologia nao possui autonomia enquanto objecto de estudo e que a psicologia e a ciencia social basica. Uma posigao semelhante e assumida por W. G. Runcinam na sua Sociology in its Place, Cambridge, 1970, p. 7. *Em Frances no original. (N. da T.)
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Sao varias as teorias sobre os aspectos psicologicos e fisiologicos das emogoes e nao se pode dizer que todas se encontrem de acordo entre si. Mas, para os nossos fins, bastara apontar certos aspectos elementares que estao bast ante bem fundamentados. Na sua forma mais simples, verifica-se nas criangas muito novas que as relagoes emocionais parecem possuir o caracter de uma resposta a uma excitagao indiferenciada, provavelmente relacionada, de acordo com as circunstancias, com sentimentos agradaveis ou desagradaveis, sem qualquer distingao emocional especifica. Reacgoes de medo, amor e raiva, uma vez consideradas como o trio original das emogoes, emergem provavelmente, de modo gradual, como parte de um processo de diferenciagao, a partir do padrao de excitagao generalizado. Mas, seja como for, uma vista de olhos as reacgoes emocionais das criangas mais jovens traz ao pensamento, de forma muito clara, um facto que frequentemente nao e notado quando, ao considerar as emogoes, se tern no espirito apenas as emogoes dos adultos. Nas nossas sociedades, de uma maneira geral, os adultos nao revelam as suas emogoes. As criangas de todas as sociedades fazem-no. Para elas, o estado de sensibilidade ao qual nos referimos como emogao e um aspecto de um estado dinamizado por todo o organismo, em resposta a uma situagao estimulante. Sentir e agir, nomeadamente movimentar os seus musculos, os seus bragos e pernas, e talvez todo o corpo, nao estao ainda divorciados. Este, pode dizer-se, e o caracter primario do estado de sensibilidade a que nos referimos como emogao. So gradualmente aparece na experiencia das pessoas como um estado de sensibilidade, quando elas aprendem a fazer aquilo que as criangas nunca sao capazes de fazer, ou seja, a nao movimentar os seus musculos — nao agir — de acordo com o impulso emocional para agir. No discurso comum, referimo-nos as pessoas «controlarem os seus sentimentos». De facto, nao controlam os seus proprios sentimentos, mas, o movimento, a parte actuante de um estado de agitagao de todo o organismo. O lado sensivel deste estado pode assumir realmente o caracter de emogao, em parte porque ela nao pode ser libertada nos movimentos. Mas nos nao suspendemos a sensibilidade. Apenas impedimos ou diferimos a nossa acgao de acordo com ela.
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Nas nossas sociedades, os adultos tornaram-se, em regra, tao habituados a nao agirem de acordo com os seus sentimentos que esta restrigao, com frequencia, Ihes parece ser o normal, o estado natural dos seres humanos, em especial se, em larga medida, a auto-restric,ao se torna automatica. Mesmo que o desejassem, nao podiam abrandar o desenvolvimento interno do controlo. Esqueceram-se, por completo, como fora diffcil para eles, em tempos, nao fazerem aquilo para que sentiam inclinagao, como os adultos se empenhavam, com uma elevagao de sobrancelhas, com palavras duras e doces, e talvez com algo mais do que palavras, para que controlassem as suas acgoes ate que o dominio, de acordo com o padrao habitual na sua sociedade, ja nao exigisse esforgo. Tornara-se uma segunda natureza e surge como parte das suas personalidades, como algo com que nasceram. O grau e o padrao deste treino para o autocontrolo varia de sociedade para sociedade, de acordo com o estadio do padrao especifico do seu desenvolvimento. Em geral, pode dizer-se que o tipo de socializagao caracterfstico das sociedades altamente industrializadas tern como resultado uma interiorizagao mais forte e mais firme do autocontrolo individual, resultando numa armadura de autodominio, a qual opera de forma relativamente harmoniosa e, em comparagao, de maneira moderada — mas sem demasiadas saidas — em todas as esferas da vida. Seria um grande contributo para a investigate sociologica sobre os problemas de lazer, — os quais constituem um dos muitos enclaves onde, mesmo em sociedades industrials, as pessoas sao capazes de procurar, ainda com moderagao mas com total aprovagao publica, excitagao emocional e onde podem mesmo mostra-la, ate um determinado limite, sob uma forma socialmente regulamentada — se alguem pudesse realizar inqueritos psicologicos e fisiologicos sobre os inumeros problemas de autocontrolo que aqui se levantam. Todavia, nao so os sociologos mas, tambem, os psicologos e os fisiologistas, embora por razoes diferentes, evitam pesquisas sobre problemas situados entre estes campos. E, na forma actual, ate mesmo a psicologia social oferece um debil contributo quanto a estes problemas. Existe uma vasta literatura na psicologia e na fisiologia sobre as questoes da aprendizagem, mas, em comparagao, ela e escassa quando se trata da influencia desta na estruturagao da personalidade. E a fundamentagao do controlo dos impulses que se interpoem — como um desenvolvimento assimilado de
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potencialidades humanas nao aprendidas — entre a vaga periodica de inclinagoes e impulsos emocionais dos niveis biologicos mais profundos e o esqueleto do aparelho motor para o qual eles sao dirigidos esta quase inexplorada. Nao se desconhece totalmente, uma forte evidencia de tipo pre-cientifico apontando nessa direcgao. Existe ai o bastante para nos permitir indicar pelo menos, embora nao para o resolver, e claro, o problema que mostra as ligagoes entre o fenomeno de controlo das emogoes socialmente induzido e a provisao especial de renovagao emocional nas actividades de lazer. Os autocontrolos civilizadores, que desempenham um importante papel na vida das sociedades desenvolvidas, nao sao o produto de qualquer planeamento critico e deliberado. Desenvolveram-se para o modelo que possuem agora, como se mostrou noutro lugar,15 de maneira mais ou menos inconsciente, durante um longo periodo. Considera-se como adquirido, embora nunca tenha sido demonstrado, que estas formas de controlo tern um papel essencial no funcionamento das sociedades industrials. A crescente revolta contra alguns desses controlos, em particular entre a geragao mais jovem, contribuira, decerto, para uma investigagao mais sistematica sobre a questao de saber se os controlos interiorizados, bem como as restrigoes sociais externas e respectivos aspectos, tern fungoes positivas nos mecanismos da sociedade e quais sao aquelas que as nao possuem. Alguns dos problemas de lazer que exploramos aqui estao profundamente relacionados com este tipo de questao. O que acontece numa sociedade onde a pressao sobre os indfviduos, tanto as restrigoes sociais como dos autocontrolos internos, se torna tao forte que as suas consequencias negativas ultrapassam as suas fungoes posit ivas? Esta investigagao tern de ficar para mais tarde. Mas esta breve divagagao sobre alguns aspectos elementares do autocontrolo permite avangar um pouco mais, relativamente ao que dissemos antes, sobre a ligagao entre as actividades exteriores ao lazer e as de lazer. Pode lembrar-se que a formulagao mais organizada e certamente nao exaustiva, embora, e claro, nao a unica possivel das diferengas entre dois tipos de actividades, se refere a duas especies de fungoes que todas as actividades desempenham para aqueles que as reali15
Ver Elias, The Civilizing Process.
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zam: uma fungao (ou fungoes) para os proprios actores e uma fungao (ou fungoes) para os outros, ainda que por vezes nem sempre sob a forma de fungao para uma unidade social impessoal, tal como a nagao. A diferenga entre os dois tipos de actividades a que nos referimos, para dizer de uma maneira resumida, e a seguinte: nas actividades de nao lazer, a fungao para si proprio e subordinada a fungao que ela tem para os outros; nas actividades de lazer, a fungao para os outros e subordinada a fungao que ela possui para si proprio. Em termos mais psicologicos, isto significa que as actividades exteriores ao lazer exigem, desde o princfpio ate ao fim — nao apenas no caso de possuirem o caracter de trabalho profissional, mas tambem se possuirem o caracter de tempo livre de nao lazer, de acordo com a forma como foram classificadas no espectro do tempo livre —, um grau de controlo emocional relativamente muito elevado, porque a consideragao pelos outros e exigida pela frequente interdependencia muito complexa destas actividades com as actividades de outros. E por isso que falamos delas como «rotineiras». Por comparagao com sociedades nao Jescnvolvidas, a maioria das actividades entrelagadas nas nossas sociedades estao bem reguladas e de forma muito segura. So quando se possui experiencia — quer seja atraves de participagao di recta quer seja por participagao indireeta, atraves de estudo — do que significa viver numa sociedade menos regulada, e que se pode estabelecer a relativa ordem das sociedades altamente desenvolvidas e do papel ai desempenhado pela interiorizagao comparativamente elevada dos controlos individuals. Por outro lado, esta interiorizagao, quer tome a forma da consciencia, quer de maior ou menor obsessao pela ordem, ou de qualquer uma das consequencias da socializagao implicita, tem, sem duvida, devido a esta absorgao dos controlos sociais como parte da personalidade individual, como consequencias, frustrates especificas, uma boa dose de angiistia e de sofrimento e, provavelmente, numerosas doengas. Isto significa que, nas sociedades-Estado mais desenvolvidas, um duplo anel de constrangimento mantem o comportamento dos individuos nos limites da conduta do seu grupo: constrangimentos externos, representados, por exemplo, pela ubiqua ameaga da lei e dos seus agentes, e controlos externos, traduzidos por acgoes de controlo pessoal como a consciencia e a razao. Estes termos — que surgem, como tantos outros, como se fossem quase uma especie de substancias «fantas-
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mas na maquina», em vez de controlos aprendidos dos outros e assimilados como um resultado da socializagao — referem-se precisamente a estes dois tipos de impulses que mencionamos antes e que se interpoem entre os mais elementares, os impulses mais directamente biogeneticos aos quais nos referimos como tendencias, sentimentos ou emogoes, e ao aparelho motor. Permitem-nos o controlo sobre nos proprios, o que quer dizer, habilitam-nos a nao movimentar os nossos musculos, a nao agir imediatamente quando sentimos tendencia para o fazer, ou a agir de uma maneira diferente daquela para a qual as nossas inclinagoes espontaneas e emogoes nos conduzem. Nao so nos habilitam a dirigir e a avaliar os nossos movimentos de acordo com a estrutura profundamente complexa das nossas interdependencias como tambem nos dao maior liberdade em relagao a perturbagao de impulses momentaneos e, igualmente, um maior campo de acgao para decidir. For outro lado, ao impedir tendencias, sentimentos e emogoes na procura de satisfagao directa e imediata, criam tensoes de um tipo especifico. Se, no entanto, considerarmos a literatura psicologica e psiquiatrica sobre os aspectos afectivos do comportamento e experiencia humana, podemos notar que ha um certo tempo, com muito poucas excepgoes, a tradugao de factos em teorias e perturbada por um conceito tradicional de seres humanos que, tal como o quadro de todas as proposigoes teoricas, e mais ou menos tornado como garantido e nunca verificado, de forma sistematica, quanto a sua aplicabilidade. Ja nos referimos a isso anteriormente. E a imagem das pessoas como uma especie de maquina nao social. Ela e algumas vezes representada pela metafora de uma «caixa preta»: podemos observar como a caixa preta actua mas nao sabemos o que se passa dentro dela. Em muitos casos, a suposigao implicita e de que as pessoas reagem a estimulos com reacgoes especificas. Na base desta suposigao pode ser-se conduzido a pensar que os seres humanos nao reagiriam dessa maneira, a menos que o estimulo ou o dispositivo permitisse uma reacgao padrao particular. Contudo, existe ai uma grande dose de evidencia, mostrando que os seres humanos nao esperam, de uma forma meramente passiva, por estimulos. De facto, a partir de uma massa crescente de dados disponiveis, e bastante nftido que o organismo humano reclama estimulagao para funcionar de modo satisfatorio, em particular a estimulagao criada atraves da convivencia com outros seres humanos. O significado do conceito de seres
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humanos, que resulta das numerosas experiencias sobre os efeitos do isolamento extremo, talvez nao tenha sido sempre totalmente expresso16. Elas indicam que a necessidade de estimulo de um ser humano por intermedio de outros seres humanos nao se reduz a essa esfera especifica a que chamamos sexualidade. E uma necessidade mais ampla, de longe menos especializada, de estimulagao social. Na origem, pode ser libidinal ou nao. A sua genese precisa de ser explorada; mas, seja ela qual for, a «caixa preta» nao esta adormecida quando nao e estimulada. Cada ser humano, na sua (dele ou dela) constituigao global, e orientado no sentido dos outros seres humanos — por meio da estimulagao emocional que so os outros seres humanos podem proporcionar, embora possam ser substituidos por animais de estimagao ou por colecgoes de selos. Talvez o ponto mais saliente para compreender a interdependencia entre os aspectos dos seres humanos, estudados por um lado, por psicologos e por psiquiatras, e por sociologos, por outro, seja a compreensao de que a «caixa preta» nao esta fechada, pelo contrario, esta aberta, emitindo sinais sensiveis prontos a gravaremse nos outros e para actuar, reciprocamente, da mesma maneira, com os sinais sensiveis que os outros enviam17. De facto, nao se pode compreender por completo a natureza das tendencias e emogoes, a menos que se possua a consciencia de que elas representam uma linha dentro de um movimento de dois sentidos. Cada ser humano, na sua constituigao global, e orientado no sentido dos outros — para a estimula^ao emocional entre seres humanos vivos —, e a estimulagao agradavel deste genero, a estimulagao que se recebe por estar reunido com outros, quer seja de facto quer por meio da sua propria imaginagao, e um dos elementos mais comuns da satisfagao do lazer. Se procurarmos sintetizar numa metafora a diferenga entre a imagem dos seres humanos apropriada para observagoes como esta e a imagem de seres humanos de que a metafora da «caixa preta» e representativa, haveria de dizer-se que a melhor analogia — se, de todo, as pessoas tern de ser comparadas com 16
Para urn debate de algumas descobertas da investigac.ao sobre problemas de isolamento extremo, ver Peter Watson, War on the Mind: the Military Uses and Abuses of Psychology, Harmondsworth, 1978, Cap. 13. 17 Ver a critica do conceito de seres humanos do homo clausus e a sua conceptualizagao como homines aperti em Elias, What is Sociology?, p. 119 e seguintes.
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qualquer instrumento mecanico — e o de alguem equipado com um radio transmissor e receptor que envia constantemente mensagens que fazem sair respostas, que podem receber, por sua, vez, e as quais ele ou ela, por sua vez, podem responder. Coloquem uma crianga numa sala por alguns dias e vejam o que acontece. Ela «enfraquece» por melhor que seja a alimentagao. A razao e a de que esta necessidade elementar de um tal movimento de «dois sentidos», de tudo aquilo a que chamamos, ainda de forma muito imperfeita, «tendencias» ou «emogoes», a necessidade de uma resposta emocional, e suspensa. E de facto notavel que o sofrimento e a dor infligidos nas criangas por este corte, ou simplesmente atraves da nab satisfagao dessa necessidade quase insaciavel de consolidar os vectores das suas afeigoes no sentido dos outros, favorega uma resposta afectuosa, dirigida para si proprias e que, por sua vez, favorece uma resposta reforgada dos afectos, e sempre por ai adiante. Em resume, os vectores enviados no sentido dos outros em busca de apoio, quer Ihe chamemos «tendencias», «libido», «afectos» ou «emog6es», sab parte de um processo social interpessoal. No que diz respeito as criangas, se este processo e interrompido ou apenas perturbado, o desenvolvimento de toda a personalidade da crianga sera mais ou menos prejudicado. No decurso do processo de crescimento, do «processo de civilizagao» a que os individuos se submetem nas nossas sociedades, os seres humanos sao ensinados a controlar com bastante severidade, e em parte automaticamente, a necessidade sempre inquieta do tipo de estimulagao adquirido pelo envio e recepgab de mensagens emocionalmente significativas, que e tab vital para o jovem ser humano como e a alimentagao. No nosso tipo de sociedade, os adultos, na sua vida de nao lazer, tern de refrear severamente o envio de mensagens emocionais. Nesta esfera das suas vidas, eles sao impedidos de enviar e de receber mensagens no quadro dessas ondas longas. As actividades de lazer, por outro lado, permitem um certo campo de acgao para enviar e, acima de tudo, receber mensagens atraves das ondas a que nos referimos, de modo imperfeito, como emocional. Mas uma vez que a diminuigao dos controlos nas sociedades humanas de todos os generos, senao em especial nas sociedades tab bem ordenadas e complexas como as nossas, compreende sempre riscos, a fungab das actividades de lazer destruidoras do controlo, que abre o caminho para a renovagao das emogoes, e, por seu lado,
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demasiado limitada por regras de prevengao para que possa ser assim socialmente toleravel. De tudo isto emerge, com maior nitidez, um dos aspectos centrals da relagao entre as actividades do nao lazer e as actividades de lazer. Talvez isto possa ser sintetizado, de forma conceptual, por referenda a uma polarizagao que flui atraves de toda a vida como um equilibrio de tensao dinamico. Referimo-nos ao equilibrio de tensao entre o controlo e a estimulagao emocional. A forma como este equilibrio de tensao se manifesta varia de sociedade para sociedade, onde o controlo de todo o continuum de sentimentos e, em parte, bastante interiorizado, desde as tendencias animais ate as mais sublimes emogoes, o controlo externo das emogoes e relativamente moderado e a estimulagao emocional favorecida no quadro das actividades de lazer com a anuencia publica e, em geral, igualmente moderada quanto ao seu caracter. Em resumo, ambas reclamam um grau de maturidade emocional consideravel. Mas a breve referenda ao facto de que a sociabilidade e, pode dizer-se, uma caracteristica permanente da vida das criangas, pode servir como uma advertencia quanto a uma das principals fungoes das actividades de lazer nas nossas sociedades; nomeadamente, que ajudam a moderar a grande severidade do autocontrolo consciente ou inconsciente exigido a todos os participates pelo tipo de actividades de nao lazer a que, em geral, temos de nos acomodar, permitindo a ocupagao, sob uma forma adulta, em actividades que predominant na vida das criangas. Os psicanalistas podem falar, num caso destes, de «regressao socialmente autorizada», de cornportamento infantil, mas declaragoes como estas revelam apenas a falta de adequagao de qualquer teoria psicologica que integre a ideia de que o comportamento adulto e um bloco, que segue o mesmo padrao em todas as actividades. De facto, por meio da instituigao do lazer, o proprio desenvolvimento social permitiu um campo de acgao para a diminuigao dos controlos do adulto, uma tenue «destruigao dos controlos» dos individuos, por meio de uma excitagao igualmente moderada — um despertar emocional equilibrado, que pode ajudar a contrariar o efeito sufocante que os controlos facilmente podem ter na ausencia de tais institutes sociais.
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A relagao entre as actividades de nao lazer e as actividades de lazer pode compreender-se melhor como um equilibrio de tensao dinamico. Nas esferas da vida muito rotineiras e bem reguladas, em que a fun^ao para «ele» ou para «eles» domina a fungao para si proprio, satisfazemos, a longo prazo, as exigencias das nossas sociedades altamente complexas e, desse modo, tambem as nossas proprias. Mas fazemo-lo a custa da satisfagao de numerosas necessidades imediatas espontaneas. Nao dizemos a este homem ou a esta mulher — ao nosso patrao, a um cliente, ao nosso colega ou mesmo a um subordinado — o quanto nao gostamos deles, como os desprezamos e abominamos. Nao dizemos a este homem ou a esta mulher — a nossa secretaria, a um colega do nosso departamento, ao nosso cliente, ao agente do banco ou de seguros — o quanto gostamos deles, que eles sao atraentes e como gostariamos de passear com eles. Existem cento e uma maneiras de dominarmos as nossas emogoes — por uma boa razao. Se toda a gente atenuasse ou eliminasse as restrigoes, toda a estrutura da nossa sociedade se desfazia, e a satisfagao da qual dependemos a longo termo, a nfvel de conforto, de saude, de consumos varios, de lazer e muitos outros que sao importantes quando comparados com os de outros paises menos desenvolvidos — privilegios que, com frequencia, nao experimentamos como tais —, perder-se-ia. Na falta de outro modelo preciso de relagao, habituamo-nos a pensar que o equilibrio para o tipo de relagao impessoal, que prevalece nos sectores mais rotineiros da nossa vida social, e proporcionado pela familia. Ate certo ponto, isto esta possivelmente correcto. A familia pode fornecer numerosas formas de equilibrio emocional que combatem a relativa restrigao emocional necessaria em particular na vida professional das pessoas. De facto, se a familia, enquanto instituigao, perdeu um certo numero de fungoes, pode verificar-se que, em ligagao com o processo de urbanizagao e industrializagao, ela adquiriu fungoes como um dos agentes sociais para a satisfagao das necessidades instintivas e emocionais no seio de uma sociedade em que, de outro modo, elas seriam fortemente controladas mais do que acontece em muitos outros tipos de sociedades. Mas existem varias indicates de que a familia por si mesma nao e suficiente para o provimento de todas as necessidades que, de
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outra forma, sao severamente reprimidas. Uma das razoes consiste no facto de a propria vida familiar ser, nas nossas sociedades, muito rotineira. E, embora ela constitua um espago social para a descontracgao especifica aprovada das restrigoes que mantem as nossas tendencias sob vigilancia, tambem e necessario reconhecer que ela produziu, particularmente em relagao ao aumento de igualdade de poder entre os sexos e as geragoes, novos tipos de tensoes. Outra razao e o facto de que, no quadro da familia, a fungao de equilibrio — a satisfagao das tendencias e emogoes que proporciona — esta associada a uma obrigagao muito forte e quase inevitavel. Esta obrigagao caracteriza-se pela existencia de tres niveis. Da ligagao destes tres niveis, a de dois e tipica das multiplas obrigagoes nas sociedades mais desenvolvidas. Marido e mulher, nas suas relagoes, pais em relagao aos filhos, estao dependentes uns dos outros por todos os generos de pressoes sociais, nao so as dos vizinhos ou amigos mas, tambem, as da lei. Marido e mulher estao dependentes um do outro e dos seus filhos, como sabemos, por um «sentido de responsabilidade» ou, por outras palavras, pela sua propria consciencia. Em certos casos, estao tambem dependentes, para alem de razoes de natureza emocional, pela afeigao mutua e, talvez, pelo amor que sentem um pelo outro. Muito pouco se conhece sobre a maneira como estes tres niveis de obrigagoes familiares afectam cada um. Supoe-se, frequentemente, que a primeira e tambem a segunda destas obrigagoes sao necessarias para que, desse modo, a terceira se forme e se conserve. Se formos honestos para nos proprios, dirfamos que sabemos demasiado pouco sobre a natureza da ligagao emocional duravel de um casal. Embora a satisfagao sexual desempenhe af um papel — e isto e caracteristico da maneira de ser dos seres humanos —, tal ligagao possui, a longo prazo, um caracter bem diferente daquele que caracteriza a breve duragao do acto sexual. Em teoria, mal comegamos a atingir a superficie na nossa exploragao da natureza e das condigoes da obrigagao emocional, a longo prazo, dos seres humanos entre si. Se for mutua, e provavelmente a mais gratificante das experiencias humanas, mas esta afirmagao tern de ser esclarecida dado que, nas situagoes em que o problema do amor esta em causa, e extremamente diffcil progredir da ideia para o proprio facto. Nem ninguem comegou sequer a explorar a relagao entre os efeitos verificados sobre as obrigagoes institucionais atraves da propria consciencia de cada um. Ate mesmo, para se
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chegar a este estadio de clarificagao conceptual, se sentiram dificuldades. Se pudessemos avangar nesta materia, se soubessemos mais sobre a interdependencia funcional destas tres camadas de obrigagoes famiHares, poderiamos ser capazes de enfrentar e de analisar a mudanga de condigoes da vida familiar de uma forma mais realista do que aquela que e possivel realizar no presente. Mas seja como for, pode compreender-se melhor o caracter peculiar do lazer como um enclave onde se pode encontrar um tipo de revigoramento emocional sem nenhuma destas obrigagoes desde que o consideremos em relagao a familia, onde o revigoramento de outro tipo diferente se pode encontrar, mas apenas relacionado com obrigagoes emocionais e outras. Sem fazermos referenda ao facto de que as actividades de lazer nao exigem obrigagao nao se podem entender perfeitamente as fungoes especificas que estas cumprem na vida das sociedades industrials. A satisfagao das emogoes e dos instintos, proporcionada no quadro da familia, esta limitada por fortes restrigoes institucionais e normativas. Dado que esta satisfagao se cumpre no longo prazo, pode tornar-se, em certa medida, rotineira. A satisfagao pessoal esta subordinada, em parte, a consideragao dos outros, os quais, por sua vez, alimentam essa satisfagao. A satisfagao proporcionada pelo lazer esta limitada, em grande medida, ao momento. Ela e extremamente breve. Simultaneamente, esta satisfagao oferece a oportunidade de contrariar a restrigao emocional, a comparativa falta de estimula^ao emocional expressa abertamente, caracteristica dos principals sectores de actividades nas sociedades mais diferenciadas, atraves de outro tipo de actividades cuja fungao primaria e a de proporcionar prazer a si proprio. As actividades de lazer, desprovidas de qualquer caracter de obriga^ao, podem contrariar as restrigoes emocionais normals com excepgao daquela que um individuo deseja assumir voluntariamente em qualquer momento. Mas esta clara ausencia de obrigagao, misturada com um elevado grau de estimulagao emocional, que, reunidos, dao a muitas actividades de lazer as caracteristicas a que nos referimos como «jogo» ou «brincadeira», levanta problemas especificos. Ja nos referimos ao facto de que, nas sociedades mais ou menos ordenadas, as situagoes que desencadeiam fortes emogoes sao consideradas com desconfianga, em particular por aqueles que sao responsaveis pela conservagao da boa ordem. O que se afirmou,
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antes, sobre as emogoes serem de natureza a favorecer a transmissao de forgas de acgao explica esta tendencia. Sob o impacte de sentimentos fortes, as pessoas agem de uma maneira que elas proprias nao podem controlar mais e que, por esse motivo, os guardioes da ordem na sociedade tern dificuldade em controlar. Todas as areas das sociedades complexas, em que a incrustagao das actividades por meio de extensas cadeias de interdependencias tern de ser preservada, sao, por essa razao, limitadas, de um modo geral, por regulamenta^oes e sangoes destinadas a impedir o desenvolvimento incontrolado das emogoes. A forma atraves da qual a maioria das sociedades associa a legitimagao da satisfagao sexual e de outras satisfagoes emocionais no quadro da famflia, por meio de socializagao, de cren^as, de restrigoes directas e de proibi^oes, impedindo os perigos que podem resultar para os outros de qualquer libertagao de forgas instintivas ou emocionais, ja foi referida. Talvez nem sempre se compreenda perfeitamente que os mesmos problemas surgem a respeito das actividades de lazer. Ja referimos que numerosos tipos de lazer integram, como uma das suas caracteristicas principals, um elemento de risco, um «brincar com o fogo». A primeira vista, isto pode parecer um risco so para aqueles que se empenham em qualquer actividade particular — a aposta para o jogador de azar, as corridas de automoveis para o condutor. Mas isso nao e tudo. As actividades de lazer, tal como o procuramos demonstrar, constituem um enclave onde, ate certo ponto, os controlos emocionais podem ser atenuados, e no qual a excitagao e estimulada e abertamente expressa. Nas nossas sociedades tao bem reguladas, a legitimagao de qualquer diminuigao de autocontrolo implica riscos nao so para as proprias pessoas envolvidas mas, tambem, para os outros, para a «boa ordem» da sociedade. Ao investigar o desenvolvimento do futebol, por exemplo, constatamos o facto de que, na Idade Media, os reis e as autoridades das cidades tentaram durante seculos proibir o jogo de futebol, entre outras razoes porque ele terminava invariavelmente em derramamento de sangue ou, se era jogado nas ruas de uma cidade, acabava, pelo menos, com muitas janelas partidas18. A incapacidade das autoridades em por fim a tudo isto era devida, em grande medida, ao facto
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Ver Cap. V deste volume.
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de as pessoas envolvidas terem grande prazer na excitagao proporcionada pelo jogo e pela diminuigao das restrigoes. Porem, a organiza^ao do controlo do Estado nao era suficientemente eficaz para contrariar a atracgao que a emogao excitante do jogo tinha para os jogadores. Hoje, a eficacia do poder de restrigao do Estado tornou-se muito maior, mas o facto de ela ser tao elevada nao pode ser esquecido, se pretendermos compreender algumas das caracteristicas estruturais e problemas correntes das actividades de lazer do nosso tempo. O equilibrio de tensao entre o desejo de revigoramento emocional dos que se entregam as actividades de lazer e a vigilancia mantida pelas autoridades do Estado, de modo a que nenhum mal possa advir desta relaxa^ao de controlo tanto para os que procuram o lazer como para os outros, e hoje uma caracteristica de organizagao e de direcgao das actividades de lazer tao fundamental como era nas sociedades medievais que mencionamos. Mas o facto de o controlo do Estado ser muito mais energico teve certas consequencias para estas actividades. For agora, e suficiente assinalar que a necessidade de um elevado grau de regulagao parece ter influenciado uma tendencia mais acentuada no sentido da sofisticagao e da sublimagao das respostas emocionais presentes nas actividades de lazer. O aspecto mimetico das ocupagoes de lazer no nosso tempo nao pode ser bem compreendido sem referir que o apelo de muitas delas, embora nao de todas, ja nao e orientado para necessidades emocionais ou instintivas, na sua forma mais elementar, embora possa parecer ser exactamente isso, mas, antes, para con juntos de exigencias afectivas, onde misturas de sentimentos compostos entram em jogo. Mas o facto de o controlo do Estado ser muito mais eficaz tambem significa que a sua acgao e mais harmoniosa e previsivel. Ele actua, frequentemente, apenas como um «guardiao nos bastidores», confiando, em grande medida, no autocontrolo do «guardado». Uma analise sociologica das actividades de lazer seria muito fragmentaria se nao considerasse o facto de que os dois dos tres niveis de obriga^oes mencionados antes, em referenda a famflia, tambem desempenham o papel de uma estrutura de controlo nas actividades de lazer.
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A luz do quadro teorico que expusemos acima, a unidade estrutural que existe por tras da variedade das ocupagoes do lazer torna-se mais visfvel. No seu centro permanece a separagao bastante rigida, imposta aos seus membros pelo caracter das sociedades muito diferenciadas, entre uma esfera da vida social onde predominam as actividades e experiencias dirigidas para objectivos impessoais — no qual tern uma estrita prioridade as fungoes de tudo aquilo que alguem faz pelos outros relativamente as fungoes do que se realiza para si proprio e onde as satisfagoes emocionais sao estritamente subordinadas a fria reflexao — e uma esfera em que prevalece a ordem oposta de prioridades: os processos de pensamento relativamente desprovidos de emogoes e de natureza impessoal estao enfraquecidos, os processos emocionais estao fortalecidos, dando-se maior peso ao que se realiza para si proprio do que ao que se faz para os outros. As actividades de lazer preenchem estas fungoes atraves de uma diversidade de meios. Por carencia de uma palavra melhor chamar-lhe-emos «elementos de lazer». Basicamente, aqui estao tres: sociabilidade, mobilidade e imaginagao. Se olharmos para as categorias de actividades de lazer indicadas no espectro do tempo livre, pode ver-se, de imediato, que nao ha nenhuma actividade onde estas tres formas elementares de activagao emocional se encontrem ausentes. Tambem se pode ver que dois ou tres destes elementos se combinam com frequencia embora, um deles possa ser dominante em qualquer das actividades. Cada um destes elementos pode servir, a sua maneira, como um meio de atenuar os controlos que, na esfera do nao lazer, mantem severamente vigiadas as inclinagoes afectivas das pessoas. A consideragao destes elementos aponta, de novo, para o modelo geral de seres humanos, isto e, para um equilibrio de tensao instavel entre uma esfera onde a actividade intelectual impessoal e o controlo das emogoes que a acompanha prevalece sobre a estimulagao das actividades emocionais e outra esfera onde a excitagao agradavel de semelhante processo emocional prevalece e os controlos inibitorios estao enfraquecidos. Para explicar as fungoes destes elementos de lazer, bastara discutir aqui duas das esferas primarias das actividades de lazer nas nossas sociedades: as que denominamos esferas da «sociabilidade» e «mimetica».
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1) A sociabilidade como um elemento basico do lazer desempenha um papel na maioria das actividades de lazer, senao em todas. O que significa dizer que um elemento do prazer e o sentimento agradavel vivido pelo facto de se estar na companhia dos outros sem qualquer obrigagao ou dever para com eles, para alem daqueles que se tern voluntariamente. Este tipo de estimulagao desempenha um papel se alguem vai as corridas, a um clube de jogo de azar, a uma cagada, a um pequeno baile e, ate mesmo, se alguem vai a um restaurante com o seu marido ou a sua mulher: mesmo af, como dissemos antes, o facto de comer fora com os outros, ainda que nao se saiba nada sobre eles, desempenha um papel no seu prazer, mesmo que seja secundario relativamente a outros elementos primarios da situa^ao de lazer. A propria sociabilidade desempenha um papel primario em encontros, como festas, ida ao bar, visitas a amigos e por ai fora. Podem encontrar-se numerosas observances acidentais sobre sociabilidade na literatura sociologica; contudo, faltam investigates sociologicas baseadas numa solida teoria do lazer que tenham como seu tema central problemas de sociabilidade. E facil verificar a relevancia deste tipo de pesquisas para uma teoria da sociedade. Muitas das reunioes sociais possuem as caracteristicas do que, na falta de uma palavra melhor, pode ser chamado «\azet-gemeimchaften»\ elas proporcionam, de forma evidente, oportunidades para uma integragao mais profunda e — como intengao — a amigavel emotividade que difere acentuadamente da que e considerada como normal na profissao e noutros contactos de nao lazer entre as pessoas. Estas diferengas de nivel emocional entre as reunioes sociais como «ba,t-gemeinschaften», festas ou bebida com caracter social numa messe de oficiais, e nas reunioes de grupos de nao lazer, como assembleias de fabricas ou reunioes de comissoes, sao faceis de observar, mas mais dificeis de conceptualizar. Talvez nao seja inadequado aplicar-lhes, de forma abreviada, o conceito de gemeinschaft* dando-lhe um sentido um pouco diferente em comparagao ao do seu uso tradicional. Atraves dos exemplos dados, e facil abandonar as conotagoes romanticas tra-
*Gemeinschaft designa, de acordo com a perspectiva de Ferdinand Tonnies, todo o tipo de vida dominado por um caracter intimo, privado e reservado, proprio da vida comunitaria. (N. da T.)
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dicionais associadas ao termo gemeinschafi; Pessoas que no seu tempo de lazer considerem ser gratificante reunir-se num «bzr-gemeinschaft» ou que gostam de ir a festas que encorajam a integragao dentro de um elevado nivel de evidencia e mais ou menos amigavelmente emotivas, nao pertencem necessariamente ao mesmo quadro de analise daquelas que, de uma maneira romantica, aguardam muito tempo por um retorno a aldeia gemeinschaft dos seus primeiros dias de vida. Esta e uma relagao estrutural de generos — que nao precisa de ser aqui discutida — entre as tendencias no sentido do «l&zer-gemeimcbaft» nas sociedades urbanas industriais e a ansia romantica da «aldeia-gemeimcbaft», mas as diferengas sao bastante claras. E duvidoso que os adultos que hoje gostam de participar num «la.zer-gemeinscbaft» periodico mas transitorio desejassem atribuir-lhe um caracter permanente, com excepgao dos tipos de relagao emocionalmente mais restritos que predominam na nossa vida de nao lazer. Nao e improvavel que muitas pessoas que apreciam as reunioes sociais do seu tempo de lazer possam nao gostar em absoluto delas, se estas se tornarem uma forma de vida. A alternancia caracteristica na vida de muitos, entre a participagao num «nao lazer gesellschaft»* e num «la.zer-gemeinscbaft» transitorio, assinala o caracter complementar dos dois tipos de relagoes nas nossas sociedades. Compreendido desta maneira, o termo «lazei;-gememschaft» abre um campo muito vasto de pesquisa. Nas sociedades industriais, estas oportunidades passageiras de maior evidencia afectiva e relativamente espontaneas, embora de integragao variavel, estao entre as instituigoes comuns socialmente estandardizadas, para as quais se canalizam com grande regularidade muitas exigencias de lazer das pessoas. Neste caso, em contraste com as instituigoes mimeticas de lazer, as pessoas reunem-se sem possuirem necessariamente qualquer competencia tecnica especializada, sem «actuagao» para os outros ou para si proprias (embora isso possa acontecer acidentalmente), so para desfrutarem a companhia uns dos outros, para terem prazer, isto e, um nivel mais elevado de calor emocional, de
*Gesellscbaft designa, em contraponto, a gemeinschaft e, ainda segundo F. Tonnies, o tipo de vida em sociedade, publica e de caracter social ou associative. (N. da T.)
CAP ITU LO II integragao social e de estimulagao atraves da presenga de outros — uma estimulagao divertida, sem obrigagoes serias e os riscos inerentes a elas — do que aquele que e possivel experimentar em qualquer outra esfera da vida. Ao mesmo tempo, a sociabilidade do lazer, assim como as actividades mimeticas, e um indicador de caracteristicas das sociedades industriais. O «la.zer-gemeinscbaften» opoe-se, em particular, a rotina inerente aos contactos relativamente impessoais que sao dominantes nas esferas de nao lazer dessas sociedades. Ai, as barreiras emocionais entre as pessoas, como as restrigoes exigidas aos individuos em geral, sao habitualmente elevadas. A existencia do «la.zer-gemeinscbaften» de uma variedade de tipos mostra a necessidade corrente dos contactos humanos, do enfraquecimento dessas barreiras num clima mais intense de manifesta emotividade, com uma marcada preponderancia, ao nfvel intencional, se nao mesmo, de facto, sempre, dos aspectos positives de relagoes que de outro modo seriam ambivalentes. Mas, mais uma vez, no «laser-gemeinschaften», como noutros factos de lazer, o enfraquecimento das barreiras, o elevar do nfvel de emotividade como um agente contrario ao incrustar de rotinas, implica um certo risco. Como a maioria das pessoas sabe, o grau socialmente permitido de destruigao da rotina pode exceder-se. Para os objectives deste trabalho, nao ha necessidade de falar do vasto campo de possibilidades de investigagao aberto por esta abordagem do problema da sociabilidade do lazer. Contudo, uma area de investigagao de problemas merece, em certa medida, discussao. Em muitos casos, o prazer que as pessoas tern nas reunioes sociais parece acentuar-se atraves do consume de bebidas alcoolicas em comum. Qual e a fungao que o alcool possui enquanto ingrediente normal de muitas destas reunioes? Se a satisfagao derivada das reunioes sociais esta relacionada com a diminuigao das barreiras entre as pessoas, com uma agradavel elevagao do nivel de emotividade, porque precisam as pessoas de beber para criar, ou pelo menos aumentar os prazeres da sociabilidade? Pode dizer-se que o acto de beber em comum serve uma fungao de integragao? Que satisfagoes esperam as pessoas da sua participagao em tais «bebidasgemeinscbaften»? Quais sao as caracteristicas comuns destas reunioes? Qual e o seu curso normal? Qual e o seu curso Optimo? Que caminhos se consideram decepcionantes? E em que condigoes deve
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a bebida em comum servir uma fungao desintegradora em vez de uma fungao de integragao? Se as nossas hipoteses provisorias estao correctas, descobrir-se-a provavelmente que, neste caso tambem, as pessoas esperam das suas actividades de lazer nao so, como muitas vezes se afirma, «relaxagao» mas antes estimulagao e alegria. Mais uma vez, as abordagens medicas deste tipo de problemas parecem-nos, sem a investigagao sociologica complementar, incompletas. Existe a este respeito uma boa quantidade de provas, sugerindo que tambem neste tipo de actividade de lazer as pessoas procuram um despertar emocional agradavel e excitagao, em resumo, a produgao de tipos especificos de aumento de tensao em companhia dos outros. Estas necessidades, aparentemente ubiquas, dos seres humanos por formas de estimula^ao que so podem ser proporcionadas por outros seres humanos, serao facilmente negligenciadas se olharmos, prioritariamente, como se faz de um modo geral na abordagem medica tradicional, para o organismo individual como um sistema autocontrolado. E por esta razao que as tentativas medicas de explicar a bebida como um ingrediente normal das reunioes de lazer se revelam, de certa maneira, inadequadas. Se alguem procurar explicar as fungoes sociais da bebida, nao e suficiente assinalar que a «depressao dos centres inibidores do cerebro», devida ao consumo do alcool, «produz um sentimento passageiro de bem-estar». Se as pessoas procurassem no uso do alcool apenas um sentimento de bem-estar, poderiam muito bem permanecer em casa a beber o seu alcool. E bastante mais provavel que as pessoas bebam acompanhadas porque pela depressao dos centres inibidores do cerebro facilita-se a estimulagao amigavel reciproca, a um nivel relativamente elevado de emotividade, que e a essencia da sociabilidade do lazer. Um copo ou dois favorecem a perda relativamente rapida da habitual armadura de restrigoes profundamente encravadas e, assim, a abertura a uma divertida excitagao mutua que serve de contraponto a relativa solidao do individuo e as suas obrigagoes e rotinas, verificadas nas esferas de nao lazer, incluindo as da vida familiar. Deste modo, o «\azet-gemeinschaften>> reforgado pela bebida proporciona, como muitos outros factos de lazer, oportunidades para elevar, na presenga de outros, o nivel de emotividade manifesta em publico. Espera-se, de uma maneira geral, que a excitagao assim gerada nao va alem de certos limites. Como noutros factores
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de lazer pode ser dificil de dominar. O risco esta sempre ai. Pode bem ser que o «brincar com o fogo», neste caso, tambem constitua um aspecto do prazer. Como muitas outras formas de actividades de lazer, este brincar com o fogo, este risco, parece contribuir para a excitagao agradavel e, nessa medida, para o prazer do «lazer-g£meinschaften». Abordar os limites daquilo que e socialmente toleravel e, por vezes, transgredi-los, em resumo, suscitar a quebra limitada dos tabus socials em companhia dos outros, talvez acrescente algum gosto a estas reunioes. A ubiquidade de oportunidades em que os seres humanos podem reciprocamente «perder as suas armaduras» na companhia dos outros sugere que as necessidades de estimulagao emocional, mesmo se ela nao e especifica, exigente e relativamente moderada, e bastante mais forte e mais generalizada do que aquilo que se admite. O consume de alcool, como e evidente, actua como um auxiliar para as pessoas que, sem ele, poderiam nao ser capazes de passar tao depressa, ou talvez de modo nenhum, dos contactos relativamente impessoais em grupos dominados por tarefas altamente rotineiras e orientadas por objectivos exteriores para a companhia relativamente menos ordenada e mais pessoal de «lazer-gemeinschaft», que nao possui outro fim senao ele proprio. 2) As caracteristicas distintivas da sociabilidade como uma esfera de lazer sao bastantes claras. Aquelas que estao no centro da classe de actividades de lazer a que chamamos mimeticas sao talvez menos claras e necessitam de alguns comentarios. O termo «mimetico» sublinha que numerosas institutes e actividades de lazer, habitualmente classificadas como diversas, a um nivel mais reduzido de generalidade, possuem um caracter estrutural especifico em comum. O termo, como o usamos aqui, refere-se a questao de que os factos e actividades agrupadas sob esse nome partilham as seguintes caracteristicas estruturais: despertam emogoes de um tipo especifico que estao intimamente relacionadas de uma forma especifica, diferente, com aquelas que as pessoas experimentam no decurso da sua vida ordinaria de nao lazer. No contexto dos factos mimeticos, as pessoas podem experimentar e, em alguns casos, representar medo e riso, ansiedade e amor, simpatia e antipatia, amizade e odio e muitas outras emogoes e sentimentos que tambem podem experimentar na sua vida de nao lazer. Mas no contexto mimetico todos os sentimentos e, no caso de isso suceder,
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os actos dominados pelas emogoes com eles relacionados transpoem-se. Perdem o seu ferrao. Mesmo o medo, o horror, o odio e outros sentimentos que estao longe de serem agradaveis, e as acgoes correspondentes no quadro mimetico, associam-se em maior ou menor dimensao a sentimentos de prazer. As experiencias e o comportamento das pessoas num contexto mimetico representam, desse modo, uma transposigao especifica de experiencias e de comportamentos caracterfsticos das chamadas coisas «serias da vida», quer este termo se refira ao trabalho profissional quer a outras actividades de lazer. Nao significa que o ultimo seja uma imitagao ou reflexo do primeiro. Refere-se ao facto de que no contexto mimetico, o comportamento emocional e as experiencias da vida ordinaria adquirem uma tonalidade diferente. Aqui podem experimentar-se e, em alguns casos, representar-se sentimentos fortes sem se correr qualquer dos riscos normalmente associados a todas as actividades que se realizam sob o impacte de forte excitagao emocional, em particular nas sociedades altamente civilizadas mas, em certa medida, tambem nas outras. De facto, o despertar de excitagao de tipo especifico e o fulcro de todas as actividades mimeticas de lazer. Fora do contexto mimetico, o publico despertar de intensa excitagao e a manifestagao de um comportamento excitado sao controlados, de um modo geral, de forma severa; sao limitados pela propria consciencia das pessoas. No contexto mimetico, a excitagao agradavel pode demonstrar-se atraves da aprovagao dos amigos e da propria consciencia, desde que nao exceda certos limites. Pode experimentar-se odio e o desejo de matar, derrotar adversaries e humilhar inimigos. Pode participar-se fazendo amor com o homem ou a mulher mais atraentes, experimentando as ansiedades de ameagadora derrota e o aberto triunfo da vitoria. Em resumo, pode tolerar-se, ate certo ponto, o despertar de fortes sentimentos de grande variedade de tipos em sociedades que, de outra forma, impoem as pessoas uma vida de rotinas relativamente harmoniosa e sem emogao, e que exige um nivel elevado e grande regularidade de controlos emocionais em todas as relagoes humanas. Deste modo, as actividades mimeticas partilham com os outros dois tipos de lazer a fungao de antidotos para as rotinas da vida. Mas no seu caso depara-se-nos pelo menos nas sociedades altamente industrializadas, uma grande variedade de institutes e de organi-
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zagoes particularmente especializadas para as tarefas de lazer, para o despertar de excitagao mimetica, como um ponto cristalizador para um vasto campo de outras experiencias. Estas tarefas altamente especializadas reunem institutes mimeticas e actividades que, de forma geral, se agrupam em compartimentos separados, tais como divertimento e cultura, desportos e arte. For certo, sera necessario olhar com maior profundidade para estas diferengas, mas dificilmente isso podera efectuar-se sem que, ao mesmo tempo, se investiguem as suas caracteristicas comuns nao so enquanto factos de lazer mas, tambem, como factos mimeticos de lazer.
CAPITULO III A genese do desporto: urn problema sociologico Norbert Elias
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Muitos tipos de desportos que hoje sao praticados, de maneira mais ou menos identica, por todo o mundo tiveram origem em Inglaterra1. Daqui propagaram-se para outros paises, principalmente, na segunda metade do seculo XIX e primeira metade do seculo XX. O futebol, sob a forma que se tornou conhecida em Inglaterra por association football ou atraves da abreviatura popular de soccer, foi um deles. Corridas de cavalos, luta, boxe, tenis, caga a raposa, remo, criquete e atletismo foram outras formas. Mas nenhuma foi adoptada e absorvida pelos outros paises com tanta intensidade e, em muitos casos, com tanta rapidez, como se deles fizessem parte, como o futebol. Nem gozaram de tanta popularidade2. O termo ingles sport tambem foi largamente adoptado por outros paises como um termo generico para este tipo de passatempos. O facto de os sports, o tipo especifico de passatempos ingleses x
Este trabalho foi publicado previamente em Eric Dunning (ed.), The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971. O quadro teorico ai integrado esta muito relacionado e e, de facto, uma extensao da teoria dos processes de civilizagao definidos por Norbert Elias em The Civilizing Process, Oxford, 1978; e State Formation and Civilization, Oxford, 1982. 2 Nao e possfvel investigar aqui, com maior minucia, o facto de terem sido bastante mais reduzidas, quanto ao seu campo de acgao, a difusao e a adopgao da forma mais «rude» do futebol ingles, em contraste com a difusao e a adopgao de forma denominado soccer. Mas talvez merega a pena referir que o estudo deste tipo de problemas pode fornecer uma boa quantidade de provas e servir como um tema de estudo para aspectos especiflcos de uma teoria sociologica do desporto.
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A GfiNESE DO DESPORTO
que se divulgaram por muitos paises, particularmente entre 1850 e 1950, possuirem em comum certas caracteristicas singulares, justificando a referida designagao, foi por certo mais notado nos outros paises do que em Inglaterra. Um comentador alemao escreveu em 1936: Como bem sabemos, a Inglaterra foi o bercp e a «mae» devota do desporto... Parece que os termos que se referem a este carnpo se tornaram propriedade comum de todas as nagoes, da mesma maneira que os termos tecnicos italianos no campo da musica. E raro, provavelmente, que uma pec,a de cultura tenha migrado com tao poucas mudangas de um pais para outro3. O facto de o «desporto» — o dado social tanto quanto a palavra — ser, de inicio, estranho nos outros paises pode demonstrar-se a partir de muitos exemplos. O tempo de um processo de difusao e de adopgao e sempre um dado significative no contexto de um diagnostico sociologico. Desta maneira, na Alemanha de 1810, um aristocrata escritor, que conhecia a Inglaterra, continuava a poder dizer que sport e tao intraduzivel quanto gentleman4. Em 1844, outro autor alemao escreveu, a respeito do termo sports, que «nao temos palavra para isso e somos quase forgados a introduzir o termo na nossa lingua»5. A difusao do termo ingles sport como uma expressao que os Alemaes podiam compreender com naturalidade continuou lenta ate 1850. Gradualmente adquiriu impeto em conjunto com o crescimento das proprias actividades desportivas. Por fim, no seculo XX, o termo sport estabeleceu-se por complete como uma palavra alema. Em Franga o Larousse du XIX.1™6 Siecle caracterizava desta maneira o termo sport: «Sport — sportt: palavra inglesa formada do antigo frances cksport, prazer, diversao...» Lamentava-se quanto a importagao de tais termos «que, obviamente, corrompem a nossa lingua, mas nao temos barreiras de costumes que proibam a sua
3 Tradugao do autor de England* Einfluss auf den deutschen Wortschatz, de Agnes Bain Stiven, Marburgo, 1936, p. 72. 4 Prmcipe Puechlser-Muskau, Brief e ernes Verstorbenem, 9 de Outubro de 1810. 5 J. G. Khol, citado por F. Kluge em Ethymologtsches Worterbuch, IT edi^ao, 1957, artigo sobre desporto.
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passagem na fronteira»6. Outras importances de Inglaterra para Franga, quer factuais como verbals foram turf, jockey, steeplechase, match, sweepstake, boxe*. Ja, sob Luis XVIII, as corridas de cavalos e as apostas, de acordo com os modelos ingleses, se tinha divulgado em Franga. A moda desapareceu durante a revolugao, mas foi revivida com o restabelecimento de uma classe alta mais ou menos aristocratica. Em 1833, fundou-se em Paris um clube de joqueis. De facto, o tipo aristocratico ou de society dos passatempos que dominavam, com o sentido do termo sport, em Inglaterra, na primeira metade do seculo XIX, propagou-se a outros pafses, tendo side adoptado pelas correspondentes elites sociais antes de os tipos mais populates, como o futebol, se desenvolverem com as caracterfsticas de um sport', antes mesmo de estes serem compreendidos como tal na propria Inglaterra e de se propagarem, sob essa forma, a outros pafses como um passatempo de grupos da classe media e dos trabalhadores. Na Alemanha, como em Franca, alguns termos ingleses que pertenciam a linguagem do desporto do tipo das classes altas fpram adoptados ja no seculo XVIII. Desde aproximadamente 1744, um velho termo baxen apareceu na forma literaria de boxen. Para compreendermos o desenvolvimento das sociedades europeias, tal como para se compreender o proprio desporto, e muito significativo que os primeiros tipos de desportos ingleses adoptados por outros pafses tenham sido as corridas de cavalos, o pugilismo, a caga a raposa e passatempos semelhantes, e que a difusao de jogos de bola, como futebol e tenis, e do «desporto» em geral, no sentido mais contemporaneo, tenha comegado somente na segunda parte do seculo XIX. A transformagao dos polimorfos jogos populares ingleses em futebol ou soccer assume o caracter de um desenvolvimento bastante vincado no sentido de maior regulamentagao e uniformidade. Esta culminou na codificagao do jogo, a um nivel nacional, mais ou menos em 1863. O primeiro clube alemao de futebol fundou-se, de 6
Larousse du XIVrem Siecle. *Turf, relvado; jockey, corredor professional nas corridas de cavalos; steeplechase, corridas de cavalos com obstaculos; match, desaflo, jogo, competigao desportiva; sweepstake, uma certa modalidade de aposta, principalmente nas corridas de cavalos, em que o vencedor recebe todo ou quase todo o dinheiro apostado; boxe, pugilismo. (N. da T.)
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modo bem elucidative, em Hanover, em 1878. Na Holanda, o primeiro clube de futebol foi fundado em 1879/80 e, em Italia, cerca de 1890. As federagoes de futebol fundaram-se na Suiga, em 1895, na Alemanha, em 1900, e em Portugal, no ano de 1906, o que revela o aumento do numero de clubes em cada pais. So na Holanda existiam, desde 1900/01, vinte e cinco clubes de futebol, cada um com mais de dez membros. Em 1910/11, o numero de clubes elevara-se para cento e trinta e quatro. De 1908 em diante, o futebol tornou-se — com algumas interrupgoes — um elemento regular dos Jogos Olimpicos. A medida que o jogo se divulgava por outros paises, o proprio termo futebol, muitas vezes transformado por conveniencia e, na maior parte das vezes, associado ao tipo de futebol ingles soccer, invadiu outras linguas. Em Franga manteve a sua forma original. Na Alemanha transformou-se sem grande diflculdade em fussball. Em Espanha tornou-se futbol com caracteristicas derivativas, como futbolero tfutbolista. Em Portugal tornou-se futebol, na Holanda voetbal. Nos Estados Unidos, tambem o termo football se relacionou durante um tempo com o tipo de jogo soccer, mas entao o termo alterou o seu sentido, de acordo com as mudangas verificadas no sucesso do proprio jogo. O tipo dominante americano de jogo de futebol transformou-se de modo gradual a partir do soccer. Algumas das principals universidades americanas, segundo parece, divergiram a partir das suas regras iniciais, primeiro influenciadas por uma variante canadiana do rival ingles do futebol, o rugby-football ou rugger, que se desenvolveu entao a sua maneira. Mas o termo football permaneceu associado a um estilo diferente de jogar, que evoluiu de modo gradual e, por fim, foi estandardizado nos Estados Unidos, enquanto o tipo de jogo association se tornou ai conhecido pura e simplesmente como soccer, em contraste com o uso continuo do termo futbol e football para esta forma de jogo nos Estados lat ino-americanos. Poderiam apresentar-se muitos outros exemplos desta difusao a partir de Inglaterra e de absorgao por parte de outros paises do desporto e dos termos a ele associados. Numa primeira abordagem, estes exemplos sao talvez suficientes para apresentar o problema.
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Que se pode concluir do facto de um tipo de passatempo ingles chamado «desporto» ter determinado, principalmente no seculo XIX e XX, o padrao de um movimento de lazer de dimensao mundial? Passatempos deste tipo correspondent como parece evidente, a necessidades especfficas de lazer que se fazem sentir durante esse periodo em varios paises. For que razao emergiram elas, em primeiro lugar, em Inglaterra? No desenvolvimento e na estrutura da sociedade inglesa, que condigoes justificam o progresso af verificado nas actividades de lazer com as caracterfsticas especificas que designamos por «desporto»? E o que distingue os passatempos que as possuem dos anteriores passatempos? A primeira vista pode sentir-se que este con junto de questoes se baseia em hipoteses falsas. Na verdade, as sociedades contemporaneas nao sao as primeiras nem as unicas cujos membros sentiram prazer no desporto. As pessoas nao jogaram futebol em Inglaterra e em outros paises durante a Idade Media? Os cortesaos de Luis XIV nao possuiam os seus courts de tenis e nao apreciaram o seu jeu de paume! E, acima de tudo, os antigos gregos, os grandes pioneiros do «atletismo» e de outros «desportos», nao organizaram, como nos, competigoes de jogos locais e interestados numa escala grandiosa? O renascimento dos Jogos Olimpicos do nosso tempo nao e um indicador suficiente quantd ao facto de o «desporto» nao ser nada de novo? Sem considerar brevemente o problema de conhecer se, na realidade, as competigoes de jogos da antiga Grecia possuiam as caracterfsticas daquilo que agora consideramos como «desporto», e diffcil clarificar a questao de saber se o tipo de competigoes de jogos que se desenvolveram durante os seculos XVIII e XIX, em Inglaterra, sob o nome de «desporto», e que desde af se propagaram a outros pafses, era alguma coisa relativamente nova ou se se tratava do reaparecimento de alguma coisa antiga que, sem explicagao, estivesse desaparecida. O termo «desporto» e utilizado no presente de uma maneira bastante vaga, de forma a abranger confrontos de jogos de numerosos generos. Como o termo «industria», e utilizado tanto num sentido lato como num sentido restrito. No sentido lato refere-se, tambem como o termo «industria», tanto a actividades especfficas de sociedades tribais pre-Estado e de socie-
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dades-Estado pre-industriais, como as actividades correspondentes dos Estados-nagoes industriais. Se, contudo, no presente utilizarmos o termo «industria» neste sentido lato, estamos bem conscientes do seu sentido restrito e mais precise, ou seja, do facto de o «processo de industrializagao» dos seculos XIX e XX ser algo muito recente e de os tipos especificos de produgao e de trabalho que se desenvolveram, em fase hodierna, sob o termo «industria», possuirem certas estruturas unicas que podem ser determinadas sociologicamente com razoavel precisao, sendo nitidamente distintas das estruturas de outros tipos de produgao. Se falarmos de «desportos», todavia, continua a empregar-se o termo de maneira indiscriminada, quer num sentido lato, em referencia ao confronto de jogos e aos exercicios fisicos de todas as sociedades, quer num sentido mais restrito, em relagao ao tipo especifico de praticas de jogos que, como o proprio termo, teve origem em Inglaterra e dai se propagou a outras sociedades. Este processo — podiamos designa-lo por «desportivizagao» das competigoes de jogos, se isso nao soasse de uma forma tao pouco atraente — evidencia um problema que e bastante claro: no recente desenvolvimento da estrutura e da organizagao destas actividades de lazer a que chamamos «desporto», sera possfvel descobrir orientagoes que sejam tao singulares como as que se observam na estrutura e organizagao do trabalho, a que nos referimos quando falamos de um processo de industrializagao? Esta e uma questao em aberto e pode ser facilmente mal interpretada. Perante a avaliagao dominante que se faz do trabalho, como algiima coisa de muito maior valor do que as actividades de lazer de todos os generos, pode sugerir-se sem difkuldade que qualquer transformagao quer nas actividades de lazer em geral quer nos confrontos de jogos em particular, que tern ocorrido nos ultimos duzentos anos aproximadamente, devem ter sido o «efeito» do qual a industrializagao foi a «causa». A expectativa implicita de relagoes casuais deste tipo encerra o problema, provavelmente, antes de este ter sido aberto. Pode, por exemplo, considerar-se a possibilidade de que tanto a industrializagao como a transformac.ao das ocupagoes especificas de lazer em desportos serem aspectos de orientagao interdependentes no quadro da transformagao global das sociedades-Estado, nos tempos recentes. So pode haver esperanga de clarificar o problema que aqui se nos depara se decidirmos deixar de tratar como «causas» as mudangas nas esferas sociais que
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se classiflcam de superiores na escala de valores de uma sociedade, e como «efeitos» as mudangas em esferas inferiores. E a explicagao do proprio problema — o da genese do desporto — e a principal tarefa deste pequeno trabalho. Neste, como em muitos outros casos, e mais facil encontrar solugoes se soubermos com clareza qual e o problema.
O excerto que se segue de um artigo de atletismo numa edigao recente da Encyclopaedia Britannica pode ser encarado, provavelmente, como um razoavel sumario das perspectivas convencionais existentes quanto a este problema: Os primeiros registos historicos de atletismo sao os dos jogos Olimpicos gregos (800 a. C.)... proibidos pelo imperador Teodosio no ano de 349 d. C. A historia do atletismo, entre a queda de Roma, no seculo V, e o seculo XIX, e bastante imprecisa. Na Idade Media, os festivais religiosos eram acompanhados por rudes jogos de bola entre cidades rivais ou corporagoes. Estes foram os percurssores dos grandes espectaculos desportivos do seculo XX: soccer, basebol, tenis, futebol, etc. O advento da revolugao industrial, em meados do seculo XVIII, e a posterior introduce dos desportos como uma actividade extracurricular regular nas escolas publicas, por Thomas Arnold (1830), proporcionaram um avan^o que conduziu ao grande desenvolvimento do desporto durante a epoca vitoriana de Inglaterra. A coroar o renascimento do seculo XIX estava a restauragao dos Jogos Olfmpicos em Atenas, no ano de 1896. Assim que o seculo XX surgiu, o interesse por todos os desportos de competigao atingiu o cume e, apesar de duas guerras mundiais e de numerosas hostilidades menores, este interesse continua a aumentar. Este resumo, como se pode ver, apresenta factos razoavelmente documentados. Em alguns mementos, insinua uma explicagao, como a do impulso que se supoe ter sido dado ao desporto por meio da iniciativa do Dr. Arnold. Mas dificilmente este trecho podera ser nomeado para abrir os olhos do leitor quanto a muitos problemas nao resolvidos que se escondem sobre a suave superficie da narrativa. Por exemplo, como se pode explicar que os festivais religiosos
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na antiguidade, em Olimpia e em outros locals, fossem, aparentemente, menos rudes e, desse modo, de caracter mais proximo daqueles do seculo XIX e XX? E como pode determinar-se o facto de estes serem menos rudes? E como aquilatar-se que estes sao menos rudes? Como pode determinar-se, com um razoavel grau de precisao, variagoes na «rudeza» quanto a execugao dos jogos, no ambito dos padroes civilizados? E como pode alguem explica-los? Como se explica o «grande desenvolvimento do desporto», o «restabelecimento do atletismo no seculo XIX»? Se recordarmos os torneios da Idade Media ou os inumeros jogos populares desse periodo — nao suprimidos e, de facto, irreprimfveis, mesmo que as autoridades os desaprovassem, como os repetidos edictos contra a pratica do futebol em Inglaterra e noutros paises europeus indicam — dificilmente se pode afirmar que ai nao existiu, nessa epoca um interesse muito grande pelos confrontos de jogos desse tipo. As diferengas entre as competigoes de jogos que as pessoas desfrutavam na epoca da «revolugao industrial consistiam apenas numa questao de um maior ou menor grau de «rudeza»? A que se deve o facto de os ultimos serem menos selvagens, de serem mais «civilizados»? E esta e uma das caracteristicas que os distinguem do desporto? Mas, nesse caso, justifica-se falar de um «renascimento»? O movimento do desporto no seculo XIX e XX e outra Renaissance*, um inexplicavel «renascer» de alguma coisa que existiu na Antiguidade, pereceu na Idade Media e, por razoes desconhecidas, renasceu, simplesmente, no nosso tempo? As competigoes de jogos na Antiguidade eram menos «rudes» e menos selvagens? Seriam, como as nossas, relativamente contidas e representativas de uma sensibilidade comparativamente elevada, oposta ao alegre provocar de ferimentos graves nos outros, para deleite dos espectadores? Ou a tendencia para apresentar o movimento dos desportos modernos como uma restauragao de um movimento similar na Antiguidade e uma dessas benevolas lendas ideologicas, utilizadas inocentemente como um meio para fortalecer a unidade de um movimento que esta repleto de tensoes e de tendencias conflituosas, e para realgar o seu encanto e prestfgio? Nesse caso, nao seria talvez preferivel examinar, de modo realista, as condigoes especificas que
*Renascenga, em Frances no original. (N. da T.)
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contribuiram para a genese e ascensao do movimento dos desportos do nosso tempo, enfrentar o facto de que competigoes de jogos do tipo que nos chamamos «desporto», tal como os Estados-nagoes industrials onde surgiram, possuem certas caracteristicas unicas que os distinguem dos outros tipos, e iniciar assim a dificil tarefa de investiga-los e de explicar a natureza destas caracteristicas distintivas?
A partir de um exame mais profundo, nao e dificil verificar que os concursos de jogos da Antiguidade Classica, que sao representados com frequencia como paradigma do desporto, possuiram numerosas caracteristicas importantes e progrediram sob condigoes que eram muito diferentes das que distinguem os nossos proprios concursos de jogos. O ethos dos concorrentes, as regras das provas e os proprios desempenhos diferem nitidamente, em muitos aspectos, dos que sao caracteristicos do desporto moderno. Muitos dos escritos relevantes de hoje apresentam urna forte tendencia para minimizar as diferengas e aumentar as similaridades. O resultado disso e um quadro distorcido de nos proprios, bem como da sociedade grega, e um quadro falseado das relagoes entre as duas realidades. Os result ados sao confundidos nao so pela tendencia de tratar os concursos de jogos da Antiguidade como a personificagao ideal do desporto contemporaneo mas, tambem, pela correspondente expectativa de encontrar a confirmagao para esta hipotese nos escritos da Antiguidade, pela tendencia, ainda, de negligenciar provas contraditorias ou trata-las de modo automatico, enquanto referencias a casos excepcionais. Bastara assinalar, a este proposito, um aspecto caracteristico das diferengas existentes na estrutura global dos concursos de jogos da Antiguidade Classica e na dos jogos do seculo XIX e XX. Na Antiguidade, as regras do costume para acontecimentos atleticos «duros», como o pugilismo e a luta, admitiam um grau de violencia bastante mais elevado do que aquele que era admitido pelas regras do tipo das provas correspondentes do desporto. As regras deste ultimo, alem disso, sao muito detalhadas e diferenciadas; em primeiro lugar, nao sao regras forjadas no costume mas regras escritas, sujeitas explicitamente a um
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criticismo racional e a revisoes. O nivel superior da violencia fisica nos proprios jogos da Antiguidade era mais do que um dado isolado. Isso era sintomatico de tragos especificos na organizagao da sociedade grega, em especial no estadio de desenvolvimento alcangado por aquilo que nos hoje designamos por organizagao de «Estado» e pelo grau de monopoliza^ao da violencia fisica nele integrada. A monopolizagao relativamente firme, estavel e impessoal e o controlo dos meios de violencia e um dos tragos centrais dos Estados-na^oes contemporaneos. Em comparagao, a monopolizagao e o controlo da violencia fisica institucional nas cidades-Estado da Grecia, permanecia rudimentar. O esclarecimento de problemas como este nao e dificil se a investigagao for guiada por um modelo teorico claro, tal como o que e fornecido pela teoria do processo de civilizagao7. De acordo com ele, espera-se que a forma^ao do Estado e a formagao da consciencia, o nivel de violencia fisica socialmente permitido e o limiar de repugnancia contra o seu uso ou respective testemunho assumam formas especiflcas em diferentes estadios no desenvolvimento das sociedades. E surpreendente descobrir como o exemplo da Grecia Classica confirma de maneira tao completa estas expectativas teoricas. Deste modo, a teoria e os dados empiricos, em con junto, anulam um dos principals obstaculos na compreensao das diferengas de desenvolvimento como as que existem entre os antigos concursos de jogos e os contemporaneos, nomeadamente a sensagao de que se langa uma censura sobre a outra sociedade e se ameagam os seus valores humanos ao adinitir que o nivel de violencia fisica ai tolerado, mesmo nos concursos de jogos, era elevado, e o limiar de reacgao contra o facto de as pessoas serem feridas, ou mesmo mortas entre si em tais disputas, para deleite dos espectadores, ser por correspondencia inferior ao nosso. No caso da Grecia fica-se, deste modo, dividido entre os elevados valores que tradicionalmente estao associados as suas realizagoes na filosofia, nas ciencias, nas artes e na poesia, e o baixo valor humano que parece atribuir-se aos gregos antigos, se encararmos o seu baixo nivel de reacgao contra a violencia ffsica> parecendo sugerir-se que, cornpa-
7
Norbeirt Elias, The Civilizing Process, 1978; e State Formation and Civilization, Oxfbfd, 1982.
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rados connosco, eles eram «nao civilizados» e «barbaros». E precisamente esta interpretagao incorrecta da natureza factual do processo de civilizagao, a tendencia dominante para usar termos como «civilizado» e «nao civilizado» como expressoes de juizos morais etnocentricos, como juizos morais absolutos e definitivos — nos somos «bons» eles sao «maus» ou vice-versa — que conduz o nosso raciocmio a contradigoes aparentemente inevitaveis como estas. Nos proprios evoluimos de acordo com uma organizagao social e um controlo dos meios de violencia especifico dos Estados-nagoes do nosso tempo, com padroes especificos de autodommio quanto a impulsos de violencia. Avaliamos as transgressoes de maneira automatica por estes padroes — quer elas ocorram na nossa propria sociedade quer noutros estadios de desenvolvimento diferentes. Assim interiorizados, estes padroes proporcionam protec^ao e fortalecem as nossas defesas, sob uma grande variedade de formas, contra pequenas faltas. Uma sensibilidade elevada relativamente a actos de violencia, a sensagao de repugnancia contra o facto de se presenciar a violencia, cometida para alem do nivel permitido na vida real, sentimentos de culpa sobre os nossos proprios erros, uma «ma consciencia», tudo isto e sintomatico destas defesas. Contudo, num periodo de incessante violencia presente nas questoes entre Estados, estas defesas interiorizadas contra impulsos a violencia permanecem> inevitavelmente, instaveis e frageis. Elas sao continuamente expostas a pressoes sociais conflituosas — aquelas encorajando um elevado nivel de autodommio dos impulsos violentos nas relagoes humanas na mesma sociedade-Estado, e estas encorajando uma libertagao do autodommio dos impulsos violentos e mesmo uma preparagao para a violencia nas relagoes entre sociedades-Estado diferentes. O primeiro e responsavel pelo elevado nivel de seguranga fisica, embora nao o seja, e claro, quanto a seguranga psicologica e de outras formas usufruida pelos cidadaos dos Estados-nagoes mais desenvolvidos, nas suas proprias sociedades. Estas defesas entram constantemente em conflito com as exigencias impostas aos cidadaos destes Estados, como o resultado da ausencia de qualquer monopolizagao e controlo eficiente da violencia fisica nas relagoes entre Estados. A consequencia e uma moralidade dupla, a ruptura e a contraditoria formagao da consciencia. Sem diivida que discrepancias deste tipo podem encontrar-se em muitos estadios do desenvolvimento das sociedades. O nivel de controlo
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da violencia no seio dos grupos socials do estadio tribal e quase sempre mais elevado do que o de controlo da violencia entre grupos sociais deste tipo. Com certeza, nao seria diferente nas cidades-Estado gregas. Mas, neste caso, a disparidade entre os dois niveis era relativamente pequena, comparada com a que e caracteristica do nosso proprio tempo. Existe uma grande quantidade de provas sugerindo que este ingrediente, a disparidade entre o nivel de seguranga fisica e das formas de controlo social e de autodominio dos impulses violentos, com a correspondente formagao da consciencia alcangada hoje nas relagoes entre Estados, bem como o nivel de seguranga fisica e de regulamentagao social de sentimentos manifestamente violentos e — intermitentemente — de actos manifestos de violencia nas relagoes entre Estados, e hoje superior ao que alguma vez existiu antes. O nivel de seguranga fisica nos Estados-nagoes industrials mais avangados, embora possa parecer bastante reduzido para aqueles que vivem nelas, e, com toda a probabilidade, normalmente superior ao das sociedades-Estado menos desenvolvidas, ao mesmo tempo que a inseguranga nas relagoes entre Estados dificilmente decresceu. No actual estado de desenvolvimento social, os conflitos violentos entre Estados permanecem tao ingovernaveis para aqueles que estao envolvidos neles, como sempre o foram. De acordo com isso, os padroes de comportamento civilizado sao relativamente baixos e a interiorizagao dos tabus sociais contra a violencia fisica, a formagao da consciencia quanto a este problema, e transitoria e comparativamente instavel. O facto de os conflitos e tensoes no interior dos Estados-nagoes industrializados se terem transformado — normalmente — em menos violentos e de certo modo mais governaveis e o resultado de um longo desenvolvimento nao planeado; nao e certamente o resultado do merito das geragoes actuals. Mas as geragoes actuals consideram isso como tal; mostram tendencia para situar-se em relagao as geragoes do passado, cuja formagao da consciencia e limiar de reacgao contra a violencia fisica, por exemplo, nas relagoes entre elites dominantes e dominados era inferior, como se o seu proprio limiar de reacgao superior fosse, simplesmente, o resultado do seu empreendimento pessoal. O nivel de violencia que pode observar-se nos confrontos de jogos de periodos passados considera-se muitas vezes desta maneira. Nao sao raras as vezes que falhamos na distingao entre actos in-
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dividuais de transgressao contra os padroes de controlo da violencia na nossa propria sociedade e actos individuais de um genero similar praticados no seio de outras sociedades, de acordo com o seu nivel socialmente permitido de violencia, com as normas dessa sociedade. Deste modo a nossa imediata, a nossa quase automatica resposta emocional induz-nos, muitas vezes, a julgar sociedades com diferentes padroes de controlo da violencia, como se os membros dessas sociedades estivessem livres para escolher entre os sens padroes e as suas normas e, tendo feito essa escolha, tivessem optado pela decisao errada. Em relagao a eles, desfrutamos a mesma sensagao de «ser melhor», de superioridade moral experimentada com frequencia em relagao a agressores individuais na nossa sociedade, quando chamamos a sua conduta «nao civilizada» ou «barbara», expressando desta maneira os nossos sentimentos de superioridade moral. Analisamos a sua aderencia a normas sociais que permitem formas de violencia condenadas como repulsivas nas nossas proprias sociedades como se fossem uma mancha no seu caracter moral, um sinal da sua inferioridade como seres humanos. A outra sociedade e assim julgada e avaliada por nos como um todo, como se fosse um membro individual da nossa propria sociedade. Em geral, nao perguntamos, e portanto nao sabemos, que oportunidades surgiram no nivel de controlo da violencia nas normas sociais que regulamentam a violencia ou nos sentimentos associados a violencia. Em regra, nem perguntamos e, por esse motivo nao sabemos, porque e que se verificam. Por outras palavras nao sabemos como e que elas podem ser explicadas ou, nesse aspecto, como e que pode ser explicado o nosso proprio nivel de sensibilidade mais elevado em relagao a violencia fisica, pelo menos nas relagoes entre Estados. Quanto muito, elas sao explicadas vagamente mais pela escolha das nossas proprias expressoes do que explicita e criticamente, por exemplo, como um fluxo na natureza dos grupos envolvidos, ou como uma caracteristica inexplicavel da sua maneira de ser «racial» ou etnica.
Os niveis habituais de violencia praticados e admitidos nos confrontos de jogos das sociedades em diferentes estadios de desen-
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volvimento esclarece, deste modo, urn problema mais vasto e fundamental. Alguns exemplos podem contribuir para o tornar mais preciso. Considere-se o caso da luta executada nos nossos proprios dias e na Antiguidade. Hoje o desporto esta altamente organizado e regulamentado. A luta e dirigida por uma Federagao Internacional de Luta, com sede na Suiga. De acordo com as regras olimpicas de Janeiro de 1967, entre todas as prisoes da luta de estilo livre esta o estrangulamento, o meio-estrangulamento e o duplo-Nelson*, com aplicagao de pressao directa para baixo com o uso das pernas. Socos, pontapes, cabegadas, tudo e proibido. Um assalto, que nao dura mais que nove minutos, esta dividido em tres periodos de tres minutos cada, com dois intervalos de um minuto, sendo controlado por um arbitro, tres juizes e um cronometrista. Apesar destas regulamentagoes rigidas, a luta de estilo livre surge hoje, a muitas pessoas, com um dos tipos de desporto menos refinados e rnais «rudes». Uma versao um pouco mais violenta, executada por profissionais como um desporto-espectaculo, embora muitas vezes previamente combinada, permanece muito popular. Mas os profissionais raramente infligem ferimentos graves uns aos outros. Com toda a probabilidade, o publico nao gostaria de ver ossos partidos e sangue a correr. Mas os executantes efectuam uma boa demonstragao de se magoarem uns aos outros e o publico parece gostar desta simulagao8. Entre os concursos de provas dos Jogos Olimpicos estava o pancracio, uma especie de luta no solo que constituia um dos acontecimentos mais populares. Mas o nfvel de violencia permitida, representada pelo habitual duelo do pancracio, era muito dife8
Para urn debate quanto a luta profissional moderna enquanto um tipo de farsa, ver «American Sports: Play and Dis-play» e «Wrest ling: the Great American Passion Play», de Gregory P. Stone, em Eric Dunning (ed.), The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971. ^Double-Nelson, ou duplo-Nelson, designa uma tecnica particular de luta na qual o atacante utiliza ambos os membros superiores, colocando-se atras do adversario e passando os seus brakes sob as axilas do adversario, de modo a que, atraves da flexao dos antebragos e com um movimento de pronagao das maos, estas sejam colocadas com os dedos entrelagados sobre a nuca do opositor. A extensao dos antebragos do atacante, que em geral se segue, obriga a que se efectue um movimento de extensao maxima da cabega do adversario de que pode resultar asflxia e morte. Actualmente, nao e utilizada em competicjio. (N. da T.)
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rente daquele que e permitido hoje na luta de estilo livre contemporanea. Deste modo, Leontikos de Messana, que ganhou a coroa olimpica por duas vezes, pela luta, obteve as suas vitorias nao por derrubar os seus adversaries mas por Ihes partir os dedos. Arrhachion de Phigalia, duas vezes vencedor olimpico no pancracio, foi estrangulado em 564 durante a sua terceira tentativa para veneer a coroa olimpica, mas antes de ser morto conseguiu partir os dedos do pe do seu opositor e a dor forgou este ultimo a desistir da luta. Por esse motivo, os juizes coroaram o cadaver de Arrhachion e proclamaram o morto vencedor. Na sequencia disso, os seus compatriotas erigiram uma estatua de Arrhachion na praga da sua cidade9. Aparentemente, era esta a pratica tradicional. Se um homern era morto, numa prova de um dos grandes festivals, era coroado vencedor. Mas, para alem da perda da coroa — um reves muito duro —, o sobrevivente nao era castigado. Nem existia, tanto quanto se pode ver, qualquer estigma social inerente a esta acgao. Ser morto ou gravemente ferido e, talvez, ficar incapacitado para o resto da vida era um risco que um lutador do pancracio tinha de correr. Pode estabelecer-se a diferenga entre a luta como um desporto e a luta como um agon, a partir do seguinte resumo: No pancracio os adversaries lutavam com todas as partes do corpo, as maos, os pes, os cotovelos, os joelhos, os pescogos e as cabegas; em Esparta usavam mesmo os pes. Os lutadores do pancracio podiam arrancar os olhos uns aos outros... podiam, tambem, obstruir, agarrar os pes, narizes e orelhas, deslocar os dedos e bragos e aplicar estrangulamentos. No caso de conseguirem derrubar o outro, podiam sentar-se sobre ele e bater-lhe na cabec^a, cara e orelhas; tambem podiam dar-lhe pontapes e pisa-lo. Nao e precise dizer que os lutadores desta prova brutal eram atingidos por vezes pelos mais terriveis ferimentos e, nao raro, morriam! O pancracio dos jovens efebos era provavelmente o mais brutal de todos. Pausanias diz-nos que os lutadores lutavam com unhas e dentes, mordiam e rasgavam os olhos
9
H. Forster, Die Sieger in den Olympischen Spieler, Zwickau, 1891. Franz Mezoe, Geschichte der Olympischen Spiele, Munique, 1030, pp. 100-1; citado por Ludwing Dress em Olympia; Gods, Artists and Athletes, Londres, 1968, p. 83. 10
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Havia um juiz mas nao um cronometrista, nao existindo limites de tempo. A luta durava ate que um dos oponentes desistisse. As regras eram tradicionais, nao escritas, indiferenciadas e na sua aplicagao eram, por certo, flexiveis. Parece que, tradicionalmente, morder e arrancar os olhos era proibido. Mas, antes que o juiz pudesse afastar um agressor dominado pela furia do combate, quando este era afastado do seu oponente o dano ja estava consumado. Os antigos Jogos Olimpicos duraram mais de mil anos. Os padroes de violencia na luta podem ter oscilado durante todo este periodo, mas, fossem quais fossem as oscilagoes ao longo de toda a Antiguidade, o limiar de sensibilidade quanto a provocagao de ofensas fisicas e mesmo da morte num combate, e, de acordo com isso, todo o ethos da prova, era muito diferente daquele que, nos nossos dias, e representado pelo tipo de confrontos caracterizado como «desporto». O pugilato e outro exemplo. Tal como o tipo de luta do pancracio, era muito menos limitado por regras e, por essa razao, dependia em grau mais elevado da forga fisica, da forga espontanea, da paixao e da resistencia, do que o boxe. Nao existiam distin^oes entre diferentes classes de pugilistas. Por este motivo, nao se procurava confrontar individuos segundo o seu peso, nem nesta nem em qualquer outra prova. A unica distingao que existia era entre rapazes e adultos. Os pugilistas nao lutavam apenas com os punhos, em quase todas as formas de pugilato, as pernas desempenhavam um importante papel. Dar pontapes nas pernas do adversario constituia um elemento normal na tradigao do pugilato na Antiguidade11. Apenas as maos e as partes superiores dos quatro dedos eram ligadas com tiras de couro*, apertadas no antebrago. Os punhos podiam estar cerrados ou os dedos esticados e, com pregos duros, batiam no corpo e na cara dos oponentes. Com o passar do n
Filostrato, On Gymnastics (Peri Gymnastike), primeira metade do seculo III d.C, Cap. II. *Estas tiras de couro eram colocadas como uma especie de luva, enrolando-se e, em simultaneo, entrelagando-se as tiras de modo a protegerem as maos do atacante e, tambem, a tornarem mais fortes e dolorosos os golpes desferidos sobre o opositor. Por vezes, como aconteceria mais tarde em Roma, os atletas utilizavam nos combates tiras de couro com peda^os de ferro agugados incrustados, que acentuavam o caracter agressivo destas correias, a que se dava o nome de «cesto». (N. da T.)
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tempo, correias macias de couro derarn lugar as correias mais pesadas feitas, especialmente, de couro curtido12. Eram entao ajustadas com varias tiras de couro grosso duro, com arestas afiadas salientes. A estatua do pugilista sentado de Apollonio de Atenas (seculo I a. C), agora no Museu Nazionale delle Terme, em Roma, apresenta com bastante nitidez o modo como se colocavam. Mas, talvez boxe seja um termo equivoco. Nao so a maneira mas, tambem, o objectivo e o ethos deste tipo de luta eram diferentes dos do boxe. Bastante significativo e o facto de o ethos da luta destes confrontos de pugilato, tal como os agones gregos de uma maneira geral, derivar muito mais directamente do ethos combativo de uma aristocracia guerreira do que o ethos combativo das provas desportivas. O ultimo radica na tradigao de um pais que, mais do que a maioria dos outros paises europeus, desenvolveu uma organizagao distinta de guerra no mar13, muito diferente da organizagao da guerra em terra, e cujos proprietarios das classes elevadas —- aristocracia e pequena nobreza — desenvolveram um codigo de cornportamento muito menos envolvido com o codigo de honra de um corpo de oficiais dos exercitos de terra do que aquele que e proprio da maioria das outras classes elevadas europeias. O «boxe» grego, comum as outras formas de preparagao agonistica e pratica nas cidades-Estado gregas, mas diferente do boxe ingles nos seculos XVIII e XIX, era considerado tanto um meio de preparagao para a guerra como para os concursos de jogos. Filostrato menciona o facto de a tecnica de luta do pancracio ter mantido os exercitos das cidades gregas em vantagem na batalha da Maratona, quando esta se desenvolveu numa luta corpo a corpo generalizada, e tambem na das Termopilas, onde os Espartanos lutaram com as maos nuas quando as espadas e dardos se quebraram14. 12
Filostrato refere que as correias de couro de pele de porco eram proibidas porque se acreditava que os ferimentos infligidos por elas eram demasiado crueis. Menciona tambem o facto de nao se dever dar golpes com o polegar. Talvez valha a pena fazer referenda a estes pormenores. Nao se deve julgar que as regras do costume das competigoes de jogos na Antiguidade nao sugeriam qualquer respeito pelos participantes. Mas, dado que estas regras eram transmitidas por meio da tradigao oral, permitiam ainda um vasto campo de possibilidades de ferimentos series. 13 Ver Norbert Elias, «Studies in the Genesis of the Naval Profession», Bristish Journal of Sociology, Vol. 1, n.° 4, Dezembro de 1950. 14 Filostrato, On Gymnastics, Cap. II.
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No tempo da Roma imperial, no momento em que escrevia, as guerras ja nao se realizavam com exercitos de cidadaos, eram levadas a efeito por soldados professionals, as legioes romanas. A distancia entre a tecnica militar e a conduta de guerra, por um lado, e a tecnica agonistica tradicional dos concursos de jogos, por outro, tornara-se superior, O grego Filostrato olhou para o passado, para a epoca classica, com uma nostalgia compreensivel. Mesmo ai, no perfodo dos exercitos de hoplitas, as tecnicas de combate militar e as dos concursos de jogos, talvez ja nao estivessem tab relacionadas entre si como sugere, mas a sua ligagao era muito mais intima do que a que existia entre as tecnicas de combate das provas de desporto e as tecnicas de combate da guerra no tempo dos Estados-nagoes industrials. Filostrato exagerava, por certo, quando escreveu que, nos primeiros tempos, as pessoas consideravam os concursos de jogos como um exercicio para a guerra e a guerra um exercicio para essas provas13. O ethos dos concursos de jogos nos grandes festivals gregos continua a reflectir o dos antepassados heroicos, tal como sao representados nos poemas epicos de Homero e perpetuados, pelo costume, na educagao dos jovens. Possuia muitas caracterfsticas do ethos de ostentagao que regulamenta, em grande niimero as sociedades, as posigoes e as rivalidades de poder das elites nobres. Lutar, nos jogos como na guerra, centrava-se na exibigao ostentatoria das virtudes guerreiras que atribuiam o mais elevado louvor e honra a um homem, no interior do seu proprio grupo e para o seu grupo — para o seu grupo familiar ou para a sua cidade — em rela^ao aos outros grupos. Veneer inimigos ou adversaries era motivo de gloria, mas dificilmente seria menos glorioso ser vencido, como Heitor o foi por Aquiles, desde que se lutasse o mais que se pudesse ate ser mutilado, ferido ou morto e nao se pudesse lutar mais. A vitoria ou a derrota estavam nas maos dos deuses. Renunciar a vitoria, sem uma demonstragao de bravura e de resistencia, e que era inglorio e vergonhoso. Na linha deste ethos guerreiro, um rapaz ou um homem morto num dos combates olimpicos de pugilato ou de luta era coroado, com frequencia, vencedor, para gloria do seu cla e da sua cidade, e o sobrevivente — o assassino — nao era punido nem estigmati-
™lbid., Cap. 43.
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zado. Os jogos gregos nao eram dominados por uma grande preocupagao de «justiga». O ethos ingles de justiga tinha raizes nao militates. Desenvolveu-se em Inglaterra, em ligagao com uma mudanga muito especifica, verificada na natureza do prazer e da excitagao proporcionados por confrontos de jogos, na sequencia da qual o prazer, demasiado breve, que se sentia no final de uma prova de desporto, no momento de consuniagao ou de vitoria, foi alargado e prolongado pelo prazer e igual excitagao derivados daquilo que inicialmente foi o prazer antecipado de participar ou de testemunhar a tensao do proprio desafio. A maior enfase colocada no prazer da disputa do jogo e a tensao-excitagao que este proporcionava estavam, ate certo ponto, relacionados com o prazer de apostar, que desempenhou em Inglaterra um papel consideravel quer na transformagao de formas mais «rudes» de confrontos nos desportos quer nos desenvolvimentos do ethos e da justiga. Ao presenciar o combate de um jogo efectuado pelos seus filhos, pelos seus servigais ou por profissionais famosos, os cavalheiros gostavam de apostar dinheiro numa das partes, condimento da excitagao fornecida pela propria luta, que ja tinha sido temperada por restrigoes civilizadoras. Mas a expectativa de veneer uma aposta podia aumentar a excitagao de assistir a luta, unicamente se as probabilidades iniciais de ganhar se encontrassem mais ou menos divididas de modo equilibrado entre os dois lados, e se oferecessem um mmimo de possibilidades de calculo. Tudo isto requeria e tornava possivel um nivel de organizagao mais elevado do que aquele que fora alcangado nas cidades-Estado da Grecia antiga: Os pugilistas de Olimpia nao eram classificados de acordo com o peso, da mesma maneira que os lutadores tambem nao o eram. Nao existia af nenhum recinto quadrangular para combates de boxe, os assaltos realizavam-se no estadio, numa parcela de terreno ao ar livre. O alvo era a cabega e a face... A luta decorria ate que um dos dois adversaries ja nao fosse capaz de se defender ou se admitia a derrota. Isto anunciava-se pela elevagao do dedo indicador ou pela extensao de dois dedos, no sentido do oponente16.
Habitualmente, as representagoes nos vasos gregos mostram l6
Dress, Olympia, p. 82.
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lutadores numa posigao tao proxima um do outro que cada um esta erecto, com um pe avangado ou mesmo atras do pe do outro. Existia uma pequena margem de acgao para o trabalho de pes, a qual permite aos pugilistas modernos movimentarem-se rapidamente, para a direita ou para a esquerda, para tras, para a frente. Deslocar-se para tras, de acordo com o codigo dos guerreiros, era um sinal de cobardia. Esquivar-se aos socos do inimigo, desviando-se do seu caminho, era vergonhoso. Dos pugilistas, esperava-se que demonstrassem rapidez e que nao desistissem. As defesas dos pugilistas habilidosos podiam ser impenetraveis; podiam fatigar os seus oponentes e, assim, vencerem sem serem atingidos. Mas se o combate demorava tempo de mais, um juiz podia ordenar aos dois adversaries que dessem socos sucessivos alternadamente, sem se defenderem, ate que um deles ja nao estivesse em condigoes de continuar a lutar. Este tipo agonista de pugilato, como se pode ver, acentuava o climax, o momento de decisao, de vitoria ou de derrota, como o elemento mais importante e significative do confronto, mais importante do que o proprio combate. Tratava-se quase tanto de um teste de resistencia fisica e de pura fbrga muscular como de uma prova de habilidade. Eram frequentes os ferimeritos graves nos olhos, nos ouvidos e ate no cranio; o mesmo acontecia quanto a ouvidos inchados, dentes partidos e narizes esmagados. Tivemos conhecimento de dois pugilistas que aceitaram a permuta de socos. O primeiro atingiu com um soco a cabega do seu oponente, o qual sobreviveu. Quando este baixou a sua guarda, o outro bateu-lhe abaixo das costelas com os seus dedos estendidos, rebentou-o com as suas unhas duras, agarrou-lhe os intestinos e matou-o17.
De todas as provas olfmpicas, aquela que para nos e a mais estranha, hoje, e o boxe; nao interessa o quao difkilmente tentamos, continuamos incapazes de conceber como e que um povo altamente cultivado, com sentido estetico tao acentuado, podia ter prazer neste espectaculo barbarico, no qual dois homens se batiam um ao outro na cabe^a, com os seus punhos revestidos de tanta dureza... ate que um
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deles admitisse a derrota ou fosse incapaz de continuar a lutar. Porque nao foi so sob o dominio dos Romanes mas, tambem, sob o dominio dos Gregos que esta forma de combate deixou de ser um desporto; era uma questao de vida ou de morte... Mais do que um cotepetidor olfmpico perdeu a vida no estadio. Esta critica, feita em 1882 por Adolf Boetticher, um dos primeiros eruditos olfmpicos, e valida hoje. Como os seus colegas da luta e do pancracio, os pugilistas estavam determinados a veneer a todo
Nao se duvida dos factos, mas sim da avaliagao. A citagao representa um exemplo quase paradigmatico do equivoco resultante da utilizagao, que nao e colocada em duvida, do limiar de repugnancia proprio de cada um em face de tipos especificos de violencia fisica, enquanto medida para todas as sociedades humanas, independentemente da sua estrutura e do estadio de desenvolvimento social que alcangaram, em especial, o estadio que atingiram na organizagao social e controlo da violencia fisica: isto e tao significative de um aspecto do desenvolvimento das sociedades como a organizagao e o controlo dos meios «economicos» de produ^ao. Encontra-se aqui um exemplo notavel da barreira a compreensao das sociedades originada pelo dommio de avaliagoes heteronimas19 sobre a percepgao das interdependencias funcionais. A escultura classica grega e altamente considerada na escala de valores do nosso tempo. Os tipos de violencia fisica integrados em combates de jogos gregos como o pancracio, segundo a nossa escala de valores, recebe classificagoes bastante negativas. O facto de associarmos um com um valor positivo e o outro com um valor negative conduz a uma situagao onde parece, aos que permitem que a sua compreensao seja guiada por julgamentos de valor preconcebidos, que estes dados nao se podem relacionar entre si. Um problema insoliivel atinge todos quantos julgam o passado em termos deste tipo de avaliagao.
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Para a explicagao deste termo e para a discussao dos problemas da «objectividade» em sociologia, ver Norbert Elias, «Problems of Involvement and Detachment», British Journal of Sociology, Vol. 7, Setembro de 1956. Ver, tambem, Norbert Elias, Involvement and Detachment, Oxford (em vias de publicagao).
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Contudo, se alguem se preocupar com a analise sociologica das relagoes entre diferentes aspectos da mesma sociedade nao existe razao para supor que so estas manifestagoes dessa sociedade, quando observadas do exterior, e as quais se atribui o mesmo valor, quer seja positive ou negativo, sao interdependentes. Em todas as sociedades podem descobrir-se interdependencias entre aspectos a que um observador, por um lado, e as proprias pessoas que formam estas sociedades, por outro, dedicam valores opostos. A beleza da arte grega e a relativa brutalidade dos confrontos de jogos sao um exemplo. Longe de serem incompativeis, eram manifestagoes intimamente relacionadas do mesmo nivel de desenvolvimento, da mesma estrutura social. A emergencia da escultura grega no seu modelo arcaico e o realismo ideal das esculturas do periodo classico permanecem incompreensfveis se nao houver um entendirnento do elemento que a aparencia fisica de um individuo desempenhava enquanto determinante do respeito social com que era considerada entre as elites dirigentes das cidades-Estado da Grecia. Nessa sociedade, para um homem com um corpo debil ou deformado, dificilmente seria possivel alcangar ou manter uma posigao de elevado poder social ou politico. A forga e a beleza fisica, o aprumo e a resistencia, representavam um papel muito mais elevado, como determinante da posigao social de uma pessoa do sexo masculino na sociedade grega, do que representa nas nossas. Nem sempre se esta consciente de que a possibilidade de um homem fisicamente diminuido alcangar ou manter uma posigao de lideranga ou de elevado poder social e dignidade e um fenomeno relativamente recente no desenvolvimento das sociedades. Devido ao facto de a «imagem corporal» ou a aparencia fisica se classificar a um nivel relativamente baixo —, bastante inferior, por exemplo, ao que a «inteligencia» ou o «caracter moral» ocupam na escala de valores que, nas nossas sociedades, determina a posigao social de um homem e a imagem global que formamos dele —, falta-nos com frequencia a chave para a compreensao de outras sociedades onde a aparencia fisica representa um papel muito mais determinante na formagao da imagem publica de um homem. Na Grecia antiga era este, sem duvida, o caso. Pode talvez transmitir-se melhor a diferenga indicando o facto de, na nossa sociedade, a aparencia fisica, enquanto determinante da imagem social de um individuo, continuar a representar um
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papel bastante vincado e talvez crescente no que diz respeito a mulher, mas a respeito do homem, embora a televisao possa ter algum impacte no problema, a aparencia fisica e, em particular, a forga corporal e a beleza nao desempenham um papel muito grande na consideragao publica de uma pessoa. O facto de uma das mais poderosas nagoes do nosso tempo ter eleito um homem paralftico para o seu cargo publico mais elevado e, a este respeito, sintomatico. Na sociedade das cidades-Estado da Grecia era diferente. Desde a infancia, seres humanos que fossem fracos ou deformados eram eliminados. Recem-nascidos debeis eram abandonados a morte. Um homem que fosse incapaz de lutar interessava pouco. Era muito raro um homem aleijado, doente ou muito velho adquirir ou manter uma posigao de lideranga publica. O termo usado na sociedade grega como uma das expressoes do seu ideal, o termo arete, e com frequencia traduzido como virtude. Mas de facto ele nao se referia, como o termo «virtude» indica, a qualquer caracterfstica moral. Referia-se aos predicados pessoais de um guerreiro e cavaIheiro, entre os quais a sua imagem corporal, a sua qualificagao como um guerreiro forte e habilidoso, representava um papel dominante. Era este ideal que encontrava expressao quer nas esculturas, quer nos seus confrontos de jogos. A maioria dos vencedores olimpicos tinha as suas estatuas erigidas em Olimpia e, algumas vezes, na sua cidade natal20. O facto de a posigao social dos atletas ser muito diferente da que hoje se verifica na nossa propria sociedade e apenas outra faceta das mesmas caracteristicas distintivas da sociedade grega durante a idade classica. O equivalente do desporto, a «cultura» do corpo, nao era uma especializagao equivalente ao mesmo grau de hoje. Nas sociedades contemporaneas, o pugilista e um especialista e, se apli20 Nao e necessario discutir aqui as razoes que originaram a onda de secularizagao revelada, por exernplo, na transigao das representagoes mais soienes, mais inspiradoras de respeito, e talvez mais expressivas de deuses e de herois no periodo arcaico — um exernplo e a Medusa do frontao da fachada principal do templo de Artemisa em Corcyra, do seculo. VI a.C. —, para o realismo ideal do periodo classico, em que deuses e herois sao representados como guerreiros bem proporcionados, jovens ou velhos, cujos corpos falam, embora as suas faces sejam talvez um pouco vazias mesmo se, como no caso do condutor de carro de Delfos, os olhos incrustados e parte da cor tenham sido preservados.
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camos o termo aos que adquiriram fama como pugilistas na Antiguidade, o mero uso da palavra pode evocar nos nossos espiritos um quadro similar. Na verdade, os homens que demonstravam a sua forga fisica, a sua agilidade, a sua coragem e a sua resistencia atraves das suas vitorias nos grandes festivais, dos quais os de Olimpia foram os mais famosos, estavam colocados numa situagao muito apropriada para adquirirem uma elevada posigao social e politica na sua sociedade natal, se nao a tivessem ja alcangado. A maior parte dos participantes nos confrontos de jogos em Olimpia provinha, decerto, de «boas familias», das elites relativamente abastadas da sua cidade natal, de grupos de proprietaries de terras e, talvez, de abastadas familias camponesas. A participagao nestes combates de jogos exigia uma longa e ardua preparagao que so as pessoas que, em termos comparativos, eram ricas podiam proporcionar. Um jovem atleta prometedor, que necessitasse de dinheiro para semeIhante treino, podia encontrar um patrono abastado; ou um treinador professional Ihe emprestaria dinheiro. Mas, se conquistasse uma vitoria em Olimpia, atraia fama para a sua familia e para a sua cidade natal e tinha uma forte oportunidade de ser considerado por eles como um membro da sua elite dirigente. Milon de Crotona foi, provavelmente, o lutador mais famoso da Antiguidade Classica. Obteve um numero consideravel de vitorias em Olimpia e noutros festivais pan-helenicos. Era um homem de forga prodigiosa que, com o tempo, se tornou conhecido. Tambem e referido como um dos melhores alunos de Pitagoras e como comandante do exercito da sua cidade natal, na batalha vitoriosa contra os Sibaritas, que terminou com a furiosa matanga dos ultimos depois da sua derrota. Encontramos o mesmo quadro invertido se considerarmos aqueles homens que hoje sao recordados, acima de tudo, pelas suas realizagoes intelectuais eram com frequencia evocados tambem, no seu proprio tempo, em ligagao com os seus feitos como guerreiros ou atletas. Esquilo, Socrates e Demostenes passaram pela dificil escola de combate hoplita. Platao teve a seu credito vitorias em alguns dos festivais atleticos. Desta maneira, a idealizagao do guerreiro na escultura grega, a representagao dos deuses de acordo com a aparencia fisica ideal do guerreiro aristocrata e o ethos guerreiro dos combates de jogos eram, com efeito, nao so compativeis; eram manifestagoes intimamente ligadas do mesmo grupo social. Ambas sao caracteristicas da posigao social, do estilo de vida e dos ideais
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destes grupos. Mas a compreensao desta interdependencia factual nao compromete o prazer da arte grega. Sob certos aspectos, engrandece-a21.
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A comparagao entre o nivel de violencia verificado nos combates de jogos da Grecia antiga, ou nos torneios e jogos populates da Idade Media, e o que se revela nas provas de desporto actuals mostra claramente o elemento especifico do processo de civilizagao, mas o estudo deste elemento integrante do aspecto civilizador das provas de jogos permanece inadequado e incompleto se nao o relacionarmos com outros aspectos das sociedades de que estes confrontos de jogos sao manifestagoes. Em resumo, o nivel variavel de civilizagao nas competigoes de jogos mantem-se incompreensivel se nao for relacionado, pelo menos, com o nivel geral de violencia socialmente permitida, com o nivel da organizagao do controlo da violencia e com a correspondente formagao da consciencia em causa.
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O grau em que as caracteristicas de um estadio anterior no desenvolvimento da organizac.ao do Estado, especialmente quanto a monopolizagao e controlo da violencia fisica, afecta todas as relagoes humanas revela-se, entre outras coisas, na frequencia com que as lendas gregas referem conflitos entre pai e filho. No que diz respeito a sociedade grega, Freud estava provavelmente equivocado na sua interpretagao da lenda de Edipo ou, pelo menos, so viu um dos seus aspectos, o de um unico individuo, o filho. No contexto da sociedade grega, nao se pode deixar de assinalar a configuragao social especifica reflectida nesta lenda, como noutras lendas gregas relacionadas com o mesmo problema. Nao se pode deixar de questionar a rela^ao entre o filho e o pai, o jovem rei e o velho rei, na perspectiva do pai, assim como na perspectiva do filho. A partir da posigao do filho, pode bem ser, como Freud disse, que este estivesse imbuido de ciumes quanto a posse da mulher pelo pai — e, pode acrescentar-se, com medo da forga fisica e do poder do pai. Considerado, no entanto, segundo a perspectiva do pai, como se reflecte nas lendas gregas, o medo do rei e a inveja do filho representam um papel equivalente na relagao entre os dois. Porque, inevitavelmente, o pai ira envelhecer e enfraquecer flsicamente, e o filho, fragil enquanto crian^a, tornar-se-a fisicamente mais forte e mais vigoroso. Antigamente, quando o bem-estar de toda a comunidade, de um cla ou de uma casa, nao estava so ligado de facto, mas, tambem, na imaginagao dos membros de tais grupos — e de forma magica—a saude e ao vigor do rei ou do lider, com frequencia, o homem mais velho era ritualmente morto quando se tornava mais idoso, quando a sua for^a e vigor
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Alguns exemplos podem ajudar a tornar mais nitido este vasto contextcx No seculo XX, a chacina de massas por grupos de nazis alemaes, despertou a reacgao de quase todo o mundo. A memoria do facto manchou, durante algum tempo, o bom nome da Alemanha entre as nagoes do mundo. O choque foi ainda maior porque muitas pessoas viviam sob a ilusao de que, no seculo XX, tais barbaridades ja nao podiam acontecer. Tacitamente, acreditavam que as pessoas se tinham tornado mais «civilizadas», que se haviam tornado «moralmente melhores», de acordo com a sua propria natureza. Tinham adquirido orgulho em serem menos selvagens do que os seus antepassados, ou do que outras pessoas que conheciam, sem nunca enfrentarem o problema que o seu proprio comportamento mais civilizado colocava — o problema de saber porque e que eles proprios, porque e que o seu comportamento e os seus sentimentos, se tornaram um pouco mais civilizados. O episodio nazi serviu como uma especie de aviso; foi um sinal de que as desapareciam, e substituidopor um dos seus fllhos, o jovem rei. Muitas lendas gregas mostram que o filho, o fiituro herdeiro, ainda quando jovem, tinha de ser escondido da if a e persegui^ao do seu pai, sendo habitualmente educado por estrangeiros. Por esse motivo, «sabemos», de acordo com um estudo recente (Edna H. Hooker, The Godness of the Golden Image, in Parthenos and Parthenon, Greece and Rome, suplemento do Vol. X, Oxford, 1963, p. 18), «que, nas comunidades primitivas agrarias, as crian^as estavam em constante perigo dado que constituiam uma ameaga potencial ao dommio do trono do rei ou, por vezes, para a ambigao de uma madrasta, tendo em vista a posse deste por um dos seus filhos. Nos mitos e lendas gregas, poucos prmcipes foram educados em casa. Alguns foram enviados para o centauro Quiron mas muitos eram expostos, com a indicagao da sua origem, com o fim de serem criados por estrangeiros. O rei Laio abandonou o seu filho Edipo temendo ser morto por ele. Zeus foi criado por amas e educado em segredo, porque o seu pai, Cronos, sentiu que ele era uma amea^a e tentou mata-lo. O proprio Zeus, como Jahve, receava que o homem pudesse aprender a participar no seu conhecimento magico e castigou com violencia o mais jovem, Prometeu, que se atreveu a roubar o fogo do ceu e a oferece-lo ao povo. Onde quer que o Estado tenha monopolizado o direito de utilizar a violencia ffsica, pode bem ser que a escalada de rivalidade e de ciume como ingrediente na complexa rela^ao entre pai e filho, processo peculiar cujos reflexes encontramos nas lendas gregas e em muitas outras lendas, ja nao desempenhe qualquer papel numa sociedade em que mesmo os parentes masculines nao constituent mais o perigo que em tempos tinham representado em sociedades onde os pais podiam matar ou mesmo expor os seus filhos. Seriam necessarias mais pesquisas configuracionais de pais e filhos para descobrir em que medida os sentimentos de rivalidade e de inveja do filho em rela^ao ao pai, como foi assinalado por Freud nos seus doentes, e, ao
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restrigoes contra a vioiencia nao sao sintomas da superioridade da natureza das nagoes «civilizadas», nao sao caracteristicas eternas da sua maneira de ser racial ou etnica, mas aspectos de um tipo especifico de desenvolvimento social, que resultou de um controlo social mais diferenciado e estavel dos meios de vioiencia e da correspondente formagao da consciencia. Evidentemente, este tipo de desenvolvimento social podia ser invertido. Isto nao implica, necessariamente, que nao existam bases para a avaliagao dos resultados deste desenvolvimento no comportamento humano e formas de sentir «melhor», para alem das correspondentes manifestagoes dos primeiros estadios de desenvolvimento. A compreensao mais vasta da relagao de factos proporciona, com efeito, uma base muito melhor, a unica base segura para julgamentos de valor deste tipo. Sem ela, nao podemos saber, por exemplo, se as nossas maneiras de elaborar os autodomfnios individuais contra a vioiencia fisica nao estao associados a malformagoes psicologicas que podem parecer altamente barbaras a uma idade mais mesmo tempo, uma reacgao ao sentimento de rivalidade e inveja do pai em rela^ao ao filho. Mas, se considerarmos as lendas gregas e, em especial, a propria lenda de Edipo, dificilmente se pode duvidar da face dupla dos sentimentos reciprocos de rivalidade que tinham um papel na relagao entre pai e filho. A utilizagao desta lenda como modelo teorico parece incompleta enquanto a fiingao desempenhada na dinamica desta configuragao pela reciprocidade de sentimentos entre um filho que de fraco passa a ser mais forte e de um pai que de forte passa a ser mais fraco nao for investigada de forma mais completa. Nas sociedades onde a forga e o poder ffsico desempenham um papel superior aquele que hoje representam nas relagoes tanto dentro como fora da famflia, esta configuragao deve ter tido uma grande significado e, de modo algum, apenas um sentido inconsciente. Considerada neste contexto, a lenda de Edipo da a impressao de uma lenda indicada para ameagar filhos de que serao castigados pelos deuses se matarem os seus pais. Contudo, a questao que ressalta em primeiro lugar nao e, por certo, a morte do velho rei pelo filho ou a favor deste, mas a quebra do tabu do incesto, da proibicjio de o filho ter relagoes sexuais com a sua mae, a qual, e claro, e uma proibigao social muito mais antiga do que aquela contra a morte do pai. A este respeito, o mito de Edipo simboliza, de modo evidente, um estadio relativamente tardio no desenvolvimento de uma sociedade em que, num estadio inicial, nem a morte do filho jovem nem a morte do pai idoso era um crime. Desta forma, a lenda pode ajudar-nos a compreender o tipo de relagoes humanas que existiu num certo estadio de desenvolvimento social, quando a organizagao do que agora chamamos o «Estado» permanecia na infancia, e quando a forga fisica de uma pessoa, a sua aptidao para garantir a sobrevivencia atraves da sua propria capacidade de lutar, era a principal determinante de todos os tipos de relagoes humanas, incluindo, a de pai e filho.
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civilizada. Alem do mais, se alguem avalia uma forma mais civilizada de conduta e de sentir como sendo «melhor» do que formas rnenos civilizadas, se considera que a humanidade fez progresses ao chegar aos seus proprios padroes de reacgao e de repugnancia contra formas de violencia que eram comuns nos primeiros tempos, e confrontado com o problema de saber como e que um desenvolvimento nao planeado resultou em alguma coisa que se avalia como um progresso. Todos estes juizos sobre padroes de comportamento civilizado sao julgamentos comparativos. Nao se pode dizer em nenhum sentido absoluto: nos somos «civilizados», eles sao «nao civilizados». Mas pode afirmar-se com grande confianga: os padroes de conduta e de sentir da sociedade A sao mais «civilizados», os da sociedade B sao menos «civilizados», desde que se tenha elaborado uma medida de desenvolvimento clara e precisa. A comparagao entre as provas-agon* e as competigoes desportivas contemporaneas constituem um exemplo. Os padroes de reacgao publica perante o assassinio em massa constituem outro. O modo como se revelou em tempos recentes o sentimento quase universal xle repugnancia contra o genocidio indica que as sociedades humanas sofreram um processo civilizador, limitado, contudo, no campo de acgao e instavel, de qualquer modo, nos seus resultados. A comparagao com atitudes do passado demonstra isso muito nitidamente. Na Antiguidade grega e romana, o massacre de toda a populagao masculina de uma cidade derrotada e conquistada, e a venda de escravos e criangas, embora pudesse despertar piedade, nao provocava um generalizado aumento de actos de condenagao. As nossas fontes estao incompletas, mas demonstram que esses casos de massacre de massas ocorriam com grande regularidade desde o principio ate ao final de todo o periodo22. Certas vezes, a furia com que um exercito ameagado ou frustrado, durante longo tempo, lutava desempenhava um papel decisivo no massacre de todos os inimigos. A destrui22 Pierre Ducrey, Le Traitement de Prisionaires de Guerre dans la Grece Antique, Ecole Frangaise d'Athenes, Travaux et Memoires, Fas. XVIII, Paris, 1968, p. 196 e seguintes. *Tipo de competi^ao, confronto ou combate ritual que era cofrente na antiga Grecia. Atraves dos agones destacavam-se os melhores quer fosse na luta quer tambem na danga, na poesia, no teatro ou mesmo entre os bebedores. (N. da T.)
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ao de todos os sibaritas a que puderam langar as maos, levada a efeito pelos cidadaos de Crotona, sob a direcgao de Milon, o famoso lutador, e um caso a assinalar. For vezes, o «genocidio» era um acto calculado que visava a destruigao do exercito de um Estado rival, como sucedeu no caso de Argos, cujo poder militar, enquanto potencial rival de Esparta, foi mais ou menos aniquilado pela destruigao geral de todos os homens que podiam empunhar armas, sob as ordens da Assembleia de Cidadaos ateniense em 416 a. C, descrita com vivacidade por Tucidides, resultando de uma configuragao muito semelhante a que conduziu a ocupagao russa da Checoslovaquia, em 1968. Os Atenienses consideravam Melos como uma parte do seu imperio. Esta ilha possuia para eles um significado estrategico especifico na sua luta com Esparta. Mas os habitantes de Melos nao desejavam tornar-se uma parte do imperio ateniense. Por esse motivo, os Atenienses mataram os homens, venderam as mulheres e as crian^as para a escravatura e estabeleceram-se na /ilha com colonos atenienses. Alguns gregos consideravam a guerra como a relagao normal entre cidades-Estado. Esta podia ser interrompida por acordos de periodo limitado. Os deuses, pela palavra dos seus sacerdotes, e os escritores podiam desaprovar massacres deste genero. Mas o nivel de repugnancia «moral» contra aquilo que nos agora chamamos «genocidio» e, de um modo geral, o nivel de inibigoes interiorizadas contra a violencia fisica eram decididamente mais baixos, e os sentimentos de culpa ou de vergonha associados a tais inibigoes eram mais frageis do que o sao nos Estados-nagoes relativamente desenvolvidos do seculo XX. Talvez estivessem ausentes por completo. Nao havia falta de compaixao pelas vitimas. Os maiores dramaturges atenienses e, acima de todos, Euripides, em A Mulher Troiana, expressaram este sentimento com a mais energica vivacidade, porque nao estavam ainda protegidos pela repugnancia moral e a indignagao. Contudo, so com grande dificuldade se pode duvidar de que a venda de mulheres dos derrotados para a escravidao, a separagao de mae e filho, a morte das criangas do sexo masculino e muitos outros temas da violencia e da guerra nas suas tragedias possuiam bastante mais actualidade para um publico ateniense no contexto das suas vidas do que possuem, no nosso contexto, para um publico contemporaneo. No total, o nivel de inseguranga fisica nas sociedades da Anti-
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guidade era muito mais elevado do que o que existe nos Estados-nagoes contemporaneas. Nao e incaracteristico desta diferenga que os seus poetas demonstrem maior paixao do que indignagao. Ja Homero desaprovava o facto de Aquiles, no seu sofrimento e furia pela morte de Patroclo, nao ter morto e queimado, como um sacrificio ao seu espirito, apenas ovelhas, bois e cavalos mas, tambem, doze jovens nobres, na pira funeraria do seu amigo. Mas, uma vez mais, o poeta nao faz o julgamento e a condenagao do seu heroi a partir do elevado trono da sua propria rectidao e superioridade, porque havia cometido a barbara atrocidade do sacrificio humano. A critica do poeta a Aquiles nao possuia o torn emocional da indignagao moral. Nao langa duvidas sobre aquilo que nos chamamos «caracter» do seu heroi, do seu valor como ser humano. As pessoas fazem «coisas mas» (kaka ergo) no seu sofrimento e furia. O poeta abana a sua cabega, mas nao apela para a consciencia dos seus ouvintes; nao Ihes pede que considerem Aquiles como um reprobo moral, um «mau caracter». Apela para a sua compaixao, para a compreensao da paixao que se apodera mesmo dos melhores, dos herois, em tempos de fadiga e os leva a fazer «coisas mas». Mas o seu valor humano como nobre e guerreiro nao esta em duvida. O sacrificio humano nao tinha para os gregos aAtigos exactamente a mesma conotagao de algo horrfvel como tern para as nagoes mais «civilizadas» do seculo XX23. Qualquer aluno de uma escola das classes gregas educadas conhecia a ira de Aquiles, os sacrificios e os combates de jogos realizados no funeral de Patroclo. Os confrontos dos Jogos Olfmpicos situavam-se numa linha directa de sucessao, a partir destes combates funerarios ancestrais. Era uma ascendencia muito diferente daquela que conhecemos quanto as provas de desporto contemporaneas.
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Ate onde se pode ver, o nivel normal de paixao e de violencia dos herois e deuses homericos ou, dito de outro modo, o seu nivel normal de desenvolvimento do autodommio incrustado, o nivel de «consciencia», nao se encontrava senao alguns passes mais atras do 23
Fr. Schwenn, Die Menschenopfer bet den Griechen undRomern, Giessen, 1915.
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nivel atingido em Atenas durante o periodo classico. As pedras que sobreviveram, os templos e as esculturas dos deuses gregos e herois contribufram, de maneira peculiar, para a imagem dos antigos gregos como um povo equilibrado e harmonioso. O proprio termo «classico», usado em frases como «Antiguidade Classica», evoca o quadro da sociedade grega como um modelo de beleza harmonioso e equilibrado, que as geragoes posteriores jamais podem ultrapassar. Isto e um equivoco. Nao podemos tragar aqui, com o rigor que merece, o lugar da Grecia antiga no desenvolvimento da «consciencia», dos controlos interiorizados a respeito quer da violencia quer de outras esferas da vida. Bastara afirmar que a equilibrada Grecia classica continua a representar a «aurora da consciencia», um estadio em que a transformagao de uma consciencia autocontrolada — representada por imagens comuns de pessoas super-humanas, de demonios-deuses que comandam ou ameagam, que dizem aos seres humanos, de forma mais ou menos arbitraras, o que devem fazer e o que nao devem, numa voz oculta, de certo modo impessoal e individualizada, que fala de acordo com os principios sociais gerais de justiga e de in justiga, do certo e do errado — permanecia antes a excepgao e nao a norma. O daimonion de Socrates foi talvez a aproximagao mais intima ao nosso tipo de formagao da consciencia da sociedade grega classica, mas mesmo esta «voz oculta» altamente individualizada continuava, em certa medida, a ter o caracter de um genio tutelar. Alem disso, o grau de interiorizagao e de individualizagao das normas e dos controlos sociais que encontramos na representagao de Platao sobre Socrates foi, sem diivida, um fenomeno deveras excepcional. E bastante significative que a lingua grega classica nao possua uma palavra diferenciada e especializada para «consciencia». Existem muitas palavras, tais como synesis, euthymion, eusebia e outras, que sao por vezes traduzidas como «consciencia», mas, num exame mais profundo, verifica-se rapidamente que cada um destes termos e menos especifico e abrange um espectro muito mais vasto, tal como «ter escrupulos», «piedade» e «reverencia para com os deuses». Mas um conceito unico, tao nitidamente especializado como o moderno conceito de «consciencia», que denota uma acgao interior bastante autoritaria, inevitavel e, com frequencia, tiranica, que como parte de si propria, guia a conduta individual, que exige obediencia e castiga a desobediencia com «angustias» ou «ferroa-
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das» de sentimentos de culpa, de maneira diferente do «medo dos deuses» ou «vergonha», actos em si mesmos aparentemente vindos de lado nenhum e sem derivarem do poder e de autoridade de qualquer acgao externa, humana ou sobre-humana — este conceito de consciencia esta ausente do equipamento intelectual da Grecia antiga. O facto de este conceito de «consciencia» nao se ter desenvolvido na sociedade grega pode considerar-se como um fndice muito seguro de que a formagao da consciencia nesta sociedade nao tera atingido um estadio de interiorizagao, individualizagao e relativa autonomia, em qualquer grau, comparavel ao nosso. Se pretendemos compreender o elevado nivel de violencia integrado nos combates dos jogos gregos e o nivel inferior de reacgao contra a violencia na sociedade grega em geral, esta e uma das indicates que e necessaria. Isto e sintomatico do facto dos individuos no quadro social da cidade-Estado grega permanecerem, a um nivel acentuado* mais dependentes uns dos outros, de acgoes externas e de sangoes como meios de refrearem as suas paixoes, de poderem confiar menos nas barreiras ihteriorizadas, apenas em si proprios, para controlarem impulsos violentos, do que as pessoas nas sociedades contemporaneas. Podemos acrescentar que eles, ou pelo menos a suas elites, ja eram capazes, em grau muito superior, de se restringirem a si proprios, individualmente, mais do que os seus antepassados haviam sido na idade pre-classica. As alteragoes de imagem dos deuses gregos, a critica da sua arbitrariedade e ferocidade, suportam o testemunho desta mudanga. Se nos recordarmos do estadio especifico representado, num processo de civilizagao, pela sociedade grega no tempo das autogovernadas cidades-Estado, e mais facil compreender que — comparada com a nossa — a elevada paixao dos antigos gregos pela acgao era perfeitamente compativel com o equilibrio corporal e harmonia, a graga e a dignidade do movimento reflectidas na escultura grega. A terminar, talvez seja util assinalar, de forma breve, um outro lago na cadeia de interdependencias que relacionam o nivel de violencia integrado no tipo grego dos combates de jogos e de guerra com outras caracteristicas estruturais da sociedade grega. Para o estadio que a organizagao do Estado atingiu, no periodo das cidades-Estado gregas, e bastante significative que a protecgao da
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.vida de um cidadao contra ataques de outros nao tivesse sido ainda tratada, como e hoje em dia, como uma preocupagao exclusiva do Estado. Mesmo em Atenas, ainda nao era considerado dessa maneira. Se uma pessoa fosse morta ou mutilada por um concidadao, mesmo nos tempos classicos, a questao de determinar as causas e proceder a vinganga estava reservada aos seus parentes. Em comparagao com o nosso proprio tempo, o grupo-familia continuava a desempenhar um papel muito superior no que respeita a protecgao de um individuo contra a violencia. O que significa, ao mesmo tempo, que todos os individuos robustos do sexo masculino tinham de estar preparados para a defesa da sua familia ou, caso se chegasse a esse ponto, para um ataque, no sentido de ajudar ou de vingar a sua familia. Mesmo no seio da cidade-Estado, o nivel geral da violencia fisica e de inseguranga era, em termos comparativos, elevado. Isto contribui, tambem, para explicar o facto de o nivel de reacgao de infligir dor e ofensas aos outros, ou de os presenciar, ser inferior, e esses sentimentos de culpa, devido a actos de violencia, serem menos encorajados no individuo. Numa sociedade assim organizada, teriam constituido uma severa desvantagem. Algumas maximas do grande filosofo grego Democrito podem talvez ajudar a dar maior profundidade a compreensao destas diferengas. Estas sao sintomaticas da experiencia social comum das pessoas nessa situagao. Mostram que — e indicam porque — «certo» e «errado» nao podem significar exactamente a mesma coisa em sociedades como as nossas e numa sociedade onde qualquer individuo pode ter de tomar partido, por si ou pela sua familia, em defesa das suas vidas. De acordo com as regras do costume, diz Democrito, esta certo matar qualquer coisa viva que tenha realizado uma ofensa; nao matar e errado. O filosofo expressou estes pontos de vista inteiramente humanos e sociais. Ai nao existe apelo aos deuses; nem para a justiga e para o sagrado, como pode encontrar-se, mais tarde, no dialogo de Socrates com Protagoras — se podemos confiar em Platao. Nem, como se pode ver, existe ai qualquer apelo a protecgao dos tribunals, das instituigoes do Estado, do governo. As pessoas estavam, entao, muito mais entregues a si proprias quanto a total sobrevivencia fisica do que nos estamos. Eis o que o Democrito afirmou:
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68(B257) Como os animais, em certas ocasioes, matar on nao matar, a regra e como se segue: se um animal faz mal, ou deseja fazer mal, e se o homem o matar ele deve contar-se entre os isentos de castigo. Porque isto executar promove bem-estar, mais do que o contrario. 3CB258) Se alguma coisa e uma ofensa contraria ao bem, e necessario mata-la. Isto abrange todos os casos. Se um homem o faz, aumentara a parte que compartilha do bem e seguranga em qualquef ofdem {social].
5(B256) O bem e exeeutar o que e neeessario e o fiial e deixar de realizar aquilo que e necessario e reeusar faze-Io.
6(B261) Se alguern Ihes tiver feito mal,, ha a necessidade de os vingar ate onde e praticavel. Isto nao se deve passar por alto. Este tipo de eoisa esta certo e tambem esta bem e o outro tipo de coisa esta errado e tambem esta mal24. 24
Estou a citar estes excertos da tradugao que Eric A. Havelock publicou no seu livro The Liberal Temper in Greek Politics, New Haven e Londres, 1964, pp. 127-8. Penso que a sua tentativa de transferir a sentido destes excertos para um leitor contemporaneo do falar ingles, ate onde isso e possivel, foi bastante bem sucedida. Demonstra tambem, com maior clareza talvez do que muitos outros escritores, que a enfase que Platao e Aristoteles colocavam na autoridade central
CAPfTULO HI
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do Estado conto o primeiro ponto controverso dos problemas politicos e, com frequencia, considerada de modo errado como caracterfstiea dos gregos antigos em geral, enquantov de facto, este destaque e caracteristico, em grande parte, de um desenvolvimento tardio e, talvez mesmo, so da ultima fase das cidadesEstado gregas independentes. Nao posso concordar, no entanto, com a interpretagao do professor Haveiock quanto as doutrinas de filosofos como Democrito serem «liberais». O liberalismo enquanto filosofia polltica pressupoe uma organizagao do Estadoi altamente desenvolvida, ainda que se oriente para impedir uma interferencia demasiado grande dos representantes do Estado nos assuntos dos seus membros individuais. For outro lado,, a autoconfianga individual que Democrito defende e caracteristica de um estadio de desenvolvimento no qual urn individuo e o seu grupo familiar nao podem ainda ser significativos na protecgao de uma organizagao do Estado razoavelmente efeetiva e impessoal. Na realidade, nao e uma ideia «liberal» aquela que afirma que os homens tern o direito e o dever de se vingar e de matar os seus proprios inimigos.
CAPITULO IV Ensato sobre o desporto e a vtolencia Norbert Elias
1
Ha alguns seculos, o termo sport era usado em Inglaterra, juntamente com a versao disport, para designar uma variedade de passatempos e divertimentos. Em A Survey of London, escrita no final do seculo XVI1, temos conhecimento do «espectaculo realizado por cidadaos, para diversao* do jovem principe Ricardo», ou sobre o «divertimento** e passatempos que se costumavam realizar anualmente, primeiro na festa de Natal... Havia na casa dos reis... um vvsenhor da desordem", ou vvmestre de joviais" desportos***...»2. No decurso do tempo, o termo «desporto» passou a ser padronizado como um termo para formas especificas de recreagao nas quais o esforgo fisico desempenhava o principal papel — formas especificas de um tipo de recreagao que se desenvolveu primeiro em Inglaterra e que, a partir dai, se espalhou por todo o mundo. A propagagao destas formas inglesas de ocupagao de tempo livre ligar-se-ia ao facto de as sociedades onde as pessoas as adoptaram terem passado por mudangas estruturais semelhantes aquelas que a Inglaterra havia conhecido antes? Seria isso devido ao facto de a Inglaterra estar adiantada, relativamente aos outros paises, quanto a «industrializagao»? O caminho paralelo destes dois processes, a difusao a partir de Inglaterra de modelos de produgao industrial, de Stow, A Survey of London (1956), publicado pela primeira vez em 1603 e reimpresso em Oxford, em 1908. 2 Ibid., p. 96 e seguintes. * Disport (N. daT.) **Sportess (N. daT.) ***Merry disports (N. da T.)
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organizagao e de trabalho e a difusao das formas de ocupagao de tempo livre do tipo conhecido como «desporto» e dos tipos de organizagao relacionados com ele e, certamente, notavel. Como hipotese inicial, nao parece despropositado supor que a transformagao da forma segundo a qual as pessoas utilizavam o seu tempo livre seguiu de mao dada com a transformagao da maneira segundo a qual trabalhavam. Mas quais eram as ligagoes? Muita reflexao tern sido dedicada ao processo de industrializagao e as suas condigoes. Falar de processo de «desportivizagao» pode produzir um efeito desagradavel ao ouvido. O conceito soa de modo estranho. Apesar disso, ajusta-se bastante bem aos factos observados. No decurso do seculo XIX — e, em alguns casos, mais cedo, na segunda metade do seculo XVIII —, com a Inglaterra considerada como um modelo, algumas actividades de lazer exigindo esforgos fisicos assumiram tambem noutros paises as caracteristicas estruturais de «desportos». O quadro das regras, incluindo aquelas que eram orientadas pelas ideias de «justiga», de igualdade de oportunidades de exito para todos os participantes, tornou-se mais rigido. As regras passaram a ser mais rigorosas, mais explfcitas e mais diferenciadas. A vigilancia quanto ao cumprimento das regras tornou-se mais eficiente; por isso, passou a ser menos facil fugir as punigoes devidas a violagoes das regras. Por outras palavras, sob a forma de «desportos», os confrontos de jogos envolvendo esforgos musculares atingiram um nfvel de ordem e de autodisciplina nunca alcangados ate ai. Alem disso, sob a forma de «desportos», as competigoes integraram um conjunto de regras que asseguravam o equilibrio entre a possivel obtengao de uma elevada tensao na luta e uma razoavel protecgao contra os ferimentos fisicos. A «desportivizagao», em resurno, possui o caracter de um impulse civilizador comparavel, na sua orientagao global, a «curializagao» dos guerreiros, onde as minuciosas regras de etiqueta representam um papel significative e do qual tratei num outro lugar3. A tendencia muito divulgada de explicar quase tudo aquilo que ocorreu no seculo XIX como o resultado da Revolugao Industrial
3 Norbert Elias, State Formation and Civilization, 1982, p. 258 e seguintes. «Feudalizagao» e um exemplo de um impulse na direcgao oposta.
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faz com que as explicates sejam, assim, um pouco cautelosas. Sem duvida que a industrializagao e a urbanizagao desempenharam urn papel no desenvolvimento e na difusao das formas de ocupagao de tempo livre com as caracteristicas de «desportos», mas tambem e possivel que, tanto a industrializagao como a desportivizagao, tenham sido sintomaticas de uma transformagao mais profunda das sociedades europeias, que exigia dos seus membros individuals uma maior regularidade e diferenciagao de comportamentos. O peso crescente e a maior diversidade das cadeias de interdependencia podem ter tido alguma coisa a ver com isso. Este processo fundamenta a sua expressao na submissao tanto dos sentimentos das pessoas e das suas acgoes a um horario regulador minuciosamente diferenciado como na responsabilidade, a que era igualmente dificil de escapar, em termos de dinheiro. E possivel pensar que as sociedades europeias, falando de uma maneira geral, sofreram, desde o seculo XV em diante, uma transfbrmagao que forgou os seus membros a uma lenta e crescente regularidade de conduta e de sensibilidade. A rapida aceitagao do tipo de passatempos de desporto nos paises continentals seria, talvez, um sinal da necessidade cada vez maior de actividades de recreagao mais ordenadas, de maior regulamentagao e menor violencia fisica na sociedade em geral? Investigates futuras podem contribuir para dar uma resposta a estas questoes. De momento, sera suficiente esclarecer e ordenar algumas das questoes que envolvem o desenvolvimento dos proprios desportos. No passado, o termo «desporto» foi usado com frequencia, de modo indiscriminado, a proposito de tipos especificos de actividades de lazer modernas e, tambem, de actividades de lazer das sociedades num estadio anterior de desenvolvimento, da mesma maneira que, frequentemente, se refere a «industria» moderna e, ao mesmo tempo, a «Industria» das pessoas da Idade da Pedra. Aquilo que afirmei chegara para realgar, com maior nitidez, o facto de o desporto ser algo relativamente recente e novo.
Se alguem comegar a investigar, recuando no tempo, partindo desta breve visao da propagagao do movimento dos desportos no exterior de Inglaterra para o precedente desenvolvimento do des-
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porto na propria Inglaterra, tera de pensar qual sera a melhor forma de prosseguir. Como e que se encontram provas seguras sobre processes de crescimento — sobre o desenvolvimento dos jogos e outras actividades de lazer, ate a forma a que se aplica o termo «desporto»? Quantos destes desenvolvimentos, pode pensar-se, ficaram sem registo. Sera que existem dados suficientes para a reconstrugao dos processes em que alguns passatempos adquiriram as caracteristicas de desportos e nos quais cada desporto, por sua vez, adquiriu as suas proprias caracteristicas distintivas? Nao sao tanto as provas que faltam. Mas ao procura-las e-se, frequentemente, impedido de prestar atengao a semelhante prova, tal como ela e, devido a preconceitos sobre escrever historia, em geral, e sobre escrever a historia dos desportos, em particular. Deste modo, ao estudar o desenvolvimento de um desporto, muitas vezes e-se conduzido pelo desejo de Ihe estabelecer uma longa e respeitavel ascendencia. E, neste caso, fica-se em condigoes de seleccionar, como relevantes para a sua historia, todos os dados acerca de jogos praticados no passado que apresentam alguma semelhanga com a forma actual do desporto particular cuja historia se esta a escrever. Se alguem encontra numa cronica do seculo XII a referencia de que, ja nesse tempo, os rapazes de LondrelT iam^em certos dias, para os campos, jogar com uma bola, inclina-se a concluir que esses jovens ja entao estavam a jogar o mesmojogo que, sob o nome de futebol, passou a ser um dos maiores jogos de Inglaterra e que, sob essa forma, se tern propagado por todo o mundo4. Mas tratar desta maneira as actividades de lazer de um passado bastante distante, como sendo mais ou menos identicas as do seu proprio tempo — o «futebol» do seculo XII com o futebol do passado^ seculo XIX e seculo XX —, impede que sejam colocadas no centro da investigagao as seguintes perguntas: de que maneira e porque e que jogar com uma grande bola de couro se desenvolveu para esta 4
E assim que Geoffrey Green, na sua History of the Football Association (Londres, 1953, p. 7), faz a referenda ao «famoso jogo de bola» (ludumpilae celebrem) de William Fitzstephen, no seu panegirico Descriptio Noblissimae Civitatis Londinae (1175, citado em Stow, A Survey of London) como demonstrac.ao do facto de que o futebol era jogado pelos jovens de Londres no seculo XII. Embora mais prudente, Morris Marples, na sua A History of Football (Londres, 1954, pp. 19-21), conclui que «existe uma boa razao para pensar que Fitzstephen esta realmente a referir-se ao futebol».
CAPITULO IV
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forma particular? Impede que se pergunte como e porque e que se clese'fivolveram regras e convengoes particulares que determinant agora a conduta dos jogadores quando efectuam o jogo e sem as quais o jogo nao seria «futebol» no nosso sentido da palavra. Ou de que maneira e porque e que se desenvolveram as formas parti-, culares de organizagao, que possiBilitam a estrutura mais imedia-~ ta para o desenvolvimento de tais regras e sem a qual elas nao se, poderiam manter e controlar. A respeito de todas estas questoes, o treino, o estudo e a observagao a que aplicamos agora o termo «sociologico» dirigem a atengao para problemas e, por consequencia, para a demonstragao, a qual nem sempre e considerada como possuindo a relevancia fundamental dentro da tradigao dominante do escrever historia. A historia dos sociologos nao e historia dos historiadores. Prestar! atengao as regras e normas que governam o comportamento huma- \ no, num dado tempo, e as organizagoes no interior das quais essas ) regras sao mantidas e a sua observancia controlada passou a ser um I trabalho bastante comum das investigagoes sociologicas. \ Aquilo que e ainda muito invulgar no presente e a atengao a regras e normas em desenvolvimento. Ojproblemajdo como ejio porque regrasje normas se tornaram^naxjuiio que elas^sao num dado momento nap e explorado, com frequencia, de maneira sistematica. Alem disso, sem a investigagao de tais processos, uma dimensao completa da realidade social permanece fora de alcance. O estudo sociologico dos jogos-desporto, para alem do seu interesse intrinseco, desempenha tambem a fungao de um projecto-piloto. Encontram-se aqui, num campo que e relativamente limitado e acessivel, problemas de um tipo que muitas vezes surge noutras areas maiores, mais complexas e menos acessiveis. Os estudos sobre o desenvolvimento dos desportos proporcionam experiencias de varias formas e, por vezes, conduzem a modelos teoricos que podem contribuir para investigagao dessas outras areas. O problema do como e do porque se desenvolveram regras e um exemplo. O estudo estatico das regras ou normas, como algo definitivamente adquirido, conduziu com frequencia, no passado, e continua a conduzir hoje, a um quadro equivoco e, de algum modo, irrealista da sociedade. Se fossem testadas as teorias correntes da sociedade, descobrir-se-iam fortes tendencias para considerar normas e regras — na
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heranga de Durkheim — quase como se elas possuissem uma existencia independente das pessoas. Fala-se, com frequencia, de normas ou regras como se elas fossem dados, que resultassem por si proprios, para a integragao de pessoas individuals na forma de sociedades e para o tipo particular de integragao, para o padrao de sociedades. EmjgsuinOjJ^ normas ou regras, comet as ideias de^PJ^^^ggssuem uma existenI cia propria, que existem, dejilguma maneira, em si mesmasje cpnsJtituissem, por esse motivo, o ponto de partida para reflexoe^spbre maneira atraves da qual as pessoas constituem as SQciedndejr. ~~" Se alguem investigar sobre o modo de desenvolvimento das regras e normas, ficara mais bem habilitado para ver que a abordagem durkheimiana, que explica a coesao, a interdependencia e a integragao de seres humanos e de grupos em termos das regras e das normas a que obedecem, continua a revelar uma forte orienta^ao nominalista. Ela propria conduz a uma concepgao equivoca sobre a natureza da sociedade que esta agora bastante divulgada. Nesta linha, a nitida distingao de valor feita a proposito de formas de conduta e de agrupamentos humanos que se desenvolvem de acordo com as normas estabelecidas, e de outras que tomam o sentido oposto, e considerada destituida de atitude critica no aparelho conceptual daqueles cujo trabalho consiste em estudar e, tanto quanto possivel, explicar os problemas da sociedade. Estudos sociologicos dirigidos para a explicagao da rela^ao dos factos na sociedade, seriam frustrados se os classificassem dessa maneira, porque, em termos de explicagao, as relates dos factos que se ajustam as normas estabelecidas e as dos outros que se desviam delas — «integragao» e «desintegragao», «ordem social» e «desordem social» — sao interdependentes e constituem exactamente o mesmo tipo de factos5. Se alguem investigar sobre os processes de desenvolvimento das normas e regras, a interdependencia factual de «ordem» e «desordem», de «fungao» e «disfungao», torna-se nitida, de forma notavel. Porque, no decurso de tal processo, pode ver-se muitas vezes como regras e normas especificas sao estabelecidas pelos seres humanos de modo a resolver formas especificas de mau funciona5
Para urn aprofundamento desta questao, ver Norbert Elias, What is Sociology?, Londres, 1978, pp. 75-6.
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mento e como este, por seu lado, conduz a outras alteragoes nas normas, nos codigos de regras que governam a conduta das pessoas em grupos. E possivel verificar, tambem, com grande nitidez, o caracter ilusorio de qualquer concepgao da sociedade que sugere que regras ou normas possuem um poder proprio, como se fossem algo exterior e separado dos grupos de pessoas, e pudessem servir, enquanto tal, como uma explicagao para o modo como as pessoas se reunem em sociedades. O estudo do desenvolvimento dos «jogos-desporto»6 e, neste ambito, o desenvolvimento das suas regras permitem-nos explorar, dentro de um campo que, comparativamente, se apresenta possivel, a tecnica da pesquisa sociologica para a qual utilizo, como denominate mais adequada, a analise e smtese «configuracionais» e para demonstrar qual e o modo como penso que estas devem ser utilizadas. Em particular, um estudo com estas caracteristicas revela, com muita clareza, um dos factos basicos da estrutura das sociedades em geral, nomeadamente, o de que — em face de condigoes nao humanas inalteraveis — as normas especificas no interior das quais as pessoas se reunem so podem ser explicadas em termos de outras formas especificas de reuniao. J^gjs^ continua a soarjde form^ta^ aquilo que se estuda como «<padr6es sociais>>, <<estrutiirasjociais>^e, « configurates » sao padroes, estruturas e configurates formadas por seres humanos. Costumes linguisticos e habitos de pensarneritg> levam-nos a falar e a pensar tais padroes como se eles fossem algo exterior e separado das pessoas que os formam. Muitos termos sociologicos padronizados atingiram, e certo, um elevado grau de aplicabilidade em relagao a estruturas observaveis. Entre eles encontra-se o proprio termo de «estrutura». E, contudo, tenho algumas reservas a respeito de expressoes padronizadas como estas que utilizamos quando afirmamos que uma sociedade ou um grupo tern uma estrutura. Pode interpretar-se, facilmente, esta maneira de falar como se traduzisse o facto de o grupo ser alguma coisa separada das pessoas que o constituem. Aquilo a que chamamos «estrutura» nao e, de facto, senao o padrao ou a 6 Nem todos os jogos sao «desportos» e nem todos os desportos sao «jogos». O termo «jogos-desporto» refere-se aqueles — fiitebol, raguebi, tenis, criquete, golfe, etc. — a que ambos os termos se aplicam.
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configuragao de pessoas individuals interdependentes que constituem o grupo ou, num sentido mais vasto, a sociedade. Aquilo que designamos pelo termo de «estruturas» quando consideramos as pessoas enquanto sociedades nao sao mais do que «configurates» quando as encaramos como individuos. As configuragoes constituem, no estudo dos desportos, o fulcro da investigagao. O desporto — qualquer que seja — e uma actividade de grupo organizada, centrada num confronto entre, pelo menos, duas partes. Exige um certo tipo de esforgo fisico. Realiza-se de acordo com regras conhecidas, que definem os limites da violencia que sao autorizados, incluindo aquelas que definem se a forga fisica pode ser totalmente aplicada. As regras determinam a configuragao inicial dos jogadores e dos seus padroes dinamicos de acordo com o desenrolar da prova. Mas todos os tipos de desportos tern fungoes especificas para os participantes, para os espectadores ou para os respectivos paises em geral. Quando a forma de um desporto fracassa na execugao adequada destas fungoes, as regras podem ser modificadas. Os desportos variam segundo as suas regras e, por esse motivo, os diferentes modelos de pratica ou, por outras palavras, as diferentes configuragoes dos individuos envolvidos, como esta determinado nas respectivas regulamentagoes e organizagoes que controlam o seu cumprimento. O problema e, evidentemente, saber o que\ distingue o tipo ingles de «jogar o jogo» — o tipo de jogos disputados, de regras e de organizagao a que agora nos referimos como «desportos» — dos outros tipos de jogos. Como e que eles se constitufram? Como e que se desenvolveu, no decurso do tempo, o caracter distintivo das regras, das organizagoes, das relagoes, dos 1 grupos de jogadores, no quadro da acgao peculiar dos «desportos»? Como e evidente, este foi um dos processes no decurso do qual se desenvolveram, durante muitas geragoes, estruturas especificas de relagoes de grupos e de actividades por meio da conjugagao das acgoes e dos objectivos de muitos individuos, mesmo que nenhum dos participantes, individuos ou grupos tivesse a intengao ou planeasse a longo termo o resultado da sua acgao. Nestas condigoes, o exame da emergencia dos desportos como um problema meramente historico nao se trata de uma questao sem importancia. Nos livros de historia, a historia dos desportos e apresentada^jrom^frequencia, como series de actividades e decisoes quase acidentais de
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algumas pessoas. Aquilo que parece conduzir a forma «final», a forma «amadurecida» do jogo, e colocado em evidencia. O que e diferente ou oposto ao padrao «derradeiro» e muitas vezes abandonado na sombra, como irrevelante. Qsmgjej^a,_o_orescimentajia forma «adulta»_de^um despprto nao pode ser apresentadp^de modo adequado, se for encarado antes, como um emaranhado fortuito de actividades e de decisoes de alguns individuos ou grupos conhecidos. Nem pode ser apresentado de modo adequado, de acordo com o que sugerem as teorias sociologicas correntes, como series de «mudangas sociais». A alteragoes que se podem observar no desenvolvimento de desportos como o criquete e o futebol, assim como a caga a raposa e as corridas de cavalos, possuem nao so um padrao mas uma direcgao proprios. Este e o aspecto da historia dos desportos salientado por quern se refere a ela como um «desenvolvimento». Mas ao utilizar este termo ha que dissocia-lo do seu uso filologico ou metaffsico. O que se entende por desenvolvimento social so pode ser alcangado com a contribuigao de estudos empiricos minuciosos. So pode descobrir-se, neste contexto especifico, se alguem investigar sobre a maneira como a caga a raposa, o boxe, o criquete, o futebol e outros desportos se «desenvolveram» de facto. Utilizei, provisoriamente, e em cita^oes, a expressao forma «amadurecida» ou «derradeira» do jogo. Uma das descobertas feitas no decurso de investigates deste tipo foi a de que um jogo pode atingir, no decurso do seu desenvolvimento, um estadio de equilibrio peculiar. E quando este estadio foi alcangado, a estrutura global do seu desenvolvimento anterior modifica-se. Porque o facto de ter atingido a sua forma «amadurecida», ou aquilo que se Ihe pretenda chamar, nao significa que todo o desenvolvimento termina; significa, apenas, que este encetou um novo estadio. Contudo, nem a existencia deste, nem as suas caracteristicas, nem, sequer, o significado global do seu desenvolvimento social podem ser determinados de qualquer outra maneira, excepto por meio do estudo empirico da propria prova. Por outro lado, o conhecimento preliminar do que se procura ao estudar a historia de um desporto nao e meramente a actividade isolada de individuos ou grupos, nem apenas um numero de mudangas nao padronizadas, mas uma sequencia padronizada de alteragoes na organizagao, nas regras e na configuragao actual do proprio jogo, o qual se orienta, durante um certo perfodo, em direcgao a um estadio especifico de equilibrio de
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tensao que, provisoriamente, foi aqui designado por «estadio amadurecido» e cuja natureza tern ainda de ser determinada. Este mesmo conhecimento, utilizado com flexibilidade e, sempre, com a possibilidade da sua insuficiencia no pensamento, pode orientar a selecgao de dados e contribuir para a compreensao das relagoes.
Como afirmamos, um desporto, seja ele qual for, e uma actividade organizada, centrada num confronto entre, pelo menos, duas partes. Exige esforgos fisicos de certo tipo e e disputado de acordo com regras conhecidas, incluindo, onde se revelar apropriado, regras que definem os limites autorizados de for^a fisica. O grupo de participantes e organizado de tal maneira que em cada encontro ocorre um padrao especifico de dinamica de grupo — um padrao que e flexivel, umas vezes mais, outras vezes menos, e, por isso, variavel e, de preferencia, nao inteiramente previsivel no seu curso e nos seus resultados. A configuragao das pessoas em semelhante confronto encontra-se de tal modo planeada que nao so facilita as tensoes como, tambem, as restringe. Na forma amadurecida, integra um complexo de polaridades interdependentes, num estado de equilibrio de tensao instavel, e permite — na melhor das hipoteses — moderar as variaveis que oferecem a todos os contendores oportunidades para levar a melhor, ate que um deles consiga desfazer o equilibrio vencendo o jogo. Uma das caracteristicas de um jogo-desporto no seu estado amadurecido e o facto de o perfodo de tensao nao ser nem demasiado breve, nem demasiado longo. Como os bons vinhos, a maioria dos desportos necessita de muito tempo para evoluir ate esta forma, para crescer ate a maturidade e encontrar a forma optima. E raro — embora tenha acontecido —• inventar-se um jogo-desporto satisfatorio7. Em geral, passaram por um perfodo de ensaio e erro antes de atingirem uma forma que garantisse suficiente tensao por tempo satisfatorio sem favorecer tendencias no sentido do empate. Vitorias precipitadas e repetidos empates podem verificar-se por uma variedade de razoes, algumas das 7
O basquetebol, que, na sua forma inicial, foi inventado pelo Dr. James Naismith de Springfield, Massachusetts, e um exemplo de semelhante jogo.
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quais, mas nao todas, podem situar-se na construgao do jogo-padrao, da conflguragao e das suas proprias dinamicas. A necessaria tensao da configurable estara ausente se urn dos adversaries se revelar excessivamente superior ao outro em forga e tecnica, porque nesses casos o jogo depressa termina na derrota do lado mais fraco. Se os adversaries estiverem demasiado equilibrados em forga e em habilidade, o confronto pode arrastar-se. Neste caso, e provavel que termine num empate e que a tensao-excitagao nao seja capaz de atingir a tempo a sua libertagao no climax da vitoria. Nestes casos, e a configuragao temporaria dos jogadores, nao a configuragao mais duradoura estabelecida pelo proprio jogo-padrao instituido, que e responsavel por imperfeigoes no complexo de equilfbrio de tensao caracteristico dos jogos-desporto. Noutros casos, as tendencias no sentido de uma vitoria precipitada ou de um empate sao devidas a configuragao instituida pelos jogadores no proprio jogo. No desenvolvimento de um jogo-desporto, pode encontrar-se, com frequencia, um perfodo durante o qual as disposigoes favorecem os atacantes em detrimento dos defesas ou vice-versa. No primeiro caso, os atacantes podem veneer todos os jogos, e demasiado depressa. O batedor medio do wicket* introduziu-se no criquete, como se sabe, quando os boladores desenvolveram uma tecnica que atingia a bola com grande frequencia e, segundo parece, com demasiada facilidade8. No segundo caso, os jogos terminavam muitas vezes em empate9. Assim^proporgag ^ej^uUlbrio_dejt^ensao ejdasudinamicas da configurajao^um Jpgo-desporto depende, entre outras, de fllsposi^oes que garantam aos concorrentes, nao so quando atacam comb quando defendem, oportunidades iguais de vitoria e de derrota. Mas estas nao sao as unicas polaridades de que depende o 8
A questao aqui sublinhada nao e delibitada pelo facto de que tanto batsman {Jogador que, no criquete defende com um bastao, a que se da o nome de bat. (N. da T.)} como bowlers [O langador. (N. da T.)] no criquete e jogos comparaveis, alternarem defesa e ataque, situagoes que dependem, por exemplo, do decurso do jogo e do estadio que nele foi atihgido. 9 Um exemplo disso e a mudanga na lei de «fora de jogo» introduzida no futebol, no ano de 1923. Para uma discussao sobre esta mudanc,a, ver o Cap. VI deste volume. * Wicket e um grupo de tres pequenos paus verticals, ligados por barras horizontals, que se designam por bails, defendido por um jogador — o batsman. (N. da T.)
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equilibrio de tensao do jogo. Se os jogadores nao se controlarem a si proprios o suficiente, estao provavelmente ajnfrio^r^^gHTe a vitoria pode desviar-se para os seus oponentes.e Se se restringirem de mais, Jfaltar-lhes-a o vigor e a energia necessaries para a vitoria. <] No casp de seguirem as regras como escravos, arriscam-se a perder jj por falta de imaginagao, pelo contrario^se slTesquiyam ou se esfor-f J gam ate ab extremo, arriscam-se a perder por infracgao das regras. ~PrecIsam de encontrar a forma intermedia entre a obediencia zelosa as regras e convengoes e a dissimulagao e exploragao das regras ate ao limite, jogando proximo da ruptura. Se, pelo grande prazer de um jogo e de um desporto, nao explorarem cada oportunidade de veneer, podem perder a hipotese da vitoria; o proprio jogo pode deteriorar-se. Nos estadios anteriores de desenvolvimento dos jogos-desporto, quando grupos locais, relativamente pequenos, de jogadores ou os seus protectores faziam as suas proprias regras, era de certa maneira facil a alteragao das mesmas para servir as necessidades dos jogadores e do seu publico. Mas, quando organizagoes nacionais se tornaram as donatarias das leis, a polaridade entre a tendencia dos jogadores para seguir as regras e para as iludir ou explorar ao maximo tinha a sua contrapartida, a um outro nivel, na polaridade entre dois grupos diferentes, por um lado, entre aqueles que fazem as regras na ciipula de uma organizagao nacional e, por outro, os proprios jogadores. Os primeiros legislavam considerando a situagao global do jogo e as suas relagoes com o publico em geral; os ultimos, com frequencia afastados do centro do poder, e no interesse das suas proprias oportunidades de veneer jogos, utilizavam a flexibilidade de todas as regras verbais, inventando processes de fugirem as malhas das leis e iludindo as intengoes dos que as elaboravam. O desequilfbrio em uma ou outra destas polaridades e um factor do desenvolvimento dos jogos-desporto no sentido de maior equilibrio de tensao. Pelo menos, tres niveis desempenham um papel na dinamica deste processo: jogos realizados, num dado periodo, por individuos que se podem identificar; o conjunto de jogos-padrao de acordo com os quais um jogo e praticado num determinado estadio de desenvolvimento, juntamente com a organizagao (ou organizagoes) que o controlam; e o processo de desenvolver o jogo-padrao durante todo o tempo da existencia do jogo.
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A dinamica do jogo individual, a dinamica propria do jogo-padrao, num dado momento, e a dinamica de longo termo de um processo formativo do jogo ate a sua maturidade, e depois de a maioridade ter sido atingida, formam um padrao complexo. Sob o ponto de vista conceptual, estes niveis podem distinguir-se, embora, de facto, sejam inseparaveis. Mas, para efeitos de observagao e estudo, e habitual investigar-se no sentido de saber se as mudangas sao devidas aquilo que se sente serem as deficiencias do proprio jogo-padrao, num tempo em que as condigoes para realizar o jogo na sociedade em geral permaneciam em grande medida inalteradas, ou se as mudangas no jogo-padrao sao devidas a deficiencias sentidas, provenientes, em grande medida, de condigoes de mudanga do jogo na sociedade em geral. For outras palavras, um jogo-desporto, em particular quando atingiu a maturidade, pode ter um grau de autonomia em relagao a estrutura da sociedade onde e jogado; por isso, as razoes para as mudangas podem estar no proprio jogor -padrao. Mas a autonomia e limitada. O desenvolvimento do desporto em geral, bem como o de desportos particuIaFes, podF^seT consiclerado como uma ramificagao do desenvolvimento das sociedades onde sao jogados e como sao jogados, cada vez mais, a riivel internacional, no desenvolvimento^ dajs_ocieda.de_ mundial. 1 Nestas observances preliminares, ja dissemos o bastante para assinalar a complexidade das caracteristicas basicas da configuragao dos jogos-desporto. Todos eles — tenis, futebol, boxe, hoquei e muitas outras formas de desporto, incluindo a forma inglesa de caga — apresentam caracteristicas similares em certos aspectos. A analise, na perspectiva da configuragao, contribui para tornar mais penetrante a percepgao de tais caracteristicas e para conceptualizar as suas propriedades distintivas com maior precisao. A partir destas consideragoes preliminares, podem ver-se algumas das caracteristicas distintivas do desporto numa perspectiva mais correcta. A pega fulcral da configujragfojdej^ e^ sempre, a simulagao dejim c<^nfrqn!o,jcmi^ jproduzidas controladas, e, no_jn]^^Qm^_ j^ tensao. De acordo com a tradigao dominante de pensar e de sentir, as tensoes enquanto fenomeno social consideram-se alguma coisa que actua em oposigao as normas — como anormal, nocivo e indesejavel. A analise configuracional do desporto mostra que as tensoes de grupo de tipo equilibrado sao um ingrediente central de todas -*-
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as actividades de lazer. Um desporto e uma forma organizada de tensao em grupo, mesmo que aquele que a procura, num dado momento, possa ser um grupo de dois elementos. «Equilfbrio de tensao» e um termo introduzido de modo a expressar a ideia de que a configuragao de base de um desporto e designada quer para produzir quer para moderar tensoes. As tecnicas para manter uma configuragao de um grupo de indivfduos num equilibrio de forgas em tensao por um certo tempo, com uma elevada oportunidade de catarse ou de libertagao da tensao, continua por estudar. Sejam quais forem estas tecnicas, a configuragao em acgao esta equilibrada entre a vitoria precipitada de Cila e o empate de Carfbdis. Estas e outras caracterfsticas basicas nao foram, evidentemente, planeadas. Nem foi sequer o objective expresso, e claramente conceptualizado de grupos especfficos, designar como actividades de lazer configurates dinamicas de individuos com estas caracterfsticas. Muitos passatempos em Inglaterra, na maioria durante o seculo XVIII e XIX, desenvolveram-se nesta direcgao deste modo, sem planeamento e em grande parte inesperadamente^ A tarefajdos^ sociologos, como e evidente,C tmgat, _de,J^ma^nna _geral, um cjuadro claro da dinamica de grupo especffica do jogo-pjdrap, das configuragoes de individuos caracterfsticas do desporto^ e, entao, tanto quanto possfvel, ver, com a maior minucia, como passatempos especfficos desenvolveram gradualmente as caracterfsticas distintivas de desporto a partir de um estado no qual estavam ausentes e, por fim, determinar as caracterfsticas especfficas no ^desenyglvir mento de um pafs, da sociedade em geral, que sfe responsave^pdp desenvolvimento de passatempos nesta direcgao. Esta, pelo menos, e a tarefa a longo termo. Aquilo que se segue sao alguns passos no sentido desse caminho. Um dos primeiros passatempos com as caracterfsticas distintivas de um desporto foi a forma inglesa de caga a raposa. No nosso proprio tempo, qualquer tipo de caga e considerado, por muitas pessoas, quanto muito, como uma forma marginal de desporto. No seculo XVIII e infcios de seculo XIX, a caga a raposa foi decididamente um dos principals passatempos a que o termo «desporto» se aplicou. Pode compreender-se melhor o que se entende por «desporto» se estudarmos o caracter peculiar deste tipo de caga. Estava bastante longe das formas de cagar mais simples, menos regulamentadas e mais espontaneas de outros pafses e dos tempos passa-
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dos, em que as proprias pessoas eram os actores principals, onde os caes de caga eram meros auxiliares e em que as raposas nao eram os unices animais cagados. Em Inglaterra, a caga a raposa tornou-se um passatempo altamente especializado, com uma organizagao e convengoes proprias. Enquanto cagavam a raposa, os cavalheiros refreavam-se estritamente de perseguir e de matar quaisquer outros animais que encontrassem no seu caminho10 — para espanto de espectadores estrangeiros, que eram incapazes de compreender as razoes desta restrigao. Mesmo os cavalheiros cagadores de Inglaterra, seguros do conhecimento e do prazer dos seus costumes, eram, na maioria, incapazes, ou tinham relutancia, de explicar os seus rituais de caga. Partir atras de uma raposa e nao considerar qualquer outro animal que passasse no seu caminho, mesmo que pudesse servir como a mais apetecida delicia na mesa de alguem, fazia parte do seu codigo social. Um cavalheiro nao partia para a caga com o fim de trazer para casa coisas boas para a mesa. Fazia isso por desporto. Com razoavel divertimento, contavam uns aos outros historias que demonstravam a falta de compreensao dos estrangeiros pela caga a raposa, em 10
Com frequencia, nao se compreende o quanto se desenvolveram lentamente as institutes socials e a estrutura da personalidade de individuos ate um estadio em que e norma,em todos os estratos socials, uma pessoa adulta ser capaz de prosseguir uma actividade especializada com um unico espirito e sem ser distraida por outros fins, talvez momentaneamente mais atraentes. O facto de o ritual da cac.a a raposa exigir semelhante determinac.ao de espirito e a correspondente autodisciplina, na perseguigao da raposa, e um exemplo. Recordo-me de outro. Podera contribuir para a compreensao do facto de que a concentrate da atengao e do comportamento num unico objective durante horas, dias, anos, no final dos quais — nao totalmente sem conflito proprio — pode agora ser considerada, em muitos pafses, como uma conquista de pessoas de todas as classes, e alguma coisa que se desenvolveu lentamente no decurso do tempo. Isso podia ser muito menos certo nos primeiros estadios. Deste modo, o codigo disciplinar aprovado pelo conde de Leicester, para uso das tropas em servigo sob as suas ordens na Holanda, em 1585, ordenava, no artigo 48, que os soldados em marcha numa coluna ao longo dos campos nao deviam comegar a disparar, e, presumivelmente, a perturbar toda a coluna, se por acaso encontrassem uma lebre ou qualquer outro animal no caminho (ver C. J. Cruikshank, Elizabeth's Army, Oxford, 1966, p. 161). O codigo completo e esclarecedor. Pode servir como uma lembranc.a do modo como poucas formas de conduta e de sensibilidade, que, no presente, podiam parecer simplesmente evidentes ou racionais, podem considerar-se asseguradas.
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particular, a dos Franceses. Havia uma historia do chasseur* Frances que presenciou uma cagada a raposa em Inglaterra e manifestou tanta surpresa como desilusao quando observou alguns j ovens caes de caga serem escorra^ados, a chicotada, do rasto de uma lebre que estavam quase a agarrar; ou a historia de outro cavalheiro Frances, que ouviu um ingles exclamar durante uma cagada: «Que admiravel! O desporto que a raposa proporcionou nesta encantadora corrida de duas horas e um quarto». Replicou: «Ma foi**, deve valer a pena apanha-la depois de tanto trabalho. Est-il bon pour un fricandeau?***»11 Em tempos passados, a agradavel excitagao da caga foi uma especie de prazer experimentado em antecipagao dos prazeres reais, os prazeres de matar e de comer. O prazer de matar animais era encarecido pela sua utilidade. Muitos dos animais cagados ameagavam o fruto do trabalho das pessoas. Na maior parte do seculo XVIII, animais selvagens, e entre eles raposas, continuavam a ser abundantes em grande numero dos paises. A caga era necessaria a fim de os reduzir. As raposas, em particular, eram uma ameaga constante aos recintos de aves de capoeira, de gansos e patos dos camponeses e da pequena nobreza. No campo, elas competiam com os cagadores furtivos de lebres. Noutros tempos, permitia-se aos caes de caga a perseguigao de veados, lebres, martas e raposas, de modo indiscriminado. Os campos e as florestas encontravam-se repletos deles e todos eram considerados como daninhos. Tambem proporcionavam alimentagao. Em periodos de seca e de fome, os pobres inclinavam-se menos a desperdi^ar a carne da raposa, porque esta tinha um gosto bastante activo. «A carne da raposa», de acordo com uma fonte francesa, «e menos desagradavel do que a do lobo. Os caes, bem como os homens, comem-na no Outono, especialmente se a raposa se alimentou e engordou com uvas.»12 Deste modo, as formas anteriores de caga impuseram aos seus n
Blaine, Encyclopedia of'Rural Sports, Londres, 1852, p. 89. Citado em Peter Beckford, Thoughts on Hare and Foxhunting, Londres, 1976, p. 197. *Em Frances no original. (N. da T.) **Em Frances no original: «Na verdade». (N. da T\) ***Em Frances no original: «Nao serve para uma entrada?» Fricandeau e um prato de carne lardeada que se serve como entrada numa reFeigao. (N. da T.) 12
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seguidores poucas restrigoes. As pessoas desfrutavam os prazeres de cagar e de matar animals de qualquer maneira e comiam tantos quantos gostassem. For vezes, grande numero de animals era conduzido proximo dos cagadores para que, assim, estes pudessem desfrutar dos prazeres de matar sem excessivos esforgos fisicos. Para as categorias sociais mais elevadas, a excitagao de cagar e matar animais tinha sido sempre, ate certo ponto, o equivalente, em tempo de paz, da excitagao relacionada com o matar seres humanos em tempo de guerra. As pessoas utilizavam para os mesmos fins, como coisa natural, as armas mais apropriadas que estavam a sua disposigao. Desde que as armas de fogo foram inventadas, as raposas sao alvejadas como qualquer outro animal. Um olhar rapido sobre as formas anteriores de cagar mostra, numa perspectiva melhor, as peculiaridades da caga inglesa a raposa. Tratava-se de uma forma de caga em que os cagadores impunham a si mesmos e aos seus caes, um numero de restrigoes muito especificas. Toda a organizagao da caga a raposa, o comportamento dos participantes, o treino dos caes era dirigido por um codigo muito elaborado. Mas as razoes para esse codigo, para os tabus e limites que se impunham aos cagadores, estava longe de ser evidente. Porque e que os caes de caga eram treinados para nao seguir qualquer rasto a nao ser o da raposa e, tanto quanto possivel, para seguirem nao o rasto de qualquer raposa mas, apenas, o da primeira que descobriam? O ritual da caga a raposa exigia que os cagadores nao usassem quaisquer armas. Por que razao e que matar raposas era considerado como um crime social mais grave e porque seria improprio de um cavalheiro cagar raposas utilizando qualquer tipo de arma? Os cavalheiros cagadores de raposas matavam, por assim dizer, por procuragao — delegando a tarefa de matar aos seus caes de caga. Porque e que o codigo da caga a raposa proibia que as pessoas matassem o animal cagado? Nas formas iniciais de caga, quando as pessoas desempenhavam o papel principal, os caes tinham um papel secundario. Porque e que na caga a raposa, em Inglaterra, o papel principal era deixado aos caes de caga, enquanto os seres humanos se limitavam ao papel secundario de acompanhantes e observadores ou, talvez, controladores dos caes? Em consequencia desta delegagao dos principals papeis da caga e da consequente necessidade de os cagadores se identificarem a si proprios, ate certo ponto, com os caes de caga — como se tivessem
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projectado uma parte de si mesmos e delegassem o sangue e a morte, em vez de os provocarem eles proprios —, muitos cagadores estavam ligados aos seus caes por uma afeigao que, com frequencia, era mutua. Eles conheciam os seus animais, um a um, pelo seu nome. Estabeleciam e discutiam as suas qualidades individuals e comparavam-nos uns aos outros. Admiravam as suas proezas, a sua ferocidade e coragem, e estimulavam as suas rivalidades. «Deviam», escreveu Beckford, «amar e ter medo do cagador. Deviam teme-lo muito e, no entanto, deviam ama-lo ainda mais. Sem diivida que os caes de caga fariam mais pelo cagador se o amassem mais.»13 Uma relagao intima e pessoal entre os cagadores e os caes de caga, incluindo um grau de projecgao dos sentimentos do cagador, constituiu um aspecto integral da configuragao de base da caga a raposa. Repara no Galloper, como ele os conhece! E dificil distinguir qual e o primeiro, correm com tanto estilo; ate agora ele e o melhor cao de caga; a boa qualidade do seu nariz nao e menos excelente do que a sua velocidade. Como segue o rasto! ...Ali — agora — agora, esta de novo a frente14.
E o fim: Agora Reynard, ve por ti mesmo — como todos agitam tanto as suas linguas! O pequeno Dreadnought, como procede — tao proximo que Vengeau a persegue! Ela pressiona de forma tao terrivel! Estao quase a acabar com ele! Deus, que desgraga fazem; todo o bosque ressoa! Esta partida foi muito curta! Ali — agora! — aye, agora eles agarraram-na! Whoo-hoop!15
Com a delegagao feita aos caes, pelos seres humanos, da maior parte da perseguigao, e tambem da fungao de matar, e com a submissao dos cavalheiros cagadores a um codigo elaborado, auto-imposto de restrigoes, um aspecto do prazer de cagar tornara-se visual, o prazer resultante da acgao transformou-se no prazer de ver agir. A orientagao das mudangas na maneira de cagar, que cada um , p. 239. , 166. , p. 169.
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pode encontrar ao comparar o ritual da caga a raposa com formas anteriores de caga, mostra com grande clareza a direcgao geral de um avango de civilizagao16. O aumento das restri^oes quanto a aplicagao da forga fisica e, em particular, sobre o acto de matar, e, como expressao dessas restrigoes, o deslocamento do prazer experimentado em praticar a violencia para o prazer de ver a violencia cumprir-se, podem ser observados como sintomas de um impulso de civilizagao em muitas outras esferas da actividade humana. Como foi demonstrado, todos estao relacionados com movimentos no sentido da maior pacifica^ao de um pais, em liga^ao com o crescimento ou com a crescente eficacia da monopolizagao da forga fisica por representantes das institutes centrais de um pais. Alem disso, estao relacionados com um dos aspectos mais cruciais da pacificagao interna e da civilizagao de um pais — com a exclusao do uso da violencia das lutas periodicas pelo controlo destas instituigoes centrais, e com a correspondente formagao da consciencia. Pode observar-se esta crescente interiorizagao da proibigao social contra a violencia e o avan^o deste limiar da reacgao contra ela, em especial, contra o acto de matar, e mesmo contra a visao da morte, se considerarmos que, no seu apogeu, o ritual ingles da caga a raposa, que proibia qualquer participate humana directa na morte, representava um avango na civilizagao. Era um passo em frente na reacgao das pessoas contra a pratica da violencia, enquanto hoje, de acordo com o avango continuo do limiar de sensibilidade, nao sao poucas as pessoas que consideram, mesmo isto, representativo de um estadio anterior de civilizagao, detestavel e que gostariam de ver abolido. A natureza de um processo de civilizagao e, por vezes, mal entendida como um processo onde a restrigao ou, tal como as vezes se afirma, as «repressoes» impostas as pessoas aumentam e onde a capacidade destas para a excitagao agradavel e para desfrutar a vida decresce, em correspondencia. Mas talvez esta impressao seja, ate certo ponto, devida ao facto de as satisfagoes agradaveis das pessoas atrairem menos a atengao, como objecto de pesquisa cientifica valido e interessante, do que as regras restritivas — do que os constrangimentos sociais e os seus instrumentos, as leis, as normas
16
Norbert Elias, Civilizing Process, Oxford, 1978, pp. 202 e seguintes.
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e os valores. Uma investigate sobre o desenvolvimento dos desportos pode contribuir para restabelecer o equilibrio. De vez em quando, podem encontrar-se na literatura breves declara^oes que incidem exactamente sobre a questao. Apesar de a caga ter sido, com bastante frequencia, reconhecida como uma actividade substituta da guerra, tambem foi, por vezes, reconhecido com bastante clareza que a forma que ela assumiu em Inglaterra representava uma moderagao dos seus aspectos menos civilizados. Permitir que os caes de ca^a matassem e confinar a sua propria actividade ao comportamento dos caes, a excitagao antecipada e a observagao da morte, correspondia melhor a sensibilidade de cavalheiros civilizados. Beckford escreveu: Aqueles que estao familiarizados corn os caes de caga e podem, de vez em quando, acompanha-los, consideram-na o desporto mais interessante e tern a satisfagao de pensar que eles proprios contribuiram para o exito da Jornada. Este e um prazer que se desfruta com frequencia; urn prazer sem qualquer mdgoa. Nao sei que efeito pode ter em voce; mas sei que o meu espfrito esta sempre animado, depois de uma boa cagada; nem o repouso e para mim, alguma vez, desagradavel. Pescar e, na minha opinao, uma diversao sem interesse. Tiro, embora admita um companheiro, nao permitira muitos. Ambos, contudo, podem ser considerados como divertimentos egofstas e solitaries, comparados com a caga, na qual sao bem-vindos tantos quantos o desejarem. Porque cagar e uma especie de guerra, as suas incertezas, as suas fadigas, as suas dificuldades e os seus perigos fazem dela a mais interessante de todas as diversoes17.
Este trecho esclarecedor sublinha, de varias maneiras, o fulcro do problema. Desde o tempo de Beckford, o processo de civilizagao deslocou-se, em alguns sectores da populagao, na mesma direcgao e para alem do grau sugerido por este autor e do sector da sociedade em que este se movimentava. Este grupo deixou de ser a area dominante, o sector do modelo estabelecido. Se, na sua propria sociedade, a consciencia e as correspondentes sensibilidades evoluiram para uma forma que tornava desagradavel o facto de matar a raposa com as suas proprias maos, hoje tornaram-se mais podero17
Beckford, Thoughts on Hare and Foxhunting, p. 199 e seguintes. Italico do original.
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sos e activos determinados sectores da populagao cujas sensibilidades e identificagao com o animal cagado sao tao fortes que a caga e a morte das raposas para a satisfagao do prazer humano passa a ser completamente desagradavel. No tempo de Beckford, a pacificagao interna — a estabilidade e a eficacia da protecgao que as actividades centrals da sociedade e dos seus orgaos ofereciam, em particular, contra ameagas fisicas de todos os generos —, em con junto com as correspondentes restrigoes sobre os individubs, externas e internas, nao tinham avangado tanto como hoje. Mas, comparada com formas anteriores de caga e de passatempos em geral, a direcgao da mudanga no comportamento e na sensibilidade era a mesma. Matar e exercer violencia em geral, mesmo que se tratasse de violencia fisica em relagao a animais, foram proibidos de forma mais elaborada por tabus e restrigoes. Nada e mais caracteristico de um dos problemas centrals da tendencia de civilizagao do que a afirmagao de que a forma de violencia indirecta, o acto de matar por procuragao, o facto de se poder, por vezes, presenciar os caes a fazer aquilo que ja nao se desejava ser o proprio a fazer, tornava possivel fruir «um prazer sem qualquer magoa». Aquilo que Beckford observou era, de facto, um dos aspectos centrals do desporto e, em particular, do jogo-desporto. Todos eles sao configuragoes dinamicas de pessoas e, as vezes, tambem de animais, que Ihes permitem participar num confronto de forma directa ou indirectamente, envolvendo-as por completo (como se costumava dizer de «corpo e alma»), de tal maneira que podiam usufruir o excitamento da luta sem qualquer arrependimento — sem ma consciencia. O desporto e, de facto, uma das maiores invengoes socials que os seres humanos realizaram sem o planear. Oferece as pessoas a excitagao libertadora de uma disputa que envolve esforgo fisico e destreza, enquanto reduz ao mfnimo a ocasiao de alguem ficar, no seu decurso, seriamente ferido. No seculo XVIII o limiar de reacgao contra o acto de ferir outros, directa ou indirectamente, em ligagao com o agradavel prazer que obtinham a partir da batalha mimetica de uma prova de desporto, nao tinha ido tao longe e situava-se, em muitos casos, a um nivel inferior ao que se atingiu em varias sociedades-Estado hoje. Mas a direcgao da mudanga no comportamento e sensibili-
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dade que ai se pode observar era a mesma que se pode surpreender em tempos mais recentes. Um dos problemas cruciais com que se confrontavam as sociedades, no decurso do processo de civilizagao,erar—-~e continua a ser — o de encontrar um novo equilfbrio entre o prazer e a restrivgao. A progressiva limitagao de controlos reguladores sobrejyrom-, '' portamento das peslsoas e a formagao da correspondente conscien| cia, a interiorizagao das regras que regulam de forma mais^elabp/ rada todas as esferas da vida, garantem as pessoas, nas suas relagpes entre si, maior seguranga e estabilidade, mas implicaram tambem uma perda das satisfagoes agradaveis que se associavam a formas de comportamento mais simples e espontaneas.vO desporto era uma das solugoes para este problema. As inumeras pessoas que contri-j bufram de forma anonima para o desenvolvimento dos desportos podem nao ter tido consciencia do problema com que se defrontavam, nos termos em que ele se apresenta, em retrospectiva, a reflexao dos sociologos actuais, mas algumas delas estavam bem conscientes deste facto como um problema especffico que se Ihes deparava na relagao imediata com os seus proprios passatempos limitados. A configuragao da caga a raposa — da caga transformada em desporto — mostra algumas das vias pelas quais as pessoas ainda conseguiam obter prazer numa perseguigao que envolvia violencia ffsica e morte, num estadio em que, na sociedade em geral, mesmo as pessoas abastadas e poderosas se tornaram cada vez mais limitadas na sua capacidade de usar a forga sem a autorizagao da lei, e na qual a sua consciencia se tornou mais sensfvel a respeito do uso da forga bruta e do acto de derramar sangue. Como e que isso se realizou? Como pode alguem orientar-se para o seu prazer sem ma consciencia, apesar do facto de a consciencia, forjada em sociedade, se ter tornado mais forte, quase total e, embora ainda menos sensfvel a respeito da violencia do que aquilo que e a tendencia nas sociedades industriais de hoje, de longe mais sensfvel do que havia sido em tempos anteriores? O problema era menos diffcil de resolver quando se impunha a violencia a animais em vez de ser aos seres humanos. Era deveras surpreendente que o limiar de sensibilidade no despertar de uma tendencia de civilizagao tenha avangado tanto ate incluir animais. A limitagao de formas de controlo social externas, tal como foram expressas em leis formais e em regulamentos, abrangiam apenas seres humanos. O facto
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de a sensibilidade a respeito de toda a violencia ter chegado a afectar animais era caracteristico da irradiagao do sentimento para alem do alvo, o que e uma componente geral da formagao da consciencia. O avango neste estadio fora suficiente para que se alcangasse, indirectamente, enquanto observador participante, o prazer da morte do animal cagado, mais do que sucederia, de forma directa, como no caso em que o agente e o responsavel pela execugao. Mas se estudarmos, de forma mais profunda, a configuragao da caga a raposa, e se a compararmos com formas anteriores de caga, depressa se nota uma deslocagao bastante caracteristica na enfase colocada a respeito das actividades que dao prazer. Nas maneiras de cagar do passado, as principals fontes de prazer situavam-se na morte e subsequente ingestao do animal cagado. A circunstancia de ter desaparecido o prazer de comer, enquanto motivo para cagar, e de se ter atenuado o prazer de matar, ainda que de forma insignificante, foi caracteristico do estilo ingles de caga a raposa. Era um prazer por procuragao. A morte era executada pelos caes de caga e o prazer da propria perseguigao tinha»se tornado, por assim dizer, a principal fonte de divertimento e o aspecto fundamental do exercicio. A morte final da raposa — o triunfo da vitoria — continuava a ser, ainda, o climax da caga. Mas, em si proprio, ja nao era a principal fonte de prazer. Essa fungao havia sido deslocada para a caga do animal, para a perseguigao. Aquilo que, nas formas de caga mais simples e espontaneas, tinha sido o adiantamento do prazer fruido em antecipagao no que dizia respeito a morte e ao comer adquirira um significado muito maior do que antes se conhecia. Face a todos os outros fins da caga, a tensao da propria batalha simulada e o prazer que proporcionava aos participantes humanos tinham atingido um elevado grau de autonomia. Matar raposas era facil. Todas as regras da caga foram elaboradas para a tornar menos facil, a fim de prolongar a prova, para adiar a vitoria por algum tempo — nao porque se sentia ser imoral ou injusto matar raposas tao claramente, mas porque a excitagao da propria caga se transformara, cada vez mais, na principal fonte de prazer dos seres humanos participantes. Disparar sobre as raposas era estritamente proibido; nos circulos onde esta forma de caga teve origem, entre a aristocracia e a pequena nobreza, isso era considerado como um comportamento incorrecto e imperdoavel, e os rendeiros tinham de seguir, quer quisessem quer nao, as regras
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dos seus superiores, ainda que as raposas roubassem as suas galinhas e os seus patos. Disparar sobre as raposas era um pecado porque isso privava os cavalheiros da tensao-excitagao da caga; isso destruia o seu desporto. Aquilo que antes fora um anteprazer, preparatorio do prazer principal de matar e de comer o animal cagado, tinha sido transformado agora na parte principal do prazer, a culminar e a terminar na morte do animal, ao mesmo tempo que o proprio animal ja nao representava qualquer papel nos subsequentes jantar e bebida, excepto como tema de conversa. O seculo XVIII foi profundamente afectado por esta deslocagao peculiar do prazer das pessoas nos seus passatempos; representou uma profunda transformagao sublimatoria do sentir. Na Idade Media, o termo «desporto» tinha um sentido muito menos especifico. Durante o seculo XVIII, tornou-se um termo mais vincadamente especializado, transformou-se num terminus technicus para um tipo especifico de passatempos que se desenvolveram na epoca entre cavalheiros proprietarios de terras e aristocratas, e de que a forma bastante idiossincratica da caga a raposa, que se desenvolveu nestes circulos, era uma das mais proeminentes. Talvez a sua caracteristica principal fosse a tensao-excitagao de um combate simulado que envolvia esforgo fisico e o divertimento que este oferecia aos seres humanos como participantes ou espectadores. Os grupos de caga a raposa, tanto quanto se pode ver, nao desconheciam totalmente a autonomia especifica do seu «desporto» — o relative distanciamento das alegrias do combate simulado em relagao a qualquer outro objectivo ou fungao social. Expressoes tais como «a raposa proporcionou-nos um bom desporto» ou «o nosso desporto depende inteiramente desse sentido requintado de farejar, tao peculiar aos caes de caga» mostram com muita clareza que o desporto estava profundamente associado, nesse tempo, a tensao do combate simulado enquanto tal e ao prazer daf resultante18. Nem os perseguidores da caga a raposa desconheciam totalmente que a agradavel tensao-excitagao, que era a essencia do «bom desporto», so podia esperar-se da caga a raposa na medida em que a sua configuragao de base garantisse um equilibrio de tensao
*lbid., p. 38.
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moderadamente instavel, um equilibrio provisorio de poder entre os contendores. De acordo com um manual de desportos: A nobre ciencia, como a caga a raposa e chamada pelos seus entusiastas, esta autorizada, por consentimento geral, a ser considerada a perfeigao da caga. O animal cagado e suflcientemente rapido para se alcangar o objective, e tambem esta munido de todas as especies de expedientes para confundir os seus perseguidores. Deixa um bom rasto, e muito resistente e encontra-se em grande abundancia, assegurando uma oportunidade razoavel de pratica do desporto19.
A caga inglesa a raposa e aqui utilizada como um modelo empirico, de forma a demonstrar algumas das caracteristicas distintivas do tipo de passatempo que e chamado «desporto». Isso pode ajudar a compreender melhor certas caracteristicas estruturais do desporto como uma fonte de agradavel tensao-excitagao, que mais tarde foi explicada, muitas vezes, apenas em termos militaries. Os grupos de caga a raposa ja haviam desenvolvido um ethos especifico, o qual e uma das caracteristicas de todos os desportos. Mas, neste estadio, o ethos dos desportos nao era o genero de ethos das classes medias operarias ao qual se aplicam termos como «moral» ou «moralidade». Era o ethos de classes de lazer abastadas, sofisticadas e comparativamente restritas, que tinham transformado em valor a tensao e a excitagao dos confrontos simulados, entretanto regulamentados para se constituirem como a parte principal do seu prazer. As regras da caga a raposa, designadas e observadas por cavalheiros e rigorosamente impostas contra os transgressores, garantiam que a caga Ihes daria o essencial do bom «desporto», uma quantidade suficiente de agradavel tensao e excitagao de combate. Garantiam que as condigoes para a agradavel tensao-excitagao que se desejava e necessitava podiam ser introduzidas com maior regularidade pela dinamica de uma configuragao onde os cavaleiros-cagadores, caes de caga e raposa estavam ligados. Hoje pode explicar-se o relative equilibrio de oportunidades, para ambos os lados, por referenda a «justiga» de uma tal disposigao. Mas, neste como noutros casos, os aspectos «morais» estao em condigoes de dissimular os aspectos sociologicos, a estrutura ou 19
Stonehenge, Manual of Sports, Londres, 1856, p. 109-
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a fungao de semelhante disposigao. Sem uma configuragao que fosse capaz de manter, por um determinado periodo, um equilibrio moderadamente instavel de oportunidades para os competidores, nao se poderia esperar ter «bom desporto»; sem uma disposigao «justa», o prazer e a excitagao fornecidos pela tensao do confronto, que era a principal fungao do desporto, teria sido demasiado breve e nao poderia acontecer com um elevado grau de regularidade. Desta maneira, a ca^a a raposa demonstrou ja, no essencial, que as pessoas tinham aprendido uma tecnica especifica de se organizarem, a qual e usada no desporto de todos os tipos — uma tecnica para manter, por algum tempo, no quadro de uma dada configuragao de participantes, um equilibrio de forgas em tensao, com elevada oportunidade de catarse, de libertagao da tensao, no final. Outro dos problemas habituais do desporto em geral que se depara aos desportistas, desde muito cedo, em ligagao com a cafa a raposa, foi o de descobrir o equilibrio apropriado entre o grau de tensao-excitagao dos proprios confrontos e as oportunidades para o prazer relativamente breve da catarse, do climax e da libertagao da tensao. O problema da enfase num ou noutro destes dois polos, como o das polaridades correspondentes dos outros desportos, originou a controversias entre as pessoas que davam maior importancia a propria caga e as que atribuiram maior realce a morte da raposa — entre os defensores do «bom desporto» e os defensores de «alcan£ar vitorias». A persistencia com que este tipo de discussoes ocorreu em diversos desportos, em tempos diferentes, e um indicador da persistencia da estrutura basica do desporto. Como ja afirmamos, a configuragao dinamica de um desporto deve ser equilibrada de maneira a impedir, por um lado, a frequente repetigao de vitorias precipitadas e, por outro, a frequente repetigao de empates. A primeira interrompe a agradavel excitagao; nao Ihe oferece tempo suficiente para alcan^ar um prazer Optimo, provocando desinteresse, a ausencia de qualquer climax e impedindo a libertagao «catartica» da tensao subsequente. Enquanto a configuragao basica de um desporto garantir um equilibrio jus to entre estas duas possibilidades, os desportistas podem fazer a sua opgao colocando mais peso num lado ou no outro. A respeito da caga a raposa, Beckford discutiu este problema ainda no final do seculo XVIII. Ele proprio sublinhava a importancia do climax, da morte da raposa. Mas isso nao significava que
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apreciasse o prazer e a excitagao da morte, independentemente do prazer e da excitagao da caga que a precedia. Ao explicar por que motivo recomendava que se devia partir com a matilha, de manha cedo, em particular se os caes estivessem «esgotados de sangue», escreveu: A manha e a parte do dia que permite o melhor rasto; e o proprio animal, que, nesse caso, esta mais desejoso de matar (os caes de cac,a estando esgotados de sangue), tern menos oportunidades de se afastar para longe. O desejo de descanso e, talvez, uma total voracidade dao ao cao de caga uma vantagem superior... Espero, meu amigo, que ira replicar a isto «que um cagador de raposas, entao, nao e um desportista justo — certamente que nao e; e mais, seria bastante lamentavel ser confundido com um. Por principio, ele e diferente. Na sua opiniao, um desportista justo e um desportista louco sao sinonimos; ele, no entanto, retira toda a vantagem que Ihe e possivel. Pensara, talvez, que pode destruir, por isto, o seu proprio desporto? E verdade, algumas vezes acontece, mas... dado que toda a arte da caga a raposa consiste em manter os caes bem quanto a sangue, o desporto e mais uma considerate secundaria a par do «ca^ador de raposas»; primeiro, e a morte da raposa\ a partir dessa altura, desperta a avidez da perseguigao confesso que considero o sangue tao necessario como uma matilha de cac,a a raposa, isto a respeito de mim proprio, porque sempre regressei a casa mais satisfeito com uma perseguigao, nao obstante indiferente, com morte no final dela do que com a melhor persegui^ao, se esta termina com a perda da raposa. Boas persegui^oes, falando de um modo geral, sao longas perseguigoes e, se nao forem acompanhadas com exito, nunca deixam de fazer mais mal do que bem aos caes de caga. Acredito que os nossos prazeres, na maior parte dos casos, sao mais acentuados durante a expectativa do que na satisfagao; neste caso, a propria realidade fundamenta a ideia, e o seu sucesso actual e quase um certo mensageiro antecipado de um futuro desporto20.
No decurso de um processo de civilizagao, um dos limites que aos individuos se deparavam, quando confrontados pela necessidade 20
Beckford, Thoughts on Hare and Foxhunting, p. 173 (italico acrescentado). Aquilo que Beckford dizia, por outras palavras, era que, se os caes fossem treinados para matar e gostar de matar, eles proporcionariarn um bom divertimento no futuro. Como se pode ver, desejava destacar o facto de que o prazer da excitac.ao do confronto e o prazer do climax sao interdependentes.
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de um novo equillbrio entre prazer e restrigao, era uma capacidade maior para fruirem a alargada excitagao da luta e da tensao que conduzia ao climax, em comparagao com o breve prazer do climax e da correspondente libertagao da propria tensao. A afirmagao «os nossos prazeres... na maior parte dos casos, sao maiores durante a expectativa do que na satisfagao», embora nao seja necessariamente correcta enquanto diagnostico, assinala claramente a tendencia do valor da tensao-satisfagao face a consumagao-prazer, que e indicada no desenvolvimento de passatempos como a caga, sendo isto, de um modo geral, caracteristico de uma tendencia civilizadora. O termo «desporto» tornou-se, como vimos, o termo tecnico associado ao que tinha sido, de imcio, a parte preparatoria da caga ou jogo, juntamente com o prazer da antecipagao que se espera dela. Dizer que a raposa «nos proporciona bom desporto» era uma expressao que se referia, ao mesmo tempo, as proprias dinamicas configuracionais e ao grau de excitagao agradavel que elas proporcionam; a expressao referia-se a prova entre a raposa, os caes de caga e o cagador, bem como a satisfagao que concedia ao ultimo. Beckford podia continuar a dizer, sem sentir vergonha, o que a maioria das pessoas teria por certo afirmado naturalmente, em seculos passados, e aquilo que cada vez menos pessoas gostariam de dizer depois — ou seja, que a primeira coisa que o cagador de raposas desejava era matar a raposa, sendo o desporto uma questao secundaria. Alem disso, como o valor da tensao elevada e da tensao-satisfagao foi acentuado em termos comparatives com o breve acto final — com a morte e os seus prazeres —, o proprio prazer tornou-se mais variado. Tornou-se, de facto, um prazer composto. A configuragao basica da caga a raposa, como aquela de muitas outras formas de desporto, era tao harmoniosa que a excitagao e o prazer resultantes permaneciam nao so numa mas em varias provas que se desenrolavam ao mesmo tempo. Como de costume, a primeira prova era a que ocorria entre o cagador e o cagado. Mas, no caso da caga a raposa, a configuragao era constituida nao so por um mas por tres tipos de participates: seres humanos, matilha de caes e raposa. A luta entre os caes e a raposa era a primeira prova, e a tensao, a excitagao que ela originava, dominava todas as outras. Mas ligada de forma profunda a esta prova estava a segunda, a prova entre os caes de caga. Os cagadores seguiam e vigiavam os caes de modo avido. Os mais bravos e rapidos, com os melhores narizes e que se
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mantinham proximo da raposa, ampliavam o orgulho do dono e proprietario. Eram admirados e afagados, pagavam-se pregos elevados pela sua descendencia. E, finalmente, outra prova secundaria inerente a configurac.ao era aquela que decorria entre os proprios cagadores. A questao era a seguinte: quern conseguira permanecer mais proximo da matilha? Quern seguira por atalhos, mesmo que fossem perigosos? Quern vacilara perante as vedagoes, os cursos de agua ou outros obstaculos? Quern estava presente no momento da morte? A excitagao evocada pela prova entre as raposas e os caes de caga era bastante acentuada pelo confronto que se desenrolava entre os cagadores. No seculo XVIII e nos inicios do seculo XIX, a caga a raposa era, com frequencia, consideravelmente mais exigente e brutal do que e hoje. Era um teste de coragem, vigor e destreza para os cavalheiros e, certas vezes, para as senhoras. Era habitual, no calor da caga, os cagadores desafiarem-se entre si ao extremo. Arriscavam-se, embora soubessem que podiam ter de pagar, pelo prazer da excitagao, com uma queda, com ferimentos ou ate mesmo com as suas vidas. A caga inglesa a raposa foi aperfeigoada por nobres e cavalheiros num periodo em que a rivalidade de estatuto integral do seu quadro social era resolvida, cada vez mais, nao por meio de duelos e outras formas de combate fisico directo — embora estes ainda fossem bastante assiduos entre os sectores mais jovens — mas sim por meio de outras armas, como, por exemplo, a realizagao de despesas exageradas e de proezas notaveis. A caga a raposa proporcionava oportunidades para as duas. Para muitos dos seus aderentes, as suas convengoes assumiam o caracter de um ritual, quase de um culto. O seculo XIX em Inglaterra foi um periodo — e nao so em Inglaterra — em que a pacificagao e a sujeigao das classes proprietarias de terras, e, ao mesmo tempo, o refinamento das suas maneiras, progrediu de forma assinalavel. A ameaga de guerra civil tinha diminuido. As recordagoes dos conflitos internes do seculo precedente nao se tinham ainda esbatido21. Como e tao frequente, 21
Em Thoughts on Hare and Foxhunting, Beckford sublinha as vantagens de um desporto pacifico no campo, tal como a cac,a a raposa, atraves de uma citagao de um poema: «Nenhum senado ferozmente desordenado e uma ameaga aqui. Nenhum machado ou cadafalso se ve. Nenhuma inveja, desilusao e desespero.»
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na sequencia de um conflito civil, muitas pessoas receavam a sua repetigao. Estavam cansadas de violencia entre seres humanos. Com uma frequencia superior a que se verifica num periodo em que nao existem desavengas internas, um grupo particular emerge como o mais forte. Mas, em Inglaterra, nao foi esse o caso. A monopolizagao progressiva da forga fisica, de que a pacificagao interna de um pais dependia por toda a parte, em particular, a pacificagao dos seus grupos dirigentes, seguiu, neste pais, um rumo diferente ao que se verificou na maioria dos outros Estados da Europa. A administragao e a utilizagao do duplo monopolio institucionalizado da forga fisica e da tributagao, de que dependia, entre outras coisas, a eficacia dos processos legais no pais, nao se tinham transformado em monopolio permanente de um dos varios grupos em competigao. Por certo, nao se haviam transformado, como sucedeu em Franga e noutros Estados autocraticos, no monopolio do rei e da corte. Em Inglaterra, o que resultou do periodo mais violento de conflitos sociais, foi um equilibrio de tensao moderadamente instavel, entre varios grupos dirigentes em competigao, dos quais nenhum desejava, ou parecia ser suficientemente poderoso para intimidar as forgas conjugadas dos outros por meio de um teste directo de forga fisica. Em vez disso, desenvolveu-se, de modo gradual, um acordo tacito entre os grupos rivais na sociedade em geral. Estes concordaram num conjunto de regras segundo o qual podiam fazer rotagoes na constituigao de governos e na administragao ou utilizagao dos instrumentos centrais de todas as fungoes de governo — o monopolio da forga fisica e do langamento de impostos. Certamente, a elaboragao destas regras nao aconteceu de um dia para o outro. Verificaram-se lutas esporadicas e cheques entre os que seguiam os diferentes grupos ate, pelo menos, meados do seculo XVIII, mas, de um modo progressive, afastou-se o medo de que um dos grupos rivais e seus adeptos agredissem fisicamente ou aniquilassem os outros. O acordo de nao lutar por meio da violencia por cargos governamentais e pelos seus poderosos recursos, mas apenas de acordo com regras estabelecidas por mutuo consentimento, por meio de palavras, votos e dinheiro, comegou a merecer cada vez mais apoio. Vale a pena sublinhar que esta concordancia integrava, tambem, um equilibrio de tensao moderadamente instavel entre varios grupos. Na transigao para uma harmonizagao tao complicada, constituiu um papel importante o facto de nenhuma das
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partes rivais, nem mesmo o rei, ter a sua disposi^ao o controlo ilimitado de um exercito permanente. Levou tempo a resolver o problema central que tinha sido sempre, e que continua a ser, o obstaculo principal na transigao de um periodo de violencia entre diversos grupos de interesses para um regime integrando meios institucionais nao violentos para resolver conflitos. O problema e sempre o mesmo; ou seja, como ultrapassar o medo reciproco e a suspeita de que os adversaries, logo que tenham alcangado o controlo dos cargos governamentais e os poderosos recursos conferidos aos mesmos, possam deixar de realizar o jogo segundo as regras estabelecidas por mutuo consentimento, tentem continuar no poder indiferentes a estas regras e usem os poderosos recursos do governo para enfraquecer ou aniquilar os seus adversarios. Como e porque e que os grupos sociais rivais, que tinham utilizado ou trocado ameagas com violencia fisica nas suas lutas pelo poder, deixaram de o fazer, em geral, na primeira metade do seculo XVIII, como e por que razoes um regime parlamentar, que integrava mudangas no governo por meios nao violentos e segundo as regras estabelecidas por mutuo acordo, comegou entao a funcionar com consideravel regularidade e quase sem regressoes e um problema que nao tern necessidade de ser explorado neste contexto. Mas nao se pode deixar de assinalar, de modo nenhum, o facto em si mesmo. E relevante sublinhar a forma peculiar que permitiu o acesso aos cargos governamentais e o controlo dos seus principals recursos de poder — os monopolies da for^a fisica e do langamento de impostos assumidos em Inglaterra neste periodo. E costume a referenda a esta forma de governo como «pluralismo» ou «governo parlamentar», mas estas palavras tao rotineiras podem ocultar, facilmente, o problema central que tern de ser resolvido para que semelhante regime possa funcionar. Este e o problema da transigao nao violenta de um governo para outro segundo determinadas regras. Como se pode induzir os membros de um governo a abandonar os muito consideraveis recursos do poder que os cargos governamentais colocam a sua disposi^ao, tal como se torna necessario de acordo com as regras estabelecidas por mutuo consentimento? Como pode alguem ter a certeza de que eles vao obedecer as regras, considerando o poder militar e financeiro muito superior, em termos proporcionais, que podem comandar enquanto controladores dos monopolios centrais do Estado?
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O desenvolvimento e o fimcionamento relativamente regular de um regime parlamentar multipolar em Inglaterra durante o seculo XVIII, depois de um periodo de conflito civil amargo e de discordias, resolveu este problema. O estabelecimento gradual de um regime parlamentar representou um avango pacificador muito pronunciado. Exigiu o mais elevado nivel de restrigao, o qual e necessario se todos os agrupamentos envolvidos renunciarem, com firmeza, a utilizar a violencia mesmo que as regras de mutuo acordo exijam que o adversario de alguem possa ocupar um cargo piiblico e usufruir dos seus beneficios e dos seus recursos do poder. E dificil considerar como um mero acidente o facto de os passatempos relativamente mais violentos e menos regulamentados das classes proprietarias de terras se terem transformado em passatempos relativamente menos violentos e mais minuciosamente regulamentados, que deram a expressao «desporto» o seu sentido moderno, no mesmo periodo em que essas classes sociais renunciaram a violencia e aprenderam a forma de autodominio mais elevada exigida pela via de controlo parlamentar e, em especial, pela mudanga de governos. De facto, os proprios confrontos parlamentares nao eram inteiramente desprovidos das caracteristicas de um desporto; nem estas disputas parlamentares, em grande medida verbais e nao violentas, eram desprovidas de oportunidades para a tensao-excitagao agradavel. For outras palavras, existiam afinidades obvias entre o desenvolvimento e a estrutura do regime politico de Inglaterra no seculo XVIII e a desportivizagao, no mesmo periodo, dos passatempos das classes inglesas elevadas. Tal como a transformagao do parlamento, desde o final do seculo XVII e inicio do seculo XVIII em diante, estes passatempos das classes mais altas no seculo XVIII reflectiam um problema especifico que era caracteristico das mudangas globais que ocorreram, em geral, na estrutura do pais. Era um problema que se fazia sentir cada vez mais a medida que a pacificagao progredia, que a pressao para o autodominio, em particular nas classes proprietarias de terras, a mais poderosa sob o ponto de vista politico em Inglaterra, aumentava e em que o aparelho social para a prevengao de violencia nao autorizada, aparelho controlado em grande parte por membros destas mesmas classes, se tornava um pouco menos ineficaz. Sem o aumento de seguranga proporcionado nesta direcgao, sem avangos na pacificagao interna, crescimento economico e
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comercializagao crescente, dificilmente se podia ir mais longe. A pacificagao e a comercializagao entre eles contribuiu e exigiu maior regularidade na conduta pessoal, e nao so nos seus assuntos profissionais. Esta tendencia no sentido de uma maior regularidade na conduta da vida nao era somente sustentada por formas de controlo externas mas, tambem, por autodominios socialmente determinados22. No seculo XVII, com a excepgao talvez da comunidade das nagoes britanicas de Cromwell, a cultura, os ideais e os padroes de comportamento dos cortesaos e dos cidadaos, apesar de alguns ramos cruzados, constituiam ainda, de modo visivel, sectores separados. Com algum exagero, pode afirmar-se que as maneiras sem moral se situavam-se de um lado e a moral sem maneiras do outro. No inicio do seculo XVIII, as duas tradigoes comegaram a aproximar-se mais entre si. A tentativa feita por Addison e Steele para reconciliar moral e maneiras era apenas uma manifestagao de uma tendencia mais alargada. Nao so os cidadaos, mas tambem as classes proprietarias de terras, a aristocracia e a pequena nobreza, foram afectados pelas pressoes que as restrigoes, quanto ao uso da for^a fisica e a influencia para uma maior regularidade na conduta da vida, impunham aos individuos num pais politicamente mais estavel e de rapido desenvolvimento comercial. Contudo, com a tendencia para maior regularidade, a vida orientava-se no sentido da monotonia. As condigoes de forte excitagao individual, em particular uma excitagao socialmente partilhada que podia conduzir a perda do autodominio, tornavam-se agora mais raras e menos toleradas sob o ponto de vista social. O problema consistia em saber como habilitar as pessoas para a experiencia de uma total excitagao agradavel^que parecia ser uma das necessidades mais elementares dos seres humanos, sem atingir riscos sociais e jndividuais parados outros e para si proprio, e apesar da formagao de uma consciencia que podia abranger muitas fornias de excISfacT que, em fases anteriores, fbram nao so fontes de elevado prazer e gratificagao mas, tambem, de perturbagoes, feridas e sofri-
22
Para comentarios sobre o tipo especifico do controlo social que se orienta para o desenvolvimento do autocontrolo, ver p. 229 e seguintes da obra de Elias, State Formation and Civilization.
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mentQ_humano. Numa sociedade cada vez mais regulamentada, como se podiam garantir aos seres humanos os meios suficientes de excitagao agradavel em experiencias compartilhadas sem o risco de desordens socialmente intoleraveis e de ferimentos mutuos? Em Inglaterra, uma das solugoes para este problema foi, como vimos, a emergencia de passatempos sob a forma que se tornou conhecida como «desporto». A forma inglesa de caga a raposa foi apenas um exemplo, entre outros, desta transformagao, mas demonstra de maneira extremamente viva um estadio previo na solugao deste problema. A mudanga de enfase, do desejo de veneer um confronto para a aspiragao a vivencia da agradavel excitagao prolongada do confronto, era a este respeito bastante significativa. Num estadio posterior encontrou a sua expressao no bem conhecido ethos dos desportos, de acordo com o qual nao era a vitoria, mas o proprio jogo, que interessava. Os ca^adores de raposas ainda hoje podem ferir e matar, mesmo que seja apenas por procuragao e so animais. Outras formas de desporto, como o criquete ou o futebol, most ram como o problema foi resolvido nos casos em que os participantes eram seres humanos.
CAPITULO V 0 futebol popular na Gra-Bretanha medieval e nos inicios dos tempos modernos Norbert Elias e Eric Dunning
Aproximadamente desde o seculo XIV em diante podem encontrar-se, nas fontes inglesas, referencias bastante seguras a um jogo de bola chamado futebol, mas a semelhanga do nome nao autoriza, de modo algum, a identificagao do proprio jogo1. Tudo o que sabemos sobre a maneira como era jogado sugere um tipo de jogo muito diferente. Nas fontes inglesas medievais, a maioria das alusoes ao futebol provem quer das proibi^oes oficiais do jogo, nos edictos reais e das autoridades civicas quer de relatos de acgoes na corte contra pessoas que infringiram a lei pelo facto de o praticarem apesar das proibi^oes. Quanto ao tipo de jogo efectuado nesse tempo, sob o nome de futebol, nada pode ser mais revelador do que as constantes e, em geral, bastante infrutiferas tentativas do Estado e das autoridades locais para o suprimirem. Deve ter sido um jogo violento, de acordo com o temperamento das pessoas desse periodo. A incapacidade 4ps responsaveis para a conservagao da paz da nagao e mais elucidativa, por revelar as oposigoes do Estado e das autoridades locais vis-a-vis cidadaos comuns e, acima de tudo, por mostrar o grau de eficacia do mecanismo social de aplicagao das leis no Estado medieval em comparagao com o de um Estado moderno.
historiadores do futebol consideram as primeiras referencias ao jogo como sendo todas igualmente seguras. Pensamos que esta confianga nao e inteiramente justificada e Norbert Elias fornece algumas das razoes para este cepticismo, no Cap. IV deste volume. O presente capitulo foi publicado de inicio na obra editada por Eric Dunning, The Sociology of a Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971.
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Uma das primeiras proibigoes do jogo ocorreu em Londres numa proclamagao de 1314, publicada em nome do rei Eduardo II pelo lord mayor. Esta redigida da seguinte forma: Manifesto para a Preservagao da Paz... Atendendo a que o nosso Senhor o Rei se dirige as regioes da Escocia, na sua guerra contra os inimigos e nos ordenou em especial que mantivessemos estritamente a paz... E atendendo a que existe grande tumulto na cidade por motivo de certas desordens que ocorrem em grandes jogos de futebol realizados nos espagos do dominio publico, dos quais muitos males podem eventualmente surgir — Deus nos defenda — ordenamos e proibimos, em nome do Rei, sob pena de prisao, que tal jogo daqui em diante seja praticado dentro da cidade2.
Uma ordem do rei Eduardo III, de 1365, enviada aos funcionarios principais da cidade de Londres, ilustra tambem quanto as autoridades desaprovam vigorosamente estes passatempos indisciplinados. A seus olhos eram, como e evidente, um desperdicio de tempo e uma ameaga a paz, e propunham-se assim canalizar as energias do povo para aquilo que consideravam as ocupagoes mais uteis. Pretendiam que as pessoas se exercitassem no uso de armas militares em vez de se divertirem nestes jogos insubordinados. Mas, ja nesse tempo, as pessoas preferiam claramente os seus jogos aos exercicios militares: Aos funcionarios principais de Londres. Ordem para que qualquer homem fisicamente capaz da dita cidade, nos dias de festa quando tern lazer, seja obrigado a usar nos seus desportos arcos e flechas ou graos de chumbo miudo e dardos... proibindo-os sob pena de prisao de se envoiverem no langamento de pedras, nos loggats e quoits*, no 2
H. T. Riley (ed.), Munimenta Gildhallae Londoniensis, Rolls Ser., n.° 12, Londres, 1859-62, Vol. Ill, Apendice II, excertos do Liber Memorandum, pp. 439-41, texto latino e anglo-frances, com tradugao inglesa do anglo-frances. *Loggats e quoits: jogos muito antigos, conhecidos em Inglaterra desde a Idade Media. Consistiam no langamento de pedras, pedac.os esfericos de madeira, ferraduras ou aros com os quais se procurava atingir ou chegar o mais proximo possfvel de um pino fixo ao solo. Existem inumeras variantes conhecidas sob outros nomes, de acordo com os diferentes objectos utilizados, a disposigao e o numero de pinos a atingir, a qualidade e o peso dos utensflios de jogo e, tambem, o local onde se jogava. (N. da T.)
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andebol, no futebol... ou noutro jogo futil sem valor; tal como as pessoas no reino, nobres e simples, tinham por costume praticar antigamente a dita arte nos seus desportos quando, com a ajuda de Deus, elevaram a honra do reino e favoreceram o Rei nas suas acgoes de guerra; e agora esta arte esta quase por completo fora de uso e as pessoas empenham-se nos sobreditos jogos e noutros jogos desonestos, gastadores ou inuteis, pelo que o reino corre o risco de fkar sem archeiros3.» Por muito selvagens e turbulentos que fossem os seus jogos de bola, as pessoas gostavam deles. Os seus conflitos com as autoridades, a proposito destes passatempos, continuaram durante seculos sem interrupgao. As razoes apresentadas pelas autoridades para a sua oposigao a estes divertimentos variavam. A ameaga a ordem publica e a concorrencia face a preparagao militar, com o langamento de setas e o tiro ao arco, eram as mais proeminentes. A compilagao que apresentamos em seguida pode dar uma ideia da frequencia destes edictos. A sua repetigao mostra a relativa fraqueza das autoridades neste estadio de desenvolvimento da sociedade inglesa em conseguir o reforgo, de forma duradoira, da proibigao legal do que se poderia chamar hoje, talvez, uma forma de «comportamento de desvio». Ao aplicarmos este termo as transgressoes da lei num periodo diferente, pode ver-se nitidamente que, em termos sociologicos, o conceito de «comportamento de desvio» e bastante inadequado. A referenda a tipos especiais de infracgoes da lei implica nao tanto uma falta acidental ou arbitraria dos individuos mas a incapacidade de uma sociedade organizada ou de um Estado no sentido de permitir a orientagao das necessidades individuals por uma via que seja, ao mesmo tempo, toleravel sob a perspectiva social e satisfatoria sob o ponto de vista individual. 1314 1331 1365 1388 1409 1410 1414
Eduardo II Eduardo III Eduardo III Ricardo II Henrique IV Henrique IV Henrique V
Londres Londres Londres Londres Londres Londres Londres
1471 1474 1477 1478 1481
. of Close Rolls, Ed. Ill, 1910, pp. 181-2.
Jaime II da Escocia Perth Eduardo IV Londres Eduardo IV Londres Londres Jaime III da Escocia Perth
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1424 1450 1454 1457 1467
Jaime I da Escocia Perth Halifax Halifax Jaime II da Escocia Perth Leicester
1488 1572 1581 1608 1609 1615
Leicester Londres Londres Manchester Manchester Londres
Durante secuios este jogo foi em muitas regioes do pais o passatempo favorito das pessoas, uma forma de se divertirem com uma bola de futebol, quer se verificassem ou nao ossos partidos e narizes ensanguentados, embora para as autoridades isso fosse considerado um comportamento anti-social. Como se pode ver, o instrumento do Estado para reforgo de tais edictos era tao rudimentar como a sua capacidade de encontrar uma alternativa de lazer, igualmente satisfatoria, para os cidadaos. Algumas pessoas eram multadas ou enviadas para a prisao por participarem nestes jogos desenfreados. Talvez o costume tivesse desaparecido aqui ou acola durante um certo tempo. Se assim era, continuava noutros lugares. O proprio jogo excitante nao morrera. Existem ainda registos de muitos casos de tribunal contra transgressores. Dois exemplos destes registos, para os anos de 1576 e 1581, talvez sejam suficientes para mostrar o que acontecia com frequencia quando as pessoas destes tempos jogavam com uma bola de futebol, ainda que estas informagoes nao revelem, infelizmente, com minucia o tipo de jogo que realizavam: Que no referido dia, em Ruyslippe, Co., Midd., Arthur Reynolds, lavrador (com outros cinco), todos de Ruyslippe afds., Thomas Darcye, de Woxbridge, pequeno proprietario rural (com outros sete, quatro dos quais eram lavradores, um alfaiate, um fabricante de arreios, um pequeno proprietario rural), todos estes de Woxbridge afsd.^ reuniram-se ilegalmente com malfeitores desconhecidos, em numero de uma centena, e jogaram um certo jogo ilicito chamado futebol, por motivo do qual houve um grande tumulto, capaz de resultar em homicidios e series acidentes. A inquirigao do magistrado provincial — post mortem ocorrida em Southemyms, Co., Midd. perante o corpo de Roger Ludford, pequeno proprietario rural que ali jazia morto — apurou com o veredicto dos jurados que Nicholas Martyn e Richard Turvey, estes ultimos
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de Southemyms, pequenos proprietaries rurais, estavam entre as tres e as quatro horas a jogar futebol com outras pessoas num campo chamado Evanses, em Southemyms, quando o dito Roger Ludford e um certo Simon Maltus, da mesma paroquia, pequeno proprietario rural, chegaram ao local e Roger Ludford gritou, atirou-o por cima da vedagao, indicando que se dirigia a «Nicholas Martyn», que respondeu: «Vem entao e vamos a isso». Devido a estas palavras, Roger Ludford correu em direcgao a bola com a intengao de Ihe dar um pontape, apos o que Nicholas Martyn, com a parte anterior do seu brago direito, deu um golpe em Roger Ludford na regiao anterior do corpo sob o peito, atingindo-o com uma pancada mortal, na sequencia da qual veio a morrer num quarto de hora, pelo que Nicholas e Richard mataram desta maneira criminosa o dito Roger4. Numerosos registos mostram o repetido brago-de-ferro que se verificava entre as pessoas que se mantinham fieis aos seus costumes violentos e as autoridades que procuravam suprimi-los ou altera-los. Assim, um documento de 10 de Janeiro de 1540, emanado dos responsaveis do municipio e da Corporagao dos Oficios de Chester, refere que era costume na cidade, na Terga-Feira de Entrudo, os fabricantes de sapatos desafiarem os negociantes com loja de fazendas para um jogo com uma «bola de couro chamado futebol». Os responsaveis do municipio e da Corporagao dos Oficios pronunciaram-se nos termos mais energicos contra estas «pessoas de inclina^oes perversas», que provocaram uma tao «grande inconveniencia» na cidade. Em seu lugar procuravam introduzir uma corrida a pe, supervisionada pelo responsavel municipal, ignoramos com que exito5. Uma ordem proibindo o futebol, promulgada em Manchester no ano de 1608, e repetida quase literalmente, um ano mais tarde, revela a mesma situagao. Ai pode tomar-se conhecimento do grande prejuizo causado por um «grupo de pessoas indignas e desordeiras usando aquele exercfcio ilicito de jogar com uma bola de futebol nas ruas». A ordem refere o elevado numero de janelas
de J. C. Jeafferson, Middlesex County Records, Londres, 1886-7, p. 97. Ver uma descrigao contemporanea publicada em D. Lysetis, Magna Britannia^ Londres, 1810; e tambem citado em T. F. T. Dyer, British Popular Customs, Londres, 1900, pp. 70-2. 5
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que quebraram, o modo como ofenderam outros habitantes e cometeram «muitas desordens»6. Talvez seja util acrescentar pelo menos um exemplo nao relacionado com o futebol, para mostrar a facilidade relativamente grande com que, de um modo geral, na Inglaterra medieval se desrespeitavam as proibi^oes e como cada indivfduo, na sua propria regiao ou cidade, se comportava de modo violento em relagao aos outros. Em 1339, tendo o Rei decidido ir ao estrangeiro, delegou ao funcionario principal, ao magistrado municipal e aos representantes do povo a responsabilidade de conservagao da paz na cidade durante a sua ausencia, e investiu-os do poder de aplicar o castigo conveniente e imediato sobre quaisquer malfeitores e perturbadores da paz na dita cidade7. Logo a seguir a partida do Rei, verificou-se uma disputa entre as corpora^oes de negociantes de peles e os vendedores de peixe, que terminou num conflito sangrento nas ruas. O funcionario principal do municipio precipitou-se com os seus oficiais para o local do tumulto e prendeu varies dos agitadores da paz, como era exigido pelo seu cargo e dever; mas Thomas Hounsard e John le Brewerer atacaram violentamente o responsavel municipal Audrew Aubrey com uma langa, e esforgaram-se por derruba-lo; entretanto, o citado John feriu um dos oficiais da cidade. Depois de lutarem, foram presos e transportados sem demora para a Guildhall*, onde foram indiciados e julgados perante o responsavel municipal e os magistrados, e, tendo confessado serem culpados, foram condenados a morte e imediatamente transportados para West Cheapside, onde foram degolados. A autoridade do responsavel municipal foi tao bem cumprida, tendo em vista a preservagao da paz dentro da cidade e a prevengao de tumultos e de ultrajes tao frequentes nestes dias... que deu grande satisfagao ao Rei Eduardo III, que na Torre, por decreto de 4 de Junho'15, nao so perdoou ao responsavel municipal por haver degolado os referidos culpados como tambem o aprovou e confirmou8. 6 J. F. Earwaker (ed.), The Court Leet Records of the Manor Manchester, Londres, 1887, p. 248. 7 «Nesse tempo o governador era Aubrey da Pepperer's Company, um homem muito rico.» The Chronicles of London, Collectanea Adamantea X, Edinburgh, 1885, desde 44, Henrique III ate 17, Eduardo III, p. 27. 8 7£/V/.,p. 27. *Local de reuniao das corporagoes medievais. (N. da T.)
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As cronicas de Inglaterra, como as de outras sociedades medievais, descrevem muitas cenas como esta. Sem a referenda as frequentes erupgoes de violencia nao institucionalizada na Idade Media nao se podem compreender as suas formas mais institucionalizadas, de que o futebol era uma delas9. Os confrontos semi-institucionalizados entre grupos locais, organizados em certos dias do ano, em particular nos dias santos ou feriados, constituiam um trago vulgar do padrao de vida tradicional nas sociedades medievais. Jogar com uma bola de futebol era uma das maneiras de concretizar uma destas lutas. De facto, constituia um dos rituais do ano, comuns nestas sociedades tradicionais. Recordar este costume ajuda-nos a compreender melhor os seus modos de vida. Nesta epoca, o futebol e outros encontros semelhantes nao eram apenas rixas acidentais. Eles constituiam um tipo de actividades de lazer equilibrador, profundamente entrelagado na urdidura e trama da sociedade. Pode parecer-nos incongruente que ano apos ano, nos dias santos e feriados, as pessoas se empenhassem nesta especie de lutas. Num estadio diferente do processo de civilizagao, os nossos antepassados viveram-na, evidentemente, como um acontecimento obvio e agradavel. Hoje, as pessoas que se preocupam com os aspectos desagradaveis da vida nas grandes cidades e com as desvantagens de viver numa sociedade de massas voltam-se, em certas ocasioes, para o passado com nostalgia, para os tempos em que a maioria das pessoas vivia em pequenas comunidades que se assemelhavam pela sua natureza e estrutura social aquilo a que chamariamos grandes vilas ou pequenas cidades-mercado. Existiam, e claro, excepgoes, das quais Londres e talvez o exemplo mais marcante. Mesmo na literatura sociologica persiste uma ideia sobre o modo de vida nestas sociedades «tradicionais» ou «populares», de acordo com a qual elas seriam permeadas de sentimentos de grande «solidariedade». Isto pode ser interpretado facilmente e, de facto, e considerado com muita frequencia como significando que as tensoes e os conflitos no seu interior seriam menos agudos e que a harmonia era superior a 9
Ha todas as razoes para acreditar que na Inglaterra medieval existiam, lado a lado, formas de futebol relativamente nao institucionalizadas e formas ritualizadas. Neste contexto, aquilo que e importante e o nivel de violencia comparativamente elevado das ultimas.
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das nossas proprias sociedades10. A dificuldade quanto ao uso de tais categorias nao consiste no facto de serem falsas, mas, antes, na circunstancia de todos esses termos gerais, como «solidariedade», aplicados a um tipo diferente de sociedade, poderem induzir o leitor em erro. Tipos de costumes e de condutas que parecem ser incompativeis nas sociedades industrials contemporaneas sao, possivelmente, incongruentes tambem aos olhos das pessoas habituadas a um tipo de vida diferente. De facto, a nossa lingua, quando aplicada a outras sociedades, reflecte as nossas proprias distingoes, nao podendo adaptar-se, por isso, a sociedades num estadio de desenvolvimento diferente. Desta forma, o termo «solidariedade» evoca para nos a impressao de unidade permanente, de amizade e a ausencia de conflitos. De acordo com a afirma^ao de um escritor11 desta materia, «como comunicam intimamente entre si, cada um dos membros [de uma sociedade tradicional] invoca a simpatia de todos os outros». Na verdade, em sociedades tradicionais podem notar-se, com frequencia, expressoes de «simpatia amiga» forte e espontanea. Mas manifesta^oes semelhantes aquilo que podemos conceptualizar como «forte solidariedade» eram perfeitamente compativeis com inimizades e odios igualmente fortes e espontaneos. O que era realmente caracteristico, pelo menos nas sociedades tradicionais camponesas da nossa Idade Media, era a flutuagao muito maior de sentimentos de que as pessoas eram capazes e, relativamente a isso, a mais elevada instabilidade das relagoes humanas em geral. No que respeita a menor estabilidade das restrigoes internas, a forga das paixoes, o calor e a espontaneidade dos actos emocionais distinguiam-se por duas vias: na bondade e prontidao para ajudar, assim como na rudeza, insensibilidade e prontidao para ferir. E por este motivo que termos como «solidariedade», «intimidade», «simpatia» e outros, utilizados para descrever atributos das sociedades tradicionais pre-industriais, sao bastante inadequados. Revelam apenas uma faceta do problema. Mesmo muitas das tradigoes estabelecidas eram de «dupla10
Ver, por exemplo, Robert Redfield que escreveu. «Assim, podemos caracterizar a sociedade popular como pequena, isolada, analfabeta e homogenea, com um forte sentido de solidariedade de grupo»; «The Folk Society», American Journal of Sociology, n.° 52, 1947, pp. 292-308.
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-face», no nosso sentido do termo. Admitiam-se como modo de expressao da intima unidade e solidariedade e para exprimir hostilidade, igualmente mtima e intensa, sem que os seus agentes denunciassem, nessa flutuagao, algo de contraditorio ou de incompativel. O futebol de Ter^a-Feira Gorda, uma contenda ritualizada e, de acordo com as nossas no^oes, uma luta muito violenta entre grupos vizinhos, e um exemplo notavel desta compatibilidade entre actividades saturadas de emogao, que, segundo os padroes actuals, parecem ser incompativeis. Como vimos, as autoridades seculares procuravam desde sempre, sem muito exito, suprimir estes confront os de jogos tumultuosos. Mas nao se pode compreender total-, mente a grande capacidade de sobrevivenciaT destes costumes, se etesTofem conslderados meros jogos, no nosso sentido da palavra. O fufe&ol medieval constituia uma parte do ritual tradicional. Pertencia ao cerimonial da Terga-Feira Gorda, o que, em certa medida, era' um cerimonial da Igreja associado ao ciclo global dos dias santos e feriados. A proposito disto anote-se, tambem, que a diferenciagao considerada quase como evidente na sociedade medieval nao atingiu o mesmo estadio que se verificou nas sociedades contemporaneas. For vezes, pode ler-se que tudo quanto as pessoas do periodo medieval faziam «estava saturado de religiao». Ha quern va mais longe ao afirmar que se pode exprimir «a essencia de uma sociedade tradicional aplicando-lhe o termo de sociedade sagrada»12. Este genero de declaragao pode, facilmente, dar a impressao de que tudo aquilo que se fazia nestas sociedades possuia o caracter de seriedade das solenidades altamente regulamentadas que, hoje em dia, prevalecem nos servigos da Igreja. A verdade e que ate mesmo os servigos religiosos na Idade Media eram, com frequencia, menos disciplinados e muito menos separados da vida quotidiana das pessoas do que hoje se verifica. For outro lado, a vida quotidiana estava impregnada em maior grau, para o melhor e para o pior, de crengas sobre a proximidade de Deus, do Diabo e dos seus diversos acolitos — santos, demonios, espiritos de toda a especie, bons ou maus —, que esperavam influenciar atraves de varias formas de oragao, bem como por magia branca ou negra. Neste campo, tambem a aplicagao de termos abstractos, como o «religiose» ou «secular», que nos surgem como alternativas exclusivas, bloqueia o I2
lbid.
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entendimento de um genero de vida que nao se ajust a ao nosso padrao de diferenciagao institucional e conceptual de actividades religiosas e seculares. Se e necessario expressar o menor grau de diferenciagao segundo os nossos termos, apenas pode dizer-se que, nas sociedades tradicionais da Idade Media, as actividades seculares eram mais religiosas e as actividades religiosas mais seculares do que as das sociedades contemporaneas. O mesmo se aplica ao jogo popular medieval de futebol. Ele reflecte tanto um potencial superior de solidariedade como de conflito e luta. As fricgoes entre comunidades vizinhas, corporagoes locais, grupos de homens e de mulheres, jovens casados e homens solteiros mais jovens eram, com frequencia, endemicas. Se os temperamentos se exaltavam podiam conduzir sem duvida, em qualquer momento, a explosoes de luta aberta. Mas, em contraste com as nossas, na sociedade medieval existiam ocasioes tradicionais em que algumas destas tensoes entre grupos de uma comunidade ou de comunidades vizinhas podiam encontrar expressao sob a forma de luta que era sancionada pela tradigao e, provavelmente, tambem durante um periodo consideravel, pela Igreja e autoridades locais. Os registos mais antigos mostram que, muitas vezes, as lutas entre representantes dos grupos locais, com ou sem futebol, constituiam parte de um ritual anual. Verifica-se que os jovens membros desses grupo eram desafiados com frequencia para uma luta e, a menos que a tensao explodisse antecipadamente, esperavam com ansiedade pela chegada de Terga-Feira Gorda ou por qualquer outro dia do ano que se identificasse com semelhante encontro colectivo. Durante este periodo, o jogo de futebol proporcionava um desses escapes para as constantes tensoes entre grupos locais. O facto de esse jogo constituir um elemento do ritual tradicional nao impedia que qualquer dos grupos submetesse as tradigoes aos seus proprios interesses, nos casos em que os sentimentos de oposigao ao outro se exacerbavam demasiado. No ano de 1579, por exemplo, um grupo de estudantes de Cambridge foi, como era costume, para a vila de Chesterton jogar ao «futebol». Foram para la, assim nos transmitiram, pacificamente e sem quaisquer armas, mas, secretamente, os habitantes da cidade tinham escondido uma quantidade de bastoes no portico da sua igreja. Depois de o jogo tec come^ado, provocaram desavengas com os estudantes, exibiram os seus bastoes, quebraram-nos sobre as cabegas dos jovens, infligindo-lhes tamanha derrota que estes
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tiveram de fugir pelo rio, a fim de escaparem. Alguns pediram ao chefe da Policia de Chesterton mantivesse a «paz da Rainha», mas ele estava entre os que jogavam contra os outros e, de facto, acusou os estudantes de terem sido os primeiros a quebrar a paz13. Este e um bom exemplo da forma como o futebol era usado como oportunidade de saldar velhas querelas. Se falamos de tradigoes, de regras e de rituals, e porque estas palavras podem evocar mais facilmente o quadro de mecanismos de regulagao que actua de forma bastante rigida e impessoal, porque no nosso proprio tempo e esta a conotagao destas palavras. Mas, se utilizarmos as mesmas palavras em referenda as sociedades medievais, nao devemos perder de vista o tipo dos mecanismos de regulagao a que correspondem — incluindo aquilo a que chamamos tradigoes; ainda que entao as pessoas estivessem mais firmemente dependentes delas do que nos actualmente, elas achavam-se, ao mesmo tempo, bem mais subordinadas, no seu desenvolvimento real, as alteragoes dos sentimentos individuals e das paixoes do momento. For um lado, isto explica a extraordinaria tenacidade com que as pessoas da Inglaterra medieval efectuavam os seus jogos de Terga-Feira Gorda, ano apos ano, de modo tradicional, apesar de todas as proclamagoes dos reis e condenagoes das autoridades locals; por outro, revela como podiam subverter as convengoes tradicionais quando os seus sentimentos se exaltavam e pregar uma ou outra partida aos seus adversarios, como o fizeram em Chesterton. Uma notfcia de Corfe Castle, Dorsetshire, datada de 1553, mostra com maior detalhe alguns aspectos do tipo de ritual popular que estava integrado num jogo de futebol. Anualmente, a Corporagao de Homens Livres Marmoristas ou Trabalhadores das Pedreiras jogava futebol, como parte de um complexo integrado de varias cerimonias, nos tres dias de Entrudo. A corporagao de oficiais era eleita e os aprendizes eram entao iniciados. Cada membro que tivesse casado no ano anterior pagava um «xelim de casamento», o que, no caso da morte do marido, concedia a viiiva o direito de ter aprendizes a trabalhar para ela. Contudo, o homem que se tivesse casado em ultimo lugar era perdoado do pagamento do xelim. Em vez disso, tinha de fornecer uma bola de futebol. Entao, no dia seguinte, Quarta-Feira de Cinzas, a bola de futebol era levada ao 13
C. H. Cooper, Annals of Cambridge, 1843, p. 71.
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senhor do feudo, sendo-lhe oferecida uma libra* de pimenta, como forma de pagamento habitual, relativamente a um direito de passagem que a Corporate reclamava. Quando a oferta de pimenta se concluia, realizava-se um jogo de futebol no terreno pelo qual a Corporagao exigia esse direito14. Um exemplo como este, e existem varios, mostra claramente que as pessoas deste periodo nao viam nada de absurdo no facto de um jogo tradicional selvagem e tumultuoso constituir parte de um ritual solene. Com frequencia, solenidades oficiais e celebragoes ruidosas assumiam tonalidades diversas, como se isso fosse uma coisa natural. Uma variedade peculiar dos costumes tradicionais, incluindo os jogos, estava intimamente associada ao caracter menos impessoal de todas as actividades e com os mais elevados nfveis de manifesta emotividade. As pessoas estavam profundamente ligadas aos seus modos de vida tradicionais. Uma das razoes para isso ser assim devia-se ao facto de a maioria das situagoes de tensao e de confiito, que hoje se encontra regulada formalmente por um codigo unificado de leis, discutido e executado em tribunais relativamente impessoais, se encontrar, entao, sujeita a frequentes decisoes particulares, no contexto do grupo local. Mas as tradigoes nao escritas, embora possuissem, em certa medida, fun^oes de regulagao semelhantes as leis escritas do nosso tempo, nao eram de modo nenhum tao completamente imutaveis como parecem hoje, a distancia. Podiam mudar, de forma imperceptivel, se as relagoes de grupo com o qual elas estavam envolvidas se alterasse, ou, talvez, de forma mais radical, sob o impacte de guerras, conflitos civis, epidemias ou outros factos que, com frequencia, perturbavam profundamente a vida das comunidades medievais. Nesse caso, as pessoas teriam desenvolvido novos costumes, e depressa os consideravam como as suas tradigoes, quer fossem identicos ou nao aqueles que conheciam antes das agitagoes. A maior parte destas tradigoes populares medievais era transmitida de viva voz, de geragao em geragao. Eram tradigoes orais. A maioria das pessoas que com elas se relacionava era iletrada. Nao era costume fixar de maneira formal, por escrito, qualquer das regras de jogos como o futebol. Os fllhos 14
O. W. Farrer, The Marblers ofPurbeck, documentos lidos perante a Purbeck Society, 1859-60, pp. 192-7. *Uma libra corresponde a 0,454 quilogramas. (N. da T.)
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jogavam como os pais haviam jogado, ou, no caso de duvidas, como eles pensavam que os seus pais jogavam. Como nao existiam nem regras escritas, nem quaisquer organizagoes centrais para unificar as maneiras de jogar, nos documentos medievais as referencias ao futebol nao implicavam, como sucederia em documentos do nosso tempo, que o jogo se efectuasse em comunidades diferentes da mesma maneira. O modo como as pessoas jogavam dependia, realmente, dos costumes locais, nao de regras nacionais comuns. A organizagao do jogo era muito mais imprecisa do que e hoje. A espontaneidade emocional do confronto era muito superior; as tradigoes de combates fisicos e algurnas restrigoes — impostas pelo costume, mais do que por regulamentos formais muito elaborados que exigem urn elevado nivel de treino e de autocontrolo — determinavam a maneira de jogar e proporcionavam uma certa semelhanga a todos estes jogos. As diferengas entre jogos que eram designados de modo diferente nao eram, necessariamente, tao vincadas como sucede nos diferentes jogos-desporto de hoje. Nao e improvavel que a razao pela qual os documentos medievais se referem a alguns destes jogos locais como «futebol», enquanto outros sao conhecidos por nomes diferentes, fosse, prioritariamente, resultante do facto de serem jogados com utensilios diferentes. Com efeito, em geral, as referencias ao «futebol» parecern fazer-se de modo literal, a um tipo particular de bola e a um tipo de jogo, na medida em que um tipo de bola ou de utensilios de jogo diferentes pode determinar, em geral, uma maneira de jogar diversa. Alguns documentos medievais referem-se, de facto, ao jogar «com uma bola de futebol» e nao ao «jogar futebol»15. E, tanto quanto se pode ver, a bola que foi chamada «futebol» tinha algo em comum com a que e utilizada nos jogos de futebol de hoje: era uma bexiga cheia de ar revestida, por vezes, mas nem sempre, de couro. As comunidades camponesas de todo o mundo usavam essas bolas como um meio para o seu divertimento. Existem, certamente, registos do seu uso em muitas regioes da Europa medieval. Se ela possuisse as dimensoes certas e elasticidade, e nao fosse demasiado grande, uma tal bexiga de animal repleta de ar, revestida de couro ou nao, adaptava-se melhor, pro13
Por exemplo, os decretos de Manchester promulgados em 1608 e 1609. Ver p. 261 acima.
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vavelmente, ao impacte dos pes do que uma pequena bola solida. Nao existe razao para admitir que a bola de «futebol» medieval fosse impulsionada apenas atraves das maos. Mais uma vez, a principal razao para estas diferengas nos nomes destes jogos pode dizer respeito, muito simplesmente, ao facto de serem jogados com bolas diferentes, quer em dimensoes quer em formas, ou de as bolas serem jogadas com bastoes ou outros instrumentos de tipo semelhante. Mas, tanto quanto se sabe, as caracteristicas elementares, o caracter do jogo traduzido num confronto entre grupos diferentes, o prazer da luta manifesto e espontaneo, a desordem e o nivel relativamente elevado de violencia ffsica socialmente tolerada eram sempre os mesmos. E assim era tambem a tendencia para quebrar regras do costume que existissem, no caso de as paixoes impelirem os jogadores nesse sentido. Deste modo, dado que a semelhan^a de todos estes jogos em certos aspectos era muito grande, pode ter-se uma ideia viva quanto a maneira como as pessoas jogavam futebol, da qual nao temos realmente registos minuciosos, a partir de alguns documentos mais extensos deste periodo que chegaram ate nos, mesmo que os jogos nao fossem de factos jogados com uma bola ao pe, mas com outros aprestos. Um destes registos mais extensos, a descrigao de um jogo da Cornualha que se denomina hurling*, merece a pena ser lido. Este texto mostra, com grande vivacidade, como era menos rigoroso, mais pessoal e informal, o tratamento dos costumes tradicionais e das regras nas sociedades medievais do que o que se veriflca quanto as regras e mesmo costumes e tradigoes do nosso proprio tempo. A descrigao fala por si. Nenhum comentario pode rivalizar com a imagem do jogo e atmosfera que transmite. Hurling Hurling toma a sua designagao do acto de langar a bola com forga e e de dois tipos: to goales**, nas regioes a este de Cornwall***, e to the countrey****, no oeste. *Lanc,amento. A acc.ao do verbo to hurl: atirar, langar, em especial, com violencia. (N. da T.) * * « Para as metas». (N. da T.) ***Cornualha, condado situado no sudoeste da Inglaterra. (N. da T.) ****«Para o pafs» ou «para a regiao». (N. daT.)
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Hurling to goales
No hurling to goales ha aproximadamente quinze, vinte ou trinta jogadores de cada lado, envergando apenas as suas pegas de vestuario mais leves, de maos unidas e colocando-se em filas, frente a frente. A seguir dispoem-se aos pares, de brago dado, e assim permanecem: estes pares vigiam-se uns aos outros durante o jogo. Depois disto, cravam no chao dois arbustos, afastados entre si cerca de oito ou dez pes; e, no lado oposto, a distancia de dez ou doze pes, outros dois (arbustos) separados da mesma forma, os quais designam por as suas metas*. Uma destas e determinada a sorte por um lado, ficando a outra para o partido adverse. Para a sua defesa e nomeado um par dos seus melhores defesas de langamentos; o espago do meio, entre as duas metas, e o lugar para onde se langa a bola, e quern quer que seja que a consiga agarrar e transportar atraves da meta do seu adversario alcanna vitoria no jogo. Mas ai reside um dos trabalhos de Hercules: porque o que agarra a bola tem a sua espera os seus adversarios, que sucessivamente, se langam sobre ele. Os outros empurram-no, batendo-lhe no peito com os punhos fechados, para o manter afastado; e conservam-no bem preso, sem o mais pequeno vestigio de humanidade, gesto que e denominado por butting* *. Se ele escapa ao primeiro, outro o agarra e logo um terceiro, nunca mais sendo deixado, ate ter encontrado (como dizem os franceses) chaussera son pied***, nem sem tocar o chao com uma das partes do seu corpo, em luta ou aos gritos, preso****, o que e a palavra de rendi^ao. Entao tem de langar a bola (chamada troca*****) para algum dos seus camaradas, que a agarra da mesma maneira e se afasta, tal como anteriormente; e se a sua sorte ou agilidade for tao boa para evitar ou ultrapassar os seus adversarios, que o esperam, encontra um ou dois homens libertos na meta, prontos a recebe-lo e a mante-lo afastado. Por este motivo, e um jogo de grande desvantagem, ou extraordinariamente acidentado, que derruba muitas metas; nao obstante, este aspecto atribui grande reputagao aquele que impoe muitas quedas no langamento, prende a bola por muito tempo e contem o adversario que mais se aproxima *Goales. (N. da T.)
**Butting: acto ou acgao de bater ou empurrar. (N. da T.) ***Em frances no original. (N. da T.) ****Hold. (N. da T.)
*****DeaIing. (N. da T.)
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FUTEBOL POPULAR da sua meta. For vezes, uma pessoa escolhida de cada lado da a bola. Os langadores estao sujeitos ao cumprimento de muitas leis, como a de terem de langar de homem para homem, e nao dois sobre um homem de cada vez; que o langador em oposigao a bola nao deve bater*, nem langar-se abaixo da cintura; que aquele que possui a bola deve hater apenas no peito dos outros; que nao deve passar a bola para um jogador fora de jogo, isto e, nao pode langa-la para nenhum dos seus camaradas que permanegam proximo da meta, mas so ele mesmo a pode levar. Finalmente, na troca da bola, se qualquer um do grupo a conseguir apanhar em voo, ou se o outro for mais rapido, ganha, contudo, para o seu lado, da mesma forma que, de imediato, de defensor passa a ser atacante, como o outro, que deixa de ser atacante para ser defensor. A minima falha a estas leis, os lane,adores consideram isso como uma causa justa para irem presos pelas orelhas, mas vao presos apenas pelos seus punhos; nem nenhum deles procurava vingar-se por tais males ou ferimentos, mas jogavam outra vez da mesma maneira. Estes jogos de hurling sao usados, na maioria das vezes, em casamentos, onde, de um modo geral, os convidados efectuam um desaflo entre toda a gente. Hurling to the countrie
O hurling to the countrie € mais difuso e confuso, limitado assim a algumas destas ordens: dois ou tres cavalheiros marcam habitualmente este encontro, determinando que num tal dia feriado hao-de trazer para um tal lugar indiferente duas, tres ou mais paroquias da parte este ou sul, para langar contra outras tantas, do oeste ou do norte. Os seus objectives sao, quer as casas desses cavalheiros, ou algumas cidades ou aldeias, tres ou quatro milhas distantes, que cada lado escolhe a partir da proxirnidade das suas habitac.oes. Quando se encon tram, nao existe nem comparagao de numeros, nem correspondencia de homens: mas uma bola de prata e langada e o grupo que consegue apanha-la e transporta-la pela forga, ou ardil, para o local estabelecido ganha a bola e a vitoria. Quern quer que tenha acesso a esta bola e geralmente perseguido pelo partido adverso; nem eles o hao-de deixar ate (sem qualquer duvida) ele ficar estendido ao comprido sobre a querida terra de Deus: logo que essa queda acontece, impede-o de reter a bola por mais tempo: contudo, ele langaa (com o correspondente risco de intercepgao, como no outro hurling) *But. (N. da T.)
L:
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para um dos seus companheiros, o que estiver mais afastado, que continua da mesma maneira. Logo que ve onde a bola e jogada, da sinal disso aos seus companheiros, gritando: atengao este, atengao oeste, etc., enquanto a mesma e levada. Os lan^adores tomam o seu caminho seguindo por cima de ladeiras, vales, cercas, fossos; sim, e atraves de moitas, roseiras bravas, charcos, poc.os e seja que rios forem; assim, como por vezes vera, vinte ou trinta estao a lutar todos juntos na agua, fazendo grande barafunda e esgaravatando-se pela bola. Um jogo (na verdade) ao mesmo tempo duro e violento e, apesar disso, nao destitufdo de diplomacias, assemelhando-se, de algum modo, as proezas da guerra: porque tera companheiros colocados a sua frente, de cada lado, para ir ao encontro dos que vem com a bola, e do outro partido para os auxiliar, a maneira de protecgao. Mais uma vez, outros grupos se mantem em guarda sobre os lados, como alas, para ajudar ou impedir a sua fuga: e no local onde estiver parece o ponto de confluencia de duas batalhas principais: os que sao mais lentos e vem atrasados fornecem o sinal de uma nova recompensa; sim, ha cavaleiros colocados tambem, em cada partido (como se fosse uma emboscada), e prontos para cavalgar para longe com a bola, se eles conseguirem agarra-la com vantagem. Mas eles nao devem roubar assim o triunfo: porque por mais que qualquer um galope apressadamente, apesar disso, sera por certo encontrado em alguma esquina de vedagao, atraves de veredas, pontes ou aguas profundas, pois (ao guinar para a regiao) sabem que deve ter necessidade de ai chegar; e se a sua boa sorte nao o proteger melhor, tern de pagar o prego do seu roubo, sera derrubado por terra ele proprio e os seus cavalos. Umas vezes, toda a companhia corre com a bola sete ou oito milhas para la do caminho certo que deviam manter. Outras vezes, um homem a pe, tomando, por meio de uma acgao furtiva, o melhor caminho para escapar sem ser vigiado, transportara a bola bastante atrasado e, assim, chega a meta por meio de um desvio; logo que e conhecido o vencedor, todo esse lado mais afastado de grupos de gente se reune com grande alegria e, se esse lado for a casa de um cavalheiro, dao-lhe a bola por trofeu, e a beber da sua cerveja ate cair. Neste jogo, a bola pode ser comparada a um espirito infernal: quern quer que seja que a agarre passa de imediato como um louco, esforgando-se e lutando com aqueles que vao atras para a agarrar; e logo que a bola o deixa, ele renuncia a esta furia para o receptor, e ele proprio volta a ser tao pacifico como antes. Nao posso decidir se deveria recomendar estes jogos pela sua virilidade e exercicio, ou condena-los pela turbulencia e danos que provocam: porque, por um
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FUTEBOL POPULAR lado, torna os seus corpos fortes, rijos e ageis, e insere coragem no interior dos seus coragoes para enfrentar um inimigo; por outro lado, tambem, e acompanhado por muitos perigos, alguns dos quais sempre pertencem ao papel do jogador. Para demonstrar o que o hurling e de facto, voce deve ve-los a regressarem a casa, como se se retirassem de urn campo de batalha, corn as cabegas ensanguentadas, ossos partidos e deslocados, e essas feridas servem para abreviar os seus dias; apesar disso tudo, e um bom jogo e nunca procurador nem Coroa se incomodaram por este motivo16.
Esta descrigao constitui um grande contribute para a formagao de uma ideia razoavelmente nitida das caracteristicas — da «estrutura» diferente — dos jogos do passado, nos finais da Idade Media e inicios do estadio moderno no desenvolvimento da sociedade inglesa. Tambem contribui para vincar as diferengas na estrutura mais alargada da sociedade inglesa nesse estadio do seu desenvolvimento. Em certos aspectos, iim jogo tradicional como o que foi descrito deve ser influenciado por uma qualquer caracteristica importante da sociedade britanica, embora nao seja possivel conhecer, de forma exacta, de que maneira. So os estudos comparativos de outras sociedades e da estrutura dos seus jogos poderia tranquilizar-nos quanto a esta questao. O jogo popular, tal como se verifica, reflecte uma relagao muito especifica entre proprietaries de terras e camponeses. Como se pode ver, eram os proprios donos das terras que tomavam a seu cargo a organizagao e o patrocinio dos jogos populares deste genero. O jogo, tal como o vemos aqui, surgindo-nos na forma brutal e desordenada, nao e um jogo realizado simplesmente entre aldeoes e habitantes da cidade, porventura sem qualquer referenda as pessoas que dispunham da autoridade de analisar o que, de acordo com os padroes do tempo, poderia ser considerado violencia excessiva. Como se sabe, e caracteristico do padrao de desenvolvimento social das Ilhas Britanicas que, por um lado, uma populagao rural constituida por camponeses, vivendo sob diversos niveis de sujeigao, se transforma numa populagao rural de camponeses mais ou menos livres e, por outro, que, a par de uma classe de proprietaries rurais nobres, ai tenha emergido uma classe de proprietaries de terras que nao possufsse titulo, uma classe que 16
Richard Carew, A Survey of Cornwall\ Londres, 1602, pp. 73-5.
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era apenas de cavalheiros. Tanto quanto se pode perceber, este e o quadro do jogo tal como o vimos aqui: um divertimento local, para uma populagao de camponeses mais ou menos livres da regiao, promovido pelos proprietaries de terras locais, que, com frequencia, embora nem sempre talvez, fossem nao nobres. Mesmo que alguns ossos se partissem no decurso do jogo, que por acidente alguem morresse em consequencia dos ferimentos recebidos no jogo, em resumo, em qualquer caso, o povo da regiao, os camponeses e a pequena nobreza em conjunto, sentia prazer nele e estava, como pode ver-se, sempre disponivel para o realizar. Ainda se pode ouvir o torn meio manhoso de Carew quando falava de batalhas de langamentos, de cabegas ensanguentadas e de ossos partidos — todavia, nunca os procuradores nem a Coroa se incomodaram por esse motivo. Tanto os camponeses como a pequena nobreza desejavam conservar e desfrutar o jogo. Contudo, a sua violencia nao era de maneira nenhuma absoluta e totalmente desregrada. De facto, como verificamos a partir desta descrigao, ja existiam «leis» do costume ou, de modo mais rigoroso, regras. Ja existia um sentido rudimentar do que se tornou conhecido como «justiga», e e bastante provavel que este quadro social peculiar, o dos camponeses relativamente livres e proprietaries rurais da classe media, tivesse alguma coisa a ver com isso. Se surgisse um confronto entre um jogador com a bola e os seus oponentes, as «leis» determinavam que so um destes, de cada vez, podia ataca-lo, nao os dois. Outra regra decretava que os jogadores nao deviam atingir-se abaixo da cintura: o tronco era o unico alvo legitimo. No entanto, nao existia uma ligagao formal, separada dos proprios jogadores, que assegurasse o respeito pelas regras. No caso de discussoes, nao existia arbitro nem juiz vindo do exterior. Em certos aspectos, esta forma de realizar um jogo revela um trago da vida social das comunidades do passado que, de outro modo, seria dificil de compreender. Como ja vimos, diz-se com frequencia que, em comparagao com as nossas, estas comunidades encontravam-se profundamente integradas, ou que possuiam um tipo especial de sentido de solidariedade. Contudo, estas comunidades camponesas tinham os seus conflitos quer a nivel interno quer com as comunidades vizinhas. Em geral, a forma de as resolver era consideravelmente mais violenta do que a que viria a utilizar-se num estadio posterior. E o futebol e outros jogos populares, como vimos, cons-
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titufam uma maneira de libertar as tensoes. Mas o facto de nao existirem regras escritas ou autoridades centrals nao significava que jogassem sern quaisquer regras. Como pode ver-se, as regras tradicionais e os regulamentos baseados no costume, que se desenvolveram ao longo dos seculos como uma especie de auto-restrigao colectiva, desempenhavam a fungao das nossas regras institucionais mais elaboradas e com frequencia pensadas de forma mais cuidadosa. Pode bem acontecer que nestas sociedades do passado as pessoas se mantivessem agarradas, de forma tenaz, as suas tradigoes e as poucas restrigoes do costume no caso de tensoes e conflitos, como sabemos alias que o fizeram, porque perde-las significaria abandonar, precisamente, uma parte essencial das suas proprias paixoes para as quais se encontravam dispomveis. Se estas restrigoes baseadas no costume fossem eliminadas, nao existia ninguem, senao eles proprios, para manter os transgressores sob vigilancia. O que aqui se encontra e um tipo muito primario de democracia — uma especie de democracia aldea. A forma de punir os infractores das «leis» do jogo, como Carew o descreve, e um paradigma em pequena escala da democracia camponesa auto-regulada, com a relativamente diminuta supervisao de vigilantes do exterior. Em nosso entender, fica-se com a impressao de que esta maneira de impedir as pessoas de subverter as regras do costume nao era muito eficaz. Uma violagao das regras, como o descreve Carew era, com frequencia, outra ocasiao para um confronto bastante violento— por certo com algumas cicatrizes, entre os participantes. A partir da descrigao pode ver-se, com muita nitidez, que as tradigoes relativas hoje a dois tipos de desportos diferentes, e aparentemente sem grande relagao, continuam a constituir um padrao de jogo indiferenciado em alguns desses jogos populares ancestrais. O hurling contem de facto elementos, por urn lado, de um jogo de bola e, por outro, de um combate simulado ou de uma exibigao de combate sem armas. Neste jogo popular, e bastante evidente a aceitagao por todos os participantes e espectadores, enquanto elemento normal de jogo e como parte do divertimento, do facto de as pessoas se empenharem numa especie de luta fisica. Contudo, mesmo a luta corpo a corpo nas sociedades do tipo «medieval» respeitava um certo tipo de regulamenta^ao tradicional, a qual proporcionava nao so uma harmonizagao mutua dos movimentos dos combatentes mas tambem uma limitagao relativamente aos
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ferimentos que se pudessem infligir ao outro. Na Cornualha, no tempo do hurling, um tipo de luta de simulagao e de exibigao chamada wrestling* continuava a ser um dos divertimentos regulates da vida da aldeia. A nfvel local, os lutadores da Cornualha consideravam-se os melhores e os mais famosos da regiao. For esse motivo, nao surpreende o facto de as tecnicas de luta desempenharem um determinado papel no jogo da bola do hurling. Como Carew o descreve, um dos factores considerados para determinar o vencedor de urn jogo era o numero de «quedas» impostas ao opositor; e «impor uma queda», derrubar um oponente e faze-lo tocar o chao com urn ombro num lado e com o calcanhar no outro era, na verdade, um dos principais objectivos do hurling. Nesse caso, a habilidade e o exito engrandeciam a reputagao da equipa da aldeia. Pode imaginar-se como as equipas e as comunidades que estas representavarn discutiam, mais tarde, quern tinha sido o melhor e como, por vezes, tera surgido uma briga extra acerca disso. Contudo, mesmo no hurling to goales, o mais regulamentado dos dois tipos de hurling descritos por Carew, o criterio para determinar o vencedor nao estava definido de modo tao nitido e calculado como o dos jogos-desporto no nosso proprio tempo, pois estes relacionavam-se, de um modo geral, com algurnas provas de avaliagao inequivocas, tais como o «golo», o «ponto» ou a «corrida». Como se pode ver, a partir da descrigao de Carew, num jogo popular como o hurling a determinagao de um vencedor era de longe menos rigorosa e regulada de um modo rnenos nitido, sendo de certa forma sintomatico do caracter distintivo destes jogos populates tradicionais e dos modernos jogos-desporto em geral. Mesmo no final do seculo XVI, as sociedades europeias nao eram ainda sociedades de «medida». No entanto, aquilo que e mais importante sublinhar e que, quando comparados com os nossos jogos-desportos, o jogo do hurling, incluindo a sua componente de luta, era de longe muito menos regulamentado, nao sendo no entanto totalmente anarquico. O nosso vocabulario conceptual nao esta ainda suficientemente desenvolvido, a nossa percepgao nao esta ainda bastante treinada para que nos seja possivel distinguir, com
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nitidez e precisao, entre diferentes tipos de regulamentagao. E evidente que estudos comparatives minuciosos e sistematicos quer com outros jogos populares da nossa propria sociedade quer com jogos populares diferentes, num estadio de desenvolvimento social comparavel, representariam um util contributo a este respeito.
CAPITULO VI A dinamica dos grupos desportivos — uma referenda especial ao futebol Norbert Elias e Eric Dunning
No desenvolvimento de uma ciencia ou de urn dos seus ramos acontece, muitas vezes, que a teoria que dominou o sentido da investigagao, por algum tempo, atinge um ponto em que se tornam manifestas as suas limitagoes1. Verifica-se que grande quantidade de problemas significativos nao pode ser formulada, com clareza, nem explicada at raves da sua contribuigao. Os cientistas que trabaIham nesse campo iniciam, entao, a pesquisa de um quadro teorico mais vasto ou, possivelmente, de outra teoria global, que Ihes permitira o debate de problemas para alem do que e possivel atraves da teoria em curso. Na sociologia contemporanea, o que e designado por «teoria de pequenos grupos» parece estar neste estadio. E bem evidente que uma parte dos problemas ultrapassa as possibilidades da actual teoria dos pequenos grupos, para nao falar das suas limitagoes como modelo de estudo de unidades sociais de maiores dimensoes. No nosso caso, quando tentamos investigar problemas de pequenos grupos em jogos-desporto como o futebol, essa teoria nao demonstrou utilidade a qualquer nivel. De facto, confrontada com o estudo dos grupos de desporto in vivo^ a teoria dos pequenos grupos foi insuficiente2. ^ste capitulo apareceu, inicialmente, sob a forma de artigo no British Journal of Sociology, Vol. XVII, n.° 4, Dezembro de 1966, e foi reproduzido na obra editada por Eric Dunning, The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971. 2 Referimo-nos a teoria dos pequenos grupos no sentido em que este termo e vulgarmente utilizado em sociologia. Nao nos referimos a outras teorias de pequenos grupos tais como, por exemplo, aquelas que dizem respeito a problemas de terapia
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For esse motivo iniciamos — em paralelo com uma pesquisa mais alargada do desenvolvimento do futebol a longo termo — a investigate de alguns aspectos teoricos da dinamica de grupos que se desenvolve em jogos deste tipo. Pareceu-nos que os jogos-desporto em geral, e o futebol em particular, podiam constituir um ponto de partida util para a constru^ao de modelos de dinamica de pequenos grupos que fossem, de algum modo, diferentes dos que dispunhamos no quadro das actuais teorias de pequenos grupos. Alguns aspectos desses modelos sao apresentados neste trabalho. Embora tenham sido elaborados, de inicio, em referencia ao futebol, os conceitos derivados da nossa analise permitem uma utilizagao mais alargada. Aplicam-se quase de certeza, nao so ao futebol mas, tambem a outros jogos colectivos. No estudo do futebol e de outros jogos-desporto revelam-se, desde o inicio, certas dificuldades semanticas. As pessoas falam, com frequencia, de um jogo de futebol como se fosse alguma coisa exterior e separada do grupo de jogadores. Nao e inteiramente falso afirmar que um jogo como o futebol pode ser jogado por muitos grupos diferentes. Como tal e independente, em parte, de qualquer um dos grupos. Ao mesmo tempo o padrao de jogo individual e, em si mesmo, um padrao de grupo. As pessoas agrupam-se, segundo formas especfficas, com a finalidade de efectuar um jogo. Enquanto o jogo se desenvolve, reagrupam-se continuamente, de maneira semelhante as formas que os grupos de bailarinos adoptam no decurso de uma danga. A configuragao inicial de que partem os jogadores transforma-se em movimento continue, noutras configura^oes. E a esta dinamica que nos referimos quando utilizamos o termo «padrao de jogo». O termo pode ser equivoco se esconder aquilo que realmente se ve quando se presta atengao a um jogo: pequenos grupos de seres humanos que modificam as suas relagoes em constante interdependencia. A dinamica deste agrupamento e reagrupamento de jogadores, no decurso de um jogo, e fixa em certos aspectos e flexivel e variavel noutros. E fixa porque, sem a fidelidade da combina^ao dos jogadores relativamente a um conjunto de regras unificadas, o jogo nao seria um jogo mas uma «desordem geral». E flexivel e variavel, de grupo, embora nesses casos a abordagem configuracional possa ser tambem um contribute.
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pois, de outro modo, um jogo seria exactamente como qualquer outro. Neste caso, tambem, o seu caracter especifico enquanto jogo estaria perdido. Por conseguinte, para que as relagoes de grupo possam ter o caracter de um jogo, torna-se necessario estabelecer um equilibrio muito especifico entre a rigidez e a flexibilidade das regras. A dinamica do jogo depende deste equilibrio. Se as relagoes entre os que realizam o jogo sao demasiado rigidas ou vagamente limitadas pelas regras, o jogo sera prejudicado. Consideremos a configuragao inicial dos jogadores no futebol. E regulamentada por certas regras. Nestas condigoes, a redacgao de uma das regras de 1897 sobre a configuragao do «pontape de saida», que, com algumas modificagoes, continua valida, e a seguinte: O jogo deve iniciar-se por um pontape de safda, executado sobre a marca do meio-campo na direcgao do campo adversario; os jogadores da equipa oposta nao podem aproximar-se da bola a menos de 9,15 m* antes de o pontape ter sido executado, nem quaisquer outros jogadores de ambas as equipas podem ultrapassar o centre do terreno ate ao momento da realizagao do pontape de safda3. E facil avaliar qual o espago de manobra que esta regra concede as duas equipas — como ela e flexivel. No quadro de regras do pontape de saida os jogadores podem agrupar-se numa «formagao W» (2-3-5) ou sob a forma de um «H horizontal (4-2-4). Tambem se o pretenderem, o sector defensivo pode situar-se rigidamente em frente da propria baliza, embora na pratica isso raramente suceda. A forma como os jogadores se dispoem no momento do pontape de saida e determinada por regras formais e por convengoes, pela experiencia de jogos anteriores e, com frequencia, pelos proprios pianos estrategicos conjugados com as expectativas relativamente a estrategia planeada pelos adversaries. Ate onde e que esta caracteristica peculiar, esta combinagao de rigidez e de flexibilidade, se aplica a regulamentagao das relagoes humanas, no ambito de outras esferas, e uma questao que pode merecer mais atengao do que ate aqui tern acontecido. 3
G. Green, The History of the Football Association, Londres, 1953. *De acordo com as Leis do Jogo editadas pela FIFA (1985). (N. da T.)
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A partir da posigao inicial, evolui uma configuragao dinamica delineada pelas duas equipas. Assim, todos os individuos se mantern, do principio ate ao fim, mais ou menos interdependentes; movimentam-se e reagrupam-se em resposta uns aos outros. Isto pode ajudar a explicar porque nos referimos a este tipo de jogo como uma forma especifica da dinamica de grupos. Porque este movimento e reagrupamento de jogadores interdependentes, em resposta aos outros, / o jogo. Torna-se evidente, desde logo, que ao usar o termo dinamica de grupo nao nos referimos as configuragoes em mudanga de cada um dos dois grupos de jogadores, considerados em separado, como se cada um possuisse a sua propria dinamica. Nao e esse o caso. Num jogo de futebol, a configuragao dos jogadores de uma das equipas e a dos jogadores da outra equipa sao interdependentes e inseparaveis. De facto, formam uma unica configuragao. Se falamos de um jogo-desporto como uma forma especifica de dinamica de grupo, referimo-nos a modificagao global da configuragao dos jogadores de ambas as equipas. Poucos aspectos da dinamica de grupo do futebol revelam, com tanta nitidez, a relevancia dos jogos-desporto como modelos para a dinamica de grupos em muitos outros campos. Uma caracteristica fundamental nao so do futebol mas praticamente de todos os jogos-desporto e que se constitui um tipo de dinamica de grupo que e originado por tensoes controladas entre, pelo menos, dois subgrupos. A teoria sociologica tradicional dos pequenos grupos, por esta razao, nao da grande contribuigao ao estudo do tipo de problemas que se nos deparam. Exigem-se conceitos especificos, diferentes dos que foram utilizados ate aqui no estudo sociologico de pequenos grupos, e talvez um pouco mais complexos do que aqueles que, de um modo geral, sao utilizados em estudos sobre jogos-desporto. De acordo com o uso conceptual presente, pode ficar-se satisfeito afirmando que um jogo de futebol e praticado por dois grupos diferentes. Esta e uma dessas convengoes linguisticas que induzem as pessoas a pensar e a falar como se o jogo fosse alguma coisa separada dos seres humanos implicados nele. Ao sublinhar-se que o jogo nao e nada mais do que a configuragao dinamica de uma bola movimentada pelos jogadores, destaca-se, em simultaneo, que nao se trata da configuragao dinamica de cada uma das duas equipas, consideradas separadamente, mas
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dos jogadores de ambas as equipas em confronto. Muitas pessoas que veem um jogo de futebol sabem que e isto que tentam acompanhar, nao simplesmente, uma ou a outra equipa, mas o padrao-fluido que e delineado pelas duas. Este e o padrao de jogo — a dinamica de um grupo em tensao. Como tal, este modelo de dinamica de grupo tern implicates teoricas que ultrapassam o estudo dos pequenos grupos. Pode constituir uma ajuda para a explica^ao de tao variados problemas como, por exemplo, o das tensoes conjugais ou das tensoes sindicato-direcgao. Nestes casos, como sucede nos grupos do desporto, as tensoes nao sao estranhas mas intrinsecas a propria configuragao; aqui tambem, em certa medida, sao controladas. Como sao controladas, em que grau isso sucede e qual a via utilizada para o efeito e o problema a ser estudado. As relagoes interestados sao outro exemplo de uma configuragao com tensoes intrinsecas. Mas, neste caso, a compreensao efectiva e permanente das tensoes ainda nao foi alcan^ada e, ao nivel actual do desenvolvimento social e do conhecimento sociologico dos grupos em tensao, talvez nao seja possivel atingir o objective. Entre os factores que impedem a concretizagao do melhor conhecimento esta, decerto, a incapacidade muito disseminada de compreender e investigar dois Estados em tensao ou um sistema de Estado multipolar como uma linica configuragao. De um modo geral, aborda-se semelhante sistema como um participante comprometido com um dos pontos de vista e que, por esse motivo, nao e capaz de visualizar e de perceber a dinamica fulcral da conflguragao que os diferentes elementos formam entre si e que determina os movimentos de cada lado. O estudo dos jogos-desporto como o futebol pode, por isso, servir como uma introdugao relativamente simples a uma analise configuracional no estudo de tensoes e de conflitos — a perspectiva segundo a qual a atengao se concentra nao na dinamica de um lado ou do outro, mas nos dois polos ao mesmo tempo, formando uma unica conflguragao. O pensamento sociologico a respeito de problemas deste genero parece girar, actualmente, a volta de duas alternativas: por um lado, problemas de grupo em situagao de tensao; por outro, problemas de cooperagao e harmonia. As tensoes de grupo parecem ser um fenomeno, a cooperagao de grupo e harmonia, outro. Dado que se utilizam termos diferentes, pode surgir a ideia de que os proprios fenomenos sao diferentes e independentes um do outro. Uma
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analise dos jogos-desporto esclarece a insuficiencia desta abordagem. A dinamica de grupo de urn jogo pressupoe tensao e cooperagao numa variedade de niveis ao mesrno tempo, Nenhum deles seria o que e sem o outro. A teoria tradicional dos pequenos grupos nao da atengao a problemas deste tipo. Em geral, os seus agentes seleccionam para estudo problemas de pequenos grupos em que as tensoes nada representam ou, no caso de escolherem problemas de tensao, confinam-se aos seus tipos especificos como, por exemplo, a competigao individual. Ao ler os seus argumentos tem-se muitas vezes a impressao, que as suas reflexoes, sobre o tema das tensoes e conflitos de grupo, sao debates sobre questoes de filosofia e ideologias pollticas mais do que a discussao das conclusoes derivadas de investigates estritamente cientificas. Neste caso, como noutros, a sociologia contemporanea parece estar, por vezes, amea^ada por uma polariza^ao entre aqueles que nao distinguem o papel das tensoes nos grupos sociais — ou, pelo menos, que o colocam a um nivel bastante secundario — e os que exageram o papel das tensoes e dos conflitos, desprezando outros aspectos da dinamica de grupos que sao igualmente relevantes. Por exemplo, Homans desenvolveu uma teoria de pequeno grupo na qual o conflito e tensao representam, em grande parte, um papel marginal. Talvez nao seja injusto, por certo, sugerir que esta tendencia de harmonizagao esta relacionada com um esquema de valores pre-estabelecido, uma especie de Weltanschauung* sociopolitica que define o sentido dos argumentos teoricos e observances empiricas semelhantes. Podera admitir-se que Homans desenvolveu uma alergia emocional relativamente a discussao de tensoes e conflitos. Por isso, escreve: Se nos limitamos ao comportamento... (que diz respeito a permuta de actividades de remuneragao) temos a certeza de que provocamos a indignagao dos cientistas sociais, que se distinguem pelo seu espfrito teimoso. «Nunca minimizem o conflito», dirao. «O conflito nao so e um facto da vida social como, tambem, possui virtudes positivas e apresenta qualquer coisa do que ha de melhor no homem». Acontece que, precisamente, estes cientistas nao estao mais *Visao
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desejosos do que o resto da humanidade de encorajar conflitos de que sejam responsaveis. O conflito e bom para os outros, nao para si proprios. Mas precisamos de nos refrear. E serapre demasiado facil pedir aos homens que fagam aquilo que proclamam. Uma armadilha, da qual ninguem consegue escapar, nao e um quadro divertido4. Como se pode ver, este e um argumento pleno de emogao. Demonstra como o proprio Homans compreendeu mal o caracter da analise sociologica. Alguns escritores que deram atengao a problemas de conflito fazem isso, sem duvida, porque desejam encorajar o conflito — isto e, por razoes estranhas ao estudo sociologico de tais problemas. Mas sugerir, como Homans parece fazer, que o encorajamento do conflito e a unica razao pela qual os sociologos procuram determinar a natureza das tensoes e conflitos na vida social das pessoas implica uma ma interpretagao fundamental do trabalho de analise sociologica. Embora Homans escreva que «ninguem pode negar... que o conflito e um facto da vida social», ele, obviamente, considera dificil lidar com este facto como tal, como um facto da vida entre outros. A este respeito, o estudo dos jogos-desporto pode constituir um consideravel contributo. Um estudo especifico de tensoes desempenha um papel significativo em semelhantes jogos. Ao estuda-los nao se pode deixar de prestar atengao as tensoes quer se goste delas ou nao. Parece util determinar o caracter de jogos-desporto como o futebol como configuragoes com tensoes de um tipo especifico, e pensamos que o termo «grupos em tensao controlada» seria apropriado para o designar. No estadio actual do desenvolvimento teorico, confrontamo-nos em relagao a estes problemas com um dilema que num contexto de certo modo diferente, foi forrnulado com grande clareza por Dahrendorf. Ja nos referimos a tendencia para tratar o conflito e a cooperagao como fenomenos independentes e para formar teorias diferentes e separadas para cada um deles. Dahrendorf defrontou-se com um problema similar a respeito da integragao e da coergao, e levant ou, a respeito desta ligagao, uma questao significativa: Existe, ou pode existir, um ponto de vista geral que sintetiza a 4
G. Homans, Social Behaviour: Its Elementary Forms,, Londres, 1961, p. 130.
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A DINAMICA DOS GRUPOS DESPORTIVOS dialectica nao resolvida de integragao e de coerc,ao? Tanto quanto se pode ver, nao existe semelhante modelo geral; quanto a sua possibilidade tenho de reservar o julgamento. Parece, pelo menos, aceitavel que a unificagao de teoria nao e verosimil, um ponto que, desde o infcio da fllosofia ocidental, sempre confundiu os pensadores5.
O mesmo se pode afirmar quanto a questao das tensoes e da cooperagao. Algumas teorias sociologicas encontram-se tecidas a volta de problemas de conflito e de tensao, sem conceder muita atengao aos problemas de cooperagao e de integragao, tratando o conflito e a tensao mais ou menos como fenomenos marginals. Analisando o problema de modo mais detalhado, e facil ver a razao. Ambos os processes se baseiam numa reificagao de valores: porque se atribuem diferentes valores ao conflito e a cooperagao tratam-se estes fenomenos como se tivessem uma existencia separada e independente. For isso, o estudo dos jogos-desporto e um ponto de partida util para uma abordagem destes problemas, permitindo a moderagao das paixoes. Neste campo, e mais facil movimentarmo-nos fora do quadro de avaliagoes estranhas e mantermo-nos em contacto estreito com provas susceptiveis de verificagao, isto e, com demonstragoes factuais no quadro das proposigoes teoricas. For esse motivo, e menos diffcil caminhar no sentido de um quadro teorico no qual nao so a tensao como tambem a cooperagao podem encontrar o seu lugar como fenomenos interdependentes. No futebol, a cooperagao pressupoe tensao e a tensao cooperagao. Contudo, so podemos compreender o seu caracter complementar se estudarmos o modo como o jogo se desenvolveu ate a sua forma presente, como a tensao e a cooperagao se relacionam atraves de tipos de controlos solidos. O estudo do desenvolvimento no futebol, na longa duragao, permite-nos observar, de facto, num campo limitado, um aspecto da acgao reciproca entre tensao e controlo da tensao, sem o que a relevancia dos jogos-desporto como um modelo teorico nao pode ser totalmente compreendida. For outro lado, permite observar como as tensoes, que foram em certo tempo descontroladas e, provavelmente, incontrolaveis, se subme5 R. Dahrendorf, Class and Class Conflict in Industrial Society, Londres, 1959, p. 164.
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teram progressivamente ao controlo. Uma das principals caracteristicas do futebol e de muitos outros jogos-desporto, na sua forma actual, e, por certo, a maneira como as elevadas tensoes de grupo, produzidas no decurso do jogo, sao mantidas sob controlo. Mas is to e um fenomeno bastante recente. Em tempos passados, as tensoes entre jogadores, que sempre foram e sao caracterfsticas dos jogos, eram frequentemente muito menos controladas. Esta transformagao, o desenvolvimento de uma forma de tensao de grupo altamente regulada e relativamente nao violenta a partir de um estadio previo em que as correspondentes tensoes se libertavam muito mais facilmente sob uma forma qualquer de violencia, esta no fulcro da dinamica a longo termo do jogo de futebol. E representativa, em certos aspectos, do desenvolvimento a longo prazo das sociedades europeias. Porque, em muitas destas sociedades, o nivel geral de violencia manifesta tern diminuido atraves do tempo. Em{ comparagao com o passado, tambem aqui se encontra, como sucede no desenvolvimento do futebol, um nivel de organizagao, de auto-restrigao e de seguranga muito mais elevado. Como e por que razao acontece este desenvolvimento em termos de longa duragao, no sentido de padroes mais «civilizados» das relagoes humanas verificadas na sociedade em geral, sao questoes que nao necessitam de nos preocupar aqui6. Mas foi possivel descobrir algumas das razoes por que, em paralelo com uma orientagao semelhante na sociedade em geral, um jogo como o futebol se desenvolveu a partir de uma forma de dinamica de grupo mais violenta para outra forma menos violenta e menos incontrolada e, por correspondencia, para um tipo de padrao de jogo diferente. Esta compreensao da dinamica do futebol na longa duragao esclarece, em grande parte, o que e a dinamica do jogo no curto prazo, tal como hoje se realiza. De facto, o futebol, tal como era jogado em tempos passados nao so em Inglaterra mas tambem em muitos outros paises, como a maioria dos jogos de bola, era um jogo muito selvagem7. Seculos mais tarde, entre 1845 e 1862, quando o jogo de futebol, pelo menos em algumas das escolas publicas mais importantes, se tornou bastante mais regulamentado, o nivel de violencia era ainda 6 Foi tratado de forma aprofundada nas obras de Norbert Elias The Civilizing Process, Oxford, 1978, e State Formation and Civilization, Oxford, 1982. 7 Ver Cap. V deste volume.
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muito mais elevado do que e hoje, e a dinamica das tensoes de grupo, por esse motive, bastante diferente8. Nos finals de 1863 a incipiente Associagao de Futebol dividiu-se porque a maioria propos eliminar do jogo, totalmente, as «caneladas», enquanto uma minoria dos membros fundadores, defendendo a perspectiva de que a aboligao da «canelada» tornaria o jogo «efeminado», opunha-se a isso. Este nao foi o unico mas, por certo, foi um dos principals pontos que conduziu ao desenvolvimento em Inglaterra de dois tipos de futebol: o football association ou futebol> por um lado, e o raguebi futebol ou raguebi, por outro. E interessante notar que mesmo no jogo de raguebi, embora o nivel geral de violencia permanega, de algum modo, mais elevado do que o futebol, tambem a «canelada» foi «banida» nao muito tempo depois de a ruptura ter ocorrido. O problema com que nos defrontamos aqui — um problema que nao e totalmente desprovido de significado teorico — e o das razoes por que um dos dois tipos de jogo, nomeadamente o «futebol», alcangou muito maior reconhecimento e exito do que o outro, nao so em Inglaterra mas em quase todo o mundo. Seria porque o nivel de violencia no futebol era inferior ao do raguebi? Para responder a questoes como esta e necessario ter uma ideia muito clara acerca de, pelo menos, um dos principals problemas levantados ao padrao global do jogo, a sua dinamica de grupo, resultantes da diminuigao da violencia. O perigo desta redugao da violencia consentida era, obviamente, o de que o jogo, na sua forma modificada, se tornaria desinteressante e aborrecido. A sobrevivencia do jogo dependia, evidentemente, de uma especie peculiar de equilibrio entre, por um lado, um elevado controlo do nivel de violencia, porque sem ela o jogo ja nao era aceitavel para uma maioria dos jogadores e para a maioria dos espectadores, de acordo com o padrao de comportamento «civilizado» prevalecente, e, por outro, a preservagao de um nivel suficientemente elevado de confronto nao violento sem o qual, de modo identico, o interesse dos jogadores e do publico teria enfraquecido. O desenvolvimento completo da maioria dos jogos-desporto, e certamente o do futebol, situa-se em 8
Para uma analise sociologica do desenvolvimento do futebol nas escolas publicas, ver o trabalho de Eric Dunning e de Kenneth Sheard, Barbarians, Gentlemen and Players, Oxford, 1979-
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grande medida na solugao deste problema: como manter em determinado padrao de jogo um elevado nivel de tensao e de dinamica de grupo dele resultante, enquanto, ao mesmo tempo, se procurava reduzir ao mais baixo nivel possivel frequentes lesoes nos jogadores. A questao era e continua a ser, por outras palavras, como «conduzir um navio», por assim dizer, entre a desordem de Cila e o aborrecimento de Caribdis. Os que participam no jogo como treinadores ou dirigentes podem confirmar, na verdade, que este e um problema de grande significado pratico. Um elevado numero de pessoas que se encontra nessa situagao esta habituada a pensar em termos de configuragao como uma coisa natural, uma vez que planeiam cada jogo com antecedencia; porque esta e a maneira mais realista de encarar um jogo e, na verdade, a mais apropriada para o desenvolvimento de estrategias. Deste modo, ao preparar a sua equipa para um jogo, e possivel que um treinador afirme que os adversaries podem utilizar um «sistema 4-2-4» e que o seu proprio trabalho consiste em impedir os adversaries de dominarem o meio campo de jogo; para atingir isto, pode estabelecer para dois dos seus jogadores a tarefa de «remover totalmente» os homens que constituem o «elo de uniao» adversario, para que desta maneira o resto da equipa se possa concentrar no ataque. Contudo, embora habituado, pela sua experiencia imediata, a encarar o jogo como uma configuragao dinamica de jogadores, o seu objective e o seu trabalho nao sao o de manter-se distanciado e reflectir sobre as caracteristicas e regularidades destas configurates enquanto tais. Em 1925, o Comite da Associagao de Futebol que decidiu alterar a regra de fora de jogo estava, decerto, consciente de que, submetido a velhas regras, o «espirito» do jogo enfraquecera, tal como noutras ocasioes as pessoas tinham notado que o jogo comegara a perder-se entre a desordem e a monotonia. Mas, ate agora, os conceitos disponiveis para tratar este tipo de problemas nao estao muito articulados. Para atingir o seu significado mais vasto — o seu significado face a uma teoria de pequeno grupo ou para uma teoria sociologica do jogo em geral — e necessario trabalhar novos conceitos em termos de comparagao, como um quadro para observagao e transformagao do sentido de alguns dos conceitos que ja existem. Analisemos o conceito de «configuragao». Ja se disse que um jogo e uma configuragao dinamica de jogadores no campo. Isto
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significa que a configuragao nao e apenas um aspecto dos jogadores. Nao e, como por vezes as pessoas parecem acreditar, quando se utilizam expressoes relacionadas como «padrao social», «grupo social» ou «sociedade», alguma coisa abstrafda dos indivfduos. As configuragoes sao formadas por indivfduos como se fossem «corpo e alma». Se observarmos a movimentagao dos jogadores no campo em permanente interdependencia, podemos ve-los na realidade a formar constantemente uma configuragao dinamica. Nos casos de grupos ou sociedades mais alargadas, nao se podem, de um modo geral, observar as configuragoes que os seus membros formam entre si. No entanto, tambem nestas circunstancias, as pessoas formam configuragoes entre si — uma cidade, uma igreja, um partido politico, um Estado — que nao sao menos reais do que a que e constitufda por jogadores num campo de futebol, mesmo que nao possam ser abrangidas de um so golpe de vista. Nesta linha, considerar agrupamentos de pessoas como configuragoes com a sua dinamica, os seus problemas de tensao e de controlo da tensao e muitos outros, mesmo que nao seja possivel ve-los aqui e agora, exige um treino especffico. Esta e uma das tarefas da sociologia configuracional de que este ensaio e um exemplo. Actualmente, ainda existe uma boa dose de incerteza quanto a natureza desse fenomeno a que as pessoas se referem como «sociedades Com frequencia, as teorias sociologicas parecem partir da hipotese de que «grupos» ou «sociedades» e «fenomenos sociais» em geral sao alguma coisa abstrafda dos indivfduos, ou, pelo menos, que nao sao tab «reais» como estes, o que quer que seja que isso possa significar. O jogo de futebol — como um modelo em pequena escala — pode ajudar a corrigir esta perspectiva. Demonstra que as configuragoes de indivfduos nao sao nem mais nem menos reais do que os indivfduos que as formam. A sociologia configuracional baseia-se em observances como esta. Em contraste com as teorias sociologicas que tratam as sociedades como se fossem meros nomes, uma flatum vocis^ um «tipo ideal», uma construgao sociologica e que, nesse sentido, sao representativas do nominalismo sociologico, a sociologia configuracional representa um realismo sociologico9. 9 A firm de evitar equivocos, ha que acrescentar que o termo «realismo sociologico^ tal corno aqui foi utilizado, nao possui o mesmo signiflcado que tern na teoria de Durkheim. Este autor nao conseguiu abandonar a posigao segundo a qual
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Os individuos apresentam-se sempre em configuragoes e estas sao sempre formadas por individuos. Se observarmos um jogo de futebol, podemos compreender que e da configuragao dinamica dos proprios jogadores que, num dado momento, as decisoes e os movimentos dos jogadores individuais dependem. A este respeito, conceitos como «interacgao» e termos relativos podem induzir em erro. Parecem sugerir que os individuos que se encontram desprovidos de configuragoes as formam a posteriori. Perante o tipo de tensoes que se encontram no estudo do futebol, torna-se dificil o dominio do problema. Estas tensoes sao, quanto a sua natureza, diferentes das que podem surgir quando dois individuos independentes, «ego» e«alter», comegam a interagir. Como ja afirmamos, e a propria configuragao dos jogadores que integra uma tensao de tipo especifico — uma tensao controlada. Nao se pode compreender nem explicar o seu caracter a partir da «interacgao» dos jogadores individuais. Nas nossas sociedades, uma das caracteristicas de um jogo e a de procurar conservar a tensao inerente a conflguragao dos jogadores, nem demasiado elevada nem demasiado reduzida: o jogo deve durar certo tempo mas e necessario, no final, que se resolva atraves da vitoria de um lado ou do outro. Podem existir jogos «arrastados», mas, se ocorrerem com demasiada frequencia, podera suspeitar-se de que alguma coisa estava errada na construgao do jogo. Deste modo, nas sociedades industrials do presente, um jogo e uma configuragao de grupo de um tipo muito especifico. E a tensao controlada entre dois subgrupos que, no seu interior, os mantem em equilibrio entre si. Este e um fenomeno que se pode observar em muitos outros campos. Parece merecer um nome especial: chamamos-lhe «equilibrio de tensao». Da mesma maneira que a mobilidade de um membro do corpo humano depende das tensoes controladas entre dois grupos de musculos antagonistas em equilibrio, tambem o equilibrio do jogo depende de uma tensao os fenomenos socials surgem como alguma coisa abstracta e separada dos individuos. Abstracgoes que, por vezes, reiflca: nunca ultrapassa um estadio onde a «sociedade» e os «individuos» aparecem como entidades separadas e que procura reunir de novo, no final, por uma hipotese quase mistica. Esta critica e perfeitamente compativel com o reconhecimento do elevado nivel intelectual do seu trabalho e dos avangos cientificos que se Ihe devem.
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entre dois con juntos de jogadores, ao mesrno tempo antagonistas e interdependentes, rnantendo um equilibrio dinamico entre si10. A mecanica das configuragoes com um «equilibrio de tensao», no seu centra, esta longe de ser simples. Talvez dois exemplos bastem para a esclarecer: num processo de jogo, o equilibrio flexivel de tensao nao pode ser produzido e conservado exactamente ao nivel justo, se uma das equipas e muito mais forte do que a outra. Se for este o caso, a equipa mais forte tera exito provavelmente com mais frequencia, a tensao do jogo — o «vigor do jogo» — sera relativamente baixo e o proprio jogo sera lento e sem vida, Mas seria um erro pensar que no estudo da dinamica de grupo de um jogo se esta preocupado, acirna de tudo, com questoes surgidas a partir das qualidades das equipas ou dos jogadores individuals. O que estudamos, em primeiro lugar, foi o desenvolvimento e a estrutura do padrao de jogo enquanto tal. Num dado momento, este padrao tern uma forma especifka assegurada por controlos a varios niveis. E controlado pelas organizagoes de futebol, Estado e autoridades locals, espectadores e equipas mutuamente, ou jogadores a nivel individual. Neste contexto, nao e necessario enumera-los a todos ou analisar a sua ac<~ao reciproca. No discurso teorico, podem considerar-se apenas em termos de regras ou norrnas os controlos que preservam uma dada configuragao e, em particular^o equilibrio de tensao de uma configuragao. Mas, como noutros casbs, as regras, e em especial as regras formais, sao apenas um dos «instrumentos» de controlo responsaveis pela relativa estabilidade dos grupos em tensao controlada. E sejam elas quais forem, regras ou normas de grupo, aqui ou em qualquer outro lugar, nao sao absolutas. As regras ou normas possuem dispositivos para que o controlo das tensoes nao flutue fora e acima dos processes sociais como, por vezes, se sugere em discussoes actuais. A dinamica de grupo que as regras ajudam a manter pode, por seu lado, determinar se estas devem conservar-se ou ser alteradas. O desenvolvimento dos regulamentos de futebol mostra, de forma notavel, como as modificagoes das regras podem depender do desenvolvimento global daquilo 10
Existe uma diferenga caracterfstka entre o equilibrio de tensao dos rnusculos antagonistas e dos jogadores adversarios num jogo. No caso dos musculos, um dos lados descontrai-se enquanto o outro comec.a a flcar tenso. No caso dos jogadores, o caracter especifico do equilibrio de tensao deve-se ao facto de ambos os lados se encontrarem tensos.
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que regulamentam. A dinamica dessas configurates possui o que se pode chamar uma «16gica» propria. Assim, no futebol, o nfvel da tensao pode diminuir nao so devido as caracteristicas distintivas dos colectivos ou dos seus membros individuals mas tambem pelo con junto de caracteristicas da configuragao que formam entre si. Se examinarmos o desenvolvimento de um jogo, este e um dos fenomenos que se encontram muitas vezes. Por exemplo, em 1925, a regra de fora de jogo mudou. Ate af a regra era esta: um jogador so podia receber, segundo a lei, uma bola passada para si e para a frente por outro membro da sua equipa se, pelo rnenos, tres membros da equipa oposta permanecessem entre ele e a baliza adversaria. Se menos de tres jogadores estivessem assim colocados, ele encontrava-se em fora de jogo e, neste caso, era atribuido um livre ao adversario. Em 1925, o numero foi reduzido para dois. A elasticidade da regra antiga, explorada com grande pericia, conduzira a uma situagao em que os empates se tornararn cada vez mais frequentes. O que aconteceu foi que o equilfbrio se tinha deslocado excessivarnente a favor da defesa. Os jogos revelavam tendencia para se arrastarem sem qualquer resultado, ou as marcas eram demasiado baixas. O motivo nao se devia a qualquer qualidade particular dos jogadores em termos individuals: (a conflguragao dos jogadores, mantida por uma variedade de contfolos, entre os quais assumiam posigao-chave os regulamentos formais, revelava-se deficiente. Por esta razao, atraves de uma mudanga de regras, desfez-se a tentativa de estabelecer uma configuragao mais fluida dos jogadores, que poderia restaurar o equilfbrio entre o ataque e a defesa. Este e um exemplo de uma quantidade de polaridades que no futebol, e, por certo, tambem em todos os outros jogos-desporto, se produzem no quadro da configuragao definida no processo de jogo. Essas polaridades operam em estreita relagao entre si. De facto, um complexo de polaridades interdependentes criadas no padrao de jogo proporciona a principal forga motriz da dinamica de grupo de um jogo de futebol. De uma maneira ou de outra, todas contribuem para a conserva^ao do «vigor» e o equilfbrio de tensao do jogo. Eis aqui uma lista de algumas delas: 1) A polaridade global entre as duas equipas opostas; 2) A polaridade entre ataque e defesa;
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3) A polaridade entre cooperagao e tensao das duas equipas; 4) A polaridade entre cooperagao de competigao dentro de cada equipa. A polaridade 4) pode expressar-se atraves de uma variedade de maneiras. Uma delas e a que se revela entre os membros individuals da equipa e a equipa como um todo, apresentada nos seguintes exemplos: a) Nos anos de I860 e 1870, o drible, um gesto individual, era o elemento fulcral do futebol. O equilibrio de tensao dinamico entre os interesses em jogo foi articulado a favor dos individuos. Isso correspondia as caracterfsticas socials do jogo durante este perfodo. Nessa fase, era um jogo realizado especialmente por antigos alunos das escolas piiblicas e por outras pessoas da classe media e da classe superior, para o seu proprio prazer. Nas duas ultimas decadas do seculo XIX, esta tecnica originou uma maneira diferente de jogar. A cooperagao da equipa acentuouse a custa da criagao, nas competigoes, de oportunidades para os individuos brilharem. Deste modo, o equilibrio entre interesses individuals e interesses da equipa modificou-se. O drible desvalorizou-se e a passagem da bola de um membro da equipa para outro passou a destacar-se. E possivel analisar com consideravel rigor as razoes desta mudanga. O aumento do numero de equipas, o estabelecimento de competigoes formais, o aumento de rivalidade competitiva entre as equipas e o facto inicial de se jogar para um publico que pagava para assistir aos jogos encontravam-se entre elas. b) Mesmo depois de o equilibrio verificado entre os interesses da equipa e de os interesses individuals se terem deslocado vincadamente a favor dos primelros, a polaridade continuou a desempenhar o seu papel. Qualquer padrao de jogo concede a alguns jogadores um consideravel campo de acgao para decidir. De facto, sem a capacidade de tomar decisoes com rapidez, um individuo nao pode ser um bom jogador. Mas, muitas vezes, o jogador tern de decidir entre a necessidade de cooperar com os outros membros para o beneffcio da equipa e a de contribuir para a sua reputagao pessoal e progresso. Em casos como este, a conceptualizagao actual e dominada por alternativas absolutas como «egoismo» e «altruismo». Enquanto instrumentos de
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analise sociologica realista, pouco tern a recomenda-las. Como se pode verificar, pensar em termos de equilibrios e de polaridades torna mais facil a compreensao daquilo que na realidade se observa. Outras polaridades sao de um tipo um pouco diferente. Estes sao alguns exemplos: 5) A polaridade entre o controlo externo dos jogadores a varios niveis (por dirigentes, capitaes, camaradas de equipa, arbitros, juizes de linha, espectadores, etc.) e o controlo que os jogadores exercem sobre si proprios; 6) A polaridade entre a identificagao afectuosa e a rivalidade hostil para com os oponentes; 7) A polaridade entre o prazer da agressao pelos jogadores individuals e a limitagao imposta pelo padrao de jogo sobre esse prazer; 8) A polaridade entre a flexibilidade e a rigidez das regras. Estes sao alguns aspectos do modelo teorico e alguns exemplos do tipo de conceitos que emergem a partir do estudo das configuragoes do jogo. Podem contribuir para chamar a atengao sobre algumas das caracteristicas distintas deste tipo de grupo. Estas diferem dos tipos de grupo habitualmente utilizados como demonstragao empirica para os estudos de pequenos grupos nao so porque sao grupos em tensao controlada mas, tambem, porque sao estruturados e organizados de forma mais elaborada. Teorias que derivam de estudos de grupos constituidos ad hoc, estruturados de uma forma vaga e formados, em especial, com o objective de estudar grupos sao afectados, com frequencia, por uma confusao entre propriedades de grupos, que sao devidas em grande parte as dos seus membros individuals, e propriedades inerentes a configuragao das proprias pessoas. No caso de grupos estruturados e organizados de forma mais elaborada, e mais facil determinar a dinamica inerente a conflguragao como tal — e distingui-la das variagoes devidas as diferengas do nivel individual. E mais facil, por exemplo, no caso do futebol, distinguir a dinamica que e propria a configuragao do jogo das variagoes devidas as caracteristicas de diferentes nagoes, de diferentes equipas ou de diferentes jogadores.
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Os grupos constituidos ad hoc tern reduzida autonomia em relagao a sociedade onde foram formados, e esta ausencia pode prejudicar a validade dos resultados do estudo desses grupos. Deste modo, pequenos grupos formados nos Estados Unidos com o objective de estudar problemas de comando em geral podem fornecer, de facto, informagoes so sobre aspectos de comando nos Estados Unidos. Saber ate onde experiencias similares realizadas, digamos, na Russia ou no Ghana produziriam resultados semelhantes e uma questao em aberto. Jogos como o futebol sao praticados por toda a parte da mesma maneira e a dinamica configuracional de base e a mesma em todo o lado. Podem ser estudados como tal e, ao mesmo tempo, podem estudar-se as variagoes que surgem quanto ao modo de jogar de nacionalidades diferentes, de equipas diferentes, de individuos diferentes. Como os grupos ad hoc, os grupos de desporto enquanto oportunidade de estudo dos problemas de pequenos grupos, ou de dinamica de grupo em geral, tern limitagoes definidas. Entre elas encontram-se as limitagoes que se devem ao facto de os jogos possuirem, em grande parte, fins em si proprios. A sua finalidade, se e que possuem uma finalidade, consiste em dar prazer as pessoas. Neste aspecto, sao muito diferentes dos agrupamentos de pessoas que geralmente se consideram pegas fundamentals da vida social e que sustentam, em correspondencia, uma posigao fundamental em sociologia, tais como fabricas, que tern o objective de produzirem mercadorias, services, que possuem o fim de administrar propriedades ou diversas empresas, e outros, configurates de pessoas igualmente uteis que nao sao, de um modo geral, consideradas como possuindo um fim em si mesmas ou se supoe darem prazer as pessoas. Isso coincide com o esquema de valores atraves do qual os sociologos procuram, muitas vezes, definir prioritariamente as organizagoes e unidades sociais em geral atraves dos seus objectivos. Mas se isto constitui uma limitagao de estudo dos jogos-desporto — quando comparados com os das unidades sociais envolvidas nas questoes serias da vida —, o facto de eles nao terem nenhum objectivo excepto, talvez, o de proporcionarem prazer e de serem, com frequencia, procurados como fins em si mesmos e tambem uma vantagem. Pode servir como uma correcgao para o sofisma teleologico ainda bastante disseminado no pensamento
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sociologico. Isto pode ser descrito, de uma forma simplificada, como a confusao entre o nivel individual e o nivel de grupo. A respeito dos jogos de futebol, esta distingao e bastante nitida. Os jogadores e as equipas tern objectives, de entre os quais marcar golos e um deles. O prazer de jogar, a excitagao dos espectadores, a esperanga de premios, podem ser outros objectives. Mas a concatenagao de acgoes intencionais tern como resultado uma configuragao dinamica — num jogo — que e inutil. Isso pode apreciar-se assim e, em certa medida, foi o que aqui fizemos. Tal podia nao ter acontecido se tivessemos atribufdo a configuragao dinamica que os jogadores formam entre si os objectivos individuals dos jogadores. Saber ate onde e que isto e verdade no seio de outras conflguragoes de pessoas nao e uma questao que necessite de ser aqui discutida. Mas pode dizer-se que mesmo organizagoes do Estado, igrejas, fabricas e outras configuragoes de tipo mais serio, quaisquer que sejam os objectivos das pessoas que as constituem, possuem tambem fins em si mesmas e uMa dinamica propria. Afinal, quais sao as finalidades das nagoes? Nao e totalmente frivolo afirmar que ate elas se parecem com um jogo efectuado pelas pessoas, para o seu proprio bem. Desprezar este aspecto, concentrando prioritariamente a atengao nos seus objectivos, implica esquecer o facto de que, como no futebol, e da propria configuragao dinamica das pessoas que dependem, em qualquer momento, as decisoes, as intengoes e os movirnentos dos indivfduos. Isto e assim, em particular no caso das tensoes e de conflitos. Com frequencia, estes sao explicados em termos de intengoes e de objectivos de uma ou de outra parte. Talvez os sociologos estivessem mais aptos a contribuir para a compreensao destas tensoes e conflitos, que ate agora demonstraram ser incontrolaveis, se os investigassem como aspectos nao intencionais da dinamica de grupos.
CAPITULO VII A dinamica do desporto moderno: notas sobre a luta pelos result ados e o significado social do desporto Eric Dunning
1
Introdugao Este trabalho trata da orientagao que considero ser dominante no desporto moderno, a dimensao mundial: a tendencia no sentido de urna crescente competitividade, seriedade no modo de envolvimento e orientagao para os resultados1, observada em todos os mveis de participate mas, principalmente, no desporto de alto nivel. Dito de outra maneira, a orientagao a que me refiro abrange a gradual e, tudo parece indica-lo, inevitavel erosao das atitudes, valores e estruturas «amadoras» e a sua correlativa substituigao por atitudes, valores e estruturas que sao «profissionais» em qualquer sentido do termo. Analisada ainda de outro angulo, e uma orientagao segundo a qual o desporto se tern transformado, por todo o mundo, de instituigao marginal e pouco valorizada em instituigao central e muito mais valorizada, uma instituigao que para muitas pessoas parece ter um significado religiose ou quase religioso, na medida em que se tornou uma das principals, senao a principal, fonte de identificagao, significado e gratificagao das suas vidas. Na Gra-Bretanha desenvolveu-se, em varias ocasioes, resisten^ste artigo foi publicado, pela primeira vez, no Sportwissenschaft, Vol. 9,1979, 4, sob o titulo «The Figurational Dynamics of Modern Sport. Notes on the Sociogenesis of Achievement-Striving and the Social Significance of Sport». Baseia-se na analise apresentada por Eric Dunning e Kenneth Sheard, Barbarians, Gentlemen and Players, Oxford, 1979. Contudo, a analise aqui apresentada ultrapassa, de varias formas, aquela que af foi desenvolvida.
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cia a esta orientagao, talvez de maneira mais notavel atraves das tentativas efectuadas desde o final do seculo XIX para manter o raguebi como um desporto acima de tudo de praticantes amadores, baseado na organizagao voluntaria e num quadro de jogos «amigaveis», isto e, um desporto em que as regras se destinavam a garantir o prazer dos jogadores mais do que o dos espectadores, em que a organizagao nos clubes, aos niveis regional e nacional, se verificava em termos de ocupagao nao remunerada e onde nao existia uma estrutura de competigao formal, de «tagas» e «ligas». Contudo, a tentativa para manter semelhante estrutura foi um fracasso. Apesar de arduos esforgos dos grupos dirigentes, os encontros de alto nivel sao agora realizados perante grandes multidoes e foram introduzidas varias regras orientadas para os efeitos causados no espectador. Todos os anos os clubes participam tambem na competigao da Taga John Player e ainda numa quantidade de outras tagas locals, e existe um sistema de «tabela de merito», o qual constitui ligas em tudo menos no nome. Alem disso, o orgao de controlo nacional, a Rugby Football Union*, e muitos outros clubes dos niveis mais elevados dependem financeiramente das receitas provenientes da assistencia aos encontros e de patrocinios comerciais. A RFU** tambem empregava um grande numero de funcionarios permanentes e haviam repetidos rumores de jogadores que eram pagos. Em poucas palavras, neste como noutros casos, a resistencia foi eliminada, facto que sugere que a orientagao no sentido da crescente seriedade, ou, em alternativa, no sentido da «ausencia progressiva de espirito amador» no desporto, e um processo social inevitavel2. Fazer esta afirmagao nao e dizer que a resistencia morreu por completo. O conflito relativo ao problema de o desporto ser orientado para o divertimento, de ser amador, em oposigao a orientagao dominada pela preocupagao quanto a resultados, das formas profissionais e da concepgao de desporto permanece no raguebi e noutras modalidades, comprovando, por isso, que este processo nao e apenas uma realidade do passado. Alias, para alem de ser inevitavel e progressivo, o processo foi e continua a ser confiituoso, facto que 2
Para uma completa documentagao e analise deste processo, ver ibid. *Uniao de Raguebi. (N. da T.) **Sigla da Uniao de Raguebi. (N. da T.)
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constitui um exemplo do que Elias chamaria um processo social «cego» ou «nao planeado» de longa duragao3. Ou seja, nao constitui o resultado de acgoes intencionais de qualquer individuo unico ou grupo, mas, antes, o resultado inesperado do entrelagar de acgoes intencionais dos membros de varios grupos interdependentes, ao longo de muitas geragoes. O que pretendo nesta comunicagao e esbogar as linhas gerais de urna explicagao deste processo de longa duragao, isto e, uma interpretagao da forma como este foi e continua a ser, social ou estruturalmente, produzido. O que significa, por um lado, que irei procurar faze-lo em termos da estrutura imanente e da dinamica da relagao social per se e, por outro, evitando tres especies de explicagoes sociologicas que sao vulgares, nomeadamente: 1) explicates em termos de principles psicologicos ou de «acgao», ignorando os padroes de interdependencia em que os seres humanos vivem; 2) explicates em termos de ideias ou de crengas, que sao tratadas sob o ponto de vista conceptual como sendo «desinseridas», isto e, separadas dos quadros socials em que as ideias sempre se desenvolveram e expressaram; e, 3), explicates em termos de forgas socials abstractas e impessoais — por exemplo, forgas «economicas» — que sao reificadas e consideradas como se existissem de maneira independente dos seres humanos independentes que as originam. Para realizar esta tarefa irei aplicar o metodo «configuracional» desenvolvido por Elias4, e para explicar o que isso significa comegarei por rever o artigo sobre a «Dinamica dos Grupos Desportivos» que Elias e eu publicamos em 1966.
A «dinamica dos grupos desportivos» uma breve revisao A questao fundamental deste artigo e o facto de os grupos do desporto constituirem um tipo de configuragao social e de a sua dinamica ser mais bem conceptualizada como equillbrio de tensao, *The Civilizing Process, Oxfofd, 1978. Wkat is Sociology?, Londres, 1978.
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desencadeado entre opostos, no seio de um complexo global de polaridades interdependentes. O que significa que, considerado na perspectiva da sociologia, um desporto ou um jogo e uma «estrutura» ou «padrao» que um grupo de seres humanos interdependentes forma entre si. Esta estrutura, padrao ou, de forma mais correcta, configuragao compreende: 1) dois individuos ou equipas que cooperam uma com a outra numa rivalidade mais ou menos amigavel; 2) agentes de controlo, como arbitros e juizes de linha; e, 3), por vezes, mas nem sempre, um numero maior ou menor de espectadores. Contudo, a configuragao imediata formada por aqueles que participam directamente no jogo e nele se encontram presentes constitui parte de uma configuragao mais alargada que compreende, a um nivel, a organizagao do clube que escolhe as equipas e se responsabiliza por questoes como o fornecimento e a manutengao de facilidades de jogo, e, a outro nivel, os orgaos legislativos e administrativos que formulam as regras, asseguram e determinam os controlos oficiais e organizam o quadro competitivo global. Por seu lado, esta configuragao constitui uma parte da configuragao mais vasta que e composta pelos membros da sociedade como um todo e, por sua vez, a configuragao da sociedade existe tambem num quadro internacional. Em poucas palavras, desportos e jogos sao organizados e controlados, bem como observados e praticados, enquanto configuragoes sociais. Alias, nao se encontram socialmente separados e desinseridos sem relagao com a estrutura mais vasta de interdependencias sociais, mas intimamente entrelagados, muitas vezes de forma complexa, com a estrutura da sociedade em geral e com a maneira como esse tecido e entrelagado no ambito da estrutura das interdependencias sociais. O conceito da dinamica de grupos de desporto refere-se a jogos como processos, isto e, ao padrao fluido e dinamico formado, por assim dizer, como «corpo e alma» pelos participantes interdependentes no jogo em desenvolvimento. E um padrao que os praticantes formam com todo o seu ser, ou seja, intelectual e emocional, e nao so fisicamente. O conceito de equilibrio de tensao baseia-se numa analogia organica. Deste modo, exactamente como a mobilidade dos membros de um animal depende da tensao existente entre dois grupos de musculos equilibrados que sao, contudo, antagonistas, consideramos tambem que o processo de jogo depende da tensao entre dois jogadores ou grupo de jogadores, ao
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mesmo tempo antagonistas e interdependentes, que se mantem entre si num equillbrio dinamico. E este equillbrio de tensao e conceptualizado de uma maneira mais correcta se o considerarmos como um equillbrio desencadeado entre opostos, num complexo global de polaridades interdependentes. Entre estas — embora isto nao pretenda constituir uma lista exaustiva — especiflcamos as seguintes: 1) 2) 3) 4) 5)
A polaridade global entre duas equipas em oposigao; A polaridade entre ataque e defesa; A polaridade entre cooperagao e tensao entre as duas equipas; A polaridade entre cooperagao e competigao em cada equipa; A polaridade entre o controlo externo dos jogadores, a varios niveis (por exemplo, dirigentes, capitaes, colegas de equipa, arbitros, juizes de linha, espectadores e por ai adiante), e o controlo flexivel que o jogador exerce sobre si proprio, quer seja de um ou de outro sexo; 6) A polaridade entre identificagao afectuosa e rivalidade hostil em relagao aos oponentes; 7) A polaridade entre o prazer da agressao manifestada pelos jogadores e a limitagao imposta pelo padrao de jogo sobre esse prazer; 8) A polaridade entre flexibilidade e rigidez das regras.
Segundo a nossa hipotese, e o equillbrio de tensao entre polaridades interdependentes deste tipo que determina o «vigor» de um jogo, isto e, o facto de se revelar excitante ou aborrecido, permanecer um «combate simulado» ou irromper num confronto serio. De acordo com a nossa concepgao, encontra-se tambem implicito que semelhante equillbrio de tensao e, por um lado, uma consequencia da dinamica relativamente autonoma de configuragoes de jogos especificas e, por outro, uma consequencia da maneira como essas configuragoes estao articuladas na estrutura mais vasta das interdependencias sociais. Para explicar tal concepgao, este debate sera suficiente para os objectivos presentes. Penso que e frutuoso, ainda que, em termos retrospectives, me surpreenda, o facto de o problema depender de hipoteses que derivam de uma concepgao amadora do desporto, daquilo que Elias teria considerado como uma «avaliagao he-
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teronima»5 especifica. Estas hipoteses, embora nao nos desviem do caminho, limitam a nossa visao e impedem-nos de desenvolver mais a analise, pelo menos, num aspecto importante. Assim, para o demonstrar, e necessario, em primeiro lugar, recordar quais sao as nossas finalidades ao escrevermos sobre a dinamica dos grupos do desporto. Ao realizar semelhante trabalho nao procuramos contribuir apenas para a sociologia do desporto mas, antes, pretendemos sugerir aos sociologos, de uma maneira geral, que os grupos do desporto podem servir como um meio de esclarecimento acerca dos perigos que sobrevem, em primeiro lugar, do facto de se tratar conflito e consenso como opostos grosseiramente dicotomicos e, em segundo lugar, de se praticar o sofisma teleologico na concepgao da dinamica de grupos, de atribuir «finalidades» a constru^oes ideologicas sociais reificadas. Foi no decurso de uma discussao sobre estes problemas que se tornou nitida e discutivel a nossa dependencia dos valores amadores. Deste modo, numa passagem onde opunhamos os grupos do desporto aos grupos dos sectores industrials, administrativos e de outras associagoes envolvidos com aqueles que sao considerados, em geral, os aspectos «serios» da vida, escrevemos que a «finalidade» dos grupos do desporto, «se tern alguma, e dar prazer as pessoas»6. E prosseguimos rnencionando, como outros objectivos ou fins das pessoas envolvidas nos grupos do desporto, a luta por recompensas de tipo financeiro ou de estatuto e a possibilidade de proporcionar excitagao aos espectadores. Mas nao discutimos o facto de estas finalidades envolverem diferentes fbrmas de Valencia, isto e, de ligagoes ou, simplesmente, de relagoes entre o grupo de jogo imediato e os outros. Assim, tendo considerado todos os aspectos, a procura do prazer e dirigida para si proprio ou egocentrica, enquanto a luta pelo premio e a possibilidade de proporcionar excita^ao aos espectadores e dirigida para os outros e em diferentes sentidos. Isto sugere tres coisas: 5
O que significa que parte de uma avalia<~ao que reflecte os interesses e os valores de grupos especffkos dentro da sociedade global e que nao foi criada de maneira autonoma por nos, tendo em vista objectivos de analise sociologica. Ver o artigo de Norbert Elias «Problems of Involvement and Detachment», Britsh Journal of Sociology, Vol. 7, 1956, pp. 226-52. 6 Norbert Elias e Eric Dunning, «The Dinamics of Sport Groups with Special Reference to Football», British Journal of Sociology, Vol. 17, 1966, p. 79, e Cap. V deste volume.
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1) que estas finalidades emergem como o principal objective do desporto no quadro de diferentes padroes de interdependencia; 2) que podem ser incompativeis em circunstancias especificas e, deste modo, fonte de tensao e de confiito; e, 3), que a lista de polaridades interdependentes envolvida na dinamica dos grupos do desporto pode ser a seguinte: a) a polaridade entre os interesses dos jogadores e os interesses dos espectadores; (b) a polaridade entre «seriedade» e «jogo». Como espero demonstrar, estas duas polaridades estao intimamente relacionadas. Elas sao tambem cruciais na medida em que exercem efeitos ramificadores sobre outras polaridades interdependentes envolvidas na dinamica de um jogo. For conseguinte, se os jogadores participam num jogo como se fosse algo de serio, o nivel de tensao sera elevado e, para alem de um certo nivel, a incidencia de rivalidade hostil, quer dentro das equipas quer entre etas, parece ser igualmente elevada; isto e, de combate simulado, o jogo parece transformar-se em confronto «real» e os jogadores sao responsaveis por transgressao das regras, por realizarem actos de jogo «desleal». Ora, na medida em que os espectadores se identificam a serio com as equipas que apoiam, encontram-se menos sujeitos a enfrentar a derrota com serenidade de espirito, e podem agir de forma a procurar afectar o resultado do desafio. Deste modo, uma vez atingido um determinado nivel, ate podem invadir o campo numa tentativa para suspender por complete o encontro.
Algumas teorias do desporto moderno: Uma breve critica No sentido da elaboragao de uma teoria sociologica do desporto, a polaridade entre os interesses dos jogadores e os dos espectadores e a polaridade entre «seriedade» e «jogo» constituiram ja materia de reflexoes, entre as quais as mais notaveis foram: a perspectiva historico-filosofica de Huizinga7; a perspectiva interaccio7
J. Huizinga, Homo Ludens: a Study of the Play Element in the Culture, Londres,
1949.
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nista simbolica de Stone8; e a orientagao marxista de Rigauer9. Cada um deste autores afirma, a sua maneira, que o equillbrio entre estas duas polaridades foi perturbado no desporto moderno, e uma revisao critica do que escreveram podera, assim o espero, fornecer uma base de demonstragao da superioridade da abordagem configuracional de Elias, enquanto meio de conseguir uma analise «adequada ao objecto», aquilo que constitui uma orientagao principal no desporto moderno, isto e, uma analise que descreva e explique esta orientagao como tal, sem ornamento ideologico e distorgoes. O ponto principal da reflexao de Huizinga situa-se no facto de as sociedades ocidentais, antes do seculo XIX, conservarem um equillbrio entre as polaridades de seriedade e de jogo. Contudo, Huizinga afirma que a seriedade comegou a preponderar com a industrializagao, o desenvolvimento da ciencia e a emergencia de movimentos sociais no sentido da igualdade. Aparentemente, o facto de o seculo XIX ter presenciado o crescimento dos desportos em larga escala pareceria contradizer esta tese, mas Huizinga refere que, pelo contrario, este facto antes parece confirma-la, como o declara, «o antigo factor-jogo sofre uma atrofia quase completa». Como parte do declmio do elemento-jogo na moderna civilizagao em geral, os desportos experimentaram aquilo que Huizinga designa como uma «deslocagao fatal no sentido da seriedade». Como assinala, a distingao entre amadores e profissionais e o indicador nitido desta orientagao. Isto porque aos profissionais falta «espontaneidade e despreocupagao» e, na verdade, ja nao jogam enquanto, ao mesmo tempo, a sua execugao e superior, levando os amadores a sentirem-se inferiores e a empenharem-se num acto de imitagao. Para Huizinga, estes dois grupos afastam o desporto para cada vez mais longe da propria esfera do jogo, ate que ele se torna uma coisa sui generis, nem jogo, nem serio. Na vida social moderna, o desporto ocupa um lugar a margem e separado do processo cultural... tornou-se profano, «impio» sob todas as formas e sem liga^ao organica com a estrutura da sociedade, insignificante quando determinado pelo governo... Por mais impor-
8
G. P. Stone, «American Sports: Play and Dis-Play» em Eric Dunning (ed.), The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971. 9 B. Rigauer, Sport und Arbeit, Franckfurt, 1969.
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tante que possa ser para os jogadores ou para os espectadores, tornase esteril10.
Mas apesar de o relacionar, numa perspectiva descritiva, com urna orientagao geral e se preocupar com o que considera os efeitos destrutivos da interacgao entre amadores e professionals, Huizinga nao conseguiu referir-se a dinamica, a sociogenese da suposta tendencia no sentido da «esterilidade», «seriedade» e «caracter profano» do desporto moderno. Este problema e tratado de maneira mais adequada por Stone, que modifica as afirmagoes de Huizinga, sugerindo que os desportos modernos estao sujeitos a uma dupla dinamica, resultante, por um lado, da maneira como estes sao envolvidos nos «confrontos, tensoes, ambivalencias e anomalias» da sociedade mais alargada e, por outro, de algumas caracteristicas inerentes as suas estruturas. Neste ambito, apenas nos preocupa o ultimo aspecto desta analise. «Todo o desporto», afirma Stone, «e afectado pelos principios antinomicos de jogo e de espectaculo», isto e, encontra-se orientado de modo a originar satisfagao, quer nos jogadores quer nos espectadores. Mas o «espectaculo»* para os espectadores e, de acordo com Stone, a «ausencia de jogo», a destruigao do caracter de jogo no desporto. Sempre que grande numero de espectadores assiste a um acontecimento desportivo, este transforma-se num espectaculo, realizado em fungao dos espectadores e nao dos participantes directos. Os interesses dos primeiros precedem os interesses dos ultimos. O prazer de jogar e subordinado a realizagao de actos que agradem a multidao. O desporto perde assim a sua incerteza, a espontaneidade e o caracter de divertida inovagao, torna-se um tipo de ritual, previsivel, ate mesmo predeterminado nos seus resultados. A analise de Rigauer esta muito dependente das hipoteses marxistas quanto ao cunho de exploragao do trabalho nas sociedades capitalistas, uma categoria que este autor alarga a sociedades como a Uniao Sovietica devido ao facto, presume-se, de o autor as considerar, na sua propria natureza, um «capitalismo de Estado» ou «um Estado capitalista», e nao essencialmente diferentes das sociel
°Homo Ludens, p. 223 e seguintes. *Jogo de palavras em ingles sem inteira correspondencia em portugues: display designa exibigao, espectaculo, e dis-play, ausencia ou destruigao do jogo. (N. da T.)
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dades capitalistas de um tipo «mais puro». Rigauer afirma que o desporto e um produto «burgues», um tipo de recrea^ao procurada de inicio por membros da classe dirigente para o seu proprio prazer. Para estes, o desporto opunha-se ao trabalho, mas o aumento da industrializagao e a divulgagao do desporto entre as camadas mais baixas da hierarquia social levou a que assumisse caracterfsticas semelhantes as do trabalho. Deste modo, Rigauer defende que o desporto passa a caracterizar-se, tal como as formas de trabalho nas sociedades industrials, pela luta pelos resultados. Isto nota-se no movimento desencadeado para bater recordes, nas horas de treino fatigante realizado para o efeito e na aplicagao de metodos cientificos, como o treino «intervalado» e o «circuito» de treino, que constituem replicas do caracter de «alienagao» e de «desumanizagao» de uma linha de montagem. Ate mesmo nos desportos «individuals», o papel dos atletas tern sido reduzido a um simples elemento no ambito de uma constela^ao global de massagistas, treinadores, dirigentes e medicos, tendencia que e visfvel de forma dupla nas equipas de desportos onde o atleta moderno e obrigado a situar-se no quadro de uma divisao de trabalho fixa e a agir de acordo com as exigencias de um piano tactico prescrito. O proprio atleta pouco representa na elaboragao desse piano. O seu campo de ac^ao para o exercicio de iniciativa e, por correspondencia, limitado. Isto ainda e mais evidente no caso da administrate dos desportos, porque, cada vez mais, sao os funcionarios a tempo inteiro, e nao os proprios atletas, que decidem as questoes da politica a seguir. A consequencia, afirma Rigauer, e a restrigao constante do campo de acgao para a tomada de decisoes individuals e o dominio de uma elite burocratica sobre a maioria. Deste diagnostico concluiu-se que o desporto e, cada vez mais, incapaz de actuar como um meio de proporcionar alfvio para as tensoes do trabalho. Tornou-se, afirma Rigauer, exigente, orientado para os resultados e alienante. A crenga de que o desporto actua como uma oposigao ao trabalho sobrevive, mas e uma «ideologia disfargada» que esconde dos participantes a sua fungao «real», nomeadamente a de reforgar, na esfera do lazer, uma etica de trabalho duro, de resultados e de lealdade de grupo que e necessaria aos designios de uma sociedade industrial avangada. Nesta linha, de acordo com Rigauer, o desporto contribui para manter o status quo e para apoiar o dominio da classe dirigente.
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Estas tres analises —que o desporto se desenvolve de um modo mais «serio»; que o «espectaculo» se torna predominante em relagao ao «jogo» e o destroi; e que o desporto se esta a confundir com o trabalho — parecern, a primeira vista, apropriadas como descri£des de uma orienta<~ao principal do desporto moderno. Contudo, cada uma destas analises e trespassada por elementos de valor preconcebidos, lan^ando duvidas quanto ao seu rigor. Por exemplo, e dificil acreditar que os desportos tivessem conseguido manter a sua popularidade e, na verdade, aumenta-la, como de facto sucedeu em todo o mundo, se, de acordo com as aflrmagoes de Huizinga o factor jogo se tivesse atrofiado ou se, como sustenta Rigauer, os desportos se tivessem tornado tao alienantes e repressivos como o trabalho ou ainda, tal como Stone o pretenderia, o equilibrio houvesse sido tao seriamente perturbado. Evidentemente, e possivel que outras formas de obrigagao e, ou tambem, de recompensa, para alem das que dizem respeito ao prazer pessoal directo, possam ter desempenhado um papel importante na sua propagagao, reproduzindo por isso, em certa medida, os efeitos perniciosos da crescente seriedade do mundo envolvente. Nos argumentos apresentados mais adiante neste trabalho esta implfcito que este equilibrio de orientagoes opostas ocorreu de facto. Mas, por agora, e suficiente notar apenas que Huizinga, Stone e Rigauer nao dedicaram alguma atengao a esta possibilidade. Alias, Huizinga e urn romantico que anseia por uma sociedade «organica». Na sua analise esta tambem implfcito que a «democratizagao» dos desportos e a principal razao da sua «decadencia». Em resumo, sugere que a criatividade e os elevados padroes morais sao restritos as elites. A sua critica dos desportos modernos, embora o exagere, atinge os seus objectivos, em particular a sua afirma^ao quanto a ocorrencia de uma «deslocagao no sentido da seriedade». Apesar disso, para alem do facto de ter relacionado o desporto com o que considera ser uma tendencia geral, nao efectua nenhuma tentativa para analisar a sociogenese desta suposta transformagao, nem para a relacionar rigorosamente com as suas fontes sociais estruturais, Tais consideragoes podern aplicar-se a critica de Rigauer. Este autor nao esboga qualquer tentativa para analisar de forma empirica a maneira como teria sido provocada a alegada correspondencia estrutural entre o desporto e o trabalho, nem estabelece distingoes,
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quanto a este aspecto, entre formas de trabalho, formas de desporto e paises diferentes, nem tao-pouco faz qualquer tentativa para determinar se os diferentes grupos sao proponentes, por um lado, de valores orientados para os resultados ou, por outro, de valores que acentuam o prazer, conseguido, o caracter de lazer do desporto. Nao procura documentar de forma empirica as alteragoes que, como afirma, teriam ocorrido ao longo do tempo no equilibrio entre esses valores. Em vez disso, traga apenas um quadro sem expressao, afirmando que os desportos, em todos os paises industrials, desenvolveram caracteristicas semelhantes ao trabalho e, por isso, servem na mesma medida os interesses dos dirigentes. Ainda que, tal como Huizinga, coloque o acento nos efeitos perniciosos da democratizagao dos desportos, a analise de Stone e, numa perspectiva sociologica, mais satisfatoria. Contudo, ha razao para acreditar que a sua analise do equilibrio entre «jogo» e «espectaculo» nao atinge o fulcro do problema. Sob o ponto de vista configuracional, esta nao e apenas uma questao de presenga ou de ausencia de espectadores ou, no caso de os ultimos se encontrarem presentes, da interacgao entre eles e os jogadores, mas, de forma decisiva, de padroes de interdependencia entre os grupos participantes. Deste modo, a presenga dos espectadores num acontecimento desportivo pode induzir os jogadores a empenharem-se num espectaculo, mas nao os pode obrigar a faze-lo. Num desporto, e mais provavel que o elemento jogo seja seriamente ameagado quando os jogadores se tornam dependentes dos espectadores — ou de acgoes externas, tais como interesses comerciais de grupos ou do Estado —, de recompensas financeiras e de outras. Nestas condigoes, quer se trate de um desporto abertamente profissional ou dito amador, as pressoes no sentido de que os interesses dos espectadores assumam um papel importante, transformando o «jogo» em «espectaculo», parecem ser inevitaveis. De facto, ao examinar o desenvolvimento do desporto moderno, nem Huizinga, nem Rigauer, nem Stone trataram de forma satisfatoria a dinamica desse processo. As suas analises sao curiosamente, de certo modo, abstractas. Cada uma delas reclama uma tendencia relacionada com a industrializagao, mas dedicam diminuta ou nenhuma atengao a descoberta dos interesses de grupo ou a ideologia. Nas suas analises, quase parece — isto e verdade, em especial, para Huizinga e Rigauer — que os antigos valores e
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formas de desporto estariam a extinguir-se sem conflito. Espero que uma analise configuracional desta tendencia demonstre que semeIhante conceptualizagao e demasiado simplificada, sejam quais forem os seus meritos como primeira tentativa de elabora^ao de uma teoria sociologica da situagao dominante no desporto moderno. A seguir, procuro sugerir que a crescente seriedade do desporto moderno pode ser atribuida, em larga medida, a tres processos inter-relacionados, nomeadamente a formagao do Estado, a democratizagao funcional e a divulga^ao do desporto atraves do aumento da rede de interdependencias. Os dois primeiros sao, e claro, processos estruturais profundos, entrelagados com a extensao das cadeias de interdependent por meio das quais Elias explica, em especial, a sociogenese do processo de civilizagao11. Isto sugere que pode existir uma ligagao entre o processo de civilizagao e a tendencia para a crescente seriedade assinalada nas formas de participagao no desporto; por exemplo, esta pode ter resultado, em parte, da socializagao operada no quadro dos padroes mais restritos dos sistemas modernos de interdependencias sociais. O individuo moderno mais rigoroso e civilizado estara menos apto a participar, de modo espontaneo e sem inibigoes, no desporto do que os seus antepassados, que viveram num sistema de interdependencias sociais menos complexo e menos constrangedor. Parece aceitavel defender que isto seja assim. Apesar disso, continua a ser necessario descobrir que ligagoes existiam precisamente entre a crescente seriedade verificada nas formas de participagao, por um lado, e a formagao do Estado, a democratizagao funcional e o processo de civilizagao, por outro. Continua, tambem, por demonstrar a maneira como esta tendencia se encontrava relacionada com a expressao internacional do desporto e a forma como estes processos estruturais profundos podem fornecer uma explicagao mais satisfatoria do que a que foi dada por Huizinga, Rigauer e Stone12. U
O termo «democratizagao funcional» foi, de facto, forjado mais tarde por Elias para representar de forma mais adequada aquilo a que inicialrnente se havia referido simplesmente como «tensao estrutural crescente a partir de baixo». 12 Penso que a formagao do Estado, a democratizagao funcional e o processo de civilizagao podem explicar, tambem, esta tendencia de maneira mais satisfatoria do que a hipotese de Weber desenvolvida a este respeito; por exemplo, de que pode existir uma Wahlverwandtschaft ou uma «afinidade de eleigao» entre o protestantism© ascetico e serio e a participagao nos desportos segundo formas orientadas para os
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E para a primeira destas tarefas que me oriento, a partir deste momento. 4
Uma analise configuracional da tendencia para a crescente seriedade no desporto No sentido de proceder a demonstragao, reflectirei, em primeiro lugar, sobre o problema do ethos amador e procurarei explica-lo numa perspectiva sociogenetica, preocupando-me tambem com a sua dissolugao, isto e, com a tendencia para a crescente seriedade no desporto. Analisarei entao, de forma breve e em termos gerais, o desporto na Gra-Bretanha pre-industrial, a fim de mostrar as razoes por que foi possfvel, em semelhante configura^ao social, que grupos de todos os niveis da hierarquia social acedessem de modo equilibrado a formas de participate nos desportos «dirigidos para si proprio» ou «egocentricos», isto e, as razoes que os levaram a participar em desportos por divertimento. A seguir, tentarei demonstrar por que motivo, com a emergencia dos Estados nacionais, urbanos e industrials, as formas de desporto mais «dirigidas para os outros» se orientaram para os resultados e se desenvolveram esforgos no sentido da luta e da identidade e de recompensas pecuniarias. Finalmente, analisarei aquilo que considero ser o crescente significado social do desporto e o papel que representou, neste processo social global, a sua divulga^ao a nivel internacional. O ethos amador e a ideologia desportiva dominante na Graresultados, da mesma rnaneira que Weber aflrmava ter existido semelhante rela^ao entre o protestantismo ascetico e o «espirito do capitalismo». A priori', semelhante hipotese e plausfvel, mas conduz a diflculdades como a que resultou, pelo menos em Inglaterra, de os protestantes asceticos terem procurado banir totalmente desportos e passatempos. De qualquer modo, a hipotese de Elias e mais implicita e pode explicar potencialmente, a qualquer nivel, a etica protestante numa perspectiva sociogenetica. Alias, com a dissoluc.ao e transcendencia, em primeiro lugar, da dicotomia entre «o material» e o «ideal» e, ern segundo lugar, da dicotornia entre «causas» e «efeitos» — com a sua enfase na liga^ao ou nas constelac^oes de causas e de efeitos que interagem ou, de modo mais precise, com a sua preocupagao com o que e especificamente social, isto e, a dinamica das relates das configura^oes sociais. O metodo de Elias nao conduz as diflculdades metodologicas insuperaveis que a abordagem de Weber ocasiona.
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-Bretanha moderna e penso que estarei certo ao afirmar que e a dos grupos dirigentes do desporto em todo o mundo, por exemplo, os do Comite Olimpico Internacional e das suas varias delegates nacionais. O componente principal deste ethos e o ideal da pratica de desportos «por divertimento». Outros aspectos, como o fair play, a aderencia voluntaria as regras e a participate desprovida de qualquer interesse pecuniario sao, no essencial, aspectos subordinados, designados no sentido de facilitar a concretizagao desse fim — fazer das provas desportivas «combates simulados», atraves dos quais se pode dinamizar a excita^ao. O primeiro exemplo que encontrei do uso explicito deste ethos foi na crftica da tendencia para a crescente seriedade no desporto surgida no livro de Trollope publicado no ano de 1868: [Os desportos] estao a tornar-se excessivos e os homens que os praticam permitiram que Ihes fosse lembrado que o sucesso vulgar nao vale nada... Tudo isto provem do excesso de entusiasmo sobre o assunto, do desejo de alcangar com demasiada perfeigao um objectivo que, para ser agradavel, deveria ser um prazer e nao um negocio... [Esta] e a rocha contra a qual os nossos desportos podem talvez naufragar. Sempre que se torne pouco razoavel nas suas despesas, arrogante nas suas exigencias, imoral e egoista nas suas tendencias ou, pior do que tudo, pouco limpo e desonesto no seu movimento, desencadeara contra si a opiniao publica, face a qual sera incapaz de se manter13.
Evidentemente, seria provavel encontrar exemplos anteriores, mas esta mobilizac,ao dos valores amadores, com o acento tonico no prazer, como um ingrediente essencial do desporto surgiu num estadio inicial do desenvolvimento das modernas formas de desporto, num tempo em que, acima de tudo, o desporto profissional, tal como o conhecemos hoje, dificilmente existia. Entao era possivel a alguns homens ganhar a vida de um modo precario, como pugilistas profissionais, joqueis e jogadores de criquete, mas o facto de estes serem apenas um punhado de individuos sugere que a critica de Trollope era dirigida, em particular, a orientagao para a seriedade verificada no desporto amador. E e possivel que um dos seus principals alvos fosse aquilo a que os historiadores chamaram o 13
A. Trollope, British Sports and Pastimes, Londres, 1868, pp. 6-7.
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«culto dos jogos nas escolas publicas»14, um movimento que envolvia cinco componentes principais: 1) a tendencia para nomear e promover pessoal de acordo com um criterio desportivo mais do que segundo um criterio academico; 2) a selecgao de prefeitos, isto e, dos rapazes que assumiam os comandos nas escolas, com base, em especial, na capacidade demonstrada no desporto; 3) a elevagao do desporto a uma posigao dominante e, em certos casos, proeminente, no curriculo; 4) a racionalizagao educativa do desporto, em particular das equipas, como um instrumento de treino do caracter; e, 5), a participate de membros do pessoal docente na organizagao e nos jogos dos seus alunos. E provavel que semelhante movimento so pudesse ter nascido nas escolas da elite, na maioria das quais os alunos nao dependiam de uma educagao academica para as suas carreiras futuras. Mas, para os nossos objectivos presentes, isso e menos relevante do que o facto de o culto dos jogos nas escolas publicas demonstrar, de forma nitida, que a tendencia para a crescente seriedade no desporto na Gra-Bretanha foi, nos seus estadios iniciais, um fenomeno relacionado com o desporto amador e nao com o desporto profissional, e que, de inicio, nao resultou do conflito entre amadores e profissionais alegado por Huizinga. De facto gostaria de apresentar a hipotese de que o ethos amador se encontrava articulado a uma ideologia oposta a tendencia para a crescente seriedade, e que recebeu a sua formulagao explicita e detalhada quando, como parte dessa tendencia, as formas modernas do desporto profissional comegaram a emergir. O ethos amador existia, sob uma forma relativamente rudimentar, na Gra-Bretanha, antes da decada de 1880. Isto e, a moral amadora era um con junto de valores amorfo, articulado de maneira vaga no que diz respeito as fungoes do desporto e aos padroes que se acreditava serem necessarios a sua realizagao. Contudo, com a ameaga introduzida pela incipiente profissionalizagao dos novos desportos como o futebol e o raguebi, processo que comegou no Norte e no Centro e que atraiu para o ambito do desporto, — que ate ai era uma area reservada exclusiva da «elite das escolas publicas»15, a classe dirigente nacional, — os grupos de baixo estatuto da classe media e das classes de trabalhadores, apoiados regional14
Citado por M. Marples, A history of Football Londres, 1954. Chamei a classe dirigente britanica dos finals seculo XIX a «elite das escolas
15
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mente, como organizadores, jogadores e espectadores, o ethos amador cristalizou-se, entao, como uma ideologia elaborada e articulada. Isto e, constitufa uma representagao colectiva, desenvolvida pelos membros de uma colectividade em oposigao aos membros de outra que consideravam uma ameaga, quer em relagao a sua proeminencia organizativa e de jogo quer quanto as formas de desporto, tal como entendiam que devia ser praticado. Em resumo, estou a sugerir que, embora a elite das escolas publicas tentasse manifestar a sua afirmagao de acordo com os termos especificos do desporto, pretendendo que estaria apenas interessada em preservar aquilo que considerava como essencial, ou seja, o caracter do desporto «orientado para o divertimento», hostilidades de classe e regionais e o ressentimento quanto a perda do seu antigo dominio desempenharam um papel importante na sua articulagao da moral amadora como uma ideologia explicita. Contudo, se estou certo, a situagao social em que eles se encontravam era cada vez mais inadequada a escala global, a realizagao descontrolada de formas de desporto dirigidas para si proprios, orientadas para o prazer. Assim, ao articular e mobilizar a moral amadora, em reacgao a ameaga crescente das classes mais baixas, procuravam conservar formas de participagao desportiva que consideravam ser um direito seu, enquanto membros de uma classe dirigente, e que tinham sido de facto possiveis para os grupos dirigentes e mesmo para grupos subordinados na era pre-industrial, mas que se tornavam claramente impossiveis de manter. O fundamento desta perspectiva provem do facto de muitos dos «abusos» que a elite nas escolas publicas afirmava detectar no desporto professional serem, tambem, evidentes no culto dos jogos nas escolas que tinham frequentado. Dados suplementares — embora constituissem excepgoes sintomaticas, como a equipa de fiitebol Os Corinthians16 — provem do facto de a elite das escolas publicas publicas» de modo a sublinhar o papel destas escolas na unificac.ao das fracgoes burguesas instaladas, recem-formadas e em ascensao. 16 Os Corinthians eram uma equipa amadora, formada nos finais do seculo XIX e recrutada nas escolas publicas e nas Universidades de Oxford e de Cambridge, e que conseguiu manter-se, durante algum tempo, em competigao com os profissionais. Representaram a «excepc.ao sintomatica» a tendencia geral para a exclusividade da elite das escolas publicas, dado que se constituiram deliberadamente para combater o sucesso crescente das equipas proflssionais e para celebrar e conservar o apreciado ideal amador. Contudo, ao adoptarem padroes de recrutamento que nao
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se ter retirado de um numero cada vez mais elevado de desportos, recolhendo-se nos seus proprios circulos. Revelavam, assim, o receio de serem derrotados por profissionais, que jogavam com a finalidade de obter a gloria, de serem reconhecidos como desportistas de sucesso, tanto quanto o foram apenas por divertimento. Esta tendencia para a separagao foi provocada, decerto e em parte, devido a circunstancia de os confrontos entre as equipas profissionais e amadoras terem sido, muitas vezes desequilibrados e caracterizados por ausencia de vivacidade, pela discrepancia que, de um modo geral, existia entre jogadores a tempo inteiro que desempenhavam uma profissao e jogadores a tempo parcial, que apenas participavam numa actividade de lazer. Mas o facto de ter ocorrido, alem disso, uma tentativa de separagao no ambito do proprio desporto amateur*, realizada pelos membros da elite das escolas publicas, sugere que algo mais havera a acrescentar. Isto e, nao desejavam submeterse sistematicamente a possibilidade de derrota perante as equipas amadoras das classes trabalhadoras e, ao retirarem-se para os seus proprios circulos exclusivos, demonstraram nao so preconceitos de classe mas, tambem, que participavam no desporto dominados pelo caracter de seriedade e com a finalidade de veneer — na sua hierarquia de valores desportivos, o objective do sucesso tinha precedencia relativamente ao objectivo de participate inicial, que era por divertimento. Uma analise configuracional do desporto no seculo XVIII, na Gra-Bretanha, fornece dados adicionais a esta interpretagao. De facto, a configuragao social global da Gra-Bretanha no seculo XVIII, o padrao geral das interdependencias sociais na Gra-Bretanha pre-industrial, em geral, era um modelo em que se verificava uma diminuta pressao estrutural sobre os grupos, qualquer que fosse o seu estatuto, no sentido de se orientarem para o sucesso eram especificos de qualquer local ou instituic.ao, teriam incorrido em «abusos» relativamente aquilo que era assegurado pelos proponentes do ideal amador e que seria destruido pelo profissionalismo. Ou seja, da mesma maneira que as equipas profissionais, que eram recrutadas a partir de uma base nacional, os Corinthians afastaram-se de um padrao de representagao dos desportos segundo o qual equipas especificamente locais e institucionais, recrutadas a partir de «comunidades» de varios generos, eram consideradas uma caracteristica essencial do «autentico» desporto. *Em Frances no original. (N. da T.)
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e para os resultados, isto e, tendo ern vista formas de participa^ao «dirigidas para os outros», quer no desporto quer noutros sectores. For exemplo, o grau relativamente baixo de centralizagao do Estado e de unificagao nacional significa que os «jogos populares», os jogos das pessoas comuns, se praticavam num quadro de isolarnento regional em que a competigao ocorria de forma tradicional, entre aldeias contiguas e cidades ou outras zonas da cidade. Mas nao existia um quadro de competigao nacional. Neste aspecto, a aristocracia e a pequena nobreza constituiam uma excepgao. Estas eram e comprendiam-se como classes nacionais, cornpetindo entre si a nivel nacional. Em resultado disso, nas suas actividades desportivas restritas surgiu um certo grau de pressao competitiva orientada para os outros. Mas nao so a nivel geral, tambem no ambito desportivo, nao se submeteram a qualquer pressao efectiva vinda de cima ou de baixo. Neste estadio do desenvolvimento da sociedade da Gra-Bretanha, o nivel de formagao do Estado era relativamente reduzido e, na verdade, a aristocracia e a pequena nobreza «eram um Estado», isto e, capazes de utilizarem, de facto, o aparelho de Estado no seu proprio interesse. Tinham estabelecido a precedencia do parlamento sobre a monarquia e dominado uma sociedade onde o equilibrio de poder entre classes envolvia flagrantes desigualdades. Em consequencia dessa situagao, nao existia um desafio efectivo a sua posigao enquanto classe dominante. O caracter solido do seu domfnio conduziu a um elevado nivel de seguranga da sua parte quanto ao estatuto, e isso significava, por sua vez, que os aristocratas e os cavalheiros nao estavam, de modo algum, ameagados pelo contacto com outros individuos que, na perspectiva social, eram subordinados. Fosse qual fosse o contexto, todos sabiam quern era o senhor e assim agiam em conformidade — o grande desequilibrio entre classes conduzira a padroes de deferencia por parte dos subordinados. Esta seguranga de estatuto estendia-se a esfera do lazer, incluindo o desporto. A aristocracia e a pequena nobreza participavam em jogos populares no contexto de organiza^ao e de pratica, usando a sua influencia para desenvolverem formas de criquete profissionalr combates de boxe e corridas de cavalos. O tipo de profissao desportiva que se desenvolveu sob tais condigoes baseava-se na subordinagao inequivoca do profissional ao seu patrono e na total dependencia quanto aos riscos de vida que ligavam o primeiro ao ultimo.
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Perante esse tipo de profissionalismo, nenhuma ameaga se colocava aos interesses e valores da classe dirigente. O desporto professional nao era suspeito, nem na perspectiva moral nem na perspectiva social, nao havendo necessidade de lutar ou esconder o facto de que se poderia obter beneficio pecuniario a partir dos jogos, quer atraves de um salario quer de apostas realizadas com base nos resultados dos confrontos. Acima de tudo, a aristocracia e a pequena nobreza podiam participar no desporto por divertimento jogando entre si ou com os seus assalariados; isto e, a sua situagao social — o poder e a relativa autonomia de que gozavam — implicava que podiam desenvolver formas de participate desportiva dirigidas para si proprios ou egocentricas e, embora nao fossem obrigados a desenvolver a moral amadora como uma ideologia explicita, estiveram proximo de ser amadores no sentido «ideal e particular» do termo. Se este diagnostico esta correcto, pode concluir-se que a configuragao social global da Gra-Bretanha pre-industrial, e penso que se pode afirmar, de outras sociedades pre-industriais, nao conduzia a criagao de intensa pressao nas relagoes desportivas, quer aquelas que se realizavam entre grupos dirigentes e grupos subordinados quer no seio de cada uma delas. Dai que a sociogenese da pressao, no sentido de as formas de participagao nos desportos se orientarem para os outros e para a luta pelos result ados, deva ser procurada na configuragao social elaborada em conjungao com a industrializa^ao. Tentarei agora chamar a atengao para as ligagoes entre estes dois processes sociais, isto e, entre a industrializa^ao e a tendencia de longa duragao, no sentido do aumento da seriedade, do comprometimento no desporto e dos esfor^os desenvolvidos tendo em vista o resultado. De forma resumida, e em antecipagao a analise que se segue, pode dizer-se que a chave para esta relagao se situa no processo que Elias designa por «democratizagao funcional» — a mudanga que estabelece a igualizagao no equilibrio de poder, no interior dos grupos e entre estes, que ocorre de modo contingente no processo inter-relacionado da formagao do Estado e do alargamento das cadeias de interdependencia. Mas antes de explicar o que e que isso significa e necessario confrontar a abordagem de Elias sobre a divisao do trabalho com a de Durkheim.
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A industrializagao e o desenvolvimento de formas de desporto orientadas para os resultados Segundo Durkheim, a estrutura das sociedades industrials e caracterizada por uma grande espessura «material» e «moral» ou «dinamica», isto e, por uma populagao altamente concentrada e por um elevado grau de interacgao social entre individuos e grupos17. Este autor acreditava que as pressoes competitivas verificadas em semelhante sociedade seriam reduzidas e, talvez, eliminadas pela divisao do trabalho. Em relagao a este ultimo fenomeno, Durkheim sugeria que ele se processaria por duas vias principals: ao criarem-se «lagos de interdependencia» e libertando-se as tensoes originadas na competigao, orientando-as para as esferas profissionais especializadas. Contudo, a sua analise possui uma lacuna fundamental, que deriva da sua incapacidade de reconhecer que a interdependencia funcional ou divisao do trabalho nao conduz, necessariamente, a uma integragao harmoniosa e cooperativa, mas antes, mesmo nas suas formas «normais», ao conflito e ao antagonismo. Em resumo, o seu conceito de sociedade, baseado na «solidariedade organica», e utopico. Pelo contrario, o que e proposto por Elias e um conceito de interdependencia mais realista. De acordo com Elias, a transformagao social de longa duragao que e referida, de um modo geral, por meio de expressoes que designam aspectos especificos, como «industrialization «crescimento economico», «alteragao demografica», «urbanizagao» e «modernizagao politica», e, de facto, uma transformagao de longo prazo da estrutura social total18. E considera que um dos aspectos mais significativos, sob o ponto de vista sociologico, desta transformagao social total consiste na emergencia de «cadeias de interdependencia» mais extensas e mais diferenciadas, isto e, envolvendo a emergencia de maior especializagao funcional e a integragao de grupos diferenciados, a partir das suas fungoes, no quadro de redes mais vastas. Alem disso, de forma concomitante a este facto, de 17
E. Durkheim, The Division of Labour in Society\ Nova lorque, 1964. What is Sociology?', pp. 63 e seguinte, 99 e seguinte.
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acordo com Elias, ocorre, nesse caso, uma mudanga no sentido de um decrescimo de poder diferencial nos grupos e entre estes, ou seja, de maneira mais especifica, observa-se uma mudanga no equilibrio de poder entre dirigentes e dirigidos, classes sociais, homens e mulheres, geragoes, pais e filhos. Este processo efectua-se porque os representantes de papeis especializados estao dependentes uns dos outros e podem, por esse motivo, exercer controlo reciproco. As hipoteses de poder dos grupos especializados sao mais elevadas se estes se conseguem organizar, pois, deste modo, encontram-se em condigoes de quebrar, atraves de acgao colectiva, o vasto sistema de interdependencias. Segundo Elias, e a partir de formas como esta que a crescente divisao do trabalho e a emergencia de cadeias de interdependencia mais extensas conduzem a uma dependencia reciproca e, a partir dessa altura, a padroes de «controlo multipolar» nos grupos e entre estes, isto e, a uma configuragao social global em que individuos especificos e grupos estao sujeitos a uma crescente pressao efectiva da parte dos outros. Semelhante pressao e real devido as dependencias reciprocas que estao envolvidas. Para a analise presente, a relevancia desta teoria, aparentemente simples, e miiltipla. Inerente a estrutura moderna das interdependencias sociais situa-se a procura de desporto inter-regional e representative. Este desejo nao surgiu nas sociedades pre-industriais devido a ausencia de uma uniflcagao nacional real e a existencia de meios de transporte e comunicagao deficientes, pelo contrario, significa que nao existiam regras comuns e quaisquer meios atraves dos quais os desportistas de areas diferentes se pudessem reunir. Ao mesmo tempo, o «bairrismo» inerente a semelhantes sociedades significa que so os grupos entre os quais existia contiguidade, em termos geograficos, eram compreendidos como rivais potenciais. Contudo, as sociedades industrials sao diferentes em todos estes aspectos. Encontram-se relativamente unificadas sob o ponto de vista nacional, possuem meios de comunicagao e de transporte superiores, desportos com regras comuns e um grau de «cosmopolitismo» que denota serem os grupos locais entendidos como rivais potenciais, pelo que anseiam por se comparar com outros que nao sejam geograficamente adjacentes. Deste modo, tais sociedades sao caracterizadas por elevados niveis de interacgao desportiva entre areas diversas, um processo que conduz a estratifica-
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gao interna dos desportos especificos — a uma classificagao hierarquica de desportistas do sexo masculino e do sexo feminino e de equipas desportivas, com os que representam os principais elementos que se encontram nos nfveis mais elevados. Por sua vez, isto significa que as pressoes reciprocas e os controlos que actuam nas sociedades urbanas industriais reproduzem-se, geralmente, na esfera do desporto. Em resultado disso, os desportistas de alto nivel, homens e mulheres, nao podem ser independentes e jogar por divertimento, sendo obrigados a dirigirem-se para os outros e a participar nos desportos com seriedade. Isto e, nao podem jogar para si proprios, sendo forgados a representar unidades sociais mais vastas, como cidades, distritos e paises. Como tal, fornecem-lhes material e, ou tambem, recompensas de prestigio, facilidades e tempo para o treino. Em contrapartida, espera-se que realizem uma «actuagao-desportiva», isto e, o tipo de satisfagoes que os dirigentes e os «consumidores» do desporto exigem, nomeadamente o espectaculo de um confronto excitante que as pessoas se dispoem a pagar para assistir ou a validagao, atraves da vitoria, da «imagem» e da «reputagao» da unidade social com a qual se identificam esses dirigentes e «consumidores». Todas as pessoas envolvidas e o quadro competitivo local, regional, nacional e internacional do desporto moderno trabalham no mesmo sentido. Tudo isto significa que e necessario uma elevada e permanente motivagao para a pratica, planeamento a longo prazo, rigoroso autocontrolo e renuncia a gratificagao imediata, por outras palavras, uma pratica constante e treino de modo a atingir-se e a situar-se nos niveis mais elevados. E necessario tambem um certo grau de controlo burocratico e, por isso, os desportistas subordinam-se ainda num outro aspecto. Em cada uma destas formas, a configuragao social e o padrao de dependencias intergrupo, caracteristico de um Estado-nagao, urbano e industrial, promovem obrigagoes que actuam no sentido oposto a realizagao pratica do ethos amador, que tern o seu acento tonico no prazer enquanto objectivo principal do desporto. Ou, melhor, origina constrangimentos que actuam contra a criagao de um prazer imediato, de curta duragao, que vao contra a pratica desportiva encarada como um «fim em si mesmo», levando, pois, a sua substituigao, quer para os jogadores quer para os espectadores, por objectives a longo prazo, como a vitoria numa liga ou taga,
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dirigindo-se para as satisfagoes relacionadas, em especial, com a identidade e o prestigio. Alem disso, tais constrangimentos nao se encontram limitados ao desporto de alto nivel, tendo repercussoes nos niveis mais baixos da actividade desportiva. Isso deve-se, em parte, ao facto de os desportistas masculinos e femininos de alto nivel constituirem um grupo de referenda promovido pelos meios de comunicagao social e que estabelece padroes que os outros tentam seguir. Isto tambem e, em parte, a consequencia das pressoes exercidas pela competigao desenvolvida em busca dos premios materiais e do prestigio que se pode obter atraves do acesso ao nivel mais elevado. Contudo, isso nao se deve, de modo algum, somente a pressoes criadas unicamente no ambito do desporto, mas e tambem, e talvez em especial, a consequencia de ansiedades e de insegurangas profundamente enraizadas e, em geral, subtilmente criadas numa sociedade caracterizada por pressoes e formas de controlo multipolares. Uma sociedade em que os alicerces de identidade e de estatuto se relacionam com formas tradicionais de relagoes de classe, autoridade, sexo e idade, corroidas pela democratizagao funcional, ou seja, pelo processo de igualizagao que, de acordo com Elias, e inerente a divisao do trabalho.
Algumas sugestoes quanto ao aumento do significado do desporto Procurei tragar ate aqui as linhas gerais da explicagao configuracional da tendencia para o envolvimento cada vez mais serio no desporto. Este desenvolvimento, no decurso do qual o significado social se acentuou, continua a nao ser debatido. No contexto presente, constitui um problema complexo e so pode ser tratado de forma breve. Para alem da alteragao de equilibrio entre trabalho e lazer, tanto ideologico como factual, pode destacar-se um processo que realgou o significado social das actividades de lazer em geral, uma constelagao de, pelo menos, tres aspectos inter-relacionados da moderna configuragao social emergente que tera contribuido para o aumento do significado do desporto, norneadamente: 1) o desenvolvimento do desporto como um dos principals meios de criagao
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de excitagao agradavel; 2) a transformagao do desporto, em termos de fungao, num dos principals meios de identificagao colectiva; e, 3), a emergencia do desporto como uma fonte decisiva de sentido na vida de muitas pessoas. Elias e eu proprio sugerimos noutro lugar que o desporto e um facto de lazer «mimetico», no qual pode produzir-se excitagao agradavel e que cumpre, a este respeito, uma fungao de «destruigao da rotina»19. Nao existe, contudo, nenhuma sociedade sem formas de controlo e de rotina ou, como Elias o afirma, nenhum «ponto-zero» de civilizagao. Neste sentido, a necessidade de destruigao da rotina e, por certo, na perspectiva social, um dado universal. Mas as sociedades urbanas e industrials altamente rotineiras e civilizadas sao caracterizadas por pressoes e formas de controlo multipolares. De acordo com esta situagao, os seus membros sao forgados a exercer, de forma contmua, um elevado grau de restri^ao emocional na sua vida comum e na vida quotidiana, tendo, em consequencia disso, a necessidade, que e particularmente intensa em tais sociedades, de actividades de lazer caracterizadas pela possibilidade de destrui^ao da rotina, como sao os desportos. Contudo, este processo de destruigao da rotina, este despertar socialmente consentido de emogoes em publico, esta sujeito a formas de controlo de civilizagao. Isto e, o desporto e um enclave social quer para os espectadores quer para os jogadores, onde a excitagao agradavel pode ser produzida sob uma forma que e socialmente limitada e controlada. Contudo, a excitagao criada pode ser intensa, em especial nos acontecimentos de desportos de alto nivel que atraem grandes multidoes, e, salvo o devido respeito a Huizinga, que afirma que o desporto se tornou «profano», e isto, talvez, que constitui a base empirica para a ideia divulgada do desporto como um fenomeno «sagrado». Durkheim afirmava que a excitagao colectiva, ou a «efervescencia» produzida nas cerimonias religiosas dos aborigenes australianos, constituia a principal fonte empirica da sua ideia quanto ao dominio do «sagrado»20, e nao parece inverosimil supor que a criagao de «efervescencia colectiva» nos acontecimentos desportivos se encontra na raiz de um facto que e comum, pelo
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Ver Cap. I deste volume. The Elementary Forms of the Religious Life, Londres, 1976.
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menos na Gra-Bretanha, isto e, referir os campos de futebol e de criquete, em particular os que sao utilizados nos encontros mais importantes, como o relvado «sagrado» ou «consagrado». De facto, nao seria ir longe de mais sugerir que, pelo menos para alguns grupos na sociedade actual, o desporto se tornou uma actividade quase religiosa e que, encarado numa perspectiva da sociedade, o desporto veio, em certa medida, preencher a lacuna aberta na vida social pelo declmio da religiao. Urn exemplo extremo, mas nao menos comprovativo deste caracter quase religioso do desporto moderno, e fornecido pelo facto de se ter tornado, aparentemente, uma tradigao em Liverpool o langamento das cinzas dos adeptos falecidos do FC de Liverpool sobre o campo de Anfield; assim, parecem ter o desejo de permanecer, mesmo para alem da morte, identificados com o «altar» ou «templo» onde «adoraram» durante a sua vida. Mas, mesmo na ausencia deste exemplo extremo, e evidente que jogar e/ou observar um ou outro desporto veio a constituir um dos principals meios de identificagao colectiva na sociedade moderna e uma das principals fontes de significado na vida de muitas pessoas. Em resumo, nao e de modo algum irreal sugerir que o desporto se esta a tornar cada vez mais a religiao secular da nossa epoca, tamb^m cada vez mais secular. E provavel que o caracter de oposigao inerente ao desporto, isto e, o facto de se tratar de uma luta pela vitoria entre duas ou mais equipas, ou entre dois ou mais indivfduos, explique a sua proeminencia como um foco de identificagao colectiva. Isto significa que o pr6prio desporto proporciona a identifica<~ao de grupo, mais precisamente a formagao da ideia de se «pertencer ao grupo» e de estar «fora do grupo», de «o nosso grupo» ou de < como os niveis da cidade, distrito ou pais. O elemento de oposigao e crucial, desde que este sirva para reforgar a identificagao de se pertencer ao grupo, isto e, um sentido de grupo de «sermos nos» ou de unidade, entretanto fortalecido pela presen^a de um grupo que e entendido como o «deles», a equipa oposta e respectivos apoiantes, quer seja local ou nacional. Na verdade, no contexto dos Estados-nagoes pacificados no piano internOj ou seja, em sociedades onde o Estado estabeleceu um monopolio efectivo sobre o direito de usar a forga fisica, o desporto proporcionou a unica ocasiao em que unidades sociais complexas e impessoais, como, por exemplo, as cidades, podem
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unir-se. De forma identica, a nivel internacional, os acontecimentos desportivos como os Jogos Olimpicos e o Campeonato do Mundo proporcionam as unicas ocasioes, em tempo de paz, durante as quais na^oes inteiras podem unir-se com regularidade e de forma visivel. A divulga^ao do desporto a nivel internacional tern implicagoes no aumento da interdependencia internacional e da existencia, com varias excepgoes notaveis, de uma paz mundial fragil e instavel. Confrontos como os Jogos Olimpicos permitem aos representantes das diferentes nagoes competirem entre si sem se matarem, ainda que o grau em que semelhantes provas de combates simulados se transformaram em confrontos «reais» esteja dependente, entre outros, do nivel de tensao preexistente entre os Estados-na^oes envolvidos. E, evidentemente, e para que se participe de facto ao mais alto nivel de competigao desportiva que se exigem aos atletas os mais elevados niveis de permanente motivagao no sentido dos result ados, do autocontrolo e da negagao de si proprios. Isto conduz-me a questao final, nomeadamente: que a pressao social exercida sobre os atletas, em todos os paises do mundo, no sentido de lutarem pelo exito em competigoes nacionais, constitui uma fonte suplementar da destruigao do elemento jogo no desporto. Alem disso, e tambem o aumento do prestigio nacional que o exito no desporto internacional pode proporcionar que contribui, em especial, para a tendeticia que se verifica em rela^ao ao envoivimento do Estado no desporto, o que Huizinga lamentava. Argumentou-se que o desporto constituia um substitute possivel para a guerra, mas tal ideia envolve o facto de se considerar o desporto como uma abstrac^ao, como alguma coisa independente e separada da configuragao de seres humanos interdependentes que nele participam. Esta e a questao fundamental, nomeadamente: se as configuragoes formadas por seres humanos interdependentes, no desporto e em outro ambito qualquer, conduzem a cooperagao ou a rivalidade amigavel ou se criam conflitos serios. Este e um tema em relagao ao qual ainda mal se iniciou a investigagao sociologica. Contudo, existe, pelo menos, uma excepgao: o trabalho de Norbert Elias, sob a orientagao do qual procurei formular esta comunicagao.
CAPITULO VIII As liga^oes socials e a violencia no desporto Eric Dunning
1 Introdugao Acredita-se hoje plenamente que vivemos num dos periodos mais violentos da historia1. Na verdade, talvez seja justo que, pelo menos nas sociedades ocidentais, o medo de nos encontrarmos actualmente a softer um processo de «descivilizagao» — quanto a violencia fisica e mesmo em relagao a outros aspectos — esta profundamente impresso no Zeitgeist* contemporaneo, constitui uma das crengas dominantes do nosso tempo. Eysenck e Nias, por exemplo, referem-se a «um niimero de factos conhecidos» que, segundo afirmam, «contribuiram para persuadir muitas pessoas de que a civilizagao em que vivemos pode estar em riscos de ser submersa por uma avalanche de crime e de violencia»2. O psicologo Peter Marsh afirma que tentativas recentes para extirpar a violencia conduziram a uma diminuigao das oportunidades para a manifestagao da violencia ritual socialmente construtiva — aquilo que designa aggro —, tendo, em consequencia, aumentado a violencia incontrolada e destrutiva. Houve, escreveu, «um desvio da vvboa" para a vvma" violencia. Os homens sao possivelmente tao agressivos como sempre o foram, mas a agressao, bem como a sua expres^ste artigo foi publicado inicialmente em Jeffrey H. Goldstein (ed.), Sports Violence, Nova lorque, 1983, sob o titulo «Social Bonding and Violence in Sport: a Theoretical-Empirical Analysis». Agradego a Johan Goudsblom os seus valiosos comentarios a uma versao anterior. 2 H. J. Eysenck e K. D. Nias, Sex, Violence and the Media, Nova lorque, 1978. *Espirito do tempo. (N. da T.)
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sao, tornou-se menos ordenada e, por esse motive, mais sangrenta»3. Um aspecto nao insignificante da crenga de que estamos a viver nurn periodo excessivamente violento e o sentimento bastante disseminado de que, actualmente, a violencia esta a aumentar nos desportos e em conjungao com os mesmos. Yiannakis, Mclntyre, Melnick e Hart, por exemplo, afirmam que «existem poucas duvidas de que, no desporto, tanto a violencia dos espectadores como a dos jogadores esta a aumentar para um nivel alarmante»4. O sociologo alemao Kurt Weis parece concordar com este diagnostico5. Afirma que a suposta tendencia para a crescente violencia no campo dos desportos e entre espectadores desportivos representa, pelo menos, a nega^ao parcial da teoria de Elias sobre o «processo de civilizagao»6. E com este problema — as implicates desta suposta tendencia em relagao a teoria de Elias — que me preocuparei neste capitulo. Por razoes que hao-de sobressair, discordo da perspectiva de certo modo simples segundo a qual os desportos e a sociedade contemporanea estao a tornar-se, sem qualquer ambiguidade, mais violentos. Discordo, tambem, da ideia de que esta suposta tendencia representa uma negagao parcial da teoria de Elias. Ao mesmo tempo, pretendo analisar o facto de acordo com o qual a produgao da violencia nos desportos e na sociedade contemporanea, num dado momento, levanta numerosos problemas complexos e so sera possivel resolve-los, de forma mais adequada do que no passado, por meio do desenvolvimento dos aspectos relevantes da teoria do processo de civilizagao, para alem do nivel alcangado pelo proprio Elias. E este o objective que estabeleci neste capitulo. No sentido de nos orientarmos, sera necessario levantar um certo numero de problemas sociologicos mais vastos, Especificamente, o que irei fazer e o seguinte;
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P. Marsh, Aggro: the Illusion of Violence, Londres, 1979A. Yiannakis, T. D. Mclntyre, M. J, Melnick e D. P. Hart (eds.), Sport Sociology: Contemporary Themes, Dubuque, Iowa, 1976. 5 K. Weis, «Role Models and the Social Learning of Violent Behaviour Patterns», Actas do International Congress of Physical Activity Sciences, Quebec, 1976, pp. 511-24. 6 Para esta teoria ver as obras de Norbert Elias The Civilizing Process, Oxford, 1978, e State Formation and Civilization, Oxford, 1982. 4
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1) Tentar aprofundar a teoria de Elias, atraves da distingao entre tipos de violencia humana. 2) Demonstrar, na esteira de Elias, que se verificou uma transformagao civilizadora de longa duragao, no ambito da violencia, nas sociedades mais avangadas da Europa ocidental. Procurarei situar-me para alem de Elias, encarando esta transformagao como uma mudanga no equilfbrio entre algumas das formas de violencia distinguidas na tipologia. 3) Sugerir que a alteragao no equilfbrio entre as formas de violencia que podem ser empiricamente observadas se pode atribuir, em larga medida, a uma transformagao observavel nas formas de controlo social. Utilizarei o conceito social no sentido sociologico, introduzido por Durkheim e elaborado por Elias, e nao no sentido «sociobiologico» defendido, por exemplo, por Tiger e Fox7. Isto e, vou utiliza-lo para referir formas diferentes das relagoes que sao socialmente produzidas de modo observavel e nao as submetendo a ideia de que teriam sido produzidas por algum gene moderno hipotetico mas ainda nao descoberto, que possa ter permanecido em estado latente durante o passado pre-historico da humanidade. A minha primeira tarefa, contudo, e a de preparar os fundamentos de uma tipologia da violencia.
Para uma tipologia da violencia Os tipos de violencia praticada por seres humanos nos desportos e em qualquer outro dominio sao diversos e complexos. Contudo, parece razoavel aceitar que se pode alcangar uma determinada compreensao do problema dando relevo as distingoes que se possam estabelecer entre as suas formas e dimensoes particulares. Distinguirei tipos de violencia, em termos de: a) os meios utilizados; b) os motives dos actores e os niveis de intencionalidade envolvida; e, c), alguns dos parametros sociais que contribuem para distinguir as
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L. Tiger, Men in Groups, Londres, 1969; R. Fox, «The Inherent Rules of Fighting», em P. Collet, Social Rules and Social Behaviour, Oxford, 1977.
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formas de violencia umas das outras. Em apoio desta tarefa, sugiro uma modificagao de alguns aspectos da tipologia de acgao de Weber. Entre as formas de violencia humana podem fazer-se, pelo menos, oito distingoes provisorias, nomeadamente: 1) Se a violencia e real ou simbolica, isto e, se apresenta a forma de uma agressao fisica directa ou envolve simplesmente atitudes verbais e/ou atitudes nao verbais. 2) Se a violencia apresenta a forma de um «jogo» ou «simulagao» ou se ela e «seria» ou «real». Esta dimensao pode tambem ser apreendida atraves da distingao entre violencia «ritual ou nao ritual», embora se tenha de assinalar que, com o devido respeito a Marsh e aos seus colegas8, ritual e jogo podem possuir um conteudo violento. 3) Se uma arma ou armas sao utilizadas ou nao. 4) No caso de as armas serem utilizadas, se os atacantes chegam a estabelecer contacto directo. 5) Se a violencia e intencional ou a consequencia acidental de uma sequencia de acgoes que, no inicio, nao tinha a intengao de ser violenta. 6) Se se considerar a violencia iniciada sem provocagao ou como sendo uma resposta, em retaliagao a um acto intencionalmente violento, ou sem a intengao de o ser. 7) Se a violencia e legitima no sentido de estar de acordo com as regras, normas e valores socialmente prescritos ou se nao e normativa ou ilegftima no sentido de envolver uma infrac^ao dos padroes sociais aceites. 8) Se a violencia toma uma forma «racional» ou «afectiva», isto e, se e escolhida de modo racional como um meio de assegurar a realizagao de um objectivo dado, ou subordinada a «um fim em si mesmo» emocionalmente satisfatorio e agradavel. Outra forma de conceptualizar esta diferenga seria distinguir entre a violencia nas suas formas «instrumentais» e «expressivas». Alguns sociologos designaram estas diferengas por «tipos ideais», mas e melhor conceptualiza-las em termos de polaridades e equilibrios inter-relacionados. Porem, permitam-me que seja 8
P. Marsh, E. Rosser e R. Harre, The Rules of Disorder, Londres, 1978.
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mais empirico, aplicando esta forma de conceptualizagao, de modo sistematico, a alguns dos problemas de violencia nos desportos. Em primeiro lugar, avaliarei alguns dos problemas gerais e farei, entao, algumas consideragoes sobre o desenvolvimento dos desportos modernos.
Os desportos e a violencia na perspectiva do desenvolvimento Todos os desportos sao, por natureza, competitivos e conduzem, deste modo, ao aparecimento de agressao e de violencia. Contudo, em alguns, por exemplo, o raguebi, o futebol e o boxe, a violencia e, sob a forma de «representagao de uma luta» ou «confronto simulado» entre dois individuos ou grupos, um ingrediente central. Esses desportos constituem oportunidades para a expressao da violencia fisica socialmente aceitavel e ritualizada e, neste contexto, preocupar-me-ei apenas com desportos deste tipo. No quadro desta ligagao, e importante sublinhar que, tal como os confrontos reais que se verificam na guerra podem envolver uma componente ritual — por exemplo, os confrontos de grupos tribais, como os Dani da Nova Guine9 —, tambem, os confrontos simulados que se realizam num campo de desportos podem compreender elementos de violencia nao ritual, ou ser transformados nessa forma de violencia. Isto pode acontecer quando se participa demasiado a serio num desporto, talvez na sequencia de pressoes sociais ou de recompensas financeiras e do prestigio envolvido. Em resultado disso, o nivel de tensao pode elevar-se ate um ponto em que o equilibrio entre a rivalidade amigavel e hostil se inclina a favor da ultima. Nestas circunstancias, as regras e as convengoes destinadas a limitar a violencia e a orienta-la para caminhos socialmente aceitaveis sao suspensas e, entao, pode surgir a luta a serio. Deste modo, no futebol e no raguebi pode jogar-se com o objectivo de impor danos fisicos e dor. Ou no boxe, onde o infligir de ferimentos constitui uma parte legitima da prova, torna-se possivel a luta 9
R. Gardner e K. Heider, Gardens of War, Harmondsworth, 1974.
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depois de ter terminado o assalto ou apos o final da prova. Contudo, os padroes que governam a expressao e o controlo da violencia nao sao os mesmos em todas as sociedades. E, na nossa propria sociedade, diferem entre grupos ou desportos diferentes e nao foram sempre os mesmos em todos os periodos historicos. De facto, pretendo demonstrar que um aspecto central do desenvolvimento moderno foi o que Elias designaria por um «processo de civilizagao» tendo em vista a expressao e o controlo da violencia fisica. Neste processo — sejam quais forem as flutuagoes a breve termo que possam ter ocorrido — verificou-se uma alteragao, a longo prazo, no equilfbrio entre a violencia «afectiva» e a «racional». Para comegar, vale a pena relembrar alguns aspectos relevantes da teoria de Elias. Da forma mais resumida que e possivel, Elias afirma que na Europa ocidental ocorreu, em termos de longa duragao, um declinio quanto a tendencia de as pessoas obterem prazer a partir do seu envolvimento directo em actos de violencia e de os testemunharem. No quadro desta ligagao, Elias refere-se a uma diminuigao de angriffslust', o que significa, literalmente, um declinio no intenso desejo de agressao, isto e, no desejo e na capacidade de as pessoas sentirem prazer pelo facto de agredirem as outras. Isto implicou, em primeiro lugar, uma diminuigao do limiar de repugnania (peinlishkeitsschwelle) quanto a derramamento de sangue e outras manifestagoes directas de violencia fisica; e em segundo lugar, a interiorizagao de um tabu mais rigoroso sobre a violencia, como parte do «superego». A consequencia disso e a possibilidade de surgirem sentimentos de culpa sempre que este tabu e violado. Ao mesmo tempo, verificou-se a tendencia para cada vez mais se ocultar a violencia e, em especial, para descrever as pessoas que obtem abertamente prazer em actos de violencia, em termos da linguagem psicopatologica, castigando-as quer atraves da hospitalizagao ou de encarceramento. Todavia, este processo social levou as pessoas a planear, prever e utilizar, a longo prazo, estrategias mais racionais, como forma de atingirem os seus objectives. Tambem implicou um aumento na pressao competitiva socialmente determinada. Pretendo sugerir que isso contribuiu, consequent emente, para um nitido aumento da inclinagao das pessoas para usar, em situates especificas, a violencia de uma maneira calculada. Deixem-me explicar este processo complexo atraves da referenda ao desenvolvimento do raguebi.
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O raguebi moderno descende de um tipo de jogo medieval em que se realizavam desafios particulares entre um numero variavel de pessoas, sem limitagoes formais e, por vezes, com mais de mil participantes. As demarcates da area de jogo estabeleciam-se de maneira vaga e definiam-se pelo costume, e os jogos tanto se efectuavam em campo aberto como nas ruas das cidades. As regras eram orais e mais especificas dos proprios locais do que escritas, instituidas e obrigadas a serem cumpridas por um orgao de fiscalizagao. Apesar destas variagoes locais, os antecedentes populates do raguebi moderno partilham pelo menos uma caracterfstica comum: todos etam conftontos jogados que envolviam a tolerancia social cottente, dizendo tespeito a um nivel de violencia fisica consideravelmente mais elevado, de acotdo com as tegras e com jogos semeIhantes, do que aquele que e hoje autotizado no raguebi. No contexto ptesente, seta suficiente fundamentat esta questao atraves da referenda a um simples exemplo, o jogo gales knappan* tal como e desctito pot Owen, em 160310. De acotdo com Owen, o numeto de patticipantes nos jogos de knappan, alguns deles montados a cavalo, excedia por vezes dois mil, exactamente como sucedia com outros jogos populares e com o curling da Cornualha. Os cavaleiros, dizia Owen, «tinham cacetes monstruosos de tres pes** e meio de comprido, tao grandes quanto o jogador fosse capaz de os manejar com facilidade». Como se pode ver pelo extracto seguinte, o knappan era uma contenda desenfreada: Nesta diversao, logo que surge a mais pequena oportunidade, vingam-se ressentimentos privados, as quedas sucedem-se; se alguem e desafiado uma unica vez, todos os elementos das duas facgoes se tornam participantes, por isso e que pode ver algumas vezes cinco ou seis centenas de homens nus, batendo-se num magote, todos misturados... e, ai, todos tern de participar com os seus companheiros, de maneira que pode ver-se dois irmaos, um a bater no outro, criados a bater nos senhores, e amigo contra amigo,... apanham pedras e 10
G. Owen, The Description of Pembrokeshire, na obra editada por H. Owed, Cymmorodorion Society Research Series, n.° 1, 1892, pp. 270-82. Foi publicado pela primeira vez em 1603. *Do verbo to knap, que significa britar, partir pedra. (N. daT.) **Um pe (foot) corresponde a 30,48 cm. (N. da T.)
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AS L1GA0ES SOCIAIS entao, empunhando-as, batem nos seus amigos; os cavaleiros intrometem-se a forga e cavalgam por entre os grupos de peoes, pois o cavaleiro escolhe o maior cacete que possa arranjar, de carvalho, de freixo, espinheiro negro ou macieira brava, e tao grande que podia derrubar urn boi ou um cavalo, ataca qualquer um por ressentimentos particulares, o que nao Ihe tinha batido ou atingido com o cacete depois de este ter retribuido o mesmo, e quando davam um soco eram derrubados, cada um atacando o outro com o seu cacete desproporcionado nao poupando nem a cabega, faces, nem qualquer outra parte do corpo; uma vez provocado com furias, os peoes caiam tao proximo dele, que assim esqueciam totalmente a diversao e lutavam ate cair e ficarem sem folego e entao alguns elementos agarravam a cabega nas suas maos e gritavam... paz, paz, e muitas vezes isto separava-os, e para sua diversao la iam novamente. Nem sequer se podia ficar a observar este jogo, todos tinham de ser actores, porque assim era o costume e a cortesia do jogo pois se alguem viesse com o unico proposito de ver o jogo, uma vez que se encontrasse no meio do grupo era transformado em jogador, dando-lhe uma bastonada ou duas, se ele esta a cavalo, e oferecendo-lhe meia duzia de socos, se estiver a pe, embora ele nao tenha nada para se defender, o que pode parecer uma estranha forma de cortesia11.»
Existe abundante informagao demonstrando que, em varias partes de Inglaterra, se realizavam jogos deste genero a partir, pelo menos, do seculo XIV ate ao seculo XIX. Alem disso, a brutalidade descrita de forma tao animada por Owen e largamente confirmada por outros relatos12. E isto o que se poderia esperar num tipo de jogo caracterizado pela seguinte constelagao de caracteristicas: grande numero de jogadores, sem qualquer limite; regras orais vagamente definidas e especificas de cada local; alguns participam montados a cavalo, enquanto outros se associam a pe; a utilizagao de bastoes para atingir quer os outros jogadores, quer a bola; e a ausencia de uma organizagao exterior de controlo para definir as regras e actuar como um tribunal de apelo em casos de conflito. Estas caracteristicas nao estavam presentes em todos os casos, mas muitas delas verificavam-se. Em consequencia disso, esses jogos estavam mais proximos dos confrontos «reais» do que os "Ibid. 12
Eric Dunning e Kenneth Sheard, Barbarians, Gentlemen and Players, Oxford,
1979.
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desportos modernos. Como Riesman e Denney realgam, os desportos modernos sao mais «abstractos», mais afastados dos combates «serios»13. Os antecedentes populates do raguebi podem ter sido combates no sentido em que as vidas e os riscos de vida dos grupos em confronto nao estavam directamente em perigo e a imposigao de ferimentos graves e morte nao constituia o seu objectivo central. No entanto, o seu nivel relativamente elevado de violencia manifesta e a oportunidade que proporcionavam para infligir sofrimento podem ter constituido uma das suas fontes de prazer. Afinal, as pessoas da Gra-Bretanha pre-industrial desfrutavam todas as especies de passatempos — luta de galos, combates de touros e combates de ursos, queima de gatos vivos em cestos, boxe profissional, assistencia a executes publicas — que parecem «nao civilizados» nos termos dos valores actuais. Esses passatempos reflectem aquilo que Huizinga chama «o conteudo violento da vida» na Europa, durante o «Outono» da Idade Media14, e que continuou ate bem dentro do periodo que os historiadores consideram como tempos << modernos». Tambem reflectem o «limiar de repugnancia» comparativamente elevado quanto a testemunho e participate em actos violentos que, como Elias demonstrou, e caracteristico de uma sociedade que se encontra num estadio de um «processo de civilizagao» anterior ao nosso. Em contraste com os seus antecessores populares, o raguebi moderno e um exemplo de uma forma de jogo que e civilizada, pelo menos, em relagao aos quatro aspectos que estao ausentes nas formas ancestrais. A este respeito, isso e caracteristico dos modernos confrontos do desporto em geral. O raguebi moderno e civilizado por: 1) Um con junto de regras escritas, formalmente instituidas, que exigem rigoroso controlo quanto ao uso da forga fisica e que a proibe em relagao a certas formas como, por exemplo, placagem de «brago em riste» e «golpes violentos», isto e, dar pontapes num jogador adversario, derrubando-o. 14
J. Huizinga, The Waning of the Middle Ages, Nova lorque, 1924. D. Riesman e R. Denney, «Football in America: a Study in Culture Diffusion» em Eric Dunning (ed.), The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971. 13
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AS LIGA^OES SOCIAIS
2) Sangoes intrajogos claramente definidas, isto e, penalties que podem ocorrer a fim de punir transgressores, e, como sangao ultima, para violagoes serias e persistentes das regras, a possibilidade de expulsao do jogo. 3) A institucionalizagao de um papel especifico que se mantem, por assim dizer, «fora» e «acima» do jogo e cuja tarefa e controlalo, isto e, o papel do «arbitro». 4) Um orgao centralizado de caracter nacional, para elaboragao das regras e fazer cumprir as regras, a Rubgy Football Union. Este processo de civilizagao do raguebi ocorreu como parte de um processo social continue. Dois momentos significativos deste processo foram: a) a instituigao, na Rugby School, em 1845, das primeiras regras escritas, uma tentativa, entre outras, de colocar restrigoes a utilizagao de golpes violentos e a outras formas de violencia fisica, e de proibir, por completo, o uso das navvies (botas com ponta de ferro que tinham constituido um aspecto do jogo valorizado socialmente em Rugby e outras escolas piiblicas, em meados do seculo XIX); e b)^ a formagao, em 1871, da Rugby Football Union. A Rugby Union constituiu-se, em parte, na sequencia de uma controversia publica sobre o que era entendido como a violencia excessiva do jogo. Uma das suas primeiras ac^oes foi determinar, pela primeira vez, uma proibigao absoluta quanto aos golpes violentos. O que aconteceu, em cada um destes momentos, foi o facto de os padroes de violencia no jogo terem evoluido em dois sentidos: em primeiro lugar, exigia-se que os jogadores alcangassem, quanto ao uso da forga fisica, um nivel mais rigoroso e inteligente de autodommio; e, em segundo lugar, realizava-se uma tentativa de garantir o cumprimento desta exigencia por meio de sangoes impostas do exterior. Dizer que o raguebi sofreu um «processo de civiliza^ao» nao e negar o facto de se conservar, em relagao a maioria dos desportos, um jogo duro. Caracteristicas como o ruck* favorecem a oportunidade de dar pontapes e de racking** os jogadores que se encontram estendidos no solo. A scrum*** proporciona a ocasiao para a violen*Forma£ao espontanea. (N. da T.) *Acgao em que consiste a forma^ao espontanea. (N. da T.) *Formagao ordenada. (N. da T.)
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cia ilegitima, tal como dar socos, arranhar e morder. Perante o amontoado compacto de jogadores que a formagao ordenada envolve, o arbito dificilmente pode controlar a interacgao. Nem o facto de o raguebi ter sofrido um certo desenvolvimento civilizador impede que o jogo se tenha convertido, provavelmente, nos ultimos anos, num jogo mais violento em certos aspectos particulares. Evoluiu, e certo, para termos mais competitivos, como e demonstrado pela introdugao de tagas e de ligas a todos os niveis. A crescente competitividade significa que a importancia da vitoria aumentou, e esta ascensao do objectivo de sucesso envolveu uma erosao do velho ethos amador. For exemplo, diminui consideravelmente o significado da ideia de que participar e mais importante do que veneer. Ao mesmo tempo, aumentou, por certo, a tendencia para os participantes jogarem com dureza no quadro das regras e para usarem violencia ilegitima na perseguigao do exito. Em resumo, a priori, admite-se que, em fase recente, o uso de violencia instrumental no jogo tenha aumentado. Dizer isto nao e afirmar que, no passado, a violencia do jogo era inteiramente nao racional e afectiva, mas, antes, que o equilibrio entre a violencia racional e afectiva se alterou a favor da primeira. Isto porque a estrutura do raguebi moderno, juntamente com o padrao relativamente civilizado da personalidade das pessoas que o jogam, implica que o prazer do jogo deriva agora muito mais da expressao da habilidade com a bola, em combinagao com os companheiros de equipa, e das formas de forga fisica mais ou menos rigorosamente controladas e discretas. E resulta, muito menos, da intimidagao fisica e da imposigao de sofrimento aos adversaries, pratica que se usava nos seus antecedentes populares e nas escolas publicas, em meados do seculo XIX, quando golpes violentos e o uso de navvies eram um aspecto relevante e atribuiam legitimidade as tacticas. Mas a estrutura social e da personalidade que havia dado origem ao jogo moderno aumentava, em simultaneo, a incidencia da violencia instrumental que nele se verificava — por exemplo, jogadores capazes de obter satisfagao nas suas formas de for^a fisica moderadas, relativamente as que sao permitidas no jogo moderno, e que nao encontram prazer na imposigao de sofrimento aos outros, sao obrigados a utilizar a violencia de forma legitima, de uma maneira instrumental. Nao obtem satisfagao agradavel dessa violencia per se. Nao se empenham nisso como um fim em si
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AS LIGA^OES SOCIAIS
mesmo, mas como um meio de alcangar um objective a longo prazo, o de veneer a liga ou a taga. A crescente pressao competitiva que conduz ao uso encoberto da violencia racional e simultaneamente responsavel pela violencia manifesta, nomeadamente a que ocorre quando atletas, de qualquer dos sexos, perdem momentaneamente o seu autocontrolo e agridem um adversario como forma de retaliagao. O facto de a utilizagao tactica da violencia instrumental constituir, com frequencia, um rastilho que conduz a perda de autocontrolo demonstra ainda, mais uma vez, como uma forma de violencia se pode transformar rapidamente noutra. Como e que este desenvolvimento, aparentemente paradoxal — que um jogo tenha evoluido para ser menos violento em certos aspectos e, ao mesmo tempo, mais violento quanto a outros —, pode ser explicado? Gostaria de avangar a hipotese de que isso e, principalmente, a consequencia de um deslocamento, a longo prazo, do padrao de controlo social, da forma segundo a qual os membros da nossa sociedade se relacionam entre si. Permitam-me ilustrar o que isto significa, voltando a teoria do processo de civilizagao de Elias.
4
A violencia e a transformagao Embora Elias nao o expresse nestes termos, e justo, penso eu, afirmar que um aspecto fundamental do processo de civilizagao — o aumento das cadeias de interdependencia — envolveu uma mudanga no padrao das ligagoes sociais, comparavel a que foi descrita por Durkheim como a transigao da solidariedade «mecanica» para a solidariedade «organica». A fim de afastar a analise dos juizos de valor implicitos na terminologia de Durkheim e para transmitir a ideia de que ambos os conceitos se referem a formas de interdependencia, proponho-me descrever esta faceta do processo como um aspecto no decurso do qual ligagoes «segmentares» foram gradualmente substituidas, cada vez mais, por ligagoes «funcionais». No centro desta transformagao encontrava-se um processo em que o significado dos lagos de familia outorgados e de residencia se tor-
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nava sucessivamente menor, enquanto o dos lagos adquiridos, determinados pela divisao do trabalho, se tornava gradualmente mais important e. As diferengas entre estes dois tipos de ligagoes socials podem ser provisoria e formalmente expressas por meio dos modelos polares colocados em lugar de destaque no quadro 1. Estes modelos procuram descrever nao so os aspectos das ligagoes sociais mas, tambem, os tipos distintivos da configuragao social global no interior da qual as ligagoes segmentares e funcionais sao criadas e mantidas por apoio reciproco. Estes dois modelos constituem uma tentativa bastante grosseira de expor algumas das principals diferengas estruturais entre as sociedades da Europa medieval e as dos tempos modernos. No entanto, os modelos sao muito gerais e, por este motivo, ocultam diferengas como as que existem entre classes sociais. Ignoram tambem a existencia de sobreposigoes empiricas entre dois tipos e, na medida em que se baseia na extrapolagao a partir de tendencias observaveis, o modelo das ligagoes funcionais exagera, por exemplo, o grau de igualdade sexual que foi alcangado ate aqui em sociedades deste tipo. Atraves desta analise, nao pretendo sugerir que a tendencia no sentido da predominancia crescente das ligagoes funcionais se tivesse revelado um processo simples, unilinear ou que continue necessariamente no futuro. Um con junto de condigoes previas inter-relacionadas facilitou esse desenvolvimento no passado, no centro das quais estava o contmuo crescimento economico, a capacidade do Estado para preservar um monopolio efectivo sobre os meios de violencia e, apesar do facto de terem oferecido, com frequencia, uma firme resistencia, a boa vontade manifesta no longo prazo pelos grupos dirigentes, a flm de assegurar compromissos e concessoes a medida que o poder dos grupos subordinados aumentava. Mas essas complexidades estao menos relacionadas com os object ivos presentes do que com a forma segundo a qual esses tipos de ligagoes sociais e das suas mais vastas correlates estruturais produzem, por um lado, uma tendencia para a violencia com um elevado grau de conteudo emocional ou afectivo e, por outro, um elevado grau de controlo individual e social sobre a violencia, juntamente com a tendencia no sentido da utilizagao de violencia de um tipo mais racional. Irei agora referir-me a este problema de modo resumido e esquematico.
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AS LIGA^OES SOCIAIS QUADRO 1
LlGAQDES SEGMENTARES E FUNCIONAIS
E AS SUAS CORRELATES ESTRUTURAIS
Ligagoes segmentares
Ligagoes funcionais
1
Comunidades locals auto-suficientes, ligadas, de forma vaga, a um quadro de trabalho extenso, protonacional; relativa pobreza.
Comunidades a nivel nacional, ligadas por extensas cadeias de interdependencia; relativa riqueza.
2
Pressao intermitente «de cima» proveniente de um Estado central fraco; classes dirigentes relativamente autonomas, divididas em sectores de guerreiros e de sacerdotes; equilibrio de poder fortemente inclinado a favor das figuras de dirigentes/autoridade tanto no seio dos grupos como entre estes; pequena pressao estruturalmente criada «debaixo»; em simultaneo, poder dos dirigentes enfraquecido, por exemplo, por um aparelho de Estado rudimentar e meios de transporte e de comunicagao pobres.
Pressoes continuas «de cima» provenientes de um Estado central forte; classes dirigentes relativamente dependentes, onde os sectores seculares e civis sao dominantes; tendencia para tornar iguais as oportunidades de poder atraves da criagao de formas de controlo multipolares tanto no seio dos grupos como entre estes; pressao intensa estruturalmente criada «de baixo»; em simultaneo, poder dos dirigentes fortalecido, por exemplo, por um aparelho de Estado relativamente eficiente e meios de transporte e de comunicagao relativamente eflcientes.
3
Estreita identificac^ao com grupos rigorosamente circunscritos, unidos, principalmente, por meio de parentesco outorgado e ligac.oes locais.
Identiflcagao com grupos que estao unidos por meio de ligagoes adquiridas de interdependencia funcional.
4
Limitado campo professional; homogeneidade de experiencia de trabalho tanto no seio dos grupos profissionais como entre estes.
Vasto campo de emprego; heterogeneidade de experiencia de trabalho tanto no seio dos grupos profissionais como entre estes.
5
Reduzida mobilidade social e geografica; limitados horizontes de experiencia.
Elevada mobilidade social e geografica; vastos horizontes de experiencia.
6
Pequena pressao social para exercer autodominio quanto a violencia ffsica ou para diferir a satisfacjio em geral; reduzido exercicio de previsao ou de planeamento a longo prazo.
Grande pressao social para exercer autodominio quanto a violencia fisica e para diferir a satisfacjio em geral; grande exercicio de previsao e de planeamento a longo prazo.
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VIII
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7
Reduzido controlo emocional; procura de excitagao imediata, tendencia para violentas oscilagoes de estado de espirito; elevado limiar de repugnancia quanto a violencia e sofrimento, de modo directo, sobre os outros e de os ver softer; violencia manifesta exibida na vida quotidiana; debeis sentimentos de culpa depois de cometer actos violentos.
Elevado controlo emocional, procura de excitagao sob formas discretas, temperamento relativamente estavel; baixo limiar de repugnancia quanto a violencia e sofrimento; prazer por delegagao ao observar violencia «mimetica», mas nao quanto a violencia «real»; violencia oculta; recurso racional a violencia em situagoes onde ela e compreendida como nao sendo detectada.
8
Elevado grau de segregagao dos papeis conjugais; familias «centradas na mae»; pai autoritario com ftaco envolvimento na familia; elevada separagao das vidas masculina e feminina; grande numero de fiIhos.
Baixo grau de segregagao dos papeis conjugais; familias de «ligacjio», «simetricas» ou «igualitarias»; elevado envolvimento do pai com a familia; reduzida separagao das vidas masculina e feminina; pequeno numero de fllhos.
9
Elevada violencia ffsica nas relates entre sexos; domfnio masculine.
Reduzida violencia nas relagoes entre sexos; igualdade sexual.
10 Controlo vago e intermitente dos pais em relac,ao aos fllhos; no inicio da socializagao, a violencia e central; de pais para fllhos, violencia afectiva, espontanea.
Controlo estreito e continue dos pais sobre os fllhos; socializagao, principalmente, por meios nao violentos, mas recurso limitado, planeado, a violencia racional/instrumental.
11 Tendencia estruturalmente criada para se formarem «bandos» a volta das linhas de segmentarizac.ao social e para estes confrontarem outros «bandos» locais; enfase na «agressividade masculina», capacidade para lutar pelo poder e pelo estatuto no bando e na comunidade local.
Tendencia estruturalmente criada para as relagoes se formarem atraves de escolha e nao simplesmente sobre bases locais; estilo masculino «civilizado» expresso, por exemplo, no desporto formal; oportunidades para alem das que consistem no poder e no estatuto local; estatuto determinado pela capacidade profissional, educacional, artistica e desportiva.
12 Formas «populares» de desporto que consistem, basicamente, numa extensao ritualizada de combate entre bandos locais; nivel relativamente elevado de violencia manifesta.
Formas «modernas» de desporto, isto e, de representagoes ritualizadas de combates, baseadas em formas controladas de violencia nas suas formas racional/instrumental.
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AS LIGA^OES SOCIAIS 5
As ligagoes segmentares e a sociogenese da violencia A estrutura de uma sociedade em que as ligagoes segmentares constituem o tipo dominante e conducente a violencia fisica nas relagoes humanas, num quadro de formas mutuamente reforgadas. Expresso em termos de analogia cibernetica, podia dizer-se que os varios elementos de semelhante estrutura social formam um ciclo de retorno positivo que aumenta a tendencia para recorrer a violencia a todos os niveis e em todas as esferas das relates sociais. O enfraquecimento do Estado, por exemplo, significa que semelhante sociedade constitui uma presa para ataques do exterior. Isto atribui um alto valor aos papeis militares, o que, por sua vez, conduz a consolidagao dirigente predominantemente guerreira, treinada para lutar e cujos membros, devido a sua socializagao, obtem, por esse facto, satisfagao positiva. Nesse tipo de sociedade, as relagoes inter nas actuam na mesma direcgao. Lutar, com ou sem armas, e endemico, em grande parte porque «os nossos grupos»* sao meticulosamente definidos, daqui resultando que mesmo os grupos ostensivamente similares da mesma localidade sao definidos como «marginais». Os sentimentos de orgulho e de ligagao ao grupo, criados no interior de um parentesco e de segmentos locais, sao tao intensos que o conflito e a rivalidade sao virtualmente inevitaveis quando os membros de dois ou mais grupos se encontram. E as suas normas de agressao, associadas a ausencia de pressao social no sentido do exercicio de autocontrolo, determinam que o conflito entre si facilmente os impulsiona para a luta. Com efeito, o confronto e necessario, nao so no interior dos grupos como entre estes, para fundar e conservar reputagoes em termos dos seus padroes de agressividade masculina. Os melhores lutadores tern tendencia para emergir como lideres e todos os membros desses grupos tern de lutar para sentir e demonstrar aos outros que sao «homens».
*We-groups. (N. da T.)
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As normas de luta de tais grupos, ligados segundo formas segmentares, sao semelhantes aos sistemas de vendetta* que ainda se encontram em muitos paises mediterranicos no sentido em que um individuo que e desafiado ou se sente mais ou menos provocado, por um ou mais elementos de um grupo marginal, sente que esta em causa nao so a sua honra mas a honra do seu grupo. De forma correspondente, e responsavel pela vinganga, nao apenas por retaliagao, contra um ou outro elemento do grupo agressor. Alem disso, ha a tendencia, em qualquer dos grupos, para que os outros acorram em auxilio dos que iniciarem o conflito. Desta maneira, as lutas entre individuos evoluem, geralmente, para contendas entre grupos, algumas situando-se, com frequencia, na longa duragao e dando assim, em tais circunstancias, uma clara indicagao do nivel elevado de identificagao dos individuos com os grupos a que pertencem. A violencia endemica caracteristica de sociedades deste tipo, a par de uma estrutura que consolida o poder de uma classe de guerreiros e que cria uma enfase na agressividade e forga masculina, conduz ao predommio geral do homem sobre a mulher. Por sua vez, o predommio masculino conduz a uma elevada separagao na vida de dois sexos e, deste modo, as familias concentram-se na mae. A relativa ausencia do pai no seio da familia, associada as grandes dimensoes da mesma, o que e caracteristico das sociedades deste genero, implica que as criangas nao estao sujeitas a vigilancia estreita, continua ou eficaz dos adultos. O que, por sua vez, tern duas consequencias importantes. Em primeiro lugar, dado que ha tendencia para que a for^a fisica seja acentuada nas relagoes entre as criangas que nao estao sujeitas a um controlo eficaz dos adultos, isso favorece o aumento de violencia que e caracteristico de tais comunidades. Verifica-se que, em comunidades ligadas de forma segmentar, a tendencia das criangas para recorrer a violencia fisica e, tambem, reforgada pela utilizagao da violencia exercida pelos seus pais, facto que se explica pela socializagao e pela influencia dos modelos de adulto que se encontram disponiveis na sociedade em geral. Em segundo lugar, a relativa ausencia de estrita vigilancia dos adultos sobre as criangas conduz a formagao de bandos que se *Desaven^as hereditarias entre familias, nas quais os confrontos se sucedem para vingar outros confrontos e ofensas anteriores. (N. da T.)
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mantem nos inicios da vida adulta e que, devido a fidelidade de grupo rigorosamente defmida, caracteristica das liga^oes segmentares, leva a frequentes conflitos com outros bandos locals. Os desportos em comunidades deste tipo — por exemplo, os antecedentes populares do raguebi moderno — sao expressoes ritualizadas de «guerras de bandos» criadas, geralmente, em tais condigoes, um teste institucionalizado das forgas relativas de comunidades particulares, que se desenvolvem e vivem lado a lado num quadro de lutas perpetuas, e muitas vezes graves, entre os grupos locals. O ciclo de retorno positivo, atraves do qual elevados niveis de violencia sao criados no quadro de uma sociedade caracterizada por ligagoes segmentares, esta ilustrado de modo esquematico na figura 1.
As ligagoes funcionais, as pressoes civilizadoras e a sociogenese da violencia racional As sociedades empiricas que se aproximam, de perto, do modelo de ligagoes funcionais sao, em muitos casos, e varios aspectos, diametralmente opostas aquelas em que as ligagoes segmentares constituem o tipo predominante. Tal como a ultima, essas sociedades estao sujeitas a um ciclo de retorno positivo, mas, neste caso, o ciclo realiza, como forma de equilibrio, uma fungao civilizadora, que serve, em especial, para limitar e restringir o nivel de violencia nas relagoes sociais. Isto nao significa necessariamente que reduza o grau de violencia, mas, antes, que acentua o predominio da vigilancia, utilizando formas mais subtis. Contudo, a estrutura dessas sociedades dinamiza, em simultaneo, uma intensa pressao competitiva e os meios racionais mais adequados a concretizagao dos objectives. Esta combinagao origina, por seu lado, a tendencia para que a violencia ilegitima e outras formas de transgressao sejam utilizadas de modo racional ou instrumental em contextos sociais especificos, por exemplo, em encontros desportivos altamente competitivos: permitam-me que desenvolva esta questao.
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VIII
Sujeigao a ataques do exterior
Ausencia de controlo eficaz do Estado; nab existe monopolio da violencia: classe guerreira dominante, cujos membros rnantem os seus proprios exercitos privados.
Dommio masculino; segregagao dos sexos.
Reduzida divisao de trabalho; escassa interdependencia de cadeias.
Familias centradas na mae Ligagoes segmentares. Pequena vigilancia dos adultos em relac,ao as criangas; violencia como um agente superior de socializagao.
Intensa rivalidade e conflitos entre parentes.
Normas de agressividade masculina. Formagao de bandos; guerra de bandos.
Elevado nivel de violencia nas relagoes sociais em geral; prazer na violencia; desportos violentos, uma expressao ritualizada de guerra de bandos.
Figura 1 —- Dinamica social da cria^ao de violencia sob condifies de liga^ao segmentar. As setas indicam as principals directs de influencia no ciclo de retorno positivo.
A caracteristica estrutural basica de uma sociedade em que a liga^ao funcional constitui o tipo dominante e o facto de o Estado ter estabelecido um monopolio sobre o direito de utilizagao da forga fisica. Na medida em que esse monopolio e estavel e eficaz, a
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divisao de trabalho pode aumentar — isto e, a extensao das suas cadeias de interdependencia — e isso, aumenta, reciprocamente, o poder do Estado dado o facto, por exemplo, de o controlo central se tornar cada vez mais necessario quando a estrutura social eleva a sua complexidade. O monopolio do Estado sobre a violencia fisica, bem como o alargamento das cadeias de interdependencia, exerce um efeito civilizador. As primeiras exercem-no directamente, porque o Estado tern a capacidade de impedir os cidadaos de utilizarem armas de forma manifesta e de os castigar por usarem a violencia de um modo ilegftimo, isto e, em situagoes nas quais se reserva o monopolio para os seus proprios agentes. O ultimo cumpre um efeito indirecto, porque a divisao de trabalho origina aquilo a que Elias designa por controlos «reciprocos» ou «multipolares». Isto e, as ligagoes de interdependencia permitem que os sectores de uma divisao de trabalho exergam um certo grau de controlo, de modo reciproco. Neste sentido, a divisao do trabalho exerce um efeito de igualizagao ou «democratizante». Tal efeito e civilizador, pelo menos, por duas razoes: a) porque as formas de controlo reciproco originadas pela interdependencia conduzem a maior restrigao nas relagoes sociais; e, b), porque um complexo sistema de interdependencia ficaria sujeito a severas tensoes se todos ou mesmo alguns grupos falhassem relativamente ao exercicio contmuo de um elevado nivel de autocontrolo. Dessa forma, o autocontrolo e uma preocupagao essencial para a conservagao e crescimento da diferenciagao de fungoes. Uma sociedade deste tipo e altamente competitiva, porque uma complexa divisao de trabalho cria a possibilidade de que os papeis sejam flxados com base em resultados mais do que por atribuigao simples. Este aumento da competigao conduz a um agravamento geral da rivalidade e da agressividade nas relagoes sociais, mas, na medida em que o Estado reclama de facto o monopolio quanto ao direito de usar a forga fisica, ele nao pode ser expresso sob a forma de um comportamento manifesta e directamente violento. Os padroes dominantes vigentes nessa sociedade actuam no mesmo sentido ao determinarem que a violencia e incorrecta. E, na medida em que tais padroes sao interiorizados no decurso da socializagao, homens e mulheres acabam por ter um baixo limiar de repugnancia quanto a participarem e a testemunharem, de modo directo, actos de violencia.
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Mas quando a tendencia dominante nessa sociedade se orienta para um nivel de controlo sobre a violencia que, em termos comparativos, e elevado e eficaz, a pressao competitiva revela-se de maneira diferente. Associada ao facto de que longas cadeias de interdependencia e o padrao de socializagao correlativo obrigam as pessoas a utilizar previsao, a diferirem a satisfagao imediata e a usarem meios racionais para alcangarem os resultados, mostra que existe aqui uma tendencia paralela no sentido da utilizagao planeada ou instrumental de violencia por parte de cidadaos comuns, no quadro de context os sociais especificos, de forma mais evidente no crime, nos desportos e, em menor dimensao, na socializagao e na educagao das criangas. Neste momento, apenas nos preocuparemos com o uso da violencia instrumental nos desportos. No quadro desta relagao, o que em primeiro lugar deve ser referido e que, numa sociedade onde existe um elevado grau de ligagoes funcionais, os desportos de luta, como o raguebi, o futebol e o boxe, constituem um enclave social onde se definem formas especificas de violencia legitimas sob o ponto de vista social. Esses desportos sao representagoes ritualizadas e civilizadas de combates em que o uso da forga fisica e limitado por regras e convengoes e controlado, de forma imediata, por agentes especificos, como arbitros e, a um nivel superior, por comites e tribunals estabelecidos por corpos dirigentes nacionais e internacionais. Mas, a medida que a pressao competitiva aumenta nesses desportos, quer porque os seus profissionais estao a competir por recompensas exteriores quer por remunerates financeiras ou pela honra de ganhar um trofeu, ou porque sao sujeitos a pressoes para veneer por parte dos grupos locais ou nacionais que representam, havera uma tendencia para o significado da vitoria aumentar e, em correspondencia, como parte deliberada, para os jogadores infrigirem as regras. Ao mesmo tempo, havera a propensao para se usar a violencia de forma ilegitima nas situagoes em que existam reduzidas possibilidades de detecgao ou em que o risco e calculado no que respeita as sangoes que dai possam advir, e desde que nao diminua, a longo prazo, de modo significative, a possibilidade de concretizagao do seu proprio objectivo ou objectives da equipa. O ciclo de retorno, por meio do qual se originam reduzidos niveis de violencia geral numa sociedade caracterizada por ligagoes funcionais e em que as pessoas recorrem a violencia racional ou
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instrumental em situagoes especificas, esta ilustrado de modo esquematico na figura 2. Controlo central estavel eficaz; monopolio do Estado da violencia fisica; classes dominantes predominantemente civis.
Igualdade sexual
Elevadadivisao de trabaIho; longas cadeias de interdependencia.
Farnflias igualitarias ou simetricas. Ligagoes fiincionais, obtengao de estatuto. Estreita vigilancia dos adultos sobre criangas; uso de meios nao violentos de socializagao; limitado recurso planeado de violencianasocializagao.
Rivalidade e conflito canalizados para esferas proflssionais; estrategias racionais de concretizac.ao de objectives.
Relagoes voluntariamente formadas em bases locals e nao locals.
Norrnas «civilizadas» de comportamento interpessoal; masculinidade canalizadaparao desporto. Baixo nfvel de violencia nas relagoes socials em geral; elevado limiar de repugnancia quanto a violencia instrumental em contextos especificos.
Figura 2 — Dinamica social da limitacao da violencia e recurso a violencia instrumental, sob conduces de ligafies funcionais. As setas indicam as principais directs do ciclo de retorno positivo.
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E claro que a tendencia dirigida para o uso racional da violencia nos desportos modernos e neutralizada por valores gerais e por normas desportivas especificas, mas, em simultaneo, porque e responsavel por provocar retaliagao, serve para intensificar o nivel geral da violencia desportiva. A complexidade do quadro e acentuada quando se toma consciencia de que esta discussao se baseia num modelo que exagera o grau de desenvolvimento que as ligagoes funcionais atingiram na Gra-Bretanha moderna. O modelo das ligagoes segmentares, em particular, parece ter-se aproximado bastante no que diz respeio a certos sectores das classes trabalhadoras britanicas. E razoavel aceitar que ligagoes deste tipo desempenham um papel na criagao de normas de masculinidade violenta ou agressiva que se podem observar, por exemplo, no confronto de hooligans do futebol (soccer).
As ligagoes segmentares nas classes trabalhadoras e a sociogenese da violencia dos hooligans do futebol Acredita-se vulgarmente que o hooliganismo do futebol se tornou um problema social na Gra-Bretanha, pela primeira vez, em I960. As investigates mostram, contudo, que nao houve nenhuma decada da historia do jogo sem ocorrencia de desordens numa dimensao consideravel. De facto, a sua projecgao mostra a tendencia para seguir uma curva em forma de U, sendo relativamente elevada antes da I Guerra Mundial, decaindo depois, no perfodo entre as duas guerras, e permanecendo relativamente baixa ate finais de 1950. Entao, em I960, aumentou, elevando-se rapidamente desde meados dos anos 60 em diante, fase em que chegou a constituir um ingrediente quase «normal» do jogo proflssional. Apesar de tais variances, com a sua incidencia no tempo, a violencia fisica e uma caracteristica recorrente do hooliganismo do futebol. Esta pode tomar a forma de agressoes aos jogadores e arbitros ou de conflitos entre fas rivais. Na sua fase actual, a forma dominante da violencia dos hooligans do futebol e o recontro com os fas dos grupos adversarios e, frequentemente, tambem com a policia. Por
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vezes, semelhante violencia supoe o uso de armas, quer sob forma directa em combate corpo a corpo quer sob a forma de langamento de projecteis, a distancia. Marsh, Rosser e Harre sugerem que o hooliganismo do futebol e uma forma de «agressao ritualizada» e que nao e, de modo geral, muito violenta, excepto nos casos em que a interven^ao da autoridade a distorce, impedindo-a de tomar a sua forma «normal»15. Pensam, evidentemente, na violencia ritualizada e «seria» enquanto fenomeno exclusive, pois e dificil conceber o langamento de moedas, dardos, latas de cerveja e, como aconteceu em alguns desafios, de garrafas com gasolina, como «agressao ritualizada». Afirmar isto nao e negar o possivel efeito que a intervengao de agentes da policia pode ter nas formas que toma o hooliganismo do futebol. O bloqueio e a segregagao de fas rivais, por exemplo, tern probabilidades de aumentar a incidencia dos langamentos de objectos pelo ar. Mas aquilo que Marsh e os seus colegas desejam negar, aparentemente, e o facto de que tais grupos pretendem causar, de modo evidente, ferimentos graves no outro, do genero, por exemplo, dos que sao susceptiveis de ser provocados por moedas, setas e garrafas com gasolina. Em alternativa, o grupo de investigagao de Oxford podera sugerir que, independentemente das suas intengoes violentas, os hooligans do futebol sao orientados por mecanismos instintivos, tal como e o caso dos lobos, por exemplo, de acordo com as descobertas de etologistas como Lorenz. Mas, apesar das tentativas de Marsh para se distanciar das insuficiencias de especulagoes sociobiologicas16, e possivel deduzir que a analise de Oxford envolve uma identificagao demasiado profunda dos seus temas humanos com animais inferiores da escala evolutiva. Deste modo, subestima o grau em que o comportamento humano e controlado por normas, isto e, socialmente e nao por instintos. Gostaria de apresentar a hipotese segundo a qual o comportamento violento dos hooligans do futebol — sejam quais forem os elementos de ritual que possa conter — esta relacionado, principalmente, com normas de masculinidade que: 1) colocam grande enfase na dureza e na capacidade de luta; 2) sao, quanto a este
15
Marsh et al., The Rules of Disorder. Marsh, Aggro.
16
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aspecto, diferentes em grau — embora nao em tipo — das formas de masculinidade que dominam vulgarmente na sociedade em geral; 3) em consequencia, sao objecto de condenagao sistematica por parte dos grupos socialmente dominantes. De facto, essas normas sao reminiscentes, de muitas maneiras, das normas de masculinidade que eram habituais na sociedade britanica, num estadio precedente do seu desenvolvimento, especificamente, das normas de virilidade que tern as suas raizes, se a analise apresentada esta correcta, nas ligagoes segmentares e dos seus correlativos na estrutura social mais vasta dos periodos medievais e dos inicios dos tempos modernos. Existem, pelo menos, quatro aspectos no hooliganismo do futebol actual, sugerindo que as suas caracteristicas principais decorrem das ligagoes segmentares, nomeadamente: 1) O facto de os grupos rivais envolvidos parecerem estar, por vezes, tanto ou mais interessados em opor-se uns aos outros como em assistir ao futebol. As suas proprias explicates sugerem que obtem prazer positive no confronto e que a capacidade de luta constitui a principal fonte quer de prestigio individual quer do grupo. 2) O facto de os grupos rivais serem recrutados, principalmente, no mesmo nivel de estratificagao social, isto e, a partir dos chamados sectores «rudes» das classes trabalhadoras. Isto significa que, para a sua compreensao, e preciso saber que as suas lutas envolvem quer conflitos infra quer /#/m:lasses. As liga^oes segmentares podem explicar este facto, embora seja necessario referir claramente que dizer isto nao e negar que tais grupos se envolvam em formas de conflito interclasse — por exemplo, que lutam regularmente com a policia, que e a representante das classes dominantes — nem que sao vitimas exploradas de grupos socialmente mais poderosos. 3) O facto de o confronto entre tais grupos tomar a forma de uma vendetta no sentido em que, independentemente de qualquer acgao que possam desencadear por sua iniciativa, individuos e grupos atacam apenas porque os outros ostentam a insignia de membro de um grupo rival. Os conflitos que se desenvolvem, a longo prazo, entre grupos rivais de fas hooligans', e que perduram apesar da mudanga de posigao de elementos que ocorre
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dentro de semelhantes grupos, aponta na mesma direc^ao, isto e, constituem uma referenda bastante acentuada de identifkagao de hooligans particulares em relagao aos grupos a que pertencem. 4) O notavel grau de conformidade e de uniformidade na acgao que e exibido nas can^oes e coros dos hooligans do futebol. Um tema corrente destas cangoes e coros e o engrandecimento da imagem masculina de se pertencer ao grupo, associado a difama^ao e a emasculagao daqueles que nao pertencem ao grupo. Da parte dos membros de grupos mais individualizados, e dificil conceber quer o desejo quer a capacidade de participar em tais acgoes uniformes complexas, e, de acordo com isso, aceita-se que os efeitos de homogeneizagao das ligagoes segmentares possam estar na sua base. Investigates sociologicas17 sugerem que as comunidades «rudes» das classes trabalhadoras sao caracterizadas por todas ou pela maioria das seguintes constelagoes sociais: a) a pobreza mais ou menos extrema; b) o emprego de membros em trabalhos nao especializados e/ou empregos acidentais, associado a uma elevada susceptibilidade ao desemprego; c) o baixo nivel de educagao formal; d) a reduzida mobilidade geografka, excepto para alguns membros do sexo masculino que viajam por razoes profissionais, por exemplo, no exercito ou, em ligagao com o trabalho nao especializado, na construgao civil; e) um quadro familiar centrado na mae e marcado por extensa rede de parentesco; f) um elevado grau de segregagao dos papeis conjugais e de separagao das vidas dos sexos em geral; g) o predommio masculino, associado a tendencia para os homens exercerem violencia fisica sobre as mulheres; h) a reduzida vigilancia em relagao as criangas, associada ao frequente recurso a violencia no processo de socializagao; i) a capacidade comparativamente reduzida dos membros para exercer controlo emocional e para diferir satisfagao; j) um limiar de repugnancia comparativamente reduzido quanto a violencia fisica: k) a formagao de «bandos» de esquina que sao dirigidos pelos melhores lutadores e no interior dos 17
E. Bott, family and Social Network, Londres, 1957; P. Wilmot e M. Young, Family and Kinnship in East London, Londres, 1957; H. J. Parker, View from the Boys, Newton Abbot, 1974; P. Willis, Profane Culture, Londres, 1978.
CAPfTULO VIII
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quais, e entre os quais, a luta e frequente; e, /j, os sentimentos intensos de ligagao ao que se encontra rigorosamente definido como «o nosso grupo»* e, por correspondencia, sentimentos profundos de hostilidade no sentido do que esta estritamente definido como «o grupo deles»**. Os diferentes aspectos de tais configurates orientam-se para o reforgo mutuo. Isto e, tal como os seus equivalentes, as comunidades das classes trabalhadoras constituem um ciclo de retorno positivo, sendo uma das principals consequencias a agressividade masculina. No entanto, estas formas modernas de liga^oes segmentares nao sao identicas as formas pre-industriais, porque estao situadas numa sociedade com um Estado relativamente estavel e eficaz e onde existe uma complexa rede de interdependencias. Como resultado disso, os grupos locais de hoje, ligados de modo segmentar, estao sujeitos a pressoes de «civiliza£ao» e formas de controlo oriundas de duas fontes principais: 1) das acgoes de policiamento, da educagao e da intervengao social do Estado; e 2) dos grupos ligados de modo funcional, na sociedade mais alargada. No ultimo caso, a pressao verifica-se, por um lado, atraves de acgoes directas dinamizadas por tais grupos e, por outro, atraves da infiuencia que podern exercer nos meios de comunicagao social e actividades oficiais, Em resumo, na sociedade moderna, os grupos segmentares estao sujeitos a restrigoes a partir do exterior, mas, de modo algum, na mesma medida, a partir do interior. Na perspectiva interna, os seus membros continuam encerrados em configuragoes sociais que sao, de diversas maneiras, reminescentes das formas de ligagao segmentar pre-industrial e que, por correspondencia, originam formas violentas de agressividade masculina. Os sentimentos profundos de ligagao da parte de tais grupos unidos de forma segmentar quanto a pertencer ao grupo*** e a hostilidade para com aqueles que nao pertencem ao grupo**** significam que a rivalidade em termos virtuais e inevitavel quando os seus membros se encontram. E as suas normas de agressividade masculina e a *We-gnup. (N. da T.) **They-group. (N. da T.) ***/« group. (N. da T.) ****out-group. (N. da T.)
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AS LIGA0ES SOCIAIS
comparativa incapacidade para exercer autocontrolo implicam que o conflito entre eles facilmente conduz ao confronto. De facto, tal como foi o caso dos seus equivalentes pre-industriais, lutar, dentro ou entre esses grupos, e algo necessario como forma de estabelecer e conservar reputagoes, de acordo com os seus padroes de masculinidade agressiva. Em consequencia disso, os individuos sentem prazer positivo ao realizarem aquilo que para eles e um papel socialmente necessario. O futebol tornou-se cenario para a expressao de semelhantes padroes, em certa medida, porque as normas de masculinidade Ihe sao intrinsecas. Isto e, tambem constitui basicamente a representagao de um confronto onde as reputagoes masculinas se reforgam ou perdem. O seu caracter especifico de oposigao implica que se oriente, de boa vontade, para a identificagao de grupo e para o engrandecimento da solidariedade do pertencer ao grupo, em oposigao a elementos facilmente identificaveis que nao pertencem ao grupo, a equipa oposta e os seus adeptos. Na medida em que alguns dos fas sao provenientes de comunidades caracterizadas por variantes de solidariedade segmentar, o hooliganismo do futebol, sob a forma de confrontos entre bandos de adeptos rivais, e uma consequencia bastante provavel. Na verdade, e correcto afirmar, por certo, que o hooliganismo do futebol e um equivalente actual dos antecedentes populates do futebol moderno, embora sobreposto e combinado, de uma maneira complexa, com a mais diferenciada e «civilizada» association game.
CAPITULO IX A violencia dos espectadores nos desafios de futebol: para uma explica$ao sociologica Eric Dunning, Patrick Murphy e John Williams
Introdugao O tema deste trabalho e o «hooliganismo do futebol*1. No quadro desta relagao iremos analisar, em especial, o padrao do confronto entre grupos rivals que passou a estar assockdo ao futebol, de maneira regular, nao so neste pais mas tambem em muitos outros. De facto, embora seja raro que isto venha a superficie na imprensa, e dificil que exista algum pais em que o futebol se pratique onde nao tenham ocorrido acessos de violencia das multidoes, ainda que os fas ingleses sejam actualmente os mais temidos na Europa e os unicos que provocam distiirbios regulares quando viajam para o estrangeiro em apoio dos seus clubes ou da equipa nacional2. A pesquisa sobre a qual este trabalho se baseia foi realizada pela Social Science Research Council (agora o ESRC) e a Football Trust. Antes de dar a conhecer alguns dos nossos resultados, iremos de-
*Esta comunicac.ao baseia-se nas Conferencias Edward Glover de 1984, proferidas por Eric Dunning, no Royal Free Hospital, em Londres. Esta serie de conferencias anuais e organizada pela Portman Clinic. Agradecemos a Ilya Neustadt e a Tim Newburn os seus comentarios criticos ao esbogo inicial da comunicagao. 2 Ver John Williams, Eric Dunning e Patrick Murphy, Hooligans Abroad: the Behaviour and Control of English Fans in Continental Europe^ Londres, 1984; e tambem The Roots of Football Hooliganism: an Historical and Sociological Study ^ Londres, em vias de publicagao.
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linear certos pararnetros principals do hooliganismo do futebol enquanto fenomeno social.
O hooliganismo do futebol como um fenomeno social As desordens dos fas do futebol, que passaram a designar-se pela etiqueta de «hooliganismo do futebol», enquanto forma de comportamento, constituem algo de complexo e de multifacetado. Segundo a utilizagao popular, o rotulo abrange, por exemplo, o proferir de palavroes e o comportamento que noutros contextos seria desculpado como de simples «entusiasmo» ou «brincadeiras grosseiras». De facto, muitos dos fas que sao presos no contexto do futebol apenas se envolveram nesses delitos relativamente menores. Contudo, em manifestagoes mais graves, a designagao refere-se a grandes invasoes que parecem ser engendradas de maneira deliberada, de forma a interromper o desafio, e, talvez o mais grave de tudo, as desordens de fas adversaries que sao, com frequencia, violentas e destrutivas. E com esta ultima forma do fenomeno que estamos, acima de tudo, preocupados. Especificamente, os testemunhos sugerem que, embora muitos fas sejam arrastados para o seio dos incidentes hooligans — fas que nao vao para o jogo com inten^oes destrutivas —, os hard core*, aqueles que se envolvem com mais frequencia no comportamento hooligan no contexto do futebol, consideram o confronto e o comportamento agressivo como uma parte integrante do «ir ao desafio de futebol». Em geral, esses fas sao habilidosos na fuga a detengao e prisao e, alem disso, nem sempre aparecem nas estatisticas da policia. «Frank», um condutor de camiao de carga e autoconfesso «hooligan do fiitebol», entrevistado por Paul Harrison, depois do jogo Cardiff-Manchester United de 1974, pode servir como um exemplo. Foi referido por Harrison como tendo afirmado: Eu vou a um desafio apenas por uma razao: o aggro. E uma obsessao, *Da linha «dura». (N. da T.)
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a isso nao posso renunciar. Tenho tanto prazer quando estou a ter aggro* que quase molho as calgas... Vou por todo o pais a procura dele... todas as noites durante a semana, damos voltas pela cidade a procura de problemas... entao, se virnos alguem que parece o inimigo, perguntamos-lhe as horas; se ele responde com uma pronuncia estranha, fazemo-lo repetir; e se ele tern algum dinheiro com ele, nos tambem o enrolamos3. Frank pode bem ter exagerado a extensao do seu envolvimento e prazer do aggro. Na verdade, se todas as suas declaragoes fossem verdadeiras, seria apelidado por outros fas» mesmo pela maioria dos hooligans do futebol, como um «louco» ou um «palerma»4. Apesar disso, o interesse que este demonstra por lutas, a preocupagao com a cria^ao de excitagao agradavel numa situagao de luta, possui caracteristicas que parecem ser comuns ao estilo de vida dos hooligans hard core do futebol. Na perspectiva sociologica, a questao consiste em saber explicar porque. De modo mais especifico, trata-se de explicar: porque e que adolescentes e jovens adultos do sexo masculino de grupos particulars dos sectores socioeconomicos mais baixos das classes trabalhadoras passaram a desenvolver um forte interesse pela luta e pelo prazer de lutar? Porque e que um comportamento abertamente agressivo constitui uma parte tao importante do seu estilo de vida? E porque e que o futebol passou a constituir um ponto de encontro tao atraente e constante para o rnanifestar? Antes de retomarmos estas complexas questoes, deixem-nos esbogar algumas das principals formas que tomam os confrontos do hooliganismo do futebol.
As formas dos confrontos hooligans do futebol Os confrontos dos hooligans do futebol assumern formas dife3
Paul Harrison, «Soccer's Tribal Wars», New Society, 1974, Vol. 29, p. 604. Ver a discussao na obra de Peter Marsh, Elizabeth Rosser e Rom Harre, The Rules of Disorder, Londres, 1978, pp. 70-2. *Comportarnento agressivo no sentido de provocar disturbios e violencia. (N. da T.) 4
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rentes e podem ocorrer numa variedade de contextos proximos do proprio campo de futebol. For exemplo, podem tomar a forma de uma luta corpo a corpo apenas entre dois adeptos rivals ou entre dois pequenos grupos. Como alternativa, podem envolver muitas centenas de fas de cada lado. For vezes usam-se armas — navalhas de ponta e mola e navalhas Stanley, que se dissimulam com facilidade, sendo as favoritas na fase actual — nos incidentes mais serios. Os confrontos de hooligans do futebol podem tambem assumir a forma de langamentos pelo ar, usando-se como munigoes projecteis que se classificam desde artigos inofensivos, como amendoins, pedagos de casca de laranja, carogos de maga e copos de papel, ate outros potencialmente mortais, como dardos, discos de metal, moedas (por vezes com os rebordos agugados), cadeiras partidas, tijolos, placas de cimento, esferas de rolamentos, fogos-de-artiffcio, bombas de fumo e, como aconteceu em uma ou duas ocasioes, garrafas com petroleo. Os langamentos de projecteis podem ocorrer dentro ou fora do campo, e recentemente, em Leicester, deu-se uma grande invasao de cerca de duzentos fas do Arsenal porque foram objecto de um ataque com tijolos e outros projecteis por parte dos fas do Leicester City que se encontravam no exterior do campo. Em consequencia da politica oficial de segregagao dos fas rivais — foi introduzido policiamento nos anos 60 como uma das maneiras de impedir o hooliganismo do futebol, mas que parece ter tido muito maior sucesso no aumento da solidariedade nos «territorios do futebol» e na condugao do fenomeno para o lado de fora do recinto —, os cornbates de grande dimensao nas bancadas tornaram-se relativamente raros durante os anos 70 e principios de 80. Contudo, pequenos grupos de fas conseguem ainda infiltrar-se, com frequencia, nos territories dos seus rivais, de modo a iniciar um confronto ou a criar disturbios mais alargados. Participar numa «invasao» — «conquistar» os «territorios» de alguem — e uma fonte de grande popularidade nos circulos do hooliganismo do futebol. Porem, nos nossos dias, sao mais frequentes os confrontos que ocorrem tanto nos sectores das bancadas nao reservadas do recinto como antes do jogo, por exemplo, nos bares por toda a cidade. Verificam-se tambem, depois do jogo, quando a polfcia procura man ter os fas adversaries afastados e conduz o grupo principal dos adeptos de fora para a via ferrea ou para a estagao das camionetas, para que nao
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sucedam incidentes graves. E entao que existe a possibilidade de ocorrencia de maior numero de confrontos. Estes comegam, geralmente, com uma «corrida», isto e, com a investida de cerca de duzentos ou trezentos jovens fas do sexo masculino, que atacam ao longo das ruas a procura dos fas adversaries ou em busca de uma abertura nas barreiras da policia que Ihes permita o contacto com os seus rivais. Contudo, os hooligans hard core, os que se empenham mais no objectivo de atacar grupos de adeptos da equipa oposta e em iludirem a policia, actuam com frequencia separados do grupo principal e utilizam tacticas elaboradas. Se tern exito, o que acontece, de um modo geral, e uma serie de escaramugas dispersas por uma area relativamente grande, envolvendo jovens do sexo masculino de ambos os lados, que dao murros, pontapes e se perseguem entre si, esquivando-se por dentro e por fora do transito em movimento e, por vezes, atacando veiculos que transportam adeptos rivais. As confrontagoes podem ainda surgir quando grupos de fas, en route*p&ta. jogos diferentes, se encontram, por exemplo, nos comboios, nas passagens subterraneas e nas estagoes de servigo das auto-estradas. Alem disso, as lutas tambem ocorrem, as vezes, dentro de grupos particulares de fas, sendo os participantes, nesse caso, oriundos de diferentes bairros da mesma localidade. Na nossa investigagao, estivemos particularmente interessados por aquilo que os nossos hooligans do futebol e outros jovens fas chamam as «equipas de combate»**, em especial, as dos grupos de super-hooligans que se desenvolveram, nos ultimos anos, em alguns dos maiores clubes. Os membros desses grupos — como os autointitulados Inter City Firm, em West Ham, o Service Crew, em Leeds, e os grupos equivalentes em clubes como o Newcastle United e o Chelsea — apoiam com frequencia a extrema-direita, organizagoes racistas como o British Mouvement e a National Front. Desenvolveram, tambem, formas de organizagao bastante sofisticadas e tornaram-se conhecidos a nivel nacional. Um dos seus principals tragos distintivos e o facto de nao viajarem para os jogos nos «especiais de futebol» e nas camionetas normais de passageiros, utilizando em vez disso os servigos regulares do caminho de ferro, camionetas ou carros e carrinhas alugadas. Tambem evitam as *Em Frances no original. (N. da T.) **Fightmg crews. (N. daT.)
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maneiras de vestir — os cachecois e os distintivos (e tambem as bandeiras do clube) — que, na opiniao piiblica, continuam a estar muito associadas ao hooliganismo do futebol. Um dos seus principals objectives quando assistem aos jogos consiste em defrontar e lutar com os fas opostos, para «lhes conquistar o seu territories Os fas deste tipo via jam sem cores que os identifiquem, a fim de nao se denunciarem antecipadamente aos fas rivais e a policia. Isto aconteceu no caso de «Frank», o entrevistado de Harrison, mas tambem e evidente na descri^ao proporcionada por «Howie», um dos hard case* de Leicester, de vinte anos: Se consegue iludir os chuis, voce vencera. So tern de pensar como e qu'eles vao pensar. E, sabe, quase sempre adivinha o que eles vao fazer, por qu'eles fazem o mesmo percurso todas as semanas, semana apos semana. Se conseguir descobrir uma maneira d'os bater vais'encher de rir, tera uma boa briga** [giria de Leicester para luta}. E por isso que eu nunca uso distintivo, no caso de ir para o outro lado [oposto]. Costumava usar um cachecol mas [a polfcia] chegou e mandou-me parar. Costumava levar o cachecol e ir «bang, bang». Pensei, eu nao volt'a ter aquilo. Tire-o, eles nao o podem agarrar. Os hard cases, tal como «Frank» e «Howie», desistiram ha muito tempo de envergar cachecois e distintivos, mas merece a pena salientar que, hoje em dia, muito poucos fas dos que vao ao futebol, em parte ou acima de tudo para «a acgao», exibem tais sinais de identificagao. Nem muitos deles seguem o estilo skin-head***, que foi tao popular nos ultimos anos de I960 e de 1970. Em vez disso, e embora existam variances regionais e «objectives especificos», preferem vestir de acordo com os ditames da moda jovem corrente, em parte porque os velhos «uniformes hooligans» sao considerados anacronicos e sem «estilo» mas, tambem, como dissemos, para nao se denunciarem, antecipadamente, aos fas adversarios e a policia. Esta descrigao geral de alguns dos principals parametros do hooliganismo do futebol, e de algumas das mudangas que certos
*Casos «duros». (N. da T.) **Fuckin' rout. (N. da T.) ***Cabegas rapadas». (N. da T.)
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aspectos do mesmo sofreram recentemente, e compativel com a questao central que colocamos acima, ou seja, que os adolescentes e os j ovens do sexo masculino que se encontram envolvidos na maioria dos incidentes graves encaram a luta e os confrontos com os adeptos adversaries como um aspecto integrante da comparencia a um desafio de futebol. As cangoes e os coros que constituem uma caracteristica assinalavel da rivalidade entre grupos de fas, em especial dentro do estadio, apontam no mesmo sentido. Ainda que alguns dos rapazes hard-est* julguem que cantar e entoar coros e soft**, nao se dispondo, pois, a envolver-se em tais praticas, durante um jogo os grupos rivais dirigem a sua atengao tanto, e por vezes ate mais, de uns para os outros do que para o proprio jogo, cantando cangoes, entoando coros e gesticulando en masse***, exprimindo a sua oposigao no quadro do que se pode chamar a uniformidade espontaneamente orquestrada. As suas cangoes e coros estao relacionados de certo modo com o jogo, mas tambem tern como motives correntes os desafios a luta, as ameagas de violencia no sentido dos fas adversaries e as vanglorias sobre vitorias passadas. Cada grupo de fas possui o seu proprio repertorio de cantigas e de coros, embora muitos sejam variagoes locals de um con junto de temas comuns. No quadro desta ligagao, surge como elemento central o facto de as suas letras serem pontuadas com palavras como «6dio», «morte», «luta», «pontape», «rendigao», termos que transmitem imagens de combate e de conquista5. Para alem da violencia, a castra^ao simbolica dos fas rivais e outro tema frequente nas bancadas, por exemplo, a referenda a eles e/ou as suas equipas como poof**** ou wankers, este ultimo acompanhado por uma grande quantidade de representagoes gestuais do acto de masturbagao masculino. Ainda outro tema comum e a difama^ao da comunidade de fas adversaria. Permitam-me voltar agora ao problema da explicagao.
5 Simon Jacobson, «Chelsea Rule — OK», New Society, 1975, vol. 31, pp. 780-3. *Um dos «duros» da parte este do pais. (N. da T.) ** « Amaricado». ***Em Frances no original. (N. da. T.) ****«Homossexuais» ou «masturbadores». (N. da T.)
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4 Explicates correntes do hooliganismo do futebol Sao propostas vulgarmente duas explicates principals do hooliganismo no futebol e ambas parecem ter sido bastante aceites, nomeadamente que ele e provocado pela bebida e/ou pela violencia no campo de jogo. As duas possuem serias limitagoes e, na medida em que contem, de certo modo, elementos validos, necessitam de ser expostas dentro de um quadro de explicagao mais vasto. For exemplo, a bebida nao se pode afirmar que seja uma causa significativa ou «profunda» do hooliganismo do futebol pela simples razao de que nem todos os fas que bebem, mesmo aqueles que bebem demasiado, tomam parte nos actos dos hooligans. Nem todos os hooligans bebem, ainda que exista uma nitida relagao entre essa circunstancia e o confronto e, tambem, com as bebidas fortes, com as normas de masculinidade que se evidenciam no seu comportamento. De facto, esses fas tendem a ser relativamente agressivos mesmo sem a interferencia das bebidas. Do mesmo modo, a violencia num jogo de futebol nao e invariavelmente seguida de incidentes de hooligans. Nem todos os incidentes hooligans sao precedidos de violencia no relvado — obviamente, e este o caso, por exemplo, nos confrontos antes dos desafios. Mas afirmar isto nao e negar que a bebida e a violencia no relvado se encontrem implicadas, por vezes de forma causal, na sequencia de factos que se verificam, de modo geral, nos confrontos dos hooligans do futebol. Para se compreender esta situagao, ha que pensar em termos de uma hierarquia, e nesse sentido pode afirmar-se que a violencia no campo e a bebida podem estar, a nivel superficial, implicadas de uma forma causal na origem do hooliganismo do futebol. Este e um problema complexo e nao temos espago aqui para entrar em detalhes. Bastara afirmar que o consumo de alcool e uma das principals condigoes que facilitam a violencia do hooliganismo do futebol, o que se explica pelo facto de o alcool ser um agente que diminui as inibigoes. No caso dos fas hooligans, ajuda a criar um sentimento de intensa camaradagem no grupo e, tambem, constitui um apoio na superagao do medo, por um lado, de se ferirem nos confrontos e, por outro, de serem presos pela policia. A ultima situagao e possivel, dado que,
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embora o hooliganismo do futebol nao constitua uma ofensa como tal, o seu comportamento transgride, frequentemente, algumas das leis e ocorre em lugares publicos onde existe, de um modo geral, a presenga de numerosos policias explicitamente designados para o impedir. De facto, os pequenos atritos com as autoridades — a varios niveis do mundo do futebol e nao so com a policia — podem ser uma fonte significativa da excitagao verificada nos recontros do hooliganismo do futebol. Este fenomeno tambem proporciona uma oportunidade de os fas desencadearem, num contexto exterior ao futebol, hostilidades com a policia, enfim, um palco publico para manifestarem a sua falta de respeito pelos valores «respeitaveis»6. De forma similar, a intensidade da violencia no relvado pode servir como um rastilho para o hooliganismo do futebol, mas o mesmo pode verificar-se por influencia de outras contingencias, como um policiamento intenso e pouco sensato, o desejo de vingar uma derrota imposta no decurso de uma luta realizada num jogo anterior e a ambigao de um dos grupos de fas derrubar outro do pedestal sobre o qual os meios de comunicagao o colocaram. Referimo-nos aqui a uma especie de notoriedade dada pelos meios de comunicagao, em 1970, ao Doc's Red Army, isto e, aos fas do Manchester United, e, na actualidade, aos fas do Chelsea e do Leeds United. De facto, os meios de comunicagao desempenharam um papel de relevo na criagao de uma hierarquia nacional no estatuto dos hooligans do futebol e na luta pelo estatuto entre os diferentes «territorios do futebol». Por outras palavras, existem, geralmente, de acordo com o envolvimento dos fas hooligans, duas tabelas classificativas da liga: uma oficial e outra nao oficial, em parte criada pelos meios de comunicagao. A primeira e sobre jogos vencidos ou perdidos e os pontos ganhos na classificagao da liga. A segunda e sobre quern foge, onde e de quern, e quern e assinalado actualmente 6
Talvez seja oportuno sublinhar que as obrigagoes dos desafios de futebol proporcionam a policia oportunidades quer para ganhos extras quer para obterem uma bem-vinda libertagao das rotinas normals. Por outro lado, nos encontros de futebol, nao so os hooligans mas, tambem, a policia dispoe de oportunidades para «acgao» dentro de um contexto excitante. Alias, em consequencia do oprobrio que se abateu sobre o hooliganismo do futebol, este e um contexto em que as estrategias utilizadas pela policia raramente despertam a critica publica.
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pelo dommio oficial e pelos meios de comunicagao como os hooligans mais «diabolicos» e «destrutivos» do pais. Em resume, aquilo que sugerimos e que, enquanto estas explicagoes oficiais, aceites vulgarmente, em termos de consumo de alcool e de violencia no campo de jogo, se referem a factores que nao podern set excluidos como elementos de determinagao do comportamento do hooliganismo do fiitebol, elas ficacassam, todavia, no aptofundamento do problema da hierarquia das causas, is to e, quanto as rafzes do fenomeno. Em particular, nada esclarecem sobre a forma como se produzem, entre os fas hooligans, o prazer de lutar e a enfase na capacidade de «olhar por si proprio», sobre as normas e os padroes que orientam o seu comportamento, ou sobre as razoes por que o fiitebol passou a constituir um dos pontos de encontro mais insistentes para os exprimir. Na verdade, o mesmo se pode afirmar quanto a maioria das explicagoes academicas propostas. E para algumas dessas explicagoes que a nossa atengao se ira agora voltar.
As explicagoes academicas sobre o hooliganismo do futebol Nos seus primeiros trabalhos sobre o tema, Ian Taylor atribuiu o hooliganismo do futebol dos fas hard core aquilo que ele chamava o «emburguesamento» e a «internacionalizagao» do jogo7. Sugeria que os fas do futebol da classe trabalhadora acreditavam que os clubes da liga costumavam ser, de certo modo, «democracias participativas», e argumentava que os hooligans constituiam uma forma de «movimento de resistencia» da classe trabalhadora, a qual tentaria reafirmar o controlo perante as mudangas impostas
7
Ian Taylor, «Football Mad: a Speculative Sociology of Football Hooliganism», em Eric Dunning (ed.), The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971, pp. 352-7; ver tambem o seu «Soccer Consciousness and Soccer Hooliganism», em Stan Cohen (ed.), Images of Deviance, Harmondsworth, 1971, pp. 134-64.
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pelos grupos da classe media, de maneira a garantir os seus interesses. Em certos aspectos, a analise de John Clarke e semelhante ao trabalho inicial de Taylor8. Este autor atribuiu o hooliganismo do futebol a conjuntura dos anos 60, aquilo que ele designa por «profissionalizagao» e «espectacularizagao» do jogo e, em particular, as alteragoes na situagao social da classe trabalhadora jovem, mudangas, como o afirma, que «tiveram o efeito combinado de quebrar alguns dos lagos de familia e de vizinhanga que ligavam os jovens e os mais velhos num tipo de rela^ao especifica, no seio da vida da classe trabalhadora antes da guerra»9. Por outras palavras, de acordo com Clarke, o hooliganismo do futebol constitui uma reacgao dos jovens separados das comunidades desintegradas da classe trabalhadora contra o futebol comercializado e a apresentagao do jogo como espectaculo e divertimento. Ele afirma que, em resultado da desintegragao das suas comunidades, esses jovens assistem agora aos jogos libertos da vigilancia dos familiares mais velhos e dos vizinhos que habitualmente os controlavam. Finalmente, Stuart Hall examinou o papel da imprensa na criagao do «panico moral» relativo ao hooliganismo do futebol, sugerindo que este aumentou, enquanto «motivo de preocupagao», de forma correlativa a deterioragao da economia britanica10. Apresenta a hipotese de que isto conduziu a uma concentragao da atengao do hooliganismo do futebol como um aspecto daquilo que ele e os seus colegas da Universidade de Birmingham descrevem como a estrategia corrente da classe dirigente de «policiamento da crise»n. Estamos conscientes, e claro, de que o trabalho de Taylor, Clarke e Hall pode ser interpretado como reportando-se ao fenomeno geral do hooliganismo do futebol e nao se centrando nas proezas dos «grupos de combate». Esta e uma das razoes por que
8
John Clark, «Football and Working Class Fans: Tradition and Change», em Roger Ingham (ed.), Football Hooliganism: the Wider Context, Londres, 1978, pp. 37-60. 9 /^/W.,p. 51. 10 Stuart Hall, The Treatment of «Football Hooliganism* in the Press, em Ingham (ed.), pp. 15-36. 11 Ver Stuart Hall et al., Policing the Crisis: Mugging, the State and the Law and Order, Londres, 1978.
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nao desejamos negar totalmente a validade das suas explicates. Contudo, parece-nos — e no caso de Hall esta enfase e bastante clara — serem mais adequadas enquanto explicates da forma como a ansiedade piiblica foi produzida e orquestrada no que diz respeito ao hooliganismo do futebol do que o sao como esclarecimento do proprio fenomeno. Afirmamos isto, por um lado, porque Hall, Taylor e Clarke parecem acreditar erradamente que o hooliganismo do futebol, entendido como um fenomeno social, data somente dos primeiros anos da decada de 60 e, por outro, devido a sua incapacidade de dominarem de forma adequada o que e, a partir da perspectiva teorica de Marx que partilham, um dos aspectos mais complexos do hooliganismo do futebol enquanto fenomeno social, nomeadamente o facto de envoiver uma forma de conflito explfcita entre grupos das classes trabalhadoras e de os principals participantes se confrontarem com a autoridade e os membros das classes mais favorecidas, como um passo na tentativa para lutarem entre si. Hall, Taylor e Clarke, e claro, podiam explicar este aspecto do fenomeno atribuindo-o ao «desvio da agressao», mas, tanto quanto sabemos, com a unica excepgao de Taylor, no seu recente trabalho, nenhum deles conseguiu faze-lo12. Por esse motivo, e aceitavel concluir que as suas explicates do hooliganismo do futebol, na melhor e na pior das hipoteses, apenas conseguem atingir a superficie do problema. Poderia argumentar-se que a este respeito e dada uma explicagao ao trabalho de Marsh, Rosser e Harre. No seu livro The Rules of Disorder, os autores incidem explicitamente sobre os confrontos do hooliganismo do futebol, afirmando que a sua violencia e exagerada pelos meios de comunicagao e que esta nao e realmente nada mais do que um «ritual agressivo», onde raramente se verificam 12 Ian Taylor, «On the Sports Violence Question: Soccer Hooliganism Revisited», em Jennifer Hargreaves (ed.), Sport, Culture and Ideology, Londres, 1982, pp. 152-96; «Class, Violence and Sport: the Case of Soccer Hooliganism in Britain», em Hart Cantelon e Richard S. Gruneau, Sport, Culture and the Modern State, Toronto, 1982, pp. 39-93. David Robbins e Philip Cohen reconhecem a dimensao do conflito intraclasse no problema quando escrevem: «O patetico e a futilidade das lutas entre grupos rivais de jovens socialmente desfavorecidos e a melhor demonstrate da medida da ascendencia dos que detem realmente o poder de classe sobre eles.» Ver o seu Knuckle Sandwich: Growing Up in the Working Class City, Harmondsworth, 1978, p. 151.
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ferimentos de gravidade13. A falta de espago impede-nos de apresentar aqui uma critica completa desta explicagao14. Bastara dizer que o seu trabalho e profundamente influenciado pela etologia, em especial pelo trabalho de Desmond Morris, e baseado na afirmagao implicita de que ritual e violencia, como categorias de comportamento, se excluem mutuamente. De acordo com isso, parecem incapazes de notar que os rituais podem ser seriamente violentos. Ao levar esta critica por diante, nos nao negamos, e claro, a existencia da componente ritual no comportamento hooligan. Ela e evidente, por exemplo, na postura agressiva entre fas rivais e na sequencia de coros e de contracoros nas bancadas, pois, nestas circunstancias, a violencia e «metonimica» e «simbolica», como Marsh et al. o afirmam. Aquilo que sugerimos, antes, e que Marsh e os seus colegas subestimam a gravidade da violencia que, por vezes, esta envolvida nos combates entre fas rivais. Tambem desprezam os combates no exterior, afastados do recinto, e os langamentos pelo ar que ocorrem nos desaflos de futebol e que incluem regularmente, como afirmamos atras, o arremesso de projecteis perigosos. E dificil acreditar que semelhantes objectos sejam langados simplesmente como fazendo parte de uma exibigao agressiva que nao envolve a inten^ao de causar ferimentos ou, pelo menos, a ideia de que dai possam resultar ferimentos graves. Tal como o titulo do seu livro sugere, Marsh e os seus companheiros pretendem demonstrar, como ponto central da sua tarefa, que o hooliganismo do futebol, uma actividade que geralmente se entende e representa como «desgovernada» e «anarquica», e dirigida, de facto, por um con junto de regras. Na perspectiva sociologica, isso seria diflcilmente surpreendente. Contudo, o mais importante para os objectives presentes e o facto de que a sua consciencia destas regras permanece ao nivel da superficie. Isto e, 13
Ver Marsh et al., The Rules of Disorder, p. 155 e seguintes. Para uma critica mais detalhada do trabalho de Marsh et al., ver o trabalho de Eric Dunning, Patrick Murphy e John Williams, «Ordered Segmentation and the Sociogenesis of Football Hooligan Violence: a Critique of Marsh's "Ritualized Agression" Hypothesis and the Outline of a Sociological Alternative^ em Alan Tomlinson, The Sociological Study of Sport: Configurational and Interpretative Studies, Brighton, 1981, pp. 36-52; ver tambem, de Patrick Murphy e John Williams, «Football Hooliganism: an Illusion of Violence», comunicagao nao publicada, Universidade de Leicester, 1980. 14
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nao conseguem demonstrar as suas raizes socials, a forma como elas sao socialmente criadas. De acordo com isto, Marsh et al. nao fazem qualquer tentativa sistematica para conhecer as origens socials e as circunstancias que constituem o problema dos hooligans do futebol, contribuindo por isso para dar a ideia de qiie, na sua perspectiva, tais regras sao criagoes voluntarias de indivfduos socialmente desinseridos. E com a explicagao da origem das normas e dos valores que sao exibidos nos confrontos dos hooligans do futebol que nos vamos agora preocuparmo-nos. No quadro desta relagao iremos ampliar o trabalho de Gerald Suttles15, na tentativa de delinear os contornos de uma configuragao social especifica da classe trabalhadora de nfvel mais baixo, no interior do qual sao persistentemente criados «bandos» de adolescentes e de jovens adultos do sexo masculino, entre os quais a luta e frequente, e onde se desenvolveram normas de masculinidade que acentuam a dureza e a capacidade para lutar como sinais que constituem os principals atributos masculinos. Depois disso, daremos uma explicagao geral do rnotivo por que o futebol passou a ser um cenario favorito para exprimir uma forma de distingao da classe trabalhadora de nfvel mais baixo, o «estilo masculino agressivo».
O hooliganismo do futebol e a classe trabalhadora de nivel mais baixo: a «segmentagao ordenada» e a formagao de aliangas entre grupos de fas As informagoes sobre as origens socials dos fas que se defrontarn nos jogos de futebol sao, regra geral, bastante escassas, mas os dados sobre os que foram condenados por ferirnentos relacionados com o futebol sao coincidentes com a nossa propria observagao participante e sugerem que o fenomeno e predominantemente uma area reservada da classe de trabalhadores de nfvel mais baixo. O Re-
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Ver, de Gerald Suttles, The Social Order of the Slum: Ethnicity> and Territory in the Inner City, Chicago, 1968; e The Social Construction of Communities, Chicago, 1972.
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latorio Harrington, por exemplo, concluia, em 1968, que «os dados actuals sugerem que... [os hooligans do fiitebol] sao oriundos, principalmente, da classe de trabalhadores com os problemas especificos inerentes as grandes cidades industrials e portos, onde se sabe existirem subculturas violentas e delinquentes»16. Cerca de uma decada depois, Trivizas chegou a uma conclusao semelhante, nomeadamente que oitenta por cento das pessoas acusadas de ofensas fisicas relacionadas com o futebol eram operarios e desempregados17. A descrigio de Harrison das «desordens comet Idas» em Cardiff City, em 1974, baseou-se em «Canton e Grangetown, alinhamentos de casas dispostas em socalcos com poucos espagos ao ar livre, e em Llanrumney, um enorme bairro camarario com um registo aterrador de vandalismo»18. E embora, como o sugerimos atras, Marsh e os seus colegas, no decurso do estudo de Oxford, nao se tenham referido directamente a questao da proveniencia de classe, alguns dos seus informadores proporcionavam comentarios relevantes. Por exemplo, um deles afirrnou: Se voce vive em Leys fum bairro camarario local], entao tern de lutar ou qualquer pessoa Ihe urina em cima e pensa que voce e um pouco soft ou coisa parecida19.
De facto, cerca de metade do grande contingente de fas de Oxford presos durante graves disturbios no jogo da Taga entre o Coventry City e o United FA, em Janeiro de 1981, provinham do bairro em questao20. Os testemunhos de Leicester refor^am este quadro geral, com um bairro local de classe trabalhadora de nivel mais baixo responsavel por cerca de um quinto de fas da regiao presos no Estadio Filbert Street, em Janeiro de 1976 e Abril de 1980. Isto levanta a questao de saber o que e que se passa acerca da estrutura de tais comunidades e a posigao que estas ocupam na sociedade em geral, que origina e mantem o 16
J. A. Harrington,, Soccer Hooliganism, Bristol, 1968, p. 25. Eugene Trivizas, «Offenses and Offenders in Football Crowd Disorders», British Journal of Criminology, Vol. 20, n.° 3, 1980, p. 282. 18 Harrison, «Soccer's Tribal Wars», New Society, 1974, Vol. 29, p. 602. 19 Marsh et al, The Rules of Disorder, p. 69. ^Oxford Mail, 9 de Janeiro de 1981. 17
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padrao de masculinidade agressiva que alguns dos seus membros exibem no contexto do futebol e noutros lugares. Como sugerimos antes, uma util orientagao e fornecida no quadro desta relagao, pelo trabalho de Gerald Suttles. A sua pesquisa desenvolveu-se em Chicago e centrava-se nas comunidades cujos padroes gerais, como afirma, eram aqueles «em que idade, sexo, raga e unidades territoriais se ajustavam como construgoes em bloco, numa arquitectura favoravel a criagao de uma estrutura mais alargada»21. Suttles forjou o termo «segmentagao ordenada» de forma a apreender duas caracterfsticas relacionadas do padrao de vida dessas comunidades: em primeiro lugar, o facto de que, enquanto os segmentos que estao mais proximos uns dos outros sao relativamente independentes entre si, os membros desses segmentos tern, contudo, a tendencia para se combinarem, de modo regular, por meio de oposigao e de conflito; e, em segundo lugar, o facto de estes alinhamentos de grupos tenderem a formar-se de acordo com uma sequencia fixa22. Em certos aspectos, este padrao e semelhante ao que se verifica no «sistema de parentesco segmentar» discutido por antropologos como Evans-Pritchard23. Robins e Cohen afirmam ter observado um modelo deste tipo num bairro das classes trabalhadoras em North London24 e, mais significative ainda para os nossos objectivos presentes, Harrison refere-se ao que designa «a sindroma beduina» no futebol contemporaneo23, nomeadamente um padrao no qual se verifica a tendencia para se fazerem aliangas ad hoc, de acordo com os seguintes principios: o amigo de um amigo e um amigo; o inimigo de um inimigo e um amigo; o amigo de um inimigo e um inimigo; o inimigo de um amigo e um inimigo26. As nossas proprias investigates fornecem alguns dados que provam a existencia de um padrao semelhante tanto nos bairros das classes trabalhadoras como no contexto do futebol. Em Leicester, os conflitos interbairros que envolvem grupos de jovens adolescentes 21
Suttles, The Social Order of the Slum, p. 10. lbid. 23 E. E. Evans-Pritchard, The Nuer, Oxford, 1940. 24 Robins and Cohen, Knuckle Sandwich, p. 79 e seguintes. 25 Harrison, The New Society. 26 Robins and Cohen, Knuckle Sandwich, p. 71. 22
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do sexo masculino devem-se a necessidade de defender o «bom nome» do bairro, encarado como um todo, contra bandos rivals que representam os bairros vizinhos. Contudo, rapazes destes bairros e outros de Leicester e da area circundante mantem-se lado a lado, nas bancadas de Filbert Street e no exterior do recinto, unidos na demonstragao de solidariedade quanto ao «territorio da casa» em oposigao aos fas visitantes. Se o desafio se compreende em termos regionais, entao tambem os inimigos podem juntar-se para conjugar forgas. Por exemplo, os fas do Norte, de visita a Londres, queixam-se com frequencia de confrontos com «grupos de cornbate» compostos de numerosos clubes da metropole. Huston Station costumava ser um local de reuniao favorito para encontros deste tipo. David Robins ate refere aliangas efectuadas entre fas de clubes mais pequenos, proximos de Londres, como o QPR e o Chelsea, e o Orient e o West Ham, com o objectivo de se oporem aos fas dos seus maiores rivais metropolitanos27. Os habitantes do Sul e do Centro de visita ao Norte, especialmente as maiores cidades do Norte, tambem apresentam queixas de ataques realizados a partir de aliangas interterritorios. Finalmente, a um nivel internacional, as rivalidades de clube e regionais tendem a subordinar-se aos interesses de honra nacional. Alem disso, em cada um destes niveis as rivalidades menores tornam por vezes a emergir. Assim demonstrada a forma como esta estrutura actua num contexto do futebol, deixem-nos examinar com maior detalhe a estrutura da «segmentagao ordenada».
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A «segmentagao ordenada» e a formagao de «bandos de esquina» De acordo com Suttles, o trago dominante de uma comunidade caracterizada por «segmentagao ordenada» e o aparecimento do grupo so de um sexo ou do «bando de esquina». Tais grupos, afirma, parecem «desenvolver-se com bastante logica a partir de
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David Robins, We Hate Humans, Harmondsworth, 1984, p. 86.
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uma acentuada enfase no nivelamento por idade, na segregagao entre sexos, na unidade territorial e na solidariedade etnica»28. Contudo, Suttles documenta a ocorrencia regular de conflitos entre «bandos» do mesmo grupo etnico e reconhece, num outro lugar, que a diferenciagao etnica e a solidariedade sao factores contingentes mais do que factores necessarios na formagao de tais «bandos»29. Isto e, o nivelamento por idade, a segregagao dos sexos e a identificagao territorial parecem ser as determinantes cruciais da estrutura social interna. Em particular, um forte grau de segrega^ao por grupos de idade significa que a crianga em semelhantes comunidades e langada, em geral, desde muito cedo para as ruas, onde brinca sem a vigilancia dos adultos. Este padrao e exacerbado por uma variedade de pressoes domesticas. A segregagao entre os sexos resulta da tendencia para as raparigas adolescentes serem atrafdas para o interior de casa, ainda que algumas possam formar «bandos» femininos bastante agressivos ou, simplesmente, «andem a volta» dos rapazes, situagao em que o seu estatuto se inclina para a subordinagao. Em comunidades deste tipo, os adolescentes do sexo masculino, em resultado desta configuragao social e para alem da aten^ao que suscitam geralmente por parte da policia e de outros agentes, estao, em grande parte, entregues aos seus proprios meios e tendem a unir-se em grupos que sao determinados, por um lado, atraves de lagos de parentesco e de residencia proxima ou comum e, por outro, pela amea^a real ou pressentida representada pelo desenvolvimento de «bandos» paralelos nas comunidades adjacentes. De acordo com Suttles, tais comunidades inclinam-se a fragmentagao a nfvel interne, mas, afirma, atingem um grau de coesao perante as ameagas reais ou pressentidas provenientes do exterior. Um «confronto de bandos» real ou do qual se fala cria o mais elevado grau de coesao, preserva-o, porquanto semelhantes lutas podem mobilizar a fidelidade dos membros do sexo masculino em toda a comunidade30. Mas permitem-nos ir para alem de Suttles e explorar algumas das vias segundo as quais a estrutura das comunidades deste tipo conduz a produgao e a reprodugao no seu seio da
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Suttles, The Social Order of the Slum, p. 169Ver, por exemplo, ibid, pp. 31-33. Ver tambem, Suttles, 1972, pp. 28-9. 30 /£/W.,pp. 176, 181 e 194.
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«masculinidade agressiva», uma das suas caracteristicas dominantes.
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A sociogenese da «masculinidade agressiva» Na medida em que as suas estruturas correspondem a «segmentagao ordenada», as comunidades das classes trabalhadoras de nivel mais baixo revelam a inclinagao para criar padroes que, em relagao aos dos grupos mais elevados na hierarquia social, sao mais tolerantes a um elevado nivel de agressividade manifesta nas relatjoes socials. Muitos aspectos da estrutura de tais comunidades actuam nesse sentido. For exemplo, em termos comparativos, a liberdade que e vivida pelas criangas e adolescentes das classes trabalhadoras de nivel mais baixo quanto ao controlo que e exercido pelos adultos e o facto de a sua socializa^ao inicial ser realizada na rua, em especial junto dos seus companheiros de idade, determinam a inclinagao para interagirem de forma agressiva entre si, desenvolvendo hierarquias de dominio que se baseiam, em grande parte, na idade, forga e coragern31. Este padrao e reforgado pelo facto de os pais das classes trabalhadoras de nivel mais baixo exercerem, em comparagao com os adultos da escala social mais elevada, menor pressao sobre os filhos que estao a crescer, tendo em vista o autocontrolo rigoroso e contmuo sobre o comportamento agressivo. Neste ambito, quando os pais das classes trabalhadoras de nivel 31
A emergencia de semelhante padrao depende, provavelmente, em grande medida, do facto de as crian^as das classes trabalhadoras mais baixas, tal como sucede com as outras crian^as, nao terem tido ainda, em geral, a oportunidade de desenvolver restrigoes fortes e estaveis sobre as suas emogoes e, deste modo, serem profundamente dependentes de formas de controlo externas. Nos locais onde estas se restringem a contextos especificos, tal como a casa, e sao descontinuas na sua aplicagao existem poucos estudos da agressividade e violencia das interacgoes das crianc.as e, por isso, sobre a emergencia de hierarquias de predomfnio deste genero. Seme-lhante tendencia pode verificar-se na medida em que sao utilizadas formas de castigo violentas pelos adultos como meios de socializa^ao e dado que as criangas veem regularmente os adultos em acc.6es violentas, quer seja dentro ou fora de casa.
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mais baixo tentam restringir os seus filhos, verifica-se, antes, a propensao para recorrerem ao castigo fisico. Alem disso, estas criangas ficam desde cedo mais habituadas a ver os seus pais e outros adultos, em especial do sexo masculino, a comportarem-se de uma maneira agressiva e, nao raro, de modo violento. Em consequencia, estas criangas crescem com uma atitude mais positiva em relagao ao comportamento agressivo do que os seus equivalentes da escala social mais elevada, tornando-se menos inibidos face ao acto de testemunhar e de participar em violencias que ocorram em publico32. Para a formagao deste padrao e tambem crucial a tendencia verificada em comunidades deste tipo, no ambito da segregagao dos sexos e do predominio masculino. Isto traduz-se, por um lado, na tendencia destas comunidades para atingirem um grau comparativamente elevado de violencia masculina em relagao a mulher e, por outro, no facto de os seus elementos masculinos nao estarem sujeitos, de forma consistente, a pressao feminina de «suavizagao». Com efeito, na medida em que as mulheres, em semelhantes comunidades, crescem de forma a serem elas proprias relativamente agressivas e valorizando muitas das caracteristicas macho dos seus homens, as inclinagoes agressivas tendem a ser conciliadas. A frequencia comparativa das contendas e vendettas entre familias, vizinhanga e, acima de tudo, entre «bandos de esquina» constitui um conjunto de reforgos adicionais quanto a esta orientagao. Em resumo, as comunidades das classes trabalhadoras de nivel mais baixo do tipo que descrevemos, em especial as dos sectores aos quais o adjective «rude» se aplica literalmente, parecem ser caracterizadas por processes de «retorno» que encorajam o recurso a um comportamento agressivo em muitas areas das relagoes sociais, em particular por parte dos membros do sexo masculino. Um dos efeitos desse processo e a atribuigao de prestigio aos membros do sexo masculino de comprovada capacidade para lutar. Para eles e para os seus companheiros rivais e uma fonte importante de significado, de estatuto e de dinamizagao de emogao agradavel. 32
Utilizando o termo introduzido por Norbert Elias, pode dizer-se que tern um «limiar de repugnancia» (pleinlicbkeitsschwelle) relativamente elevado em relagao a testemunharem e participarern em actos violent os. Ver The Civilizing Process, 1978; e State Formation and Civilization, Oxford, 1982.
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Neste aspecto, a diferenga central entre estes sectores «rudes» das comunidades trabalhadoras de nivel mais baixo e os seus equivalentes «respeitaveis» nas classes de trabalhadores de nivel elevado ou medio parece ser a de que, nos ultimos, a violencia nas relagoes face a face e, em geral, condenada, enquanto nas primeiras existe um maior numero de contextos e de situagoes em que a expressao manifesta de agressao e de violencia e tolerada e sancionada de modo positivo. Uma outra diferenga e o facto de que nas classes «respeitaveis» ha a tendencia para a violencia ser oculta e, quando ocorre, para tomar em contrapartida uma forma mais nitidamente «instrumental», conduzindo ao aparecimento de sentimentos de culpa. For contraste, nas comunidades trabalhadoras «rudes» a violencia tende a revelar-se em publico, envolvendo, em contrapartida, qualidades «expressivas» ou «afectivas» mais pronunciadas, isto e, qualidades associadas mais profundamente ao despertar de sentimentos de prazer. Alem disso, enquanto os membros das classes «respeitaveis», em especial os do sexo masculino, podem — na verdade, espera-se que o fagam — comportar-se de maneira agressiva em contextos especificos considerados «legitimos», tais como o desporto formal, os membros das classes trabalhadoras consideram este tipo de desporto demasiado regulamentado e «inofensivo»33, ou tendem a entrar em conflito com jogadores adversarios e arbitros34 devido a sua atitude excessivamente ffsica, por vezes violenta. Deste modo, a identidade dos membros do sexo masculino dos sectores «rudes» das classes trabalhadoras de nivel mais baixo baseia-se, em relagao aos padroes dominantes na Gra-Bretanha de hoje, em formas de masculinidade macho manifestamente agressivas. Muitos membros do sexo masculino deste tipo revelam, tambem, um elevado investimento emocional nas reputagoes das suas familias, das suas comunidades e, onde se encontram, na «acgao do futebol» ou nos seus «territories», sendo agressivos e duros. Este padrao e produzido, e reproduzido, nao so pelos elementos constituintes infernos da «segmentagao ordenada» mas tambem — e isto e igualmente crucial — devido ao isolamento das comunidades 33
Ver Paul Willis, Profane Culture, Londres, 1978, p. 29. Howard J. Parker, View from the Boys: a Sociology of Downtown Adolescents, Newton Abbot, 1974, p. 35. 34
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relativamente a sociedade mais alargada. For exemplo, de modo geral, aos membros do sexo masculino das classes trabalhadoras de nivel mais baixo e negado estatuto, significado e gratificagao nas esferas educacionais e profissionais, que sao as principals fontes de identidade, significado e estatuto para os homens do escalao superior. Este obstaculo surge como resultado de factores combinados. For exemplo, a maioria dos elementos do sexo masculino das classes trabalhadoras de nivel mais baixo nao tern — nem de modo geral, as apreciam — as caracteristicas e valores que se orientam para o sucesso na educagao e na profissao ou para esforgos nestes campos. Ao mesmo tempo, tendem a ser sistematicamente discriminados em relagao aos mesmos no mundo da escola e do trabalho, em parte, porque se encontram no fundo da estrutura hierarquica, que parece exigir, em termos de caracteristica constituinte, um relativo empobrecimento «abaixo de classe» relativamente perrnanente33. Dado que e diffcil aos membros do sexo masculino dos sectores «rudes» das classes de trabalhadores de nivel mais baixo alcangar significado, estatuto e gratificagao e formar identidades que os satisfagam nos campos da escola e do trabalho, ha uma disposigao mais acentuada para confiarem na prossecugao destes fins em formas de comportamento que incluem intimidagao fisica, luta, bebidas fortes e relagoes sexuais de exploragao. De facto, mostram possuir muitas das caracteristicas atribuidas por Adorno e os seus colegas a uma «personalidade autoritaria»36. E possivel, com certeza, a estes membros macho do sexo masculino da classe trabalhadora de nivel mais baixo desenvolver formas de auto-estima relativamente elevada na base do conhecimento local, e, acima de tudo, do seu grupo de companheiros, atraves da sua resistencia, das suas proezas como lutadores, das suas faganhas como bebedores e, em geral, pelo facto de eles proprios lidarem de uma maneira que tanto eles como os seus companheiros consideram ser «experiente». Ao mesmo tempo, dado que se encontram no fundo da escala social global, e porque tern a experiencia de um padrao de socializagao inicial que — em relagao aos padroes caracteristicos dos grupos 35 Ver, por exemplo, Herbert J. Gans: «Urbanism and Suburbanism as Ways of Life», R. E. Pahl (ed.), Readings in Urban Sociology, pp. 95-118, 36 Isto pode ajudar a explicar, em parte, a atracgao para muitos dos membros de tais grupos da National Front e do British Movement.
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mais «respeitaveis» — conduz a urn nivel de interiorizagao de formas de controlo estaveis na utilizagao da violencia, estao mais disponiveis para responder de modo agressivo nas situagoes que consideram serem ameagadoras para a sua auto-estima. As exigencias complexas da «argucia da rua» limitam os contextos nos quais lutar e considerado, por tais grupos, como o mais apropriado. Contudo, os membros do sexo masculino do tipo que descrevemos confiam na intimidagao fisica e na luta com maior frequencia do que os membros do sexo masculino de outros grupos. Por um lado, inclinam-se no sentido de procurar, de forma racional, confrontos fisicos, porque estes constituem para si uma fonte de identidade, estatuto, significado e excitagao agradavel. Por outro, dispoem-se a responder de modo agressivo em situagoes ameagadoras, porque nao aprenderam a exercer o nivel de autodommio que e exigido pelas normas dominantes da sociedade britanica.
Masculinidade violenta e desordens no futebol: alguns exemplos historicos Dado que possuem relativamente poucos recursos economicos e outros meios de poder e se predispoem a sentir os territories e as pessoas pouco familiares como ameagadores e host is, a disposigao para se comportarem de forma agressiva que e suscitada, com frequencia, nos sectores especificos das cornunidades das classes de trabalhadores de nivel mais baixo tende a exprimir-se, na maioria dos casos, no interior destas mesmas cornunidades. Contudo, tambem se manifesta de modo esporadico no seu exterior, originando, dessa maneira, o «panico moral» entre os grupos bem colocados na sociedade. As areas da vida social fora das cornunidades das classes trabalhadoras de nivel mais baixo, onde tal agressividade encontrou expressao, alteraram-se sob a influencia da transformagao das modas, por exemplo, transferindo-se da frequencia dos cinemas para a de saloes de danga e do litoral. Contudo, parece que um contexto relativamente permanente para esse comportamento foi proporcionado pelo futebol. Na verdade, desde que este surgiu, nos finais do seculo XIX, na sua forma moderna, o jogo tern sido acorn-
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panhado por desordens de fas, muitas delas envolvendo agressao fisica e violencia. A incidencia de tais desordens parece ter variado no tempo, dependendo, por exemplo, da atracgao variavel que o jogo apresenta para os sectores «mais rudes» das classes trabalhadoras de nivel mais baixo e de acordo com o grau de mudanga das comunidades na sociedade em geral, cujas estruturas se aproximam da «segmentagao ordenada». Uma outra maneira de colocar este segundo ponto seria afirmar que o grau de desordens dos fas no futebol parece haver dependido, em grande parte, do nivel em que as classes trabalhadoras passaram a estar «integradas» dentro da principal corrente da vida social britanica e, por esse motivo, obrigadas a adoptar, de acordo com a utilizagao do termo de Elias, os valores mais «civilizados» e os modos de comportamento caracteristicos e exigidos pelas classes sociais mais «estabelecidas»37. Isto levanta numerosos problemas complexes, que nao podemos tratar num trabalho desta dimensao. Contudo, o que podemos fazer e citar alguns exemplos de tumultos que foram registados no passado e mostrar, segundo as nossas conclusoes, como o problema do hooliganismo do futebol aumentou para as proporgoes de «crise» que sao hoje amplamente conhecidas. A noticia que se segue, relativa a uma desordem ruidosa entre fas rivais do futebol, numa estagao de caminho de ferro, apareceu no Liverpool Echo em 1899'. «No sabado, ao flm da tarde, veriflcou-se na Middlewich Station uma cena excitante, depois de urn jogo entre Nantwich e Crewe, para a final de Cheshire. As duas facgoes, situadas em plataformas opostas, esperavam pelos comboios. As acgoes come^aram por gritos, de forma alternada, e depois um homem desafiou um adversario para uma luta. Ambos saltaram sobre os trilhos do caminho de ferro e lutaram, com raiva, ate serem afastados pelos guardas. Entao, um grande numero de homens de Nantwich correu atraves da linha e 37 Utilizamos aqui o termo «civilizado» no sentido tecnico, relativamente distanciado, defendido por Norbert Elias. Nao pretendemos sugerir que membros da classe trabalhadora se tornam de algum modo «melhores» como resultado da sua incorporate ou que o seu envolvimento neste processo era, de alguma maneira, do seu «autentico interesse» como classe. Signifka apenas que o termo «civilizac.ao» e «incorporate», parecem-nos ser relativamente adequados ao ob-^ jecto, como meio de conceptualizar um processo social que, parece aceitavel avangar com a hipotese, ocorreu de facto.
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tomou de assalto a plataforma ocupada pelos homens de Crewe. Os passageiros indiferentes fugiam para a esquerda e para a direita. Chegou entao o comboio especial e a policia protegeu-os, muitos deles levando marcas que os haviam de distinguir por algum tempo38. Dez anos mais tarde, em 1909, somos informados pelo Glasgow Herald de que, na Scottisch Cup Final*, entre o Rangers e o Celtic, em Hampden Park: Cerca de seiscentos espectadores arrancaram os postes da baliza, veda^oes de arame e bilheteiras, lan^aram-lhes fogo e dangaram a sua volta no rneio do relvado. Polfcias, bombeiros e maqueiros forarn apedrejados, bombas de incendio daniflcadas e mangueiras golpeadas. A policia, depois de ter devolvido as pedras aos desordeiros, lirnpou o campo, por fim, as sete horas, a custo de cinquenta e quatro agentes feridos e da destrui^ao de quase todos os candeeiros de rua a volta de Hampden39. Em 1920, de acordo com uma reportagem no Birmingham Daily Post sobre a acgao levada a tribunal por um espectador contra o Birmingham, agora Birmingham City FC: O queixoso afirma ter pago um xelim, para estar de pe, assistindo ao jogo. O caso ocorreu em Spion Kop... Logo apos o intervalo, «voaram garrafas por todo o lado, como pedras de granizo». A testemunha tentara fugir, mas foi atingida na cabega, recebendo um ferimento que necessitou de levar sete pontos. Tinha presenciado outros disturbios em Spion Kop e, numa ocasiao, mais ou menos antes de ter sido ferido, viu homens usarem garrafas como se fossem paus, em vez dos seus punhos. As garrafas usadas eram de tipo de meio quartilho, solidas40. E, em 1934, um reporter do Leicester Mercury, ao descrever o
^Liverpool Echo, 1 de Abril de 1899^Glasgow Herald, 19 de Abril de 1909 (parafraseado em John Hutchinson, «Some Aspects of Football Crowds Before 19l4», Proceedings of the Conference of the Society for the Study of Labour History, University of Sussex, 1975, doc. n.° 13, mimeo). ^Birmingham Post, 14 de Outubro de 1920. *Final da Tac,a da Escocia. (N. da T.)
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regresso dos fas do Leicester City de um jogo em Birmingham, escreveu: Tudo correu com tranquilidade desde a partida, em New Street, e receava-se que alguma coisa extraordinaria tivesse acontecido para justificar que o cornboio tivesse avangado apenas trezentas ou quatrocentas jardas* do seu percurso. Depois de um minucioso exame de todas as carruagens, descobriu-se que o cabo de ligagao havia sido retirado... veriflcou-se que os elementos hooligans, que se encontravam por vezes nas viagens, tinham provocado um prejuizo, que nao era pequeno, ao material circulante, parte dele quase novo. Tinham partido janelas, rasgado e cortado bancos, e o couro das correias das janelas fora esfaqueado41.
De certa forma, estes exemplos servem para dissipar a nogao errada de que o hooliganismo e inteiramente novo enquanto fenomeno social. Contudo, nao nos dao uma ideia das mudangas de grau do hooliganismo do futebol ao longo do tempo. A nossa conclusao, baseada em dados de uma analise minuciosa dos registos da Federagao de Futebol e na extensa investigagao dos jornais, desde 1880, sugere que, a partir desse periodo, a intensidade com que as desordens de fas foram noticiadas seguiu uma direcgao curvilmea. Para ser mais preciso, nas tres decadas e meia antes da Primeira Guerra Mundial, o grau era relativamente elevado; entre as duas guerras mundiais decaiu, mas nunca, nem rnesmo de longe, se aproximou do ponto zero; desde o fim da Segunda Guerra Mundial, ate finais de 1950, permaneceu baixo; comegou entao a elevar-se, de inicio de uma forma relativamente lenta, mas, mais nitidamente a partir do meio da decada de 60, em especial quando a Final do Campeonato do Mundo foi organizada em Inglaterra. Conio explicar este fenomeno? Aqui, esbogada em linhas muito gerais, esta a explicagao, em termos de hipotese, sobre a qual estarnos a trabaIhar42. 41
Leicester Mercury, 19 de Mar<~o de
42
1934.
Para uma apresentagao mais detalhada dos nossos dados sobre estas tendeneias, ver Eric Dunning, Patrick Murphy e John Williams, Working Class Social Bonding and the Sociogenesis of Football Hooliganism, End-of-Grant Report to the SSRC, 1982. Ver, tambem, o nosso The Roots of Football Hooliganism (em vias de publica^ao). *Uma jarda (yard) corresponde a 0,9l44m. (N. da T.)
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Antes da Primeira Guerra Mundial, a sociedade britanica conservava-se, de acordo com as ideias de Elias, num estadio do seu «processo de civiliza£ao» de algum modo inferior aquele em que nos encontramos hoje. Uma das consequencias disto foi o facto de, entao, as relagoes sociais serem, de um modo geral, caracterizadas por elevado nivel de violencia manifesta, e isto reflectia-se no cornportamento das multidoes do futebol, cuja composigao social, ate ao aparecimento das multidoes atraidas pelas equipas de profissionais, era constituida, de forma predominante, pelas classes trabaIhadoras. No entanto, desde o final da Primeira Guerra Mundial, a classe trabalhadora tornou-se, progressivamente, mais integrada na corrente principal da sociedade e mais em harmonia com os direitos de cidadania, embora este processo nao se tenha iniciado, por certo, nesse momento e tenha sido irregular, caracterizado pelo conflito e, de certa maneira, contrariado por orientagoes nao coincidentes. Durante este processo, verificou-se uma difusao de padroes mais «civilizados» entre as camadas de nivel mais baixo da escala social, processo que se reflectiu no comportamento mais ordeiro das multidoes de futebol e que foi apoiado, parece aceitavel a hipotese, por fenomenos sociais fundamentals, como o aumento de riqueza e o crescente poder dos sindicatos e da mulher43. O aumento de riqueza tera contribuido para a integragao e teve um efeito «civilizador» ao atenuar, por exemplo, algumas das formas mais rigidas da pressao domestica e ao facilitar a criagao de mais alternativas para o estabelecimento de identidades satisfatorias. O crescente poder dos sindicatos teria um efeito semelhante, porque ajudou a garantir melhores salarios e condi^oes de trabalho e, dado que contribuiu para o aumento da institucionalizagao do conflito industrial, fazendo decrescer, por esse motivo, a longo prazo — embora nao como parte de uma simples orientagao «progressiva» — a violencia. E o crescente poder da mulher tera sido «civilizador» nos seus efeitos porque atraiu o homem mais para o seio da familia nuclear e para dentro de casa, atenuando, por issor as 43 Dado que poucos historiadores, e ainda menor numero de sociologos, estudaram os anos que se situam entre as duas grandes guerras, esta analise, como seria inevitavel, e bastante especulativa. Recebe, no entanto, um certo grau de apoio do trabalho pioneiro de James E. Cronin. Ver o seu Labour and Society in Britain, 1918-1979, Londres, 1984.
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tendencias macho que haviam sido predominantes em tempos anteriores. Em simultaneo, o controlo dos pais quanto a socializagao inicial das criangas tera aumentado, levando a que esta se realizasse cada vez menos no contexto da rua e sob a unica ou principal influencia dos companheiros da mesma idade. O prolongamento do processo educativo e a formagao de varios tipos de organizagoes da juventude terao actuado no mesmo sentido. No entanto, ainda que este processo de integragao e crescente «civilizagao» compreendesse sectores cada vez mais alargados da classe trabalhadora, nao os afectou a todos com igual intensidade. Os grupos menos afectados parece terem sido, em particular, aqueles que continuaram dominados pela pobreza, no fundo da sociedade. De facto, aquilo que parece ter acontecido foi o seguinte: enquanto os sectores «respeitaveis» das classes trabalhadoras aumentaram de dimensao, acentuou-se a distancia entre eles e a classe trabalhadora de nivel mais baixo em decrescimo, incluindo os sectores que permaneceram «rudes». Ainda que os seus numeros tenham comegado a subir de novo no decurso da actual recessao44, sao estes grupos de pessoas «rudes» das classes trabalhadoras que tern a tendencia para formas de comportamento que se aproximam mais dos padroes criados por aquilo que Suttles designa a «segmentagao ordenada». Esses adolescentes e jovens do sexo masculino foram atraidos, progressivamente, para a assistencia de jogos de fiitebol, desde os anos 60, e sao eles que se envolvem nos aspectos mais graves do hooliganismo do futebol. Para compreender como e por que razao foram atraidos para o jogo e necessario examinar, de modo resumido, alguns tragos do tratamento da questao pelos orgaos de comunicagao social.
44 Nao dispomos aqui de espago para explicar aquilo que entendemos quanto ao que deve ser o complexo das relagoes interactivas entre pobreza, desemprego e «segmentactao ordenada». Bastara dizer que parte da relagao, tal como a encaramos, consiste na probabilidade de alguns jovens desempregados das familias «respeitaveis» da classe trabalhadora considerarem atraentes certos aspectos dos estilos de vida dos seus equivalentes «duros», incluindo tomar parte no hooliganismo do futebol.
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O futebol e os orgaos de comunicagao social Durante o periodo situado entre as duas guerras, e mais precisamente nos anos 60, as multidoes de espectadores do futebol ingles foram elogiadas pelos orgaos de comunicagao social devido ao seu comportamento. Em particular, quando os incidentes de mau comportamento de fas estrangeiros ou de fas das equipas nao inglesas das Ilhas Britanicas constituiam noticia na imprensa, onde se incluiam afirmagoes do genero «isso nao podia acontecer aqui». Consideremos, por exemplo, o seguinte extracto de um reporter, no Leicester Mercury, descrevendo incidentes desordeiros que se verificaram num jogo em Belfast, em 1928: ... o intervalo, quando o Celtic e o Linfleld estavam empatados, prestou-se a uma diversao que incluiu o apedrejar dos musicos da banda e a intervengao da policia, que usou os seus cacetes para manter afastados na multidao os rivais mais odiados. Ao longo de algumas semanas, em muitos centres de Inglaterra, as grandes questoes em jogo na Taga e na Liga irao unir milhares de pessoas num unico pensamento... E, felizmente, todas estas coisas serao resolvidas da melhor maneira, sem um unico agente da policia ter de levantar o seu cacete para manter a ordem45.
Embora o comportamento das multidoes do futebol ingles tenha evoluido de uma maneira mais ordeira desde a fase anterior a Primeira Guerra Mundial, noticias como esta ignoravam os disturbios que continuavam a acontecer em Inglaterra nos jogos de futebol e, em conjugagao com estes, durante todo o periodo entre as duas guerras. Porem, ainda que a este respeito as informagoes fossem, de facto, inexactas, elogiando o adepto ingles «tipico», parecem ter reforgado a tendencia para as multidoes serem bem-comportadas e para atrairem um maior numero de pessoas «respeitaveis» aos jogos de futebol. Por outras palavras, o tratamento dos meios
^Leicester Mercury, 10 de Fevereiro de 1928.
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de comunicagao e o comportamento das multidoes neste peribdo parece ter sido mutuamente reforgado de modo a produzir um «ciclo de retorno», que teve o efeito de conduzir a um aumento mais ou menos continue de «respeitabilidade» das multidoes46. Contudo, nos ultimos anos da decada de 50, em conjungao com o alarme teddy boy* e a crise moral mais geral da juventude da classe trabalhadora verificada nestes anos, os meios de comunicagao escoIheram-na como vitima e ampliaram o tipo de incidentes violentos que sempre tinham ocorrido, de tempos a tempos, entre as multidoes dos campos de futebol. No entanto, foram os preparativos para a organiza^ao do Campeonato do Mundo em Inglaterra, em 1966, que tiveram um significado decisivo a este respeito. Este acontecimento traduziu-se no facto de os espectadores ingleses estarem proximos de um exame minucioso dos orgaos de comunica^ao internadonais e, neste contexto, os jornais populares em Inglaterra comegaram a focar a sua atengao sobre o hooliganismo do futebol, considerando-o como uma ameaga para o prestfgio internacional do pais. For exemplo, em Novembro de 1965, quando uma granada de mao «desactivada» foi langada para o campo por um adepto do Millwall durante o encontro da sua equipa com os Brentford, rivals de Londres, o Sun publicou a seguinte historia, sob o titulo «Futebol Marcha para a Guerra»: Durante as quarenta e oito horas do dia mais negro do futebol britanico — o dia da granada, que demonstrou que os adeptos britanicos podem rivalizar, seja no que for, com o que os sul-americanos possam fazer, a Federagao de Futebol interveio no sentido de destruir esta crescente violencia da multidao. O Campeonato do Mundo esta agora a menos de nove meses de distancia. Este e o tempo que temos para tentar restaurar o bom nome desportivo deste pars no passado. Neste momento, o futebol esta doente. Ou melhor, as suas multidoes parecem ter contraido qualquer doen^a que as obriga a explodir em furia47. 46 Em certa medida, isto e uma grande simplificagao, pois, como demonstraremos em The Roots of Football Hooliganism: an Historical and Sociological Study (em vias de publicagao), existe uma ligeira tendencia, nos finals dos anos 30, para o aumento das preocupagoes quanto ao comportamento das multidoes do futebol. 41 Sun, 8 de Novembro de 1965. *Rufias, rapazes desordeiros. (N. da T.)
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Numa data proxima do Campeonato do Mundo de 1966, a imprensa popular comegou a enviar reporteres aos jogos para darem noticias acerca do comportamento da multidao e nao so do proprio jogo48. De forma nao surpreendente, estes reporteres puderam observar incidentes que, embora nessa altura estivessem provavelmente na fase crescente, sempre ocorreram, com bastante frequencia, nos campos de futebol ou a sua volta. E, tambem, porque pretendiam vender jornais numa industria que se tornava mais competitiva e, ainda, devido ao aumento do panico politico e moral quanto a violencia da juventude que se verificou em meados dos anos 60, noticiaram esses incidentes de uma maneira sensacionalista. Assim, os campos de futebol comegaram a ser cada vez mais «anunciados» como lugares onde ocorriam regularmente lutas e aggro e nao so futebol. Isto atraiu os jovens do sexo masculino da classe trabalhadora, provavelmente em mimero superior ao da fase anterior, aumentando o impulso ja existente por parte das pessoas «respeitaveis» no sentido de nao frequentarem, em especial, as bancadas do «peao»*. Assim, contribuiram para a situagao actual, nomeadamente uma situagao em que os incidentes hooligans tern uma dimensao mais grave, ha um acompanhamento muito mais regular aos jogos do que costumava verificar-se e surge o fenomeno da exportagao do problema do hooliganismo ingles para o estrangeiro, num grau suficiente para levar os termos «fas do futebol ingles» e hooligan a serem largamente considerados no continente como algo contagioso. E claro que nao se pode afirmar que os meios de comunicagao provocaram este processo, mas, devido ao facto de exagerarem o que de inicio eram, de um modo geral, apenas incidentes menores, e por «anunciarem», com efeito, os campos de futebol como lugares onde se verifkavam com regularidade disturbios e onde as reputagoes locais estavam mais em jogo do que apenas as do futebol, pode afirmar-se que desempenharam, como uma especie de profecia de auto-sat isfagao, um papel importante no desenvolvimento do hooliganismo do futebol na sua forma contemporanea especifica. 48 Stan Cohen, «Campaigning Against Vandalism», em C. Ward (ed.), Vandalism^ Londres, 1973, p. 232. *De um modo geral, o «peao» corresponde aos lugares mais baratos dos estadios situando-se habitualmente por detras das balizas. (N. da T.)
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Os adolescentes e os jovens adultos do sexo masculino da classe trabalhadora «rude», uma vez atraidos para o jogo em numero cada vez mais elevado, ai continuaram, em grande parte, porque o futebol e, de diversas formas, um contexto altamente adequado para o tipo de actividades que estes consideram como significativas, excitantes e agradaveis. For exemplo, num jogo de futebol, eles sao capazes de actuar sob formas que sao condenadas pelos meios oficiais e, em grande medida, pela sociedade «respeitavel», podendo agir assim no quadro de um contexto que proporciona relativa imunidade de censura e de prisao. O jogo tambem pode criar elevados niveis de excitagao, e o fulcro dessa excitagao e o confronto — um «confronto simulado» com uma bola — entre elementos masculinos que representam duas comunidades. Sob varios aspectos, o jogo e algo analogo ao tipo de confrontos que se verificavam entre os proprios hooligans, ainda que controlados sob o ponto de vista formal, de um modo geral declaradamente menos violentos e, em certo sentido, mais abstracto. Isto e, o jogo tambem constitui uma forma de ritual viril. Tambem, na medida em que as equipas de fora transportam consigo grande numero de adeptos e em que e fornecido um grupo ideal de adversarios, as rivalidades que existem entre grupos locais hard cases podem ser, neste contexto, pelo menos de maneira temporaria, submergidas pelos interesses de solidariedade dos «territorios da casa».
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Conclusao Em conclusao, gostariamos de sublinhar que as nossas afirmagoes nao significam que os adolescentes e os j ovens do sexo masculino das classes trabalhadoras do nivel mais baixo constituem os unicos hooligans do futebol. Nem, tao-pouco, que todos os adolescentes e j ovens adultos do sexo masculino das comunidades de trabalhadores de nivel mais baixo utilizam o futebol como um contexto para lutar. Alguns defrontam-se noutros locais e outros nem sequer lutam. A nossa posigao e antes a de que adolescentes e j ovens do sexo masculino dos sec tores «rudes» das classes trabalhadoras de nivel mais baixo — nao consideramos os conceitos
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«classe trabalhadora rude» e «classe trabalhadora de nivel mais baixo» como sinonimos, qualquer que seja o sentido — parecem ser os mais consideraveis e persistentes intervenientes nas formas mais graves do hooliganismo do futebol. Nem a nossa tese e a de que aquilo que descrevemos, com alguns dos atributos e valores caracteristicos dos hooligans do futebol, seja especifico destes grupos e so produzidos por «segmentagao ordenada». Formas de masculinidade bastante similares sao evidences, por exemplo, nas forgas de policia e do exercito, e talvez tambem noutros contextos profissionais49. Finalmente, o facto de poder comprovar-se que o hooliganismo do futebol se encontra profundamente enraizado no passado britanico nao significa, em nossa opiniao, que este se mantenha totalmente inalteravel nas suas formas, conteudos e consequencias. Entre os factores que actuam na formagao do caracter especifico do «fenomeno de hooliganismo do futebol», desde os finais da decada de 50, destacam-se: mudangas estruturais que ocorreram nos sectores «rude» e «respeitavel» da classe trabalhadora e nas relagoes entre eles; aparecimento de um mercado de lazer especificamente adolescente; aumento de capacidade e de vontade de os fas adolescentes ingleses viajarem, com regularidade, para assistir a jogos realizados no exterior; mudangas na estrutura do proprio jogo; tentativas especificas das autoridades do futebol para restringirem o hooliganismo e, acima de tudo, o envolvimento do governo central neste processo; mudangas ocorridas nos meios de comunicagao e, em especial, o advento da televisao e a emergencia da «imprensa de tabloide», com a sua produgao orientada em termos de competigao e o conceito de «valor das notfcias» orientado numa perspectiva comercial; e, finalmente, o recente colapso virtual do mercado de trabalho jovem. De acordo com a nossa perspectiva, estas caracteristicas, que sao todas, de certo modo, especificas, pelo menos historicamente, constituiram uma contribuigao significativa para a forma, conteudo e dimensao do hooliganismo do futebol desde a 49
Para um relatorio sobre as tendencias macho da Metropolitan Police, ver Police and People in London, Policy Studies Institute, Londres, 1983. A caracteristica de tais proflssoes, que parece ser uma das principals responsaveis pela produgao e reprodugao destas formas de identidade masculina, e o facto de nelas se veriflcar que a capacidade para «dominar-se a si proprio» e uma importante exigencia professional.
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decada de 50. Distinguimo-nos dos que escreveram sobre esta materia no que diz respeito a dimensao que se deve atribuir a qualquer uma, ou a qualquer combinagao destas caracteristicas, como estatuto causal central na explicagao do hooliganismo do futebol. A nossa pesquisa leva-nos a crer que os valores que sustentam o comport amen to hooligan nos jogos de futebol e em jogos de contextos semelhantes sao relativamente persistentes, profundamente caracteristicos e enraizados na longa duragao das comunidades de sectores especificos das classes trabalhadoras. Se temos razao, pode concluir-se que uma adequada compreensao do hooliganismo do futebol exige nao so a analise do desenvolvimento social (incluindo o «economico») desde a Segunda Guerra Mundial mas, de uma maneira mais decisiva, a explicagao do desenvolvimento, em primeiro lugar, da forma e do grau em que tais comunidades e os valores que estas adoptam foram produzidos e reproduzidos num periodo muito mais longo e, em segundo lugar, do grau de variagao do quadro em que o futebol constituiu um espago de luta para a exteriorizagao desses valores.
CAPITULO X 0 desporto como uma area masculina reservada: notas sobre os fundamentos socials na identidade masculina e as suas transformafies Eric Dunning
Introdugao Poucos sociologos hao-de discordar de que a transformagao das relagoes entre os sexos constitui uma das questoes socials mais importantes do nosso tempo, ainda que, decerto, a maioria considere este problema menos relevante do que a pobreza, a fome, o desemprego e os conflitos raciais1. Todavia, existe um aspecto segundo o qual as relagoes entre os sexos sao mais essenciais do que estas questoes, com excepgao da ameaga de guerra nuclear, que teria implicates universais nas suas consequencias caso se tornasse realidade. De facto, apesar de terem sido as mulheres da classe media dos paises industrializados, principalmente, que comegaram a tornar-se conscientes do dommio masculino ou do regime patriarcal como algo socialmente problematico, e a combate-lo, existe uma dimensao sexo/genero em todas as outras questoes sociais fundamentais como, por exemplo, nas de classe e raga. Contudo, apesar da universalidade e do significado social da diferenciagao e do caracter cada vez mais discutido das relagoes entre os sexos nas : Foi apresentada uma versao inicial desta comunicac.ao na Fourth Annual Conference of the North American Society for the Sociology of Sport, realizada em St. Louis, Missuri, em Outubro de 1983. Devo os meus agradecimentos aos colegas Clive Ashworth, Pat Murphy, Tim Newburn, Ivan Waddington e John Williams, pelos seus comentarios crfticos, dos quais beneficiei bastante.
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sociedades mais industrializadas — algo que e evidente, em especial, na destruigao e/ou transformagao das formas tradicionais do casamento e da familia, um fenomeno que parece ser actual —, nao se pode dizer que estes problemas tenham sido ate hoje teorizados de maneira adequada2 numa perspectiva sociologica. Enquanto dimensao da ideia global que e relevante nesta relagao, tao-pouco tern sido dedicada muita atengao ao desporto, tradicionalmente uma das mais importantes areas reservadas masculinas, e por esse motivo de potencial importancia para o funcionamento das estruturas patriarcais. Nao sera dificil encontrar possiveis razoes para esta dupla falta de imaginagao sociologica. Nos ultimos anos, em especial, em resultado do desafio feminino, tornou-se cada vez mais nitido que a sociologia surgiu como uma materia permeada de hipoteses de natureza patriarcal. Por exemplo, Comte julgava as mulheres como «intelectualmente inferiores» aos homens, e acreditava que a farmlia devia basear-se no predominio do marido3. No trabalho de Durkheim4, pode encontrar-se o mesmo tipo de hipoteses, as quais continuam a impregnar contributes modernas desta disciplina. A sociologia do desporto e uma das areas menos desenvolvidas da sociologia3 mas, dado o patriarcalismo implicito, em geral, na disciplina, nao surpreende que as hipoteses reveladoras de um incontestado dominio masculino tenham sido largamente integradas no ambito dessas contribui2 Escritoras feministas realizaram evidentemente muitos progressos a este respeito, mas, em consequencia do seu empenhamento ideologico, muito daquilo que se escteveuparece pelo menos, ate para muitos que simpatizaram com sua causa, nao possuir adequagao ao objecto. 3 Ver The Positive Philosophy ofAuguste Comte, traduzido e resumido por Harriet Martineau, Londres, 1853, p. 134 e seguintes. Para ser justo com Comte, embora ele aflrmasse que as mulheres estao «sob a perspectiva da sua constituigao num estado de infancia perpetua» e «incapazes... para as exigencias contmuas e intensas do trabalho mental quer pela fraqueza intrmseca da [sua] razao quer pela [sua] moral mais viva e sensibilidade fisica», tambem as considerou como «espiritualmente» superiores aos homens e, por conseguinte, como importantes sob o ponto de vista social. 4 Ver, por exemplo, a discussao sobre este assunto em Suicide, Londres, 1952, pp. 384-6. 5 Para uma reflexao sobre este problema, ver Eric Dunning, «Notes on Some Recent Contributions to the Sociology of Sport», Theory, Culture and Society, Vol. 2, n.° 1,1983, pp. 135-42.
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goes, como tern acontecido ate agora neste campo. Uma das consequencias desta situagao e a de que o caracter patriarcal do desporto moderno e o papel que este pode representar na conservagao da hegemonia masculina apenas tern sido questionado por um grupo de escritoras feministas. Contudo, na maioria dos casos, revelam a tendencia para tratar estes problemas como uma forma de discriminagao no desporto contra as mulheres6 e, embora o seu trabalho tenha contribuido para a abordagem de uma situagao onde isso era possivel, ainda nenhuma conseguiu realizar uma teorizagao sistematica das formas de dominio masculino que existem em qualquer area do desporto e das transformagoes que, neste ambito, se tern verificado. Esta comunicagao pretende ser um ponto de partida nesse sentido. Utilizando, em particular, dados britanicos, tenciono analisar o desporto como uma area masculina reservada, considerando o papel que ele representa, a par de outros factores, na produgao e na reprodugao da identidade masculina. No entanto, antes disso apresentarei algumas das principals hipoteses sociologicas sobre as quais se baseiam os meus argumentos.
O equilibrio de poder entre os sexos: algumas hipoteses sociologicas O primeiro ponto a referir e que a interdependencia de homens e mulheres, como todas as outras interdependencias sociais, e mais bem conceptualizada, pelo menos neste campo, em termos de equilibrio de poder, ou de «razao-poder», entre as partes envolvidas. Este constitui uma «estrutura profunda», no seio da qual se produzem e conservam as ideologias e os valores que orientam as relagoes entre os sexos. Embora tais ideologias e valores constituam um ingrediente activo no equilibrio de poder entre os sexos — no sentido, por exemplo, de poderem constituir um meio de mobilizagao dos homens e mulheres no combate pelo que consideram ser 6 Algumas excepgoes sao referidas por Boutilier e San Giovani no seu The Sporting Woman, Champaign, Illinois, 1983; Jennifer Hargreaves, «Action Replay: Looking at Women in Sport», Joy Holland (ed.), Feminist Action, Londres, 1984, pp. 125-46.
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os seus interesses —, e um facto que as transformagoes registadas ao nivel das relagoes entre os sexos e das ideologias e valores que as governam dependem, com frequencia, de mudangas verificadas previamente no equilibrio de poder subjacente, que nao sao intencionais nem se encontram implantadas em ideologias e valores articulados de forma especifica. O segundo ponto reside no facto de o equilibrio de poder entre os sexos, na medida em que o confronto e a violencia sao caracteristicas endemicas da vida social, revelar tendencia para oscilar a favor dos homens. Esta tendencia verifica-se, e claro, nas sociedades guerreiras, mas nas sociedades industriais, onde o poder das elites militares em relagao as elites civis e elevado, tambem se verifica o mesmo fenomeno. Esta disposigao anota-se, tambem, nas areas da estrutura social em que ha condigoes para a produgao e reprodugao de bandos de lutadores. O equilibrio de poder entre os sexos ira tambem variar a favor dos homens de acordo com o grau em que estes dispoem, em relagao as mulheres, de mais hipoteses de acgoes unificadas, e sempre que os homens monopolizam o acesso e o controlo das principals determinantes das oportunidades sociais, em especial, na economia e no Estado. Alem disso, em qualquer sociedade, quant o mais acentuadas forem as formas do dominio masculino, maior sera a tendencia para prevalecer a rigorosa segregagao entre os sexos. Um corolario destas conjecturas e que as hipoteses de poder dos homens terao tendencia para se reduzirem e as das mulheres para aumentarem sempre que na sociedade global ou numa das suas areas as relagoes se tornarem mais pacificas, nos casos em que as oportunidades de as mulheres se empenharem em acgoes unitarias vierem a aproximar-se ou a exceder as dos homens e na medida em que diminua o grau de segregagao dos sexos. Uma consequencia suplementar e a de que os valores macho se inclinam no sentido de um papel mais importante na identidade masculina nas condigoes sociais em que os confrontos sao frequentes e o equilibrio de poder se orienta com mais clareza a favor dos homens. Em conformidade com esta orientagao, na medida em que as relagoes sociais se apaziguam, as hipoteses de poder das mulheres aumentam, a segregagao sexual desaparece e as tendencias macho dos homens deslocam-se no sentido da civilizagao. Na base destas consideragoes encontram-se dois factos evidentes: em primeiro lugar, embora exista a este respeito um certo grau
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de imbricagao entre os sexos, os homens sao, de um modo geral, mais altos e mais fortes do que as mulheres e, por isso, tern mais capacidades de luta; e, em segundo lugar, a gravidez e o aleitamento dos filhos, entre outros factores, contribuem para diminuir as faculdades das mulheres neste dominio. As armas da tecnologia moderna tern, e claro, a capacidade de compensar e, eventualmente, de anular por completo as referidas vantagens dos homens. De modo similar, as tecnicas modernas de controlo do nascimento reduziram o tempo preenchido pela mulher com o estado de gravidez e no cuidado dos filhos. Por outras palavras, as hipoteses de ascendencia que provem, no caso dos homens, da sua forga e da sua capacidade como lutadores podem variar no sentido oposto ao do desenvolvimento tecnologico — isto e, quando o desenvolvimento tecnologico e reduzido, elas sao maiores e vice-versa. Contudo, parece razoavel aceitar que o nivel de formagao do Estado, em especial o grau em que o Estado e capaz de conservar um monopolio efectivo sobre a utiliza^ao da fore,a fisica, e, provavelmente, a influencia mais significativa de todas. Esta forma de abordar os problemas do poder e da identidade masculina decorre do trabalho de Norbert Elias7. Trata-se de uma perspectiva bastante diferente da que adoptam os marxistas, os quais atribuem o complexo macho, em grande parte, as necessidades e constrangimentos provenientes da realizagao do trabalho manual8. E dificil compreender, na verdade, como e que os homens foram capazes de produzir por si proprios um ethos em que a resistencia e a capacidade para lutar sao fulcrais e que celebrem a luta como uma fonte principal de sentido e de gratificagao na vida, quando esses constrangimentos, em especial, podem desempenhar um papel na conservagao das formas mais extremas da identidade macho atraves da contribuigao, por exemplo, de um premio a fore,a fisica. Com efeito, e discutivel que semelhante abordagem seja uma exemplificagao dos tipos de hipoteses patriarcais que ate agora tern estado implicitas em muitas das teorizagoes sociologicas. E este o caso sempre que a produgao e a reprodugao da vida material se conce7
Ver, acima de tudo, What is Sociology?, Londres, 1978; The Civilizing Process, Oxford, 1983. 8 Ver, por exemplo, o argumento apresentado por Paul Willis em Learning to Labour, Londres, 1977.
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bem, numa situagao privilegiada, no ambito da economia e quando o significado da familia e das relagoes entre os sexos e relegado, pelo menos de modo implicito, para uma posigao secundaria. Julgo que atingimos agora o ponto em que se podem considerar algumas relagoes entre o desporto e o regime patriarcal. Para ilustrar estas relagoes, discutiremos, de forma muito resumida, tres casos de estudo: o desenvolvimento dos «desportos de confronto» modernos; a emergencia e o subsequente (relativo) declinio da subcultura macho, que chegou a estar, vulgarmente, muito associada a Rugby Union Football; e, o fenomeno do «hooliganismo do futebol» que se verifica na Gra-Bretanha contemporanea.
ASPECTOS DO DESENVOLVIMENTO DOS DESPORTOS DE CONFRONTO MODERNOS Todos os desportos sao, por natureza, competitivos e, por isso, possibilitam a emergencia da agressao. Sob condigoes especificas, essa agressao pode transbordar em formas de violencia rnanifesta que sao contrarias as regras. Contudo, em alguns desportos — o raguebi, o futebol e o boxe sao exemplos —, a violencia, na forma de «representagao de luta» ou de «confronto simulado» entre dois individuos ou grupos, e um ingrediente fulcral e legitimo. Na sociedade actual, os desportos deste genero constituem areas privilegiadas para uma expressao socialmente aceitavel, ritualizada e mais ou menos controlada da violencia fisica. Nesta comunicagao apenas me preocuparei com esses «desportos de confronto», em particular com os que envolvem uma representagao de luta entre duas equipas. As raizes dos desportos de confronto modernos como o futebol, o raguebi e o hoquei podem ser determinadas directamente a partir de variances locais medievais e dos jogos populares modernos iniciais que passaram por uma variedade de nomes como football, hurling, knappan e camp balP. Jogavam-se, de acordo com as regras 9
Esta analise baseia-se naquela que foi apresentada na obra de Eric Dunning e Kenneth Sheard, Barbarians, Gentlemen and Players, Oxford, 1979-
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transmitidas oralmente, pelo meio das ruas das cidades e atraves dos campos. Nao existiam agentes de controlo «externo» como arbitros e juizes de linha e, por vezes, de cada lado, participavam cerca de mil pessoas. Apesar das diferengas que existiam entre eles, uma das caracteristicas essenciais de tais jogos, em relagao aos desportos modernos, consistia no elevado nivel de violencia manifesta que implicavam. Os jogadores envolviam-se numa expressao relativamente livre de emogao e exerciam apenas uma forma vaga de autocontrolo. De facto, esses jogos eram uma especie de confronto ritualizado, a nivel local, em que os grupos adversarios se opunham, ao mesmo tempo que criavam, sob uma forma relativamente agradavel, uma excitagao de caracter semelhante a que se desenvolvia em combate. Como e evidente, jogos deste tipo correspondiam a estrutura de uma sociedade em que os niveis de formagao do Estado e do desenvolvimento social eram, de um modo geral, relativamente reduzidos, onde a violencia era uma caracteristica mais regular e manifesta da vida quotidiana e o equilibrio de poder entre os sexos se inclinava nitidamente a favor dos homens. Em resumo, estes jogos populates expressavam uma forma extrema de regime patriarcal. Como tal, integravam a expressao macho de uma forma relativamente desabrida. O primeiro desenvolvimento significative, na linha da «modernizagao» desses jogos, ocorreu, no seculo XIX, nas escolas piiblicas10. Foi nesse contexto que os jogos passaram a sujeitar-se a restrigao imposta por regras escritas, muitas delas relacionadas expressamente com a eliminagao ou controlo das formas mais extremas de violencia. Por outras palavras, a incipiente modernizagao do futebol e de jogos semelhantes envolvia um complexo de mudangas que os tornavam mais «civilizados» do que os seus antecedentes. A comparagao e significativa. Isto e, nao se tornaram «civilizados» num sentido absolute, mas apenas um pouco mais civilizados, continuando a reflectir os preconceitos patriarcais, caracteristicos de uma sociedade que se encontrava num estadio ainda relativamente inicial da sua emergencia como um Estado-nagao urbano e industrial. Isso pode entender-se a partir do reconhecimento de que tais jogos se encontravam ideologicamente justificados, por um lado, como campos de treino para a guerra e, por outro, pelo seu 10
Ibid.
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aproveitamento na educagao dos chefes militares e administrativos do cada vez maior Imperio Britanico, e, tambem, em parte, como veiculo de imposigao e expressao da virilidade. Uma boa ideia das normas de virilidade que existiam nos jogos das escolas publicas deste periodo e fornecida numa descri^ao feita por um antigo estudante de Rugby, que foi publicada numa revista da escola de I860. Ele estabelecia o contraste entre o jogo desta epoca e o raguebi dos seus tempos de escola, uns dois ou tres anos antes. O antigo estudante de Rugby escreveu: «Devia so ter visto as brigas no jogo do sexto*, ha dois anos... Nesse tempo, os colegas nao se preocupavam nada com a bola, excepto quando se Ihes proporcionava um pretexto decente para dar pontapes... Lembro-me de uma briga!... Estavamos ja ha cinco minutos as caneladas e ainda nao haviamos alcangado superioridade nitida, de facto, os elegantes apenas tinham comegado a aquecer, quando alguem presente... nos informou que a bola estava ao nosso dispor, numa area a certa distancia... E, entao, la estava Hookey Walker**, o elegante cortou de forma rude pelo lado do sexto; o que vejo! Ele nao foi a pe para a escola! Liquidou apenas dez colegas para o res to da temporada e mandou meia duzia para casa ate ao flm da epoca... Ve-lo chegar [mjeramente de uma briga era um sinal para todas as senhoras soltarem gritos agudos e desmaiarem. Deus o abengoe, meu querido companheiro, porque eles gostavam era de ver, acima de tudo, uma briga hoje — para nossa grande vergonha. E, nesse tempo, nao existia nenhum desses jogos que existem agora, desleais e arrastados, nem os passes de bola de um para o outro, para a frente; tudo era viril e franco. Porque perder a bola uma vez, depois de ter estado numa escaramu^a, era tao grave como uma transgressao das regras do futebol, assim como prende-la quando se estivesse afastado do seu proprio campo. Nem se via nenhuma dessas fugas as brigas, que estao sempre a acontecer no presente. Ninguem aceitaria pensar que valesse alguma coisa enquanto nao estivesse da cor do coragao da sua mae da cabe^a ate ao dedo do pe dez minutos depois de o jogo ter come^ado. Mas, diabos me levem! Nao existe oportunidade para se conseguir um trambolhao decente nos dias de hoje; e, tambem, nao admira, quando se ve jovens dandies «vestidos sem olhar a despesas», *Sexto ano escolar. (N. da T.) **Jogador que liga ou que prende na primeira linha da formagao ordenada, mas, tambem, o «Disparate». (N. da T.)
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andando com afectagao nas traseiras de Big Side*, parecendo mesmo que os seus delicados esqueletos nunca poderiam sobreviver a qualquer contacto violento com a bola. Enforquem os jovens peraltas! Nao tarda muito, teremos colegas a jogar de botas calgadas e luvas de pelica cor de alfazema... A minha divisa e bater na bola quando ela esta perto e, quando nao esta, bater no colega mais proximo!11
Esta descrigao da uma boa imagem da nogao de «virilidade» que caracterizava futebol de Rugby nesse perfodo. Demonstra, tambem, o desacordo relative a hipotese de o jogo estar a transformar-se numa direcgao «civilizadora», ainda que o antigo estudante de Rugby recomendasse um regresso as glorias dos seus tempos de escola, quando «dar caneladas» — dar pontapes nas canelas dos adversaries — ocupava um lugar mais importante. Ao mesmo tempo, deplorava a opgao pelo «passe», uma vez que, em sua opiniao, isso estava a conduzir a «emasculac.ao» do jogo. O padrao de jogo anterior, que descreve, faz lembrar o antigo pugilato grego e a luta que, como Elias demonstrou, se baseavam num ethos guerreiro que considerava uma cobardia a esquiva ou o desvio perante os socos do adversario12. Dado o antigo estudante de Rugby considerar ser «desleal» e «efeminado» o acto de fintar ou passar a bola a um companheiro de equipa, a fim de evitar-se ser atingido pelos pontapes, parece que o raguebi, de inicio, se baseou num ethos semelhante. Nest a fase, a bola possuia relativamente pouca importancia. Os confrontos eram jogos de pontapes indiscriminados, nos quais o facto «viril» consistia em enfrentar um adversario e envolver-se em caneladas mutuas. De onde se conclui que a forc.a e a coragem, traduzidas em «caneladas», eram a criterio principal para o estabelecimento de uma reputagao de «virilidade» no jogo. A descrigao do antigo estudante de Rugby da tambem uma ideia sobre o ideal masculino da classe media de nivel superior e da classe media quanto a identidade feminina desse perfodo. Assim, enquanto o ideal masculino e retratado como arrogante e fisicaH
Anun. The New Rugbeian, Vol. Ill, I860; citado em C. R. Evers, Rugby, Londres, 1939, p. 52. 12 Norbert Elias, «The Genesis of Sport as a Sociological Problem», em Eric Dunning, The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971. Ver, tambem, o Cap. 3 deste. volume. *Uma parte especifica do recreio de Rugby. (N. daT.)
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mente forte, o ideal feminino — segundo a perspectiva masculina — e representado como timido, fragil e dependente. Isto correspondia a imagem dos papeis masculino e feminino dominantes no modelo de famflia nuclear patriarcal que na epoca se estava a tornar a norma entre as classes medias em expansao. E possivel observar que, ao contrario do que actualmente se encontra divulgado, senao mesmo do ponto de vista feminista, esta forma de famflia pode ter representado, pelo menos num aspecto, um deslocamento no sentido de as hipoteses de poder entre os sexos se tornarem iguais. Ou seja, porque ligava, com mais eficacia do que tinha sucedido antes, um maior numero de membros masculinos a famflia, sujeitando-os assim a possibilidade de um grau de influencia e de controlo feminino mais acentuado e regular. A transformagao «civilizadora» global que foi aqui descrita, atraves do exemplo do desporto, pode ter actuado, tambem, no sentido de as hipoteses de poder entre os sexos se tornarem iguais. Teria determinado um efeito semelhante o complexo de restrigoes internas e externas13 na expressao da agressividade do homem, imposto, por exemplo, atraves do codigo de comportamento «cavalhareiresco», restringindo-se deste modo as oportunidades de usar uma das suas principais vantagens de poder em relagao as mullheres — a sua forga fisica e correspondente superioridade como lutadores. Por sua vez, isto teria aumentado as oportunidades de as mulheres se empenharem por si proprias numa acgao unitaria, por exemplo, organizado marchas e manifestagoes. Teria esse efeito ao reduzir a probabilidade de que tais manifestagoes da unidade e do poder femininos nascentes pudessem desencadear uma reacgao demasiado violenta dos homens — num contexto domestico, dos maridos e pais e, no contexto das manifestagoes, da policia e do publico em geral. Em particular, na medida em que se pudesse esperar uma reacgao nao violenta dos homens a semelhantes actos politicos das mulheres, os receios destas seriam reduzidos e a sua confianga engrandecida de modo harmonioso no sentido de prosseguirem o combate por aquilo que acreditavam ser os seus direitos. Em resumo, parece aceitavel a hipotese de que o 13
Na perspectiva de Elias, e estritamente errado estabelecer dicotomias entre restrigoes «internas» e «externas». Os termos que utiliza sao Selbstzwange (auto-restrigoes) e Fremdzwange (restrigoes «outro», literalmente «estranhas»), e incide a sua analise sobre a alteragao de equilibrio verificada entre elas no tempo.
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deslocamento de poder entre homens e mulheres, que teve a sua primeira expressao piiblica no movimento das sufragistas, pode ter sido, pelo menos parcialmente, inerente ao desenvolvimento «civilizador» que acompanhou a emergencia britanica como um Estado-nagao urbano e industrial. Do debate desenvolvido ate aqui surge uma implicagao que e a seguinte: apesar de o desporto moderno continuar a estar inundado de valores patriarcais e apoiado em estruturas do mesmo tipo, o desporto emergiu como parte de uma mudanga «civilizadora», da qual um dos aspectos foi um deslocamento no sentido de se equivalerem, embora de forma tenue, as situagoes verificadas no equilibrio de poder existente entre os sexos. Contudo, uma das consequencias foi a contribuigao que deu para o desenvolvimento, em cert as esferas, de expressoes simbolicas do machismo. Um exemplo disso e o padrao de transgressao de tabu socialmente aceite que, pelo menos na Gra-Bretanha, ficou associado, em particular mas nao so, ao jogo da Rugby Union Football14. Procederei agora a analise de alguns aspectos mais evidentes deste desenvolvimento.
A origem e o declinio da subcultura macho no raguebi As tradigoes que se encontram relacionadas com a subcultura macho da Uniao de Raguebi sao encenadas depois do jogo, no autocarro que transporta os jogadores de regresso. As principals ac<;6es que as constituem incluem o strip-tease masculine, ou seja, uma simulagao ritual da equivalente actuagao feminina. O sinal habitualmente utilizado para que este ritual se inicie e uma cangao intitulada 0 Guerreiro Zulu. As cerimonias de iniciagao constituem um aspecto vulgar do raguebi. No decurso das cerimonias, o iniciado e despido — com frequencia, a forga — e o seu corpo, em especial os seus orgaos genitals, e profanado, eventual14 Ver Kenneth Sheard e Eric Dunning, «The Rugby Football Club as a Type of Male Preserve: Some Sociological Notes », International Review of Sport Sociology, 5 (3), 1973, pp. 5-24.
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mente, com graxa de calgado ou vaselina. O acto de beber cerveja ate ao excesso, acompanhado, com frequencia, de rituais e corridas que provocam o aumento do consumo da bebida, e a rapidez com que se atinge a embriaguez sao, tambem, aspectos que se implantaram decisivamente na tradigao do clube de raguebi. Uma vez embriagados, os jogadores cant am cangoes obscenas e, no caso de as mulheres ou namoradas de qualquer um deles se encontrarem presentes, a cangao Goodnight Ladies e cantada como um sinal para se retirarem. Dai em diante, os acontecimentos destinam-se exclusivamente aos homens e quaisquer mulheres que decidam ficar sao consideradas desonradas. Estas cangoes obscenas tern, pelo menos, dois temas frequentes: a imitagao, por um lado, de mulheres e, por outro, de homossexuais. De inicio, pode parecer que estes dois temas nao tern qualquer relagao, mas e razoavel admitir a hipotese de que ambos reflectem o incremento do poder das mulheres e a sua crescente ameaga a imagem tradicional que os homens tern de si proprios. O raguebi comegou a tornar-se um jogo para adult os por volta de 1850. No principio, era exclusive da classe media mais alta e de nivel medio, facto que sera talvez significative, porque a maioria das sufragistas e proveniente da mesma camada social. Por outras palavras, e razoavel supor que, neste periodo, as mulheres pertencentes a estes niveis da hierarquia social estavam a tornar-se, cada vez mais, uma ameaga para os homens, e que alguns destes reagiram atraves do desenvolvimento do raguebi — que nao foi, e claro, o unico enclave criado —, transformado, assim, em area masculina reservada, onde podiam reforgar a sua masculinidade ameagada e, ao mesmo tempo, imitar, denegrir e reificar as mulheres, a principal fonte de ameaga. Uma analise breve de um par de cangoes de raguebi ajudara a compreender como pode ter sido este o caso. Um dos principals aspectos, frequentes nas cangoes de raguebi, traduz-se no facto de integrarem uma atitude hostil, brutal, mas ao mesmo tempo medrosa, em relagao as mulheres e ao acto sexual. Na balada Eskimo Nell, por exemplo, mesmo o campeao de perseguigao de mulheres, Dead Eye Dick, e incapaz de proporcionar satisfagao sexual a Nell. Isso e uma questao delegada no seu homem de confianga, Mexican Pete, que cumpre a tarefa com o seu revolver de seis tiros». Em The Engineer's Hymn, o personagem central e um engenheiro cuja mulher «nunca estava satisfeita», tendo sido
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obrigado a construir uma maquina com o fim de cumprir a componente erotica do seu papel de marido. A maquina teve exito onde ele falhara, mas, neste processo, a sua mulher fora brutalmente morta. E talvez raro e pode mesmo nunca ter acontecido que nestas cangoes sejam caracterizados os homens e as mulheres «normais». Antes que o heroi possa satisfazer o insaciavel apetite sexual da «heroma», sao necessarios poderes sobre-humanos ou extra-humanos. Nada pode ser mais revelador da fungao destas cangoes na expressao simbolica, mas tambem, em certa medida, na redugao simbolica do medo relative as mulheres, que se reconhecem como poderosas e exigentes. Esses receios sao susceptiveis, de facto, de terem aumentado de forma proporcional ao poder das mulheres. O segundo tema comum destas cangoes obscenas e a troga dos homens efeminados e homossexuais. Uma das cangoes tradicionais nos circulos de raguebi tern como estribilho: Porque juntos somos esquisitos, desculpem-nos enquanto vamos Id acima. Sim, juntos somos todos esquisitos, E por isso que andamos por ai aos pares.
A fungao deste estribilho parece ser contra-atacar a acusagao, antes de esta se formular, e de realgar e reforgar a masculinidade por meio da troga nao apenas das mulheres mas, tambem, dos homossexuais. Nos ultimos anos, a norma e cada vez mais constituida por padroes menos segregados das relagoes entre os sexos, dado que as mulheres se tornaram mais poderosas e capazes de desafiar, de facto, a sua subordinagao, senao mesmo a sua objectividade simbolica, com um leve, mas ainda assim crescente, grau de sucesso. Nestas condigoes, os homens que se conservaram fieis ao antigo estilo e continuaram a gostar de participar em grupos masculinos devem ter sentido duvidas langadas sobre a sua masculinidade. Alguns podem mesmo ter comegado a duvidar de si proprios. Numa situagao social como a do clube de raguebi, onde a principal fungao era a expressao da masculinidade e a perpetuagao de normas tradicionais a este respeito, as duvidas deste genero devem ter sido duplamente ameagadoras. Os clubes de raguebi britanicos ja nao sao aquelas fronteiras nitidas que de inicio costumavam ser. Se a hipotese que avangamos aqui tern alguma validade, de que a emancipagao das mulheres desempenhou um papel importante no
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desenvolvimento destes grupos, tambem se adrnite que a continuidade deste processo foi um contribute significative para o enfraquecimento subsequente que se verificou atraves da debilitagao das estruturas e das ideologias que, em tempos, mantiveram os jogadores de raguebi profundamente unidos, sabendo-se como todos os grupos masculines constituem um processo complexo. Atingiu-se agora um estadio em que as mulheres sao visitas bem-vindas aos clubes de raguebi. Em parte, foram contingencias financeiras que provocaram esta mudanga, em especial a utilizagao de bailes com o fim de reunir fundos. Mas este facto economico reflecte mudangas mais vastas que ocorreram na estrutura social, em particular na posigao das mulheres no quadro desta estrutura. Os bailes permitiram que as mulheres se introduzissem, com aprovagao oficial, na area reservada masculina. Isto nao significa que, antes, a sua presenga tenha sido inteiramente proibida. Pelo contrario, sempre foram bem-vindas — para fazer cha, preparar e servir refeigoes e para admirar e animar os seus homens. Porem, no passado, a sua presenga so era tolerada no caso de se manterem numa posigao subordinada. As mulheres mais emancipadas que comegaram agora a entrar em clubes, quer com o fim de dangar ou simplesmente de tomar uma bebida com os homens que as acompanham, estao, no entanto, cada vez mais relutantes em aceitar este facto. A sua tendencia e para valorizarem a independencia, para alcangarem a igualdade e para afirmarem, relativamente ao homem, o poder que a sua atracgao como parceiras sexuais Ihes permite. As mulheres nao desejam acentuar um comportamento que consideram intencionalmente agressivo ou, em contrapartida, recorrem elas proprias a utilizagao de obscenidades como um sinal da sua emancipagao. Dado que estamos a analisar uma actividade numa area social onde a predominancia e masculina, o facto de as mulheres acompanharem os homens nao implica o desaparecimento definitive do domfnio masculine. No entanto, as mudangas que acabamos de discutir podem dar uma indicagao do grau em que o domfnio masculine na sociedade britanica comegou a ser combatido e, em certa medida, corroido. E claro que, ao mesmo tempo, revela quanto as mulheres tern ainda de avangar, a fim de se aproximarem do nivel de total igualdade com os homens. Uma das razoes per que, neste caso, elas tern de continuar a acompanhar os homens e
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o facto de existirem, em comparagao, poucas actividades de lazer que se encontrem disponiveis para as mulheres. Estas continuam limitadas a papeis domesticos e familiares em grau muito superior ao dos homens. A ausencia de possibilidades de lazer adequadas as mulheres reflecte esse facto. For isso, continua a ser dificil que as mulheres entrem nos bares sem a correspondente perda de estatuto ou sem atrairem uma atengao nao desejada da parte dos homens. For sua vez, isto constitui, em grande parte, o resultado de seculos de dominio masculino e de uma estrutura social global que continua, de um modo geral, a reflectir e a reforgar este predominio. Isso traduz, igualmente, a existencia de padroes de socializagao que destinam as mulheres, em especial, para as coisas da casa, para a realizagao de papeis professionals subordinados e que limitam os seus horizontes nao so na esfera professional mas, tambem, na sua esfera de lazer. Parece razoavel aceitar a hipotese de que as mudangas que ocorreram nos clubes de raguebi britanicos sao sintomaticas das mudangas sociais, de um modo geral associadas ao desenvolvimento do desporto moderno. Neste trabalho, nao temos espago suficiente para uma discussao completa das raizes sociais destas mudangas. Bastara dizer que elas constituem um dos aspectos da emergencia da Gra-Bretanha como um Estado-nagao urbano e industrial e que este processo envolve, na interacgao dos seus componentes fundamentais, a emergencia de uma estrutura social caracterizada por padroes de comportamento mais «civilizados» e um grau mais elevado de igualdade entre os sexos. Contudo, existe, pelo menos, uma excepgao aparente a esta generalizagao: o fenomeno do «hooliganismo do futebol». Isto porque ele evoluiu, segundo parece, de uma forma oposta a que sugere que as mudangas «civilizadoras» constituiram uma parte do desenvolvimento continue da GraBretanha como um Estado-nagao urbano e industrial. Antes de adiantar, em conclusao, algumas observagoes, procederei a uma breve analise do hooliganismo do futebol15. 15 A analise aqui apresentada baseia-se na de Eric Dunning, Patrick Murphy e John Williams, «The Social Roots of Football Hooligan Violence», Leisure Studies, Vol. 1, n.° 2,1982, pp. 139-56; ver tambem «If You Think You're Hard Enough», New Society, 25 de Agosto de 1981; e Hooligans Abroad: the Behaviour and Control of English Fans at Football Matches in Continental Europe, Londres, 1984. Ver, tambem, Cap. IX deste volume.
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A sociogenese da violencia do hooliganismo do futebol As caracteristicas mais evidentes do hooliganismo do futebol sao os confrontos e a exibigao de agressao entre grupos de fas rivais. Os confrontos dos hooligans do futebol assumem muitas formas diversas e podem ocorrer numa variedade de contextos diferentes, para alem do proprio campo de futebol. For exemplo, podem assumir a forma de um combate corpo a corpo entre dois adeptos rivais ou entre dois pequenos grupos de adversaries. Seja qual for a dimensao do confronto, por vezes sao ai utilizadas armas, como facas, por exemplo, mas isso nem sempre acontece. Os confrontos dos hooligans do futebol podem assumir, igualmente, a forma de langamentos, nos quais se usam, como munigoes, projecteis que se podem classificar desde inofensivos, como amendoins e copos de papel, ate outros que sao potencialmente mais perigosos, como dardos, moedas, tijolos, placas de cimento armado, fogos-de-artificio, bombas de fumo e, como ja aconteceu em uma ou duas ocasioes, garrafas com petroleo. De um modo geral, o langamento de projecteis verifica-se no contexto do proprio campo de futebol, embora o facto nao seja desconhecido no exterior do recinto, em especial quando uma forte presenga policial evita que os grupos de fas adversaries estabele^am contacto directo. Em consequencia do policiamento oficial na segregagao dos fas rivais -— policiamento que foi introduzido, nos finais dos anos 60, como um meio de combater o hooliganismo do futebol, ainda que uma das suas consequencias tenha sido o deslocamento do fenomeno e o aumento da frequencia da sua ocorrencia para o exterior dos recintos —, os combates corpo a corpo sao relativamente raros nas bancadas, apesar de pequenos grupos de fas conseguirem, por vezes, devido ao facto de nao usarem distintivos identificadores, infiltrar-se no territorio dos seus rivais com o fim de provocarem um confronto. A participagao numa «invasao» bem sucedida constitui uma fonte de enorme gloria nos circulos hooligans do futebol. Contudo, de um modo geral, os confrontos verificam-se actualmente quer antes do jogo, por exemplo, nos bares do centro da cidade ou a sua volta, quer apos o desafio, quando a
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policia tenta conduzir os fas, vindos de fora, para a estagao do comboio ou da camioneta. E entao que surge a oportunidade da ocorrencia de maior numero de confrontos. Com frequencia, estes comegam com uma «corrida», isto e, com cerca de duzentos ou trezentos adolescentes e j ovens adultos que avangam pela rua a procura de uma falha nas barreiras da policia, o que Ihes permitira estabelecer contacto com o «inimigo». Quando conseguem iludir com exito o controlo da policia — os que podem chamar-se os hooligans hard core do futebol utilizam estrategias bem elaboradas com o objectivo de atingir os seus fins —, o que de uma forma caracteristica acontece e uma serie de recontros disperses por uma area bastante alargada, envolvendo cada um deles cerca de, digamos, vinte ou trinta jovens. Os confrontos verificam-se, tambem, quando grupos de fas rivais se encontram, por acaso, em comboios subterraneos e cafes de auto-estradas. Em complemento, os confrontos verificam-se, por vezes, no seio de grupos de fas particulares, para onde sao atraidos participantes rivais, por exemplo, de diferentes bairros locais ou de outras areas da cidade. Tambem nao sao desconhecidos os «confrontos de grupos» previamente combinados. Por exemplo, fas de varios clubes de Londres reunem-se, por vezes, em Euston ou num outro terminal de estagao de caminho de ferro da capital, com o fim de se envolverem num ataque con junto aos adeptos visitantes provenientes do Norte. Durante o jogo, os grupos de fas adversaries dirigem a sua atengao de uns para os outros tanto ou mais do que o fazem em relagao ao proprio jogo, cantando, entoando estribilhos e gesticulando como forma de expressar a sua oposigao. O tema frequente das suas cangoes e coros e dos desafios a luta e as ameagas de violencia. Grupos particulares de fas podem possuir o seu proprio repertorio de cangoes e de coros, mas muitas sao as variagoes locais de um con junto de temas conhecidos. Como Jacobson demonstrou16, nesta relagao, o facto de os seus poemas serem pontuados por palavras como «6dio», «morte», «luta», «pontape» e «rendigao» e fulcral, transmitindo imagens de batalha e de conquista. Aqui estao estas variagoes, citadas por Jacobson, do repertorio dos fas do Chelsea:
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Simon Jacobson, «ChelseaRule-OK»,N«£;5oa«fy, 1975, Vol. 31, pp. 780-3.
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0 DESPORTO COMO UMA AREA (Cangao para: Those Were the Days My Friend) Nos somos o Shed17, meus amigos, Tomamos Stretford End18. Vamos cantar e dangar e fazer tudo de novo. Vivemos a vida que escolhemos, Lutamos e nunca perdemos. Porque nos somos o Shed, Oh, sim! Nos somos o Shed. (Cangao para: I Was Born under a Wandering Star) Eu nasci em Chelsea Shed. As botas fizeram-se para dar pontapes, Os revolveres para disparar. Venham para o Chelsea Shed E todos teremos botas.
Para alem da violencia, a castragao simbolica dos fas rivais e outro tema corrente das cangoes e coros hooligans', sendo um exemplo disso as referencias que Ihes fazem, a eles e/ou a equipa que apoiarn, de poofs ou wankers, esta ultima acompanhada por uma grande quantidade de representagoes gestuais do acto de masturbagao masculine. Outro ainda e o de caluniar a comunidade de fas adversaries como, por exemplo, com a seguinte cangao: (Cangao para: In My Liverpool Home) Nos seus bairros de lata de Highbury, Procuram qualquer coisa para comer no balde do lixo. Nos seus bairros de lata de Highbury, Encontram um gato morto e pensam que e um banquete.
Como se pode ver a partir desta descrigao, pelo menos uma proporgao significativa dos fas do futebol que se identificam pela etiqueta hooligan parece estar tanto ou mais interessada no confronto como em assistir ao futebol. Para eles, o jogo e, em especial, o meio de expressao do seu machismo, quer impondo, de facto, a
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The Shed e uma area de bancadas cobertas em Stamford Bridge, o campo do Chelsea FC. 18 The Stretford End, os lugares do peao em Old Trafford, o campo do Manchester United. Os «peoes de Stretford» eram famosos pelas suas proezas hooligan nos inicios e meados dos anos 70.
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derrota aos fas rivals e provocando-lhes a fuga quer efectuando-o, pela via simbolica, por meio de cargoes e de coros. Considerando isto e reportando-nos a discussao inicial, e evidente que uma componente central do hooliganismo do futebol e a expressao de uma identidade masculina particular, o que se pode designar por «um estilo masculino violento». Os dados existentes mostram que a maioria dos hooligans hard core do futebol e proveniente dos sectores socioeconomicos mais desfavorecidos das classes trabalhadoras, e parece aceitavel considerar a hipotese de que este estilo masculino violento tern origem em caracteristicas estruturais especificas das comunidades das classes trabalhadoras de nivel mais baixo. Gerald Suttles forjou o termo «segmentagao ordenada» para descrever esse tipo de comunidades, e aflrma que uma das suas caracteristicas dominantes e o «grupo de companheiros so de um sexo» ou os «bandos de esquina»19. Este autor sugere que tais grupos parecem «desenvolver-se, de maneira logica, a partir de uma acentuada enfase que e colocada no nivelamento por idades, na segregagao entre os sexos, na unidade territorial e na solidariedade etnica». Contudo, documenta a ocorrencia de conflitos intra etnicos entre grupos e recbnhece, noutro lugar, que a diferenciagao etnica e a solidariedade sao aspectos contingentes na sua formagao, mais do que fact ores necessarios. Isto e, o nivelamento por idades, a segregagao sexual e a identificagao territorial parecem ser as principals estruturas internas determinantes. Numa comunidade em que os elementos centrais da estrututa social sao estes, os adolescentes do sexo masculino vivem, de um modo geral, dos seus proprios expedientes e tern propensao para se unir em grupos, determinados, por um lado, por lagos de parentesco e proximidade de residencia e, por outro, pela ameaga que constitui o desenvolvimento de «bandos» paralelos nas vizinhangas proximas. Essas comunidades tendem, tambem, a fragmentar-se no piano interno. Suttles aflrma ainda que a excepgao pode ocorrer quando se verifica ou se ouve falar de uma luta de bandos, porque esta pode mobilizar a fidelidade dos membros masculinos em toda a comunidade. No desenvolvimento desta analise, Suttles introduziu, em fase
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Gerald D. Suttles, The Social Order of the Slum: Ethnicity and Territory in the Inner City, Chicago, 1968.
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posterior, o conceito de «vizinhanga protegida», assim sugerindo que os grupos de adolescentes de rua, que crescem em comunidades de bairros miseraveis podem ser considerados como «bandos vigilantes», que se desenvolvem devido «a insuficiencia das instituigoes formais responsaveis pela protecgao da propriedade e das suas vidas»20. Esta e uma ideia interessante, compativel, em certos aspectos, com a teoria do «processo de civilizagao» de Elias, a qual da enfase ao papel representado pelo desenvolvimento do controlo do Estado na emergencia de padroes sociais «mais civilizados». Ou seja, de acordo com Elias, poderiamos encontrar, mesmo num Estado-nagao urbano e industrial, niveis relativamente elevados de violencia manifesta em comunidades onde a actuagao do Estado se revela incapaz de exercer, ou nao deseja aplicar, um controlo efectivo. Deixem-me agora explorar o caminho pelo qual a estrutura de tais comunidades conduz a produgao e reprodugao da «masculinidade violenta», enquanto uma das suas estruturas dominantes. Na medida em que as suas estruturas internas se aproximam da «segmentagao ordenada», e dado que estas nao estao sujeitas a um eficiente controlo do Estado, as comunidades de nivel mais baixo das.classes trabalhadoras tendem a criar normas que, relativamente as de outros grupos sociais, toleram um elevado nivel de violencia nas relagoes sociais. Em termos correlativos, tais comunidades exercem comparativamente menos pressao sobre os seus membros no sentido de exercerem autocontrolo ao nivel das suas tendencias violentas. Varios aspectos da sua estrutura orientam-se nessa direcgao. Deste modo, em relagao ao controlo adulto, a comparativa liberdade que e vivida pelas criangas e adolescentes das classes trabalhadoras signiflca que os ultimos tern a propensao para interagirem de forma relativamente violenta, desenvolvendo hierarquias de dominio em que a idade e a forga fisica sao determinantes fundamentals. Este padrao e reforgado pelos padroes caracteristicos dos adultos, que sao dominantes nas comunidades deste tipo. A segregagao sexual, o predominio masculino do homem sobre a mulher e a consequente ausencia de pressao de «suavizagao» feminina desenvolvem-se na mesma direcgao. Com efeito, na medida em que nessas comunidades as mulheres evoluem de maneira a serem relativamente violentas e para esperarem um comportamento violento 20
Gerald D. Suttles, The Social Construction of Communities, Chicago, 1972.
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da parte dos seus companheiros, as tendencias dos membros masculinos acabam por conciliar-se. A frequencia de conflitos entre familias, vizinhos e, acima de tudo, «bandos de esquina» constitui um con junto de reforgos posteriores. Em resumo, as comunidades das classes trabalhadoras de nivel mais baixo parecem caracterizarse por uma especie de «ciclo de retorno positivo», tornando a recurso a violencia, virtualmente, muito elevado em todas as areas das relagoes socials, em especial por parte dos membros masculinos. Um dos efeitos deste ciclo e a atribuigao de prestigio aos membros masculinos capazes de lutar. Em termos correlativos, verifica-se a tendencia para estes membros masculinos desenvolverem o gosto pelo confronto, para considerarem a luta como uma fonte elementar de significado e de gratificagao na vida. A este respeito, a diferenga fundamental entre as comunidades das classes trabalhadoras de nivel mais baixo e as dos seus equivalentes mais «respeitaveis», de niveis medio e superiores, parece ser a de que, nestes ultimos, a violencia colocada nas relagoes face a face e condenada, em geral, enquanto, no caso dos primeiros, e por norma desculpada e recompensada. Uma outra diferenga consiste no facto de existir nas classes «respeitaveis» a disposigao para a violencia ser «ocultada» e, quando esta ocorre, para assumir, em contrapartida, uma forma mais «instrumental», conduzindo ao despertar de sentimentos de culpa. Nas comunidades das classes trabalhadoras «rudes», pelo contrario, a violencia tende a manifestar-se, em grau elevado, em publico, assumindo, em contrapartida, uma forma «expressiva» ou «afectiva». Como tal, contribui, em grau mais elevado, para o despertar de sentimentos de prazer. E razoavel avangar a hipotese de que e o «estilo masculino violento» produzido, desta maneira, nas classes trabalhadoras «rudes» que, em especial, se manifesta nos confrontos dos hooligans do futebol. O que significa que sao os adolescentes e jovens deste sector das classes trabalhadoras que constituem a dimensao hard core dos que, com maior persistencia, se empenham nos actos mais violentos ocorridos no contexto do futebol. E claro, o futebol nao e a unica forma atraves da qual este estilo se manifesta. Contudo, em grande medida, ele constitui, sob muitos aspectos, um quadro adequado. Porque o proprio jogo de futebol e a representagao de um confronto que se baseia, no fundamental, na expressao da masculinidade, embora de uma forma que e aprovada e controlada
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socialmente. A equipa de futebol e, tambem, um factor da identificagao dos adolescentes e dos j ovens adultos do sexo masculino das classes trabalhadoras, e os ultimos parecem ver o estadio, em particular os lugares do peao, como o seu proprio «relvado». Ao mesmo tempo, o futebol atrai para o seu territorio, com regularidade, um «inimigo» facilmente identificavel, os adeptos da equipa adversaria, que sao considerados os «invasores». Finalmente, a grande multidao reunida num encontro de futebol proporciona um quadro onde aquilo que e oficialmente entendido como actos «anti-sociais» pode desencadear-se com relativo anonimato e impunidade, e a presenga acentuada da policia proporciona a excitagao suplementar dos atritos regulares com a lei. Consideremos agora, em termos de conclusao, algumas observances.
Conclusao Nesta comunicagao, sugeri que as origens de um certo numero de «desportos de confronto» modernos podem ser tragadas a partir de uma serie de jogos populares, nos quais a violencia constitui o indicador do seu enraizamento numa sociedade que foi mais violenta e, por isso, mais profundamente patriarcal do que a nossa. Reconstituf a modernizagao incipiente destes desportos nas escolas publicas, sugerindo que as mudangas «civilizadoras» que ocorreram no quadro desta ligagao foram sintomaticas de mudangas complexas mais vastas, das quais um dos efeitos foi o aumento do poder das mulheres em relagao aos homens. Alguns homens reagiram a este deslocamento de poder atraves da criagao de clubes de raguebi — que nao foram, e claro, os unicos enclaves desenvolvidos com este objective — assim transformados em areas masculinas reservadas, onde podiam de forma simbolica imitar, reificar e caluniar as mulheres, que entao, mais do que nunca, representavam uma ameaga ao seu estatuto e a imagem que tinham de si proprios. A progressiva emancipagao das mulheres destruiu, de forma substancial, este aspecto da «subcultura» do raguebi. Finalmente, analisei a aparente contradigao da minha tese sobre o «hooliganismo do futebol», sugerindo que uma das suas caracteristicas prin-
CAPITULO X
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cipais e o «estilo masculino violento» que e estruturalmente produzido e reproduzido entre sectores especificos das classes trabalhadoras de nivel mais baixo. De facto, isso nao constitui uma contradigao a minha tese, mas sim um indicador da irregularidade com que se verificaram os processes «de civilizagao» e da formagao do Estado, e de que ainda existem areas da estrutura social britanica actual que continuam a gerar agressividade macho, embora de uma forma menos vincada. A diferenga fundamental entre o complexo macho manifestado no hooliganismo do futebol, e, de um modo geral, no estilo masculino violento do sector «rude» das classes trabalhadoras, e a que se verifica no raguebi consiste no facto de a violencia ffsica e dureza dos jogadores nesta modalidade tender a orientar-se, de uma forma socialmente consentida, para o seio do proprio jogo, enquanto a das classes trabalhadoras «rudes» tende a ser, antes, uma pratica fundamental na vida. Para alem disso, e digno de assinalar que, enquanto os jogadores de raguebi, no auge da subcultura da sua area reservada, tinham a tendencia para imitar, objectivar e caluniar simbolicamente, atraves de rituais e de cangoes, as mulheres, estas nao figuravam nas cangoes e coros dos hooligans do futebol. Isto talvez seja um indicador do reduzido poder das mulheres nas comunidades das classes trabalhadoras de nivel mais baixo e, por consequencia, do facto de estas constituirem uma ameaga menor para os homens. Nestas circunstancias, as mulheres estao de facto presentes e sao exploradas e submetidas, num grau mais elevado, a violencia dos homens. A principal indicagao desta analise consiste provavelmente no facto de que o desporto parece ter somente uma importancia secundaria na produgao e reprodugao da identidade masculina. As caracteristicas da estrutura social mais alargada, que afectam as hipoteses de poder relativas dos sexos e o grau de segregagao sexual que existe no seio da necessaria interdependencia dos homens e das mulheres, parecem ser, a este respeito, de significado bastante maior. Quanto a isso, tudo o que o desporto parece assumir, no quadro desta ligagao, e o desempenho de um papel secundario e de reforgo. No entanto, o desporto e crucial na sustentagao de formas mais atenuadas e controladas de agressividade macho no contexto de uma sociedade onde so alguns papeis profissionais, como os do exercito e da policia, oferecem ocasioes regulares para
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lutar e onde a orientagao global do desenvolvimento tecnologico tern sido, desde ha muito tempo, a de reduzir a necessidade de utilizar a forga fisica. Evidentemente, na medida em que a socializagao das mulheres continue a processar-se no sentido de se sentirem atraidas pelos homens macho, os desportos, em especial os que impliquem confronto, hao-de desempenhar um papel de certo significado na perpetuagao do complexo macho e da dependencia das mulheres. Sera inutil especular acerca da hipotese de os desportos de confronto continuarem ou nao a existir numa sociedade «civilizada» mais avangada do que a nossa. A este respeito, no entanto, uma coisa parece, de certo modo, assegurada, nomeadamente que, nao obstante o equilibrio poder originar, a curto e a medio prazos, conflitos, tal sociedade integrara, a longo prazo em grau mais elevado do que no presente, a igualdade entre os sexos, as classes e as «ragas».
INDICE DE AUTORES A BUSCA DA EXCITA^AO
ADORNO, 20, 376. AGOSTINHO, Santo, 126, 127, 128. ARIST6TELES, 120, 123, 124, 126, 158. BECKFORD, William, 248, 249 (nota), 251 (nota). BOURDIEU, P., 14. BRISAEUS, 145. CAILLOIS, Roger, 157. CANNON, Walter B., 118. CLARKE, John, 365, 366. COHEN, Philipp, 366, 370. CRICK, 27.
GIDDENS, Anthony, 13. GOUDSBLOMJ., 20. HALL, Stuart, 365, 366. HARRE, Rom, 350, 366. HARRINGTON,;. A., 369. HARRISON, 370. HART, Dale P., 328. HOMANS, G., 284, 285. HOMERO, 216. HORKHEIMER, 20. HUIZINGA, Johan, 305, 306, 307, 309, 310, 314, 323, 335. JACOBSON, Simon, 405.
DAHRENDORF, Ralf, 285. DARWIN, C, 24. DEM6CRITO, 219. DENNEY, R., 335. DUMAZEDIER, Joffre ,115. DUNNING, Eric, 39, 89, 90. DURKHEIM, E., 15, 228, 318, 319, 323, 329, 338, 390. ELIAS,Norbert,9,10,12,19,20, 28, 30, 32, 301, 303, 306, 311, 318, 319, 320, 322,323,325,328,329,332,335, 338, 378, 381, 393, 397, 408. ERASMO, D.,41. EVANS-PRITCHARD,E. E., 370. EURIPEDES, 124, 126, 215. EYSENCK, H.J., 327. FIGER, L, 329. FILOSTRATO, 203, 204. FOX, R., 329. FREUD, S., 211, 212 (nota).
KITCHIN, Laurence, 18. LE BON, Gustave, 92, 93. LOCKWOOD, David, 14, 15. LORENZ, C., 350. MANHEIM, K., 19. MARSH, Peter, 330, 350, 366, 367, 369. MARX, Karl, 24, 366. McINTYRE, Thomas, 328. MELNICK, Merrill J., 328. MENNELL, S., 25. MILLS, C. Wright, 36. MILTON, J., 123, 124. MORRIS, Desmond, 367. MORRISEY, 25. NEUMAYER, E. S., 127. NEUMAYER, M. H., 127. NIAS, K. D., 327. OWEN, 333, 334.
PARSONS, Talcott, 153. PATRICK, G. T. W., 127. PLATAO, 123, 210, 217, 219, 228. RIESMAN, David, 335. RIGAUER, B., 306, 307, 308, 309, 310. ROBINS, David, 370, 371. ROSSER, Elisabeth, 350, 366. SCOTSON. John, 89. SIMMEL, G., 36. S6CRATES, 217. STEPHENSON, William, 157. STONE, G. P., 14, 306, 307, 309, 310. SUTTLES, Gerald, 368, 370, 371, 372, 382, 407. TAYLOR, Ian, 364, 365, 366. TRIVIZAS, Eugene, 369. TROLLOPE, A., 313. TUCIDIDES, 215. WATSON, 27. WEBER, Max, 12, 330. WEIS, Kurt, 328. YIANNAKIS, Andrew, 328.'
INDICE TEMATICO
ATITUDES, 90, 298; — para com o tempo, 43, 44. CADEIAS DE INTERDEPENDENCE, (ver INTERDEPENDENCE). ClfiNCIA, 18, 67; ciencias humanas, 22; — naturals, 40, 41; — socials, 41; blologia, 161, 163; — humana, 162; biologico, 21; —s, 162, 164; biologos, 33, 98, 163, 164; fisiologia, 36, 227; fisiologicos, 34, 165; fisiologistas, 166; historia, 36, 227; — das ideias, 41, 43; historiadores, 227; psicologia, 9, 163; — social, 166; psicologico, 21, 134, 164, 165; —s, 162; psicologos, 33,98, 163, 164, 166, 169, 170; sociologia, 9, 12, 14, 25, 36, 40-41, 67, 162, 163, 227, 290; paradigmas dominantes na —, 16; sociologica, explicagao —, 14; investigagao —, 10, 18, 36, 166; pesquisa —, 40; teoria —, 14; tradicjio —, 10, 14; investigates —, 227; principals correntes —, 13; teoria e investigaC.ao —, 17, 18, 36, 37; teorias —, 36, 231; teorizagoes —, 393; sociologico, 21, 34, 162, 164; cfrculos —, 23; termos —, 40; trabalhos —, 47; sociologos, 13, 17, 33, 36, 40, 88, 163, 166, 170, 227, 236, 304; campo de visao dos —, 17; — de espirito filosofico, 43; — de lingua inglesa, 37; valores de compromisso dos — , 1 5 . PENSAMENTO, — reducionista e dualista ocidental, 17; — dicotomico e dualista, 19; dicotomia naturalismo/antinatura-
lismo, 22; dicotomia tradicional, 37; oposicjio dico-tomica, 35; formas dicotomicas, 25; sobreposic,6es dicotomicas, 21; dualismo, 21; —espirito e corpo, 17; empirismo, 9; empiricismo abstracto, 36; forma reducionista, 23; funcionalismo, 9, 36. TEORIA DE NORBERT ELIAS, 30, 301, 303, 306, 311, 318, 319, 320, 322, 323, 325, 328, 329, 332, 335, 338, 378, 381, 393, 397, 408; teoria sociologica de Elias, 19-32; perspectiva de —, 12; a sfntese de —, 28; analise e sfntese, 27; de modo global, 34; estudo —, 20; Escola de Frankfurt, 20; fertilizacjio cruzada, 21, 145; methodenstreit, 20, 21; aperfeigoamento de um metodo, 22; — cienticista, 22; — comparative, 43; — de investigacjio, 43; o «metodo» de investigagao cientffica, 40, 41; metodos cientiflcos, 20; metodos conceitos e modelos, 23; perspectiva configuracional, (ver CONFIGURAgAO); perspectiva do desenvolvimento, (ver DESENVOLVIMENTO); smtese e analise, 21; sfntese «eliasiana», 37; — mais adequada ao objecto, 22; prioridade a —, 21; synthesis, 36. CIVILIZA^AO, arranques de —, 75; auto-escalada da —, 81; avango de —, 43, 62, 78, 79, 241; avancos de —, 43, 58, 59; caracter de —, 61; — da sociedade francesa, 61; — dos jogos de competic.ao, 45; conduces de —, 75; impulse de —, 241; impulse de
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A BUSCA DA EXCITA^AO
paciflcagao e de —, 62; impulses de —, 75; padroes de —, 69; pressoes de —,353; processo de —, 11, 24, 30, 31, 43, 44, 61, 70, 75, 76, 104, 126, 156, 171, 196, 197, 211, 218, 241, 242, 244, 249, 263, 311, 328, 332, 336, 338, 378, 381, 408, 411; teoria do processo de —, 34, 35, 37, 196; autoconstrangimento, 89; autocontrolo, 30, 31, 45, 69, 76, 78, 79, 89, 104, 125, 166, 167, 172, 176, 177, 321, 325,338,342, 346, 354, 373, 395, 408; autodisciplina, 224; autodomfnio, 74, 79, 88, 89, 92, 101, 138, 166, 197, 198, 213, 216, 256, 336, 340, 377; padroes socials de —, 75; auto-restrigao, 276, 287; CIVILIDADE, 41; CIVILIZADOR, desenvolvirnento —, 399; efeito —, 346, 381; impulso —, 224; processo —, 214; autocontrolos —es, 167; direcgao civilizadora, 397; mudanca —, 399, 403, 410; transformagao —, 324, 398; CIVILIZAR, 41; PADROES CIVILIZADOS, 194; DESCIVILIZAgAO, 33, 75; impulso de —, 76; facto de —, 89; processo de —, 75, 327. COMPORTAMENTO, 17, 39, 44; — agressivo, 91, 356, 373, 374; — da multidao, 128; codigo de —, 203; — cavalheiresco, 398; — hooligan, 356, 367, 388 (ver FUTEBOL); — «irracional», 16; — «racional», 16; reguladora do —, 30; — violento, 350, (ver VIOLENCIA). COMUNIDADE, 44, 407; comunidades, 344; — de bandos vigilantes, 407; — de bebidas, 153; comunitarismos, 156; gemeinschaft e gesellscbaft, (ver LAZER). CONDUTA, codigo de —, 41, 42, 43, 56, 57, 81; modelos sociais de —, 41; o domfnio da —, 41; padroes mais diferenciados de —, 61; refinamento das —s, 30; codigo das maneiras, 47; refinamento das maneiras, 41, 251; centre de refinamento, 64. CONFIGURAgAO, 78, 79, 87, 213, 215, 230, 232, 233, 235, 236, 244, 248, 250-251, 280, 282, 283, 289, 290,
293, 295, 302, 325, 368; — de base, 236, 240; — dinamica, 137, 282, 289, 290, 291, 297; — duplamente limitada, 32; — em mudanga, 88; modelos de —, 76; — social, 87, 211, 301, 302, 318, 321, 372; — social global, 316, 339; configuracoes, 25-26, 35, 49, 77, 78, 86, 154, 230, 233,280,290, 291,295, 297; — de grupo, 157; — dinamicas, 236; dinamica das —, 25, 27; dinamica imanente das —, 30; — humanas, 27; — sociais, 27; teoria das —, 33; configuracional, abordagem —, 11, 36, 306; analise —, 229, 235, 283; explicacao —, 35; metodo —, 290, 231; perspectiva —,37; sociologia —, 290; configuracionais, analise e sfntese —, 229. CONTROLO, 68, 81, 96-97, 166; agente de —, 66, 395; — das sociedades, 32; — do Estado, 34; — emocional, 168; — feminino, 398; formas de —, 88, 89, 114; grau de —, 55; trfade dos controlos basicos, 30-31. CORPO, 122, 165, 399; aparencia, imagem corporal, 208-209. CULTURA, 159, 185, 255. CURIALIZAgAO, — dos guerreiros, 224; — dos nobres, 41. DEMOCRATIZAgAO FUNCIONAL, 29, 30, 311, 318, 322. DESENVOLVIMENTO, 9, 11, 61, 67; abordagem na perspectiva do —, 43; estadio de —, 30, 31; — global, 291; — nao planeado, padrao de —, 166; perspectiva do —, 35, 37, 68; — social, 85, 86; teoria do —, 19, 27, 33. DESPORTO, 15,16, 36, 39,40,42,45,48, 50, 51, 64, 66, 67, 68, 69, 72-73, 78, 80, 83, 84, 85, 88, 89, 91, 93, 94, 95, 98, 99, 105, 108, 112, 143, 186-195, 200-222, 223, 252, 254, 255, 256, 298, 300, 302, 304, 305, 307, 308, 310, 311, 312, 315, 316, 317, 321, 322, 324,325,328, 341, 348, 375, 390, 391, 394, 398, 399, 411; — amador, 313; — como «laboratorio natural», 18; — como lazer, 18; — como trabalho, 18; —
INDICE TEM.ATICO como veiculo ideal de treino militar, 16; — de lazer, 94; — e a educagao, 18; — earaga, 18; — e as classes, 18; — e espectaculo, 307, 310, 321; — e industria, 18; — e violencia, 34, 35, (ver VIOLENCIA); — enquanto ocupagao de lazer, 72, 78, 79, 93, (ver LAZER); — espectaculo, 200; conceito de —, 61; desenvolvimento do —, 34, 42, 45, 46, 47, 60, 65, 72, 225-226, 227, 322, 403; economia do —, 18; emergencia do —, 24; formagao do —, 67; formas de —, 85; grupos do —, 301; jogo —, 232, 233, 235, 243; jogo e —, 305-311, (ver JOGO) ; linguagem do —, 189; mobilidade social no —, 18; multidoes do —, 18; os meios de comunicagao social e o —, 18; padroes de emprego no —, 18; polftica e —, 18; — por divertimento, 315, 316, (ver DIVERTIMENTO); regime patriarcal no —, 393; seriedade no —, 298, 305-311, 312, 314, 318; sexo e —, 18; shamadorismo no —, 18; significado do —, 322; signifkado social do —, 17, 18, 19, 35; sociogenese do —, 78, 85; sociologia do —, 12, 13, 37, 48, 340, 390; abandono da sociologia do —, 16,17; desprezo da sociologia do —, 17; negligencia da sociologia em relagao ao —, 14, 37; construe.ao social do —, 37; estudo sistematico do —, 14; estudo sociologico do —, 14, 18, 48; genese do —, 34, 44, 47, 48, 94, 193; o — como objecto de reflexao sociologica e de investigagao, 17; teoria sociologica do —, 34, 186, 305; teorizagao do —, 14, 18; violencia e —, 35; amadorismo, 18; clube, 19; — de criquete, 148; — de futebol, 148, 189-190; — de joqueis, 189; — de juventude, 90; — de rugby, 400, 401, 403, 410; — regional, 66; clubes, 66, 300, 402, 405; formagao de —, 65; instituigao de —, 65; desportos, !26, 40, 42-43, 54, 55, 65,67,72,73,80,94,98,117,185, 186, 191,192, 193,195,223,224, 230, 232, 256, 258, 276, 302, 306, 308, 309, 313, 315, 318, 321, 323, 328, 344, 345, 347, 349, 410, 412;
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— de confronto, 394,410; — ingleses, 42, 46; — modernos, 395; — por divertimento, 312; desenvolvimento dos —, 46, 48, 225, 231, 242, 244, 332; difusao dos —, 189, 190, 223, 224, 225, 381; exportagao dos —, 42; formas «pre-desportivas» de concursos agonfsticos e —, 23; raizes religiosas de muitos —, 15; andebol, 259; atletismo, 186, 191, 193; provas atleticas, 42; basebol, 97, 193; boxe, 42, 51, 64, 65, 97, 153, 186, 206-207, 231, 235, 347, 394; — grego, (ver JOGO); — profissional, 335; caga, (ver DIVERTIMENTO); corrida, 42, 51, 105; — a cavalo, 42, 98; — a pe, 261; — de bicicleta, 97; — de cavalos, 64, 70,158,186,189,231; —deesqui, 97, 99; corridas, 110, 111; criquete, 46,65,66,67, 78,85,99,186,231, 233, 313; campos de —, 324; futebol, (ver FUTEBOL); hoquei, 235, 394; — no gelo, 97; montanhismo, 110, 149; natagao, 105; pesca, (ver LAZER); raguebi, 300, 314, 335, 336, 337, 394, 396, 399, 400, 401, 402, 403; remo, 186; tenis, 42, 67, 99, 186, 189, 193, 235; torneio de —, 97, 98; tiro ao arco, 259; desportivizagao, 42, 59, 192, 224, 225, 254;/airplay, 313. DIVERTIMENTO, 16, 70, 126, 185, 223, 246, 300, 365; — local, 275; divertimentos, 59, 61, 65, 68, 71-72, 78, 94, 223, 277; — de ar livre, 65, modelo de restrigao nos —, 98, 116, 127; caga, 47, 51, 65, 105, 110, 235, 236, 238, 242, 243; — a raposa, 34, 46, 47, 48, 78, 189, 231; forma inglesa de —, 236-251; padrao de —-, 47; rituais de —, 237; cagada, 179, 238, 242; combates de gladiadores, 70, 98; combates de seres humanos e animais, 70, 98; corridas de caes, 136; desport, 188; disport, 223, diversao, 223; diversoes medievais (assistencia as execugoes publicas), 335; combates de touros, 335; combates de ursos, 335; luta de galos, 70, 335; suspensao publica na forca, 70; sport, 187, 188, 189, 223; sports, 187, 188; passatempo, 85; —s, 42,46, 50,127,128,131, 147,
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A BUSCA DA EXCITA^AO
186, 189, 191, 223, 225, 236, 243, 244, 246, 254, 256; desenvolvimento dos —, 48, 49; — indisciplinados, 258, 259, 335, (ver DESPORTO, JOGO, LAZER E TEMPO LIVRE). 6LITE, 314, 315, 316; — burocratica, 308, elites, 189, 198, 204, 208, 210, 309, 392. EMOgAO, 15, 47, 105, 177, 184, 265, 285, 374, 395; movimento e—, 83; emogoes, 16, 79, 80, 82, 88, 112, 114-115, 124, 125, 128, 131, 136, 146, 150, 151, 158, 164, 165, 167, 169, 170, 171, 172, 174, 175, 176, 178, 183, 184, 373; fundamentos da teoria sociologica das —, 19; teoria multidisciplinar das —, 34; secura de —, 161; distingao emocional, 165; reacgoes emocionais, 165; emotividade, 181, 182. ESTADO, 28, 30, 50, 219, 325; — nagao, 17, 27, 32, 33, 34, 321, 399, 403, 408; —s-nagoes, 76, 159, 192, 195, 196, 197, 198, 204, 215, 216, 324, 325, 395; cidades —, 27, 28, 196, 198, 203, 205, 209, 215, 218; emergencia do —, 28; forma do —, 29; fbrmagao do —, 11, 24, 28, 30, 196, 311, 317, 318, 393, 411; processo de fbrmagao do —, 41, 60, 64; processo de formagao do — de Inglaterra, 60; processo de formagao do — em Franga, 64. EXCITAgAO, 26, 34, 40, 69, 70-71, 73, 74, 78, 80, 84, 85, 88, 91, 92, 93, 94, 95, 97,101-103, 105,111-115, 116, 122-123, 125, 128-138, 151, 160, 162, 165, 166, 172, 176, 177, 178, 182, 184, 205, 238, 239, 241, 242, 243, 248, 249, 250, 251, 255, 304, 323, 341, 357,363, 377, 386, 395, 410; — de tensao, 81; — emocional, 82; — do lazer, 120; — jogo, 113; — mimetica, 79, 185; smdroma da —, 118, 119, 125, 130; tensao —, 48, 136, 205, 233, 246-248, 254; excitamento, 15, 70, 78, 79; excitante, 92, 112, 113, CATARSE, 80, 122, 235, 236, 248; climax catartico, 160; efeito —, 123, 124, 125, 138. ETHOS, 195, 202, 203, 204, 205, 210, 247, 313, 393, 397; — amador,
312, 313, 314, 315, 321, 337; — guerreiro, 397. ESTRUTURA, 24, 229, 300, 301, 302; — da sociedade, 48; — da personalidade, 48, 61, 63, 91, 166; — da personalidade social, 43; — da sensibilidade, 61; — de poder, 49, 68; — social, 17; estruturagao, — da personalidade, 166; estruturas, — amadoras, 298; — profissionais, 298. FUTEBOL, 18, 34, 35, 39, 42, 47, 48, 67, 83, 84, 117, 119, 131, 133-135, 148, 186, 189, 190, 191, 193, 226, 227, 231, 235, 257-259, 260-262, 263, 265, 266, 269, 270, 279, 280, 281, 286, 287, 288, 289, 290, 291, 292, 293, 296, 315, 347, 349, 350, 351, 354, 355, 361, 363, 370, 377, 382, 384, 385, 394, 404, 406, 409,410,411; —de rugby, 397, Associagao de —, 289; association football, 186, association game, 354; football association, 288; Campeonato do Mundo de —, 18, 325, 380, 384, 385; campo de —, 92, 154, 324; desafio de —, 92, 98; disturbios do —, 93; — e os orgaos de comunicagao social, 383-387; equipas do —, 92, 156; jogo de —, 141, 176, 258, 287, 290, 291, 297, (ver JOGO); jogos de —, 71, 155, 383; modernizagao do —, 395; multidoes excitadas do —, 125; hooligans, 13, 349, 350,351,352,356,357,358,359, 362, 364, 368, 369, 380, 385,386, 404, 405, 407, 409, 411; uniformes —, 360; hooliganismo, 35, 349-382, 384, 385, 387, 388, 394, 403, 404, 407, 410, 411, (ver VIOLENCIA). (Ver DESPORTO E LAZER). GUERRA, 16, 242; conduta de —, 204; — em terra, 203; jogos de —, (ver JOGO); — no mar, 203; tempo de —, 239; —s, 23, 26. HOMINES APERTI, 25. IDENTIDADE, 35,49, 322, 375, 376, 377, 391, 392, 397,407,411; — macho, 381; identidades, 381. IDENTIFICAgAO, 295, 343, 350, 351,
INDICE 354, 360, 407, 410; — colectiva, 324; — de grupo, 324. INDUSTRIALIZAgAO, 113, 223, 318, 319; processo de —, 173, 192; Revoluc.ao Industrial, 224, 225. INTERDEPENDENCE, 16; cadeias de —, 29, 30, 218, 318, 319, 338, 346, 348; — funcional, 319; lac.os de —, 319; rede de—, 311.
TEMATICO
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203, 207; pugilato, 42, 202-203, 204, 206; pugilismo, 189, 195; mimetica, 71, 73; batalha —, 243; categoria —, 115; esfera —, 113, 114, 124, 128, 137, 178; forma—, 79; tensao —, 71, 85; vitoria —, 72; mimeticas, actividades —, 109, 110, 128, 148, 183; institutes, 185; tensoes —, 72, 73; mimetico, 105, 124, 125, 126, 183; actividades de tipo —, 104; aspecto —, 125, 177; caracter —, 80; combate —, 83, 97; contexto —, 184; quadro —, 184; mimeticos, actos —, 122; acontecimentos —, 129; combates —, 95; confrontos —, 72; factos —, 126, 128, 130, 131,134,138,183, 185; sentimentos —, 126; simbolos —,71; quoits, 258.
JOGO, 16, 64, 72, 88, 92, 95, 109, 128, 148,175,227, 230, 234, 253,256, 257, 258, 259, 260, 266, 267-268, 274, 275, 280, 281, 282, 289, 291, 292,293,294, 297,302,305,306, 307,310,315,333,334,335,336, 349, 356, 358, 361, 364, 378, 384, 385, 399, 404, 405, 411; codificaC.ao do —, 189; — desporto, 232, 233, 234, 235, 236; padrao de —, 280, 289, 292, 294, 397; padrao LAZER, 17, 33, 34, 36, 78, 83, 98, 101, tradicional de —, 66, 72, 86; pro104, 136, 139-185, 191, 258, 260, cesso de —, 87, 88; seriedade no —, 317; actividades de —, 34, 51, 69, 305-311, 312, 318; — tradicional, 70, 71, 79, 81, 104, 105, 123, 130, 274; teoria sociologica do —, 289; 131, 134, 136, 138, 139-151, 156, trabalho e —, 157; uniformidade do 157, 183, 191,192,224,225,235, 263, 322, 323, 403; caracter de —, —, 66; jogos, 156-159, 230, 294; combates de —, 207, 211, 216, 310; desporto de —, 72, 99; despor218; competigoes de —, 191, 194, to —, 99; — desportivo, 94; diver195; concursos de —, 195, 196, timento de —, 128; — e trabalho, 203, 204; confrontos de —, 192, 104-116, 120-121, 139-143; ele198,199, 205, 210, 211, 265; —de mentos de —, 185; esfera de —, azar, 105; — de bola, 51, 65, 189, 403; factos de —, 117, 119, 121, 193, 258, 259; — de cartas, 70; — 124, 125, 126,127,135,151,152; de futebol, 141, 176, 258, 287, 290, — gemeimchaft, 179, 180, 181, 183; — gemeimchaften, 148, 182, 183; 291-297; — de guerra, 159; — de gesemchaft, 180; institutes mimepaz, 159; — desporto, 133, 227, 229, 234, 235, 277, 279, 280, 282, ticas de —, 180; — mimetico, 157, 283, 284, 285, 286, 288, 293, 296; 323; o problema do —, 33, 124, — do trabalho, 161; — populates > 164; ocupagao do tempo de —, 223; 42, 46, 194, 211; — populates inocupac.6es de tempo de —, 68, 73, gleses, 189; provas de —, 211, agon, 177; os problemas de —, 162, 166; 201; provas —, 214; agones, 203; sociologia do —, 37, 152, 153; agonista, 206; agonfstica, 203, 204; tempo de —, 98, 99, 128, 143, 180; aposta, 158; apostar, 110; apostas, tempo livre e —, 107-116, 143; 189, camp ball, 394; curling, 333; teoria do —, 33, 121, 123, 144, football, 394, hurling, 270, 276, 277, 157, 162, 179; trabalho e —, 106394; — to goales, 271-272; — to the -116, 120, 139, 157, 158, 192, 322; country, 272-273\ jeu de paume, 191; trabalho —, 33; actividades fisicas, knappan, 333-334, 394; loggats, 68; baile, 163, 179; bridge, 110; 258; luta, 42, 195, 204, 205, 266, cantar, 105; corridas, 110, 111; ida as—, 131,163;iras—, 179;danc,a, 276, 357, 368, 393, 397, 405, 409; padrao popular de —, 42; boxe gre119, 158; — rock, 105; dancar, 110; go, 202-203; pancracio, 200-202, dangas, 70, 73, 143, 149: arte, 185;
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A BUSCA DA
— grega, 208; artefactos, 136; cinema, 110; historias policiais, 71; jornais, 144, 148; musica, 71, 81, 105; — pop, 125; efeito da —, 121, 122; concerto, 110; concertos, 117, 133; sinfonia, 158;—s, 125, netball, 155; operas, 71; pesca, 105, 110; pintura, 105, 158; —s, 70, 159; poesia, 71, 136; poquer, 125; radio, 144; roleta, 125; romances, 159, teatro, 71, 85, 105, 107, 111; — amador, 148, 163;—s, 127,130,141, l43;entretenimentos —ais, 124; pega —al, 158; pec.as de —, 114, 159; efeitos do drama, 122, 124; televisao, 117, 144, 148; touradas, 143; ascholia, 121; schole, 121. LIGAgOES SOCIAIS, 35, 338; — segmentares, 351, 352; — funcionais, 340, 341, 344-349; segmentac.ao ordenada, 370-373, 378, 382, 407, 408.
RAgA, conceito de —, 14, 15; estudo sociologico da —, 14; RACIAL, problema —, 14; estudo das relagoes —ais, 14; REGRAS, 39, 42, 65, 66, 72, 88, 219, 330, 332, 334, 335, 336, 347, 367, 368, 394; regras do jogo, 154-156, 195, 224, 227-229, 230, 231, 232, 234, 241,244,253,268,275,292, 300, 313, 320; regras escritas, 395; regras de etiqueta, 224; — do costume, 46. RELAgOES SOCIAIS, — de coesao, 372; — de cooperacao, 16, 283, 284, 286, 294, 303; — de conflito, 211, 266, 268, 283, 284, 285, 286,297, 300, 304, 305, 319, 325, 349, 354, 370; — de coergao, 285; — de harmonia, 283; — de solidariedade, 263, 264, 275, 358, 386, 407. RELIGIAO, 14; institutes religiosas, 29; rituais religiosos, 15; efervescencia colectiva, 15, 323.
NORMA, 153, 154; normas, 20, 64, 151-156,199, 217, 227-229, 241, 330, 345, 348, 350, 351, 364, 368, 377, SENSIBILIDADE, 42, 43; aumento da —, 401, 408; — de luta, 343; — de 42; codigo de —, 41,42,43, 56, 57; masculinidade, 350, 354, 362, 368; modelos sociais de —, 41; o domfnio —- de virilidade, 396. da —,41; padroes de —, 44, 199; padroes mais diferenciados de —, 61; limiar de —, 241, 244; angriffPRAZER, 16,17,40,47-48,71, 88,89,94, slust, 332; limiar de reaccjio, 196, 98, 99, 106, 118, 122, 123, 124, 125, 126, 131, 134, 135, 138, 140, 198, 243; limiar de repugnancia, 196, 207, 332; peinlishkeitsschwelle, 163, 175, 177, 179, 180,181,184, 335, 341, 346, 348, 352, 374. 188, 191, 205, 237, 238, 241, 243, 244, 245, 248, 249, 294, 296, 300, SOCIABILIDADE, 109, 172, 178, 179, 303, 304, 308, 310, 313, 321, 332, 181, 182. 337, 341, 345, 357, 409; —de joSOCIALIZAgAO, 166,167,168,169,179, gar, 297, 307; — de matar, 78, 88, 311, 341, 342, 343, 345, 346, 348, 89; — dos jogadores, 300; diminuto 373, 382, 411; padrao de —, 347, —, 70; especial -—, 90; — Optimo, 376, 403; processo de —, 352. 133, 134. SOCIEDADE, 45, 48, 49, 50, 67, 88, 89, PODER, 26, 341, 393, 398, 411; — da 91, 92; estudo da —, 164; formas de — 50. razao, 291; — das mulheres, 35, 400, 401, 410; deslocamento de —, STRESS, 69, 73, 79, 96, 97, 98. 399; — do Estado, 346; equilibrio de —, 29, 35, 60, 64, 318, 391, TENSAO, 84, 94, 128-138, 141, 162, 224, 392, 395, 399; lugares do —, 64; 236, 245, 246, 248, 250, 268, 284, luta de —es, 40; luta pelo —, 60, 286, 302, 303, 305; auto-escalada 62; oportunidades de —, 54; razao de —, 49; conflito de —, 83, 84; — —, 291; recursos de -—, 63; relates controlada, 35, 291; —- do jogo, de —, 26. 134; equilibrio de —, 35, 79, 117, PROCESSO SOCIAL, 27, 28, 35, 86, 87, 118, 128, 135, 172, 173,177,178, 300, 332; — «cego» ou «nao pla231-232, 233, 234, 236, 252, 291, neado», 301. 292, 293, 294, 301, 303; escalada
INDICE de —, 45; libertagao de —, 94, 130, 136; — mimetica, 85, 130; resolugao da —, 85; — resolugao, 129; — satisfagao, 250; tolerancia a —, 51; tensoes, 33, 50, 56, 57, 69, 72, 79, 88,96-98,102,140, 142-143,147, 162, 174, 198, 232, 235, 236,276, 283, 284, 285, 286, 291, 297,307, 319; conflito de —, 83, 84; confrontos de —, 40; contengao de —, 51; — controladas, 33; criagao de —, 71, 169; desenvolvimento das —, 50; — incontroladas, 33; libertagao das —,69,83,84,97,98,127,235, 236, 248; produgao de —, 136; relaxagao das —, 142, 143; resolugao das —, 72. URBANIZAgAO, 225, 319; processo de —, 173. VALOR, 228; valores, 14, 20, 26,152,193199, 207, 208, 242, 298,330,368, 376, 388, 391, 392; — amadores, 304, 313. VIOLfiNCIA, 35,40,42,61,72,88,89,94, 197, 199, 215, 217, 218, 241, 243, 244, 254, 274, 275, 287, 327-328, 335-337, 338-352, 339, 340-343, 350, 352, 355-381, 385, 392, 394, 395, 405, 406, 408, 409, 410, 411; actos de —, 332; — «afectiva», 35, 332, 337, 341, 375, 409; ciclo de —, 59, 62, 63, 72; ciclos de —, 49-50, 89; contra a —, 94, 98, 101, 219; controlo da —, 93, 196, 207, 332; controlo individual e social da —, 19, 20, 28; desenvolvimento da —, 50; — desportiva, 349; — do publico de futebol, 89; — dos espectadores de futebol, 93; — e civilizagao, 20; — endemica, 343; erupgao da —, 91; erupgoes da —, 263, — «expressiva», 35, 330, 375, 409; — ffsica, 69, 70, 196, 198, 211, 213, 215, 219, 225, 243, 244, 327,332, 336, 340, 341, 349, 352, 394, 411; formas de —, 329, 330-354; grau de —, 195; — «instrumental*, 35, 330, 337, 349, 375, 409; limiar de —, 51; -— mimetica, 341; moderagao da —, 50; moderar a —, 64; monopolio de —, 32, 33, 51; monopolip e controlo da —, 211; — no
TEMATICO
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futebol, 88, 91, 92, 93; — nos desportos, 40; padroes de controlo da —, 199; padroes de —, 202; preludio de —, 69; — «racional», 35, 332, 334, 337, 338, 341, 344; restrigao da —, 45, 78, 94; restrigao quanto a —, 98; restrigoes contra a —, 213; — ritual, 327; — ritualizada, 350, sociogenese da —, 343, 349, 404; tipologia da —, 329-331; tipos de —, 207, 329-331; aggro, 327, 356, 357, 385; hooligans e hooliganismo (ver FUTEBOL).
L
INDICE
Agradecimentos Prefacio Eric Dunning
11
Ititrodugio Norbert Elias
39
Capitulo I
Capitulo II
Capitulo III
Capitulo IV
Capitulo V
A busca da excitagao no lazer Norbert Elias e Eric Dunning
101
O lazer no espectro do tempo livre Norbert Elias e Eric Dunning
139
A genese do desporto: um problema sociologico Norbert Elias
187
Ensaio sobre o desporto e a violencia Norbert Elias
223
O futebol popular na Gra-Bretanha medieval e nos inicios dos tempos modernos Norbert Elias e Eric Dunning
257
A BUSCA DA EXCITA^AO Capitulo VI
Capitulo VII
Capitulo VIII
Capitulo IX
Capitulo X
A dinamica dos grupos desportivos — uma referenda especial ao futebol Norbert Elias e Eric Dunning
279
A dinamica do desporto moderno: notas sobre a luta pelos resultados e o significado social do desporto Eric Dunning
299
As ligagoes sociais e a violencia no desporto Eric Dunning
327
A violencia dos espectadores nos desafios de futebol: para uma explicagao sociologica Eric Dunning, Patrick Murphy e John Williams
355
O desporto como uma area masculina reservada: notas sobre os fundamentos sociais da identidade masculina e as suas transformagoes Eric Dunning
389
Colecgao MEMORIA E SOCIEDADE AAVV Estudos Portugueses Homenagem a Luciana Stegagno Picchio Almeida, Pedro Tavares de Elei^oes e Caciquisimo no Portugal Oitocentista (1868-1890) Bourdieu, Pierre 0 Poder Simbolico Burke, Peter 0 Mundo como Teatro . Cabral, Joao de Pina Os Contextos da Antropologia Chartier, Roger A Historia Cultural entre Prdticas e Representatives Crespo, Jorge A Historia do Corpo Elias, Norbert A Condi^ao Humana Geertz, Clifford Negara. 0 Estado Teatro no Seculo XIX Ginzburg, Carlo A Micro-Historia e Outros Ensaios Godinho, Vitorino Magalhaes Mito e Mercadoria, Utopia e Pratica de Navegar Luhmann, Niklas . 0 Amor como Paixao Oliveira, Antonio Poder e Oposi^ao Polltica em Portugal no Penodo Filipino (1580-1640) Revel, Jacques A Invengdo da Sociedade
A publicar: Deswarte, Sylvie Ideias e Imagens em Portugal naEpoca dos Descobrimentos Shils, Edward Centra e Periferia
Renovador da sociologia, Norbert Elias (1897-1990) influenciou em. ptofundidade o desenvolvimento da historia, psicologia, economia, ciencia polftica e antropologia. As suas obras, entre as qtiais se destaca nesta colecgao A Condigao Humana, contribuiram para ultrapassar fronteiras disciplinares e estabekcer rela^oes entre diferentes sociedades. Da sua passagem, pela Universidade de Leicester, e da sua colabora^ao com Eric Dunning resultou este livro colectivo. Porque razao a sociedade industrial gasta grande parte do seu tempo de lazer em desportos que tendem para a vioiencia? Como relacionar a violencia dentro
e fora do desporto com as necessidades e orienta^oes sociais e psicologicas? Eis diias das qu.estoes a que este livro procura responder.
coordenaila por Fram;isco
e Oiogo Ramada Cyrto