Prefáci o
As histórias deste livro foram intermitente e informalmente coletadas durante sete anos de agradável convivê...
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Prefáci o
As histórias deste livro foram intermitente e informalmente coletadas durante sete anos de agradável convivência com Richard Feynman. Achei cada histó ria, por si só, divertida, e a coleção surpreendente: que uma pessoa tenha vivi do tantas coisas maravilhosamente malucas é às vezes difícil de acreditar. Que uma pessoa possa inventar tanta travessura inocente em uma vida é se guramente uma inspiração! Ralph Leighton
Nota à Edição Brochura da Norton
contínuo interesse em Richard Feynman, mais de dez anos depois da publi cação desta obra em inglês, lembra-me uma frase freqüentemente dita por ele, com um brilho nos olhos, no final da sua vida: "Eu ainda não estou morto!" o
RL
Sob re o autor
Eis alguns fatos sobre mim: nasci em 1 9 1 8 em uma cidadezinha chamada Far Rockaway, situada nos arredores de Nova York, perto do mar. Vivi lá até 1 93 5, quando então estava com 1 7 anos. Fui para o MIT onde permaneci por quatro anos, e depois, por volta de 1 930, fui para Princeton. Durante a minha estadia em Princeton comecei a trabalhar no projeto Manhattan e em abril de 1 943 fui para Los Alamos, onde fiquei até outubro ou novembro de 1 946, quando então fui para ComeU. Casei-me com Arlene em 1 94 1 , mas ela faleceu em 1 946 vitimada pela tuberculose quando eu ainda estava em Los Alamos. Fiquei em ComeU até mais ou menos 1 95 1 . Visitei o Brasil no verão de 1 949 e passei seis meses lá em 1 95 1 , depois fui para o Caltech onde tenho estado desde então. Fui ao Japão no final de 1 95 1 por duas semanas, e novamente um ou dois anos mais tarde, logo depois de ter me casado com a minha segunda esposa, Mary Lou. Agora estou casado com Gweneth que é inglesa, e temos dois filhos, Carl e MicheUe. R.P.F.
In trod ução
Espero que estas não sejam as únicas memórias de Richard Feynman. Certa mente as reminiscências fornecem aqui uma visão verdadeira sobre muito de sua personalidade - a necessidade quase compulsiva de resolver quebra cabeças, as travessuras provocativas, a impaciência indignada coma preten são e a hipocrisia, e o talento para tirar vantagem de quem tentava tirar vanta gem dele! Este livro é uma grande leitura: ultrajante, chocante e ainda assim sensível e muito humano. Por tudo isso, ele passa apenas de leve pela motivação básica da sua vida: a ciência. Nós a vemos aqui e ali como pano de fundo em um ou outro trecho do li vro ' mas nunca como o foco principal da sua existência, que gerações de seus alunos e colegas sabem que foi. Talvez nada mais seja possível. Talvez não haja mais meios de reconstituir essa série de histórias agradáveis sobre ele mesmo e o seu trabalho: o desafio e a frustração, o excitamento que nos invade, o grande prazer do entendimento científico que foi a fonte da felicidade em sua vida. Lembro-me quando era seu aluno, ele entrava para uma de suas aulas, fi cava em frente à sala sorrindo para nós enquanto entrávamos, os dedos tam borilando um complicado ritmo no alto da bancada de demonstração que atravessava a sala de aula. Quando os retardatários se sentavam, ele pegava o giz e começava a girá-lo rapidamente entre os dedos, como um jogador pro fissional brincando com uma ficha de pôquer, ainda sorrindo, feliz, como de alguma piada secreta. E então - ainda sorrindo - falava -nos sobre física, seus diagramas e equações, ajudando-nos a participar do seu raciocínio. Não era nenhuma piada secreta que produzia o sorriso e aquele brilho em seus olhos: era a física. O prazer da física! O prazer era contagioso. Fomos os afortuna dos que nos contagiamos também. Agora, aqui está a sua oportunidade de ser exposto ao prazer da vida no estilo de Feynman. Albert R. Hibbs Membro Sênior do Pessoal Técnico Laboratório de Propulsão a Jato Instituto de Tecnologia da Califórnia
Su mário
Parte I De Far Rockaway até o MIT Ele conserta rádios pensando! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 Vagens . . . . . . . . .
13
Quem roubou a porta? . .
18
Latim ou italiano? . . . . .
30
Sempre tentando escapar .
33
O químico pesquisador-chefe da Corporação Metaplast .
41
Parte 11 Os anos de Princeton "O senhor está brincando, Sr. Feynman! "
49
Eeeeeeeeeeeu!
. . .
56
Um mapa do gato? .
59
Mentes monstruosas
67
Misturando tintas
72
. .
Uma caixa de ferramentas diferente
75
Leitores de mentes
79
O cientista amador
82
. . . . . .
Parte 111 Feynman, a bomba e os militares Detonadores que não detonam . . . .
91
Testando os sabujos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
96 99
Los Alamos vista de baixo para cima . . . . . . . . . . . .
129
Arrombador encontra arrombador . . Tio Sam não precisa mais de você! . . . . . . . . . . . . . .
.
. . . 149
Parte IV De Comell ao Caltech com um toque de Brasil o nobre professor . . .
159
Alguma pergunta? . . .
169
Eu quero o meu dólar! .
174
Você simplesmente pergunta a elas?
178
Números da sorte . . . .
186
O americano, outra vez! .
193
Homem das mil línguas .
2 13
Certamente, Sr. Big! . . .
2 14
Uma oferta que você deve recusar
225
Parte V O mundo de um físico Você resolveria a equação de Dirac? .
233
A solução a 7%
. . . . .
243
.
. .
252
Para mim parece grego! .
254
..
255
Será a eletricidade fogo?
273
Treze vezes. . . . . Mas isso é arte? .
.
.
Julgando os livros pela capa .
282
Outro erro de Alfred Nobel
296
Levando cultura aos físicos
306
Desmascarados em Paris .
3 12
Estados alterados . . . . . .
323
A ciência do culto da carga .
33 1
índice............
34 1
.
Parte I
De Far Rockaway até o Mil
Ele conserta rád i os pensan d o !
Quando eu tinha 1 3 ou 1 4 anos, montei um laboratório em minha casa. Era uma velha caixa de embalagem feita de madeira na qual preguei algumas pra teleiras. Eu tinha um aquecedor no qual colocava banha e fritava batatas o tempo todo. Também tinha uma bateria e um banco de lâmpadas. Para fazer o banco de lâmpadas, fui a uma loja que vendia tudo entre cin co e dez centavos, * comprei alguns bocais que podiam ser aparafusados a uma base de madeira e liguei-os com pedaços de fio de campainha. Ao fazer diferentes combinações com interruptores - em série ou em paralelo -, eu sa bia que podia obter diferentes voltagens. Mas o que não havia percebido era que a resistência de uma lâmpada depende de sua temperatura, de modo que os resultados dos meus cálculos não eram iguais àquela coisa que saía do cir cuito. Mas não importava, e quando as lâmpadas estavam em série, todas meio acesas, elas brilhaaaaaaaaavam, muito bonito - era o máximo! Eu havia colocado um fusível no sistema, de modo que, se eu causasse um curto-circuito, o fusível queimaria. Agora eu precisava de um fusível que fos se mais fraco que o doméstico, e então construí os meus próprios, pegando folhas de estanho e enrolando-as em um fusível velho queimado. Ligada ao meu fusível, havia uma lâmpada de cinco watts, e deste modo, quando o fusí vel queimasse, a carga do carregador que estava semp�e alimentando a bate ria acenderia a lâmpada, que estava no painel de controle, atrás de um pedaço de papel de bala marrom (que parece vermelho quando há uma lâmpada por trás dele) . Então, se alguma coisa queimasse, eu poderia olhar o painel e veria uma grande mancha vermelha no lugar onde o fusível tivesse queimado. Era divertido! *Nota do Revisor Técnico: Até meados do século XX existiam lojas populares nos Estados Unidos, chamadas "Five and ten stores", que vendiam uma grande variedade de produtos de cinco a dez centavos.
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o S E N H O R E S T Á B R I N C A N Il O , S R . F E Y N M A N !
Eu gostava de rádios. Comecei com um rádio de galena* que comprei na loja, e costumava ouvi-lo com um par de fones de ouvido à noite na cama, quando ia dormir. Quando meus pais saíam e só voltavam tarde da noite, iam até meu quarto e tiravam os fones de ouvido - e ficavam preocupados com o que se passava na minha cabeça enquanto eu dormia. Nessa época, inventei um alarme contra ladrões que era uma coisa muito simplória: havia apenas uma bateria grande e uma campainha conectadas por um fio. Quando a porta de meu quarto era aberta, empurrava o fio contra a bateria e fechava o circuito, disparando a campainha. Uma noite, meus pais voltaram para casa depois de uma noitada, e muito, muito quietamente, para não me acordar, abriram a porta do meu quarto para tirar meus fones de ouvido. De repente, a terrível campainha disparou, fazen do uma barulheira infernal -bong bong bong bong!!! Pulei da cama gritando: "Funcionou! Funcionou!" Eu tinha uma bobina Ford - uma bobina indutora de centelha tirada de um automóvel - e os terminais centelhadores no topo do meu painel. Bastava eu colocar um tubo Raytheon RH, que continha gás argônio, entre os terminais, e a centelha criava um brilho roxo no vácuo - era simplesmente o máximo! Um dia, eu estava brincando com a bobina Ford, fazendo furos em um papel com as faíscas quando o papel pegou fogo. Não pude mais segurá-lo, porque ele estava queimando perto dos meus dedos; então, joguei-o em uma cesta de lixo de metal que estava cheia de jornais. Os jornais queimam rapida mente, você sabe, e dentro do quarto a chama parecia bem grande. Fechei a porta para que minha mãe - que estava jogando bridge com algumas amigas na sala - não percebess e que havia fogo no meu quarto, peguei uma revista e coloquei-a em cima do cesto para abafar o fogo. Depoi s de apagar o fogo, tirei a revista de cima do cesto, só que então o quarto começou a encher-se de fumaça. A cesta ainda estava muito quente para que eu pudesse pegá-la, e então, peguei a cesta com dois alicates e segu rei -a do lado de fora da janela para dispersar a fumaça. No entanto, como lá fora ventava terrivelmente, o vento reavivou o fogo, mas agora a revista estava fora de alcance. Então puxei a cesta em chamas para dentro de novo, e percebi que havia cortinas na janela - era muito perigoso! ·Nota do Revisor Técnico: Rádio de galena era um receptor de rádio simples formado por uma antena, um sintonizador e um detector que consistia de um cristal de galena.
RICHARD PHILLlPS FEYNMAN
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Bem, peguei a revista, apaguei o fogo novamente e desta vez mantive a re vista perto de mim enquanto jogava pedaços incandescentes da cesta de lixo na rua, dois ou três andares abaixo. Aí saí do meu quarto, fechei a porta atrás de mim e falei para a minha mãe: "Estou saindo para brincar", enquanto a fu maça dispersava, lentamente, pelas janelas. Também fiz algumas coisas com motores elétricos e construí um amplifi cador para uma fotocélula que comprei, que podia fazer soar uma campainha quando eu punha a mão na frente da célula. Não consegui fazer tudo que que ria porque minha mãe estava sempre me mandando lá para fora, para brincar. Mas, freqüentemente, eu estava em casa, mexendo e remexendo em meu la boratório. Eu comprava rádios em bazares de caridade. Eu não tinha dinheiro, mas eles não eram muito caros - eram rádios velhos, quebrados, e eu os comprava e tentava consertá-los. Geralmente, o defeito era muito simples - um fio óbvio que estava solto, ou alguma bobina que estava queimada ou com o enrola mento meio desfeito, assim eu conseguia consertar alguns deles. Uma noite, consegui sintonizar a rádio WACO em Waco, Texas, em um rádio desses - foi m uito excitante! Neste mesmo rádio a válvula fui capaz de ouvir, em meu laboratório, uma estação de Schenectady, chamada WGN. Nessa época, nós - eu, meus dois primos, minha irmã e a criançada da vizinhança - ouvíamos pelo rádio, no pé da escadaria, um programa chamado Eno Crime Club - sal de frutas Eno -, era o programa! Pois bem, descobri que podia ouvir este programa lá em cima, no meu laboratório, pela WGN, uma hora antes de ele ser transmitido de Nova York! Logo, eu sabia o que ia acontecer, e quando estávamos todos ao redor do rádio, lá embaixo, ouvindo o Eno Crime Club" eu dizia: "Sabe, há muito tempo que não ouço falar do fulano de tal. Aposto que ele vai aparecer e resolver esta situação." Dois segundos depois, tchan-tchan-tchan-tchan ... , ele aparece! Todos ficaram assombrados, e previ um par de outras coisas. Mas eles perceberam que devia haver algum truque nisso - ou seja, que, de alguma forma, eu já sa bia. Então confessei que eu podia ouvir o programa antes, lá em cima no meu laboratório. Naturalmente, você sabe qual foi o resultado. Agora eles não podiam es perar o horário normal. Todos tinham de sentar lá em cima, no meu laborató-
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rio, com aquele pequeno rádio desconjuntado, por quase meia hora, ouvindo o Eno Crime Club, de S chenectady. Nessa época, morávamos em uma casa grande, que foi deixada por meu avô para os filhos, mas além da casa eles não tinham muito dinheiro. Era mui to grande, de madeira, e eu passei uma fiação por toda a parte de fora e colo quei tomadas em todos os cômodos. Assim eu podia ouvir os meus rádios, que estavam lá em cima no meu laboratório. Também tinha um alto-falante - não o alto-falante completo, mas a parte sem a corneta grande. Um dia, quando estava com meus fones de ouvido, liguei-os ao al to-falante e descobri algo: se pusesse meu dedo no alto-falante podia ouvi-lo no fone de ouvido; se arranhasse o alto-falante poderia ouvir nos fones de ou vido. Então descobri que o alto-falante podia funcionar como um microfone, nem era preciso baterias. Na escola, estávamos falando sobre Alexander Gra ham Bell, e então fiz uma demonstração do alto-falante e dos fones de ouvido. Na época eu não sabia, mas acho que era o tipo de telefone que ele original mente usou. Agora eu tinha um microfone e podia transmitir lá de cima da casa para baixo e lá de baixo para cima, usando os amplificadores de meus rádios de ba zar de caridade. Naquela época, minha irmã Joan, nove anos mais nova do que eu, então com dois ou três anos, gostava de ouvir um sujeito no rádio cha mado Tio Don. Ele cantava musiquinhas sobre "crianças boazinhas", coisas assim, e lia as cartas enviadas por pais dizendo que: "Fulana de tal está fazen do aniversário este sábado na Avenida Flatbush, 25." Um dia minha prima Francis e eu sentamos Joan e dissemos a ela que havia um programa especial que ela deveria ouvir. Então corremos lá para cima e co meçamos a transmitir: "Aqui é o Tio Don. Conhecemos uma garotinha muito bacana, chamada Joan, que mora em New Broadway. O aniversário dela está chegando - não hoje, mas em tal dia. Ela é uma garota muito bonita." Canta mos uma musiquinha e depois fizemos uma música "Deedle leet deet, doodle doodle loot doot; deedle deedle leet, doodle loot doot doo. ". Fizemos tudo que tínhamos combinado e, quando terminamos, fomos lá para baixo: - Como é? Gostou do programa? - Foi bom - ela disse -, mas por que você fez a música com a boca? ..
Um dia recebi um telefonema: - O senhor é Richard Feynman?
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- Sim. - Aqui é do hotel. Temos um rádio que não funciona e gostaríamos de consertá-lo. Achamos que o senhor pode fazê-lo. - Mas sou apenas um garoto - eu disse - não sei como . . . - Sim, sabemos disso, mas de qualquer modo gostaríamos que � senhor viesse aqui. Era um hotel que minha tia estava gerenciando, mas eu não sabia disso. Fui lá - eles ainda contam a história - com uma chave de fenda grande no bol so traseiro. Bem, eu era pequeno, logo, qualquer chave de fenda parecia gran de em meu bolso. Fui até onde estava o rádio e t entei consertá-lo. Não sabia nada sobre o defeito, e havia um faz-tudo no hotel, mas nem ele nem eu percebemos o bo tão solto do potenciômetro - que serve para aumentar o volume -, e por isso o eixo não girava. O faz-tudo saiu, passou a lima em algo e consertou o rádio. O outro rádio que tentei consertar até então não funcionava de modo al gum. Este foi fácil: não estava ligado direito. À medida que os consertos fica vam mais complicados, eu ficava cada vez melhor e mais sofisticado. Comprei um miliamperímetro em Nova York e transformei-o em um voltímetro com diferentes escalas, usando os comprimentos corretos (que eu calculei) de fios de cobre muito finos. Não era muito preciso, mas era bom o bastante para di zer se as coisas estavam no ponto certo nas dif erentes conexões daqueles apa relhos de rádio. O principal motivo pelo qual as pessoas me contratavam era a Depressão. Eles não tinham dinheiro para mandar seus rádios para o conserto, e ouviam falar desse menino que faria um preço mais barato. Assim, eu subia em telha dos para consertar antenas e todo o tipo de coisa. Tive uma série de dificulda des crescente. Por fim, peguei trabalhos do tipo converter u m aparelho de corrente contínua em corrente alternada; foi muito difícil evitar o chiado no sistema, e não o montei muito bem. Não devia ter topado aquele trabalho, mas eu não podia adivinhar que seria tão difícil. Um trabalho foi realmente sensacional. Na época, eu estava trabalhando para um tipógrafo. Um homem que o conhecia sabia que eu estava tentando conseguir trabalhos de consertar rádios, e mandou uma pessoa até a tipogra fia para me buscar. O cara era obviamente pobre - seu carro estava caindo aos pedaços - e fomos à sua casa, que ficava em uma parte pobre da cidade. No caminho, pergunto: "Qual o problema do rádio?"
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o S E N H O R ESTÁ B R I N CA N D O , S R . FEVNMAN!
Ele responde: "Quando eu o ligo, ele faz um barulho. Depois, o barulho pára e tudo funciona bem, mas eu não gost o do barulho. " Penso comigo mesmo: "Que diabos! Se ele não t em dinheiro, acho que pode agüentar um barulhinho por um tempo." O tempo todo, no caminho para sua casa, ele fica dizendo coisas como: "Você sabe alguma coisa sobre rádios? Como conhece rádios - você é só um garotinho!" Ele vai pelo caminho t odo me colocando para baixo, e eu pensando: "Qual é o t eu problema? O rádio faz só um barulhinho." Mas, quando chegamos lá, fui até o rádio e liguei-o. Barulhinho? Meu Deus! Não é de se estranhar que o pobre homem não suportasse o barulho. A coisa começou a rugir e tremer - wuh buh buh buh buh. Uma tremenda baru1heira. Então ele parou e começ ou a t ocar direito. Comecei a pen sar: "Como isto pode acontecer?" Começo a andar de um lado para o outro, pensando, e descubro que uma das causas poderia ser as válvulas estarem esquentando na ordem errada, ou seja, se o amplificador estivesse t odo quente, as válvulas prontas, mas sem nada para alimentá-las, ou se houvesse um retrocircuit o alimentando-as, ou algo errado na parte inicial - a parte de freqüência de rádio -, e desse modo estivesse fazendo um monte de barulho, captando alguma coisa. E quando o circuito de freqüência de rádio finalmente sintonizasse e as voltagens da gra de da válvula se ajustassem, ficaria tudo bem. Então o cara disse: "O que você está fazendo? Você vem para consertar o rádio, mas só fica andando de um lado para o outro!" Digo: "Estou pensando!" E aí comento comigo mesmo: "Tudo bem, reti re as válvulas e inverta completamente a ordem no aparelho." ( Muitos apare lhos de rádio naquele tempo usavam as mesmas válvulas em diferentes luga r es - ach o que eram as 2 1 2 ou as 212-A.) Daí mudei as válvulas de lugar e fi quei nà frente do rádio, e o rádio quieto como um cordeirinho, mas após aquecer, funcionou perfeitamente, sem barulho. Quando uma pessoa demon stra uma reação negativa em relação a você, mas você c onsegue algo desse tipo, geralmente ela muda completamente, e para me compensar ele me conseguiu outros trabalhos, e comentava com todo mundo que gênio incrível que eu era, dizendo: "Ele conserta rádios pensando!" Toda essa idéia de parar e pensar para consertar um rádio - um garotinho pára e pensa, e descobre como fazê-lo - ele nunca imaginou ser possível.
RICHARD P HlLlIPS FEYNMAN
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Os circuitos de rádio eram muito mai s simples de se entender naquela época, porque tudo ficava exposto quando se abria o aparelho. Depois de des montar o aparelho (era um grande problema achar os parafusos certos) , você podia ver que aqui tinha um resistor, ali tinha um capacitor, aqui isso, ali aqui lo; eles eram todos marcados. Se estivesse pingando cera do capacito r, ele es tava muito quente, e você poderia dizer que o capacitor estava queimado. Se tivesse carvão em um dos resistores, já se sabia onde estava o problema. Ou, se não se soubesse qual era o problema ao olhá-lo, era só testá-lo com seu vol tímetro e ver qual era a voltagem entre os terminais. A voltagem nas grades das válvulas era sempre cerca de 1 , 5 a 2 volts, e as voltagens nas placas eram de 1 00 ou 200, corrente contínua. Então, para mim não era difícil consertar um rádio desde que visse o que estava acontecendo dentro dele, e consertava o que não estava funcionando direito ou o que não funcionava. Às vezes, demorava bastante tempo. Lembro-me de uma vez em particu lar quando levei uma tarde inteira para descobrir uma resi stência queimada que não era evidente. Este caso específico aconteceu com uma amiga da mi nha mãe, naquela época eu tinha tempo - não tinha ninguém atrás de mim perguntando: "O que você está fazendo? " Ao contrário, perguntavam: "Você quer um pouco de lei te ou um pedaço de bolo?" Finalmente, o consertei, por que tinha, e ai nda tenho, persi stência. Se começo um quebra-cabeça, não consi go parar. Se a amiga de minha mãe tivesse dito "não se preocupe, é mui to trabalho", eu teria explodido, pois queria resolver o maldito problema, já que tinha ido tão longe. Tenho de continuar para descobrir, afinal de contas, qual é o problema. É uma compulsão pelo quebra-cabeça. É o que me faz querer deci frar hieróglifos maias, tentar abrir cofres. L embro que no curso secundário, no primeiro período, um sujei to vinha até mim com um problemá de geometria, ou algum problema proposto para a sua turma avançada de matemática. Eu não conseguia parar até que resolvesse tudo - levava de quinze a vinte minu tos. Mas, durante o dia, outras pessoas vinham a mim com o mesmo proble ma, e eu o resolvia em questão de segundos para eles. Então, para o primeiro que me trouxesse o problema, eu resolvia em vinte minutos, enquanto havia cinco outros caras que ach avam que eu era um super gênio. Assim, adquiri ótima reputação. Durante o ensino médi o, todos os que bra-cabeças conhecidos pelo homem devem me ter sido apresentados. Todo maldito enigma maluco que as pessoas inventavam eu conhecia. Quando fui
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o S E N H O R ESTÁ BRINCANDO, SR. FEVNMAN!
para o MIT (Massachussets Institute of Technology), em um baile, e um dos alunos seni ores estava com a namorada, que conhecia um monte de quebra cabeças, e ele disse a ela que eu era muito bom ni sso. Então, durante o baile, ela veio até mim e disse-me: "Dizem que você é um cara esperto, então aí vai uma para você: Um homem tem oito feixes de lenha para cortar . . . " Respondi : "Ele começa a cortar cada um em três partes", porque eu já ha via ouvido essa. Ela foi embora e voltou com outra, e eu já conhecia também. Isso durou um certo tempo, e, finalmente, quase no final do baile, ela veio, olhando como se desta vez fosse me pegar e disse: "Uma mãe e sua filha estão viajando para a Europa . . . " "A filha pegou peste bubônica." Ela desmoronou! Mal havia pistas para descobrir a resposta daquela cha rada: era uma longa hi stória sobre como mãe e filha hospedam-se em um ho tel, ficam em quartos separados e no dia seguinte a mãe vai ao quarto da filha e não a encontra lá, ou tem alguma outra pessoa, e ela pergunta -lhe: "Onde está minha filha?", e o encarregado do hotel responde: "Que filha?", e o recepcio ni sta só tem regi strado o nome da mãe, e assim por diante, e há um grande mi stéri o sobre o que aconteceu. A resposta é: a filha pegou peste bubôni ca, e o hotel, não querendo ser obrigado a fechar, rapta a filha, limpa o quarto e apa ga todas as evidências de que ela tenha estado lá. É uma longa narrativa, mas tive de ouvi -la; então, quando a garota começou com "Uma mãe e sua filha estão viajando para a Europa", eu sabia algo que começava daquela maneira, fiz uma especulação e acertei . Na escola secundária tínhamos algo chamado equipe de álgebra, que era composta por ci nco garotos, e viajávamos para diversas escolas como um time e competíamos. Sentávamos em uma fileira de cadeiras e o outro time sentava na outra fileira. Uma professora, que estava admi nistrando a compe tição, escolhia um envelope, e no envelope di zia: "Quarenta e cinco segun dos. ': Ela o abria, escrevia o problema no quadro-negro e dizia: "Já" - então, na verdade, você tinha mais de quarenta e cinco segundos, porque enquanto ela escrevia você podi a pensar. O jogo era o seguinte: você tinha um pedaço de papel, e podia escrever qualquer coisa nele, fazer qualquer coisa. A única coisa que contava era a resposta. S e a resposta fosse "sei s livros", você teria de escrever "6" e fazer um enorm e círculo ao seu redor. Se o que estivesse dentro do círculo estivesse certo, você ganhava; caso contrário, você perdia.
RICHARD PHILlIPS FEYNMAN
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Uma coisa era certa: era praticamente impossível resolver o problema da maneira tradicional, honesta, por exemplo escrever "A é o número de livros vermelhos, B é o número de livros azuis", cálculos, cálculos, cálculos . . . , até você chegar a "seis livros". Isso custaria a você cinqüenta segundos, porque as pessoas que cronometraram o.. tempo necessário para resolver esses pro blemas cronometraram um tempo um pouquinho menor. Então você tinha de pensar: "Há um modo de visualizá-lo?" Às vezes, você podia visualizar o pro blema rapidamente, e às vezes tinha de inventar outra forma para resolvê-lo, e então resolver a álgebra o mais rápido que conseguisse. Era uma prática ma ravilhosa, e melhorei cada vez mais, e finalmente me tornei o cabeça do time. Aprendi a fazer álgebra muito rápido, e isso veio a calhar na faculdade. Quan do tínhamos um problema de cálculo, eu era muito rápido em perceber o que estava acontecendo e fazer a álgebra - rápido. Outra coisa que fiz na escola secundária foi inventar problemas e teore mas. Quero dizer, se estivesse fazendo qualquer coisa que fosse matemática, eu encontraria algum exemplo prático para o qual ela seria útil. Inventei um conjunto de problemas relativos ao triângulo retângulo. Mas em vez de dar o tamanho de dois lados para encontrar o terceiro, eu dava a diferença de dois lados. Um exemplo típico era: há um mastro de bandeira, e há uma corda que pende da ponta. Quando você mantém a corda reta e vertical, ela fica 9 1 cm maior do que o mastro, e quando você puxa a corda para o lado e a mantém reta, ela fica a 1 , 5m da base do mastro. Qual a altura do mastro? Desenvolvi algumas equações para solucionar problemas como esse, e em conseqüência percebi algumas relações - talvez fosse sen2 + cos2 1 que me lembravam da trigonometria. Alguns anos antes, talvez quando tinha 1 1 ou 1 2 anos, eu havia lido um livro de trigonometria que retirei da bibliote ca, mas o livro há muito tempo não existia mais. Só me lembrava que a trigo nometria tinha algo a ver com relações entre senos e co-senos. Então comecei a deduzir essas relações desenhando triângulos, e eu mesmo testava cada uma delas. Também calculei o seno, o co-seno e a tangente de cinco em cinco graus, considerando o seno de cinco graus, como dado, por meio de fórmulas de adição e de meio-ângulo que eu já havia deduzido. Alguns anos depois, quando na escola estudamos trigonometria, eu ainda tinha minhas anotações e vi que as minhas demonstrações geralmente eram diferentes das do livro. Às vezes, por não ter percebido uma forma fácil de fa zê-las, eu dava muitas voltas até chegar ao resultado. Outras vezes, meu ca=
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o SENHOR ESTÁ BRINCANDO, SR. FEYNMAN!
minho era muito mais engenhoso - a demonstração-padrão no livro era mui to mais complicada. Às vezes, eu ganhava do livro, às vezes, perdia. Enquanto fazia toda essa trigonometria, eu não gostava dos símbolos para seno, co-seno, tangente etc. Para mim, "sen f' parecia s vezes e vezes n vezes fl Então inventei outro símbolo, parecido com o sinal de raiz quadrada, que era um sigma, com um braço comprido saindo dele, e coloquei o f subs crito. Para a tangente, era um tau com sua parte superior estendida, e para o co-seno fiz uma espécie de gama, mas parecia um pouquinho com o símbolo da raiz quadrada. Agora, o seno inverso era o mesmo sigma, mas refletido ao contrário, de modo que começava com a linha horizontal com o valor subscrito, e então o sigma. Este era o seno inverso, NÃO sen-I f - que era coisa de louco! Eles es creviam isso nos livros! Para mim, sen-I significava l/seno, o recíproco. Então, meus símbolos eram melhores. Eu não gostava de f(x) - que parecia para mim f vezes x. Também não gostava de dy/ dx - você tem tendência a cancelar os "d" - daí fiz um sinal diferente, algo como o sinal &. Para os logaritmos, havia um grande L esten dido à direita, com a coisa da qual você toma o logaritmo dentro etc. Eu achava que meus símbolos eram tão bons, senão melhores do que os símbolos normais - não faz diferença alguma quais símbolos você usa - mas mais tarde descobri que realmente faz diferença. Certa vez, estava explicando algo para outro garoto da escola secundária e, sem pensar, comecei a escrever esses símbolos, e ele disse: "Que diabos é isso?" Então percebi que, se eu qui ser me comunicar com os outros, tenho de usar símbolos padrões, e aí final mente desisti dos meus próprios símbolos. Eu havia inventado também um conjunto de símbolos para a máquina de escrever, como o FORTRAN tem de fazer, de forma que eu pudesse datilo grafàr equações, e também consertava máquinas de escrever, com clipes e atí lios (os atílios não arrebentavam como os de Los Angeles) , mas eu não era um mecânico profissional; simplesmente as consertava para que funcionassem. Mas descobrir o que estava acontecendo e imaginar o que deveria fazer para consertar era interessante para mim, como um quebra-cabeça.
Vagens
E u deveria ter 1 7 ou 18 anos quando, num verão, trabalhei para um hotel ad ministrado por minha tia. Não sei quanto ganhava - acho que vinte e dois dó lares por mês -, alternando onze horas em um dia com treze horas no outro dia, como recepcionista ou ajudante de garçom no restaurante. E, à tarde, quando estava trabalhando de recepcionista, tinha de levar leite à Sra. D , uma senhora inválida que nunca nos dava gorjeta. Assim era o mundo: você trabalhava longas horas, todos os dias, e não recebia nada por isso. Era um hotel de veraneio, na beira da praia, nos arredores da cidade de Nova York. Os maridos iam trabalhar na cidade e deixavam atrás as mulheres jogando cartas, de modo que sempre tínhamos de pôr as mesas de bridge do lado de fora. À noite, os homens jogavam pôquer; então deixávamos as mesas preparadas para eles -limpávamos os cinzeiros e tudo mais. Eu ficava sempre acordado até tarde, cerca de duas da madrugada, então na verdade eram 13 ou 11 horas por dia. Havia algumas coisas das quais eu não gostava, como receber gorjetas. Achava que devíamos ganhar um melhor salário e não receber nenhuma gor jeta. Mas quando fiz essa proposta à patroa, não ganhei nada além das risa das. Ela disse a todo mundo: "Richard não quer as suas gorjetas, ha, ha, ha." O mundo está cheio desse tipo de espertalhões bobocas que não entendem nada. De qualquer modo, havia um grupo de homens que, quando voltavam do trabalho na cidade, queriam gelo imediatamente para seus drinques. Nessa época, o outro sujeito que trabalhava comigo já havia sido, na verdade, recep cionista. Era mais velho do que eu, e mais experiente. Uma vez, ele me disse: "Escute, nós sempre trazemos gelo para aquele tal de Ungar, e ele nunca nos dá gorjeta - nem mesmo dez centavos. Da próxima vez, quando eles pedirem gelo, simplesmente não faça coisa alguma. Então eles vão te chamar nova__
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mente, e você diz: 'Desculpe. Esqueci. ' Todos somos sujeitos a esquecer de vez em quando." Fiz isso, e o Ungar deu-me quinze centavos! Mas agora, quando relembro isso, percebo que o outro recepcionista, o experiente, realmente sabia o que fazer - dizer ao outro cara para assumir o risco de se enrascar. Ele atribuiu a mim a tarefa de treinar aquele sujeito a dar gorjetas. Ele nunca disse nada: ele me fez fazê-lo! Eu tinha de limpar as mesas da sala de jantar, como um ajudante de um auxiliar de recepção. Empilhava todas as coisas das mesas e as colocava em uma bandeja, e quando formava uma pilha bastante alta, levava para a cozi nha. Então pegava outra bandeja, certo? Você deveria fazer esse trabalho em dois passos - levar a bandeja velha e colocar as coisas em uma nova bandeja -, mas eu pensei, "farei isso em um passo" . Então tentei fazer passar por baixo a bandeja nova e puxar por cima a velha ao mesmo tempo, e ela caiu - bum! Foi tudo parar no chão. E então, naturalmente, veio a pergunta: "O que você esta va fazendo? Como a bandeja caiu?" Bem, como eu poderia explicar que esta va tentando inventar um novo jeito de lidar com as bandejas? Entre as sobremesas, havia um tipo de bolo de café muito bonito que vi nha sobre um guardanapinho de papel, em um pratinho. Mas se você olhasse lá para o fundo do restaurante, veria um homem, um copeiro. O problema do copeiro era ter as coisas corretas para montar as sobr�mesas. Esse sujeito deveria ter trabalhado nas minas, ou algo assim - grandalhão, com os dedos muito curtos, redondos, grossos. Ele pegava a pilha de guardanapinhos, que são feitos por algum tipo de processo de estamparia, tudo junto, e usava seus dedos grossos para tentar separá-los e colocá-los nos pratos. Eu sempre o ou via dizer: "Pro inferno com esses guardanapinhos!", enquanto os separava, e lembro-me de pensar: "Que contraste - a pessoa sentada à mesa recebe este belo bolo em um pratinho forrado, enquanto o copeiro de dedos grossos fica dizendó: 'Pro inferno com esses guardanapinhos! ' " Essa era a diferença entre o mundo real e o mundo aparente. No meu primeiro dia de trabalho, a copeira explicou que sempre fazia um sanduíche de presunto, ou algo assim, para o cara do turno da noite. Eu disse que gostava de sobremesas, e que se sobrasse alguma do jantar, eu gostaria muito. Na noite seguinte, eu estava no turno da noite até 2 :00h da madrugada com aqueles caras que jogavam pôquer. Estava dando uma volta, sem ter nada para fazer, já ficando chateado, quando de repente lembrei-me que ti-
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nha uma sobremesa para comer. Fui até a geladeira e quando a abri, ela havia deixado seis sobremesas! Havia um pudim de chocolate, um pedaço de bolo, algumas fatias de pêssego, pudim de arroz, gelatina - tinha de tudo! Então, sentei-me e comi as seis sobremesas - foi sensacional! No dia seguinte ela me disse:�"Deixei uma sobremesa para você ... " - Estava maravilhosa - respondi -, absolutamente maravilhosa! - Mas eu deixei seis sobremesas porque não sabia de qual você gostava mais. A partir de então, ela passou a deixar seis sobremesas. Toda noite eu tinha seis sobremesas, sempre diferentes, mas sempre seis sobremesas. Uma vez, quando eu estava na recepção, uma garota largou um livro per to do telefone, sobre a mesa, enquanto saía para jantar, e então dei uma olha da nele. EraA vida de Leonardo, e não pude resistir: a garota emprestou-me o livro e li-o todo. Eu dormia em um quartinho nos fundos do hotel. Havia a recomendação de apagar as luzes quando a gente saísse do quarto, e eu nunca me lembrava de fazê-lo. Inspirado pelo livro de Leonardo, criei uma engenhoca que consis tia em um sistema de cordas e pesos - garrafas de Coca -Cola cheias de água que funcionava quando se abria a porta, acendendo a luz do quarto. Ao abrir a porta, a engenhoca funcionava e a luz acendia: quando a porta era fechada, a luz apagava. Mas meu verdadeiro feito veio depois. Eu costumava cortar legumes na cozinha. As vagens tinham de ser cortadas em pedaços de 2cm, o que deveria ser feito da seguinte maneira: segurar duas va gens com uma mão, a faca com a outra, pressionar a faca contra a vagem e o po legar, quase cortando-o. Era um processo lento. Então botei minha cabeça para funcionar, e tive uma idéia bastante boa. Sentei-me na mesa de madeira fora da cozinha, pus uma vasilha no meu colo e fmquei uma faca muito afiada na mesa inclinada de um ângulo de quarenta e cinco graus e afastada de mim. Coloquei uma pilha de vagens em cada lado, pegava as vagens, uma em cada mão, e as tra zia de encontro a mim com uma velocidade suficiente para que elas deslizassem, e os pedaços rolassem para a vasilha que estava no meu colo. Assim, ia cortando as vagens uma após a outra - tum, tum, tum, tum, tum -, e todo mundo passando-me as vagens; eu já tinha picado cerca de sessenta, quando a patroa aparece e diz: "O que você está fazendo ?" Respondi: "Dá uma olhada em como estou cortando as vagens!" - e exa tamente nessa hora coloquei o dedo no lugar de uma vagem. O sangue escor-
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reu e cobriu as vagens, havia grande agitação: "Olhe quantas vagens você es tragou. Que jeito estúpido de fazer as coisas!", e assim por diante. Nunca consegui aprimorar a idéia, o que teria sido fácil - com um protetor ou algo assim -, mas não, não houve chance para o aprimoramento. Criei outra invenção, que apresentou uma dificuldade semelhante. Tí nhamos de fatiar as batatas, depois de cozidas, para fazer algum tipo de sala da. As batatas ficavam pegajosas e úmidas, e ficava difícil pegá-las. Pensei num conjunto de facas, paralelas em uma armação, descendo e fatiando-as todas ao mesmo tempo. Pensei muito sobre isso e, finalmente, tive a idéia de pôr arames em uma armação. Fui a uma loja, na qual tudo custava cinco ou dez centavos, para comprar algumas facas ou arames, e vi exatamente a engenhoca que eu queria, só que era para cortar ovos. Quando, novamente, foi preciso cortar batatas, peguei meu fatiado r de ovos e cortei-as todas de uma vez, e mandei-as de volta ao chef. O chef era um alemão, um sujeito muito grande que era o Rei da Cozi nha. Ele veio esbravejando, as veias saltando de seu pescoço, completamente vermelho. "O que aconteceu com as batatas? " - perguntou ele. - "Elas não es tão cortadas!" Eu as cortei, mas as fatias estavam todas grudadas. Ele disse: "Como eu posso separá-las? " - Coloque-as na água - sugeri. - Na água? Arghhhhhhhh!! ! E m outra ocasião, tive uma idéia realmente boa. Quando eu era recepcio nista, tinha de atender o telefone. Quando havia uma chamada, alguma coisa zumbia, e descia uma plaqueta na mesa telefônica, de modo que você pudesse saber qual linha estava tocando. Às vezes, quando eu estava ajudando as mu lheres com as mesas de bridge ou sentado na varanda no meio da tarde (quan do havia muito poucas chamadas) , eu ficava longe da mesa telefônica. Quan do o telefone tocava, eu vinha correndo atender, mas para chegar até a mesa telefônica era preciso descer um pouco mais, dar a volta por trás e voltar para ver de onde estava vindo a chamada - isso tomava um tempo extra. Então tive uma boa idéia. Prendi pedaços de barbante nas plaquetas da mesa telefônica e joguei-os sobre o topo da mesa, depois embaixo, e na ponta de cada barbante coloquei um pedaçinho de papel. Ai coloquei o bocal do tele fone em cima da mesa, de modo que pudesse alcançá-lo pela frente. Agora, quando chegava uma � hamada, eu podia saber, pelo papel que estivesse para
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cima, qual plaqueta estava para baixo, e podia atender o telefone, pela frente, para economizar tempo. É claro que ainda tinha de dar a volta por trás para transferir a ligação, mas pelo menos eu a estava atendendo. E dizia: "Um mo mento, por favor" - e dava a volta para transferi -la. Pensei que a idéia era perfeita,..mas a patroa apareceu um dia, e ela queria atender o telefone e não conseguia - muito complicado. "O que fazem todos esses papéis aqui? Por que o telefone está deste lado? Por que você não . . . aaa aaaaaahhhhhhh! " Tentei explicar - era minha própria tia - que não havia motivo para não fazer aquilo, mas você não pode dizer isso a alguém que seja esperta e que ge rencie um hotel! Lá aprendi que a inovação é uma coisa muito difícil no mun do real.
Quem rou bou a porta?
No MIT, todas as diferentes fraternidades tinham "reuniões de fumantes" nas quais tentavam arrebanhar novos calouros para suas iniciações, e no ve rão, antes de ir para o MIT, fui convidado para uma reunião, em Nova York, da Phi Beta Delta, uma fraternidade judaica. Naquela época, se você fosse judeu ou criado em uma família judia, não havia a menor chance em outra fraternidade. Ninguém sequer o olhava. Eu, particularmente, não estava procurando ficar com outros judeus, e os rapazes da fraternidade Phi Beta Delta não se importavam o quão judeu eu era - na verdade, eu não acredita va em nada disso e, certamente, não fazia parte de religião alguma. De qual quer forma, alguns caras da fraternidade me fizeram algumas perguntas e me deram um breve cOl1selho - eu deveria fazer o teste de cálculo do primei ro ano, assim não teria de cursar a matéria - que no final d�s contas descobri que era bom. Gostei dos companheiros da fraternidade que vieram a Nova York, e depois me tornei colega de quarto dos dois sujeitos que me conven ceram a entrar. Havia outra fraternidade judaica no MIT, chamada "SAM", e a idéia de les era me dar uma carona até Boston, e eu poderia ficar com eles. Aceitei a ca rona e naquela primeira noite fiquei em um dos quartos de cima. Na manhã seguinte, olhei para o lado de fora da janela e vi dois caras da outra fraternidade (que eu encontrara em Nova York) subindo as escadas. Alguns rapazes da Sigma Alfa Mu correram para conversar com eles, e houve uma grande dis cussão. Gritei pela janela: "Hei, vou ficar com esses caras!", e saí correndo da fra ternidade sem perceber que na verdade eles estavam competindo pela minha iniciação. Não senti gratidão alguma pela carona, ou coisa parecida. A fraternidade Phi Beta Delta quase acabara no ano anterior, porque ha via duas "panelinhas" que dividiam a fraternidade ao meio. Havia um grupo formado por socialites que gostava de ir a festas e depois rodar pela cidade em
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seus carros, e coisas assim, e havia u m grupo de caras que não fazia nada além de estudar, e nunca ia a festas. Um pouco antes de eu entrar para a fraternidade, eles fizeram uma gran de reunião e assumiram um importante compromisso: ficariam unidos e se ajudariam mutuamente. Todo mubdo tinha de ter determinado nível de no tas. Se estivessem ficando para trás, os caras que estudavam o tempo todo da riam aulas a eles e os ajudariam a fazer as tarefas. Por outro lado, todo mundo tinha de ir a todas as festas. Se alguém não quisesse arranjar um encontro, os outros caras arranjariam um encontro para ele. Se um sujeito não soubesse como arranjar um encontro, eles o ensinariam. Um grupo estava ensinando ao outro grupo como pensar, enquanto os outros rapazes estavam ensinan do-os a ser sociáveis. Para mim estava ótimo, porque socialmente eu não era muito bom. Era tão tímido que, quando tinha de apanhar a correspondência e passar por al guns alunos mais antigos que ficavam sentados nas escadas com as garotas, eu ficava petrificado: não sabia como passar por eles! E não ficava nem um pouquinho melhor quando uma garota dizia: "Oh, ele é tão engraçadinho!" Pouco depois, os veteranos trouxeram suas namoradas e as amigas de suas namoradas para ensinar-nos a dançar. Bem depois, um dos caras ensi nou-me a dirigir o seu carro. Eles trabalhavam muito para que nós, personali dades intelectuais, nos socializássemos e ficássemos mais à vontade, e vi ce-versa. Era um bom equilíbrio. Eu tinha um pouco de dificuldade em entender exatamente o que signifi cava ser "sociável" . Pouco depois de os caras terem me ensinado como co nhecer garotas, vi uma bela garçonete em um restaurante onde um dia eu es tava lanchando sozinho. Com grande esforço, finalmente criei ânimo o bas tante para chamá-la para ser meu par na próxima festa da fraternidade, e ela disse que sim. De volta à fraternidade, quando estávamos conversando sobre os encon tros para o próximo baile, disse ao pessoal que desta vez eu não precisaria que eles marcassem um para mim - eu mesmo havia marcado um encontro. Eu estava muito orgulhoso de mim mesmo. Quando os estudantes mais adiantados descobriram que meu par era uma garçonete, ficaram chocados. Disseram-me que isso não era possível e que me arranjariam um par "apropriado" . Fizeram com que eu me sentisse como se tivesse me perdido, como se estivesse errado. Decidiram assumir o
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controle da situação. Foram ao restaurante, encontraram a garçonete, con versaram com ela e me arranjaram outra garota. Estavam tentando educar o "filho teimoso", por assim dizer, mas eles estavam errados, acho eu. Naquela época, eu era apenas um calouro e ainda não tinha confiança suficiente para não permitir que desmanchassem meu encontro. Quando fui aceito como iniciado, havia várias formas de trotes. Uma das coisas que faziam era levar-nos, de olhos vendados, para bem longe, para a área rural, no final do inverno, e deixar-nos perto de um lago congelado a cer ca de trinta metros de distância. Ficávamos no meio do fim do mundo - nada de casas, nada de nada - e devíamos encontrar o caminho de volta até a frater nidade. Estávamos um pouco apavorados, porque éramos jovens e não falá vamos muito - exceto um cara chamado Maurice Meyer: você não conseguia fazer com que ele parasse de fazer galhofas, fazer trocadilhos idiotas e assu mir uma atitude tipo "ha, ha, não há nada com que se preocupar. Isso não é engraçado? !" . Estávamos ficando furiosos com Maurice. Ele estava sempre andando um pouco atrás e rindo da situação toda, enquanto o resto de nós não tinha a menor idéia de como iríamos sair dessa. Chegamos a um cruzamento não muito longe do lago - ainda não havia casas nem nada à vista - e o restante de nós estava discutindo se devíamos to mar este ou aquele caminho, quando Maurice chegou até nós e disse: "Vamos por este caminho." - Que diabos você sabe, Maurice? - dissemos, frustrados . - Você está sempre fazendo essas piadas. Por que deveríamos ir por este caminho? - Simples : vejam as linhas de telefone. Onde houver mais fios é sinal de que estão convergindo para a estação central. Este cara, que parecia não estar prestando atenção em nada, apareceu com uma idéia fantástica! Fomos direto para a cidade, sem errar. No dia seguinte haveria um "torneio na lama"* geral (diversos tipos de lu tas na lama) entre os calouros e os segundanistas. Tarde da noite, um bando de segundanistas - alguns de nossa fraternidade e outros de outras fraterni dades - entrou na nossa fraternidade e nos seqüestraram: eles nos queriam cansados no dia seguinte para que pudessem vencer. *Nota do Revisor Técnico: No original, mudeo, provável contração de mud (lama) com ro deo (rodeio) .
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Os segundanistas amarraram todos os calouros com facilidade - menos a mim. Eu não queria que os caras da fraternidade achassem que eu era um "maricas" (nunca fui bom em esportes, ficava sempre apavorado com a possi bilidade de uma bola de tênis passar por cima do portão e aterrissar perto de mim, porque nunca poderia jogá-kt por cima do portão - geralmente ela des viava cerca de um radiano de onde deveria ir) . Percebi que esta era uma situa ção nova, um mundo novo, e eu poderia criar uma nova reputação. Assim, para que não parecesse que eu não sabia lutar, lutei como um filha-da-mãe, o melhor que pude (sem saber o que estava fazendo) , e foi preciso que três ou quatro caras tentassem bastante antes de finalmente conseguirem amar rar-me. Os segundanistas levaram-nos para uma casa no meio da floresta e nos amarraram a um chão de madeira com grandes ganchos em forma de U. Tentei fugir de todas as maneiras, mas havia segundanistas nos vigiando, e nenhum dos meus truques funcionou. Lembro-me perfeitamente de um ra paz que os segundanistas estavam com medo de amarrar porque ele estava apavorado demais: seu rosto estava pálido, amarelo-esverdeado, e ele tremia todo. Depois descobri que ele era da Europa - isso foi no início da década de 1 930 - e não havia percebido que os caras amarrados ao chão era um tipo de brincadeira; ele sabia o que estava acontecendo na Europa. O sujeito estava com medo de olhar, estava muito apavorado. Ao amanhecer, havia apenas três segundanistas vigiando vinte de nós ca louros, mas não sabíamos disso. Os segundanistas haviam andado com os seus carros, algumas vezes entrando e saindo para fazer parecer que havia muito movimento, e não percebemos que eram sempre os mesmos carros e as mesmas pessoas. Aquela nós não ganhamos. Nesta manhã, aconteceu de meus pais chegarem para ver como seu filho estava se virando em Boston, mas a fraternidade os colocou para fora até que voltássemos do seqüestro. Eu estava tão enlameado e sujo de tanto lutar para fugir, e da falta de dormir, que eles ficaram realmente horrorizados ao desco brir como seu filho estava no MIT! Fiquei com torcicolo, e me lembro de ficar na fila para inspeção naquela tarde no ROTC, * não conseguindo nem olhar para a frente. O comandante agarrou minha cabeça e virou-a, gritando: "Endireite-se!" *Nota do Tradutor: ROTC é u m curso preparatório d e oficiais d a reserva equivalente ao nosso CPOR.
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Estremeci quando meus ombros se ajeitaram: "Eu não consigo, senhor!" - Oh, perdoe-me! - disse ele, arrependendo-se. De qualquer forma, o fato de ter lutado tanto e por tanto tempo para não ser amarrado me valeu uma reputação incrível, e eu nunca tive de me preocu par sobre o problema de "maricas", novamente - um grande alívio. Geralmente, eu escutava meus colegas de quarto - os dois estavam mais adiantados - estudando para o curso de física teórica. Um dia estavam traba1hando muito em algo que me parecia bastante claro, então eu disse: "Por que vocês não usam a equação de Baronallai?" - O que é isso! - disseram. - Sobre o que você está falando!? Expliquei o que queria dizer e como isso funcionava neste caso, e a equa ção resolveu o problema. Descobrimos que o que eu queria dizer era a equa ção de Bernouilli, mas eu havia lido essa coisa toda na enciclopédia sem falar com ninguém, e não sabia como pronunciar nada. Mas meus colegas de quarto ficaram muito impressionados, e a partir de então começaram a discutir seus problemas de física comigo - eu não tive tanta sorte com muitos deles -, e, no ano seguinte, quando fiz o curso, pro gredi rápido. Era uma maneira muito boa de aprender, trabalhar com proble mas mais avançados e aprender como pronunciar as coisas. Eu gostava de ir a um lugar chamado Raymor and Playmore Ballroom dois salões de festa interligados - às terças à noite. Meus irmãos de fraterni dade não iam a estes bailes "abertos"; preferiam ir a seus próprios bailes, nos quais as garotas que levavam eram da mais alta classe, as que eles julgavam "apropriadas". Quando conhecia alguém, eu não me importava de onde essa pessoa era, ou quais eram os seus antecedentes; eu ia a esses bailes - mesmo que meus irmãos de fraternidade desaprovassem (eu era calouro nessa época, e eles não podiam deter-me) - e passava momentos realmente agradáveis. Uma vez, dancei algumas vezes com uma garota, e não falei muito. Final mente, ela me disse: "Quem ança mu be-be-bem." Quase não pude entender -ela tinha alguma problema de fala -, mas pen sei que ela havia dito: "Você dança muito bem." - Obrigado - respondi -, foi um prazer. F omos para uma mesa onde uma amiga dela encontrou um cara com quem estava dançando e nos sentamos, os quatro, juntos. Era muito difícil entender o que uma das garotas falava, e a outra era quase surda.
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Quando as duas garotas conversavam entre si, faziam uma porção de si nais, bem rápido, para frente e para trás. Isso não me incomodava; a garota dançava bem e era uma pessoa agradável. Depois de mais algumas danças, estávamos sentados à mesa novamente, e começou a troca de uma porçãô de sinais de um lado para o outro, de um lado para o outro, de um lado para o outro, até que finalmente ela disse-me algo que eu deduzi significar que ela gostaria que a levássemos a um hotel. Perguntei ao outro cara se ele queria ir. - Para que elas querem que a gente vá a esse hotel? - ele perguntou. - Diabos, sei lá. Não conversamos muito bem! Mas não tenho de saber. Vai ser divertido ver o que vai acontecer; é uma aventura! O outro cara ficou com medo e disse não. Então levei as duas garotas, de táxi, para o hotel e descobri que se tratava de uma festa organizada pelos sur dos e mudos, acredite ou não. Todos faziam parte de um clube. Acontece que muitos deles podem sentir o ritmo o suficiente para poder dançar a música e aplaudir a banda ao final de cada apresentação. Era muito, muito interessante! Eu me senti como se estivesse num país es tranho e não pudesse falar a língua: eu podia falar, mas ninguém podia me ou vir. Todo mundo estava falando por meio de sinais, e eu não entendia nada! Pedi à minha garota para ensinar-me alguns sinais e aprendi um pouco, assim como você aprende uma língua estrangeira só para se divertir. Todos estavam muito felizes e à vontade uns com os outros, contando piadas e coisas assim o tempo todo; eles não pareciam ter qualquer dificulda de real de comunicação. Era como se fosse qualquer outra língua, exceto por uma coisa: enquanto faziam sinais uns para os outros, suas cabeças se mo viam de um lado para o outro. Descobri o porquê. Quando desejam fazer um aparte ou interromper a conversa, não podiam dizer: "Hei, Jack!" Só podiam fazer um sinal, que você não perceberá, a menos que tenha o hábito de ficar o tempo todo olhando ao redor. Eles se sentiam completamente à vontade uns com os outros. Eu era quem tinha problemas em me sentir à vontade. Foi uma experiência maravi lhosa. O baile continuou por um longo tempo, e quando acabou fomos a um café. Eles faziam seus pedidos apontando o que queriam. Lembro de alguém perguntando, por sinais, "de onde você é?" e minha garota soletrando "N-o-v-a-Y-o-r-k" . Também lembro-me de um cara sinalizando para mim
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"Bom sujeitp!" - ele levantou o polegar e então tocou uma lapela imaginária para simbolizar "esporte" . * É um sistema interessante. Todos estavam sentados, fazendo piadas e introduzindo-me naquele mundo de forma bastante agradável. Eu queria comprar um litro de leite; en tão fui ao sujeito do caixa e resmunguei "leite", sem dizer nada. O sujeito não entendeu. Fiz o símbolo de "leite", que é dois dedos indicadores movendo-se como se você estivesse ordenhando uma vaca, e ele também não entendeu. Tentei apontar para a tabuleta que mostrava o preço do leite, mas mesmo assim ele não entendeu. Por fim, algum estranho que estava perto pediu leite, e eu apontei para o leite. - Ah! Leite! - disse ele, enquanto eu fazia sinal que sim com a cabeça. - Seu FILHO da MÃE! - disse ele, sorrindo. Eu gostava muito de pregar peças nas pessoas quando estava no MIT. Uma vez, na aula de desenho técnico, um engraçadinho pegou uma curva francesa (um pedaço de plástico para desenhar curvas suaves - um troço todo recurvado, engraçado) e disse: "Fico pensando, será que as curvas desta coisa obedecem a alguma fórmula em especial? " Pensei um pouco e disse: "Com certeza, elas obedecem. Estas curvas são curvas muito especiais. Deixa eu te mostrar." E peguei minha régua francesa e comecei a girá -la vagarosamente. "A régua francesa é feita de modo que no ponto mais baixo de cada curva, não importa como você a gire, a tangente seja horizontal." Todos os caras da turma estavam segurando suas réguas francesas com di ferentes ângulos, posicionando o lápis no ponto mais baixo, traçando retas tan gentes e descobrindo que, com certeza, a tangente era horizontal. Eles ficaram muito impressionados com esta "descoberta" - apesar de já terem aprendido uma fração razoável do Cálculo** e já terem "aprendido" que a derivativa (tan gente) no mínimo (ponto mais baixo) de qualquer curva é zero (horizontal) . Eles não juntaram dois com dois. Eles sequer sabiam o que "sabiam" . *Nota do Tradutor: No original em inglês, o autor é chamado por meio da linguagem de si nais de Good sport que podemos traduzir como bom sujeito. **Nota do Tradutor: Cálculo diferencial e integral.
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Não sei qual o problema com essas pessoas: elas não aprendem pelo en tend imento; aprendem de alguma outra forma - por hábito ou algo assim. Seu conhecimento é tão frágil! Apliquei o mesmo tipo de truque quatro anos depois, em Princeton, quando estava conversando com \lma pessoa experiente, um assistente de Einstein, que certamente estava trabalhando o tempo todo com a gravitação. Propus a ele um problema: você parte em um foguete que tem um relógio a bordo, mas também há um relógio na Terra. A idéia é que você deve estar de volta quando o relógio na Terra mostrar que se passou uma hora. Só que você quer que, ao voltar, o seu relógio esteja o mais adiantado possível. De acordo com Einstein, se você subir muito alto, seu relógio andará mais rápido, por que quanto mais você sobe no campo gravitacional, mais rápido o relógio anda. * Mas se você tentar subir muito alto, uma vez que você tem apenas uma hora, você deve ir tão rápido para chegar lá no alto que a velocidade atrasará o seu relógio.** Portanto, você não pode ir muito alto. A questão é, mais preci samente, que combinação de velocidade e altura deve-se ter para obter o má ximo de adiantamento de tempo no seu relógio? Este assistente de Einstein trabalhou muito antes de perceber que a res posta é o movimento real da matéria. Se você atirar alguma coisa para cima de forma normal, de tal maneira que o tempo que esta coisa leva para subir e des cer seja uma hora, este é o movimento correto. É o princípio fundamental da gravitação de Einstein - ou seja, que aquilo que é chamado de "tempo pró prio" seja um máximo para a curva real. Mas quando propus o problema a ele, com o foguete e o relógio, ele não reconheceu isso. O assistente agiu exata mente como os caras na aula de desenho técnico, mas só que desta vez não era um calouro boboca. Assim, este tipo de fragilidade é, na verdade, bastante co mum, mesmo nas pessoas mais preparadas.
*Nota do Tradutor: De acordo com a relatividade geral, a gravitação afeta o ritmo dos reló gios. Quanto mais intenso for o campo gravitacional mais lentamente andam os relógios. Por outro lado, se o campo gravitacional enfraquecer, os relógios andarão mais rapida mente. O campo gravitacional da Terra enfraquece à medida que o foguete sobe, por essa razão o autor afirma que o relógio de bordo andará mais rápido na subida. O contrário acontece quando o foguete retoma à Terra. **Nota do Tradutor: Isto é, para atingir grande velocidade rapidamente a aceleração do fo guete deverá ser elevada, mas como a gravitação, a aceleração afeta o ritmo dos relógios, quanto maior a aceleração mais lentamente o relógio funciona.
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Quando era calouro ou veterano, eu costumava comer em um restaurante em Boston. Ia lá sozinho, muitas vezes várias noites seguidas. As pessoas co meçaram a familiarizar-se comigo, e eu era servido pela mesma garçonete to das as vezes. Percebi que o pessoal estava sempre com pressa, correndo de um lado para o outro. Então um dia, só por diversão, deixei minha gorjeta, que ge ralmente era de dez centavos (o normal naqueles dias) , repartidas em duas moedas, debaixo de dois copos: enchi cada um dos copos até a borda, atirei uma moeda dentro e, com um cartão sobre o copo, virei-o de cabeça para baixo sobre a mesa. Então puxei o cartão (a água não vaza porque o ar não pode entrar - a beira do copo está muito próxima da mesa para que isso aconteça) . Pus a gorjeta debaixo de dois copos porque eu sabia que elas estavam sempre apressadas. Se a gorjeta fosse uma moeda de dez centavos num copo, a garçonete, em sua pressa de preparar a mesa para o próximo cliente, pegaria o copo, a água derramaria, e seria o fim de tudo. Mas depois de fazer isso com o primeiro copo, que diabos faria ela com o segundo? Ela simplesmente não teria ânimo agora para levantá-lo! Na saída, eu disse para minha garçonete: "Tome cuidado, Sue. Tem algo engraçado com os copos que você me deu - eles estão cheios até a borda, e há um buraco no fundo!" No dia seguinte, voltei, e havia uma nova garçonete atendendo-me. Mi nha garçonete habitual não queria nada comigo. "A Sue está muito zangada com você" - disse minha nova garçonete. "Depois que ela pegou o primeiro copo e a água esparramou-se toda, ela chamou o patrão. Eles estudaram o problema um pouco, mas não podiam passar o dia todo pensando no que fa zer, então finalmente pegaram o outro copo, e a água esparramou-se toda so bre o chão novamente. Fez um estrago terrível. Depois a Sue escorregou na água. Todos ficaram furiosos com você." Eu ri. Ela falou: "Isso não é engraçado! Você gostaria que alguém fizesse isso com você? O que você faria? " - Eu pegaria um prato de sopa e deslizaria o copo, com bastante cuidado, para a borda da mesa e deixaria a água escorrer para o prato de sopa - ela não tem por que cair no chão. Então eu pegaria a moeda. - Ah, essa é uma boa idéia - disse ela.
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Naquela noite, coloquei a gorjeta debaixo de uma xícara de chá, que deixei de cabeça para baixo sobre a mesa. Na noite seguinte, voltei e fui atendido pela mesma garçonete novata. - Que idéia foi aquela de deixar a xícara de cabeça para baixo? - Bem, pensei que, mesmo qae você estivesse com pressa, você teria de voltar à cozinha e pegar um prato de sopa; depois você teria de vagarosameee eente e cuidadosamente deslizar a xícara até a borda da mesa . . . - Fiz isso - reclamou ela - mas não havia água dentro da xícara. Minha obra-prima como brincadeira pesada aconteceu na fraternidade. Uma manhã, acordei muito cedo, cerca de cinco da manhã, e não conseguia dormir de novo. Então saí do dormitório e descobri alguns avisos pendurados por cordas, que diziam coisas tais como "Porta! Porta! Quem roubou a por ta?" Vi que alguém havia tirado a porta da dobradiça e, em seu lugar, havia pendurado uma placa que dizia: "Favor fechar a parta!"- o aviso que costu mava ficar na porta e que agora estava faltando. Imediatamente, percebi qual era a idéia. Naquele quarto, um cara chama do Pete Bernays e alguns outros gostavam de estudar muito, e sempre que riam silêncio. Se você entrasse no quarto procurando por algo, ou perguntas se a eles como tinham feito tal problema, ao sair você sempre ouviria eles gri tarem: "Por favor, feche a porta!" Alguém havia se cansado disso, sem dúvida, e retirou a porta. Acontece que da forma como esse quarto tinha sido construído, havia duas portas, e tive uma idéia: retirei a outra porta das dobradiças, carreguei-a para baixo e escondi no porão, atrás do tanque de óleo. Então, bem quietinho, subi e fui para a cama. Tarde da manhã fiz todos acreditarem que havia acordado e descido um pouco atrasado. Os outros rapazes estavam andando em círculos, e Pete e seus amigos estavam todos perturbados: as portas que davam para os seus quartos haviam sumido, e eles tinham de estudar, blá, blá, blá. Eu estava des cendo as escadas e eles perguntaram: "Feynman! Você pegou as portas?" -Ah, sim! - respondi. - E u peguei a porta. Vocês podem ver o s arranhões nos nós dos meus dedos que fiz quando as minhas mãos rasparam na parede no momento em que eu estava carregando a porta para o porão. Eles não ficaram satisfeitos com a minha resposta; na verdade, não acre ditaram em mim. Os rapazes que levaram a primeira porta haviam deixado tantas pistas - a escrita nos cartazes, por exemplo - que logo foram descobertos. Minha idéia
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era que, quando se descobrisse quem havia roubado a primeira porta, todo mundo pensasse que eles também haviam roubado a outra porta. Funcionou perfeitamente: os rapazes que levaram a primeira porta levaram uma coça e foram torturados por todo mundo, até que, finalmente, com muita dor e difi culdade, eles convenceram seus torturadores que haviam levado apenas uma porta, por mais incrível que parecesse. Ouvi tudo isso, e fiquei contente. A outra porta ficou sumida durante uma semana inteira, e tornou-se cada vez mais importante, para os rapazes que estavam tentando estudar no quar to, que a porta fosse encontrada. Finalmente, para resolver o problema, o presidente da fraternidade disse, à mesa do jantar: "Temos de resolver o problema da porta. Eu mesmo não consegui resolver o problema, então gostaria de receber sugestões do resto de vocês sobre como dar um jeito nessa situação, porque Pete e os outros estão tentando estudar." Alguém dá uma sugestão, depois outra. Depois de um tempinho, levanto-me e dou uma sugestão. "Tudo bem" digo em um tom sarcástico - "quem quer que tenha roubado a porta, sabemos que você é maravilhoso. Você é tão esperto! Não pudemos descobrir quem você é, então você deve ser uma espécie de supergênio. Não precisa dizer-nos quem você é; tudo que queremos saber é onde está a porta. Assim, se você dei xar um bilhete em algum lugar, dizendo onde está a porta, nós o honraremos e admitiremos para sempre que você é um super-herói, que é tão esperto que pôde levar a outra porta sem que pudéssemos descobrir quem é você. Mas, pelo amor de Deus, simplesmente deixe um bilhete em algum lugar, e nós se remos eternamente gratos por isso." O próximo cara faz sua sugestão: "Eu tenho outra idéia" - diz ele - "acho que você, como presidente, deveria pedir a cada um que desse a palavra de honra da fraternidade, se roubou a porta ou não." O presidente diz: "Essa idéia é muito boa. Jurar pela palavra de honra da fraternidade!" Então passa ao redor da mesa, perguntando a cada um: "Jack, você levou a porta?" - Não, senhor. Eu não levei a porta. - Tim: você levou a porta? - Não, senhor! Eu não levei a porta! - Maurice. Você levou a porta?
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- Não, não levei a porta, senhor. - Feynman, você levou a porta? - Sim, eu levei a porta. - Corta essa, Feynman; isso é sério! Sam! Você levou a porta . . . - e passou ao redor da mesa toda. Todo mundo estava chocado. Deveria haver algum verdadeiro rato na fraternidade que não respeitava a palavra de honra da fra ternidade! Naquela noite, deixei um bilhete com uma foto do tanque de óleo e a porta perto dele, e no dia seguinte eles encontraram a porta e colocaram-na de volta. Algum tempo depois, finalmente admiti ter levado a outra porta, e fui acu sado por todos de mentir. Eles não se lembravam do que eu havia falado. Tudo que lembravam era da conclusão deles, depois de o presidente da frater nidade ter passado em revista a mesa toda e perguntado a todo mundo, e que ninguém havia admitido ter levado a porta. A idéia lembravam, mas não as pa lavras. As pessoas, geralmente, pensam que sou um impostor, mas normalmente sou honesto, de uma certa forma - de uma forma tal que geralmente ninguém acredita em mim!
Lati m o u italian o?
Havia uma estação de rádio italiana no Brooklyn, e quando e u era garoto cos tumava ouvi-la o tempo todo. Eu adorava os sons que me embalavam como se estivesse no oceano e as ondas não fossem muito altas. Sentava ali para sentir a água e deixá-la embalar-me no som maravilhoso do italiano. Nos programas italianos, havia sempre algum tipo de situação familiar na qual havia discus sões e brigas entre a mãe e o pai: - Voz alta: Nio teco TIEto capeta TUtto. . . - Voz alta, baixa: DRO fone pala TUtto!!!! (com aplausos) . Era fantástico! Então aprendi a imitar todas estas emoções : eu podia cho rar; podia rir; todas essas coisas. O italiano é uma língua adorável. Em Nova York, havia muitos italianos que moravam perto de nós. Uma vez, quando eu estava andando de bicicleta, um motorista de caminhão italia no zangou-se comigo, saiu de seu caminhão e, fazendo muitos gestos, gritou algo como: "Me arrucha lampe etta fiche! " Senti-me um nada. O que ele havia me dito? O que deveria eu responder? Assim, perguntei a um amigo italiano, na escola, e ele me disse: "Simplesmen te diga A te! A te!" que significa: "O mesmo para você! O mesmo para você!" Achei que era uma grande idéia. Eu respondia "A te! A te! ", gesticulando, é claro. Então, à medida que ganhava confiança, desenvolvia mais minhas ha bilidades. Se estivesse andando de bicicleta e alguma senhora estivesse diri gindo o seu carro e atravessasse meu caminho, eu dizia: "Puzzia a la malo che! " - e ela se afastava! Um garoto italiano terrível havia jogado uma praga terrível sobre ela! Não era tão fácil reconhecer isso como italiano falso. Uma vez, quando eu estava em Princeton, e ia para o estacionamento do Laboratório Palmer na minha bicicleta, alguém cruzou meu caminho. Meu hábito era sempre o mes mo: gesticulava para o cara, "o rezze cabonca miche! ", batendo as costas de uma mão contra a outra. -
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Mais adiante, lá no outro lado de uma grande área gramada, estava um jardineiro italiano plantando algumas plantas. Ele pára, acena e grita feliz: "Rezza ma lia!" Respondo: "Ronte baila!", devolvendo sua saudação. Ele não sabia que eu não sabia, e eu não sabia o que ele tinha falado, e ele não sabia o que eu ti nha falado. Mas estava tudo OK! Era ótimo! Funciona! Afinal de contas, quando eles ouvem a entonação, imediatamente a reconhecem como italiana - pode ser milanês em vez de romano, que diabos! Mas ele é um italiano! Então está tudo bem. Mas você tem que ter absoluta autoconfiança. Continue falando e nada acontecerá. Uma vez, eu voltava para casa do colégio, para as férias, e minha irmã es tava muito chateada, quase chorando: seu grupo de bandeirantes estava ofe recendo um jantar para pais e filhas, mas nosso pai estava viajando, vendendo uniformes. Então disse-lhe que a levaria, sendo o irmão (eu sou nove anos mais velho, logo, não era tão absurdo) . Quando chegamos lá, sentei-me um pouco entre os pais, mas logo fiquei enjoado deles. Esses pais traziam suas filhas para o lindo jantarzinho, e todos falavam sobre o mercado de ações - eles não sabiam como conversar com suas próprias crianças, muito menos com os amigos delas. Durante o jantar, as garotas entretiveram-nos fazendo pequenas paródias, recitando poesias e coisas assim. Então, de repente, elas trouxeram esse negócio engraçado, parecido com um avental, com um buraco na parte de cima para enfiar a cabeça. As garotas anunciaram que os pais agora é que iriam entretê-las. Cada pai tinha de levantar-se, vestir aquela coisa e dizer algo - um cara recita Mary had a Little Lamb e eles não sabem como fazê-lo; quando me le vantei, eu disse que recitaria um pequeno poema, pena que não era em inglês, mas eu tinha certeza de que qualquer modo todos gostariam dele: -
A TUZZO LANTO - Poici di Pare TANto SAca TULna Ti, na PUta TUchi PUti Ti la. R UNto CAta CHANto CHANta MANto CHI la Ti da. YALta CAra S ULda Mi la CHAta PIcha PIno TIto BRALda pe te CHIna nana CHUNda laia CHINda laia CHUNda! RONto piti CA le, a TANto CHINto quinta LALda O la TINta dalla LALta, YENta PUcha lalla TALta!
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Recitei três ou quatro estrofes, passando por todas as emoções que ouvia na rádio italiana, as crianças estavam à vontade, rolando entre as cadeiras, rindo de felicidade. Depois de acabado o banquete, a chefe das bandeirantes e uma professo ra da escola vieram e disseram que ficaram discutindo sobre o meu poema. Uma achava que era italiano, e outra achava que era latim. A professora da es cola pergunta: "Qual de nós está certa? " Eu disse: "Vocês têm de perguntar à s garotas - elas entenderam imedia tamente qual idioma era."
Sem p re tentando escapar
Quando era estudante no MIT, eu estava interessado apenas em ciências; eu não servia para mais nada. Mas no MIT havia uma regra: você tem de fa zer alguns cursos de humanas para ganhar mais "cultura". Além das aulas de inglês obrigatórias, havia duas matérias opcionais; então dei uma olha da no catálogo e imediatamente descobri astronomia - um curso de huma nas! Naquele ano, consegui escapar com astronomia. No ano seguinte, procurei mais no catálogo, deixei passar literatura francesa e cursos do tipo, e encontrei filosofia. Era a coisa mais próxima de ciências que eu pude encontrar. Antes de contar-lhes o que aconteceu na filosofia, deixem-me falar sobre a aula de inglês. Tínhamos de escrever sobre muitos tópicos. Por exemplo, Mill havia escrito alguma coisa sobre a liberdade, e tínhamos de fazer a crítica. Mas, em vez de voltar-me para a liberdade política, como Mill o fez, escrevi sobre a liberdade nos eventos sociais - sobre o problema de ter de mentir e fingir para parecer educado, e como este eterno jogo de mentira e fingimento em situações sociais leva à "destruição da fibra moral da sociedade" . Uma questão interessante, mas não o que deveríamos discutir. Outro ensaio que tínhamos de criticar era o de Huxley, "On a Piece of Chalk", * no qual ele descreve como um simples pedaço de giz que está segu rando é feito de restos de ossos de animais que as forças internas da Terra fi zeram emergir do seu interior para que fizessem parte dos White Cliffs, e de pois foi extraído e agora era utilizado para transmitir idéias por meio do que era escrito no quadro-negro. Novamente, em vez de criticar o assunto que nos foi determinado, escrevi uma paródia intitulada "On a Piece of Dust",** sobre como a poeira determi*Nota do Tradutor: "Sobre um pedaço de giz". **Nota do Tradutor: "Sobre um grão de poeira ".
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na as cores do pôr-do-sol, precipita a chuva, e assim por diante. Sempre fui um impostor, sempre tentando escapar. Mas quando tivemos de escrever sobre o Fausto, de Goethe, não houve jeito! O trabalho era muito grande para fazer dele uma paródia ou inventar qualquer outra coisa. Eu estava caminhando de um lado para o outro na fra ternidade, dizendo: "Não posso fazer isso. Simplesmente não vou fazer isso. Não vou fazer isso!" Um dos meus irmãos de fraternidade disse: "Ok, Feynman, você não vai fazê-lo. Mas o professor vai pensar que você não o fez porque não quis fazer o trabalho. Você tem de escrever um ensaio sobre alguma coisa - o mesmo nú mero de palavras - e entregar com um bilhete dizendo que simplesmente não conseguiu entender Fausto, que não tem sensibilidade para tanto, e que é im possível para você escrever um ensaio sobre isso." Então, fiz isso. Escrevi um longo ensaio, "A respeito dos limites da ra zão". Eu havia pensado sobre técnicas científicas para resolver problemas, e como há certas limitações: os valores morais não podem ser decididos por métodos científicos, blá, blá, blá etc. Então, um outro irmão de fraternidade me ofereceu mais ajuda. "Feyn man", disse ele, "não vai funcionar, entregando um ensaio que não tem nada a ver com Fausto. O que você tem de fazer é colocar o que você escreveu no contexto do Fausto. " - Ridículo! - contestei. Mas os outros rapazes da fraternidade acharam uma boa idéia. Então, acrescentei meia página ao que já escrevera, e disse que Mefistófe les simboliza a razão, Fausto o espírito e que Goethe está tentando mostrar as limitações da razão. Dei uma remexida no texto, troquei tudo de lugar e en treguei meu ensaio. O professor chamava cada um de nós individualmente para discutir a res peito do nosso ensaio. Fui esperando o pior. Ele disse: "O material introdutório é bom, mas o material sobre Fausto é um tanto curto. De qualquer forma, está muito bom: B + ." Mais uma vez eu havia escapado! Agora, a aula de filosofia. O curso era dado por um velho professor bar budo, chamado Robinson, que estava sempre resmungando. Eu ia às aulas, e ele resmungava o tempo todo, eu não entendia nada. As outras pessoas na sala pareciam entendê-lo melhor, mas não pareciam prestar atenção. Aconte-
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ce que eu tinha uma pequena broca de cerca de 1 / 1 6 de polegada, e, para pas sar o tempo na aula, eu ficava girando-a entre os dedos e fazendo buracos na sola do meu sapato, semana após semana. Finalmente, um dia, quando a aula acabou, o prof. Robinson estava hummmm, hummm, humm, e t(!)do mundo ficou agitado! Todos estavam conversando e discutindo entre si; então, desconfiei que ele havia dito algo in teressante, graças a Deus! Me perguntei o que seria. Perguntei a alguém, e ele me disse: "Temos de escrever um ensaio e entregar em quatro semanas." - Um ensaio sobre o quê? - Sobre o que ele falou o ano todo. Fiquei paralisado. A única coisa que tinha ouvido durante o período todo, e que eu podia lembrar, era um momento quando ele aumentou a voz e disse: "Hummmmfluxodaconsciênciahummm" e pum! afundou novamente no caos. Este "fluxo da consciência" lembrou-me um problema que meu pai tinha me apresentado muitos anos antes. Ele disse: "Suponha que alguns marcianos che gassem à Terra, e que eles não dormissem nunca, mas, ao contrário, estivessem sempre ativos. Suponha que eles não conheçam este fenômeno louco que nós conhecemos chamado sono. Então eles te perguntam: 'Como é dormir? O que acontece quando você dorme? Seus pensamentos param de repente ou eles acontecem mais lentamente, cada vez mmaaaiiiisssss leeeeennnnntttttttaaaame eeeente? Como a mente realmente na verdade se desliga? ' " Fiquei interessado. Agora tinha de responder a esta pergunta: de que modo o fluxo da consciência acaba, quando você vai dormir? Então, durante as quatro semanas seguintes, todas as tardes eu trabalha va no meu ensaio. Abaixava as persianas do meu quarto, apagava as luzes e ia dormir. E vigiava o que acontecia quando eu ia dormir. Então, à noite, eu dormia de novo, assim eu tinha chance de fazer obser vações duas vezes ao dia - era muito bom! Primeiro, percebi uma série de coisas subsidiárias que tinham pouco a ver com adormecer. Observei, por exemplo, que eu tinha uma série de pensamen tos ao conversar internamente comigo mesmo. Também podia imaginar vi sualmente as coisas. Então, quando estava ficando cansado, percebi que podia pensar em duas coisas ao mesmo tempo. Descobri isso quando conversava comigo mesmo sobre alguma coisa, e, enquanto fazia isso, ficava preguiçosamente imaginan-
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do duas cordas amarradas à minha cama, passando por algumas polias, sendo enroladas num cilindro que girava, erguendo a cama vagarosamente. Eu não estava consciente de que estava imaginando estas cordas, até que comecei a me preocupar com o fato de uma corda enrolar-se na outra, e elas não se rom periam suavemente. Mas eu disse, lá dentro de mim: "Ab, a tensão cuidará disso." Isso interrompeu o primeiro pensamento que eu estava tendo e me fez tomar consciência de que estava pensando em duas coisas ao mesmo tempo. Também notei que, quando você vai dormir, as idéias continuam a fluir, mas tornam-se cada vez menos interligadas logicamente. Você não percebe que elas não estão logicamente interligadas até que se pergunta: "O que me fez pensar isso?" E então tenta refazer o caminho, e geralmente não consegue lembrar que diabos fez você pensar sobre aquilo! Assim, você tem toda a ilusão de interligação lógica, mas o fato real é que os pensamentos se tornam mais e mais absurdos até que se tornam completa mente desconexos, e, para além disso, você cai no sono. Depois de dormir o tempo todo durante quatro semanas, escrevi meu en saio e expliquei as observações que havia feito. No final do ensaio, salientei que todas essas observações foram feitas enquanto eu assistia a mim mesmo cair no sono, e realmente não saberia dizer o que é cair no sono quando não estou observando � me. Concluí o ensaio com um pequeno verso que criei que mostrava este problema de introspecção: Eu me pergunto por quê. Eu me pergunto por quê. Eu me pergunto por que me pergunto. Eu me pergunto por que eu me pergunto por quê. Eu me pergunto por que eu me pergunto!
Entregamos nossos ensaios, e, na aula seguinte, o professor lê um deles: "Humm, mamamam, ... " Eu não consigo perceber o que este sujeito escreveu. Ele lê outro ensaio: "Humm, mamam, humm, bzzz ... " Eu também não sei o que o cara escreveu, mas no final ele diz: Humm, maaa, bzzz. Humm, maaa, bzzz. Humm, maaa, maaa, maaa. Eu maaa hum uh maaa hum Hummm, maaa, maaa, maaa.
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A-ha! - digo eu. - Este é o meu ensaio! Eu, honestamente, só o reconheci no final. Depois de escrever o ensaio, continuei curioso e a observar a mim mesmo quando ia dormir. Vma noite, enquanto estava sonhando, descobri que estava observando a mim mesmo no sonhÜ\ Eu havia mergulhado no meu próprio sono! Na primeira parte do sonho, estou em cima de um trem e estamos nos aproximando de um túnel. Fico apavorado, me agacho, entramos no túnel ufa! Digo para mim mesmo: "Então você pode sentir medo e pode ouvir o som mudar quando entra no túnel." Também percebi que podia ver as cores. Algumas pessoas diziam que so nhamos em preto e branco, mas não, eu estava sonhando em cores. Agora, eu estava em um dos vagões e podia sentir o trem dando uma gui nada para a esquerda e para a direita. Digo para mim mesmo: "Então você pode ter sentimentos sinestésicos em um sonho." Vou com alguma dificulda de até o fim do vagão, e vejo uma janela grande, como uma vitrina de loja. Atrás dela havia não manequins, mas três garotas vivas, em trajes de banho, e elas pareciam muito bem! Continuo a andar até o próximo vagão, segurando-me nas correias que pendiam do teto, quando digo para mim mesmo: "Hei! Seria interessante fi car excitado - sexualmente." Então penso em voltar ao outro vagão. Descobri que podia virar-me e voltar pelo trem - eu podia controlar a direção do meu sonho. Volto ao vagão com a vitrina especial e vejo três sujeitos velhos tocan do violinos - mas eles voltaram a ser as garotas! Eu podia modificar a direção do meu sonho, mas não de modo perfeito. Bem, comecei a ficar excitado, tanto intelectual como sexualmente, di zendo coisas do tipo: "Vau! Está funcionando!", e acordei. Fiz algumas outras observações enquanto sonhava. Apesar de estar sem pre me perguntando "Eu estou realmente sonhando em cores?", eu imagina va: "Com que exatidão você vê alguma coisa?" De outra vez que sonhei, havia uma garota deitada na grama alta; ela ti nha cabelos ruivos e tentei ver se podia olhar cada fio de cabelo. Você sabe, há uma pequena área colorida bem onde o sol está refletindo - o efeito da difra ção, e eu podia ver isto! Eu podia ver cada fio de cabelo com a exatidão que quisesse: visão perfeita! Em outra oportunidade, tive um sonho no qual uma tachinha estava pre gada no batente da porta. Vejo a tachinha, passo meus dedos pelo batente e
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sinto a tachinha. Então, o "departamento de visão" e o "departamento de sen sação" do cérebro parecem ser interligados. Então digo para mim mesmo: Será possível que eles não tenham de estar interligados? Olho novamente para o batente da porta, e não há tachinha alguma. Passo meu dedo pelo batente e sinto a tachinha! Outra vez, estou sonhando e ouço "toc-toc; toc-toc". Alguma coisa esta va acontecendo no sonho que provocou estas batidas na porta, mas não de modo perfeito - parecia estranho. Pensei: "Tenho certeza absoluta de que este som está vindo de fora do meu sonho, e que eu inventei esta parte do so nho para adaptá-lo. Tenho de levantar e descobrir que diabos é esse som." A batida na porta ainda continua, levanto-me, e . . . silêncio mortal. Não havia nada. Então não estava relacionada com o exterior. Outras pessoas disseram-me que incorporavam barulhos externos aos seus sonhos, mas quando tive essa experiência, cuidadosamente "observando de baixo", e certo de que o barulho estava vindo do lado de fora, ele não estava. Durante o período em que eu estava observando meus sonhos, o processo de despertar era razoavelmente temerário. Quando você está começando a acordar, há um momento em que você se sente rígido e amarrado ou debaixo de várias camadas de bandagens de algodão. É difícil explicar, mas há um mo mento em que você tem a sensação de que não pode fugir; você não tem a cer teza de que pode acordar. Então, eu tinha de dizer a mim mesmo - depois de estar acordado - que isso era ridículo. Não conheço doença alguma na qual a pessoa durma naturalmente e não possa acordar. Você sempre pode acordar. E depois de conversar assim comigo mesmo várias vezes, fiquei cada vez com menos medo, e, na verdade, eu achava o processo de despertar bastante emo cionante - algo como uma montanha-russa: depois de um tempo, você já não está tão apavorado e começa até a gostar dele um pouco. Você vai querer saber como esse processo de observação dos meus pró prios sonhos parou (o que aconteceu quase completamente, já que desde en tão ele só aconteceu algumas vezes) . Uma noite, estou sonhando, como sem pre, fazendo observações, e vejo uma flâmula na parede à minha frente. Res pondo pela vigésima quinta vez " Sim, estou sonhando em cores", e então per cebo que estive dormindo com minha nuca apoiada contra uma vareta de bronze. Ponho minha mão atrás da minha cabeça e descubro que a parte pos terior dela é macia. Penso: "A-ha! É por isso que tenho conseguido fazer todas essas observações em meus sonhos: a vareta de bronze perturbou meu córtex
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visual. Tudo que tenho de fazer é dormir com uma vareta de bronze debaixo da minha cabeça, e poderei fazer essas observações quando quiser. Acho então que vou parar de fazer observações sobre isso e entrar em sono mais profundo." Mais tarde, quando me levantei, não havia vareta de bronze, nem a mi nha nuca era mole. De algum modo eu estava cansado de fazer essas obser · vações, e meu cérebro inventou algumas razões falsas para que eu não mais as fizesse. Como resultado dessas observações, comecei a tecer uma pequena teoria. Uma das razões pelas quais eu gostava de observar os sonhos era que eu esta va curioso sobre a maneira como podemos ver uma imagem, a de uma pessoa, por exemplo, quando os olhos estão fechados, e não há nada para estimular você. Dizem que podem ser descargas nervosas aleatórias, irregulares, mas você não consegue, quando está dormindo, que os nervos tenham descargas exatamente com os mesmos padrões delicados de quando se está acordado, olhando para alguma coisa. Bem, então, como eu podia "ver" em cores, e com melhores detalhes, quando estava dormindo? Decidi que deveria haver um "departamento de interpretação" . Quando se está realmente olhando algo - um homem, uma lâmpada ou uma parede -, não se vêem simplesmente borrões coloridos. Algo diz a você o que é aquilo; ele tem de ser interpretado. Quando se está dormindo, esse departamento de interpretação ainda está operante, mas está todo relaxado. Ele está dizendo que você está vendo um cabelo humano nos mínimos detalhes, quando isto não é verdade. Ele está interpretando o refugo aleatório que entra no cérebro como uma imagem clara. Mais outra coisa sobre sonhos. Eu tinha um amigo chamado Deutsch, cuja esposa era de uma família de psicanalistas em Viena. Uma noite, durante uma longa discussão sobre sonhos, ele me disse que os sonhos têm significa dos : há símbolos nos sonhos que podem ser interpretados pela psicanálise. Eu não acreditava na maioria dessas coisas, mas naquela noite tive um sonho in teressante: estávamos jogando em uma mesa de bilhar com três bolas - uma bola branca, uma verde e uma cinza - o nome do jogo era titsies. * Era algo so bre tentar colocar as bolas na caçapa: era fácil encaçapar a bola branca e a ver de, mas a cinza'eu não conseguia. *Nota do Tradutor: Literalmente, "tetinhas".
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Acordo, e o sonho é muito fácil de interpretar: o nome do jogo o revela, é claro - são garotas! A bola branca era fácil de entender, porque eu saía, furti vamente, com uma mulher casada que, àquela época, trabalhava como caixa em um café e usava um uniforme branco. A verde também era fácil, porque eu havia ido, uma ou duas noites antes, a um drive-in com uma menina que esta va com um vestido verde. Mas a cinza - que diabos era a cinza? Eu sabia que devia ser alguém: eu sentia isso. É como quando você está tentando lembrar um nome, e ele está na ponta da língua, mas você não consegue. Levou meio dia para que eu me lembrasse que, há cerca de dois ou três meses, havia me despedido de uma menina que eu gostava muito, que tinha ido para a Itália. Ela era muito bacana, e eu havia decidido vê-la novamente quando ela voltasse. Não sei se ela usava um costume cinza, mas ficou perfei tamente claro, assim que pensei nela, que ela era a bola cinza. Voltei ao meu amigo Deutsch e disse que ele deveria estar certo há algu ma coisa a ser analisada nos sonhos. Mas quando ele ouviu meu sonho inte ressante, disse: "Não, esse foi perfeito demais - muito certinho. Geralmente você precisa de um pouco mais de análise." -
o quím ico pesquisad o r-chefe da Corporação Metaplast ,
Depois de acabar o MIT eu queria arranjar um emprego de verão. Fiquei à disposição, duas ou três vezes, do Laboratório BeU, e fui até lá algumas vezes. Bill Shocldey, * que me conhecia do laboratório do MIT, mostrou-me o lugar. Eu adorava essas visitas, mas nunca arranjei um trabalho lá. Eu tinha cartas de recomendação de alguns dos meus professores para duas companhias específicas. Uma era a Companhia Bausch and Lomb, para projetar a passagem dos raios através das lentes; a outra era o Laboratório de Testes Elétricos, em Nova York. Naquela época, ninguém sabia o que era um físico, e não havia postos nas indústrias para físicos. Engenheiros, tudo bem; mas físicos -ninguém sabia como utilizá-los. É interessante que pouco tempo depois, depois da guerra, a situação tenha se invertido: em todos os lugares as pessoas queriam físicos. Assim, eu não estava chegando a lugar algum como físico procurando trabalho no final da Depressão. Por essa época, encontrei na praia um velho amigo, na nossa cidade natal de Far Rockaway, onde crescemos juntos. Havíamos ido juntos à escola quando tínhamos 1 1 ou 1 2 anos, e éramos muito bons amigos. Nós dois tí nhamos mente científica. Tínhamos, cada um, um "laboratório". Geralmen te, brincávamos juntos e discutíamos as coisas entre nós. Costumávamos fazer shows de mágica - mágicas de química - para as crianças do quarteirão. Meu amigo era um bom apresentador, e eu também gostava disso. Fazíamos nossos truques sobre uma mesinha, com bicos de Bunsen funcionando o tempo todo nos cantos da mesa. Sobre os maçaricos tínhamos placas de vidro (discos achatados de vidro) com iodo, que faziam uma bela fumaça púrpura que subia de cada lado da mesa enquanto o show prosseguia. Era fantástico! Fazíamos uma porção de truques, tais como *Nota do Tradutor: WilIiam Bradford Shockley ( 1 9 1 0- 1 989) , físico americano inventor do transistor de junção.
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transformar "vinho" em água, e outras mudanças químicas coloridas. No fi nal, fizemos um truque em que usávamos algo que havíamos descoberto. Eu mergulhava as minhas mãos (secretamente) primeiro em uma bacia de água, e então em benzina. Depois, "acidentalmente", roçava nos maçaricos, e uma mão se acendia. Eu batia palmas, e as duas mãos então pegavam fogo. (Você não se machuca porque a benzina queima rápido e a água mantém a mão fria.) Então eu sacudia minhas mãos, e saía correndo e gritando: "Fogo! Fogo!" Todos ficavam muito excitados. Eles corriam para fora do quarto, e este era o final do show! Mais tarde, na faculdade, contei essa história para os meus irmãos de fra ternidade e eles disseram: "Absurdo! Você não pode fazer isso!" (Muitas vezes eu tinha dificuldade em demonstrar a esses sujeitos algo em que eles não acreditavam - como a vez que entramos em uma discussão se a urina simplesmente saía de você pela gravidade ou não, e tive de demonstrar que esse não era o caso, mostrando a eles que se pode fazer xixi de cabeça para baixo. Ou a vez em que alguém alegou que tomar aspirina com Coca-Cola causaria imediatamente um desmaio mortal. Eu disse que achava que isso era um monte de besteira, e ofereci-me para tomar aspirina com Coca- Cola. Então começou uma discussão sobre se você deve tomar a aspirina antes da Coca, imediatamente após a Coca, ou misturada com a Coca. Tomei seis Aspirinas e três Coca-Colas, uma depois da outra. Primeiro, tomei duas aspi rinas e depois a Coca, depois dissolvemos duas aspirinas na Coca-Cola e bebi, e, por fim, tomei uma Coca e duas aspirinas. A cada vez, os idiotas que acredi tavam nessa bobagem ficavam ao meu redor, esperando para segurar-me quando eu desmaiasse. Mas não aconteceu nada. Lembro que não dormi muito bem naquela noite; então levantei e fiz uma porção de cálculos e tra balhei em algumas das fórmulas para o que é chamado de função Zeta de Riemann.*) "Tudo bem, rapazes" - eu disse - "vamos sair e comprar um pouco de benzina." Eles rapidamente conseguiram a benzina, enfiei minha mão na bacia com água e depois na benzina e acendi... e doeu como o diabo! Veja você, nesse *Nota do Tradutor: Importante função matemática criada e utilizada pelo famoso matemá tico alemão Georg Friederich Bernhard Riemann ( 1 826- 1 866) no estudo da teoria dos números. ,
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meio-tempo, haviam crescido pêlos nas costas das minhas mãos, que funcio naram como pavio e absorveram a benzina enquanto queimava, ao passo que, quando eu era menor, não tinha pêlos nas costas das mãos. Depois de ter feito a experiência para os meus irmãos de fraternidade, eu também não tinha mais pêlos nas costas da minha mão. Bem, meu companheiro e eu nos encontramos na praia, e ele me disse que -tinha um processo para galvanizar plásticos. Respondi que era impossível, porque não há condutividade; você não podia simplesmente ligar um fio ao plástico. Mas ele disse que podia galvanizar qualquer coisa, e ainda me lem bro dele apanhando um caroço de pêssego que estava na areia e dizendo que poderia galvanizar aquilo tentando impressionar-me. O interessante foi que ele me ofereceu um emprego na sua pequena em presa, que ficava no andar de cima de um edifício em Nova York. Havia só quatro pessoas na companhia. O pai dele era quem estava ganhando dinheiro, junto com ele, e era, acho, o "presidente". Ele era o "vice-presidente", junto com outro sujeito que era vendedor. Eu era o "químico pesquisador-chefe", e o irmão do meu amigo, que não era muito inteligente, era o lavador de garra fas. Tínhamos seis banhos de galvanização. Eles tinham esse processo de galvanização de plásticos, e o esquema era: primeiro, depositar a prata sobre o objeto, precipitando a prata a partir de um banho de nitrato de prata com um agente redutor (do mesmo modo que você faz com espelhos) ; depois mergulhar o objeto, com prata depositada sobre ele agindo como condutor, em um banho de eletrogalvanização, e a prata ficava galvanizada. O problema era: A prata fica fixada no objeto? Não. Ela descascava com muita facilidade. Então havia um passo inter mediário para fazer a prata fixar-se melhor ao objeto. Dependia do material. Para coisas como baquelita, que naquela época era um plástico importante, meu amigo havia descoberto que se a tratasse primeiro com um jato de areia, e depois a deixasse imersa por várias horas em hidróxido de estanho, que pene trava nos poros da baquelita, a prata se fixaria muito bem à superfície. Mas esse processo funcionava apenas com uns poucos plásticos, e esta vam aparecendo novos tipos de plástico o tempo todo, tal como o metilmeta crilato (que agora chamamos de Plexiglass), que no começo não podíamos galvanizar diretamente; o acetato de celulose, que era muito barato, era outro que, no começo, também não podíamos galvanizar, até que finalmente desco�
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brimos que colocando-o no hidróxido de sódio por algum tempo, antes de usar o cloreto de estanho, poderíamos galvanizá-lo muito bem. Eu estava me saindo bastante bem como "químico" na companhia. Minha vantagem era que meu companheiro nunca havia feito qualquer tipo de química, nunca havia feito nenhuma experiência, ele sabia como fazer algo apenas uma vez. Comecei a trabalhar escrevendo uma série de rótulos com parâmetros de controle nas garrafas e enfiando todo tipo de substância química nelas. Ao fazer vários tipos de experiência e manter registro de tudo, descobri formas de galvani zar uma quantidade de plásticos bem maior do que ele havia conseguido. Também consegui simplificar o processo dele. Pesquisando em livros, mudei o agente redutor de glucose para formaldeído e consegui recuperar 1 00% da prata, imediatamente, ao invés de recuperar a prata deixada na solu ção com um processo posterior. Também consegui dissolver o hidróxido de estanho na água adicionando um pouco de ácido hidroclorídrico - algo que me lembrava de um curso de química na faculdade. Então, um passo que levava horas agora durava cerca de cinco minutos. Minhas experiências eram sempre interrompidas por um vendedor, que vinha com alguma amostra de plástico de um cliente em potencial. Eu tinha todas as garrafas alinhadas, com tudo marcado, quando, de repente, ouvia: "Você tem de parar essa experiência para fazer um 'supertrabalho ' para o de partamento de vendas!" Assim, diversas experiências tiveram de ser iniciadas mais de uma vez. Certa vez, nos metemos em um maldito problema. Um artista que estava tentando fazer um quadro para a capa de uma revista de automóveis. Ele tinha cuidadosamente construído uma roda de plástico, e, de um modo ou de ou tro, o vendedor falou para ele que podíamos galvanizar qualquer coisa, e en tão o artista quis que galvanizássemos o eixo para que a roda ficasse um eixo brilhante, prateado. A roda era feita de um novo plástico que não sabíamos muito bem como galvanizar - a verdade é que o vendedor nunca sabia o que podíamos galvanizar; logo, ele sempre estava prometendo coisas - e nesse caso não funcionou da primeira vez. Então, para dar um jeito, tivemos de tirar a prata velha, e não foi fácil. Decidi usar ácido nítrico concentrado, o que ti rou bem a prata, mas também criou algumas depressões e fez alguns buracos na roda. Tínhamos uma bomba daquela vez! Na verdade, tínhamos uma série de experiências "bombas".
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Os outros caras da empresa decidiram que devíamos fazer propaganda na revista Modem Plastics. Algumas coisas que havíamos galvanizado ficaram muito bonitas. Elas pareciam boas no anúncio. Também tínhamos algumas coisas na vitrina da frente, para que os futuros clientes vissem, mas ninguém podia tocá-las no anúncio ou na vitrina para ver o quão boa ficava a galvaniza ção. Talvez alguns daqueles trabalhos fossem realmente bons. Mas eles eram feitos por encomenda: não eram produtos regulares. Assim que deixei a empresa, no final do verão, para ir para Princeton, eles receberam uma boa oferta de alguém que queria galvanizar canetas de plásti co. Agora as pessoas podiam ter canetas de prata que eram leves, confortáveis e baratas. As canetas foram rapidamente vendidas, e era bastante excitante ver as pessoas andando por todo canto com essas canetas - e você sabia de onde elas vinham. Mas a empresa não tinha muita experiência com o material - ou talvez a mistura que fora usada no plástico (a maioria dos plásticos não é pura; eles apresentam uma "mistura" que naquela época não era muito bem controla da) - e a droga da coisa formou bolhas. Quando você segura algo que forma uma pequena camada que começa a descascar, você não consegue ignorar. Todo mundo estava ficando nervoso com aquela casca saindo das canetas. A empresa tinha então um problema emergencial de consertar as canetas, e meu companheiro decidiu que precisávamos de um microscópio grande, e coisas assim. Ele não sabia o que procurar, ou por quê, e custou muito dinhei ro essa pesquisa de tapeação. O resultado foram mais problemas, que eles nunca resolveram o problema, e a empresa faliu, porque seu primeiro grande trabalho foi um grande fracasso. Alguns anos depois, eu estava em Los Alamos, onde havia um homem chamado Frederic de Hoffman, que era uma espécie de cientista, mas que também era muito bom em administração. Embora não altamente treinado, ele gostava de matemática e trabalhava muito; compensava sua falta de treina mento com trabalho duro. Mais tarde, tornou-se o presidente ou vice-pre sidente da General Atomics e virou uma grande personalidade industrial. Mas, àquela época, ele era apenas um cara com muita energia, atento e entu siasta, cooperando com o projeto da melhor forma que podia. Um dia, estávamos comendo no Fuller Lodge, e ele me disse que traba lhara na Inglaterra antes de vir para Los Alamos. - Que tipo de trabalho você fazia lá? - perguntei.
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- Estava trabalhando em um processo para galvanizar plásticos, era um dos caras do laboratório. - E como foi? - Estava indo muito bem, mas tivemos problemas. - É? - Quando estávamos começando a desenvolver nosso processo, apareceu uma companhia em Nova York. - Qual companhia em Nova York? - Chamava-se Metaplast Corporation. Eles estavam mais adiantados do que nós. - Como você sabia? - Eles sempre faziam propaganda de página inteira na revista Modem Plastics, mostrando tudo que podiam galvanizar, e percebemos que eles esta vam muito à frente de nós. - Vocês tinham algum material deles? - Não, mas você podia ver pelo anúncio que eles estavam muito mais avançados do que nós. Nosso processo era bastante bom, mas não adiantava tentar competir com um processo americano como aquele. - Quantos químicos vocês tinham trabalhando no laboratório? - Tínhamos seis químicos trabalhando. - Quantos químicos você acha que a Metaplast Corporation tinha? - Ah! Eles deviam ter um verdadeiro departamento de química! - Você poderia descrever-me como acha que o químico pesquisador-chefe da Metaplast Corporation devia parecer-se, e como seu laboratório devia funcionar? - Eu chutaria que eles tinham vinte e cinco ou cinqüenta químicos, e o químico pesquisador-chefe tinha seu próprio escritório - especial, cercado de vidro. Você sabe, como eles têm nos filmes - gente entrando o tempo todo com os projetos de pesquisa que estão fazendo, pedindo conselho e correndo para fazer mais pesquisa, pessoas entrando e saindo o tempo todo. Com vinte e cinco ou cinqüenta químicos, como poderíamos competir com eles? - Você ficará interessado e feliz em saber que está conversando, agora, com o químico pesquisador-chefe da Metaplast Corporation e que sua equipe consistia em um lavador de garrafas!
Parte I I
OS anos de Princeton
"O sen h or está brincand o, Sr. Feyn man !"
Adorei a época em que era estudante de graduação no MIT. Eu achava que o MIT era um ótimo lugar e, naturalmente, queria fazer a minha pós-gra duação lá também. Mas quando falei com o professor Slater a respeito das minhas intenções, ele me disse: "Não permitiremos que você entre aqui." Eu disse: "O quê?" . Slater perguntou: "Por que você acha que deveria ir para a escola de pós-graduação do MIT?" - Porque o MIT é a melhor escola do país em termos de ciências. - Você acha isso? - Sim. - É por isso que você deve ir para outra escola. Você deve descobrir como é o resto do mundo. Então decidi ir para Princeton. Por essa época, Princeton tinha um certo ar de elegância. Era em parte uma imitação de uma escola inglesa. Os caras da fraternidade que conheciam meus modos um tanto rudes, informais, co meçaram a fazer observações do tipo "Espere até que eles descubram quem estão admitindo em Princeton! Espere até que descubram o erro que come teram!" Sendo assim, decidi tentar ser gentil ao chegar a Princeton. Meu pai me levou em seu carro até lá, acomodei-me em meu quarto, e ele foi embora. Ainda não tinha passado uma hora que eu estava lá quando fui abordado por um homem: "Eu sou o Mestre das Residências e gostaria dizer que o Reitor oferecerá um chá esta tarde e gostaria que todos os senhores compareces sem. Talvez o senhor possa fazer a gentileza de avisar ao seu colega de quar to, Sr. Serette." Essa foi minha apresentação à "congregação" da pós-graduação de Prin ceton, onde todos os estudantes residiam. Era como se fosse uma imitação completa de Oxford ou Cambridge, incluindo o sotaque (o Mestre das Resi-
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dências era um professor de "literaturra francesa"*) . Havia um porteiro na entrada, todos tinham bons quartos e fazíamos as refeições todos juntos, en vergando as becas acadêmicas, em um salão com vitrais. Na mesma tarde em que cheguei a Princeton, fui ao chá do reitor; eu não sabia sequer o que era um "chá", ou qual a sua função! Eu não tinha traquejo social nenhum; não tinha experiência com esse tipo de coisa. Fui até a entrada, e lá estava o reitor Eisenhart, cumprimentando os no vos estudantes: "Ah! O senhor é o Sr. Feynman", disse ele. "Estamos conten tes em tê-lo conosco." Isso ajudou um pouco, porque, de alguma forma, ele me reconheceu. Cruzei a porta, havia algumas senhoras e moças também. Tudo era muito formal, estava imaginando onde sentar, se devia sentar perto dessa garota, ou não, como deveria comportar-me, quando ouço uma voz atrás de mim. - O senhor deseja creme ou limão no seu chá, Sr. Feynman? É a Sra. Ei senhart, servindo o chá. - Quero os dois, obrigado - digo eu, ainda procurando lugar para sen tar-me, quando, de repente, ouço "há, há, há, há, há. O senhor certamente deve estar brincando, Sr. Feynman". Brincando? Brincando? Diacho! O que eu disse? Então percebi o que ha via feito. Foi a minha primeira experiência com esse negócio de chá. Mais tarde, estando já há algum tempo em Princeton, entendi esse "há, há, há, há, há". Na verdade, foi naquele primeiro chá, quando eu já estava indo embora, que percebi que ele queria dizer "o senhor está cometendo uma gafe". Foi porque a outra vez em que ouvi essa mesma risada, "há, há, há, há, há", da Sra. Eisenhart, alguém estava beijando a sua mão quando saía.** Em uma outra ocasião, talvez um ano mais tarde, em um outro chá, eu es tava conversando com o professor Wildt, um astrônomo que havia criado uma teoria a respeito das nuvens de Vênus. Se supunha que elas deveriam ser de formaldeído (é maravilhoso saber algo sobre o que outrora nos preocu pou) ; ele já havia calculado tudo, como o formaldeído se precipitava, e assim por diante. Era extremamente interessante. Estávamos conversando sobre -
*Nota do Revisor Técnico: No original, Feynman usa a transliteração do sotaque inglês de alta classe: "littrachaw".
**Nota do Tradutor: A etiqueta determina que o cavalheiro beije a mão de uma senhora somente ao chegar.
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esse tipo de coisa, quando uma senhora chegou e me disse: "Sr. Feynman, a Sra. Eisenhart gostaria de vê-lo." - OK, só um minutinho ... - e continuei conversando com Wildt. A franzina senhora voltou novamente e disse: " Sr. Feynman, a Sra. Eisenhart gostaria de vê-lo." , - OK, OK! - e fui até a Sra. Eisenhart, que estava servindo chá. - O senhor prefere chá ou café, Sr. Feynman? - A Sra. Fulana de Tal disse que a senhora gostaria de falar comigo. - Há, há, há, há, há. O senhor prefere café ou chá, Sr. Feynman? - Chá - eu disse -, obrigado. Alguns minutos depois, a filha da Sra. Eisenhart e uma colega de escola apareceram e fomos apresentados. A idéia desse "há, há, há" era: a Sra. Eisenhart não queria falar comigo, ela me queria lá tomando chá quando sua filha e a amiga chegassem, assim elas teriam alguém com quem conversar. Era assim que funcionava. Naquela época, eu já sabia o que fazer quando ouvia "há, há, há, há, há". Eu não falei: " O que você quer dizer com 'há, há, há, há, há' ? " ; eu já sabia que "há, há, há" queria dizer "gafe", e era melhor eu corrigi -la. Toda noite, vestíamos as becas acadêmicas para o jantar. Na primeira noite, fiquei apavorado, porque não gostava de formalidade. Mas logo perce bi que as becas tinham uma grande vantagem. Os rapazes que estivessem lá fora, jogando tênis, podiam correr até o quarto, agarrar a sua beca e vesti-la. Eles não tinham de perder tempo tirando as roupas ou tomando um banho. Assim, por baixo das becas, havia braços nus, camisetas, tudo. Além do mais, havia uma regra que dizia que você nunca deveria lavar a beca para que fosse possível distinguir alguém do primeiro ano de alguém do segundo, do tercei ro, de um porco! Nunca se lavava a beca e jamais se faziam consertos de cos tura nela; então, os rapazes do primeiro ano tinham becas muito belas, relati vamente limpas, mas quando se chegava ao terceiro ano, ou algo assim, ela não era nada além do que uma espécie de papelão sobre seus ombros, com farrapos pendurados. Assim, quando cheguei a Princeton, fui àquele chá na tarde de domingo e jantei, naquela noite, vestindo uma beca acadêmica, na "congregação". Po rém, na segunda-feira, a primeira coisa que quis fazer foi ver o ciclotron. O MIT havia construído um novo ciclotron durante o tempo que eu estu dava lá, e era simplesmente lindo! O ciclotron ficava em uma sala, e o�;�
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troles em outra. O aparato tinha sido maravilhosamente construído. Os fios saíam da sala de controle para o ciclotron em eletrodutos subterrâneos, e ha via todo um painel com botões e medidores. Era o que eu chamaria de um ci clotron banhado em ouro. Nessa época, eu havia lido uma série de artigo�bre experimentos com o ciclotron, e não havia muitos do MIT. Talvez estívessem apenas começando. Mas havia uma série de resultados de lugares como ComeU, Berkeley e, so bretudo, Princeton. Logo, o que eu realmente queria ver, o que aguardava tão ansiosamente, era o Ciclotron de Princeton. Devia ser algo! Então, na segunda-feira, a primeira coisa que faço é ir ao prédio da física e perguntar: "Onde fica o ciclotron - em qual prédio? " - Fica lá embaixo, no porão, no final do corredor. No porão? Era um prédio antigo. Não havia espaço no porão para um ci clotron. Fui até o final do corredor, cruzei a porta, e em dez segundos descobri por que Princeton era perfeita para mim - o melhor lugar para fazer a minha pós-graduação. Nessa sala, havia fios pendurados por toda parte! Os interrup tores estavam pendurados nos fios, a água para resfriamento estava pingando das válvulas, a sala estava cheia de coisas, tudo exposto. Havia mesas entulha das com ferramentas em todo canto; era a maior bagunça que você já viu. Todo o ciclotron estava em uma única sala, e ela era um caos completo, absoluto! Essa sala lembrava-me do meu laboratório de casa. Nada no MIT jamais me fizera lembrar do meu laboratório de casa. De repente, dei-me conta por que Princeton estava obtendo resultados. Eles estavam trabalhando com o instrumento. Eles construíram o instrumento; eles sabiam onde estava tudo, como tudo funcionava, não havia nenhum engenheiro envolvido no projeto, exceto, talvez, se também estivesse trabalhando lá. O ciclotron era muito me nor do que o do MIT, e "banhado a ouro"? - era exatamente o contrário. Quando queriam consertar um aspirador, pingavam glyptal* nele, portanto havia gotas de glyptal no chão. Era maravilhoso! Porque eles trabalhavam com o aparato. Eles não tinham de sentar-se em outra sala e apertar botões! (Incidentalmente, eles tiveram um incêndio naquela sala, por causa de toda a bagunça caótica que havia por lá - muitos fios -, e o ciclotron foi destruído. Mas é melhor eu não falar sobre isso!) *Nota do Revisor Técnico: Glyptal é a marca de uma resina sintética usada para revesti mentos.
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(Quando cheguei a ComeU, fui ver o ciclotron. Este quase não precisava de uma sala: tinha cerca de um metro de um lado a outro - o diâmetro da coisa toda. Era o menor ciclotron do mundo, mas eles obtinham resultados fantás- ticos. Tinham todo tipo de técnicas e truques especiais. Se quisessem mudar alguma coisa nos "Dês" - os semii:;írculos em forma de D, que as partículas percorriam -, pegavam uma chave de parafuso, removiam os Dês com as mãos, consertavam-nos e os colocavam de volta. Em Princeton, era bem mais difícil; e no MIT você tinha de pegar uma grua, que vinha rolando pelo teto, baixar os ganchos, dava um trabalho danado!) Aprendi um monte de coisas diferentes nas diversas escolas. O MIT é um lugar muito bom; não estou tentando desmerecê-lo. Eu simplesmente estava apaixonado por ele. Ele criou, por conta própria, um tal espírito de corpo que cada membro da instituição, como um todo, pensa que ele é o lugar mais ma ravilhoso do mundo - é o centro, de alguma forma, do desenvolvimento cien tífico e tecnológico dos Estados Unidos, se não do mundo. É como a visão que um nova-iorquino tem de Nova York: eles esquecem o resto do país. E, ao mesmo tempo que lá não se adquire senso de proporção, adquire-se um exce lente senso de fazerparte dele e de ter a motivação e o desejo de manter-se as sim - você é um dos escolhidos e tem sorte em estar lá. O MIT era bom, mas Slater tinha razão em me aconselhar a ir para outra universidade para fazer o meu trabalho de graduação. Geralmente dou o mes mo tipo de conselho aos meus alunos. Descubra como é o resto do mundo. Diversificar vale a pena. Uma vez, fiz uma experiência no laboratório do ciclotron em Princeton que apresentou resultados surpreendentes. Havia um problema em um li vro de hidrodinâmica que estava sendo discutido por todos os estudantes de física. O problema era o seguinte: você tem um regador giratório em forma de S - um cano em forma de S montado sobre um eixo - e a água es guicha em ângulos retos em relação ao eixo e faz girar o regador em um de terminado sentido. Todo mundo sabe em que sentido ele gira; ele gira no sentido contrário ao da água que esguicha. Então, a pergunta é a seguinte: se houvesse um lago, ou uma piscina - um grande reservatório de água - e você colocasse o regador giratório completamente imerso na água e aspi rasse a água em vez de esguichá-la, em que sentido o regador giraria? Se ria no mesmo sentido do caso em que você faz esguichar a água no ar ou no sentido oposto?
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À primeira vista a resposta parece perfeitamente óbvia. O problema era que alguém poderia pensar que era demasiadamente óbvio que girasse em um sentido, e outra pessoa pensar que era perfeitamente óbvio que girasse no ou tro sentido. Todo mundo estava discutindo o problema. Lembro-me que em determinado seminário, ou chá, alguém foi até o prof. John Wheeler e per guntou: "Em que sentido você acha que ele gira?" Wheeler disse: "Ontem, Feynman convenceu-me de que giraria ao càn trário. Hoje, ele convenceu-me, igualmente bem, que gira no outro sentido. Não sei do que ele vai me convencer amanhã!" Vou apresentar-lhe um argumento que fará com que você pense que é em um sentido, e outro argumento que fará com que você pense que é no sentido oposto, OK? Um argumento é que quando você está sugando a água é como se você es tivesse puxando-a com o esguicho; então este se moverá para a frente, em di reção à água que está entrando. Mas então outro sujeito diz: "Suponha que mantenhamos o regador gira tório parado e queiramos saber que tipo de torque precisaremos para man tê-lo assim. No caso em que a água esguicha, todos sabemos que devemos se gurá-lo por fora da curva, por causa da força centrífuga da água passando ao longo da curva. Agora, quando a água segue ao longo da mesma curva, só que em outro sentido, ela ainda exerce a mesma força centrífuga em direção ao lado de fora da curva. Portanto, os dois casos são iguais, e o aspersor girará no mesmo sentido, tanto se você estiver aspergindo como aspirando a água." Depois de pensar um pouco, finalmente me decidi a respeito de qual era a resposta, e, para demonstrá-la, queria fazer uma experiência. No laboratório do ciclotron em Princeton, eles tinham um garrafão de água revestido de vime monstruosamente grande. Pensei que ele seria perfei to para a experiência. Peguei um pedaço de cano de cobre e dobrei-o em for ma de S . No meio do cano, fiz um buraco, e enfiei nele a ponta de um pedaço de mangueira de borracha, puxei (a outra ponta) através de um buraco que eu havia feito na rolha de cortiça e que tinha atarraxado na boca do garrafão. A rolha de cortiça tinha outro buraco, através do qual fiz passar outro pedaço de mangueira de borracha e ligando-o ao compressor de ar do laboratório. Ao forçar a passagem de ar para dentro do garrafão, a água teria que entrar no cano de cobre, exatamente como se eu estivesse sugando o ar de dentro dele. Agora, o cano em forma de S não poderia girar, mas poderia rodopiar para lá
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e para cá (por causa da mangueira de borracha flexível) , e eu poderia medir a velocidade do fluxo da água medindo o quão longe ela esguicharia a partir do garrafão. Ajeitei tudo, liguei o compressor de ar, e "Pop!". A pressão do ar empur rou a rolha de cortiça, fazendo-a saltar da boca do garrafão. Então amarrei-a bem, com arame, e ela não saltou mais. Agora a experiência estava se desenro lando muito bem. A água estava esguichando e a mangueira contorcendo-se. Aumentei um pouco mais a pressão, porque com uma velocidade maior as medidas seriam mais precisas. Medi cuidadosamente o ângulo, medi a distân cia' aumentei a pressão novamente, e, de repente, a coisa explodiu, fazendo voar vidro e água pelo laboratório todo, em todas as direções. Um sujeito que tinha vindo assistir à experiência ficou todo molhado e teve de voltar para casa para trocar de roupa (foi um milagre ele não ter se cortado com os cacos de vi dro) , e um monte de fotos de câmaras de névoa que haviam sido paciente mente tiradas, usando o ciclotron, ficaram todas molhadas. No entanto, por algum motivo, eu estava distante o suficiente ou em uma posição tal que não fiquei muito molhado. Mas sempre vou lembrar-m� como o grande professor Del Sasso, que era responsável pelo ciclotron, veio para cima de mim e falou duramente: "As experiências dos calouros devem ser feitas no laboratório de calouros!"
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Uma variedade de pessoas vinha às quartas-feiras para ministrar palestras na Escola de Pós-graduação de Prlnceton. Os palestrantes geralmente eram interessantes, e costumávamos divertir-nos muito nas discussões depois das palestras. Por exemplo, um sujeito na nossa escola era extremamente anticatólico; então, ele escrevia ques tões com antecedência para que as pessoas as formulassem a um palestrante religio so a quem fIzemos passar um mau pedaço. Outra vez, alguém apresentou um seminário sobre poesia. Falou a respei to da estrutura do poema e das emoções que ele comportava; ele dividiu tudo em alguns tipos de classes. Na discussão posterior, disse: "Não é a mesma coisa na matemática, Dr. Eisenhart? " O Dr. Eisenhart era o decano da faculdade e um grande professor d e ma temática, e também muito astuto. Ele disse: "Eu gostaria de saber o que Dick Feynman pensa a respeito disso em relação à física teórica." Ele sempre me colocava nesse tipo de situação. Levantei-me e disse: "Sim, está muito relacionado. Na física teórica, o análogo da palavra é a fórmula matemática, o análogo da estrutura do poema é a relação entre o bling-bling teórico e a tal coisa" - e prossegui com essa coi sa toda, tecendo uma analogia perfeita. Os olhos do palestrante brilhavam de felicidade. Então falei: "A mim parece que não importa o que você diga a respeito da poesia, eu poderia encontrar uma forma de criar uma analogia com qualquer assunto, assim como o fiz com a física teórica. Não considero tais analogias significativas. " Na grande sala de jantar com vitrais onde sempre comíamos usando nossas becas cada vez mais deterioradas, o decano Eisenhart iniciava cada jantar dando graças em latim. Após o jantar, ele normalmente levantava-se e dava alguns avisos. Uma noite, o Dr. Eisenhart levantou-se e disse: "Da qui a duas semanas um professor de psicologia virá ministrar uma palestra
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sobre hipnose. Esse professor acha que seria muito melhor se tivéssemos uma demonstração real, em vez de simplesmente falarmos sobre hipnose. Portanto, eu gostaria que alguém se apresentasse como voluntário para ser hipnotizado . . . " Fiquei todo excitado. Sem dú�ida tenho de descobrir tudo sobre a hipno se. Será maravilhoso! O decano Eisenhart prosseguiu dizendo que seria bom se três ou quatro pessoas se apresentassem como voluntárias, para que o hipnotizador pudesse primeiro testá-los e verificar quais poderiam ser hipnotizadas. Ele gostaria muito de pedir que nós nos candidatássemos. (Ele está desperdiçando esse tempo todo, pelo amor de Deus!) Eisenhart estava em um lado da sala, e eu no outro lado, lá atrás. Havia centenas de caras lá. Eu sabia que todo mundo ia querer participar, e estava apavorado com a idéia de que ele pudesse não me ver porque eu estava muito lá atrás. Eu tinha de participar dessa demonstração! Finalmente, Eisenhart falou: "E então eu gostaria de perguntar se haverá algum voluntário ... Ergui a minha mão e gritei, da minha cadeira, berrando o mais alto que podia, para ter certeza de que ele me ouviria: "EEEEEEEEEEEU!" Ele me ouviu muito bem, porque não havia mais ninguém candidatan do-se. Minha voz reverberou pela sala - foi muito embaraçoso. A reação ime diata de Eisenhart foi: " É claro, eu sabia que o senhor seria voluntário, Sr. Feynman, mas queria saber se haveria mais alguém. " Por fim, alguns outros rapazes apresentaram-se, e uma semana antes da demonstração o homem veio para praticar conosco, para ver se algum de nós seria bom candidato à hipnose. Eu conhecia o fenômeno, mas não sabia como era ser hipnotizado. Ele começou a trabalhar comigo, e logo cheguei a um ponto em que ele disse: "Você não pode abrir os olhos." Eu disse para mim mesmo: "Aposto que eu poderia abrir os olhos, mas não quero estragar o momento: vejamos até onde isso vai." Era uma situação interessante: você se sente um pouco confuso e, apesar de estar um pouco perdido, tem certeza absoluta de que pode abrir os olhos. Mas é claro que você não está abrindo os olhos. Então, em um certo sentido, você não pode abri-los. Ele fez uma porção de coisas e decidiu que eu era apto o bastante. "
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o SENHOR ESTÁ BRINCANDO, SR. FEYNMAN!
Quando chegou a hora da demonstração real, ele nos levou ao palco e hipnotizou-nos diante de toda a Escola de Pós-graduação de Princeton. Des ta vez, o efeito foi maior; acho que aprendi como ficar hipnotizado. O hipnoti zador fez diversas demonstrações, fazendo-me fazer coisas que normalmente eu não faria, e, ao final, ele disse que depois de eu sair da hipnose, em vez de voltar direto para minha cadeira, que era o caminho natural a seguir, eu deve ria dar uma volta na sala e chegar a meu lugar por trás. Durante a demonstração inteira, eu estava vagamente consciente do que estava acontecendo, e cooperando com as coisas que o hipnotizador dizia, mas, desta vez, decidi: "Diacho, já é o bastante! Vou direto para o meu lugar." Quando chegou a hora de levantar e sair do palco, comecei a ir direto para o meu lugar. Mas, então, uma sensação incômoda tomou conta de mim: sen tia-me tão desconfortável que não podia continuar. Dei a volta toda pela sala. Mais tarde, em outra ocasião, fui hipnotizado por uma mulher. Enquanto estava hipnotizado, ela disse-me: "Vou acender um fósforo, apagá-lo e, logo depois, encostá-lo nas costas da sua mão. Você não sentirá dor." Pensei: "Besteira!" Ela pegou um fósforo, acendeu-o, soprou-o e encos tou-o nas costas da minha mão. Senti-as um pouco quente. Meus olhos per maneceram fechados o tempo todo, mas eu estava pensando: "Isso é fácil. Ela acende um fósforo, mas encosta outro na minha mão. Não tem nada demais; é uma farsa!" Quando saí da hipnose e olhei as costas da minha mão, tive a maior sur presa: havia uma queimadura nelas. Logo apareceu bolha, mas nunca chegou a doer, mesmo quando arrebentou. Achei a hipnose uma experiência muito interessante. O tempo todo você fica dizendo para si mesmo: "Eu poderia fazer isso, mas não vou" - que é tão-somente outra forma de dizer que você não está podendo.
U m mapa d o gato?
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Na sala de refeições da pós-graduação de Princeton, todos costumavam sen tar-se com seus próprios grupos. Eu sentava com os físicos, mas depois pen sei: seria interessante ver o que o resto do mundo está fazendo; então vou sen tar-me com cada um dos outros grupos por uma semana ou duas. Quando sentei-me com os filósofos, ouvi-os discutir muito seriamente a respeito de um livro chamado Processo e realidade, de Whitehead. Eles davam um sentido engraçado às palavras, e eu quase não podia entender o que esta vam dizendo. Ora, eu não queria interrompê-los no meio da conversa e ficar pedindo que me explicassem algo. Além disso, nas poucas ocasiões em que fiz isso, tentaram explicar-me, mas ainda assim não consegui entender. Por fim, me convidaram para ir a uma reunião. Eles tinham uma reunião que era como se fosse uma aula. Vinham encon trando-se uma vez por semana para discutir um capítulo de Processo e reali dade alguém fazia um relatório sobre o capítulo e depois havia uma discus são. Fui a essa reunião prometendo a mim mesmo ficar calado, dizendo a mim mesmo que não sabia nada sobre o assunto e que ia lá só para assistir. O que aconteceu lá foi típico - tão típico que era inacreditável, mas verda deiro. Em primeiro lugar, sentei-me sem dizer nada, o que é quase inacreditá vel, mas também verdadeiro. Um estudante falou sobre Q capítulo a ser estu dado naquela semana. Nesse capítulo, Whitehead usava sempre as palavras "objeto essencial" de uma maneira técnica particular que, presumivelmente, ele já definira, mas que eu não entendia. Depois de um pouco de discussão sobre o significado de "objeto essen cial", o professor que conduzia a reunião disse algo para esclarecer as coisas e desenhou no quadro algo parecido com relâmpagos. "Sr. Feynman", disse ele, "o senhor diria que um elétron é um 'obj�to essencial' ?" Bem, agora eu estava enrascado. Admiti que não lera o livro; portanto, não tinha a menor idéia sobre o que Whitehead queria dizer com a frase; eu ti-
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nha vindo apenas para assistir. "Mas", respondi, "tentarei responder à per gunta do professor se vocês primeiro responderem a uma pergunta minha para que eu possa ter uma idéia melhor sobre o que significa objeto essencial. Um tijolo é um objeto essencial? " O que eu pretendia fazer era descobrir se eles achavam que construções teóricas eram objetos essenciais. O elétron é uma teoria que utilizamos; ele é tão útil para entender como a natureza funciona que quase podemos conside rá-lo real. Eu queria tornar clara a idéia do que é uma teoria por analogia. No caso do tijolo, minha próxima pergunta seria: "E o interior do tijolo?" - então eu poderia salientar que ninguém jamais vira o interior de um tijolo. Toda vez que você quebra um tijolo, vê apenas uma superfície. Que o tijolo tenha um interior é uma teoria simples que nos ajuda a entender melhor as coisas. A teo ria qos elétrons é análoga. Assim, comecei perguntando: "Um tijolo é um ele mento essencial?" Aí as respostas choveram. Um homem levantou-se e disse: "Um tijolo é um tijolo particular, específico. Isso é o que Whitehead quer dizer com objeto essencial." Outro homem falou: "Não, não é o tijolo particular que é um objeto es sencial; é a característica geral que todos os tijolos têm em comum - a sua 'ti jolicidade ' - é que é o objeto essencial." Outro cara levantou-se, e outro, e eu digo a vocês que nunca havia ouvido tantas formas diferentes e engenhosas de ver um tijolo. E, como acontece em todas as histórias sobre filósofos, tudo terminou em um caos completo. Em todas as discussões anteriores que tiveram, eles sequer se perguntaram se um objeto tão simples como um tijolo, muito menos um elétron, era um "objeto essencial" . Depois disso passei pela mesa da biologia na hora do jantar. Sempre tive algum interesse em biologia, e os rapazes conversavam sobre coisas muito in teressantes. Alguns deles convidaram-me para um curso que fariam de fisio logia celular. Eu sabia um pouco de biologia, mas esse era um curso de pós-graduação. "Vocês acham que consigo? O professor vai me aceitar?" perguntei. Eles perguntaram ao instrutor, E. Newton Harvey, que havia feito uma série de pesquisas sobre bactérias produtoras de luz. Harvey disse que eu po deria participar desse curso especial, avançado, com uma condição - que eu fizesse todos os trabalhos e relatórios sobre os ensaios, igual a todo mundo.
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Antes da primeira aula, os rapazes que me convidaram a participar do curso queriam mostrar-me algumas coisas no microscópio. Eles tinham algu mas células de plantas, e era possível ver alguns pequenos pontos verdes, cha mados cloroplastos (que produzem açúcar quando a luz incide sobre eles) movendo-se em círculos. Olhei 'Os cloroplastos, depois olhei para o alto: "Como eles circulam? O que os impele? " - perguntei. Ninguém sabia. Ficou claro que naquela época ninguém entendia isso. Então imediatamente descobri uma coisa sobre biologia: era muito fácil encon trar uma pergunta que fosse bastante interessante e que ninguém soubesse a resposta. Em física, você tinha de aprofundar-se um pouco mais antes de des cobrir uma pergunta interessante que as pessoas não soubessem a resposta. Quando o curso começou, Harvey deu a partida desenhando no qua dro-negro uma figura grande, de uma célula, dando nome de todas as coisas que existem dentro dela. Depois falou sobre elas e eu entendi quase tudo que ele disse. Depois do seminário, o sujeito que me convidara disse: "E aí, gostou?" - Foi bom - eu disse. - A única parte que não entendi foi sobre a lecitina. O que é lecitina? O cara começa a explicar, com uma voz monótona: "Todos os seres vivos, tanto vegetais como animais, são feitos de pequenos objetos semelhantes a ti jolos, chamados 'células ' ... " - Escute - falei, impaciente sei tudo isso; de outra forma não estaria no curso. O que é lecitina ? - Não sei. Eu tinha de fazer relatórios como todos os outros e o primeiro foi a res peito do efeito da pressão sobre as células. Harvey escolhera esse tópico para mim porque tinha alguma coisa a ver com física. Embora eu soubesse o que estava fazendo, quando li meu trabalho pronunciei tudo errado, e a turma fi cava sempre rindo histericamente quando eu falava sobre "blastosferas" em vez de "blastômeros", ou coisas deste tipo. O outro artigo a mim designado era de Adrian e Bronk, que demonstra ram que os impulsos nervosos eram fenômenos bem nítidos no tempo, de um único pulso. Eles tinham feito experiências com gatos e haviam medido a vol tagem nos nervos. Comecei a ler o artigo que falava o tempo todo em extensores e flexores, músculo gastrocnêmico, e assim por diante. Estes e aqueles músculos eram -
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citados, mas eu não tinha a menor idéia sobre suas localizações em relação aos nervos ou em relação ao gato. Então fui à bibliotecária da seção de biolo gia e perguntei-lhe se poderia conseguir um mapa do gato. "Um mapa do gato, senhor?" - ela perguntou, horrorizada. "O senhor quer dizer um quadro zoológico!" Desde então, passou a haver rumores a res peito de um estudante pateta, pós-graduando de biologia, que estava procu rando por um "mapa do gato". Quando chegou a hora de eu falar sobre o assunto, comecei desenhando um esboço do gato e escrevendo o nome dos diversos músculos. Os outros estudantes da turma interromperam-me: "Nós sabemos tudo isso!" "Ah", digo eu: "Vocês sabem ? Então não me admiro que possa alcan çá-los tão rápido mesmo que estejam quatro anos de biologia à minha frente." Eles' haviam gasto o tempo todo memorizando coisas desse tipo, coisas que poderiam ser estudadas em apenas quinze minutos. Depois da guerra, a cada verão eu viajava de carro para algum lugar dos Estados Unidos. Um ano depois que já estava no Caltech, * pensei: "Neste ve rão, em vez de ir a um lugar diferente, vou para uma área diferente." Foi logo depois da descoberta de Watson e Crick** sobre a espiral do DNA. Havia alguns biólogos muito bons no Caltech porque Delbrück*** ti nha seu laboratório lá, e Watson veio para ministrar algumas palestras sobre os sistemas de codificação do DNA. Fui a essas palestras e seminários no De partamento de Biologia e fiquei muito entusiasmado. Era uma época muito excitante na biologia, e o Caltech era um ótimo lugar para se estar. Eu não me sentia capacitado a fazer pesquisa profissional em biologia; então imaginei que na minha visita de verão à área da biologia eu ficaria ape nas passeando pelo laboratório de biologia e "lavando os pratos", enquanto observava o que eles faziam. Fui ao laboratório de biologia falar sobre minha disposição e Bob Edgar, um jovem pós-doc**** que era o responsável, falou
*Nota do Tradutor: Caltech ou California Institute of Technolgy. **Nota do Tradutor: James Watson e Francis Crick, descobridores da estrutura espiralada da molécula de ONA, receberam o prêmio Nobel de Medicina de 1 962. ***Nota do Tradutor: Max Oelbrück ( 1 906- 1 98 1 ) , físico alemão naturalizado americano que se tornou um dos pioneiros da biologia molecular. ****Nota do Tradutor: No jargão científico, pós-doutorando.
RICHARD PHllllPS FEYNMAN
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que não me deixaria fazer isso. Ele disse: "Você terá que fazer alguma pesqui sa de verdade, da mesma forma que um estudante de pós-graduação, e nós te daremos um problema para trabalhar." Para mim estava ótimo. Fiz Un1'curso de bacteriofagia que nos ensinava a fazer pesquisas com bacteriófagos (o bacteriófago é um vírus que contém DNA e ataca a bactéria) . Imediatamente descobri que por saber física e matemática eu me poupava de uma série de problemas. Sabia como os átomos se comportavam nos líquidos, então não havia mistério algum sobre como a centrifugadora funcionava. Sa bia estatística o bastante para entender os erros estatísticos na contagem de pequenos pontos sobre uma lâmina. Assim, enquanto todos os biólogos ten tavam entender essas coisas "novas", eu podia usar o meu tempo aprendendo a parte de biologia. Houve uma técnica de laboratório útil que aprendi nesse curso, e que uso até hoje. Eles nos ensinaram como segurar um tubo de ensaio e tirar a sua tampa com uma mão (usa-se o dedo médio e o indicador) , deixando a outra mão livre para fazer uma outra coisa qualquer (por exemplo, segurar uma pi peta que você está usando para aspirar cianureto) . Agora posso segurar mi nha escova de dentes com uma mão e, com a ol,ltra mão, o tubo de pasta, abrir a tampa e colocá-la de volta. Tinha sido descoberto que os bacteriófagos podiam sofrer mutações que afetavam a sua capacidade de atacar as bactérias, e deveríamos estudar tais mutações. Havia também alguns bacteriófagos que sofriam uma segunda mutação que reconstituía sua capacidade de atacar as b�ctérias. Alguns bac teriófagos que sofreram essa segunda mutação voltaram a ser exatamente como eram antes das mutações. Outros, não: havia uma ligeira modificação na sua ação sobre a bactéria - eles agiam mais ou menos rapidamente que o normal, e as bactérias cresciam menos ou mais rapidamente que o normal. Em outras palavras, havia "mutações de retorno", mas elas nem sempre eram perfeitas; às vezes, o bacteriófago recuperava apenas parte da capacidade que havia perdido. Bob Edgar sugeriu que eu fizesse uma experiência que tentaria descobrir se as mutações de retorno ocorriam no mesmo ponto na espiral de DNA. Com grande cuidado e muito trabalho enfadonho, consegui descobrir três exem plos de mutações de retorno que haviam ocorrido muito próximas umas às outrás - mais próximas do que qualquer coisa até entãó vista - e que haviam recuperado parcialmente a capacidade de ação do bacteriófago. Foi um tra-
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balho demorado. Era meio acidental: era necessário esperar até que fosse re gistrada uma dupla mutação, o que era muito raro. Eu continuava tentando imaginar formas de fazer o bacteriófago apre sentar mutações com maior freqüência e como detectar as mutações mais rapidamente, mas, antes de eu descobrir uma boa técnica, o verão já havia acabado, e eu não sentia muita vontade de continuar a trabalhar naquele problema. Entretanto, meu ano sabático estava chegando, e decidi trabalhar naquele mesmo laboratório de biologia, mas em um assunto diferente. Trabalhei com Matt Meselson por um tempo, e depois com um sujeito simpático da Inglater ra que se chamava J. D. Smith. O problema tinha a ver com os ribossomos, o "maquinário" da célula que transforma em proteína o que agora chamamos RNA mensageiro. Usando substâncias radioativas, demonstramos que o RNA poderia ser retirado dos ribossomos e ser posto de volta. Fiz· um trabalho muito meticuloso de medi�ão e tentativa de manter o controle de tudo, mas levei oito meses para perceber que uma etapa havia sido negligenciada. Naquela época, ao preparar as bactérias para retirar os ribos somos, trituravam-se as bactérias com alumina em um almofariz. Todo o res to era química e estava sob controle, mas nunca seria possível repetir a forma como o pilão foi manipulado, quando se estava triturando as bactérias. Con seqüentemente, nada resultou dessa experiência. A seguir, acho que tenho de falar sobre a vez que tentei, junto com Hilde garde Lamfrom, descobrir se as ervilhas podiam �tilizar os mesmos ribosso mos que as bactérias. A questão era se os ribossomos das bactérias podiam fa bricar as proteínas dos humanos ou de outros organismos. Ela acabara de de senvolver um projeto para retirar os ribossomos das ervilhas e fornecer a eles um RNA mensageiro para que pudessem produzir as proteínas da ervilha. Descobrimos que uma questão muito importante era saber se os ribossomos das bactérias, quando recebessem o RNA mensageiro da ervilha, criariam uma proteína de ervilha ou de bactéria. Essa era uma experiência dramática e fundamental. Hildegarde disse: "Precisarei de muitos ribossomos das bactérias." Meselson e eu tínhamos extraído grandes quantidades de ribossomos da E. coZi para utilizar em uma outra experiência. Respondi: "Vou te dar todos os ribossomos que conseguimos. Temos uma porção deles no meu refrigerador, no laboratório."
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Teria sido uma descoberta fantástica e vital se eu fosse um bom biólogo. Mas eu não era um bom biólogo. Tínhamos uma boa idéia, um bom experi mento, o equipamento certo, mas estraguei tudo: dei a ela ribossomos infec tados - o erro mais grosseiro que se pode cometer em uma experiência como essa. Meus ribossomos estavam .no refrigerador há quase um mês e foram contaminados por algum outro elemento vivo. Se eu tivesse preparado os ri bossomos novamente e sido mais cuidadoso, com tudo sob controle, aquela experiência teria funcionado, e seríamos os primeiros a demonstrar a unifor midade da vida: a máquina que fazia proteínas, os ribossomos, era a mesma em qualquer criatura. Estávamos no lugar certo, fazendo a coisa certa, mas eu estava agindo como um amador - estúpido e descuidado. Você sabe o que isso me lembra? O marido de Madame Bovary no livro de Flaubert, um médico estúpido, do interior, que tinha uma idéia sobre como tratar pés tortos, mas tudo o que fazia era prejudicar as pessoas. Eu era pare cido com aquele cirurgião inexperiente. O outro trabalho sobre bacteriófagos nunca escrevi - Edgar sempre me pedia para escrevê-lo, mas nunca cheguei a fazê-lo. Este é o problema em não estar em seu próprio campo: não se leva as coisas a sério. Na verdade, escrevi algo informal sobre tal trabalho. Mandei-o ao Edgar, que riu quando o leu. Não era a forma padrão que os biólogos usam - primei ro, procedimentos, e assim por diante. Perdi muito tempo explicando coisas que todos os biólogos sabiam. Edgar fez uma versão resumida para mim, mas não consegui entendê-la. Não creio que eles a tenham publicado. Eu nunca a publiquei. Watson achou que as coisas que eu havia feito com os bacteriófagos fossem de algum interesse, e então me convidou a ir até Harvard. Dei um seminário no Departamento de Biologia sobre as mutações duplas que ocorreram tão próxi mas umas das outras e disse-lhes que achava que uma mutação causava uma mudança na proteína, enquanto as outras mutações provocavam a mudança oposta em um aminoácido diferente da mesma proteína, de forma a compensar parcialmente a primeira mutação - não perfeitamente, mas o suficiente para fa zer com que o bacteriófago atuasse novamente. Eu achava que eram duas alte rações na mesma proteína, que quimicamente se compensavam. Ficou provado não ser esse o caso. Alguns anos depois, pessoas que indu bitavelmente desenvolveram uma técnica para produzir e detectar as muta ções mais rapidamente descobriram que o que acontecia era que na primeira
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mutação uma base inteira do DNA desaparecia. Agora o "código" estava alte rado e não podia mais ser "lido". Na segunda mutação, uma base extra era posta de volta, ou mais duas bases eram retiradas. Agora o código podia ser lido novamente. Quanto mais próximo a segunda mutação ocorresse da pri meira, menos a mensagem teria sido alterada pela dupla mutação, e mais completamente o bacteriófago teria recuperado as suas capacidades perdi das. O fato de que há três "letras" para codificar cada aminoácido ficou então demonstrado. Naquela semana que fiquei em Harvard, Watson sugeriu algo, e fizemos uma experiência juntos por alguns dias. Foi uma experiência incompleta, mas aprendi algumas novas técnicas de laboratório com um dos melhores pesqui sadores desta área. Aquele foi meu grande momento: apresentei um seminário no Departa mento de Biologia de Harvard! Sempre faço isso, inicio alguma coisa e vejo até onde posso ir. Aprendi uma porção de coisas em biologia, e ganhei muita experiência. Melhorei minha pronúncia das palavras, aprendi o que não se deve incluir em um artigo ou seminário e aperfeiçoei minha capacidade de detectar uma téc nica fraca em uma experiência. Mas amo a física, e adoro retornar a ela.
M entes m onstru osas
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Enquanto ainda era estudante de pós -graduação em Princeton, trabalhei como assistente de pesquisa sob a orientação de John Wheeler. Ele me pro pôs que eu estudasse um problema bastante difícil; eu não estava chegando a lugar algum. Então, voltei à idéia que tivera anteriormente, no MIT, de que os elétrons não agem sobre si mesmos, eles agem apenas sobre outros elétrons. O problema era o seguinte: quando você chacoalha um elétron, ele irradia energia e, portanto, há uma perda. Isso quer dizer que deve haver uma força que atua sobre ele. E quando o elétron está carregado deve haver uma força atuando sobre ele diferente da força que atua quando ele não está carregado. (Se a força fosse exatamente a mesma, estivesse o elétron carregado ou não, em um caso ele perderia energia e no outro, não. Não se pode ter duas respos tas diferentes para um mesmo problema.) A teoria padrão era que o elétron, agindo sobre si mesmo, gerava essa for ça (chamada força de reação da radiação) , e eu tinha apenas elétrons agindo sobre outros elétrons. Então percebi que estava em dificuldades. (Eu estava no MIT quando tive essa idéia, sem perceber o problema, mas quando fui para Princeton, estava já ciente da dificuldade.) O que pensei foi o seguinte: vou chacoalhar esse elétron. Ele fará algum elétron nas vizinhanças sacudir-se em resposta, e o efeito da reação deste elé tron será a origem da força da reação de radiação. Fiz alguns cálculos e le vei-os a Wheeler. Wheeler disse imediatamente: "Bem, isso não está correto, pois varia proporcionalmente ao inverso do quadrado da distância aos outros elétrons, mas não deveria depender de nenhuma dessas variáveis. Também dependerá, inversamente, da massa do outro elétron e será proporcional à carga do outro elétron."
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o que me incomodava era que eu achava que ele deveria terfeito os cálcu
los. Só mais tarde percebi que um homem como Wheeler podia ver imediata mente a solução quando você lhe apresentava um problema. Eu tinha de cal cular, mas ele conseguia ver. Então Wheeler disse: "E ela será retardada - a onda retoma atrasada -, portanto tudo o que você descreveu é a luz refletida." - Ah! É claro - disse eu. - Mas espere - disse ele. - Suponhamos que o retorno seja descrito por meio de ondas avançadas - reações que voltam no tempo. Deste modo, a onda retoma no tempo certo. Vimos que o efeito varia com o inverso do qua drado da distância, mas suponha que haja uma porção de elétrons, por todo o espaço: o número deles é proporcional ao quadrado da distância. Então, tal vez haja uma compensação. Descobrimos que podíamos fazer isso. Essa solução surgiu naturalmen te, e resolveu o problema muito bem. Era uma teoria clássica que poderia estar correta, mesmo que fosse diferente da teoria padrão de Maxwell, ou da teoria padrão de Lorentz. Não havia nenhum problema com a infinitude da auto-ação, e era engenhosa. Apresentava ações e retardamentos, movimentos avançados no tempo e retrógrados - batizamos esta solução com o nome de "potenciais semi -avançados e semi -retardados" . Wheeler e eu imaginamos que o próximo problema seria considerar a teo ria da eletrodinâmica quântica que apresentava dificuldades (eu achava) com a auto-ação do elétron. Imaginamos que se conseguíssemos livrar-nos pri meiro do problema na física clássica, e a partir daí partir para uma teoria quântica, poderíamos também corrigir a teoria quântica. Agora que tínhamos consertado a teoria clássica, Wheeler disse: "Feyn man, você é um cara novo - você deveria dar um seminário sobre esse assun to. Você precisa de experiência em apresentar seminários. Enquanto isso, tra balharei na parte da teoria quântica e apresentarei um seminário sobre isso depois." Essa seria a minha primeira palestra técnica, e Wheeler arranjou com Eu gene Wigner para incluí-la na programação regular de seminários. ,Um dia ou dois antes da palestra, vi Wigner no corredor. "Feynman", dis se ele, "acho que o trabalho que você está fazendo com Wheeler é muito inte ressante; então convidei Russell para o seminário" . Henry Norris Russell, o famoso, o grande astrônomo da época, viria assistir ao seminário!
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Wigner prosseguiu: "Acho que o professor von Neumann também estaria interessado." Johnny von Neumann* era o maior matemático das redonde zas. "E como o professor Pauli, da Suíça, está nos visitando, convidei-o para assistir" - Pauli** era um físico muito famoso e fui ficando amarelo. Por fim, Wigner disse: " É raro o professor Einstein comparecer aos nossos seminários semanais, mas o seu trabalho é tão interessante que o convidei especialmente e, portanto, ele também virá." Acho que nessa hora devo ter ficado verde, porque Wigner disse: "Não, não se preocupe! Eu só te digo o seguinte: se o professor Russell dormir - e sem dúvida ele vai dormir -, não quer dizer que o seminário esteja ruim; ele dorme em todos os seminários. Por outro lado, se o professor PauH estiver mexendo a cabeça o tempo todo e parecer estar concordando, à medida que o seminário prossegue, não preste atenção. O professor Pauli tem paralisia." Fui até Wheeler e disse-lhe o nome de todas as pessoas importantes, fa mosas, que viriam ao seminário que ele havia arranjado para mim, e disse-lhe que estava sentindo-me pouco à vontade com isso. "Tudo bem", disse ele. "Não se preocupe. Responderei a todas as per guntas." Então preparei o seminário e, quando o dia chegou, fiz algo que os jovens que não têm experiência em ministrar seminários fazem freqüentemente - es, crevi muitas equações no quadro-negro. Veja você, um sujeito jovem não sabe como dizer: "logicamente, isto varia inversamente com . . . , e aquilo de corre de ... ", porque todo mundo que está assistindo já sabe essas coisas; eles podem vê-las. Mas ele não sabe. Ele só pode chegar aos resultados fazendo a álgebra - e, conseqüentemente, aquele monte de equações. Enquanto eu preenchia antecipadamente com equações todo o qua dro-negro, Einstein chegou e disse, simpaticamente: "Olá, vim para o seu se minário. Mas, primeiro, onde está o chá?" Eu mostrei-lhe e continuei escrevendo as equações.
*Nota do Tradutor: John (János) von Neumann ( 1 903 - 1 95 7) , eminente matemático hún garo naturalizado americano, professor titular de Matemática em Princeton de 1 933 a
1 955. Criou o conceito moderno de programação armazenável em um computador. **Nota do Tradutor: Wolfgang Pauli ( 1 900 - 1 958), físico austríaco, prêmio Nobel de Físi ca de 1 945, um dos grandes nomes da física teórica no século XX. Pauli era famoso e temi do pelo mau humor e observações sarcásticas.
M istu rand o ti ntas
motivo pelo qual digo que sou "inculto" ou "antiintelectual" provavelmente remonta à época em que eu estava no ensino médio. Eu estava sempre preocu pado em ser tomado por um maricas; não queria ser demasiadamente delicado. Para mim, nenhum homem de verdade prestava atenção à poesia ou a coisas desse tipo. Como a poesia chegou a tornar-se escrita - isso nunca me comoveu! Desenvolvi uma atitude negativa em relação ao sujeito que estuda literatura francesa, ou que estuda muito música ou poesia - todas aquelas coisas " delica das". Eu admirava mais os metalúrgicos, soldadores ou mecânicos. Sempre achei que o sujeito que trabalhava em uma oficina e podia fazer coisas, esse era um homem de verdade! Essa era minha atitude. Ser um homem prático era sempre para mim uma virtude positiva, e ser "culto" ou ser "intelectual", não. A primeira atitude era correta, é claro, mas a segunda era loucura. Eu ainda conservava essa atitude quando estava fazendo a minha pós-graduação em Princeton, como você perceberá. Freqüentemente ia al moçar em um restaurantezinho agradável, chamado Papa ' s Place. Um dia, enquanto almoçava lá, um pintor, vestido com suas roupas de trabalho, des ceu de um aposento lá de cima, que estava pintando, e sentou-se perto de mim. De algum modo começamos a conversar e ele falou sobre como temos de aprender muito para entrar no ramo da pintura. "Por exemplo", ele per guntou: "Neste restaurante, que cores você usaria para pintar as paredes, se fosse fazer o serviço?" Respondi que não sabia, e ele prosseguiu: "Você tem uma faixa escura até tal e tal altura, porque, veja bem, as pessoas que sentam às mesas esfregam seus cotovelos nas paredes; então não convém querer uma linda parede bran ca ali. Ela se suja com muita facilidade. Mas, acima de tudo, você realmente a quer branca, para dar uma sensação de limpeza ao restaurante." O sujeito parecia saber o que estava fazendo, e eu sentado ali, ouvindo o que ele falava. Eis então que ele acrescenta: "E você também deve saber a res-
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peito das cores, como conseguir diferentes cores quando se misturam as tin tas. Por exemplo, que cores você misturaria para conseguir o amarelo?" Eu não sabia como obter o amarelo misturando as tintas. Se for luz, mis tura -se verde e vermelho, mas eu sabia que ele estava falando de tintas. Então eu respondi: "Não sei como se cOJlsegue o amarelo sem usar o amarelo." - Bem - ele disse. - Se você misturar vermelho e branco, você obtém o amarelo. - Você tem certeza que não quer dizer rosa ? - Não - disse ele. - Qualquer pigmento velho servirá. Você vai a uma loja daquelas do tipo "tudo por cinco e dez centavos" e compra as tintas - apenas uma lata comum de tinta vermelha e uma de tinta branca - e eu as misturarei e mostrarei como obter o amarelo. A essa altura, eu estava pensando: "Tem alguma coisa maluca aqui. Eu sei o bastante sobre tintas para perceber que não se obterá o amarelo, mas ele deve saber que se obtém amarelo, e, portanto, alguma coisa interessante deve acontecer. Tenho de ver o que é!" Então, falei: "OK. Vou comprar as tintas." O pintor voltou lá para cima, para terminar seu trabalho, e o dono do res taurante veio até mim: "O que você tem na cabeça para discutir com aquele homem? O homem é um pintor, foi pintor a vida toda, e ele diz que obtém o amarelo. Então, para que discutir com ele?" Fiquei encabulado. Não sabia o que dizer. Por fim, argumentei: "Estudei a luz minha vida toda. E acho que com vermelho e branco não se pode obter o amarelo - só se pode obter rosa." Então fui até a loja comprar as tintas, e as levei para o restaurante. O pin tor desceu; o dono do restaurante também estava lá. Coloquei as latas de tinta em cima de uma cadeira velha, e o pintor começou a misturar as tintas. Ele verteu um pouco mais de vermelho, um pouco mais de branco - para mim ainda era rosa - e misturou qm pouco mais. Então resmungou alguma coisa do tipo: "Eu costumava ter um pequeno tubo de amarelo por aqui, para mis turar um pouco - então ficará amarelo." -Ah! - eu disse. É claro! Você põe o amarelo e obtém amarelo, mas não poderia obtê-lo sem o amarelo. O pintor voltou lá para cima para pintar. O dono do restaurante falou: "Esse cara é doido de discutir com uma pes soa que estudou a luz a vida toda!" -
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Mas isso mostra o quanto eu acreditava nesses "homens de verdade" : O pintor havia me dito tantas coisas razoáveis que eu me prontificara a dar um crédito que fosse à probabilidade de existir um fenômeno ímpar que eu não conhecia. Eu estava esperando o rosa, mas meus pensamentos eram: "O úni co jeito de obter o amarelo será por meio de algo novo e interessante, e tenho de ver isso." Muitas vezes cometi erros em minha física por pensar que a teoria não era tão boa quanto realmente era, pensando que havia muitas complicações que iriam estragá-la - uma atitude do tipo "qualquer coisa pode acontecer", a despeito de estar muito seguro do que deveria acontecer.
U m a caixa d e ferramentas d iferente
Na escola de pós-graduação de Princeton, o Departamento de Física e o de Matemática tinham um saguão comum, e todos os dias, às quatro horas, tí nhamos chá. Era uma forma de relaxar à tarde, além de imitar uma faculdade inglesa. As pessoas sentavam -se, jogando cartas ou discutindo teoremas. Na queles dias o grande assunto era a topologia. Ainda me lembro de um rapaz sentado no sofá, pensando com afinco, e outro em pé, na frente dele, dizendo: "Então, tal e tal coisa é verdade." "E por quê?" - pergunta o sujeito no sofá. - É trivial! É trivial! - diz o sujeito em pé, e rapidamente apresenta uma série de etapas lógicas: "Primeiro você supõe isso e aquilo, depois temos aqui lo de Kerchoff, e substituímos isso e construímos aquilo. Agora você coloca o vetor girante aqui e então tal e coisa ... " O sujeito sentado no sofá se esforça para entender toda essa coisa, que continua, ininterrupta, durante mais ou menos quinze minutos! Finalmente, o cara, em pé, chega ao final, e o do sofá diz: "Sim, sim. É tri vial." Nós, os físicos, estávamos rindo, tentando entendê-los. Decidimos que "trivial" significa "demonstrado". Então gracejamos com os matemáticos: "Temos um novo teorema: os matemátic0s podem demonstrar somente teo remas triviais, porque todo teorema que é demonstrado é trivial." Os matemáticos não gostaram do teorema, e eu provoquei-os. Dis se-lhes que nunca há surpresas - que os matemáticos só provam coisas que são óbvias . A topologia não era em absoluto óbvia para os matemáticos. Havia todo tipo de possibilidades estranhas que eram "não-intuitivas" . Então, tive uma idéia. Desafiei-os: "Aposto que não há um único teorema que vocês me apre sentem - com as hipóteses e o teorema em termos que eu possa entender que eu não possa responder imediatamente se ele é falso ou verdadeiro."
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Geralmente, era assim - eles explicavam para mim: "Você tem uma laran ja' certo? Agora corte a laranja em um número finito de fatias, junte tudo de novo, e ela será tão grande como o Sol. Verdadeiro ou falso?" - Sem buracos? - Sem buracos. - Impossível! Não existe coisa assim. -Ah! Te pegamos! Cheguem todos aqui! É o teorema tal e tal sobre a medida imensurável!* Exatamente quando eles achavam que tinham me pegado, eu fiz com que lembrassem: "Mas você disse uma laranja! Você não pode cortar a casca da la ranja mais fina do que os átomos." - Mas temos a condição de continuidade: podemos continuar cortando. - Não, vocês disseram uma laranja, e eu presumi que vocês queriam dizer uma laranja de verdade. Assim, eu sempre vencia. Se eu desse um palpite certo, tudo bem, mas se desse um palpite errado, havia sempre algo na simplificação que eu podia en contrar e que eles haviam deixado de lado. Na verdade, havia uma certa qualidade genuína em meus palpites. Eu ti nha um esquema, que uso ainda hoje quando alguém está explicando algo e estou tentando entender: fico imaginando exemplos. Por exemplo, os mate máticos chegavam excitadíssimos com um teorema sensacional. Enquanto me diziam as condições do teorema, eu construía algo que satisfizesse todas essas condições. Você sabe, você tem um conjunto (uma bola) - disjunto (duas bolas). Então as bolas ficam coloridas, nascem cabelos nelas, ou o que quer que seja, ou na minha cabeça, à medida que eles impõem mais condi ções. Finalmente, eles enunciam o teorema, que é alguma coisa estúpida a respeito da bola e que não é verdadeira para a minha bola verde e cabeluda, e digo: "Falso!" Se digo que é verdadeiro, eles ficam muito excitados, e deixo que se divir tam por um tempo. Então mostro meu contra-exemplo.
*Nota do Revisor Técnico: Feynman se refere ao paradoxo de Banach-Tarski, segundo o qual é possível cortar uma esfera em um número finito de partes (originalmente 6, mas posteriormente o resultado foi refinado para 5) e, a partir delas, reconstruir uma esfera com o dobro do tamanho. Para mais informações, veja: http://mathworld.wolfram.com/
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- Ah! Esquecemos de dizer-lhe que é um homomorfismo de Hausdorff classe 2. - Bem - então, digo: - É trivial! É trivial! - Nessa altura já sei como a coisa funciona, mesmo que eu não saiba à que quer dizer homomorfismo de Haus, dorff. Adivinhei na maioria das vezes, porque, apesar de os matemáticos pensa rem que os seus teoremas topológicos eram contra-intuitivos, na verdade eles não eram tão difíceis quanto pareciam. Você pode acostumar-se com as pro priedades engraçadas desse negócio de cortes ultrafinos e fazer um bom tra balho de adivinhação sobre qual será o resultado. Apesar de eu ter dado muito trabalho aos matemáticos, eles sempre foram muito gentis comigo. Formavam uma turma feliz de garotos que estavam de senvolvendo coisas, e ficavam terrivelmente excitados com isso. Discutiam seus teoremas "triviais" e sempre tentavam explicar-lhe algo se você fizesse uma simples pergunta. Paul Olum e eu dividíamos um banheiro. Ficamos bons amigos, e ele ten tou ensinar-me matemática. Ele me levou até os grupos de homotopia, e na quele ponto desisti. Mas as coisas mais elementares do que isso eu entendia muito bem. Uma coisa que nunca aprendi realmente foi a integração de contorno. Eu havia aprendido a fazer integrais por diversos métodos apresentados em um livro que meu professor de física no ensino médio, Sr. Bader, havia me dado. Um dia, ele ll!e disse para ficar depois da aula. "Feynman", disse, "você fala muito e faz muito barulho. Sei o porquê. Você está entediado. Então, vou lhe dar um livro. Vá lá para os fundos, para o canto, estude esse livro, e quan do souber tudo que há nele você pode falar de novo." Assim, nas aulas de física, eu não prestava atenção no que estava aconte cendo com a Lei de Pascal, ou o que quer que eles estivessem fazendo. Eu es tava lá atrás com o tal livro, Cálculo avançado, de Woods. Bader sabia que eu tinha estudado um pouco no Cálculo para o homem prático; então, eu ia estu dar a coisa para valer - era um curso júnior ou sênior na faculdade, e continha séries Fourier, funções Bessel, determinantes, funções elípticas - todo tipo de coisas maravilhosas sobre as quais eu não sabia nada. O livro também mostrava como diferenciar em relação a parâmetros sob o sinal da integral - é uma determinada operação. Acontece que isso não é muito ensinado nas universidades; eles não enfatizam esse ponto. Mas enten-
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di como usar aquele método, e utilizei várias vezes essa ferramenta espetacu lar. Como ao usar aquele livro aprendi por mim mesmo, eu tinha métodos particulares de fazer integrais. O resultado foi que, quando os rapazes no MIT ou em Princeton tinham dificuldades em resolver alguma integral, era porque eles não podiam resol vê-la com os métodos-padrão que haviam aprendido na escola. Se fosse inte gração de contorno, a teriam calculado; se fosse uma simples expansão em sé rie, a teriam calculado. Então eu aparecia e tentava a diferenciação sob o sinal da integral, e freqüentemente dava certo. Com isso, consegui uma ótima re putação como fazedor de integrais, só porque a minha caixa de ferrament�s era diferente da de todo mundo, e eles haviam tentado utilizar todas as ferra mentas das suas caixas antes de passar-me o problema.
Leitores de mentes
Meu pai sempre se interessou por mágicas e truques e queria saber como fun cionavam. Uma das coisas que ele sabia fazer era a leitura da mente. Quando ele era garoto, crescendo em uma cidadezinha chamada Patchogue, no meio de Long Island, foi amplamente anunciado por meio de cartazes a chegada de um leitor de mentes na quarta-feira. Os cartazes diziam que alguns cidadãos respeitáveis - o prefeito, um juiz, um banqueiro - levariam uma nota de cinco dólares e a esconderiam em algum lugar, e quando o leitor de mentes chegas se à cidade, ele a encontraria. Quando o leitor de mentes chegou, o povo reuniu-se para vê-lo executar o trabalho. Ele toma as mãos do banqueiro e do juiz, que haviam escondido a nota de cinco dólares, e começa a andar pela rua. Ele chega a um cruzamento, dobra a esquina, anda por outra rua, então por outra, até a casa certa. Ele en tra com eles, sempre segurando suas mãos, para dentro da casa, e vai até o se gundo andar, ao aposento certo, vai até uma escrivaninha, larga as mãos de les, abre a gaveta certa, e lá está uma nota de cinco dólares. Um espetáculo! Naquela época era difícil ter boa formação, então o leitor de mentes foi contratado como tutor do meu pai. Bem, meu pai, depois de uma das suas li ções, perguntou ao leitor de mentes como ele fora capaz de encontrar o di nheiro sem ninguém dizer-lhe onde ele estava. O leitor de mentes explicou-lhe que você segura a mão deles, frouxamen te, e enquanto caminha, balança o corpo um pouco. Chega a um cruzamento, onde se pode seguir em frente, ou ir para a direita ou para esquerda. Joga o corpo um pouco para a esquerda e, se não for a direção correta, sente-se uma certa resistência, porque eles não esperam que você siga por aquele caminho. Mas quando se move na direção certa, uma vez que percebam que você será capaz de fazê-lo, cedem mais facilmente, e não há resistência. Portanto, você deve sempre balançar o corpo um pouquinho, experimentando que caminho parece ser o mais fácil.
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Meu pai me contou essa história e me disse que achava ser necessário ter muita prática. Ele mesmo nunca tentou experimentá-la. Mais tarde, quando eu estava fazendo minha pós-graduação em Prince ton, decidi experimentá-la com um sujeito chamado Bill Woodward. De re pente, anunciei que podia ler mentes, e podia ler a dele também. Eu disse-lhe para ir ao "laboratório" - um salão com fileiras de mesas cobertas com diver sos tipos de equipamentos, com circuitos elétricos, ferramentas e sucata por todo canto - e escolher determinado objeto, em algum lugar, e sair. E expli quei-lhe: "Agora vou ler sua mente e levá-lo direto ao objeto." Ele foi ao laboratório, escolheu qual seria o objeto e saiu. Peguei a mão dele e comecei a balançar o corpo. Percorremos uma fileira, e então daquela fileira, direto para o objeto. Tentamos três vezes. Na primeira vez, acertei o objeto ele estava no meio de um monte de coisas. Outra vez, fui ao lugar certo, mas er rei o objeto por poucos centímetros - objeto errado. Na terceira vez, alguma coisa deu errado. Mas funcionou melhor do que eu imaginava. Era muito fácil. Algum tempo depois, eu tinha cerca de 26 anos, meu pai e eu fomos a Atlantic City, onde havia muitas diversões de carnaval acontecendo ao ar li vre. Enquanto meu pai ficava fechando algum negócio, fui ver um leitor de mentes. Ele estava sentado no palco, de costas para o público, vestindo um roupão e usando um grande turbante. Tinha um assistente, um sujeitinho que ficava correndo pelo público, dizendo coisas como: "Oh, Grande Mestre, qual a cor deste livro de bolso? " - Azul! - diz o mestre. - E oh, Ilustríssimo Senhor, qual o nome desta mulher? - Marie! Um indivíduo se levanta: "Qual o meu nome?" - Henry. Levanto e digo: "Qual o meu nome? " Ele não responde. O outro cara, obviamente, estava mancomunado com ele, mas eu não conseguia perceber como o leitor de mentes fazia os outros truques, como por exemplo dizer a cor da capa do livro de bolso. Será que ele usava fones de ouvido sob o turbante? Quando me juntei a meu pai, falei-lhe sobre isso. Ele me disse: "Eles têm um código preparado, mas não sei qual é. Vamos voltar e descobri-lo." Voltamos ao lugar e meu pai me disse: "Aqui tem cinqüenta centavos. Vá ler a sua sorte na barraca ali atrás e te encontro em meia hora."
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Eu sabia o que ele estava fazendo. Ia contar uma história ao homem, e se ria mais fácil se seu filho não estivesse lá dizendo "oh, oh!" o tempo todo. Ele tinha de tirar-me do caminho. Quando voltou, entregou-me o código todo: "Azul" é "Oh, Grande Mes tre", "Verde" é "Oh, Mais Venerá�el", e assim por diante. E ele contou-me: "Fui até ele, logo depois, e disse que costumava fazer um show lá em Patcho gue, e tínhamos um código, mas não dava para fazer tantos números, e a va riedade de cores era mais restrita, e perguntei a ele: 'Como você guarda tanta informação? ' " O leitor de mentes estava tão orgulhoso de seu código que sentou-se e explicou tudo, detaLhe por detaLhe, ao meu pai. Meu pai era vendedor. Podia criar uma situação como aquela. Eu não consigo fazer uma coisa assim.
o cientista amador
Quando era criança, eu tinha um laboratório. Não era um laboratório no sen tido de que eu podia medir ou fazer experiências importantes. Em vez disso, eu brincava: fiz um motor, criei uma engenhoca que disparava quando algu ma coisa passava por uma fotocélula. Brincava com selênio; eu ficava fuçando o tempo todo. Fiz um pouco de cálculos para o banco de lâmpadas, um con junto de interruptores e lâmpadas que eu usava como resistores para contro lar a voltagem. Mas tudo isso eram coisas práticas. Nunca fiz nenhum tipo de experiência de laboratório. Eu também tinha um microscópio e adorava observar coisas com ele. Era necessário paciência: eu colocava alguma coisa sob o microscópio e a obser vava interminavelmente. Via muitas coisas interessantes, como todo mundo vê - diatomáceas vagarosamente abrindo caminho sobre a lâmina, e coisas assim. Um dia, estava observando um paramécio e vi algo que não estava descri to nos livros que havia na escola - e mesmo na universidade. Esses livros sem pre simplificam tudo, e assim o mundo fica mais parecido com o que eles que rem que o mundo seja: quando descrevem o comportamento dos animais, sempre começam com: "O paramécio é extremamente simples; tem um com portamento simples. Ele vai volteando à medida que sua forma de chinelo se move através da água até que se choque contra alguma coisa, quando então recúa, vira formando um ângulo e começa de novo." Na verdade, isto não está correto. Em primeiro lugar, como todo mundo sabe, os paramécios, de tempos em tempos, grudam uns nos outros - eles fi cam grudados e trocam núcleos. Como decidem quando é época de fazer isso? (Não importa; não é uma observação minha.) Eu observava esses paramécios chocarem-se contra alguma coisa, dobra rem -se formando um ângulo e seguirem em frente. A idéia é que isso seja me cânico, como um programa de computador - não parece ser assim. Eles per-
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correm distâncias diferentes, encurvam-se formando ângulos que, em vários casos, são diferentes entre si; nem sempre viram para a direita; são muito irre gulares. Parece aleatório, porque não se sabe contra o quê eles estão chocan do-se: não se sabe tudo sobre a química que estão farejando, ou o quê. Uma das coisas que eu queria ohservar era o que acontece com o para mécio quando a água em que ele está imerso evapora. Dizia-se que o para mécio secaria, formando um tipo de semente endurecida. Eu tinha uma gota de água na lâmina do meu microscópio, e na gota de água havia um paramé cio e um pouco de "grama" - na escala do paramécio parecia uma rede de talos secos. Enquanto, por uns quinze ou vinte minutos, a gota de água eva porava, o paramécio ia ficando em uma situação cada vez mais difícil: ele fa zia movimentos de vai-e-vem com intensidade cada vez maior até que prati camente não pudesse locomover-se. Ficara encalhado entre esses "talos se cos", quase imóvel. Então observei algo que nunca vira ou ouvira falar: o paramécio perdeu a sua forma. Ele podia dobrar-se, como uma ameba. Começou a jogar-se con tra um dos talos e a dividir-se em dois prongs (em duas tiras) até que a divisão atingisse quase metade do paramécio. Foi quando decidi que aquela não era uma boa idéia, e voltei atrás. Assim, minha opinião sobre esses animais é que o comportamento deles é muito simplificado nos livros. O paramécio não é tão mecânico ou unidimensi onal como dizem. Eles deVeriam descrever corretamente o comportamento desses animais simples. Enquanto não percebermos as variedades de compor tamento que até mesmo um animal unicelular apresenta, não seremos capazes de entender completamente o comportamento de animais mais complexos. Eu também gostava de observar insetos. Quando estava com cerca de 1 3 anos, eu tinha um livro sobre insetos. O livro dizia que as libélulas não eram nocivas; elas não picam. Na nossa vizinhança, era bem sabido que as "lavadei ras", como as chamávamos, eram muito perigosas quando picavam. Quando estávamos na rua jogando beisebol, ou fazendo alguma outra coisa, e alguma libélula começava a nos rondar, todo mundo corria procurando abrigo, sacu dindo os braços, gritando: "Uma lavadeira! Uma lavadeira!" Um dia eu estava na praia e tinha acabado de ler o livro que afirmava que as libélulas não picam. Uma lavadeira aproximou-se, todo mundo começou a gritar e correr, eu fiquei ali sentado. "Não se preocupem!", disse. "Lavadeiras não picam!"
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A coisa pousou no meu pé. Todo mundo estava gritando, havia uma gran de confusão, porque a tal da lavadeira estava pousada no meu pé. E ali fiquei eu, esse prodígio científico, dizendo que ela não me picaria. Você deve estar certo de que esta história acaba com ela me picando - mas ela não me picou. O livro estava certo. Mas suei bastante. Eu possuía também um pequeno microscópio portátil. Era um microscó pio de brinquedo; retirei a lente de aumento dele e a carregava como se fosse uma lupa, mesmo sendo um microscópio que aumentava quarenta ou cin qüenta vezes. Com cuidado, podia-se ajustar o foco. Assim, enquanto passea va podia observar coisas na rua. Quando estava na escola de pós-graduação, em Princeton, uma vez tirei a lupa do meu bolso para observar algumas formigas que estavam andando so bre a hera. Não me contive e gritei alto, estava muito excitado. O que vi foi uma formiga e um pulgão, que a formiga toma conta - elas o levam de planta em planta, se a planta em que se encontrarem estiver morrendo. Por sua vez, as formigas recolhem o fluido do pulgão, que é chamado de "orvalho de mel", parcialmente digerido. Isso eu já sabia, meu pai havia me contado, mas eu nunca havia visto. Então, cá estava esse pulgão, e, é claro, uma formiga chegou e apalpou-o com as suas patas - apalpou o pulgão todo, pam, pam, pam, pam, pam. Era muito excitante! Então uma gota de fluido porejou nas costas do pulgão. Com o aumento da lupa, parecia uma bola grande, bela e cintilante, como um ba lão, por causa da tensão superficial. Uma vez que o microscópio não era mui to bom, a gota parecia um pouco colorida por causa da aberração cromática das lentes - era algo divino! A formiga pegou essa bola com suas duas patas dianteiras, tirou-a do pul gão e segurou-a. Nessa escala, o mundo é tão diferente que você pode pegar a água e segurá-la! As formigas, provavelmente, têm um material gorduroso ou oleoso em suas patas que não rompe a tensão superficial da água quando elas a seguram. Então a formiga rompeu a superfície da gota com a boca, e a ten são superficial desapareceu e a gota caiu direto para dentro do estômago da formiga. Era muito interessante ver essa coisa toda acontecer! N o meu quarto em Princeton havia uma janela de sacada com um peito ril em forma de U. Um dia, algumas formigas saíram do peitoril e passearam um pouco. Fiquei curioso em saber como elas descobrem as coisas. Me per guntei: como elas sabem para onde ir? Elas podem contar umas para as ou-
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tras onde está a comida, como as abelhas fazem? Elas têm algum senso de geometria? Isso tudo é amadorismo; todo mundo sabe a resposta, mas eu não sabia. Então, a primeira coisa que fiz foi estender um barbante de um lado a outro do U da janela da sacada e colocar..um pedaço de papelão dobrado com açú car em cima do barbante. A idéia era isolar o açúcar das formigas de forma que elas não pudessem encontrá-lo acidentalmente. Eu queria ter tudo sob controle. A seguir cortei uma porção de tiras de papel e fiz uma dobra nelas para que eu pudesse pegar as formigas e transportá-las de um lugar para outro. Coloquei as tiras de papel dobrado em dois lugares: algumas tiras estavam perto do açúcar (penduradas no barbante) e outras estavam perto das formi gas, em um determinado local. Fiquei sentado ali a tarde toda, lendo e obser vando, até que uma formiga passou sobre o meu transporte de formigas. Então, eu a transportei até o açúcar. Depois de algumas formigas terem sido transportadas até o açúcar, uma delas, acidentalmente, passou por um dos transportadores que estava próximo, e eu a transportei de volta. Eu queria saber quanto tempo levaria até que as formigas entendessem a mensagem para dirigirem-se ao "terminal de passageiros". Começou lenta mente, mas rapidamente aumentou, até eu ficar quase louco transportando as formigas para cá e para lá. Mas, de repente, quando tudo estava indo muito bem, comecei a trans portar as formigas do açúcar até um ponto diferente. A pergunta agora era: a formiga aprende a voltar para o lugar de onde acabou de vir, ou ela vai para onde tinha ido anteriormente? Depois de um tempo, não havia praticamente nenhuma formiga indo até o local inicial (que as levaria até o açúcar) , mas havia muitas formigas no se gundo local, dando voltas, tentando encontrar o açúcar. Então descobri que elas voltavam para o lugar de onde tinham acabado de chegar. Em outra experiência, arrumei uma porção de lâminas de vidro para mi croscópio e pus as formigas para andar sobre elas, de um lado para o outro, em direção a um pouco de açúcar que eu havia posto no peitoril. Então, ao trocar uma lâmina antiga por uma nova, ou ao mudar a disposição das lâmi nas, pude demonstrar que as formigas não tinham o menor senso geométrico: não podiam descobrir onde estava alguma coisa. Se chegassem ao açúcar por um caminho, e houvesse um atalho de volta, elas nunca descobririam o atalho.
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Também ficou bastante claro, ao mudar a disposição das lâminas, que as formigas deixavam algum tipo de trilha. Depois fiz várias experiências fáceis para descobrir quanto tempo levava para uma trilha secar, se ela pudesse ser facilmente limpa, e coisas assim. Também descobri que a trilha não era dire cional. Se eu colocasse uma formiga sobre um papel, e o girasse algumas ve zes e depois colocasse a formiga de volta na trilha, ela não perceberia o que es tava errado até encontrar outra formiga. (Mais tarde, no Brasil, observei algu mas formigas cortadeiras e tentei a mesma experiência com elas. Elas podiam perceber, com poucos passos, se estavam indo em direção à comida ou se afastando dela - presumivelmente, a partir da trilha, que pode ser uma série de cheiros com um padrão: A, B, espaço, A, B, espaço, e assim por diante.) Em um certo ponto, tentei fazer as formigas andarem sobre um círculo, mas não tive paciência o suficiente. Eu não via motivo, a não ser pela minha falta de paciência para testar, para que não pudessem fazê-lo. Uma coisa que tornou minha experiência difícil foi que, ao respirar sobre as formigas, eu as fazia sair correndo. Deve ser algo instintivo que as defende de algum animal que as come ou as perturba. Não sei se era a temperatura, a umidade ou o cheiro de minha respiração que as incomodava, mas eu sempre tinha de segurar a respiração e olhar para o lado para não criar confusão na experiência enquanto transportava as formigas. Uma questão que me intrigava era por que as trilhas das formigas pare cem tão retas e belas. As formigas parecem saber o que estão fazendo, como se tivessem um senso de geometria. Não obstante, as experiências que fiz para tentar demonstrar o senso de geometria delas não funcionaram. Muitos anos depois, quando eu estava no Caltech e morava em uma casi nha na Alameda Street, algumas formigas apareceram perto da banheira. Pensei: "Eis uma grande oportunidade." Coloquei um pouco de açúcar na outra extremidade da banheira e fiquei a tarde toda sentado ali, até que final mente uma formiga descobriu o açúcar. É só uma questão de paciência. Quando a formiga descobriu o açúcar, peguei um lápis de cor que eu ti nha (eu já havia feito experiências que indicavam que as formigas não davam a mínima para marcas de lápis - elas passam por cima das marcas, eu sabia que não ia atrapalhar em nada) e fui desenhando uma linha por onde a formi ga passava, para que eu pudesse determinar a sua trilha. A formiga atrapa lhou-se um pouco para voltar ao buraco, e assim a linha ficou muito torta, di ferente de uma típica trilha de formiga.
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Quando a próxima formiga a descobrir o açúcar começou a voltar, mar quei a sua trilha com outra cor. (Por falar nisso, ela seguiu a trilha de volta da primeira formiga, e não a sua própria trilha. Minha teoria é que quando uma formiga encontra comida, ela deixa uma trilha muito mais forte do que se esti vesse simplesmente passeando por'8Ii.) Essa segunda formiga estava com muita pressa e seguiu, em boa parte, a trilha original. Mas como andava muito rápido, ela seguia em linha reta, como se estivesse bordejando naqueles pontos em que a trilha serpenteava. Geral mente, enquanto a formiga "bordejava", encontrava a trilha novamente. O re torno da segunda formiga já demarcava um caminho um pouco mais retilí neo. Com as próximas formigas, que seguiam a trilha com pressa e sem cuida do, aconteceu uma "melhoria" da trilha. Segui oito ou dez formigas com meu lápis, até que as trilhas formaram uma linha reta nítida na banheira. É como fazer um esboço: primeiro você de senha uma reta não muito boa, depois você desenha algumas vezes por cima dela e depois de um tempo ela vira uma bela reta. Lembro-me que quando era criança meu pai falava sobre o quão maravi lhosas as formigas são, e como elas cooperam entre si. Eu observava cuidado samente três ou quatro formigas carregando um pedaço de chocolate de volta a seu ninho. À primeira vista, parecia uma cooperação muito eficiente, mara vilhosa, brilhante. Mas se você observar cuidadosamente, verá que não é nada disso: elas estão todas agindo como se alguma coisa estivesse retendo o cho colate. Elas puxam para um lado ou para o outro. Uma formiga pode passar por cima do chocolate enquanto ele está sendo puxado pelas outras. Elas se balançam, se agitam, as direções são todas confusas. O chocolate não é leva do até o ninho de uma maneira eficiente. As formigas cortadeiras do Brasil, que são maravilhosas por muitos moti vos, têm uma característica interessante que me surpreende não ter sido eli minada pela evolução. Cortar o arco circular para pegar um pedaço de folha é um trabalho considerável para as formigas. Quando o corte é feito, há uma chance de 50% de que a formiga segure o lado errado, deixando o pedaço re cém-cortado cair ao chão. Metade do tempo a formiga vai puxar e empurrar, puxar e empurrar o lado errado da folha, até que desiste e vai cortar outro pe daço. Não há tentativa alguma de apanhar o pedaço da folha que ela, ou outra formiga, já tenha cortado. É bastante óbvio, se você observar cuidadosamen te, que esse negócio de cortar as folhas e carregá-las não é muito brilhante;
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elas vão a uma folha, cortam um arco e na metade das vezes seguram o lado errado, enquanto o pedaço certo cai. Em Princeton, as formigas descobriram minha despensa, na qual eu guardava geléia, pão e coisas assim, e que era bastante distante da janela. Uma fila enorme de formigas marchava pelo chão da sala de estar. Foi na épo ca em que eu estava fazendo essas experiências com formigas, e pensei comi go mesmo: "O que posso fazer para que elas parem de vir à minha despensa, sem matar nenhuma formiga? Sem veneno; você tem de ser humano com as formigas!" Fiz o seguinte: coloquei um pouco de açúcar a cerca de 1 5 a 20 cm do ponto de entrada delas na sala; elas não sabiam onde estava o açúcar. Então de novo coloquei em prática aquele plano para transportá-las, e sempre que uma formiga que voltava com comida entrava em meu,pequeno transporta dor, eu a levava até o açúcar. Qualquer formiga que viesse em direção à des pensa e que entrasse no transportador e u também a transportava até o açúcar. Finalmente, as formigas descobriram o caminho do açúcar até o seu buraco; então esta nova trilha ficou duplamente reforçada, enquanto a trilha antiga fi cava sendo cada vez menos usada. Eu sabia que depois de mais ou menos meia hora a trilha velha secaria, e em uma hora elas sairiam de minha despen sa. Não lavei o chão; não fiz nada além de transportar as formigas.
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Feynman, a bomba e os militares
Detonadores que não d eton am
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Quando a guerra começou na Europa, mas ainda não havia sido declarada nos Estados Unidos, muitas pessoas queriam se preparar para participar, comportando-se como patriotas. Os jornais traziam grandes matérias sobre empresários apresentando-se como voluntários para partir para Plattsburg, Nova York, fazer treinamento militar, e coisas assim. Comecei a pensar que também deveria dar alguma forma de contribui ção. Depois de ter concluído o MIT, um amigo meu da fraternidade, Maurice Meyer, que servia no Corpo de Sinalizadores do Exército, levou-me para co nhecer um coronel no escritório do Corpo de Sinalizadores em Nova York. - Eu gostaria de ajudar meu país, senhor, e já que tenho uma mente volta da para a técnica, pode ser que haja algo em que eu possa ser útil. - Bem, seria melhor que você fosse para Plattsburg, para o campo de trei namento de recrutas, e fizesse o treinamento básico. Só então poderíamos utilizá-lo - disse o coronel. - Mas não há algum modo de utilizar meu talento de modo mais direto? - Não; esse é o modo como o exército está organizado. Vá pelas vias normais. Retirei-me e sentei-me no parque para pensar no assunto. Pensei e pen sei: talvez a melhor forma de dar uma contribuição seja fazer do modo deles. Mas, felizmente, pensei um pouco mais e disse: - Para o inferno com isso tudo! Vou esperar mais um pouco. Talvez acon teça algo e eles possam utilizar-me de maneira mais efetiva. Fui para Princeton para fazer meu trabalho de pós-graduação e, na pri mavera, voltei ao Laboratório BeU, em Nova York, para candidatar-me a um trabalho de verão. Eu adorava a viagem até o Laboratório BeU. Bill Shock1ey, o que inventou os transistores, mostrava-me tudo. Lembro-me do escritório de alguém, no qual haviam desenhado marcas em uma janela: a Ponte George Washington estava sendo construída e o pessoal do laboratório estava obser-
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vando O seu progresso. Eles haviam desenhado a curva original quando o cabo principal foi posto pela primeira vez, e podiam medir as pequenas dife renças à medida que a ponte era construída e a curva ia transformando-se em uma parábola. Era o tipo de coisa que eu gostaria de ser capaz de pensar em fazer. Eu admirava aqueles sujeitos, e algum dia esperava poder trabalhar com eles. Alguns sujeitos do laboratório me levaram a um restaurante de frutos do mar para almoçar, estavam todos contentes porque comeriam ostras. Eu mo rava perto do mar e não podia sequer olhar para essas coisas; eu não podia co mer peixe, imagine ostras! Pensei comigo mesmo: "Tenho de ser corajoso. Tenho de comer uma ostra." Comi uma ostra, era simplesmente horrível. Mas disse a mim mesmo: "Isso não prova realmente que você seja um homem. Você não sabia o quão horrível seria. É muito fácil quando você não tem certeza." Os outros estavam falando sobre como as ostras estavam boas, eu comi outra ostra e essa foi realmente muito mais difícil do que a primeira. Dessa vez, deve ter sido a quarta ou quinta vez que eu fui ao Laboratório BeU, eles me aceitaram. Fiquei muito feliz. Naqueles dias era difícil conseguir um trabalho no qual você pudesse confraternizar com outros cientistas. Mas então aconteceu um grande reboliço em Princeton. O General Tri chel, do exército, veio e disse-nos: "Temos de ter físicos! Os físicos são muito importantes para nós no exército! Precisamos de três físicos!" Você deve compreender que, naquela época, as pessoas pouco sabiam o que era um físico. Einstein era conhecido como matemático, por exemplo era raro que alguém precisasse de um físico. Pensei: "Essa é a oportunidade de dar minha contribuição", e me apresentei como voluntário para trabalhar para o exército. Perguntei no Laboratório BeU se me deixariam trabalhar para o exército naquele verão, e eles me disseram que também tinham tarefas bélicas, se era isso o que eu queria. Mas fui tomado por uma febre patriótica e perdi uma boa oportunidade. Teria sido muito mais sábio trabalhar para o Laboratório BeU. Mas em tempos como aqueles ficamos um pouco estúpidos. Fui para o Arsenal Frankfort, na Filadélfia, e trabalhei com um dinossau ro: um computador mecânico que controlava o fogo da artilharia. Quando os aviões passavam no alto, os artilheiros observavam-nos com um telescópio, e esse computador mecânico, com engrenagens, hastes e coisas do tipo, tenta-
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va prever onde o avião estaria mais adiante. Era uma máquina muito bem pro jetada e construída, e uma das idéias importantes nela eram as engrenagens não-circulares - engrenagens que não eram circulares, mas que apesar disto engatavam umas nas outras. Devido ao raio variável das engrenagens, um eixo podia girar em função do outK>. No entanto, essa máquina estava no fim de linha. Pouco tempo depois surgiram os computadores eletrônicos. Depois de discursar sobre o quão importante os físicos eram para o exér cito, a primeira coisa que eles me pediram para fazer foi conferir o desenho das engrenagens para ver se o número delas estava correto. Isso durou um certo tempo. Então, gradativamente, o responsável pelo departamento come çou a perceber que eu poderia ser útil em outras coisas, e à medida que o ve rão avançava ele passava mais tempo discutindo as coisas comigo. Um engenheiro mecânico de Frankfort estava sempre tentando projetar coisas e nunca conseguia que tudo desse certo. Certa vez, ele desenhou uma caixa cheia de engrenagens, uma das quais era uma grande roda de engrena gem, com 20 cm de diâmetro, e que possuía seis raios. Ele disse, excitado: "Bem, chefe, o que o senhor acha? " - Bom! - responde o chefe. - Tudo o que você deve fazer agora é especifi car uma passagem para os eixos em cada um dos raios para que a roda de en grenagem possa girar! O cara tinha elaborado um eixo que passava bem en tre raios! O chefe continuou a nos dizer que existia algo como um passador de eixo (achei que ele devia estar brincando) . Fora inventado pelos alemães, durante a guerra, para evitar que os navios caça-minas britânicos recolhes sem os cabos que mantinham as minas alemãs flutuando debaixo da superfí cie da água a uma determinada profundidade. Com esses passadores de eixo, os cabos alemães permitiam que os cabos britânicos passassem por eles como por uma porta giratória. Então era possível colocar passadores de eixos em todos os raios, mas o chefe não queria que os mecânicos tivessem de ter todo esse trabalho; em vez disso, o cara teria que refazer o esboço e colocar o eixo em outro lugar. De vez em quando, o exército enviava um tenente para ver como as coisas estavam indo. Nosso chefe disse-nos que, visto que éramos um setor civil, o tenente era hierarquicamente superior a todos nós. "Não digam nada ao te nente", recomendou ele. "Quando ele começar a achar que sabe o que esta mos fazendo, ele nos dará todo tipo de ordens e gritará por qualquer coisa." -
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Naquela época eu estava fazendo alguns projetos, mas, quando o tenente chegou, fingi que não sabia o que estava fazendo, que estava apenas seguindo ordens. - O que o senhor está fazendo, Sr. Feynman? - Bem, eu desenho uma seqüência de linhas formando ângulos cada vez maiores, e depois devo medir, a partir do centro, diferentes distâncias usando essa tabela, e planejar ... - Bem, o que é isso? - Eu acho que é uma haste. - Na verdade, eu tinha desenhado a coisa, mas agi como se alguém tivesse me dito exatamente o que fazer. O tenente não conseguiu obter informação alguma de ninguém, e conti nuamos felizes, trabalhando com o computador mecânico, sem qualquer in terferência. Um dia, o tenente chegou e nos fez uma pergunta simples: "Suponham que o observador não esteja no mesmo local que o artilheiro - como vocês li dam com isso?" Ficamos chocados. Tínhamos planejado tudo, usando coordenadas pola res, ângulos e a distância radial. Com as coordenadas X e Y é fácil fazer a cor reção para levar em conta um observador que esteja deslocado. É tão somente um caso de adição ou subtração. Mas com coordenadas polares dá uma confusão terrível! Aconteceu que esse tenente, que estávamos evitando que nos dissesse qualquer coisa, nos falou algo muito importante que havíamos esquecido no projeto desse dispositivo: a possibilidade de que o canhão e o posto de obser vação não estivessem no mesmo lugar! S eria uma grande confusão dar um jeito nisso! Perto do fim do verão, recebi minha primeira encomenda para um projeto de verdade: uma máquina que construísse uma curva contínua a partir de um conjunto de pontos - os pontos que chegavam a cada quinze segundos - for necidos por uma nova invenção desenvolvida na Inglaterra para rastrear aviões, chamada "radar". Era a primeira vez que eu fazia um projeto em me cânica, por isso estava com um pouco de medo. Abordei um dos sujeitos e disse: "Você é engenheiro mecânico; eu não sei fazer engenharia mecânica, e acabei de receber esse trabalho . . . " - Não tem nada de mais - disse ele. - Veja, vou te mostrar. Há duas re Q"ras que você precisa saber para projetar essas máquinas. Primeiro, o atrito
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em cada mancaI é tal, e em cada junção da engrenagem é tanto. Daí você pode calcular a força que vai precisar para acionar a coisa. Em segundo lugar, se você tem uma relação para a engrenagem, digamos 2 para 1 , e estiver imagi nando se deve fazer 1 0 para 5 ou 24 para 1 2 ou 48 para 24, eis como escolher: consulte o Boston Gear Catalogue- (Catálogo de Engrenagens de Boston) e escolha as engrenagens que estão no meio da lista. As que estão no topo da lis ta têm tantos dentes que são difíceis de construir. Se eles pudessem fazer en grenagens com dentes ainda mais finos, teriam de aumentar mais ainda a lis ta. As engrenagens bem no final da lista têm muito poucos dentes e quebram facilmente. O melhor projeto utiliza as engrenagens do meio da lista. Achei muito divertido projetar aquela máquina. Selecionando somente as engrenagens no meio da lista e adicionando os pequenos torques com os dois números que ele me deu, tornei-me um engenheiro mecânico! Depois daquele verão, o exército não queria que eu retornasse a Prince ton para trabalhar no meu doutorado. Eles continuaram me atormentando com essa coisa de patriotismo e me ofereceram um projeto completo para su pervisionar, desde que eu ficasse. O problema era projetar uma máquina parecida com a outra - que eles chamavam de diretora -, mas dessa vez achei que o problema era mais fácil, porque o artilheiro estaria logo ali atrás, em um outro avião voando na mesma altitude. O artilheiro enviaria para a minha máquina os dados relativos à sua altura e uma estimativa da distância ao outro avião. Minha máquina, automa ticamente, daria a elevação da arma fornecendo o ângulo correto e armaria o detonador. Como diretor do projeto, eu faria viagens a Aberdeen para apanhar as ta belas de tiro. Eles, porém, já tinham alguns dados preliminares. Percebi que não havia dados relativos às altitudes maiores nas quais esses aviões estariam voando. Então telefonei para saber por que não havia dado algum e descobri que os detonadores que usaríamos não vinham com cronômetros, mas sim com pavios, que não funcionam a tais altitudes - eles falhavam no ar rarefeito. Pensei que teria apenas de fazer correções para a resistência do ar em dife rentes altitudes. No entanto, meu trabalho seria inventar uma máquina que fIZes se a cápsula explodir no momento certo, quando o detonador não queimasse! Decidi que isto era muito difícil para mim e voltei para Princeton.
Testando os sabujos
Quando eu estava em Los Alamos e tinha algum tempo livre, geralmente ia vi sitar minha esposa que estava em um hospital em Albuquerque, a algumas ho ras de distância. Uma vez fui visitá-la e não pude entrar imediatamente, então fui à biblioteca do hospital para ler. Li um artigo na Science sobre os sabujos e sua enorme capacidade de fa rejar. Os autores descreviam as diversas experiências que haviam realizado os cães farejadores podiam identificar quais os objetos que haviam sido toca dos pelas pessoas, e coisas assim - e comecei a pensar: é incrível como os cães sabujos são bons para farejar, conseguindo seguir os rastros das pessoas, e assim por diante, mas na verdade o quão bons somos nós? Quando chegou a hora de visitar minha mulher, fui vê-la e disse-lhe: "Vamos fazer uma experiência. Aquelas garrafas de Coca- Cola (ela tinha uma caixa com seis garrafas vazias de Coca-Cola que estava guardando para jogar fora) - você não as tocou nos últimos dias, certo? " - Certo. Levei a caixa até ela sem tocar nas garrafas e disse-lhe: "OK. Agora vou . sair, e você pega uma dessas garrafas, a segura por mais ou menos dois minu tos e depois a coloca de volta. Então entrarei e tentarei adivinhar qual foi a garrafa que você pegou." Saí e ela pegou uma das garrafas e segurou-a por um certo tempo - muito tempo, porque não sou um sabujo! De acordo com o artigo, eles podiam fare jar, mesmo que você tivesse apenas encostado. Então voltei, e era completamente óbvio! Sequer tive de farejar as gar rafas porque, é claro, a temperatura era diferente. E também era bastante óbvio pelo cheiro. Assim que você aproxima a garrafa do rosto, pode sentir que o cheiro é úmido e mais quente. A experiência não funcionou por ser muito óbvia.
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Então olhei a estante e disse: "Já tem um tempo que você não mexe nesses livros, certo? Dessa vez, quando eu sair, pegue um livro da estante e só o abra - isso é tudo - feche-o de novo e depois coloque-o de volta na estante." Saí de novo, ela pegou um livro, abriu-o e fechou-o, e devolveu-o à estan te. Eu entrei - e nada de mais! Era.,fácil. Basta cheirar os livros. É difícil expli car, porque não estamos acostumados a falar sobre isso. Você aproxima cada livro do nariz, fareja algumas vezes e consegue descobrir. É muito diferente. Um livro que tenha estado ali por um tempo tem um tipo de cheiro seco, de sinteressante. Mas quando foi tocado por uma mão, há uma umidade e um cheiro muito diferentes. Fizemos mais algumas experiências, e descobri que, ao mesmo tempo que os sabujos são realmente bastante capazes, os humanos não são tão inca pazes quanto pensam: é só porque o nariz fica muito longe do chão! (Percebi que meu cão podia rastrear o caminho que eu tinha percorrido depois de entrar em casa, especialmente se eu estivesse descalço, cheirando minhas pegadas. Então tentei fazer isso: engatinhei pelo tapete, farejando, para ver se podia perceber a diferença entre onde andei e onde não andei, e achei impossível. Conseqüentemente, o cão é muito melhor do que eu.) Muitos anos depois, quando estive pela primeira vez no Caltech, houve uma festa na casa do professor Bacher, e lá estava um monte de gente de Cal tech. Não sei como aconteceu, mas eu estava contando a eles a história de cheirar as garrafas e os livros. Naturalmente, não acreditaram em uma só pa lavra, porque sempre acharam que eu era um farsante. Tive de provar. Cuidadosamente, tiramos oito ou nove livros da estante sem tocá-los di retamente com nossas mãos, e depois saí. Três pessoas diferentes tocaram três livros diferentes: eles pegavam um livro, abriam-no, fechavam-no e de volviam-no à estante. Então voltei, cheirei a mão de todo mundo e todos os livros - não me re cordo o que fiz primeiro - descobri os três livros e errei uma das pessoas. Eles ainda não acreditavam em mim; achavam que era um tipo de truque de mágica, e continuaram tentando descobrir como eu havia feito isso. Há um truque famoso desse tipo, no qual você está mancomunado com alguém do grupo e ele dá as indicações sobre o que é o quê, e eles estavam tentando des cobrir qual era a pessoa que estava mancomunada comigo. Desde então, pas sei a imaginar que seria um bom truque de cartas pegar um baralho, pedir a al guém que tirasse uma carta e a pusesse de volta, enquanto você está em outro
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quarto. Você diz: "Agora vou dizer qual foi carta, porque sou um cão fareja dor: vou cheirar todas essas cartas e dizer qual a que você pegou." É claro que com esse tipo de conversa ninguém ia acreditar que é exatamente isso o que você está fazendo! As mãos das pessoas têm cheiros muito diferentes - é por isso que os cães podem identificá-las; você tem de experimentar! Todas as mãos têm uma es pécie de cheiro úmido; uma pessoa que fuma tem um cheiro nas mãos muito diferente de quem não fuma; as senhoras normalmente usam diferentes tipos de perfumes, e assim por diante. Se alguém tiver algumas moedas no bolso e as manipular, você poderá sentir o cheiro.
Los Alamos vista d e baixo para ci ma*
Quando falo "Los Alamos de baixo para cima", quero dizer de baixo para cima mesmo. Apesar de atualmente ser um homem relativamente famoso no meu campo, naquela época eu não era conhecido. Sequer tinha um diploma quando comecei a trabalhar no Projeto Manhattan. Muitas das outras pes soas que falam sobre Los Alamos - pessoas nos escalões superiores - preocu pavam-se com as grandes decisões. Eu não me preocupava com elas. Estava sempre me movimentando pelos subterrâneos. Um dia eu estava em meu quarto em Princeton trabalhando, quando Bob Wilson chegou e disse que havia recebido um financiamento para executar um trabalho secreto, e que não devia revelar a ninguém, mas iria contá-lo a mim porque sabia que assim que eu soubesse o que ele iria fazer eu perceberia que ti nha de acompanhá-lo. Então falou-me sobre o problema da separação dos di ferentes isótopos do urânio para, por fim, fàzer uma bomba. Ele tinha um pro cesso de separação dos isótopos de urânio (diferente do que por fim foi usado) e queria tentar desenvolvê-lo, e me falou sobre isso: "Há uma reunião... " Respondi que não queria participar. Ele disse: "Tudo bem, haverá uma reunião às três horas. Vejo você lá." E acrescentei: "Tudo bem que você tenha me contado o segredo porque não vou contar nada para ninguém, mas não vou participar disso." Voltei então a trabalhar na minha tese - por cerca de três minutos. Come cei a andar de um lado para o outro e a pensar sobre esse negócio. Os alemães
*Adaptado do seminário proferido no Primeiro Ciclo Anual de Palestras de Santa Bárba ra sobre Ciência e Sociedade, na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, em 1 97 5 . "Os subterrâneos de Los Alamos" era um dos nove seminários de uma série pu blicada como Reminiscências de Los Alamos: 1 943-45, editada por L. Badash e outros, pp. 1 05 - 1 3 2. Direitos autorais © 1 980 de D. Reidel Publishing Company, Dordrecht, Holanda.
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' tinham Hitler, e a possibilidade de desenvolver uma bomba atômica era clara, e a possibilidade de que eles pudessem desenvolvê-la antes de nós era muito ameaçadora. Então decidi ir à reunião das três horas. Por volta das quatro horas, eu já tinha uma mesa em uma sala e estava ten tando calcular se esse método particular era limitado pela quantidade total da corrente que você tem em um feixe de íons, e assim por diante. Não vou entrar em detalhes. Mas eu tinha uma mesa, tinha papel e estava trabalhando o máxi mo que podia e na maior rapidez possível para que o pessoal que estava cons truindo o aparato pudesse fazer a experiência lá mesmo. Era como nesses filmes nos quais se vê uma parte do equipamento fa zendo bruuuuuuup, bruuuuuuup, bruuuuuuup. Todas as vezes em que eu parava e olhava para o alto, percebia que a coisa estava ficando cada vez maior. É claro que o que estava acontecendo era que todos tinham decidi do trabalhar nisso e interromper as suas respectivas pesquisas em ciências . Toda a ciência* parou durante a guerra, exceto o pouco que era feito em Los Alamos. E aquilo não valia muito como ciência; era, principalmente, engenharia. Todos os equipamentos pertencentes aos diferentes projetos de pesquisa estavam sendo reunidos para criar o novo equipamento com a finalidade de realizar a experiência - tentar separar os isótopos de urânio. Interrompi meu próprio trabalho pelo mesmo motivo, embora, depois de um certo tempo, eu tivesse tirado umas férias de seis semanas e terminado de escrever minha tese. Terminei meu doutorado um pouco antes de ir para Los Alamos - eu não es tava tão lá embaixo na hierarquia quanto fiz você acreditar. Uma das primeiras experiências interessantes que tive nesse projeto em Princeton foi conhecer grandes homens. Nunca havia encontrado tantos grandes homens antes. Mas havia um comitê de avaliação que devia tentar prestar-nos auxílio e, por fim, ajudar-nos a decidir de que forma separaría mos o urânio. Esse comitê tinha homens como Compton, Tolman, Smyth, Urey, Rabi e Oppenheimer. Participei dele porque conhecia a teoria sobre o funcionamento do nosso processo de separação de isótopos, portanto eles podiam fazer-me perguntas e conversar sobre o assunto. Nessas discussões, alguém apresentava um problema. Então Compton, por exemplo, mostrava um ponto de vista diferente. Ele dizia que deveria ser desta forma, e estava *Nota do Tradutor: Evidentemente, o autor se refere à ciência pura.
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completamente certo. Outra pessoa diria: bem, pode ser, mas há es sa outra possibilidade que temos de levar em consideração. Então todo mundo passava a discordar, todos ao redor da mesa. Surpre endi-me que Compton não tivesse repetido e enfatizado seu ponto de vista. Por fim, Tolman, que é o presidel\te da sessão, diz: "Bem, tendo ouvido todos esses argumentos, acho que a verdade é que o argumento de Compton é o me lhor de todos, e agora temos de seguir em frente." Para mim foi um choque ver que um comitê de homens podia apresentar um monte de idéias, cada um pensando sobre uma nova faceta, enquanto le vava em conta o que outro companheiro dissera, de modo que, no final, resu mindo tudo, a decisão fosse a escolha da melhor idéia sem ter de dizer isso três vezes. Eram realmente grandes homens. Acabou que no final ficou decidido que esse projeto não seria o utilizado por eles para separar o urânio. Disseram-nos, então, que pararíamos porque em Los Alamos, Novo México, eles iriam começar o projeto que realmente construiria a bomba. Devíamos todos ir para lá participar. Teríamos de reali zar tanto experiências como trabalho teórico. Fui destacado para o trabalho teórico. O resto dos meus companheiros foi para o trabalho experimental. A questão era: o que fazer agora? Los Alamos não estava pronto ainda. Bob Wilson tentou usar esse tempo para, entre outras coisas, me enviar a Chi cago para descobrir' tudo que pudéssemos sobre a bomba e os problemas. Assim poderíamos começar a construir em nossos laboratórios equipamen tos, diversos medidores, e coisas assim, que seriam úteis quando chegásse mos a Los Alamos. Dessa forma, não se desperdiçou tempo. Fui mandado a Chicago com instruções de ir a cada grupo e comuni car-lhes que trabalharia com eles e conseguir que me pusessem ao par de um problema, detalhadamente, para que eu pudesse realmente começar a traba lhar nele. A partir desse ponto, deveria ir a outra pessoa e pedir outro proble ma. Dessa forma, entenderia os detalhes de tudo. Era uma idéia muito boa, mas minha consciência me incomodava um pouco porque todos teriam muito trabalho para me explicar as coisas, e eu sairia sem ajudá-los. Mas tive muita sorte. Quando um dos caras me expli cou um problema, eu disse a ele: "Por que você não faz isso por diferencia ção sob o sinal de integral?" Em meia hora, ele resolveu o problema em que eles vinham trabalhando há três meses. Assim, fiz alguma coisa, usando mi nha "caixa de ferramentas diferentes" . Voltei a Chicago e descrevi a �
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ção - a quantidade de energia que seria liberada, como a bomba seria, e as sim por diante. Lembro que um amigo meu que trabalhava comigo, Paul Olum, um mate mático, mais tarde veio a mim e disse: "Quando fizerem um fllme sobre isso, eles mostrarão o cara voltando de Chicago para apresentar o relatório sobre a bomba ao homem de Princeton. Ele estará vestindo um terno e levando uma pasta, e isso e aquilo - e cá está você usando uma roupa suja e informal, conver sando sobre o assunto, a despeito de isto ser uma coisa tão séria e dramática." Parece que houve mais um atraso, e Wilson foi a Los Alamos descobrir o que estava emperrando as coisas. Quando lá chegou, descobriu que a cons trutora estava trabalhando muito e que havia concluído o teatro e alguns ou tros prédios cuja construção entendiam, mas não receberam instruções claras sobre como construir um laboratório - o número de canos para o gás, o nú mero de canos para a água. Então Wilson, simplesmente, ficou por ali e deci diu' aqui e ali, quantos para a água, quantos para o gás e assim por diante, e disse-lhes para começarem a construir os laboratórios. Quando ele voltou, estávamos todos prontos e já nos mostrávamos impa cientes. Foi feita uma reunião e decidimos ir para lá de qualquer forma, mes mo independente de os laboratórios estarem prontos ou não. A propósito, fomos contratados por Oppenheimer e outras pessoas; ele era muito paciente. Prestava atenção aos problemas de todo mundo, preocu pava-se com a minha esposa, que tinha tuberculose, se haveria um hospital por lá, e tudo mais. Era a primeira vez que eu o encontrava de forma tão pes soal; era um homem maravilhoso. Fomos avisados para tomar muito cuidado - não comprar nossa passa gem de trem em Princeton, por exemplo, porque lá era uma estação muito pe quena, e se todo mundo comprasse em Princeton a passagem para Albuquer que, Novo México, haveria suspeitas de que algo estava acontecendo. Então as passagens foram compradas em vários outros lugares, exceto a minha, por que eu achava que se todo mundo comprasse a passagem em outro lugar . . . Quando fui para a estação de trem e disse "Quero ir para Albuquerque, Novo México", o homem respondeu: "Ah, então isso tudo é para você! " Ví nhamos despachando as nossas caixas cheias de medidores, há várias sema nas, e esperávamos que eles não percebessem que o endereço era Albuquer que. Finalmente expliquei por que estávamos despachando todas aquelas cai xas; eu estava indo para Albuquerque.
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Bem, quando chegamos, as casas e os dormitórios, e coisas assim, ainda não estavam prontos. Na verdade, mesmo os laboratórios não estavam total mente prontos. Estávamos pressionando-os para que se apressassem. Eles simplesmente enlouqueceram e alugaram bangalôs por toda a vizinhança. No começo ficamos em um bangalô eo tínhamos de sair de carro pela manhã. Na primeira manhã em que saí de carro foi impressionante. A beleza do cenário, para uma pessoa do Leste, que não viajava muito, era sensacional, com aque les grandes penhascos, que provavelmente você já viu em fotografias. Vi nha-se pela parte de baixo e fica-se muito surpreso ao ver um platô de grande altura. Mas para mim o mais impressionante foi que, enquanto subíamos, co mentei que talvez ali tivessem vivido índios, e o sujeito que estava dirigindo parou o carro, saltou do carro, deu a volta e indicou algumas cavernas indíge nas que podiam ser exploradas. Era muito excitante. Quando cheguei pela primeira vez ao local de trabalho, vi que havia uma área técnica que já deveria ter sido cercada. Supostamente, ali deveria haver uma cidade, e depois uma grande cerca mais ao longe, ao redor da cidade. Mas eles ainda estavam trabalhando e meu amigo Paul Olum, que era meu as sistente, estava parado no portão com uma prancheta, verificando os cami nhões que entravam e saíam, e dizendo aos condutores os diferentes locais onde poderiam descarregar os materiais. Quando fui para o laboratório, deparei-me com homens de quem ouvira falar e de quem lera os artigos na Physical Review. * Nunca os encontrara pes soalmente. "Este é John Williams", diziam. Então um rapaz levantava-se de uma mesa coberta de projetos, com as mangas arregaçadas. O rapaz gritava pela janela, dando ordens aos caminhões, que iam para diferentes direções com material de construção. Em outras palavras, os físicos experimentais não tinham nada a fazer até que seus prédios e maquinários ficassem prontos; en tão construíam os prédios - ou ajudavam a construí-los. Os físicos teóricos, por outro lado, podiam começar a trabalhar imediata mente. Então ficou decidido que eles não deveriam morar nos bangalôs nas fazendas, mas já no próprio local de trabalho. Começamos a trabalhar ime diatamente. Não havia quadro-negro, exceto um de rodinhas que levávamos para todos os lados; Robert Serber explicava-nos tudo o que já haviam pensa do em Berkeley sobre a bomba atômica, e sobre física nuclear, e coisas afins. *Nota do Tradutor: Importante revista científica dedicada à física teórica e experimental.
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Eu não sabia muito sobre o assunto; vinha fazendo outro tipo de coisa. Tive que realizar uma tremenda quantidade de trabalho. Todos os dias eu estudava e lia, estudava e lia. Era uma época muito agita da. Mas tive sorte. Por aquela época, todos os grandes, exceto Hans Bethe,�' estavam viajando, e o que Bethe precisava era de alguém com quem conversar para discutir suas idéias. Bem, ele dirige-se a essa pessoa insignificante no es critório e começa a discutir, explicando a sua idéia. Digo: "Não, não, você está louco. É assim que se faz." Ele diz: "Espere um minuto", e explica por que não está louco, eu é que estou louco. E continuamos desse jeito. Veja você, quando discuto física, só penso na física e ignoro com quem estou falan do; então digo coisas confusas como "não, não, você está enganado", ou "você está louco" . Mas acontece que era exatamente isso o que ele precisava. Marquei pontos com esta atitude e terminei como chefe de grupo, sob super visão de Bethe e com quatro caras sob minha supervisão. Bem, assim que cheguei, como disse, os dormitórios não estavam prontos. Mas os físicos teóricos de qualquer modo tiveram que permanecer por lá. O pri meiro local em que nos hospedaram foi em um antigo prédio de escola - uma es cola para meninos que antes havia ali. Eu morava no que eles chamavam de Alo jamento dos Mecânicos. Estávamos todos amontoados ali em beliches, e não ha via muita organização. Só para ter uma idéia, Bob Christy e sua esposa tinham de passar pelo nosso quarto para ir ao banheiro. Era muito desconfortável. Finalmente, o dormitório ficou pronto. Fui ao local onde os quartos eram distribuídos e disseram-me que poderia escolher o meu. Sabem o que fiz? Procurei saber onde era o dormitório das meninas, e então escolhi um quarto que me desse uma boa visão do dormitório - embora depois eu tenha desco berto que uma árvore enorme estivesse crescendo exatamente na frente da ja nela daquele quarto. Eles me informaram que seriam duas pessoas por quarto, mas apenas temporariamente. Cada dois quartos compartilhariam um banheiro, e haveria beliches duplos em cada quarto. Mas eu não queria duas pessoas no quarto. Na noite que cheguei, não havia mais nínguém, e decidi tentar ficar com um quarto só para mim. Minha esposa estava com tuberculose em Albuquer*Nota do Tradutor: Hans Albrecht Bethe ( 1 906- ), físico alemão naturalizado americano. Descobriu o mecanismo da produção de energia em estrelas como o Sol no qual, basica mente, quatro átomos de hidrogênio são convertidos em um átomo de hélio mais a energia de fusão radiada.
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que, mas eu tinha algumas caixas com coisas dela. Então tirei uma camisola, ajeitei a cama de cima e joguei a camisola displicentemente sobre ela. Tirei os chinelos e joguei um pouco de talco no chão do banheiro. Simplesmente fiz parecer que havia mais uma pessoa por ali. E então, o que aconteceu? Bem, era para ser um dormitório masl!lulino, você notou? Quando cheguei naquela noite, meus pijamas estavam bem dobrados, debaixo do travesseiro, na cama de baixo, e meus chinelos cuidadosamente postos debaixo da cama. A cami sola de mulher estava bem dobrada, sob o travesseiro, a cama arrumada e os chinelos bem guardados. O talco do banheiro havia sido limpo e ninguém es tava dormindo na cama de cima. Na noite seguinte, a mesma coisa. Ao levantar, bagunço a cama de cima, jogo a camisola sobre a cama, derramo talco no chão etc. Continuei com isso por quatro noites, até que todos estivessem acomodados e não houvesse mais perigo de que colocassem uma segunda pessoa no quarto. Toda noite tudo era arrumado com muito capricho, apesar de ser um dormitório masculino. Naquela época eu não adivinhava, mas essa pequena artimanha acabou por envolver-me na política. Lá havia todo tipo de facção, é claro, a facção das do nas-de-casa, a facção dos mecânicos, a facção do pessoal técnico, e assim por diante. Bem, os solteiros e as solteiras que viviam no dormitório achavam que também tinham de formar uma facção, porque uma nova regra havia sido pro mulgada: Nenhuma Mulher no Dormitório Masculino. Bem, isso é totalmente ridículo! Afinal de contas, somos todos adultos! Que coisa mais sem sentido é essa? Tínhamos de ter uma ação política. Então debatemos sobre o assunto, e fui eleito para representar o pessoal do dormitório no conselho da cidade. Um dia, depois de já estar por lá há mais ou menos um ano e meio, eu e Hans Bethe estávamos conversando. Durante esse tempo todo, ele fez parte do grande conselho governamental: contei-lhe sobre o truque com a camisola da minha esposa e os chinelos. Ele começou a rir. "Então foi assim que você entrou para o conselho da cidade", ele disse. O que aconteceu foi o seguinte: a mulher que limpava os quartos do dor mitório abre a porta e, de repente, depara-se com um problema: alguém está dormindo com um dos rapazes! Ela conta para a chefe, a chefe para o tenente, o tenente ao major. A coisa chega até os generais, por intermédio do conselho governamental. O que farão? Pensarão sobre o assunto, é isso! Mas, nesse ínterim, quais as instruções passadas pelos capitães, pelos majores, pelos tenentes, pela che-
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fe das chefes, e pela chefe? "Coloque as coisas de volta como estavam, lim pe-as e veja o que acontece." No dia seguinte, o mesmo relato. Por quatro dias eles pensaram sobre o que fazer. Finalmente, promulgaram uma regra: Ne nhuma Mulher no Dormitório Masculino! E isso causou tanto rebuliço que eles tiveram de eleger alguém para representar o . . . Gostaria de falar um pouco sobre a censura que havia lá. Eles decidiram fazer algo completamente ilegal e censurar a correspondência das pessoas nos Estados Unidos - algo que não tinham o menor direito de fazer. Isto en tão teve de ser feito de forma muito sutil, como algo voluntário. Todos dei xariam de lacrar voluntariamente os envelopes das cartas que enviaríamos para fora, e tudo estaria bem se eles lessem as cartas que chegassem; isto foi voluntariamente aceito por nós. Deixávamos nossas cartas abertas, e eles as lacravam se estivesse tudo certo com elas. Se, na opinião deles, não estivesse tudo certo, nos mandavam a carta de volta com um bilhete dizendo que fora cometida uma violação ao parágrafo tal de nosso "acordo". Assim, de forma bem sutil, finalmente, e com muitas regras, a censura fi cou implantada entre todos esses cientistas de pensamento liberal. Podíamos comentar sobre o caráter da administração, se quiséssemos. Assim, podíamos escrever ao nosso senador e dizer que não gostávamos da forma como as coi sas estavam indo, e assim por diante. Eles diziam que nos notificariam se hou vesse alguma dificuldade. Então, estava tudo acertado, e chega o primeiro dia de censura: Telefone! Trrrriiimmm! Eu: "O quê?" - Por favor desça. Desci. - O que é isto? - É uma carta de meu pai. - Bem, o que é isto? Lá estava um papel pautado, e linhas com pontos prolongando a pauta quatro pontos embaixo, um ponto em cima, dois pontos embaixo, um ponto em cima, ponto sob ponto ... - O que é isso? - É um código.
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- Eu não sei o que diz. - Bem, qual a chave do código? Como você o decifra? - Bem, eu não sei. - O que é isso? - É uma carta de minha mulher - diz TJXYWZ TW1 X3 • - O que é isso? - Outro código. - Qual é a chave dele? - Eu não sei. - Você está recebendo códigos e não sabe a chave? - Exatamente. Isso é um jogo. Eu os desafio a enviar-me um código que eu não possa decifrar, você percebe? Eles inventam os códigos lá do outro lado, enviam-nos para cá e não me dizem qual é a chave. Ora, uma das regras da censura era não interferir em nada do que você normalmente fizesse com a correspondência. Então disseram: "Bem, você terá de pedir a eles que enviem a chave junto com o código." - Eu não quero ver a chave! - Bem, tudo bem, nós vamos cortar a chave. Então tínhamos esse acordo. OK? Tudo bem. No dia seguinte recebo uma carta da minha esposa que diz: " É muito difícil escrever porque eu sinto como se o estivesse olhando por cima do meu ombro." E no lugar da palavra havia uma mancha feita com corretivo. Desci ao escritório e disse: "Vocês não podem mexer na correspondência que chega só porque não gostam dela. Vocês podem olhá-la, mas não devem tirar nada." Eles disseram: "Não seja ridículo. Você acha que é assim que os censores trabalham - com corretivo? Eles cortam as coisas com tesouras." Eu disse OK Então escrevi de volta à minha esposa: "Você usou corretivo na sua carta?" Ela responde: "Não, não usei corretivo na minha carta, devem " - e há um buraco cortado no papel. ter sido os Voltei ao major que supostamente seria o responsável por essa coisa toda, e reclamei. Isto levou um tempo, mas senti que era uma espécie de represen tante encarregado de corrigir aquele tipo de coisa. O major tentou expli car-me que as pessoas que trabalhavam como censores haviam sido treinadas em como censurar, mas não entendiam por que tínhamos de ser tão sensíveis quanto a essa questão.
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De qualquer forma, ele disse: "Qual o problema, você não acha que eu te nho boa vontade? " Eu disse: "Sim, o senhor está cheio de boa vontade, mas não acho que te nha poder." Porque, veja você, ele já vinha trabalhando nisso há três ou quatro dias. Ele disse: "Veremos! " Agarrou o telefone, e tudo ficou arranjado. Nunca mais recebi uma carta com cortes. No entanto, havia uma série de outras dificuldades. Por exemplo, um dia recebi uma carta de minha esposa e um bilhete do censor que dizia: "Havia um código incluso, sem a chave, e então o censuramos." Quando fui ver minha esposa em Albuquerque, naquele dia, ela disse: "Bem, onde estão as coisas?" Eu disse: "Que coisas?" Ela disse: "Litargírio, * glicerina, cachorros-quentes, lavanderia." Eu disse: "Espere um minuto - era uma lista?" Ela disse: "Sim." "Esse era o código ", eu disse. "Eles acharam que era um código - litargí rio, glicerina etc." (Ela queria litargírio e glicerina para fazer uma cola para consertar uma caixa de ônix.) Tudo isso aconteceu nas primeiras semanas antes de esclarecermos as coisas. De qualquer forma, um dia estava matando tempo com a máquina de calcular e percebi algo muito peculiar. Se você tomasse 1 e o dividisse por 243, obteria 0,004 1 1 52263 3 7 ... Quando você continua é muito legal, depois de 599 fica um pouco fora do esquadro, mas logo se enquadra e se repete mi nuciosamente. Achei interessante. Bem, coloquei isso na carta, e ela me é devolvida. Ela não é aprovada, e há um bilhetinho: "Veja o Parágrafo 1 7B." Olhei o Parágrafo 1 7B. Ele diz: "As cartas devem ser escritas apenas em inglês, russo, espanhol, português, latim, alemão, e assim por diante. Para utilizar qualquer outro idioma, deve-se soli citar permissão por escrito." E então dizia: "Sem códigos." Escrevi uma pequena nota ao censor, inserida em minha carta, em que di zia que eu achava que obviamente isso não podia ser um código, porque, se você realmente dividisse 1 por 243, você, na verdade, chega àquilo tudo, e *Nota do Tradutor: Óxido de chumbo utilizado na fabricação de cristais, esmaltes e vidros
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portanto não havia maiores informações no número 0,004 1 1 5226337 ... do que havia no número 243 o qual dificilmente poderia ser considerado como qualquer tipo de informação. E assim por diante. Por esse motivo, pedia per missão para usar algarismos arábicos nas minhas cartas. Deste modo conse gui que a carta fosse liberada. Havia sempre algum tipo de dificuldade com as cartas que iam de um lado para o outro. Por exemplo, minha esposa continuava a mencionar o fato de sentir-se incomodada em escrever, tendo a sensação de que o censor estava olhando por cima dos seus ombros. Ora, como regra, não devemos mencio nar a censura. Nós não devemos, mas como dizer isso a ela ? Por isso eles sem pre me mandavam um bilhete: "Sua esposa mencionou a censura." Certa mente minha esposa mencionara a censura. Então, por fim, enviaram-me um bilhete que dizia: "Por favor, informe à sua esposa que não mencione a censu ra em suas cartas." Então comecei minha carta: "Fui instruído a informá-la de que não deve mencionar a censura em suas cartas." Batata! A carta volta! Então escrevo: "Fui instruído a informar à minha esposa que ela não deveria mencionar a censura. Como vou fazer isso? Além do mais, por que devo ins truí-la a não mencionar a censura? Por causa da repressão de vocês? " É muito interessante que o próprio censor tenha de pedir-me que informe à minha esposa que não me escreva que ela está . . . Mas eles tinham uma res posta. Eles disseram, sim, que estavam preocupados com o fato de que a cor respondência pudesse ser interceptada no caminho de Albuquerque e que al guém pudesse descobrir que havia censura ao ler a correspondência; ela po deria, por favor, agir com mais naturalidade. Então, na outra vez que fui a Albuquerque, conversei com ela e disse-lhe: "Olha, não vamos mais mencionar a censura." Mas tínhamos tido tanto pro blema que finalmente criamos um código, algo ilegal. Se eu pusesse um ponto no final de minha assinatura, queria dizer que eu tinha tido problemas de novo, e ela deveria passar para a outra artimanha que ela havia engendrado. Ela podia passar o dia todo sentada, porque estava doente, e pensar em coisas a fazer. A última coisa que ela fez foi mandar-me um anúncio que encontrou de forma perfeitamente legal. Ele dizia: "Envie ao seu namorado uma carta em forma de um quebra-cabeça. Enviamos o formulário, você escreve a carta, recorta as peças, põe em um saquinho e as envia." Recebi o anúncio junto com um bilhete que dizia: "Não temos tempo para brincadeiras. Por favor, dê instruções à sua esposa para limitar-se a cartas comuns." -
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Bem, já tínhamos outro plano engatilhado, mas eles consertaram tudo a tempo e não tivemos de usá-lo. O que tínhamos preparado para usar em se guida era uma carta que começaria com: "Espero que você tenha se lembrado de abrir esta carta com muito cuidado, porque coloquei o pó de Pepto- Bismol para seu estômago, como tínhamos combinado." Seria uma carta cheia de pó. Esperávamos que no escritório eles quando a abrissem sem cuidado, o pó se espalhasse pelo chão, e eles ficassem bastante desconcertados porque não de viam bagunçar nada. Eles teriam de juntar todo o Pepto-Bismol... Mas não ti vemos de usar esse plano. Todas essas experiências com a censura fizeram com que eu soubesse exatamente o que passaria e o que não passaria. Ninguém sabia tanto quanto eu. Então, consegui levantar um dinheirinho fazendo apostas. Um dia, descobri que os trabalhadores que moravam fora e queriam en trar eram preguiçosos demais para dar a volta até o portão, e por isso haviam feito um buraco na cerca. Então saí pelo portão, fui até o buraco na cerca e en trei' saí de novo, e assim por diante, até que o sargento que estava no portão começou a perguntar-se o que estava acontecendo. Como esse sujeito está sempre saindo e nunca entrando? E, é claro, sua reação natural foi chamar o tenente e tentar prender-me por isso. Expliquei que havia um buraco. Como se pode perceber, eu estava sempre tentando corrigir as pessoas. E assim apostei com alguém que eu poderia falar sobre o buraco na cerca em uma carta, e enviá-la para fora. E realmente o fiz. Fiz o seguinte, escrevi: "Você deve ver como eles administram esse lugar (era o que podíamos dizer) . Há um buraco na cerca, a vinte e dois metros de tal lugar, tem tal tamanho e pode-se passar por ele." Agora, o que eles podem fazer? Não podem dizer-me que tal buraco não existe. Quero dizer, o que iam fazer? É problema deles que haja tal buraco. Eles deviam consertar o buraco. Então, consegui que a carta passasse. Também consegui fazer passar uma carta que falava sobre como um dos caras que trabalhava em um dos meus grupos, John Kemeny, havia sido acor dado no meio da noite e interrogado implacavelmente, com luzes sobre ele, por alguns idiotas do exército de lá, porque descobriram alguma coisa sobre seu pai, que se supunha ser um comunista ou algo assim. Kemeny é famoso hoje em dia. Havia outras coisas. Assim como com o buraco na cerca, eu estava sem pre tentando chamar a atenção para essas coisas de uma forma indireta. E
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uma das coisas que eu queria mostrar era o seguinte: bem no começo tínha mos segredos muitíssimo importantes; trabalhávamos muito em coisas relati vas a bombas e ao urânio, como funcionavam, e coisas assim. Tudo isso esta va em documentos guardados em arquivos de madeira que tinham cadeados pequenos, de baixa qualidade, olidinários. Obviamente, havia muitas coisa feitas na oficina, como o ferrolho que descia e era mantido nessa posição com um cadeado colocado para segurá-lo, mas era sempre apenas um cadeado. Além do mais, podia-se pegar o material sem sequer abrir o cadeado. Era só emborcar a estante. Na última gaveta embaixo havia uma pequena haste que servia para manter os papéis juntos, e havia um enorme buraco na madeira que servia de fundo. Podia-se retirar os papéis por baixo. Eu costumava abrir fechaduras o tempo todo e mostrar que era muito fá cil fazer isso. E toda vez que havia alguma reunião geral, eu levantava e dizia que tínhamos importa:ntes segredos e não deveríamos guardá-los em com partimentos daquele tipo; precisávamos de trancas melhores. Um dia, duran te a reunião, Teller levantou-se e falou para mim: "Não guardo meus segre dos mais importantes no meu arquivo; eu os mantenho em minha escrivani nha. Não é melhor assim?" Eu disse: "Não sei. Ainda não vi sua escrivaninha." Ele estava sentado mais na frente na sala de reuniões e eu estava mais atrás. Então a reunião continuou; dei uma escapulida para ver a escrivani nha dele. Não tive nem de forçar a fechadura da escrivaninha. Acontece que se você colocasse sua mão por trás, embaixo, você poderia puxar o papel como nos porta-papéis dos toaletes. Você puxa um, ele puxa outro, puxa outro ... Esva ziei toda a bendita gaveta, coloquei tudo de lado e voltei lá para cima. A reunião estava acabando, todo mundo já estava saindo. Juntei-me ao pessoal e corri para alcançar Teller. Então disse-lhe: "Ah, a propósito, dei xe-me ver sua escrivaninha." - Claro - disse ele, e me mostrou a escrivaninha. Eu examinei-a e disse: "Para mim parece boa. Vejamos o que você guarda nela." - Terei prazer em mostrar -disse ele, colocando a chave e abrindo a gave ta. - Se - disse ele - você já não a tivesse examinado. O problema ao fazer uma brincadeira com um homem tão inteligente como o Sr. Teller era que o intervalo de tempo entre o instante em que ele no-
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tasse que havia algo errado e o instante em que entendesse exatamente o que acontecera era curto demais para que você pudesse divertir-se. Alguns dos problemas especiais que eu enfrentava em Los Alamos eram bastante interessantes. Um deles tinha a ver com a segurança da usina em Oak Ridge, Tennessee. Los Alamos fabricaria a bomba, mas em Oak Ridge eles estavam tentando separar os isótopos de urânio - urânio 238 e urânio 235, aquele que era explosivo. Estavam apenas começando a obter quantida des infinitesimais de algo feito experimentalmente com o 235 e, ao mesmo tempo, praticando a química do processo. Seria uma grande usina, haveria tonéis do material, e então tomariam o material purificado, o purificariam de novo e estariam prontos para a próxima fase. (Você tem de purificar o urânio em várias fases.) Eles por um lado estavam praticando e, por outro, estavam conseguindo experimentalmente um pouco de U 235 com uma parte somente do equipamento todo. Estavam tentando aprender a realizar os testes para determinar o quanto de urânio 235 seria produzido. Apesar de enviarmos ins truções, eles nunca conseguiam acertar. Por fim, Emilio Segre* disse que a única forma possível de fazer a coisa certa era ele ir lá e ver o que eles estavam fazendo. O pessoal do exército disse: "Não. É política nossa manter toda a informação de Los Alamos em um único local." As pessoas em Oak Ridge não tinham a menor noção sobre como isso seria usado; eles só sabiam aquilo que estavam tentando fazer. Quer dizer, as pes soas no nível mais alto sabiam que eles estavam separando urânio, mas não sabiam o poder da bomba, ou exatamente como ela funcionava, nem coisa al guma. As pessoas no nível mais baixo não sabiam nada sobre o que estavam fa zendo. E o exército queria manter as coisas assim. Não havia informação circu lando. Mas Segre insistiu em que eles nunca conseguiriam fazer os testes cor retos, e tudo acabaria em fumaça. Então ele, finalmente, foi ver o que estava sendo feito; e enquanto dava uma volta por lá, viu o pessoal carregando um gar rafão de água, água verde - que era a solução de nitrato de urânio. Ele disse: "Hei, vocês também vão manejar isso assim, depois de purifica do? É o que vocês vão fazer? " Eles disseram: "Claro - por que não?" *Nota do Tradutor: Emílio Gino Segre ( 1 905 - 1 9 89) físico italiano naturalizado america no, descobridor do antipróton.
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- Não vai explodir? - ele perguntou. - Ahn? Explodir? Então o exército disse: "Vejam só! Não devíamos ter permitido que qual quer informação chegasse a eles! Agora estão todos preocupados." Acontece que o exército hmria percebido quanto material precisaríamos para fazer uma bomba - vinte quilogramas ou coisa assim - e percebeu que essa quantidade de material purificado jamais estaria na usina; portanto não havia perigo. Mas eles não sabiam que os nêutrons eram muito mais eficientes na água quando a sua velocidade era reduzida. Na água, é necessário menos do que um décimo - não, um centésimo - da quantidade do material para produzir uma reação que gere a radioatividade. Ela mata as pessoas ao redor e tudo mais. Era muito perigoso, e eles não tinham prestado atenção alguma à segurança. Então Oppenheimer envia um telegrama a Segre: "Inspecione toda a usi na. Observe onde se supõe que todas as concentrações devam estar, usando o processo elaborado por eles. Enquanto isso, calcularemos quanto material pode ser reunido antes que haja uma explosão." Dois grupos começaram a trabalhar com isso. O grupo de Christy tra balhava com as soluções aquosas e meu grupo com o pó seco em caixas . Calculamos, aproximadamente, quanto material eles poderiam acumular de forma segura. E Christy ia lá e contava a todos, em Oak Ridge, qual era a situação, porque a coisa toda estava entrando em colapso, e nós tínhamos de ir lá agora e avisá-los. Então, passei os números a Christy e disse, todo contente: você tem todo o material, agora vá. Mas Christy pegou pneumo nia, e eu tive de ir. Eu nunca tinha viajado de avião. Eles amarraram os papéis secretos em um trocinho nas minhas costas! Naquela época, o avião era parecido com um ônibus, exceto que os pontos de embarque eram muito mais separados uns dos outros. De vez em quando, ficava-se esperando o tempo todo. Havia um sujeito parado perto de mim balançando uma corrente, dizen do algo como: "Deve ser extremamente difícil viajar de avião sem prioridade nos dias de hoje." Não pude resistir. Disse: "Eu não sei. Eu tenho prioridade." Um pouco mais tarde, ele tentou de novo. "Há alguns generais chegando. Eles vão tirar alguns de nós com prioridade três." - Tudo bem - eu disse -, tenho prioridade número dois.
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Provavelmente, ele escreveu a seu congressista - se é que ele não era um dizendo: "O que eles estão fazendo, mandando essas crianças com prioridade número dois no meio de uma guerra? " De qualquer forma, cheguei a Oak Ridge. Em primeiro lugar, fiz com que eles me levassem à usina; eu não dizia nada, apenas observava tudo. Descobri que a situação era ainda pior do que Segre havia relatado, porque ele havia notado algumas caixas dispostas em grandes lotes em uma sala, mas não per cebeu uma porção de caixas em uma outra sala do outro lado da mesma pare de e coisas assim. Agora, se você tem tanto material junto, a coisa fica feia. Examinei a usina toda. Tenho uma memória fraca, mas quando trabalho in tensamente tenho boa memória de curto prazo. Assim, pude lembrar-me de todo tipo de coisas doidas, por exemplo: prédio 90-207, tonel tal e tal, e coisas assim. Naquela noite fui para o meu quarto e repassei a coisa toda, expliquei onde se localizavam todos os perigos e o que se deveria fazer para neutrali zá-los. Era muito fácil. Coloca-se cádmio nas soluções para absorver os nêu trons na água e separam -se as caixas de acordo com certas regras para que não haja uma concentração muito alta. No dia seguinte, haveria uma grande reunião. Esqueci de dizer que, antes de sair de Los Alamos, Oppenheimer me disse: "Lá em Oak Ridge, as seguin tes pessoas são tecnicamente capazes: Sr. Julian Webb, Sr. Fulano de Tal, e assim por diante. Quero que você se certifique de que essas pessoas estejam presentes na reunião, que diga a elas como tornar a coisa segura, de um modo que elas realmente entendam. " Eu disse: "E se eles não estiverem na reunião? O que devo fazer?" Ele disse: "Então você deverá dizer: Los Alamos não pode aceitar a responsabilidade pela segurança da usina de Oak Ridge a menos que !" Eu disse: "Você quer dizer que eu, o pequeno Richard, vá chegar lá e di?" zer Ele disse: "Sim, pequeno Richard, você vá lá e faça isso." Eu realmente cresci rápido! É óbvio que, quando cheguei, os poderosos da companhia e o pessoal téc nico que eu queria estavam lá, e também os generais e todo mundo que estava interessado nesse problema tão sério. Isso era bom porque a usina teria explo dido se ninguém tivesse prestado atenção a esse problema. Havia um certo tenente Zumwalt que tomava conta de mim. Contou-me que o coronel falara que eu não deveria dizer a eles como os nêutrons funcio-
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navam e todos os detalhes, porque queremos manter as coisas separadas; en tão diga a eles apenas o que fazer para manter a segurança. Eu disse: "Na minha opinião, é impossível que eles obedeçam a um pu nhado de regras, a menos que entendam como isso funciona. É minha opinião que só vai dar certo se eu contar a'eles, e Los Alamos não pode aceitar a res ponsabilidade pela segurança da usina de Oak Ridge, a menos que eles estejam totalmente informados sobre como a coisa funciona!" Foi o máximo. O tenente me leva ao coronel e repete o que eu disse. O co ronel diz: "Me dê cinco minutos", vai até a janela, pára e pensa. Nisso eles são muito bons - tomar decisões. Achei interessante como o problema da divul gação ou não, na usina de Oak Ridge, da informação sobre como a bomba funciona teve de ser decidido e pôde ser resolvido em cinco minutos. Tenho muito respeito pelos militares porque não consigo decidir nada de muito im portante' nunca. Em cinco minutos ele disse: "Tudo bem, Sr. Feynman, vá em frente." Sentei-me e falei a todos eles sobre os nêutrons, como eles funcionavam, patati-patatá, há muitos nêutrons juntos, vocês devem manter o material se parado, o cádmio absorve, e os nêutrons lentos são mais eficientes do que os rápidos, e tá-tá-tá - tudo coisa elementar em Los Alamos, mas sobre as quais eles nunca tinham ouvido falar. Assim, eles me acharam um gênio. O resultado foi que resolveram criar pequenos grupos para efetuar seus próprios cálculos, e deste modo aprender a fazê-los. Começaram a refazer o projeto das usinas; os projetistas das usinas estavam lá, os da construção, os engenheiros e os engenheiros químicos para a nova usina que operaria com o material separado. Disseram-me para voltar em alguns meses: então voltei quando os enge nheiros concluíram o projeto da usina. Agora eu deveria examiná-lo. Como você inspeciona uma usina que ainda não está construída? Eu não sei. O tenente Zumwalt, que estava sempre me acompanhando, porque eu ti nha de ter um acompanhante em todo canto que ia, me leva a essa sala na qual estão esses dois engenheiros e uma enoooooooorme mesa coberta com uma pilha de projetos representando os diversos andares da usina proposta. Estudei desenho técnico na universidade, mas não sou bom na leitura de projetos. Eles estendem os projetos sobre a mesa e começam a explicá-los pará mim, imaginando que eu sou um gênio. Uma das coisas que tinham de ser evitadas na usina era a acumulação. Eles tinham problemas deste tipo: se
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um evaporador estiver funcionando tentando acumular o material e a válvula ficar presa ou qualquer coisa parecida e acumular material demais, o evapo rador explodirá. Depois eles me explicaram que essa usina fora planejada de forma que, se qualquer válvula entupisse, nada aconteceria. O evaporador ne cessita, pelo menos, duas válvulas em algum outro lugar. Então eles me explicaram como funcionaria. O tetracloreto de carbono entra aqui, o nitrato de urânio daqui vai para ali, sobe e desce, e vai pelo assoa lho, chega através do tubo vindo do segundo andar, bruuuuuup - passando pela pilha de projetos, para cima, para baixo, para cima, para baixo, e eles fa lando muito rápido, explicando para mim essa usina química muito, mas mui' to complexa. Estou completamente tonto. Pior, não sei o que os símbolos nas plantas do projeto querem dizer! Há algo que, a princípio, imagino ser uma janela. É um quadrado com uma pequena cruz no meio, está em tudo quanto é lugar. Acho que é uma janela, mas não, não pode ser uma janela, porque não está sempre nas beiras. Quero perguntar a eles o que é isso. Você já deve ter passado por uma situação assim na qual você não per gunta na hora. Perguntar na hora não teria problema. Mas, agora, já havía mos conversado um pouco além da conta. Hesitei muito. Se perguntar agora, eles dirão: "Para que você está desperdiçando nosso tempo?" O que vou fazer? Tenho uma idéia. Talvez seja uma válvula. Pego meu dedo e coloco em cima de uma das misteriosas cruzinhas no meio de uma das plantas na página três, e digo: "O que acontece se essa válvula entupir? " imaginando que eles dirão: "Isso não é uma válvula, senhor, é uma janela." Um olha para o outro e diz: "Bem, se esta válvula entupir" - ele percorre o projeto com o olhar para cima e para baixo, para cima e para baixo, o outro ra paz olha para cima e para baixo, de um lado para o outro, de um lado para o outro, e os dois se entreolham. Eles se viram para mim, abrem a boca como um peixe atônito e dizem: "O senhor está coberto de razão." Então enrolam os projetos, partem e nós saímos. E o Sr. Zumwalt, que esteve me seguindo o tempo todo, diz: "O senhor é um gênio. Achei que o senhor era um gênio quando passou uma vez pela usina e pôde falar sobre o evaporador C-2 1 no prédio 90-207 na manhã seguinte", ele diz, "mas o que o senhor acabou de fazer é tão fantástico que eu quero saber como, como o senhor faz isso?" Eu disse a ele que se tenta descobrir se é uma válvula ou não.
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Outro tipo d e problema com o qual trabalhei era o seguinte. Tínhamos de fazer uma porção de cálculos, e o fazíamos em máquinas de calcular Mar chant. A propósito, só para dar uma idéia sobre como era Los Alamos: tínha mos esses computadores Marchant - calculadoras de mão com números. Você aperta os botões e eles multipl�am, dividem, somam e assim por diante, mas não com a facilidade de hoje em dia. Eram engenhocas mecânicas, mui tas vezes não funcionavam e tinham de ser devolvidas à fábrica para serem consertadas. Em pouco tempo já não havia máquinas. Alguns de nós começa mos a tirar as tampas delas. (Não devíamos fazer isso. As regras diziam: "Se a tampa for removida, não nos responsabilizamos" . . . ) Então tiramos as tampas e aprendemos bastante sobre como consertá-las e melhoramos cada vez mais, à medida que fazíamos reparos mais elaborados. Quando topávamos com algo muito complicado, devolvíamos a máquina à fábrica, mas consertávamos os problemas fáceis e mantínhamos a coisa funcionando. Acabei ficando res ponsável por todos os computadores, e havia ainda um rapaz na oficina mecâ nica que cuidava das máquinas de escrever. De qualquer forma, decidimos que o grande problema - que era descobrir exatamente o que acontecia durante a implosão da bomba, para que pudéssemos descobrir exatamente quanta energia seria liberada e coisas assim -exigia muito mais cálculos do que éramos capazes de realizar. Um colega inteligente, chama do Stanley Frankel, percebeu que talvez fosse possível fazer os cálculos em má quinas IBM. A companhia IBM produzia máquinas com fins comerciais, máqui nas de somar chamadas tabuladores para listar somas, e um multiplicador, no qual se inseriam cartões, pegava dois números de um cartão e os multiplicava en tre si. Havia também comparadores e classificadores, e coisas desse tipo. Então, Frankel elaborou um programa iQteressante. Se conseguíssemos �astantes máquinas desse tipo em uma sala, poderíamos pegar os cartões e fazê-los percorrer um ciclo. Todo mundo que executa cálculos numéricos sabe hoje em dia exatamente sobre o que estou falando, mas, naquela época, isso era novidade - produção em massa com máquinas. Tínhamos feito algo semelhante com máquinas de somar. Geralmente, você dá um passo, fazen do tudo sozinho. Mas isso era diferente -primeiro você vai à máquina de so mar, depois à multiplicadora, então novamente à máquina de somar, e assim por diante. Frankel, então, projetou esse sistema e encomendou as máqui nas da IBM, porque descobrimos que era uma boa forma de solucionar nos sos problemas.
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Precisávamos de alguém para consertar as máquinas, mantê-las funcio nando e tudo mais. O exército ficava sempre por mandar esse sujeito que eles tinham, mas ficavam sempre adiando. Nessa época, estávamos sempre com pressa. Tudo que fazíamos, tentávamos fazer na maior rapidez possível. Nes te caso em particular, trabalhamos todas as etapas numéricas que as máqui nas deveriam fazer - multiplicar isso, e então fazer aquilo e subtrair aquilo ou tro. Desenvolvemos o programa, mas não tínhamos máquina para testá-lo. Então, arrumamos uma sala com garotas. Cada uma delas tinha uma Mar chant: uma garota multiplicava, outra fazia a soma. Essa outra era responsá vel por elevar ao cubo - tudo que fazia era elevar um número em um cartão ao cubo e depois enviá-lo para a garota seguinte. Fizemos funcionar nosso ciclo dessa forma até que eliminamos todos os defeitos. Aconteceu que a velocidade com que conseguíamos fazer isso era muito mais rápida do que da outra forma, na qual cada pessoa executava to das as etapas. Com esse sistema conseguimos atingir a mesma velocidade prevista para a máquina IBM. A única diferença é que as máquinas IBM não se cansavam e podiam trabalhar nos três turnos. As garotas, no entanto, se cansavam depois de um certo tempo. De qualquer forma, conseguimos eliminar os defeitos no decorrer desse processo, até que finalmente as máquinas chegaram, mas não o responsável pelos consertos. Essas máquinas eram algumas das mais complexas produzi das com a tecnologia daquela época, imensas, e vinham parcialmente des montadas, com uma porção de fios e esquemas com instruções sobre o que fazer. Juntamos tudo, Stan Frankel, eu e outro cara, e tivemos alguns proble mas. Boa parte dos problemas eram os chefões aparecendo o tempo todo e di zendo: "Vocês vão quebrar alguma coisa!" Montamos tudo, às vezes as máquinas funcionavam e às vezes montáva mos erradamente e elas não funcionavam. Finalmente, eu estava trabalhando em um multiplicador quando vi uma parte interna encurvada, mas tive medo de retificá-la porque poderia quebrar-se - e eles sempre nos diziam que íamos estragar alguma coisa de forma irreversível. Quando o responsável pelos con sertos finalmente chegou, consertou as máquinas que não tínhamos montado corretamente; tudo agora estava bem. No entanto, ele teve dificuldades com a mesma máquina que havia me dado problemas. Passados três dias, ele ainda estava trabalhando naquela última máquina. Eu desci e disse: "Ah! Notei que há uma parte encurvada."
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Ele disse: "Ah, é claro. Esse é todo o problema!" Encurvada! Estava tudo certo. Então foi isso. Bem, o Sr. Frankel, que deu início a esse programa, começou a sofrer da doença do computador, que qualquer pessoa que trabalha com esse tipo de máquina hoje em dia conhece . É uma doença muito séria e interfere comple tamente no trabalho. O problema com computadores é que você brinca com eles. Eles são tão maravilhosos. Você tem esses botões - se for um número par, faz isso, se for ímpar, faz aquilo - e logo, se você for inteligente o bastan te, consegue fazer coisas cada vez mais elaboradas com a máquina. Depois de algum tempo, o sistema todo entrou em colapso. Frankel não estava prestando a menor atenção; ele não supervisionava ninguém. O siste ma estava muito, muito lento - enquanto ele estava sentado em uma sala ten tando imaginar uma forma de fazer com que um tabulador imprimisse auto maticamente o arco cuja tangente é X, e daí então começasse a imprimir colu nas, e então bitsi, bitsi, bitsi, calculasse o arco-tangente, automaticamente, por integração, à medida que o processo se desenvolvia, e construísse uma ta bela completa em uma única operação. Completamente inútil. Tínhamos tabelas de arcos-tangentes. Mas se você alguma vez já trabalhou com computadores, entende a doença - o prazer de poder verificar o quanto se é capaz de fazer. Mas ele foi o primeiro a pegar essa doença, o pobre coitado que havia inventado a coisa. Pediram -me que parasse de trabalhar naquilo que estava fazendo em meu grupo e descesse para assumir o controle do grupo IBM. Tentei evitar a doen ça. E, embora tivessem resolvido apenas três problemas em nove meses, eu ti nha um grupo muito bom. O verdadeiro problema era que ninguém havia dito nada a esse pessoal. O exército os havia selecionado em todas as partes do país para um negócio cha mado Destacamento Especial de Engenharia - rapazes inteligentes vindos do ensino médio que tinham vocação para a engenharia. Eles os enviaram a Los Alamos, os colocaram no quartel. E não disseram nada a eles. Assim eles vieram trabalhar, e o que tinham de fazer era trabalhar com as máquinas IBM - perfurando números que não entendiam. Ninguém lhes dis se o que era isso. A coisa estava indo muito devagar. Eu disse que a primeira coisa a fazer era informar esses caras sobre o que estavam fazendo. Oppe nheimer foi à segurança conversou com eles e conseguiu permissão especial para que eu pudesse dar uma minuciosa palestra sobre o que estávamos fa.
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zendo, e todos ficaram empolgados: "Estamos lutando na guerra! Sabemos o que é isso!" Eles sabiam o que os números significavam. Se a pressão subisse, queria dizer que mais energia havia sido liberada, e assim por diante. Eles sa biam o que estavam fazendo. Transformação total! Eles começaram a inventar formas de fazer melhor o trabalho. Melhoraram o programa. Trabalhavam à noite. Não precisavam de supervisão à noite; não necessitavam de nada. Entendiam tudo; inventa ram muitos dos programas que usávamos. Meus rapazes, realmente, se superaram, e tudo que foi preciso fazer foi contar a eles do que se tratava. Conseqüentemente, apesar de antes termos le vado nove meses para resolver três problemas, resolvemos nove problemas em três meses, o que era quase dez vezes mais eficiente. Uma das formas secretas com que resolvíamos nossos problemas era esta: os problemas consistiam de um punhado de cartões que tinham de per correr um ciclo. Primeiro some, depois multiplique - e assim percorriam o ci clo das máquinas da sala, vagarosamente, e o ciclo seguia e seguia. Então imaginamos uma forma de inserir também no ciclo conjuntos de cartões de diferentes cores, mas em momentos diferentes. Assim podíamos resolver dois ou três problemas de uma vez só. Mas isso nos levou a outro problema. Perto do final da guerra, por exem pIo, pouco antes de termos de fazer um teste em Albuquerque, a questão era: quanto de energia seria liberada? Estávamos calculando a energia liberada a partir de diversos projetos, mas não tínhamos feito cálculos para o projeto es pecífico que, por fim, foi utilizado. Então, Bob Christy chegou e disse: "Gos taríamos de ter, em um mês, o resultado sobre como isso vai funcionar" - ou em um tempo muito curto, algo como três semanas. Discordei: " É impossível." Ele disse: "Veja bem, você está solucionando quase dois problemas por mês. Leva apenas duas semanas ou três semanas para cada problema." Expliquei -lhe: "Eu sei. N a verdade, leva muito mais tempo para resolver o problema, mas estamos resolvendo-os paralelamente. Leva muito tempo para eles percorrerem o ciclo todo e não há jeito de acelerá-lo." Ele saiu e eu comecei a pensar. Haverá alguma forma de acelerar o ciclo? E se não fizéssemos mais nada com a máquina para que não houvesse interfe rência alguma? Coloquei no quadro-negro um desafio aos rapazes - pode mos fazer isso? Todos começaram a gritar: "Sim, vamos trabalhar em turnos
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dobrados, vamos fazer hora extra", todo esse tipo de coisa. "Nós vamos ten tar. Nós vamos tentar! " A regra agora era: todos os outros problemas fora. Apenas um problema, e a concentração apenas sobre ele. Então começaram a trabalhar. Minha esposa, Arlene, estava d àente, com tuberculose - muito doente, na verdade. Era como se algo pudesse acontecer a qualquer minuto; então ar ranjei, previamente, com um colega meu de dormitório para que ele me em prestasse o carro em caso de emergência, a fim de que eu pudesse chegar ra pidamente a Albuquerque. Seu nome era KIaus Fuchs. Ele era o espião e usa va seu carro para levar segredos atômicos de Los Alamos para Santa Fé. * Mas ninguém sabia disso. A emergência chegou. Tomei o carro de Fuchs emprestado e dei carona a dois sujeitos, caso acontecesse alguma coisa com o carro no caminho para Albuquerque. Realmente, quando estávamos passando por Santa Fé, o pneu furou. Os dois caras me ajudaram a trocar o pneu, e quando estávamos saindo de Santa Fé, outro pneu furou. Empurramos o carro até um posto de gasolina próxiino. O cara do posto estava consertando o carro de outra pessoa e ia levar um tempo até que pudesse nos ajudar. Sequer pensei em dizer alguma coisa, mas os dois caras que estavam de carona foram até o frentista e contaram-lhe a si tuação. Logo conseguimos um novo pneu (mas nenhum estepe - era difícil conseguir pneus durante a guerra) . Cerca de cinqüenta quilômetros de distância de Albuquerque, um tercei ro pneu furou. Então deixei o carro na estrada e fomos de carona o resto do caminho. Telefonei a um guincho para que pegasse o carro enquanto eu ia ao hospital ver minha esposa. Arlene morreu poucas horas depois de eu chegar lá. Uma enfermeira veio preencher o atestado de óbito e saiu de novo. Passei mais algum tempo com minha esposa. Então olhei para o relógio que havia dado a ela sete anos antes, quando ela contraiu a tuberculose. Era algo muito bonito naquela época: um relógio digital cujos números mudavam, girando automaticamente. O relógio era muito frágil e muitas vezes parava por um motivo ou outro - eu tinha de consertá-lo de tempos em tempos -, mas consegui mantê-lo funcionando por *Nota do Tradutor: O caso Fuchs, juntamente com o caso Oppenheimer, provocou grande comoção na comunidade científica na época da Guerra Fria.
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todos esses anos. Agora, ele tinha parado mais uma vez - às 9:22h, a hora do atestado de óbito! Lembrei-me de quando estava na fraternidade no MIT e tive a sensação, vin da completamente do nada, de que minha avó havia morrido. Pouco depois, re cebi um telefonema, exatamente assim. Era para Peter Bernays - minha avó não havia morrido. Então guardei isso na memória, caso alguém me contasse uma história que tivesse um fmal diferente. Percebi que coisas assim, às vezes, aconte cem ao acaso - afmal, minha avó estava muito velha -apesar de as pessoas pode rem achar que isso acontece devido a algum tipo de fenômeno sobrenatural. Arlene mantivera o relógio em sua cabeceira todo o tempo que estivera doente, e agora ele parara na hora em que ela morrera. Posso entender como uma pessoa que acredita, em parte, na possibilidade de tais coisas e que não tem uma mente inquisitiva - especialmente em circunstâncias como aquela não tente descobrir imediatamente o que houve, mas, ao contrário, diga que ninguém tocou no relógio, e que não havia explicação plausível para um fenô meno normal. O relógio simplesmente parou. Seria um dramático exemplo desses fenômenos fantásticos. Vi que a luz do quarto estava fraca e lembrei-me que a enfermeira havia pegado o relógio e o virara para a luz para enxergar melhor. Com isso ela po deria tranqüilamente ter feito o relógio parar. Saí para dar uma volta. Talvez eu estivesse me enganando, mas estava sur preso porque não estava sentindo o que se espera que as pessoas sintam nessas circunstâncias. Eu não estava contente, mas não me sentia terrivelmente triste, talvez porque já soubesse, por sete anos, que algo assim aconteceria. Eu não sabia como encararia meus colegas em Los Alamos. Não queria que as pessoas ficassem com aquela expressão de pena ao falar comigo sobre o assunto. Quando voltei (outro pneu furou no caminho) , eles me pergunta ram o que havia acontecido. " Ela morreu. E como está indo o programa? " Perceberam, imediatamente, que eu não queria ficar falando nisso. (Obviamente, eu havia criado um mecanismo psicológico: a realidade era tão importante - eu tinha de entender o que realmente havia acontecido com Arlene, psicologicamente - que não chorei até alguns meses depois, quando estava em Oak Ridge. Eu estava passando por uma loja de departamentos com vestidos na vitrina e pensei se Arlene gostaria de um deles. Aquilo foi de mais para mim.)
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Quando voltei a trabalhar no programa de cálculo, encontrei uma bagun ça: havia cartões brancos, cartões azuis, cartões amarelos, e comecei a dizer: "Vocês não deviam trabalhar com mais de um problema - apenas um proble ma!" Eles disseram: "Caia fora, caia fora, caia fora. Espere - e nós explicaremos tudo." Então esperei e aconteceu o seguinte. Enquanto os cartões passavam, às vezes a máquina cometia um erro, ou eles digitavam um número errado. O que costumávamos fazer quando algo assim acontecia era voltar e repetir o processo. Mas eles perceberam que um erro cometido em um certo ponto do ciclo afetava apenas os números próximos, o próximo ciclo afeta os números próximos, e assim por diante. Era assim que funcionava com a pilha de car tões. Se você tiver cinqüenta cartões e cometer um erro no cartão número trinta e nove, os cartões números trinta e sete, trinta e oito e trinta e nove serão afetados. Depois, os cartões trinta e seis, trinta e sete, trinta e oito, trinta e nove e quarenta. Na próxima vez, o erro se espalharia como uma peste. Assim eles descobriram o que um erro anterior poderia fazer, e tiveram uma idéia. Eles apenas recalculariam uma pequena pilha de dez cartões em torno do erro. E como se podia inserir dez cartões na máquina mais rápido do que a pilha de cinqüenta cartões, eles andariam mais rápido com essa outra pilha enquanto continuavam com os cinqüenta cartões e com a peste se espa lhando. Mas com esta outra coisa efetuava-se os cálculos mais rapidamente, e no final eles poderiam fechar tudo e fazer as correções. Muito inteligente. Foi isso o que os rapazes fizeram para acelerar o trabalho. Não havia ou tro jeito. Se tivessem de parar para tentar consertar, teríamos perdido muito tempo. Não tínhamos tempo a perder. Era isso que eles estavam fazendo. É claro que você já sabe o que aconteceu enquanto eles faziam isso. Eles encontraram um erro na pilha azul. Agora eles tinham uma pilha amarela com um pouco menos de cartões que estava indo mais rápido do que a pilha azul. Quando eles estavam enlouquecendo - porque, depois de dar um jeito na pi lha azul, eles tinham de dar um jeito na pilha branca -, o chefe chega. "Deixe-nos sozinhos" - disseram. Eu os deixei a sós e a coisa funcionou. Resolvemos o problema a tempo e foi assim que aconteceu. �
No início, eu era subordinado. Mais tarde, tornei-me chefe de grupo. Co h n eci alguns homens fantásticos. Conhecer todos esses físicos maravilhosos foi uma das grandes experiências de minha vida.
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É claro que Enrico Fermi* estava lá. Uma vez ele veio de Chicago, para dar consultoria, ajudar-nos se tivéssemos alguns problemas. Tínhamos uma reunião com ele, eu estava fazendo alguns cálculos e obtivera alguns resulta dos. Os cálculos eram tão elaborados que se tornavam difíceis. Geralmente, eu era o perito nesse tipo de coisa: sempre podia prever qual seria a resposta, ou quando obtinha a resposta eu podia explicá-la. Mas essa coisa era tão com plexa que eu não podia explicar por que ela era daquele jeito. Então contei a Fermi que estava trabalhando nesse problema e comecei a descrever os resultados. Ele disse: "Espere, antes que você me diga o resulta do, deixe-me pensar. Vai ser assim (ele estava certo) , e vai resultar nisso por causa disso e daquilo. E há uma explicação perfeitamente clara para isso." Ele estava fazendo o que eu supostamente era craque em fazer, dez vezes melhor do que eu. Foi uma lição para mim. John Von Neumann, o grande matemático, também estava lá. Costumá vamos passear aos domingos. Passeávamos pelos desfiladeiros, em geral com Bethe e Bob Bacher. Era muito bom. Von Neumann deu-me uma idéia inte ressante: você não tem por que ser o responsável pelo mundo no qual você vive. Assim, desenvolvi um poderoso senso de irresponsabilidade social a par tir do conselho de Von Neumann. Desde então, sou um homem muito feliz. Mas foi Von Neumann quem plantou a semente que gerou minha irresponsa bilidade ativa! Também conheci Niels Bohr.** Naquela época, seu nome era Nicholas Baker, e ele veio para Los Alamos com Jim Baker, seu filho, cujo nome verda deiro é Aage Bohr. Eles vieram da Dinamarca, e eram físicos muito famosos, como se sabe. Mesmo para os poderosos, Bohr era um deus maior. Uma vez: estávamos em uma reunião, mas assim que ele chegou todos queriam ver o grande Bohr. Havia muita gente e estávamos discutindo os pro blemas da bomba. Eu estava em algum lugar no canto, lá atrás. Ele ia-e vinha, e tudo que pude vislumbrar dele foi por entre as cabeças das pessoas. Na manhã do dia que ele voltaria a Los Alamos, recebi uma ligação. *Nota do Tradutor: Enrico Fermi ( 1 90 1 - 1 954), físico nuclear italiano naturalizado ameri cano. Construiu o primeiro reator nuclear. Considerado por muitos o maior cientista ita liano dos tempos modernos, extremamente criativo tanto como teórico como experimen tal. Prêmio Nobel de Física de 1 93 8 . **Nota do Tradutor: Niels Henrik David Bohr ( 1 885 - 1 962), físico teórico dinamarquês pioneiro da teoria quântica da estrutura atômica. Prêmio Nobel de Física de 1 922.
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- Alô, Feynman? - Sim. - Aqui é Jim Baker. - Era o filho dele. - Meu pai e eu gostaríamos de ter uma conversa com você. - Comigo? Eu sou Feynman,' sou apenas um - Está bem. Às oito horas, OK? Então, às oito horas da manhã, antes que os outros acordassem, fui ao local marcado. Entramos em um escritório na área técnica e ele diz: "Estivemos anali sando como poderemos tornar a bomba mais eficiente, e temos a seguinte idéia." Eu digo: "Não, não vai funcionar. Não é eficiente ... blá, blá, blá." Então ele diz: "Que tal isso e aquilo?" Eu disse: "Parece um pouco melhor, mas aqui temos embutida essa idéia que pode ser louca." A conversa continuou por cerca de duas horas, avançando e recuando, passando por muitas idéias, discutindo-se. O grande Niels continuou acen dendo seu cachimbo; o cachimbo sempre se apagava. Ele falava de uma forma que era ininteHgível - huuum, huuum, difícil de entender. Eu podia entender melhor o que o filho dele falava. "Bem", finalmente ele disse, acendendo seu cachimbo: "Acho que agora podemos chamar os chefões." Então eles chamaram todos os outros sujeitos e discutimos o assunto com eles. O filho contou-me então o que aconteceu. Na última vez que estiveram lá, Bohr dissera ao seu filho: "Lembra do nome daquele rapazinho ali atrás? Ele é o único que não tem medo de mim, e dirá que tive uma idéia louca. Então, da próxima vez que quisermos discutir uma idéia, não poderemos fazê-lo com esses caras que dizem sim a tudo que falo. Chame aquele rapaz e primeiro dis cutiremos com ele." Sempre fui pateta para essas coisas. Nunca sabia com quem estava falan do. Estava sempre preocupado com a física. Se a idéia parecesse ser ruim, eu dizia que ela parecia ser ruim. Se parecesse ser boa, dizia que parecia ser boa. Simples proposição. Sempre vivi assim. É bom, é agradável - se você puder fazê-lo. Tenho sorte na vida por poder fazer isso. Depois de fazermos os cálculos, o próximo passo era, é claro, o teste. Na u q ela ocasião, eu estava em casa, tirando umas curtas férias depois da morte de minha esposa, e recebi uma mensagem que dizia: " O bebê deve nascer dia tal." _ _ _ _
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Voltei de avião, e cheguei exatamente na hora em que os ônibus estavam saindo; fui direto para o local determinado e ficamos lá esperando, a trinta quilômetros de distância. Tínhamos um rádio, e eles deveriam dizer-nos quando a detonação aconteceria e assim por diante, mas o rádio não funcio nava, e nunca soubemos o que estava acontecendo. Mas, um pouco antes da hora em que a bomba deveria ser detonada, o rádio começou a funcionar e eles informaram às pessoas que estavam longe como nós que faltavam vinte segundos, ou coisa assim. Os outros estavam mais perto, cerca de dez quilô metros de distância. Eles nos deram óculos escuros para que pudéssemos assistir. Óculos es curos! A trinta quilômetros de distância não se podia ver nada com óculos es curos. Aí percebi que a única coisa que realmente poderia afetar nossos olhos (a luz brilhante nunca poderia ferir seus olhos) é a luz ultravioleta. Fiquei atrás do pára-brisa de um caminhão, porque o ultravioleta não passa pelo vi dro, de forma a ficar seguro, e assim pude assistir àquela coisa danada. Chega a hora, e aquele tremendo clarão é tão brilhante que eu me escon do, e vejo aquela mancha púrpura no chão no caminhão. Eu disse: "Não é isso. É uma imagem posterior." Então olho de novo para cima e vejo aquela luz branca transformando-se em amarela e depois em laranja. Formam-se nuvens e desaparecem de novo - devido à compressão e à expansão da onda de choque. Por fim, uma grande bola laranja, com um centro extremamente brilhan te, transforma-se em uma bola laranja que começa a crescer e a encrespar-se, fica um pouco escura na borda e depois o que se vê é uma grande bola de fu maça com clarões no interior devidos ao fogo em andamento, o calor. Isso tudo levou cerca de um minuto. Foi uma série que foi do brilho à escu ridão' e eu vi isso. Fui praticamente o único a realmente olhar aquela coisa - o primeiro teste da Trindade. Todos os demais estavam usando óculos escuros, e as pessoas que estavam a dez quilômetros não puderam ver porque mandaram todos deitar-se no chão. Sou provavelmente o único que viu a olho nu. Finalmente, cerca de um minuto e meio depois, há um barulho enorme e repentino - bum, e então um estrondo, como um trovão - e foi isso que me convenceu. Ninguém havia falado nada durante esse negócio todo. Estáva mos apenas assistindo, quietos. Mas esse som liberou todo mundo - especial mente a mim, porque a solidez do som àquela distância significava que real mente havia funcionado.
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homem que estava perto de mim falou: "O que é aquilo?" Eu disse: "Foi a bomba." O homem era William Laurence. Ele estava ali para redigir um artigo des crevendo toda a situação. Eu fora designado para levá-lo para conhecer o lu gar. Então descobriu-se que era tu,po muito técnico para ele, e depois veio H. D. Smyth, e mostrei-lhe o lugar. Então, uma das coisas que fizemos foi entrar em uma sala em que no alto de um estreito pedestal havia uma pequena bola banhada em prata. Podia-se colocar a mão sobre ela. Era quente, radioativa. Era plutônio. E ficamos na porta dessa sala conversando sobre isso. Esse era um novo elemento, criado pelo homem, que nunca havia existido na natureza, exceto por um curto período, provavelmente bem no início de tudo. E cá esta va ele, todo isolado e radioativo, e tinha essas propriedades. E nós o tínhamos criado. Ele tinha um enorme valor. Enquanto isso, você sabe como é quando as pessoas conversam - você fica como que se balançando e coisas assim. Ele estava chutando o retentor da porta, veja bem, e eu lhe disse: "Sim, certamente esse retentor é adequado para essa porta." O retentor era um hemisfério de vinte e cinco centímetros, feito de um metal amarelado - na verdade, era feito de ouro. Aconteceu que precisávamos fazer uma experiência para verificar quan tos nêutrons eram refletidos por diferentes materiais, para que pudéssemos economizar nêutrons e não tivéssemos de usar tanto material. Havíamos tes tado muitos materiais diferentes. Tínhamos testado platina, zinco, bronze, ouro. Assim, quando fizemos os testes com ouro, sobraram esses pedaços, e alguém teve a brilhante idéia de usar aquela enorme bola de ouro para fazer um retentor para a porta da sala que continha o plutônio. Depois que tudo acabou, houve uma grande excitação em Los Alamos. Todo mundo estava comemorando, todos ali estávamos correndo de um lado para o outro. Sentei na traseira de um Jeep e bati tambor, e coisas assim. Mas lembro que um homem, Bob Wilson, ficou ali sentado, desanimado. Eu disse: "Por que você está chateado? " Ele disse: "Foi uma coisa terrível o que fizemos." Eu disse: "Mas foi você quem começou. Você nos levou a isso." Você percebe que o que me aconteceu - o que aconteceu com todos nós - é que começamos por uma causa justa; éntão você trabalha muit para realizar algo, e isso é um prazer, é excitante. E você pára de pensar, sabe como é: você simplesmentepára. Bob Wilson foi o único que ainda pensou nisso naquela hora. o
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Um pouco depois, voltei para a civilização e fui lecionar em ComeU, e a minha primeira impressão foi muito estranha. Não consigo mais entendê-la, mas naquela época a sensação foi muito forte. Por exemplo, sentei-me em um restaurante em Nova York, olhei para os edifícios e comecei a pensar, sabe, sobre o poder do raio de destruição da bomba de Hiroshima e coisas assim . A que distância a Rua 34 está daqui? Todos aqueles prédios, tudo destruído e assim por diante. E continuei e vi as pessoas construindo uma ponte, ou es tavam fazendo uma rodovia nova, e pensei: eles são loucos, simplesmente não entendem, não entendem. Por que estão fazendo coisas novas? É tão inútil. Mas, felizmente, há 40 anos que esse trabalho vem sendo inútil, não? Eu estava errado sobre a inutilidade de construir pontes e fico feliz em ver que aquelas pessoas tiveram o bom senso de seguir em frente. ..
Arrom bador encontra arrom bador
Aprendi a arrombar fechaduras com um sujeito chamado Leo Lavatelli. Acontece que arrombar o tambor de fechaduras comuns - como o das fe chaduras Yale - é fácil. Você tenta rodar a fechadura colocando uma chave de fenda no buraco (você deve empurrar para o lado para deixar o buraco aberto) . O tambor não roda porque há uns ferrolhos lá dentro que devem ser levantados até exatamente a altura certa (pela chave) . Uma vez que ela não é fabricada com total perfeição, a fechadura é mantida no lugar mais por um ferrolho do que pelos outros. Mas se você introduzir um pedaço de arame - talvez um clipe com um leve encurvamento na ponta - e movê-lo para a frente e para trás dentro da fechadura, mais cedo ou mais tarde você empurrará o ferrolho que está contribuindo mais para a sustentação até a altura exata. A fechadura cede, só um pouco, e o primeiro ferrolho fica le vantado - fica preso na borda. Então a maior parte da carga passa a ser sustentada por outro ferrolho, e você repete o mesmo processo aleatório por mais alguns minutos, até que todos os ferrolhos sejam empurrados para cima. O que geralmente acontece é que a chave de fenda escorrega, ouve-se tic-tic-tic, e isso deixa você louco. Há algumas molas que empurram os ferro lhos de volta para baixo quando se retira a chave, e pode-se ouvir o estalido que" eles fazem quando se retira a chave de fenda. (Às vezes, você retira a cha ve de fenda intencionalmente para ver se está dando certo - você pode, por exemplo, estar empurrando o lado errado.) O processo é algo parecido com o mito de Sísifo:* você está sempre rolando montanha abaixo.
*Nota do Tradutor: De acordo com a mitologia, Sísifo, rei de Corinto, foi condenado a ro la� uma enorme rocha !l1{)ntanha acima; quando já estava próximo ao topo, a rocha rolava montanha abaixo e o infeliz Sísifo tinha de recomeçar o trabalho.
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É um processo simples, mas a prática ajuda muito. Você acaba aprenden do o quanto de força deve-se usar para empurrar - força o bastante para man ter os ferrolhos levantados, mas nem tanta para que eles não fiquem presos na primeira saliência. A maioria das pessoas não percebe que estão sempre fican do trancadas por fechaduras, em todos os lugares, e que não é muito difícil abri-las. Quando começamos a trabalhar no projeto da bomba atômica em Los Alamos, tudo era feito tão às pressas que nada ficava realmente em ordem. Todos os segredos do projeto - tudo sobre a bomba atômica - eram mantidos em armários de arquivo que, quando tinham fechaduras, eram trancados com cadeados que possuíam, talvez, apenas três ferrolhos: eram tão fáceis de abrir como tirar doce de uma criança. Para aumentar a segurança, a fábrica equipava os arquivos com uma enorme tranca que passava entre puxadores das gavetas e era fechada com um cadeado. Alguém me disse: "Veja esse troço novo que a oficina colocou aí. E agora, você pode abrir o armário? " Olhei a parte de trás do armário e vi que a s gavetas não tinham u m fundo sólido. Havia uma fenda com um fio de arame em cada uma das gavetas preso a uma peça capaz de deslizar (esta por sua vez mantinha os papéis em pé den tro da gaveta) . Puxei por trás, a peça deslizou para trás, comecei a retirar os papéis pela fenda. "Veja!", disse. "Eu sequer tenho de arrombar a fechadura." Los Alamos era um lugar onde todos cooperavam, e sentíamos que era nossa responsabilidade mostrar o que poderia ser melhorado. Eu continuava a reclamar que aquela coisa não era segura, e, apesar de todo mundo pensar que era seguro porque havia trincos de aço e cadeados, isso não queria dizer nada. Para demonstrar que as fechaduras não significavam nada, sempre que queria o relatório de alguém e a pessoa não estava por perto eu simplesmente ia ao escritório dela, abria o arquivo e apanhava o relatório. Quando eu acaba va de utilizá-lo, o devolvia à pessoa: - Obrigada pelo relatório. - Onde você pegou? - No arquivo. - Mas eu tranquei o arquivo! - Eu sei que você trancou. As fechaduras não são boas.
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Finalmente, chegaram alguns arquivos que possuíam cadeados com combinação, fabricados pela companhia Mosler Safe. Eles tinham três gave tas. Tirando a gaveta de cima, soltava-se as outras gavetas pelo trinco. Abria-se a gaveta de cima girando um tambor de combinação para a esquer da, direita e esquerda, conforme a �ombinação, e depois direto para o número dez, que faria com que um ferrolho interno retrocedesse. Todo o arquivo po dia ser trancado fechando-se primeiro as gavetas inferiores, depois a última gaveta de cima e desmarcando o tambor de combinação do número dez, aquele que permitia empurrar o ferrolho para cima. Naturalmente, esses novos arquivos tornaram-se um desafio imediato. Eu adorava quebra-cabeças. Alguém tenta fazer alguma coisa para manter a outra pessoa afastada; deve haver um jeito de furar esse esquema! Primeiro, eu devia entender como a fechadura funcionava; então me ba seei na do meu escritório. Ela funcionava assim: havia três discos montados sobre um único eixo, um atrás do outro; cada um tinha um furo em um lugar diferente. A idéia era alinhar os furos para que, quando girássemos o tambor até o dez, a pequena tração da fricção empurrasse o ferrolho para a fenda criada pelos furos dos três discos. Agora, para girar os discos, havia um ferrolho saindo da parte de trás do tambor de combinação, e um ferrolho saindo do primeiro disco, com o mes mo raio. Na primeira volta do tambor de combinação, você pega o primeiro disco. Na parte de trás do primeiro disco havia um ferrolho com o mesmo raio que o ferrolho da frente do segundo disco; então, quando a segunda volta no tambor de combinação era dada, da mesma forma, você alcançava o segundo disco. Continue girando o tambor, e um ferrolho na parte de trás do segundo disco prenderá um ferrolho na frente do terceiro disco, que você agora colo cou na posição correta em relação ao primeiro número da combinação. Agora você deve dar uma volta inteira com o tambor de combinação na outra direção e, então, passar para o segundo número da combinação para prender o segundo disco. Mais uma vez você muda a direção e coloca o primeiro disco no lugar cer to. Agora os furos estão alinhados, e, ao girar o tambor até o dez, você abre o armário. Bem, esforcei-me bastante e não consegui nada. Comprei alguns livros sobre arrombadores de cofres, mas eram todos iguais. No começo do livro, há
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algumas histórias sobre as fantásticas realizações do arrombador, tal como a mulher presa em um frigorífico, que estava congelando, mas o arrombador, pendurado de cabeça para baixo, abre o frigorífico em dois minutos. Ou há al gumas peles preciosas ou barras de ouro dentro da água, no fundo do mar, e o arrombador mergulha e abre a arca. Na segunda parte do livro, eles contam como arrombar um cofre. Há todo tipo de coisa tola, estúpida, como: "Seria uma boa idéia tentar uma data para a combinação, porque muitas pessoas gostam de usar datas como códi gos." Ou: "Pense na psicologia do dono do cofre e o que ele usaria como com binação." E: "A secretária geralmente fica preocupada se vai esquecer a com binação do cofre; então ela a anota em um dos seguintes lugares - na borda de sua mesa, em uma lista de nomes e endereços . . . " e assim por diante. Mas eles realmente revelaram-me algo sensato em relação à abertura de cofres comuns, e é fácil entender. Os cofres comuns têm um puxador extra; então, se você empurrar o puxador para baixo, estará girando o tambor de combinação, as coisas sendo desiguais (como com as fechaduras) , a força do puxador tenta empurrar o ferrolho para os furos (que não estão alinha dos) é equilibrada mais por um disco do que por outro. Quando o furo da quele disco fica debaixo do ferrolho, há um leve estampido que pode ser ou vido com um estetoscópio, ou uma leve diminuição da fricção que pode ser sentida (você não tem de esfregar com a ponta dos dedos) , e você sabe: "Esse é um número!" Não se sabe se esse é o primeiro, o segundo ou o terceiro número, mas pode-se ter uma boa idéia sobre isso, descobrindo quantas vezes você tem de girar o tambor para o outro lado para ouvir o mesmo estampido de novo. Se for um pouco menos do que uma, é o primeiro disco; se for um pouco menos do que duas, é o segundo disco (deve-se fazer uma correção para levar em conta a espessura dos ferrolhos) . Esse truque útil serve apenas para cofres comuns que têm o puxador ex tra, e fiquei frustrado com isso. Tentei todo tipo de truques mais simples com os armários, por exemplo, descobrir como soltar os trincos das gavetas inferiores, sem abrir a gaveta de cima, tirando um parafuso na frente e empurrando com um pedaço de arame de cabide. Tentei girar o tambor de combinação muito rapidamente e depois ir até o dez, provocando assim uma pequena fricção, que eu esperava que, de algum
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modo, fosse fazer com que um disco parasse no ponto certo. Tentei todo tipo de coisa. Eu estava desesperado. Também fiz uma série de estudos sistemáticos. Por exemplo, uma combi nação típica era 69-32-2 1 . Quão errado pode ser um número quando se está abrindo um cofre? Se o número fosse 69, o 68 funcionaria? O número 67 funcionaria? Nas fechaduras específicas que tínhamos, a resposta era sim para os dois, mas o 66 não funcionava. Podia haver uma diferença de dois em qualquer sentido. Isso significava que você tinha de tentar apenas um em cada cinco números; então, você podia tentar zero, cinco, dez, quinze, e assim por diante. Com vinte números desse tipo em um tambor de 1 00, havia 8 mil pos sibilidades em vez de um milhão, que haveria se tivéssemos de tentar todo e qualquer número. Agora a dúvida era quanto tempo levaria para eu tentar as 8 mil combina ções? Suponha que eu tivesse encontrado os dois primeiros números corre tos de uma combinação que estou tentando descobrir. Digamos que os núme ros sejam 69-32, mas não sei - encontrei 70-30. Agora posso tentar os vinte terceiros números possíveis sem ter de determinar os dois primeiros números todas as vezes. Agora suponhamos que eu tenha apenas o primeiro número da combinação certa. Depois de tentar os vinte números no terceiro disco, movo apenas um pouco o segundo tambor e, então, tento outros vinte números no terceiro tambor. Pratiquei o tempo todo com meu próprio cofre, e assim podia fazer o pro cesso com a maior rapidez possível, sem ficar perdido em relação a que núme ro eu estava forçando e com isso bagunçando o primeiro número. Como uma pessoa que pratica prestidigitação, cheguei a um ritmo que me permitia tentar os quatrocentos números reversos possíveis em menos de meia hora. Isso sig nificava que eu podia abrir um cofre, no máximo, em oito horas - com um tempo médio de quatro horas. Havia outro cara em Los Alamos, chamado Staley, que também se interessa va por fechaduras. De vez em quando conversávamQs sobre isso, mas não está vamos evoluindo muito. Depois de ter essa idéia sobre como abrir um cofre em um tempo médio de quatro horas, eu queria mostrar a Staley como fazê-lo; então fui ao escritório de alguém no departamento de computação e perguntei: ''Você se importa se eu usar o seu cofre? Gostaria de mostrar uma coisa a Staley." Nesse meio-tempo, alguns caras do departamento de computação chega ram, e um deles disse: "Hei, todo mundo; Feynman vai mostrar a Staley como
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abrir um cofre, há, há, há!" Eu não ia realmente abrir o cofre; eu ia apenas mostrar a Staley essa forma de rapidamente tentar os dois primeiros números sem ficar perdido e sem ter de ajustar o primeiro número novamente. Então comecei: "Suponhamos que o primeiro número seja quarenta e que estejamos tentando o quinze como o segundo número. Vamos para frente e para trás, dez; voltamos mais cinco e avançamos, dez; e assim por diante. Agora já tentamos todos os terceiros números possíveis. Agora tentaremos vinte para o segundo número: vamos para frente e para trás, dez; voltamos mais cinco e avançamos, dez; voltamos mais cinco e avançamos, click!" Meu queixo caiu; o primeiro e o segundo número estavam corretos! Ninguém reparou minha expressão porque eu estava de costas para eles. Staley estava muito surpreso, mas nós dois percebemos rapidamente o que havia acontecido; então tirei a gaveta de cima com um floreio e disse: "E aí está!" Staley falou: "Entendo o que você quer dizer; é um esquema muito bom" - e saímos. Todo mundo estava estupefato. Foi totalmente ao acaso. Agora eu realmente tinha uma reputação de saber abrir cofres. Levei cerca de um ano e meio para chegar àquele ponto (é claro, eu tam bém estava trabalhando na bomba!) , mas descobri que havia derrotado os co fres, no sentido de que se realmente houvesse um problema - se alguém esti vesse perdido, ou morto, ou ninguém mais soubesse a combinação, mas pre cisasse do material guardado no arquivo, eu poderia abri-lo. Depois de ler as coisas absurdas que os arrombadores de cofre diziam, achei que esse era um feito bastante respeitável. Não havia diversão alguma em Los Alamos, e tínhamos de divertir-nos de alguma forma, e, assim, passar o tempo com a fechadura Mosler do meu ar quivo era uma das minhas diversões. Um dia observei algo interessante: quando a fechadura estava aberta, a gaveta retirada e o tambor colocado no dez (que é o que as pessoas fazem quando abrem seus arquivos e estão tirando os papéis dele) , o ferrolho ainda está abaixado. Agora, o que significa o ferro lho ainda estar abaixado? Significa que o ferrolho passa pela fenda feita pelos três discos, que ainda estão devidamente alinhados. Aaaaahhhh! Agora, se eu mover o tambor um pouco e tirá-lo do dez, o ferrolho sobe; se eu voltar imediatamente ao dez, o ferrolho desce de novo, porque ainda não alcancei a fenda. Se eu continuar a desviar-me do número dez de cinco em cinco, em algum ponto o ferrolho não descerá de novo quando eu voltar ao
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dez: a fenda foi alcançada. O número exatamente antes, que ainda permite que o ferrolho desça, é o último número da combinação! Percebi que podia fazer exatamente a mesma coisa para descobrir o se gundo número: assim que descubro o último número, posso girar o tambor no outro sentido e novamente, e� grupos de cinco, empurrar o segundo dis co, pouco a pouco, até que o ferrolho não desça. O número imediatamente anterior seria o segundo número. Se eu fosse bastante paciente, poderia descobrir os três números dessa forma, mas a quantidade de trabalho envolvida em conseguir o primeiro nú mero da combinação por este esquema complexo seria muito maior do que simplesmente tentar os vinte primeiros números possíveis com os outros dois números que você já sabe, quando o arquivo está fechado. Pratiquei muito até ser capaz de descobrir os dois últimos números de um arquivo aberto, praticamente sem olhar para o dial. Assim, quando eu estava no escritório de alguém discutindo algum problema de física, encostava-me em seu arquivo aberto e, como alguém que balança as chaves distraidamente enquanto conversa, girava o mostrador de um lado para o outro, de um lado para o outro. Algumas vezes eu colocava meu dedo no ferrolho, e assim não precisava ficar olhando se ele estava subindo. Dessa forma, descobri os dois últimos números de diversos arquivos. Quando voltava ao meu escritório, es crevia os dois números em um pedaço de papel, que eu mantinha a cadeado no meu arquivo. Eu tirava o cadeado toda vez que queria apanhar o papel - eu achava que ali era um lugar bastante seguro para eles. Depois de algum tempo, minha reputação começou a espalhar-se, por que aconteciam coisas assim: alguém dizia: "Hei, Feynman! Christy está fora da cidade e precisamos de um documento que está no cofre dele - você pode abri-lo?" Se fosse um cofre que eu soubesse que eu não sabia os dois últimos núme ros, simplesmente dizia: "Desculpe, mas não posso fazer isso agora. Tenho esse trabalho para fazer." Caso contrário, dizia: "Sim, mas tenho de pegar minhas ferramentas." Eu não precisava de ferramenta alguma, mas voltava a meu escritório, abria o meu arquivo e olhava no meu pedaço papel: "Christy 35, 60." Então pegava uma chave de fenda, ia ao escritório de Christy e fecha va a porta. Obviamente, não se deve permitir que todo mundo saiba fazer isso! Eu ficava lá sozinho e abria o cofre em poucos minutos. Tudo que tinha a fazer era tentar o primeiro número, no máximo, vinte vezes, então sentar um
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pouco, ler uma revista ou alguma coisa, por quinze ou vinte minutos. Não ha via por que tentar fazer isso parecer fácil demais; alguém poderia perceber que havia algum truque! Depois de um tempo, eu abria a porta e dizia: "Está aberto." As pessoas achavam que eu abria os cofres do nada. Eu podia manter a idéia, que começou com aquele acidente com Staley, de que podia tranqüila mente abrir cofres. Ninguém percebeu que eu estava tirando os dois primei ros números de seus cofres, apesar de estar fazendo isso o tempo todo (ou tal vez exatamente por isso) , como um trapaceiro passeando o tempo todo com um baralho. Eu sempre ia a Oak Ridge verificar a segurança da usina de urânio. Ti nha-se pressa o tempo todo, porque eram tempos de guerra, e uma vez tive de ir lá durante um fim de semana. Era domingo, e fomos ao escritório de um companheiro - um general, um diretor ou vice-presidente de alguma compa nhia, mais alguns outros poderosos e eu. Reunimo-nos para discutir um rela tório que estava no cofre do sujeito - um cofre secreto -, quando, de repente, ele descobriu que não sabia a combinação. Sua secretária era a única que ti nha a combinação; então ele ligou para a sua casa e soube que ela havia ido a um piquenique nas montanhas. Enquanto isso acontecia, eu perguntei: "Você se importa se eu mexer no cofre? " "Há, há, há - de forma alguma!" Então fui até o cofre e comecei a mexer com ele . . Eles começaram a discutir como conseguiriam um carro para tentar en contrar a secretária, e o sujeito estava ficando cada vez mais sem graça porque todas essas pessoas estavam esperando e ele era tão burro que não sabia como abrir o seu próprio cofre. Todo mundo estava tenso e furioso com ele, quando click! - o cofre abriu. Em dez minutos eu havia aberto o cofre que continha todos os documen tos secretos da usina. Eles estavam pasmos. Aparentemente, os cofres não eram muito seguros. Foi um choque terrível: todo esse material confidencial, supersecreto, trancado neste maravilhoso cofre secreto, e esse cara o abre em dez minutos! É claro que pude abrir o cofre por causa do meu eterno hábito de deixar inicialmente os dois últimos números fora. Quando fui a Oak Ridge no mês anterior, estive no mesmo escritório e naquela ocasião o cofre estava aberto e
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copiei os números de forma inconsciente - eu sempre praticava minha obses são. Apesar de não tê-los escrito, lembrava-me vagamente quais eram. Pri meiro tentei 40- 1 5, depois 1 5 -40, mas nenhum deles funcionou. Então tentei 1 0-45 com todos os primeiros números, e o cofre se abriu. Aconteceu algo parecido ell1. um outro fim de semana, quando eu estava visitando Oak Ridge. Eu havia feito um relatório que tinha de ser aprovado por um coronel, e o relatório estava em seu cofre. Todo mundo mantinha os documentos em arquivos parecidos com os de Los Alamos, mas ele era um coronel e assim tinha um cofre muito mais sofisticado, de duas portas, com grandes puxadores presos à estrutura que movimentavam ferrolhos de aço, de 3/4 de polegada de espessura. As grandes portas de bronze estavam aber tas, e ele retirou meu relatório para lê-lo. Não tendo tido uma oportunidade de conhecer cofres realmente bons, eu disse a ele: "O senhor se importa se, enquanto lê meu relatório, eu der uma olhada no seu cofre? " - Vá em frente - ele disse, convencido de que eu não poderia fazer nada. Olhei a parte de trás de uma das sólidas portas de bronze e descobri que o tambor de combinação estava conectado a uma pequena fechadura que pare cia exatamente igual à pequena unidade que havia em meu arquivo em Los Alamos. Mesma companhia, mesmo pininho, exceto que, quando o ferrolho descia, os grandes puxadores do cofre podiam mover algumas hastes para o lado, e com um punhado de alavancas você podia empurrar todos aqueles fer rolhos de aço de % de polegada para trás. O sistema todo de alavanca, ao que parecia, dependia do mesmo pequeno ferrolho que trancava os arquivos. Apenas em nome da perfeição profissional, para ter certeza de que era o mesmo, deduzi os dois últimos números da mesma forma que fazia com os cofres de arquivo. Enquanto isso, ele lia o relatório. Quando terminou, disse: "Tudo bem, está bom." E colocou o relatório no cofre, segurou os dois grandes puxadores e fechou as duas portas de uma só vez. Dá uma impressão tão boa quando elas fecham, mas sei que é meramente psicológico, pois não são nada além da mesma bendita fechadura. Não pude evitar apoquentá-lo um pouco (sempre tive algo em relação a militares, que vestiam aqueles uniformes maravilhosos) , então falei: "Da for ma como o senhor fecha o cofre, tenho a impressão que o senhor acha que o material está seguro aí."
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- É claro. - O único motivo pelo qual o senhor acha que o material está seguro aí é porque os civis chamam isso de "cofre-forte". (Usei a palavra "civis" para dar a impressão de que ele havia sido concebido pelos civis.) Ele ficou muito zangado. "O que você quer dizer? Que não é seguro?" - Um bom arrombador poderia abri-lo em trinta minutos. - Você pode abri-lo em trinta minutos? - Eu disse um bom arrombador de cofres. Eu levaria cerca de quarenta e cinco minutos. - Bem! - ele disse. - Minha esposa está me esperando em casa com uma sopa, mas vou ficar aqui e observar você, e você vai sentar aí, mexer nisso por quarenta e cinco minutos e não vai abri-lo! - Ele sentou em sua grande cadei ra de couro, colocou os pés sobre a mesa e ficou lendo. Com total confiança, peguei uma cadeira, levei-a até o cofre e sentei-me em frente a ele. Comecei a girar o tambor aleatoriamente, só para dar a im pressão de alguma ação. Depois de cerca de cinco minutos, que é bastante tempo quando você está sentado esperando, ele perdeu um pouco a paciência: "Bem, você está conse guindo alguma coisa?" - Com um negócio como esse, ou você abre ou não. Achei que daí a um ou dois minutos seria um bom tempo; então comecei a trabalhar a sério, e dois minutos depois, click - o cofre estava aberto. O queixo do coronel caiu e seus olhos saltaram. - Coronel - eu disse, em um tom sério - deixe-me contar-lhe algo sobre essas fechaduras : quando se deixa aberta a porta do cofre ou a gaveta de cima do arquivo, é muito fácil obter a combinação. Foi o que eu fiz enquanto o senhor lia meu relatório, só para demonstrar o perigo. O senhor deveria insistir que todos mantenham as gavetas de seus arquivos trancadas en quanto estão trabalhando, porque, quando estão abertas, elas são muito, muito vulneráveis. - Sim! Entendo o que você quer dizer! É muito interessante! - Depois dis so ficamos do mesmo lado. Da outra vez que fui a Oak Ridge, todas as secretárias e as pessoas que me conheciam falavam: "Não passe por aqui! Não passe por aqui!" O coronel havia circulado uma nota entre todos na usina, que dizia: "Du rante sua última visita, o Sr. Feynman alguma vez foi ao seu escritório, esteve
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perto dele ou passou por ele?" Algumas pessoas responderam que sim; outras disseram que não. As que responderam que sim receberam outra nota: "Favor mudar a combinação do seu cofre." Essa foi a solução dele: eu era o perigo. Então todos tiveram de mudar a combinação de seus cofres por minha causa. É muito maçante mudar uma combinação e lembrar a nova; então todos estavam furiosos comigo e não queriam que eu chegasse perto deles: eles poderiam ter de mudar a combina ção mais uma vez. É claro que ainda deixavam o arquivo aberto enquanto es tavam trabalhando! Todos os documentos que já havíamos usado em Los Alamos eram guar dados em uma biblioteca: tratava-se de uma sala sólida, de concreto, com uma grande e bela porta que tinha uma roda de metal que girava - como um cofre de banco. Durante a guerra, eu havia tentado examiná-la mais de perto. Conhecia a bibliotecária e implorei-lhe que me deixasse brincar com a porta só um pou quinho. Eu era fascinado pela porta: era a maior fechadura que eu já vira! Des cobri que nunca poderia usar meu método de descobrir os dois últimos núme ros para poder entrar. Na verdade, ao girar a maçaneta enquanto a porta estava aberta, fiz a fechadura fechar-se, assim a lingüeta estava para fora e eles não puderam fechá-la de novo até a garota vir e abrir a fechadura novamente. Esse foi o fim da minha diversão com aquela fechadura. Não tive tempo de descobrir como ela funcionava; estava muito além de minha capacidade. No verão depois da guerra, eu tinha de elaborar alguns documentos e ter minar alguns trabalhos; então voltei de ComeU, onde havia lecionado durante o ano, para Los Alamos. No meio de meu trabalho, tive de fazer referência a um documento que havia escrito antes, mas do qual não me lembrava, e que estava guardado na biblioteca. Fui até lá pegar o documento, e havia um soldado caminhando de um lado para o outro, com uma arma. Era um domingo, e depois da guerra a biblioteca fechava aos domingos. Então lembrei-me do que um grande amigo meu, Frederic de Hoffman, havia feito. Ele estava na seção que liberava documentos secretos. Depois da guerra, o exército estava pensando em liberar alguns documentos de caráter confidencial, e ele tinha de ir e vir à biblioteca tantas vezes - examinar esse do cumento, examinar aquele, verificar isso, verificar aquilo - que estava enlou quecendo! Então ele mantinha uma cópia de todos os documentos - todos os segredos da bomba atômica - em nove armários de arquivo em seu escritório.
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Fui até o escritório dele, as luzes estavam acesas. Parecia que quem quer que estivesse lá - talvez a secretária - tivesse saído por uns instantes; então esperei. Enquanto esperava, comecei a mexer no tambor de combinação de um dos arquivos. (A propósito, eu não tinha os dois últimos números dos cofres de Hoffman; eles instalaram os cofres depois da guerra, quando eu já tinha saído.) Comecei a brincar com um dos tambores de combinação e a pensar nos li vros de arrombadores de cofre. Pensei comigo mesmo: "Nunca fiquei muito impressionado com os truques descritos naqueles livros, por isso nunca tentei fazê-los. Mas vejamos se consigo abrir o cofre de Hoffman seguindo o livro." Primeiro truque, a secretária: ela teme esquecer a combinação, por isso ela a anota em algum lugar. Comecei a procurar em alguns dos lugares men cionados no livro. A escrivaninha estava trancada, mas tinha uma fechadura comum, como a que Leo Lavatelli me ensinara a abrir -ping! Olho os lados da mesa: nada. Depois procurei nos papéis da secretária. Encontrei uma folha de papel que todas as secretárias tinham, com as letras gregas cuidadosamente dese nhadas - assim elas poderiam reconhecê-las nas fórmulas matemáticas - e os respectivos nomes delas. E lá, escrito descuidadamente no topo do papel, es tava 1t 3 , 1 4 1 59. Lá estavam seis dígitos, mas por que cargas uma secretária tem de saber o valor numérico de 1t? Era óbvio; não havia outro motivo! Fui aos arquivos e tentei o primeiro: 3 1 -4 1 -59. Não abriu. Então tentei 59-41 -3 1 . Também não funcionou. Então 95- 1 4- 1 3. Para frente, para trás, de ponta cabeça, vira assim, vira assado - nada! Fechei a 'gaveta da escrivaninha e comecei a sair, quando lembrei nova mente dos livros sobre arrombamento de cofres: assim, tentei o método psico lógico. Disse a mim mesmo: "Freddy de Hoffman é exatamente o tipo de pes soa que usaria uma constante matemática como combinação para o cofre." Voltei ao primeiro arquivo e tentei 2 7 - 1 8-28 - click! Abriu! (A segunda constante matemática em importância depois do 1t é a base dos logaritmos na turais, e: 2 , 7 1 828 ... ) Havia nove arquivos, e eu tinha aberto o primeiro, mas o documento que eu queria estava em outro - eles estavam em ordem alfabética por autor. Tentei o segundo arquivo: 27- 1 8-28 - click! Abriu com a mesma combinação. Pensei: "Isso é maravilhoso! Abri os documentos confidenciais da bomba atômica, mas, se alguma vez eu contar essa história, devo ter a cer teza de que todas as combinações realmente são a mesma!" Alguns dos arqui=
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vos estavam na outra sala; então tentei 27 - 1 8 -28 com um deles, e abriu. Eu já tinha aberto três cofres - todos com a mesma combinação. Pensei comigo mesmo: "Agora posso tentar escrever um livro sobre ar rombamento de cofres que bateria todos os outros, porque, no início, eu contaria como abri cofres, cujO"conteúdo era maior e mais valioso - exceto quando se tratava de uma vida, é claro - do que o dos cofres que qualquer arrombador jamais abrira, em qualquer lugar. Se comparado às peles ou às barras de ouro, fui melhor que todos: abri os cofres que continham todos os documentos secretos da bomba atômica: os planos de produção de plutô nio, os processos de purificação, quanto material era necessário, como a bomba funcionava, como os nêutrons eram gerados, qual o projeto, as di mensões - todas as informações que eram conhecidas em Los Alamos: abso lutamente tudo!" Voltei ao segundo arquivo e apanhei o documento que queria. Depois pe guei um lápis de cera vermelho e um pedaço de papel amarelo que estavam por ali no escritório e escrevi: "Peguei emprestado o documento nQ LA 4.3 1 2 Feynman, o arrombador de cofres." Coloquei o bilhete em cima dos papéis no arquivo e o tranquei. Depois fui ao primeiro arquivo que eu tinha aberto e escrevi outro bilhete: "Não foi mais difícil abrir este do que o outro - O Malandro", e fechei o armário. Depois, no outro arquivo que estava na outra sala, escrevi: "Quando as combinações são todas iguais, nenhum cofre é mais difícil de abrir do que o outro - Mesmo Cara", e fechei-o. Voltei ao meu escritório e escrevi o re latório. Naquela noite, fui à lanchonete jantar. Lá estava Freddy de Hoffman. Ele disse que ia ao seu escritório trabalhar; então, só para me divertir, fui com ele. Ele começou a trabalhar, e logo foi à outra sala abrir um dos arquivos algo que eu não havia previsto -, e aconteceu que ele abriu o arquivo no qual eu havia deixado o terceiro bilhete. Ele abriu a gaveta, viu esse estranho objeto lá - aquele papel amarelo brilhante com alguma coisa rabiscada nele em lápis vermelho. Eu já li em alguns livros que, quando a pessoa está com medo, sua face fica pálida, mas nunca havia visto isso antes. Bem, é totalmente verdade. Sua face ficou cinzenta, depois um verde amarelado - era realmente apavorante de se ver. Ele pegou o papel, e suas mãos tremiam. "V -v-veja isso!", ele disse, tremendo. -
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o bilhete dizia: "Quando as combinações são todas iguais, nenhum é mais difícil de abrir do que o outro - Mesmo Cara." - O que isso quer dizer? - perguntei. - Todas as c-e-combinações de meus cofres são as m-m-mesmas! - ele balbuciou. - Essa idéia não é boa. - A-a-agora e-e-eu sei! - ele disse, tremendo todo. Outro efeito quando o sangue foge da cabeça deve ser que o cérebro pas sa a não funcionar direito. "Ele assinou quem era! Ele assinou quem era!" ele disse. - O quê? (Eu não havia posto meu nome naquele bilhete.) - Sim - ele disse - é o mesmo cara que está tentando entrar no Edifício Ômega! Durante a guerra toda, e mesmo depois dela, havia esses eternos rumo res: "Alguém está tentando entrar no Edifício Ômega!" Veja bem, durante a guerra, eles estavam fazendo experiências para a bomba, nas quais queriam reunir material suficiente para que a reação em cadeia fosse iniciada. Deixa vam que um pouco de material fluísse através de outro, e assim as coisas pro grediam, a reação começava e eles mediam quantos nêutrons haviam obtido. Aquele tanto de material era utilizado de modo tão rápido que nada podia ex plodir. No entanto, podia dar início a uma reação, o bastante para que pudes sem verificar se as coisas estavam realmente começando da maneira certa, se as proporções estavam certas, e se tudo se desenrolava conforme o previsto uma experiência muito perigosa! Naturalmente, eles não estavam fazendo essa experiência no meio de Los Alamos, mas a muitos quilômetros de distância, em um desfiladeiro muitas mesetas mais adiante, completamente isolado. Esse Edifício Ômega tinha sua própria cerca, com guaritas. No meio da noite, quando estava tudo calmo, al gum coelho sai da moita e bate contra o portão, fazendo barulho. O guarda atira. O tenente responsável chega. O que o guarda podia dizer? Que era ape nas um coelho? Não. "Alguém estava tentando entrar no Edifício Ômega e eu o afugentei, senhor!" Então, de Hoffman estava pálido e tremendo, e não percebeu que havia uma falha em sua lógica: não estava claro que a mesma pessoa que estava ten tando entrar no Edifício Ô mega fosse a mesma pessoa ali na frente dele. Ele me perguntou o que fazer.
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- Bem, veja se não está faltando algum documento. - Parece estar tudo aqui -ele disse. - Não estou dando falta de nenhum. Tentei conduzi-lo ao arquivo do qual havia retirado o meu documento. \ "Bem, se todas as combinações são iguais, talvez ele tenha tirado alguma coisa de outra gaveta." - Certo! - ele disse. Voltou ao seu escritório, abriu o primeiro arquivo e encontrou o segundo bilhete que escrevi: "Não foi mais difícil abrir essa do que a outra - O Malandro." Naquele momento, não fazia a menor diferença se era o "Mesmo Cara" ou "O Malandro". Estava totalmente óbvio para ele que era a pessoa que esta va tentando entrar no Edifício Ô mega. Assim sendo, foi bastante difícil con vencê-lo a abrir o arquivo que tinha meu primeiro bilhete, e não lembro como consegui. Ele começou a abrir o arquivo, e comecei a ir para o corredor, porque es tava um pouco receoso de que, quando ele descobrisse quem tinha feito isso com ele, quisesse a minha cabeça em uma bandeja! Realmente, ele veio correndo atrás de mim no corredor, mas, ao invés de estar com raiva, ele praticamente me abraçou por estar completamente alivia do, porque o peso de que os segredos atômicos tivessem sido roubados era apenas eu fazendo traquinagem. Alguns dias depois, de Hoffman disse-me que precisava de alguma coisa do cofre de Kerst. Donald Kerst tinha voltado a Illinois e estava difícil encon trá-lo. "Se você consegue abrir todos os meus cofres usando o método psico lógico", de Hoffman disse (eu havia contado a ele como eu o havia feito) , "tal vez você possa abrir o cofre de Kerst da mesma forma." A história já tinha se espalhado, e então muitas pessoas vieram observar esse processo fantástico com o qual eu abriria o cofre de Kerst - fácil. Eu não precisava ficar só. Não tinha os dois últimos números do cofre de Kerst e, para usar o método psicológico, eu precisaria de pessoas que conhecessem Kerst, por perto. Fomos todos para o escritório de Kerst, e procurei pistas nas gavetas: não havia nada. Então perguntei a eles: "Que tipo de combinação Kerst usaria uma constante matemática? " - Ah, não! - de Hoffman disse. - Kerst faria algo muito simples. - Tentei 1 0-20-30, 20-40-60, 60-40-20, 30-20- 1 0. Nada. Então eu disse: "Você acha que ele usaria uma data?"
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- Sim! - eles disseram� - Ele é exatamente o tipo de cara que usaria uma data. Tentamos várias datas: 8-6-45, quando a bomba foi detonada; 86- 1 9-45; essa data, aquela data; quando o projeto começou. Nada funcionava. A essa altura, muita gente já havia desistido. Eles não tinham a paciência necessária para ficar ali me vendo fazer aquilo, mas o único jeito de resolver coisas assim é paciência! Aí decidi tentar tudo, desde 1 900 até aquele ano. Parece muito, mas não é: o primeiro número é um mês, de um a 1 2, e eu posso tentar usar só três nú meros: 1 0, cinco e zero. O segundo número é um dia, de um a 3 1 , que eu po dia tentar com seis números. O terceiro número é o ano que, àquela época, eram apenas 47 anos, e que eu podia tentar com nove números. Dessa forma, as oito mil combinações foram reduzidas a 1 62, algo que eu podia tentar em 1 5 ou 20 minutos. Foi uma pena ter começado com os números mais altos para os meses, porque, quando finalmente consegui abrir o cofre, a combinação era 0- 5 - 3 5 . Perguntei a de Hoffman: " O que aconteceu a Kerst por volta de 5 de janei ro de 1935?" -A filha dele nasceu em 1 93 6* disse de Hoffman. - Deve ser o aniversá rio dela. Eu já havia aberto dois cofres com facilidade. Estava ficando bom. Agora eu era um profissional. No mesmo verão depois da guerra, o cara da seção de propriedades esta va tentando resgatar algumas coisas que o governo havia comprado, para re vender como excedente. Uma das coisas era o cofre do capitão. Todos sabía mos desse cofre. O capitão quando chegou, durante a guerra, decidiu que os arquivos não eram seguros o bastante para os segredos que ele guardaria; en tão ele tinha de ter um cofre especial. O escritório do capitão era no segundo andar dos frágeis prédios de ma deira, no qual todos tínhamos nossos escritórios, e o cofre que ele encomen dara era um pesado cofre de aço. Os operários tiveram de construir duas pla taformas de madeira e usar macacos especiais para levá-lo escada acima. Como lá não tínhamos muito com que nos distrair, todos assistimos a esse co-
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fre enorme sendo levado para o escritório do capitão, com muito esforço, e fi zemos piadas sobre que tipo de segredos o capitão guardaria ali. Alguns cole gas disseram que devíamos guardar nosso material no cofre dele e deixar que ele guardasse seu material nos nossos cofres. Assim, todo mundo sabia da ' existência desse cofre. O sujeito da seção de propriedades queria considerar o cofre como sobra de guerra, mas primeiro teria de esvaziá-lo, e as únicas pessoas que conhe ciam a combinação eram o capitão, que estava em Bikini, e Alvarez, que já não se lembrava mais qual era. O homem pediu-me que abrisse o cofre. Fui ao escritório dele e disse à secretária: "Por que você não liga para o capitão e pede a combinação a ele?" - Eu não quero incomodá-lo - disse ela. - Bem, você vai me incomodar por cerca de oito horas. Não vou fazer isso, a menos que você tente ligar para ele. - OK, OK! - ela disse, e pegou o telefone e eu fui para a outra sala para dar uma olhada no cofre. Lá estava ele, aquele cofre enorme, de aço, com as portas escancaradas. Voltei à secretária. "O cofre está aberto." - Maravilhoso! - disse ela, enquanto desligava o telefone. - Não - eu disse - ele já estava aberto. -Ah! Eu acho que, por fim, a seção de propriedades conseguiu abri -lo. Desci até o cara da seção de propriedades. "Eu fui até o cofre e ele já esta va aberto." - Ah' sim - ele disse. - Desculpe, não te falei. Mandei nosso serralheiro fazer um buraco no cofre, mas antes disso ele tentou abri-lo e conseguiu. Portanto, primeira informação: Los Alamos tinha um serralheiro de plan tão. Segunda informação: esse homem sabe furar cofres, algo que eu não ti nha a menor idéia de como fazer. Terceira informação: ele pode abrir facil mente um cofre - em poucos minutos. Esse é um verdadeiro profissional, uma verdadeira fonte de informação. Eu tinha de conhecer esse sujeito. Descobri que ele era um serralheiro que havia sido contratado no pós guerra (quando não estavam tão preocupados com a segurança) para cuidar desse tipo óe coisa. Acontece que ele não tinha muito trabalho abrindo cofres; então também consertava as calculadoras Marchant que tínhamos usado. Durante a guerra, eu consertava essas coisas o tempo todo - então tinha uma justificativa para procurá-lo.
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Nunca tive muito jeito em criar artifícios para conhecer alguém; simples mente vou lá e me apresento. Mas, nesse caso, era muito importante conhecer esse homem, e eu sabia que, para conseguir que ele me contasse seus segredos sobre como abrir cofres, eu teria de fazer propaganda de mim mesmo. Descobri onde era a sala dele - no porão da seção de física teórica, onde eu trabalhara - e sabia que ele trabalhava à noite, quando as máquinas não es tavam sendo usadas. Então, primeiro passei pela porta da sala dele quando es tava indo para o meu escritório à noite. Foi tudo: simplesmente passei por lá. Algumas noites depois, só um "Oi". Depois de um tempo, quando perce beu que era o mesmo cara que sempre passava por ali, ele passou a falar: "Oi", ou "boa-noite". Depois de algumas semanas desse lento processo, o vi mexendo nas cal culadoras Marchant. Não falei nada sobre elas: ainda não estava na hora. Fomos, aos poucos, conversando mais: "Oi! Vejo que você está traba lhando muito!" - Sim, bastante - esse tipo de coisa. Finalmente, uma brecha: ele me convida para jantar. Agora vai ficar mui to bom. Todas as noites jantávamos juntos. Aí comecei a falar um pouco sobre as máquinas de somar, e ele me contou que tinha um problema. Estava ten tando montar uma série de rodas dentadas providas de mola em um eixo, mas não tinha a ferramenta certa, ou qualquer coisa assim; estava trabalhando nis so há uma semana. Eu lhe disse que costumava mexer com essas máquinas durante a guerra, e acrescentei: "Vou te dizer uma coisa: deixe a máquina do lado de fora, à noite, eu darei uma olhada nela amanhã." - OK - ele diz, porque está desesperado. N o dia seguinte, olhei a bendita coisa e tentei carregá -la segurando todas as rodas em minhas mãos. Continuava a não dar certo. Pensei comigo mesmo: "Se ele está tentando a mesma coisa há uma semana, e estou tentando e não consigo, então não tem jeito de consertar isso!" Parei, examinei a máquina cui dadosamente e percebi que toda roda tinha um pequeno buraco - apenas um buraquinho. Então me veio a idéia: montei a primeira roda; então passei um pe daço de arame pelo buraquinho. Aí coloquei a segunda e passei o arame por ela. Depois outra, e outra - como se estivesse colocando contas em um cordão - e enfiei todas de primeira, alinhei-as, tirei o arame e tudo deu certo. Naquela noite, mostrei a ele o buraquinho, e como havia feito. A partir de pnHío_ nassamos a conversar bastante sobre máquinas; viramos bons amigos.
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Pois bem, no escritório dele havia uma porção de escaninhos com trancas meio desmontadas bem como pedaços de cofres. Ah, eram lindos! Mas conti nuei sem falar nada sobre fechaduras e cofres. Por' fim, percebi que o dia estava chegando, e decidi jogar uma isca sobre cofres: disse a ele a única coisa úti"que sabia - que você pode saber os dois úl timos números enquanto eles estão abertos. "Hei!", disse eu, examinando os escaninhos. "Vejo que você está trabalhando com cofres Mosler." - Sim. - Você sabe, essas fechaduras são fracas. Se estiverem abertas, você pode descobrir os dois últimos números ... -Você consegue? - disse ele, finalmente demonstrando algum interesse. - Sim. - Mostre como - disse ele. Mostrei-lhe como fazê-lo, e ele se virou para mim: "Qual o seu nome?" Esse tempo todo nunca havíamos dito nossos nomes. - Dick Feynman - eu disse. -'- Meu Deus! Você é o Feynman! - disse ele, estupefato. - O grande arrombador de cofres! Ouvi falar de você; passei tanto tempo querendo conhe cê-lo! Quero aprender com você como se abre um cofre. - O que você quer dizer? Você sabe abrir cofres facilmente. - Eu não. - Ouça, ouvi falar sobre o cofre do capitão, e tenho tido um trabalho danado esse tempo todo porque eu queria conhecer você. E você vem me dizer que não sabe abrir um cofre com facilidade. - Sim. - Bem, você deve saber como furar um cofre. - Também não sei. - O quê? - exclamei. - O cara da seção de propriedades disse que você pegou suas ferramentas para abrir o cofre do capitão. - Suponha que você trabalhe como serralheiro - ele disse - e alguém peça que você faça um furo em um cofre. O que você faria? - Bem - respondi - eu faria um teatro juntando minhas ferramentas, pe gando-as e levando-as ao cofre. Então colocaria minha furadeira aleatoria mente em qualquer lugar do cofre e brrrrrrrrruuuuuum, salvando assim o meu emprego. - Era exatamente o que eu ia fazer. - Mas você conseguiu abri-lo! Você deve saber como arrombar cofres.
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- Ah, sim. Eu sabia que as fechaduras vinham de fábrica com a combina ção 25-0-25 ou 50-25-50; então pensei: "Quem sabe; talvez o sujeito não te nha se dado ao trabalho de mudar a combinação", e a segunda funcionou. Aí realmente aprendi uma coisa com ele - que ele abria os cofres usando os mesmos métodos miraculosos que eu. Mas mais engraçado ainda era que esse poderoso capitão tinha de ter um super, hiper, cofre e fez com que as pes soas tivessem todo aquele trabalho para içar aquela coisa até seu escritório, e sequer se deu ao trabalho de criar uma combinação. Fui de escritório em escritório no meu prédio testando aquelas duas com binações de fábrica; abri uma média de um cofre em cada cinco.
Tio Sam n ão p recisa mais de você !
No pós-guerra, o exército estava raspando o tacho para recrutar os rapazes para as forças de ocupação na Alemanha. Até então, o exército dispensava as pessoas por algum outro motivo que não o exame médico preliminar (fui dis pensado porque estava trabalhando na bomba) , mas agora eles haviam muda do isso, e todos teriam de fazer um exame médico inicial. Naguele verão, eu estava trabalhando para Hans Bethe na General Elec tric, em Schenectady, Nova York, e lembro que tive de viajar a um lugar um pouco distante - acho que para Albany - para fazer o exame médico. Cheguei ao lugar marcado, recebi uma porção de formulários·para preen cher e comecei a passar por diversas cabines. Em uma, eles verificavam a sua visão, em outra, a sua audição, em outra, tiravam amostras do seu sangue, e assim por diante. De qualquer forma, finalmente, chegava- se à cabine de número 1 3 : psi quiatria. Nessa cabine, ficávamos esperando, sentados em um dos bancos, e, enquanto esperávamos, pude ver o que estava acontecendo. Havia três mesas, com um psiquiatra sentado atrás de cada uma, e o "culpado" sentava-se só de BVDs* em frente ao psiquiatra e respondia a várias perguntas. Naquela época, havia uma porção de filmes sobre psiquiatras. Por exem plo, havia o Spellbound, no qual uma mulher, que era uma grande pianista, havia ficado com as mãos paralisadas em uma posição estranha e não conse guia movê-las, e sua família chama um psiquiatra para tentar ajudá-la. Este sobe até uma sala com ela, e você vê a porta fechar-se atrás deles. Lá embaixo a família discute o que vai acontecer, e então ela sai da sala, as mãos ainda pa ralisadas naquela posição horrível, desce dramaticamente as escadas, vai até o piano e senta-se, põe as mãos sobre o teclado, e de repente - tan, tan-tan-tan, *Nota do Tradutor: BVD marca registrada de um tipo muito popular de roupa de baixo masculina nos anos 1 940 e 1 950 nos Estados Unidos, a cueca samba-canção.
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tan - consegue tocar novamente. Bem, não suporto esse tipo de bobagem e decidira que os psiquiatras são uma farsa e não tinham nada a ver comigo. Esse era o espírito que me animava quando chegou a minha vez de conversar com o psiquiatra. Sento-me à mesa, e o psiquiatra começa a olhar meus papéis. "Oi, Dick!", ele diz de forma alegre. "Onde você trabalha? " Eu estou pensando: "Quem ele acha que é , me chamando pelo meu pri meiro nome?" E digo friamente: "Schenectady." - Para quem você trabalha, Dick? - diz o psiquiatra, sorrindo nova mente. , - General Electric. - Você gosta do seu trabalho, Dick? - ele diz com aquele mesmo sorriso enorme em seu rosto. - Mais ou menos. - Eu simplesmente não tinha nada a ver com ele. Três questões simpáticas, e então a quarta é completamente diferente. "Você acha que as pessoas falam de você? ", ele pergunta, em voz baixa, sério. Eu me alegro e digo: " É claro! Quando vou para casa, minha mãe sem pre me diz que estava conversando a meu respeito com as suas amigas ." Ele não está ouvindo a explicação; em vez disso, fica anotando algo em meus papéis . Então, mais uma vez, com uma voz baixa, séria, ele diz: "Você acha que as pessoas ficam encarando você? " Estou pronto para dizer não, quando ele diz: "Por exemplo, você acha que algum dos caras sentados ali naqueles bancos está encarando você agora?" Enquanto aguardava para falar com o psiquiatra, eu percebera que havia cerca de doze pessoas sentadas nos bancos esperando pelos três psiquiatras, e elas não tinham mais para onde olhar; então dividi doze por três - daria qua tro para cada um -, mas, como sou cauteloso, eu disse: "Sim, talvez dois deles estejam nos olhando." Ele diz: "Bem, vire-se e olhe" - ele próprio não estava sequer se dando ao trabalho de olhar. Aí eu me virei e, realmente, havia dois sujeitos nos olhando. Apontei para eles e disse: " Sim - tem aquele sujeito, e aquele sujeito lá nos olhando. " Ob viamente, quando me virei apontando o dedo daquela forma, outros caras co meçaram a olhar-nos, então eu disse: "Agora ele, e aqueles dois ali - e agora o
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bando todo." Ele continua sem olhar para verificar. Está ocupado anotando mais coisas nos meus papéis. Então ele diz: "Você costuma ouvir vozes dentro da sua cabeça?" - Muito raramente - e estava prestes a descrever as duas ocasiões em que isso aconteceu, quando ele diz: "Você fala sozinho? " - Sim, às vezes, quando estou me barbeando ou pensando; de vez em quando. - Ele anota mais coisas. - Vejo aqui que sua esposa faleceu. Você conversa com ela? Essa pergunta realmente me irritou, mas me contive e disse: "Às vezes, quando escalo uma montanha e fico pensando nela." Mais anotações. Então ele pergunta: "Há algum membro da sua família internado em alguma clínica para tratamento mental?" - Sim, eu tenho uma tia em um asilo para insanos. - Por que você chama de asilo para insanos? - ele retruca, ofendido. Por que você não chama de clínica para tratamento mental? - Eu achei que era a mesma coisa. - Exatamente o que você acha que é a insanidade? -ele prossegue, irritado. - É uma doença estranha e peculiar nos seres humanos - respondo honestamente. - Não é mais estranha ou peculiar do que apendicite! - ele retruca. - Eu não acho. Na apendicite entendemos melhor as causas e um pouco sobre seu mecanismo, enquanto a insanidade é muito mais complicada e mis teriosa. Não relatarei o debate todo; o importante é que eu queria dizer que a insa nidade é fisiologicamente peculiar, e ele pensou que eu queria dizer que ela era socialmente peculiar. Até aquela ocasião, apesar de eu ser inamistoso em relação aos psiquia tras, fora completamente honesto em tudo que dissera. Mas quando ele me pediu para mostrar as mãos, não resisti em fazer uma brincadeira que um cara na "fila da sangria" me ensinou. Descobri que mais ninguém teria uma chance de fazê-la, e já que de qualquer modo estava perdido, eu a faria. Então mostrei-lhe minhas mãos uma com a palma para cima e a outra com a palma para baixo. O psiquiatra não percebe. Ele diz: "Vire-as." Viro as mãos. A que estava virada para cima eu a viro para baixo, e a que estava para baixo eu a viro para cima, e ainda assim ele não percebe, porque •
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ele está sempre examinando uma das mãos para ver se há tremores. Assim, a brincadeira não teve o menor efeito. Finalmente, quando as perguntas chegaram ao fim, ele tornou-se amigá vel novamente. Ele sorri e diz: "Vejo que você tem um PhD, Dick. Onde você estudou?" - No MIT e e m Princeton. E onde você estudou? - Yale e Londres. E o que você cursou, Dick? - Física. E o que você cursou? - Medicina. - E isso é medicina? - Bem, sim. O que você acha que é? Sente-se ali e espere um pouco! Sentei-me no banco novamente, e um dos outros rapazes que estava es perando vem para o meu lado e diz: "Meu Deus! Você ficou lá por vinte e cin co minutos! Os outros ficaram só cinco minutos!" - Sim. - Ei - ele diz. - Você quer saber como enganar o psiquiatra? Tudo que você tem de fazer é ficar mexendo assim nas suas unhas. - Então por que você não mexe assim nas suas unhas? - Ah - ele diz - eu quero entrar para o exército! - Você quer enganar o psiquiatra? - eu digo. É só dizer isso a ele! Depois de um tempo, fui chamado até outra mesa para ver outro psiquia tra. Enquanto o primeiro psiquiatra era bastante jovem, com uma aparência inocente, esse era grisalho e tinha uma aparência distinta - obviamente, era o psiquiatra sênior. Penso que agora tudo vai se ajeitar, mas, independente mente do que aconteça, não vou me tornar amigável. O novo psiquiatra olha meus papéis, põe um grande sorriso em seu rosto, e diz: "Oi, Dick. Vejo que você trabalhou em Los Alamos durante a guerra." - Sim. - Havia uma escola para meninos lá, não havia? - Isso mesmo. - Havia muitos prédios na escola? - Só alguns. Três perguntas - a mesma técnica -, e a próxima pergunta é completa mente diferente: - Você disse que ouvia vozes em sua cabeça. Por favor, descreva. -
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- Acontece muito raramente, quando estive prestando atenção a uma pessoa com um sotaque estrangeiro. Enquanto caio no sono, posso ouvir a voz da pessoa com muita clareza. Aconteceu a primeira vez quando eu estu dava no MIT. Eu podia ouvir o velho professor Vallarta dizer: "A, a, a campo elétrica, a ... . " E a outra vez foi eIll'Chicago, durante a guerra, quando o pro fessor Teller estava explicando-me como a bomba funcionava. Como me inte resso por todo tipo de fenômeno, fiquei pensando como podia ouvir tão preci samente essas vozes com sotaque e não conseguia imitá-las tão bem . . . Todo mundo tem umas coisas assim de vez em quando, não? O psiquiatra colocou as mãos no rosto e eu pude notar, através de seus dedos, um leve sorriso (ele não respondeu à pergunta) . Então o psiquiatra verificou mais alguma coisa: "Você disse que conversa com sua falecida esposa. O que você diz a ela?" Fiquei furioso. Acho que isso não é da conta dele, e respondo: "Eu digo que a amo, se não tiver problema para você!" Depois de mais algumas trocas de palavras amargas, ele diz: "Você acredita no sobrenormal?" Eu digo: - Eu não sei o que é o "sobrenormal" . - O quê? Você, um PhD em física, não sabe o que é o sobrenormal? - É isso aí. - É o que Sir Oliver Lodge e sua escola acreditam. Não foi uma boa pista, mas sabia. "Você quer dizer o sobrenatural. " - Você pode chamar assim se quiser. - Tudo bem, vou fazer isso. - Você acredita em telepatia mental? - Não. E você? - Bem, mantenho minha mente aberta. - O quê? Você, um psiquiatra, mantendo uma mente aberta ? Há! - A conversa continuou assim por um tempo. Então, já perto do final, ele diz: "O quanto você valoriza a vida?" - Sessenta e quatro. - Por que você disse sessenta e quatro? - Como você espera que se meça o valor da vida? - Não! Eu quero dizer, por que você falou "sessenta e quatro" e não "setenta e três", por exemplo?
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- Se eu tivesse dito "setenta e três", você me faria a mesma pergunta! O psiquiatra encerrou com três questões amigáveis, e assim como o outro psiquiatra tinha feito, entregou-me os papéis e fui para a próxima cabine. Enquanto esperava na fila, dei uma olhada no papel que tinha o resumo de todos os testes que eu tinha feito até o momento. E só para divertir-me mos trei o papel para o cara que estava perto de mim, e perguntei-lhe em tom bas tante idiota: "Ei! O que você tirou no 'Psiquiátrico ' ? Ah! Você tirou um 'N ' . Eu tirei 'N ' no resto todo, mas tirei um 'D ' no 'Psiquiátrico ' . O que isso quer dizer?" Eu sabia o que significava: "N" é normal, e "D" é deficiente. O cara dá um tapinha em meu ombro e diz: "Meu chapa, está tudo bem. Isso não quer dizer nada. Não se preocupe com isso!" Aí ele vai para o outro canto da sala, morrendo de medo: ele é um lunático! Comecei a olhar os papéis nos quais os psiquiatras tinham feito anotações, e pareceram bastante sérios! O primeiro escreveu: Pensa que as pessoas falam sobre ele. Pensa que as pessoas ficam olhando para ele. Alucinações auditivas hipnagógicas. Pala sozinho. Conversa com a falecida esposa. Tia por parte materna em clínica de tratamento mental. Olhar fixo muito peculiar. (Eu sabia o que isso queria dizer - foi quando eu disse: "E isso é medicina ?") O segundo psiquiatra era. obviamente mais importante, porque seus ra biscos eram mais difíceis de ler. Suas anotações diziam coisas como "alucina ções auditivas hipnagógicas confirmadas". ("Hipnagógica" quer dizer que você as tem ao cair no sono.) Ele escreveu mais uma porção de observações técnicas, eu as olhei, e a mim pareceram ser muito negativas. Achei que, de alguma forma, teria de acertar essas coisas com o exército. Ao final de todo o exame físico, há um oficial do exército que decide se você vai ser aceito ou não. Por exemplo, se há algum problema com sua audi ção, ele tem de decidir se o problema é sério o bastante para afastá-lo do exér cito. E como o exército estava raspando o tacho para encontrar novos recru tas, ele não ia liberar ninguém facilmente. Ele era duro como aço. Por exem plo, o rapaz à minha frente tinha dois ossos saindo da parte de trás de seu pes coço - algum tipo de vértebra deslocada, ou coisa assim -, e esse oficial do
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exército levantou-se da sua mesa para tocá-los - ele tinha de se certificar de que eram reais! Imaginei que esse seria o lugar onde eu veria todo esse mal-entendido es clarecido. Quando chega minha vez, entrego os papéis ao oficial e estou pron to a explicar qualquer coisa, mas o�oficial sequer levanta os olhos. Ele vê o "O" no exame psiquiátrico, imediatamente procura o carimbo de rejeição, não me pergunta nem diz nada; ele simplesmente carimba em meus papéis "Rejeita do", e me entrega um formulário 4-F, ainda olhando para sua mesa. Então saí e tomei o ônibus para Schenectady, e durante a viagem pensei sobre aquela loucura que tinha acontecido e comecei a rir - alto - e disse a mim mesmo: "Meu Deus! Se eles me vissem agora, eles teriam certeza! " Quando finalmente cheguei de volta a Schenectady, fui ver Hans Bethe. Ele estava sentado atrás da sua mesa e disse-me em tom de piada: "Bem, Oick, você passou?" Fiz uma cara triste e sacudi minha cabeça, lentamente. "Não." Então, de repente, ele ficou preocupadíssimo, achando que haviam des coberto algum problema médico sério comigo, e disse com uma voz preocu pada: "Qual o problema, Dick?" Pus meu dedo na testa. Ele disse: "Não!" - Sim! Ele gritou: "Nã-ã-ã-ã-ã-ão!", e riu tanto que o teto da General Electric quase veio abaixo. Contei a história para muita gente, e todos riram, com algumas exceções. Quando voltei a Nova York, meu pai, minha mãe e minha irmã me apa nharam no aeroporto, e no caminho para casa contei a história a eles. No fi nal, minha mãe disse: "Bem, o que devemos fazer, Mel?" Meu pai disse: "Não seja ridícula, Lucille. Isso é um absurdo!" Então foi isso, mas minha irmã depois me contou que quando chegamos em casa, e eles estavam a sós, meu pai disse: "Ora, Lucille, você não deveria ter dito nada na frente dele. Agora o que nós devemos fazer?" Nessa hora, minha mãe já tinha se recuperado do choque, e disse: "Não seja ridículo, Mel!" Outra pessoa ficou incomodada com a história. Eu estava em um jantar da Physical Society, e o professor Slater, meu antigo professor no MIT, disse: "Ei, Feynman! Conte a história sobre o alistamento que ouvi."
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Contei a história inteira para todos esses físicos - eu não conhecia ne nhum deles, exceto Slater - e todos estavam rindo muito, mas, ao final, um sujeito disse: "Bem, talvez o psiquiatra tivesse algo em mente." Eu disse resolutamente: "E qual a sua profissão, senhor?" É claro que essa foi uma pergunta estúpida, pois todos éramos físicos em uma reunião profissional. Mas fiquei surpreso que um físico dissesse algo daquele tipo. Ele disse: "Bem, é, realmente eu não deveria estar aqui, mas vim como convidado de meu irmão, que é físico. Sou psiquiatra." Acabei com ele na hora! Depois de um tempo, comecei a ficar preocupado. Aqui temos um sujeito que foi dispensado durante a guerra toda porque está trabalhando com a bomba, e a junta de recrutamento recebe cartas dizendo que ele é muito im portante, e agora ele tira um "O" no "Psiquiátrico" - isso quer dizer que ele é maluco! Obviamente ele não é maluco; ele só está tentando fazer com que acreditemos que ele é maluco - vamos pegá-lo! A situação não me parecia boa; eu tinha de arrumar um jeito de escapar. Depois de alguns dias, descobri uma solução. Escrevi uma carta à junta de re crutamento, que era mais ou menos assim: Prezados senhores, Creio que não deveria ser recrutado porque estou lecionando para estu dantes de ciências, e é na força de nossos futuros cientistas que reside, em par te, o bem-estar nacional. No entanto, os senhores podem decidir que eu deva ser dispensado por causa do resultado do meu relatório médico, mais precisa mente, que eu sou psicologicamente incapaz. Sinto que não importa o que quer que eu anexe a tal relatório, porque o considero um grande erro. Estou chamando a atenção para esse erro porque sou insano o bastante para não querer tirar vantagem dele. Atenciosamente, R. P. Feynman
Resultado: "Dispensado. 4F. Razões Médicas."
Pa rte I V
De Cornell ao Caltech com um toque de Brasil
o nobre professor
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Não acredito que eu possa viver sem ensinar. A razão é que preciso ter alguma coisa para fazer, de modo que, quando estou sem idéias e não estou chegando a lugar algum, eu possa dizer para mim mesmo: "Pelo menos estou vivendo; pelo menos estoufazendo alguma coisa; estou dando alguma contribuição" é simplesmente psicológico. Quando eu estava em Princeton, nos anos 1 940, pude ver o que aconte ceu com aquelas mentes brilhantes do Instituto de Estudos Avançados que fo ram especialmente selecionadas por seus incríveis cérebros e que agora ti nham a oportunidade de sentarem -se nessa casa adorável, ao lado do bosque, sem aulas para ministrar, sem quaisquer obrigações. Esses pobres condena dos agora podiam sentar-se e pensar ' claramente por conta própria, OK? Assim eles passam um tempo sem ter idéias; tinham todas as oportunidades para fazer alguma coisa, mas estavam sem idéias. Acredito que em uma situa ção dessas manifesta-se uma espécie de sentimento de culpa ou de depressão, e aí você começa a ficar preocupado, sem definição. E nada acontece. Ainda assim, nenhuma idéia surge. Nada acontece porque não há atividade e desafio reais o bastante. Não se está em contato com o pessoal experimental. Você não tem de pensar sobre como responder às perguntas dos estudantes. Nada! Em qualquer processo de pensamento, há momentos em que tudo vai bem e você tem idéias maravilhosas. Ensinar torna-se uma interrupção e, por isso, é a coisa mais chata do mundo. Mas depois aparecem aqueles períodos enormes nos quais não vem muita coisa à cabeça. Você está sem idéias e, se não estiver fazendo absolutamente nada, isso o deixa louco! Você não pode sequer dizer: "Eu estou dando aulas aos meus alunos." Se estiver lecionando, pode pensar sobre as coisas básicas que conhece muito bem. Essas coisas são engraçadas e deliciosas. Não faz mal algum pen sar sobre elas mais uma vez. Haverá alguma forma melhor de apresentá-Ias?
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Haverá algum problema novo associado a elas? As coisas básicas são fáceis de se pensar a respeito; se não puder ter um pensamento novo, não há problema; o que pensou antes é bom o bastante para a turma. Se realmente pensar em algo novo, você fica bastante contente por ter descoberto uma nova forma de encarar o assunto. As perguntas dos estudantes geralmente são a fonte de novas pesquisas. Normalmente, eles faze 111 perguntas profundas sobre as quais já pensei vá rias vezes e desisti, por um tempo. Não faria mal algum pensar novamente sobre o assunto e ver que agora posso ir um pouco mais além. Os estudantes podem não conseguir visualizar o que estou querendo responder, ou as suti lezas sobre as quais quero pensar, mas eles me fazem lembrar de uma difi culdade ao fazer perguntas no âmbito daquele problema. Não é fácil lem brar-se dessas coisas. Assim sendo, acho que o que mantém a minha vida fluindo são as minhas aulas e os meus alunos. Jamais aceitaria qualquer posição na qual alguém ti vesse criado para mim uma situação boa em que eu não tivesse de lecionar. Ja maIs. Mas, uma vez me ofereceram uma posição assim. Durante a guerra, quando eu ainda estava em Los Alamos, Hans Bethe arranjou-me esse em prego em ComeU, por 3 . 700 dólares ao ano. Recebi uma proposta de al gum outro lugar, onde ganharia mais, mas gostava de Bethe e decidi ir para Comell; além do mais, eu não estava preocupado com o dinheiro . Mas Bethe estava sempre tomando conta de mim, e quando descobriu que os outros estavam oferecendo mais, conseguiu que Cornell me desse um au mento e oferecesse 4.000 dólares por ano, * mesmo antes de eu começar a trabalhar. ComeU informou-me que eu ministraria um curso sobre métodos mate máticos da física e quando eu deveria apresentar-me, 6 de novembro, acho, mas pareceu-me engraçado que fosse no final do ano. Peguei o trem de Los Alamos para Ithaca e gastei a maior parte do tempo escrevendo relatórios fi nais para o Projeto Manhattan. Ainda me lembro que foi no trem notumo de Buffalo para Ithaca que comecei a trabalhar no meu curso. *Nota do Tradutor: O leitor deve ter em mente que um salário dessa ordem no final da Se gunda Guerra Mundial era bem razoável; um bolsista de doutorado nessa época recebia uma bolsa de aproximadamente 70 dólares mens
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Você tem de entender como eram as pressões em Los Alamos. Você fazia tudo na maior rapidez possível; todo mundo trabalhava muito, muito mesmo; e tudo era concluído na última hora. Assim, parecia-me natural preparar o meu curso durante a viagem, um dia ou dois antes da primeira aula. Métodos matemáticos da fÍ6ica para mim era o curso ideal de ministrar. Era o que eu havia feito durante a guerra - aplicar matemática à física. Sabia quais métodos eram realmente úteis e quais não o eram. Naquela época, de pois de dar tanto duro durante quatro anos aplicando truques matemáticos, eu tinha muita experiência. Então, esbocei como apresentaria os diferentes tópicos de matemática e como lidaria com eles; ainda tenho - as anotações que fiz no trem. Desci em Ithaca, carregando minha pesada mala sobre os ombros, como sempre. Um rapaz gritou: "Quer um táxi, senhor?" Nunca quisera tomar um táxi antes, eu era um rapazote com pouco di nheiro, sonhando em ser livre e independente. Mas pensei comigo mesmo: "Sou umprofessor. Tenho de demonstrar dignidade." Então, deixei de carre gar minha mala sobre os ombros e passei a carregá-la com a mão, e disse "sim". - Para onde? - Para o hotel. - Qual hotel? - Algum dos hotéis que vocês têm aqui em Ithaca. - O senhor tem reserva? - Não. - Não é tão fácil assim conseguir um quarto. - Bem, simplesmente vá de hotel em hotel, pare e espere por mim. Tentamos o hotel lthaca: não há quartos disponíveis. Vamos então até o hotel do Viajante: ele também não tem nenhum quarto disponível. Eu disse ao motorista do táxi: "Não adianta ficar rodando pela cidade; vai me custar muito caro. Vou andar de hotel em hotel." Deixei minha mala no hotel do Viajante e comecei a andar, procurando um quarto. Isso mostra quanto preparo eu tinha. Encontrei um outro cara andando por ali, procurando também um quar to. Acontece que era totalmente impossível conseguir um quarto de hotel. De pois de um tempo, subimos uma espécie de colina e aos poucos percebemos que estávamos chegando perto do campus da universidade.
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Vimos algo que parecia um alojamento, com uma janela aberta - podia -se ver que lá havia beliches. A essa altura, já era noite; então resolvemos pergun tar se poderíamos dormir ali. A porta estava aberta, mas não havia ninguém. Andamos até um dos quartos, e o outro rapaz disse: "Venha, vamos dormir aqui!" Não achei boa idéia. Para mim, era como roubar. Alguém havia feito as camas; eles, provavelmente, voltariam, nos encontrariam dormindo ali e fica ríamos bem enrascados . Então saímos. Andamos u m pouco mais e vimos, debaixo de um poste de luz, um grande monte de folhas que haviam sido recolhidas - era outono - do gramado. Falei: "Ei! Poderíamos ajeitar-nos no meio dessas folhas e dormir por aqui? " Tentei fazê-lo, as folhas eram muito macias. Estava cansado de andar, e se o monte de folhas não estivesse bem embaixo da lâmpada teria sido perfeito. Mas eu não queria arranjar problemas mal acabando de chegar. Lá em Los Alamos, as pessoas haviam zombado de mim (quando eu tocava tam bor e coisas assim) sobre que tipo de "professor" que ComeU estava contra tando. Eles disseram que eu faria fama rapidamente, fazendo algo muito tolo. Assim, estava tentando comportar-me com um pouco de dignidade. Foi com relutância que desisti da idéia de dormir sobre o monte de folhas. Andamos mais um pouco e chegamos a um prédio grande, algum prédio importante do campus. Havia dois sofás no corredor. O outro sujeito disse: "Vou dormir aqui!" E se jogou no sofá. Eu não queria meter-me em confusão; então encontrei um vigia lá embai xo no porão e perguntei-lhe se poderia dormir no sofá e ele disse-me: "Claro." No dia seguinte, encontrei um lugar para tomar um café e comecei a correr o mais rápido que podia para descobrir quando seria minha primeira aula. Fui ao departamento de física: "A que horas é minha primeira aula? Eu a perdi?" O homem disse: "O senhor não tem com que se preocupar. As aulas só começam daqui a oito dias." Aquilo foi um choque para mim. A primeira coisa que disse foi: "Bem, por que vocês me disseram para chegar aqui com uma semana de antecedência?" - Eu imaginei que o senhor gostaria de familiarizar-se, encontrar um lu gar para ficar e estabelecer-se antes de começar suas aulas. Eu estava de volta à civilização e não sabia o que era isso! O professor Gibbs mandou-me ao grêmio estudantil para descobrir um lugar onde ficar. O grêmio era um lugar grande, e havia um monte de estu-
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dantes passeando por ali. Fui até uma mesa grande, que continha uma placa onde estava escrito Alojamento e anunciei: " Sou novato e estou procurando um quarto." Alguém responde: "Meu amigo, encontrar hospedagem em Ithaca é mui to duro. Na verdade, é tão difícil que, acredite ou não, um professor teve de dormir em um sofá neste saguão essa noite!" Olhei ao redor e vi que era o mesmo saguão! Virei-me para ele e disse-lhe: "Bem, sou o tal professor, e o professor não quer fazer isso de novo!" Meus primeiros dias em ComeU, como professor novato, foram interes santes e, às vezes, engraçados. Alguns dias depois de eu ter chegado, o profes sor Gibbs veio à minha sala e explicou-me que normalmente não eram aceitos alunos com o semestre já tão adiantado, mas em alguns poucos casos, quando o candidato era muito, muito bom, poderíamos aceitá-lo. Entregou-me um pedido de candidatura e pediu que eu desse uma olhada. Ele volta: "Bem, o que você acha? " - Acho que ele é do primeiro time e que devemos aceitá-lo. Acho que temos sorte em tê-lo aqui. - Sim, mas você viu a foto dele? - Que diferença isso pode fazer? - exclamei. - Diferença alguma, senhor! Fico feliz em ouvi-lo dizer isso. Eu queria ver que tipo de homem tínhamos como nosso novo professor. Gibbs gostou da forma como retruquei sem pensar comigo mesmo: "Ele é o chefe do departamento e eu sou novo aqui; então é melhor eu ter cuidado com o que falo." Não tenho a presteza de espírito para pensar assim; minha primeira reação é imediata e digo a primeira coisa que me vem à cabeça. Depois outra pessoa veio à minha sala, queria conversar comigo sobre fi losofia, mas quase não me lembro do que ele disse, mas queria que eu fizesse parte de algum tipo de clube de professores. Era um tipo de clube anti-semita que achava que os nazistas não eram assim tão maus. Ele tentou explicar-me que havia muitos judeus fazendo isso e aquilo - uma coisa maluca. Então es perei até que terminasse de dizer tudo e disse: "Você sabe, você cometeu um grande erro: cresci em uma família judia." Ele saiu, e esse foi o início da minha perda de respeito por alguns dos professores da área de ciências humanas e de outras áreas, da Universidade ComeU. Eu estava recomeçando a vida depois da morte de minha esposa e queria conhecer algumas moças. Naquela época, havia muitos bailes para confrater-
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nizar. Assim, havia muitos bailes em ComeU, ocasiões sociais que serviam para reunir as pessoas, especialmente os calouros e outros que estavam de volta à escola. Lembro-me do primeiro baile. Eu não dançava havia três ou quatro anos, o tempo que estive em Los Alamos; nunca fizera parte da sociedade. Fui a esse baile e dancei o melhor que pude, o que eu achava ser razoavelmente bem. Geralmente você consegue perceber quando alguém está dançando com você e se sente bem. Enquanto dançávamos, eu conseguia conversar um pouco com a garota; ela perguntava um pouco sobre mim e eu perguntava um pouco sobre ela. Mas, quando eu tentava dançar com alguma garota com quem já havia dança do, tinha de procurar por ela. - Você quer dançar de novo? - Não, sinto muito; preciso tomar um pouco de ar. - Ou: bem, tenho de ir ao toalete - uma desculpa ou outra, de duas ou três garotas seguidas! Qual era o problema comigo? Eu dançava mal? Minha personalidade era desagradá vel? Dancei com outra garota, e mais uma vez veio a pergunta de sempre: "Você está na graduação ou na pós-graduação? " (Havia muitos alunos da fa culdade que pareciam ser mais velhos porque haviam estado no exército.) - Não, eu sou professor. - Ah! Professor de quê? - De física teórica. - Imagino que você tenha trabalhado na bomba atômica. - Sim, eu estava em Los Alamos durante a guerra. Ela disse: "Você é um grande mentiroso!" - e caiu fora. Fiquei bastante aliviado. Isso explicava tudo. Eu havia dito a todas as ga rotas a pura e estúpida verdade e nunca descobria qual era o problema. Esta va bastante claro que era evitado por uma garota depois da outra quando fi zera tudo de modo perfeitamente bem e natural, fui educado e respondi às perguntas. Tudo estava muito bem e, de repente, pu!! não funcionava. Eu não estava entendendo, até que, felizmente, essa moça me chamou de gran de mentiroso . . A partir de então, tentei evitar todas as perguntas e consegui o efeito con trário: "Você é calouro? " - Bem, não. -
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- Você está na pós-graduação? - Não. - O que você é? - Eu não quero dizer. - Por que você não quer di1.er o que é? - Eu não quero ... - e elas continuavam a conversar comigo! Acabei a noite com duas garotas na minha casa, e uma delas me disse que eu realmente não devia me sentir mal por ser calouro; havia uma porção de ca ras na minha idade que estavam começando na universidade, e realmente não havia problema algum. Elas eram do segundo ano de faculdade e estavam sen do bem maternais, as duas. Trabalharam muito o meu lado psicológico, mas eu não queria que a situação ficasse tão distorcida e mal-entendida; então lhes dis se que era professor. Elas ficaram muito zangadas porque eu as havia feito de bobas. Tive muito problema por ser jovem professor em ComeU. De qualquer forma, comecei a lecionar o curso de métodos matemáticos da física, e acho que também ministrei outro curso - eletricidade e magnetis mo, talvez. Também pretendia fazer pesquisa. Antes da guerra, enquanto fa zia a minha pós-graduação, eu tinha muitas idéias: havia inventado novos mé todos de fazer mecânica quântica com integrais de caminho e havia uma por ção de coisas que eu queria fazer. Em ComeU, trabalhava na preparação de meus cursos e ia muito à biblio teca, lia As mil e uma noites e ficava de olho nas garotas que passavam. Mas quando chegou a hora de fa�er pesquisa, não conseguia trabalhar. Estava um pouco cansado; não estava interessado; não podia fazer pesquisa! Acho que isso levou anos, mas quando volto e calculo o tempo, vejo que não pode ter durado tanto. Talvez hoje em dia eu não achasse que tivesse sido por tanto tempo, mas àquela época pareceu-me levar muito tempo. Eu, simplesmente, não conseguia começar qualquer problema: lembro-me de escrever uma ou duas frases sobre algum problema sobre raios gama e depois não conseguir continuar. Eu estava convencido de que, com a guerra e a morte de minha es posa, eu simplesmente estava acabado. Agora entendo isso tudo muito melhor. Em primeiro lugar, um jovem não percebe o tempo que se gasta para preparar boas aulas, especialmente pela primeira vez - e para ministrar as aulas, para criar os problemas para a prova e para verificar se eles fazem sentido. Eu estava dando bons cursos, o tipo de curso no qual pensava muito para preparar cada palestra. Mas não percebia
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que isso dá muito trabalho! Então cá estava eu, "acabado", lendo As mil e uma noites e me sentindo deprimido. Durante esse período, recebi ofertas de outros lugares - universidades e indústrias, com salários mais altos do que o meu. E cada vez que recebia algo assim, ficava ainda mais deprimido. E dizia a mim mesmo: "Veja, eles estão me fazendo essas maravilhosas ofertas, mas não percebem que estou acaba do! É claro que não posso aceitá-las. Eles esperam que eu faça algo e eu não consigo fazer nada! Não tenho idéia alguma. . . " Por fim, recebi pelo correio um convite do Instituto de Estudos Avança dos: Einstein. . . von Neumann ... Weyl... todas essas grandes mentes! Eles convidaram-me para ser professor lá! Não simplesmente um professor regu lar. De alguma forma, sabiam o que eu sentia em relação ao instituto, que eu achava que ele era muito teórico; que lá não havia atividade e desafio reais. Então escreveram: "Agrada-nos que o senhor tenha um interesse considerá vel em experiências e em lecionar; então fizemos alguns arranjos para criar um tipo especial de magistério, caso deseje, será metade do tempo professor na Universidade de Princeton e metade do tempo no Instituto." O Instituto para Estudos Avançados! Exceção especial! Uma posição me lhor até mesmo do que a de Einstein! Era ideal; era perfeito; era absurdo! Era absurdo. As outras ofertas, até certo ponto, fizeram sentir-me pior. Eles estavam esperando que eu fizesse algo. Mas essa oferta era tão ridícula, tão impossível para mim, tão ridiculamente sem propósito. As ou tras eram apenas erros: esta era um absurdo! Ri enquanto me barbeava pensando nela. Então pensei comigo mesmo: "Você sabe, o que eles pensam de você é tão fantástico que é impossível estar a altura disso. Você não tem a responsabili dade de estar à altura disso!" Era uma idéia brilhante: você não tem a responsabilidade de estar à altura do que as outras pessoas acham que você deve estar. Não tenho responsabili dade em ser como eles esperam que eu seja. O erro é deles, não falha minha. Não era erro meu se o Instituto de Estudos Avançados esperasse que eu fosse tão bom; era impossível. Estava claro que era um engano - e no momen to que considerei a possibilidade de estarem errados, descobri que o mesmo valia para todos os outros lugares, inclusive minha própria universidade. Sou o que sou, e se esperam que eu seja bom e estão me oferecendo dinheiro para isso, é problema deles.
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Então, no decorrer do dia, por algum estranho milagre - talvez ele tenha, por acaso, me ouvido falar sobre o assunto ou talvez tenha simplesmente me entendido -, Bob Wilson, que era chefe do laboratório em ComeU, chamou-me para ir vê-lo, disse, em tom sério: "Feynman, você está lecionando bem; está fa zendo um bom trabalho, está ensJ'nando bem a seus alunos e nós estamos muito satisfeitos. Qualquer outra expectativa que possamos ter é uma questão de sor te. Quando contratamos um professor estamos assumindo todos os riscos. Se ele for bem, isto é bom, se não for bem, isto é ruim. Mas você não devia preocu par-se sobre o que está ou não está conseguindo fazer." Ele falou de uma forma muito melhor do que isso e libertou-me do sentimento de culpa. Então, tive um outro pensamento: agora fazer física está me causando um pouco de desgosto, mas eu costumava gostar de fazer física. Por que eu gosta va? Gostava de brincar com ela. Costumava fazer o que quisesse fazer - não tinha nada a ver com o fato de ser importante para o desenvolvimento da física nuclear, e sim com o fato de ser interessante e agradável para eu brincar com ela. Quando estava no ensino médio, podia observar a água saindo de uma torneira e imaginar se eu poderia calcular o que determinava aquela curva. Descobri que era algo bastante fácil de ser calculado. Não precisava fazê-lo, não era importante para o futuro da ciência; outra pessoa já o fizera. Só que isso não fazia a menor diferença: eu inventava coisas e brincava com elas pelo simples prazer da diversão. Então adotei uma nova atitude. Agora que estou acabado e jamais farei algo, assumo essa agradável posição na universidade, dando as aulas de que gosto muito e, da mesma forma que leio As mil e uma noites por prazer, brin carei com a física sempre que desejar, sem me preocupar com a sua possível importância. Passada uma semana, eu estava na lanchonete e alguém, que estava pas seando por ali, jogou um prato ao ar. Quando o prato subiu, eu o vi chacoa lhar e percebi o brasão vermelho de ComeU desenhado no prato, girando. Era bastante óbvio para mim que o brasão girava mais rápido do que vibrava. Eu estava sem nada para fazer, então comecei a calcular o movimento do prato em rotação. Descobri que, quando o ângulo é muito pequeno, o meda lhão gira duas vezes mais rápido do que vibra - na razão de dois para um. * *Nota do Revisor Técnico: Na verdade a razão é o oposto do que Feynman menciona: um para dois; o prato oscila mais rapidamente do que gira ao redor de seu eixo.
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Isto resultou de uma equação complexa! Então pensei: "Há alguma maneira de eu verificar, de forma mais fundamental, examinando as forças ou a dinâ mica, por que é dois para um? " Não lembro como fiz isso, mas, por fim, calculei o movimento das partí culas do prato e mostrei como todas as acelerações se combinam para resultar na razão dois para um. Ainda me lembro de ter ido a Hans Bethe e ter dito: "Ei, Hans! Percebi uma coisa interessante. O prato gira dessa forma, e a razão é de dois para um ... " E mostrei a ele as acelerações. Ele disse: "Feynman, isso é muito interessante, mas qual a sua importân cia? Por que você está fazendo isso?" -Ah! - eu digo. - Não tem importância alguma. Eu só estou fazendo pelo prazer de fazer. - A reação dele não me desencorajou; eu tinha decidido que iria desfrutar da física e que faria o que quisesse. Prossegui tentando obter as equações das vibrações. Então pensei sobre como os elétrons começam a mover-se nas suas órbitas na relatividade. De pois, há a equação de Dirac na eletrodinâmica. E depois a eletrodinâmica quântica. E antes que eu percebesse (demorou muito pouco) , eu estava "brin cando" - trabalhando, na verdade - com o mesmo velho problema que tanto amava e que eu havia parado de estudar quando fui para Los Alamos: meus problemas do tipo problema de tese; todas aquelas coisas fora de moda, mara vilhosas. Isso não exigia grandes esforços. Era fácil brincar com essas coisas. Era como abrir uma garrafa: tudo fluía sem esforço. Quase tentei resistir! Não ha via importância alguma no que eu estava fazendo, mas, no final, havia. Os dia gramas e todo esse negócio pelo qual recebi o prêmio Nobel se originaram dessa brincadeira com o prato vibrante.
Alg u ma perg u nta?
Quando estava em Cornell, pediram-me que ministrasse uma série de semi nários, uma vez por semana, em um laboratório de aeronáutica em Buffalo. Cornell fez um acordo com o laboratório que incluía palestras noturnas sobre física, e que seriam ministradas por alguém da universidade. Já havia alguém fazendo isso, mas havia queixas; então o departamento de física me procurou. Naquela época, eu era um jovem professor e não conseguia dizer não muito facilmente, assim concordei em apresentar os seminários. Enviaram -me para B uffalo por uma linha aérea composta de uma aerona ve. A linha aérea era a Robinson Airlines (que mais tarde passou a chamar-se MohawkAirlines) e lembro que na primeira vez que viajei, o Sr. Robinson era o piloto. Ele retirou o gelo das asas e partimos. No geral, não gostei da idéia de ir para Buffalo toda quinta-feira à noite. A universidade estava me pagando 3 5 dólares, além das minhas despesas. Eu era um fruto da Depressão e imaginei que economizaria os 3 5 dólares, uma quantia razoável, naquela época. De repente, uma idéia: percebi que o propósito dos 35 dólares era tornar a viagem até Buffalo mais atraente, e a forma de fazê-lo era gastar o dinheiro. Assim, decidi gastar os 35 dólares para divertir-me toda vez que fosse a Buffa lo e ver se conseguia fazer com que a viagem valesse a pena. Eu não tinha muita experiência com o resto do mundo. Sem saber por onde começar, pedi ao motorista do táxi que me pegou no aeroporto para me levar aos pontos quentes para divertir-me em Buffalo. Ele foi muito pres tativo e ainda me lembro do seu nome - Marcuso, que dirigia o carro núme ro 1 69. Sempre o chamava quando chegava no aeroporto nas quintas-feiras à noite. Como ia apresentar meu primeiro seminário, perguntei a Marcuso: "Onde há um bar interessante em que as coisas aconteçam?" Eu achava que as coisas aconteciam nos bares.
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- O Alibi Room - respondeu. É um lugar movimentado, onde se pode encontrar uma porção de gente. Eu o levo lá depois do seminário. Marcuso apanhou-me e levou-me ao Alibi Room. No caminho, perguntei-lhe: - Terei de pedir algum tipo de drinque. Qual a marca de um bom whisky? - Peça um Black and White e um copo de água - aconselhou. O Alibi Room era um lugar elegante com uma porção de gente e muitas coisas para fazer. As mulheres vestiam peles, todos eram gentis, e os telefones tocavam o tempo todo. Fui até o bar e pedi meu Black and White e um copo de água. O garçom era muito simpático, rapidamente encontrou uma bela mulher para sentar ao meu lado e apresentou-me a ela. Paguei-lhe uma bebida. Gostei do lugar e re solvi voltar na semana seguinte. Toda quinta à noite eu ia a Buffalo e era levado no carro 1 69 para minis trar o meu seminário, e daí para o Alibi Room. Entrava no bar e pedia meu Black and White, com um copo de água. Depois de algumas semanas, chegou a um ponto em que assim que eu entrava, antes mesmo de chegar ao balcão do bar, já tinha um Black and White, com um copo de água esperando por mim. "O de sempre, senhor", era o cumprimento do garçom. Tomava tudo de um gole só, para mostrar que era valente, como eu vira nos filmes, e ficava sentado cerca de vinte segundos antes de beber a água. Depois de um certo tempo, já nem precisava mais da água. O garçom sempre providenciava para que a cadeira vazia ao meu lado fosse rapidamente ocupada por uma bela mulher, e tudo recomeçava, mas, um pouco antes do bar fechar, eles todos precisavam ir a algum lugar. Eu pen sava que talvez fosse porque àquela altura estava bastante bêbado. U ma vez, quando o Alibi Room estava fechando, a garota para a qual eu estava pagando uns drinques naquela noite sugeriu que fôssemos a outro lu gar onde ela conhecia uma porção de gente. Era no segundo andar de algum outro prédio que não parecia, de forma alguma, ter um bar lá em cima. Todos os bares em Buffalo tinham de fechar às duas horas da manhã e todos os que estavam nos bares iam para essa sala enorme no segundo andar e continua vam a divertir-se - ilegalmente, é claro. Tentei descobrir uma forma de permanecer nos bares e observar o que es tava acontecendo, sem ficar bêbado. Uma noite, observei um sujeito que já es- . tava a um tempão no bar e que havia pedido um copo de leite. Todo mundo sa-
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bia qual era o problema dele: o pobre sujeito tinha uma úlcera. Isso me deu uma idéia. Chego mais uma vez no Alibi Room e o garçom diz: "O de sempre, se nhor?" - Não. Coca-Cola. Só umaCoca-Cola - digo, com um olhar desapontado. As outras pessoas juntam-se ao meu redor e solidarizam-se: " É, eu estava sem beber há três semanas", diz alguém. " É realmente muita coragem, Dick, é realmente muita coragem", diz outro. Todos me cumprimentaram. Eu agora estava "de molho" e tinha a co ragem de entrar naquele bar, com todas as suas "tentações", e simples mente pedir uma Coca- Cola - claro que era porque eu tinha d e ver meus amigos . Mantive essa história por um mês ! Eu era realmente um sujeito valente. Uma vez, estava no banheiro do bar e tinha um cara no mictório. Ele esta va um pouco bêbado, e disse-me em voz baixa: "Não gosto da sua cara. Acho que vou bater nela." Eu estava verde de medo. Respondi em voz baixa também: "Saia da mi nha frente, ou vou mijar em você!" Ele disse mais alguma coisa, e percebi que estávamos perto de brigar. Eu nunca tinha brigado. Não sabia exatamente o que fazer e estava com medo de me machucar. Pensei em uma coisa: me afastar da parede porque percebi que se ele me batesse eu também poderia bater nele. Então senti como se meu olho estivesse sendo triturado - não machucou muito - e só sei que daí a pouco estava batendo no patife de volta, automatica mente. Para mim, foi impressionante descobrir que não precisava pensar; a "máquina" sabia o que fazer. "OK. Está um a um", eu disse. "Tá a fim de continuar?" Ele deu as costas e saiu. Teríamos nos matado se o outro sujeito fosse tão idiota quanto eu. Fui me lavar, minhas mãos tremiam, minha gengiva sangrava - ela é um ponto fraco - e meu olho doía. Depois de me acalmar, voltei ao bar e fui todo arrogante até o garçom: "Black and White e um copo de água", pedi. Achei que isso me acalmaria. Não percebi, mas o sujeito que eu tinha socado no banheiro estava em ou tra parte do bar, conversando com outros três. Logo esses três caras - gran des, valentões - vieram até onde eu estava e se aproximaram. Olharam para
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mim de forma ameaçadora, e disseram: "Que idéia foi essa de provocar o nos so amigo? " Bem, sou tão estúpido que não percebi que estava sendo intimidado; tudo que sei é o que é certo e o que é errado. Simplesmente me levanto, toco nas costas deles e digo: "Que tal vocês primeiro descobrirem quem começou pri meiro antes de criar problemas? " Ficaram tão surpresos da intimidação deles não ter funcionado que de ram as costas e foram embora. Depois de um tempo, um deles voltou e me disse: "Você está certo. Curly sempre faz isso. Ele sempre se mete em brigas e nos pede para ajeitar a situação." -Você está dizendo que estou certo!? - respondi, e o homem sentou per to de mim. Curly e os outros dois aproximaram-se e sentaram perto de mim. Curly falou algo sobre meu olho não estar parecendo muito bom, e respondi que o dele também parecia não estar dos melhores. Continuei a conversar, destemido, pois achava que era assim que um ho mem de verdade devia agir em um bar. A situação foi ficando mais e mais difícil, e as pessoas no bar ficaram pre ocupadas com o que poderia acontecer. O garçom diz, então: "Sem brigas aqui, rapazes! Fiquem calmos!" Cur1y balbucia: "Tudo bem, nós o pegamos quando ele sair." Então aparece um salvador. Todo campo tem seus peritos de primeira ca tegoria. Esse aproximou-se de mim e disse: "Ei, Dan! Eu não sabia que você estava na cidade! Que bom ver você!" A seguir se dirige a Cur1y: "Fala aí, Paul! Queria que você conhecesse um grande amigo meu, o Dan, aqui. Acho que vocês vão gostar um do outro. Por que não se apertam as mãos? " Apertamos a s mãos. Curly diz: "Ah, prazer em conhecer." Então o gênio inclina-se para mim e, muito calmamente, sussurra: "Agora, cai fora daqui bem depressa!" - Mas eles disseram que iam. . . - Se manda! - ele diz. Peguei meu casaco e fui embora bem depressa, andando encostado às pa redes dos prédios, caso eles estivessem me procurando. Não apareceu nin guém, e fui para o meu hotel. Acontece que essa era a noite do último seminá rio; assim não voltei ao Alibi Roam, pelo menos por alguns anos.
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(Voltei ao Alibi Room cerca de 1 0 anos depois, e ele estava completamen te mudado. Não era mais agradável e limpo como antes; estava sebento, e seus freqüentadores eram deprimentes. Conversei com o garçom, que já não era o mesmo, e contei a ele sobre os velhos tempos. "Ah, sim!", respondeu. "Este era o bar onde todos os escritores e suas garotas costumavam vir." Aí entendi por que havia tantas pessoas gentis e bem apessoadas e porque o telefone não parava de tocar.) Na manhã seguinte, quando levantei e me olhei no espelho, descobri que leva algumas horas para um olho tornar-se totalmente roxo. Quando voltei para Ithaca naquele dia, fui entregar alguma coisa na sala do reitor. Um pro fessor de filosofia viu meu olho e disse: "Oh, Sr. Feynman! Não me diga que conseguiu esse olho roxo batendo numa porta!" - Realmente não - respondi. - Consegui esse olho roxo brigando no ba nheiro de um bar em Buffalo. - Há, há, há! - ele riu. Agora o problema era ministrar o seminário para minha turma regular. Entrei na sala com a cabeça baixa, estudando minhas anotações. Quando es tava prestes a começar, levantei a cabeça, olhei direto para eles e falei o que sempre dizia antes de começar minha palestra - mas desta vez em um tom de voz mais duro: "Alguma pergunta?"
Eu q uero o meu dól ar!
Quando estava em ComeU, ia a Far Rockaway com freqüência. Uma vez, quando estava em casa, o telefone tocou: era uma chamada interurbana, da Califórnia. Naquela época, uma chamada interurbana queria dizer algo muito importante, especialmente sendo daquele lugar tão maravilhoso, a Califórnia, a um milhão de milhas de distância. Alguém do outro lado da linha diz: " É o professor Feynman, da Universi dade de ComeU?" - Sim, sou eu. - Aqui é o Sr. Fulano de Tal, da Companhia Tal de Aviação. - Era uma das maiores fábricas de aeronaves da Califórnia, mas infelizmente não consi go me lembrar qual era. A pessoa continua: "Estamos planejando montar um laboratório para estudar o avião a jato de propulsão nuclear. O laboratório contará com um orçamento anual de tantos milhões de dólares . . . " Números altos. Falei: "Só um momento, senhor. Não sei por que o senhor está falando isso tudo para mim." - Deixe-me explicar - prosseguiu -, deixe-me explicar tudo, do meu jei to. - Então ele prossegue mais um pouco e fala sobre quantas pessoas estarão no laboratório, tantas pessoas neste nível e tantos PhDs no nível. . . - Desculpe-me, senhor, mas acho que o senhor está falando com a pessoa errada. - Eu estou falando com Richard -Feynman, Richard P. Feynman? - Sim, mas o senhor está . . . - Por favor, deixe-me dizer o que tenho a dizer e depois discutiremos. - Tudo bem! - Sentei-me e praticamente fechei os olhos para prestar atenção a tudo, sobre todos os detalhes desse grande projeto, mas ainda não tinha a menor idéia sobre o porquê de ele estar me dando toda aquela infor mação.
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Finalmente, quando terminou de falar, ele disse: "Estou contando nossos planos para o senhor porque queremos saber se o senhor estaria interessado em ser o diretor do laboratório." - O senhor tem certeza de que realmente está falando com a pessoa cer ta? - perguntei. - Sou professar de física teórica, não sou engenheiro de fo guetes, ou engenheiro de aeronaves, ou qualquer coisa do tipo. - Temos certeza de que estamos falando com a pessoa certa. - Então, onde o senhor conseguiu meu nome? Por que decidiu me chamar? - Senhor, o seu nome está na patente de aeronaves nucleares impulsiona das a foguete. Então percebipor que meu nome estava na patente, e devo contar a histó ria, e disse ao homem: "Sinto muito, mas eu gostaria de continuar como pro fessor na Universidade de ComeU." O que aconteceu foi que em Los Alamos, durante a guerra, havia um ra paz muito simpático, chamado capitão Smith, que era o responsável pelo es critório de patentes do governo. Smith fez circular um aviso a todos que dizia algo como: "Nós, do escritório de patentes, gostaríamos de patentear qual quer idéia que os senhores tenham para o governo dos Estados Unidos, para o qual os senhores estão trabalhando agora. Qualquer idéia que os senhores te nham a respeito da energia nuclear, ou da sua aplicação, e que acharem que todo mundo está ciente, devem ser comunicadas, pois, na verdade, nem todos estão cientes. Venham à minha sala e conversem comigo a respeito." Encontro com Smith no almoço e, quando estamos voltando para a área técnica, digo-lhe: "Aquela nota que você fez circular: parece loucura que nós tenhamos de ir a você contar cada idéia." Discutimos bastante - a essa altura, estávamos no escritório dele - e co mentei: "Há tantas idéias sobre energia nuclear que são perfeitamente óbvias que eu poderia passar o dia todo falando sobre o assunto." - Como o quê? - Nada em especial! - digo. - Por exemplo: reator nuclear ... sob a água... a água entra ... o vapor sai pelo outro lado ... Shshshshshsh é um submarino. Ou: reator nuclear ... o ar entra pela frente ... aquecido pela reação nuclear .. . sai pela parte de trás ... Bum! Pelo ar - é uma aeronave. Ou: reator nuclear . . . você faz o hidrogênio passar através da coisa . . . Zum! é um foguete. Ou: rea tor nuclear ... só que, em vez de usar urânio comum, se usa urânio enriquecido -
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com óxido de berílio em alta temperatura para torná-lo mais eficiente ... É uma usina de energia elétrica. Há milhões de idéias! - completei, enquanto saía da sala. Nada aconteceu. Cerca de três meses depois, Smith chama-me à sua sala e diz: "Feynman, o submarino já tem dono. Mas as três outras idéias são suas." Assim, quando o pessoal do fabricante de aviões da Califórnia que estava planejando o labo ratório tentou descobrir um perito em coisas impulsionadas por foguete e não achou ninguém, eles procuraram quem detinha a patente! De qualquer forma, Smith disse-me para assinar alguns papéis relativos às três idéias de que eu estava cedendo para que o governo as patenteasse. Sabe, é uma questão legal boba, mas quando se cede uma patente ao governo, o documento que se assina não tem valor legal, a menos que haja alguma tro ca; então o papel que assinei dizia: "Pela soma de um dólar, eu, Richard P. Feynman, cedo esta idéia ao governo ... " Assino o papel. - Onde está meu dólar? - Isso é só uma formalidade - retrucou. - Não temos fundo algum estabelecido para pagar esse um dólar. - Vocês têm toda a documentação que estou assinando pelo dólar. Eu quero meu dólar! - Isso é tolice - Smith protesta. - Não, não é tolice. É um documento legal. Você me fez assiná-lo e eu sou um homem honesto. Se assino alguma coisa que diz que recebi um dólar, te nho de receber um dólar. Não há tolice nisso. - Tudo bem, tudo bem! - ele diz, desesperado. - Eu vou te dar um dólar, do meu bolso! - Tudo bem. Apanho o dólar e penso no que vou fazer. Desço até o armazém e compro um dólar - o que era bastante naquela época - de biscoitos e doces, aqueles doces de chocolate com marshmallow dentro, uma porção de coisas. Volto ao laboratório teórico e os distribuo: "Ganhei um prêmio, pessoal! Peguem um biscoito! Ganhei um prêmio! Um dólar pela minha patente! Ga nhei um dólar pela minha patente!" Todo mundo que tinha uma patente daquelas - uma porção de gente - foi ao capitão Smith: eles queriam seu dólar!
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Ele começou a tirar o dinheiro do bolso, mas logo percebeu que seria uma sangria! Ficou louco tentando criar um fundo de onde pudesse conseguir os dólares que essas pessoas insistiam em receber. Não sei como ele resolveu o problema.
Você s i m plesmente pergunta a elas?
Quando estive pela primeira vez em ComeU, correspondia-me com uma garota que conhecera no Novo México, enquanto trabalhava na bomba. Quando ela mencionou alguns sujeitos que tinha conhecido, comecei a pensar que seria melhor sair rapidamente de ComeU ao final do ano letivo e tentar salvar a situação. Mas quando viajei, descobri que era tarde demais; então acabei em um motel, em Albuquerque, no verão, livre e sem nada para fazer. O Casa Grande Motel ficava na Rota 66, a principal auto-estrada que atravessava a cidade. Cerca de três prédios mais abaixo, havia uma pequena boate na qual era possível divertir-se. Uma vez que eu não tinha nada para fa zer e como gostava de observar e encontrar pessoas em bares, ia muitas vezes a essa boate. A primeira vez que fui até lá, estava conversando com alguém no bar e percebemos uma mesa ocupada por várias moças bonitas - acho que eram ae romoças da TWA, celebrando uma festa de aniversário. O outro cara disse: "Vamos criar coragem e convidá-las para dançar." Então convidamos duas delas para dançar e, depois de algum tempo, elas nos convidaram para sentar à mesa com as outras moças. Depois de alguns drinques, o garçom chegou: "Alguém quer fazer um pedido? " E u gostava de fingir que estava bêbado e assim, apesar de estar completa mente sóbrio, me virei para a garota com quem estava dançando e perguntei, com voz de bêbado: - Você quer alguma coisa? - O que pode ser? - ela pergunta. - Quaaaaaaaaaaaaaaaaaall111quer coisa que você queira -qualquer coisa! . - Tá bom. Vamos pedir champanhe! - ela diz, toda contente. Aí falo bem alto, tão alto que todo mundo no bar pode ouvir: "Tudo bem! Ch-ch-champanhe para toooooooodo mundo!"
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Então ouço meu amigo falando com a minha garota, dizendo como não ficava bem "tirar toda aquela grana dele só porque ele estava bêbado". Come cei a achar que tinha cometido um engano. Bem, o garçom aproxima-se de mim, com toda educação, abaixa-se e diz, baixinho: "Senhor, custa dezessf!Ís dólares a garrafa. " Decidi deixar de lado a idéia da champanhe para todo mundo; então disse mais alto ainda do que antes: "Deixa pra lá! " Por isso, fiquei muito surpreso quando, um pouco depois, o garçom volta à nossa mesa com aquela coisa maravilhosa - um guardanapo branco envolto no seu braço, uma bandeja cheia de taças, um balde cheio de gelo e uma gar rafa de champanhe. Ele achou que eu quis dizer: "Deixa pra lá o preço ", mas eu quis dizer: "Deixa pra lá o champanhe! " O garçom serviu champanhe para todo mundo, paguei os dezesseis dólares e meu amigo ficou zangado com a minha garota porque achou que ela me fizera gastar muita grana. Mas, até onde eu sabia, as coisas terminariam por aí - pelo contrário, isso era apenas o começo de uma nova aventura. Eu ia bastante àquela boate, e depois de algumas semanas o show mudou. Os artistas estavam em uma turnê que passava por Amarillo em vários outros lugares no Texas, e sabe Deus onde mais. A boate tinha uma cantora que se chamava Tamara. Toda vez que um grupo de artistas vinha ao clube, Tamara me apresentava a uma das garotas do grupo. A garota vinha e sentava na mi nha mesa, eu pagava uma bebida para ela e conversávamos. É claro que eu gostaria de fazer mais do que simplesmente conversar, mas sempre acontecia alguma coisa no último minuto para atrapalhar. Por isso nunca consegui en tender por que Tamara sempre se dava ao trabalho de apresentar-me todas essas garotas maravilhosas e depois, apesar das coisas começarem muito bem, eu sempre acabava pagando bebidas, passando a noite conversando, mas era só isso. Meu amigo, que não contava com a boa vontade da Tamara, também não conseguia nada - éramos dois trouxas. Depois de algumas semanas de diferentes shows e diferentes garotas, chegou uma nova turnê e, como sempre, Tamara me apresentou a uma garota do grupo. Passamos pelo processo habitual - eu pagando uns drinques para ela e ela sendo muito agradável. Depois de fazer sua apresentação, voltou para a minha mesa e me senti muito bem. As pessoas deviam estar imaginan do: "O que ele tem para que essa garota volte para ele ? "
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Mas então, perto do final da noite, ela disse algo que, àquela altura, eu já ouvira diversas vezes : "Gostaria que você viesse ao meu quarto esta noite, mas estamos dando uma festa, então quem sabe amanhã à noite . . . " - e eu sa bia o que esse "quem sabe amanhã à noite" queria dizer: NADA. Bem, durante a noite, eu havia notado que essa garota - o nome dela era Glória - conversava freqüentemente com o mestre-de-cerimônias durante o show' e também quando ia ou vinha do toalete. Então, em uma das vezes, aconteceu de o mestre-de-cerimônias passar perto da minha mesa, joguei "verde" e disse: "Sua esposa é uma mulher encantadora." Ele disse: "Sim, obrigado", e começamos a conversar um pouco. Ele achava que ela havia me contado. E Glória, quando voltou, achou que ele ha via me contado. Então os dois conversaram um pouco comigo e me convida ram para ir à casa deles naquela noite, quando o bar fechasse. Às duas da manhã, fui ao motel em que estavam, junto com eles. É claro que não havia festa alguma, e conversamos bastante. Eles me mostraram um álbum com fotos da Glória da época em que o seu marido a conhecera em Iowa: uma mulher simples, um pouco gorda; depois outras fotos dela depois de emagrecer e aí realmente estava linda! O marido havia ensinado a ela todo tipo de coisa, mas ele não sabia ler nem escrever, o que era bastante interes sante, pois tinha a tarefa, como mestre-de-cerimônias, d e ler o título dos shows e dos artistas que participavam do concurso de artistas amadores, e eu não havia percebido que ele não sabia ler o que estava "lendo" ! (Depois vi como eles faziam. Enquanto ela trazia ou levava uma pessoa até palco, olhava para o papel que estava na mão dele e sussurrava os nomes dos artistas e o tí tulo do show enquanto passava.) Formavam um casal muito interessante, amável, e tivemos muitas con versas agradáveis. Relembrei-Ihes como nos conhecemos e perguntei-lhes por que Tamara estava sempre apresentando-me às novas garotas. Glória respondeu: "Quando a Tamara apresentou-me a você, ela disse: 'Agora vou te apresentar o verdadeiro mão-aberta daqui! ' " Pensei um pouco e percebi que a garrafa de champanhe, de dezesseis dólares, comprada com um "deixa pra lá " tão-vigoroso e um mal-entendido tornara-se um bom investimento. Eu, aparentemente, tinha a reputação de ser uma espécie de excêntrico que sempre chegava sem estar arrumado, sem um terno de bom gosto, mas sempre pronto a gastar muito dinheiro com as garotas.
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Por fim, contei-lhes algo que me impressionava: "Sou bastante inteligen te" , disse, "mas, provavelmente, apenas para a física. Mas naquele bar há um monte de caras inteligentes - petroleiros, mineradores, homens de negócios importantes e assim por diante - e eles passam o tempo todo pagando drinques para as garotas e não ganham na�a com isso! " (A essa altura, eu já deduzira que ninguém conseguia nada pagando drinques.) "Como é possível", perguntei, "que um cara 'inteligente' possa ficar tão idiota quando entra em um bar? " O mestre-de-cerimônias disse: "Disso eu entendo. Sei exatamente como a coisa funciona. Vou te dar umas aulas, e de agora em diante, você vai passar a conseguir alguma coisa das garotas. Mas, antes de te dar as aulas, devo de monstrar que realmente sei o que estou falando. Para isso, Glória vai conse guir que um homem pague um coquetel de champanhe para você. " Digo: "Tudo bem", apesar de estar pensando, "como será que eles vão fa zer isso? " O mestre continuou: "Só que você tem de fazer exatamente o que nós dis sermos. Amanhã à noite no bar, você deve sentar-se um pouco afastado de Glória e, quando ela fizer um sinal, tudo que você tem a fazer é se aproximar." - Sim - diz Glória. - Vai ser fácil. Na noite seguinte, vou ao bar e sento-me no canto de onde posso olhar Glória a distância. De fato, depois de um certo tempo, lá estava alguém senta do com ela, e depois de mais um tempinho o cara está feliz, e Glória me dá uma piscadela. Eu me levanto e, com indiferença, vou passando por eles, e Glória se vira e fala num tom realmente amigável e carinhoso: "Ah, oi, Dick! Quando você chegou? Por onde você andava?" Nesse momento, o cara se vira para ver quem é esse "Dick", e vejo em seus olhos algo que entendo muito, visto que já estive na situação dele várias vezes. Primeira olhada: "Oh-oh, competição chegando. Ele vai levá-la daqui de pois que paguei um drinque para ela! O que vai acontecer? " Próxima olhada: "Não, é só um bom amigo. Eles parecem conhecer-se já há algum tempo." Eu podia ver tudo isso. Podia ler isso no rosto dele. Eu sabia exatamente o que estava se passando. Glória se vira para ele e diz: "Jim, gostaria que você conhecesse um velho amigo meu, Dick Feynman." Próxima olhada: "Sei o que vou fazer; serei gentil com ele, e ela gostará ainda mais de mim. "
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Jim se yira para mim e diz: "Oi, Dick. Que tal um drinque?" - Tudo bem - respondo. - O que você quer? - O que ela estiver bebendo. - Garçom, oútro coquetel de champanhe, por favor. Foi fácil; não teve nada demais. Naquela noite, depois que o bar fechou, fui de novo ao motel do mestre-de-cerimônias e de Glória. Eles estavam rindo e brincando, felizes por como tudo havia corrido. "Tudo bem", concordei, "estou totalmente convencido de que vocês dois sabem exatamente sobre o que estão falando. Agora, e as aulas? " - Tudo bem - ele diz. - O princípio é o seguinte: o homem quer ser um cavalheiro. Não quer dar a impressão de ser mal-educado, rude ou, principal mente, sovina. Uma vez que a garota conhece muito bem a motivação do sujeito, é fácil levá-lo para onde ela quiser. - Assim - prosseguiu ele - em hipótese alguma seja um cavalheiro! Você deve desrespeitar as garotas. Além disso, a principal regra é: não pague nada para uma garota, nem mesmo um maço de cigarros, até que você tenha per guntado se ela vai dormir com você, e esteja convencido de que ela realmente vai, que ela não está mentindo. - Ah ... você quer dizer ... você não ... ah ... você simplesmente pergunta a elas? - É isso - ele diz. - Sei que essa é sua primeira lição e que pode ser difícil para você ser tão insensível. Então, pague alguma coisa para ela, só uma coisi nha' antes de perguntar. Mas, por outro lado, isso só tornará as coisas mais difíceis. Bem, só é preciso que alguém me diga o princípio que eu pego a idéia. Durante todo o dia seguinte preparei meu lado psicológico de forma diferen te: adotei a postura de que todas as garotas do bar eram prostitutas, que não valiam nada e só estavam lá para você pagar uma bebida para elas, e elas não te dariam coisa alguma; não serei cavalheiro com prostitutas tão inúteis, e as sim por diante. Repeti isso até assimilar bem. Assim, naquela noite, eu estava preparado para fazer uma tentativa. Entro no bar como sempre, e logo meu amigo diz: "Ei, Dick! Espera só até você ver a garo ta que eu te arranjei esta noite! Ela foi trocar de roupa, mas já está voltando." - Tá, tá - digo, sem me impressionar muito, sento em outra mesa para as sistir ao show. A garota do meu amigo vem até mim assim que o show começa, ,
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e penso: "Não dou a mínima para o quanto ela é bonita; tudo que ela está fa zendo é chegar perto dele para que ele lhe pague uns drinques, e ela não vai dar nada a ele!" Depois do primeiro ato, meu amigo diz: "Ei, Dick! Quero que você conheça Ann. Ann, esse é um vdho amigo meu, Dick Feynman." Digo: "Oi", e continuo a assistir ao show. Algum tempo depois, Ann diz: "Por que você não senta aqui conosco? " Digo para mim mesmo: "Típica cadela: ele está pagando-lhe drinques e ela está convidando outra pessoa para sentar-se com eles." Eu digo: "Dá para eu ver bem daqui." V m pouco depois, um tenente da base militar vizinha aproxima -se, vesti do em um belo uniforme. Não demorou muito e vejo Ann sentada do outro lado do bar com o tenente! Mais tarde, naquela mesma noite, eu estava sentado no bar, Ann dançava com o tenente, e quando este ficou de costas para mim e ela de frente, ela sor riu muito amavelmente para mim. Penso mais uma vez: "Cadela! Agora ela está aplicando esse truque até mesmo com o tenente!" Então tenho uma idéia: não olho para ela até que o tenente também possa me ver, e aí sorrio de volta para ela, de forma que o tenente fique sa bendo o que está acontecendo. Desse modo, o truque dela não vai durar muito. Alguns minutos depois, ela já não estava mais com o tenente, mas pedia ao garçom o casaco e a bolsa, dizendo bem alto: "Vou dar uma caminhada. Alguém quer dar uma volta comigo? " Penso comigo mesmo: "Você pode continuar a dizer não e afastá-los, mas não pode fazer isso para sempre ou não chegará a lugar algum. Chega uma hora em que você tem que ceder." Então disse, friamente: "Eu vou dar uma volta com você." Aí saímos. Andamos alguns quarteirões e vemos um café, e ela diz: "Tive uma idéia - vamos pegar um café e uns sanduíches, de pois vamos ao meu apartamento comer!" A idéia parece bastante boa; então vamos ao café e ela pede três cafés e três sanduíches, e eu os pago. Quando estamos saindo do café, penso comigo mesmo: "Tem alguma coisa errada: tem sanduíche demais!" A caminho do motel, ela diz: "Sabe, não vou ter tempo de comer esses sanduíches com você porque o tenente está chegando . . . "
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Penso comigo mesmo: "Veja, fui reprovado. O mestre deu-me uma lição sobre o que fazer e me dei mal. Gastei um dólar e dez centavos com sanduí ches e não pedi nada a ela, e agora sei que não vou conseguir nada com ela! Preciso me recuperar, nem que seja para o orgulho do meu professor." De repente, paro, e digo a ela: "Você é pior do que uma PROSTITUTA!" - Que é isso? - Você me fez comprar esses sanduíches e o que ganharei em troca? Nada! - Bem, seu pão-duro! - ela diz. - Se é assim que você se sente, eu te reem bolso os sanduíches! Blefei: "Então me pague." Ela ficou sem fala. Buscou em sua bolsa, pegou o pouco dinheiro que ti nha e o entregou a mim. Peguei meu sanduíche e meu café e fui embora. Depois de comer, voltei ao bar para contar ao mestre. Expliquei tudo e disse que sentia muito por ter falhado, mas que eu tentara me recuperar. Ele disse, muito calmo: "Tudo bem, Dick; está tudo bem. Uma vez que você acabou por não comprar nada para ela, ela vai dormir com você hoje." - O quê? - É isso aí - ele disse todo confiante - ela vai dormir com você. Eu sei. - Mas ela sequer está aqui! Ela está na casa dela com o tenente. - Tudo bem. Passam-se duas horas, o bar fecha e nada de Ann aparecer. Pergunto ao mestre e à sua esposa se posso ir à casa deles de novo. Eles dizem que tudo bem. Bem na hora que estamos saindo do bar, chega Ann, correndo na Rota 66, em minha direção. Ela apóia o seu braço no meu, e diz: "Vamos lá para minha casa." O mestre estava certo. A lição foi o máximo! Quando voltei a ComeU no outono, eu estava dançando com a irmã de um estudante de pós-graduação, que era da Virgínia e estava lá de visita. Ela era muito legal, e de repente tive a idéia: "Vamos a um bar tomar um drinque", propus. No caminho para o bar, eu estava me preparando para verificar a lição com uma garota comum. Afinal, não dá para se sentir muito mal desrespeitan do uma garota de bar que está querendo que você lhe pague um drinque - mas uma garota bacana, c.omum, do Sul?
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Entramos no bar, e antes de me sentar eu disse: "Ouça, antes de pagar um drinque para você, quero saber uma coisa: você vai dormir comigo hoje?" - Sim. Então funcionava até mesmo com uma garota comum! Mas, independen te de quão eficiente tenha sido a liçã�, nunca mais a usei depois disso! Eu não gostava de agir assim. Mas era interessante saber que as coisas funcionavam de um modo muito diferente de como eu havia sido criado.
N ú me ros da sorte
Um dia, em Princeton, eu estava sentado no sofá e ouvi alguns matemáticos conversando sobre a série para eX, que é 1 + x + x2/2! + x3 /3!. . . . Você obtém cada termo multiplicando o termo precedente por x e dividindo-o pelo próxi mo número. Por exemplo, para obter o termo que vem depois de x4/4!, você multiplica esse termo por x e divide-o por 5 . É muito simples. Quando eu era garoto, era louco por séries e havia brincado com esse tipo de coisa. Eu havia calculado o número e* utilizando aquela série, e verificado a rapidez com que os novos termos tornavam-se muito pequenos. Resmunguei alguma coisa sobre como era fácil calcular e elevado a qual quer potência, utilizando aquela série (é só substituir a potência de x) . Ah é? - Eles disseram. - Bem, então qual é o valor de e elevado a 3,3? disse algum gozador. Acho que foi Tukey. Respondo: " É fácil. É 2 7, 1 1 ." Tukey sabe que não é tão fácil fazer o cálculo todo de cabeça. "Ei, como você sabe?" Outro diz: "Você conhece Feynman, ele está blefando. Não está realmen te certo." Foram apanhar uma tabela, e enquanto isso acrescento mais alguns dígitos: "2 7, 1 1 26", digo. Eles encontram-no na tabela. "Está certo! Mas como você fez isso?" - Eu só somei a s séries. - Ninguém consegue somar as séries com essa rapidez. Você simplesmente memorizou. Quanto é o valor de e elevado a 3 ? Veja - digo. É trabalho duro! Só um por dia! -
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*Nota do Tradutor: O número e=2, 7 1 828 . . é uma das constantes matemáticas mais fa mosas, e aparece em vários contextos físicos e matemáticos. .
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- Ah! É um truque! - eles dizem, todos contentes. - Tudo bem, é 20,085. Eles procuram a resposta no livro enquanto acrescento mais alguns dígi tos. Eles agora estão muito excitados porque consegui acertar mais um. Aqui estão os grandes matemáticos da época, quebrando a cabeça para descobrir como eu podia calcular e elevado a qualquer potência! Um deles disse: "Ele simplesmente não pode estar substituindo e somando - é muito difícil. Tem algum truque. Você não poderia efetuar o cálculo com qualquer outro número conhecido como, por exemplo, o valor de e eleva do a 1 ,4." Respondo: " É um trabalho duro, mas, para você, tudo bem. É 4,05." Enquanto eles estão procurando, acrescento mais alguns dígitos: "E esse é o último por hoje!", e saio. Explico: eu conhecia três números - o logaritmo de 1 ° na base e (neces sário para converter os números de base 1 ° para a base e), que é 2,3026 (en tão sabia que e elevado a 2,3 ficava muito próximo de 1 0) , e por causa da radi oatividade (vida média e meia-vida) , eu sabia o log de 2 na base e, que é 0, 693 1 5 (então eu também sabia que e elevado a 0,7 é quase igual a 2) . Tam bém sabia o valor e (elevado a 1 ) , que é 2, 7 1 828. O primeiro número que eles me apresentaram era e elevado a 3,3, que é e elevado a 2,3 vezes e, ou seja: dez vezes e, ou 27, 1 8. Enquanto suavam para descobrir como eu conseguia isso, eu fazia a correção dos 0,0026 extra 2,3026 é um pouco exagerado. Eu sabia que não poderia fazer outro cálculo; aquilo era pura sorte. Mas aí um deles perguntou e elevado a 3 : isso é e elevado a 2,3 vezes e elevado a 0,7, ou dez vezes dois, portanto eu sabia que era 20 mais qualquer coisa, e, enquanto eles se preocupavam como eu tinha feito isso, fiz os ajustes para os 0,693. Agora eu tinha certeza de que não poderia efetuar outro cálculo, porque o último tinha sido resolvido por pura sorte. Mas eles insistiram, e propuseram e elevado a 1 ,4, que é e elevado a 0,7 vezes ele mesmo. Assim, tudo que tinha a fazer era ajustar um pouco até 4! Eles nunca descobriram como fiz isso. Quando estava em Los Alamos, descobri que Hans Bethe era absoluta mente fantástico em cálculos. Uma vez estávamos inserindo alguns números em uma fórmula e chegamos a 48 ao quadrado. Procurei a calculadora Mar-
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chant, e ele disse: "Dá 2.300." Começo a apertar os botões, e ele diz: "Se você quer um resultado exato, é 2.304." A máquina dá 2.304. "Nossa! É impressionante!", afirmo. -Você não sabe como elevar ao quadrado os números próximos de 50? perguntou ele. -Você eleva 50 ao quadrado� o que dá 2.500, e subtrai 1 00 ve zes a diferença entre o seu número e 50 (neste caso é 2), aí dá 2.300. Se quiser a correção, eleve a diferença ao quadrado e some-a a este número, o que vai dar 2.304. Alguns minutos depois, precisamos tirar a raiz cúbica de 2Y2. Para tirar raízes cúbicas na Marchant, era preciso usar uma tabela para fazer uma pri meira aproximação. Abri a gaveta para pegar a tabela - desta vez ele demora um pouco mais, mas diz: " É cerca de 1 ,3 5 ." Faço o cálculo na Marchant, e está correto. "Como você fez essa? ", per gunto. "Você tem algum segredo para extrair a raiz cúbica dos números? " -Ah - ele diz - o log d e 2 Y2 vale tanto. Agora, um terço deste log está en tre os logs de 1 ,3, que é tanto, e de 1 ,4, que é tanto, aí interpolei. Descobri uma coisa: primeiro, ele sabia a tabela de logaritmos de memória; segundo, eu gastaria mais tempo com a quantidade de cálculos aritméticos que ele precisava efetuar só para fazer a interpolação, do que procurando.� tabela e apertando os botões da calculadora. Eu estava muito impressionado. Depois disso tentei fazer o mesmo. Decorei alguns logaritmos e comecei a perceber algumas coisas. Por exemplo, se alguém diz "Quanto é 28 ao qua drado?", você percebe que a raiz quadrada de 2 é 1 ,4, e 28 é 20 vezes 1 ,4; as sim, o quadrado de 28 deve ser cerca de 400 vezes 2, ou 800. Se alguém quer dividir 1 por 1 , 73, você pode dizer imediatamente que o resultado é 0,5 7 7, porque você observou que 1 , 73 é aproximadamente a raiz quadrada de 3 ; então, 1 / 1 , 73 deve ser um terço da raiz quadrada de 3 . E se for 1 / 1 , 75, é igual ao inverso de 7/4, e você memorizou os decimais repetitivos para sétimos: 0,5 7 1 428 ... * Eu me divertia muito com Hans tentando fazer a aritmética rapidamente, usando truques. Era muito raro perceber algo que ele não houvesse percebi do, e eu apostava com ele, que ria muito quando eu conseguia acertar uma, sobre a resposta. Ele quase sempre conseguia obter a resposta para qualquer
*Nota do Tradutor: Isto é, 1 /7, 2/7, 3/7, ...
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problema sobre porcentagem. Para ele era fácil - ele fazia a associação dos números com alguma coisa que ele conhecia. Um dia, estava me sentindo o máximo. Estava almoçando na área técnica e não sei como tive essa idéia, mas anunciei: "Posso resolver, em sessenta se gundos, qualquer problema qU8 uma pessoa me proponha em dez segundos, com 1 0% de precisão!" As pessoas começaram a apresentar-me problemas que achavam ser difí ceis, tais como integrar funções do tipo 1 / ( 1 + x4) , que mal variava dentro dos limites que eles me davam. O problema mais difícil que me apresentaram foi o coeficiente binomial de x10 na expansão de ( 1 + X)20; consegui resolvê-lo em cima da hora. Todos me apresentavam problemas, e eu estava me sentindo o máximo, quando Paul Olum entrou na sala. Paul tinha trabalhado comigo durante um tempo em Princeton antes de vir para Los Alamos e sempre foi mais astuto do que eu. Por exemplo, um dia, eu estava distraído, brincando com uma daque las fitas métricas que voltam de uma vez só para a mão quando se aperta um botão. A fita sempre serpenteava e atingia a minha mão; isso machucava um pouco. "Nossa!", eu disse. "Que estúpido sou. Fico brincando com isso e sempre me machuco." Ele disse: "Você não a segura da forma correta", e pegou a coisa, puxou a fita, pressionou o botão e a fita voltou direitinho. Sem dor. - Uau! Como você faz isso? - perguntei. - Adivinhe! Passei as duas semanas seguintes passeando por Princeton puxando e fe chando a fita, até que minha mão ficou em carne viva. Por fim, não agüentava mais. "Paul! Desisto! Como é que você segura essa coisa para não se machucar?" - Quem disse que não machuca? Ela me machuca também! Eu me senti muito estúpido. Ele havia me feito ficar tentando e machu cando minha mão por duas semanas! Bem, Paul está passando pelo refeitório e todos estão muito animados. "Ei, Paul!", eles gritam. "Feynman é demais! Nós damos um problema que possa ser proposto em dez segundos e em um minuto ele dá a resposta com uma mar gem de 1 0% de erro. Por que você não apresenta um problema a ele?" Sem pensar muito, ele disse: "A tangente de 1 O elevada a 1 00." Eu estava perdido: você tem de dividir por 1t com uma precisão de 1 00 ca sas decimais! Sem chances.
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Uma vez me gabei: "Posso resolver com outros métodos qualquer inte gral que as pessoas precisem da integração de contorno para efetuá-la." Aí Paul apresenta essa tremenda integral, que ele tinha obtido a partir de uma função complexa cuja integral ele sabia, retirando a sua parte real e dei xando apenas a parte complexa. Ele tinha apresentado a integral, de forma tal que só era possível efetuá-la por meio da integração de contorno! Ele sempre acabava comigo assim, era um cara muito esperto. Na primeira vez que fui ao Brasil, eu estava fazendo um lanche à noite, não sei a que horas - sempre estava nos restaurantes na hora errada -, e era o único freguês do lugar. Eu estava comendo arroz com bife (que eu adorava) , e havia cerca de quatro garçons esperando. Um japonês chegou ao restaurante. Eu já o tinha visto, andando por ali tentando vender ábacos. Ele começou a conversar com os garçons e lançou um desafio: disse que conseguia efetuar somas bem mais rapidamente do que qualquer um deles. Os garçons não quiseram perder a pose, então disseram: "Tá, tá. Por que você não chega ali e desafia aquele freguês? " O homem chegou perto de mim. Protestei: "Mas não falo bem o português!" Os garçons riram. "Os números são fáceis", eles disseram. Eles me trouxeram um lápis e papel. O homem pediu a um garçom que sugerisse alguns números para serem somados. Ele me venceu porque, enquanto eu estava escrevendo os números, ele já os estava somando. Sugeri que o garçom escrevesse duas listas idênticas de números e nos entregasse ao mesmo tempo. Não fez muita diferença. Ele ainda ganhou mais algumas. No entanto, o homem ficou um pouco animado: queria provar mais para . ele mesmo. "Multiplicação! ", * disse ele. Alguém escreveu um problema. Ele venceu de novo, mas não por muito, porque sou bastante bom em produtos. Aí o homem cometeu um erro: propôs que passássemos à divisão. O que ele não percebeu foi que quanto mais difícil fosse o problema, mais chances eu teria. *Nota do Tradutor: Em português no original.
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Nós dois fizemos um problema de divisão. Deu empate. Isso fez com que o japonês virasse bicho, porque, aparentemente, ele era muito bem treinado no ábaco e quase foi derrotado por este freguês no res taurante. -Raios cúbicos!* - diz ele, �m tom de vingança. Raízes cúbicas! Ele quer efetuar a raiz cúbica com aritmética! É difícil encontrar em aritmética um problema fundamental que seja mais complicado. Deve ter sido seu exercício mais marcante na abacolândia. Ele escreve um número em um papel - qualquer número conhecido -, e ainda me lembro do número: 1 729,03 . Ele começa a trabalhar nele, resmun gando o tempo todo: " Uuuuummmmmhhhhhh " - trabalha como o diabo! Está suando muito fazendo essa raiz cúbica. Nesse meio-tempo, só fico ali, sentado. Um dos garçons diz: "O que o senhor está fazendo?" Aponto para minha cabeça. "Pensando!", digo. Escrevo 12 no papel. De pois de um certo tempo, chego a 1 2,002. O homem com o ábaco limpa o suor da testa: "Doze!", ele diz. -Ah, não! - digo. - Mais dígitos! Mais dígitos! - Eu sei que na extração da raiz cúbica pela aritmética cada novo dígito dá ainda mais trabalho do que o anterior. É um trabalho duro. Ele concentra-se novamente, rosnando, "Rrrrrrrrrrrmmmmm. . . ", en quanto adiciono mais dois dígitos. Finalmente, ele levanta a mão para dizer: " 1 2,0!" Os garçons estão animados e contentes! Eles dizem ao homem: "Olha só! Ele faz isso só pensando, e você precisa de um ábaco! Ele tem mais dígitos!" Ele levou uma surra e saiu humilhado. Os garçons cumprimentaram-se uns aos outros. Como o cliente derrotou o ábaco? O número era 1 729,03 . Acontece que eu sabia que um pé cúbico contém 1 .728 polegadas cúbicas; então a resposta é pouco mais que 1 2. O excesso, 1 ,03, é apenas uma parte em aproximada mente 2.000, e eu havia aprendido em cálculo que, para pequenas frações, o excesso da raiz cúbica é um terço do excesso do número. Aí, tudo que tive de fazer foi encontrar a fração 1 / 1 728 e multiplicar por 4 (dividir por 3 e multi plicar por 1 2) . Daí pude escrever um monte de dígitos dessa forma. *Nota do Tradutor: Em português no original. Evidentemente o autor quer dizer raiz cúbica.
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Algumas semanas mais tarde, o japonês chega à sala de recepção do hotel em que eu estava hospedado. Ele reconheceu-me e aproximou-se. "Agora diga", diz ele, "como você conseguiu resolver o problema da raiz cúbica de modo tão rápido? ". Comecei a explicar-lhe que era um método de aproximação e tinha a ver com a porcentagem de erro. "Suponha que você tivesse me dado 28. A raiz cúbica de 27 é 3 ... " Ele pega seu ábaco: zzzzzzzzzzzzz "Ah sim", ele diz. Percebi uma coisa: ele não conhece números. Com o ábaco, você não tem de decorar uma porção de combinações aritméticas; tudo que se tem a fazer é mover as continhas para cima e para baixo. Você não precisa decorar 9 + 7 1 6; simplesmente sabe que, quando soma 9, você sobe uma conta de dez e desce uma conta de um. Assim, somos mais vagarosos na aritmética, mas co nhecemos os números. Além do mais, a idéia de um método de aproximação estava além da capa cidade dele, apesar de uma raiz cúbica geralmente não poder ser calculada, com exatidão, por método algum. Assim, nunca consegui ensinar-lhe como efetuei as raízes quadradas ou explicar a sorte que tive quando ele escolheu 1 729,03. -
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o amencan o, outra vez! *
Uma vez dei carona a um mochileiro que me contou como a América do Sul era interessante e disse-me que eu deveria ir até lá. Respondi que a língua é di ferente' mas ele me incentivou a ir em frente e aprendê-la - não chega a ser um grande problema. Aí pensei, é uma boa idéia: irei para a América do Sul. ComeU tinha algumas aulas de língua estrangeira que seguiam um méto do utilizado durante a guerra no qual pequenos grupos de cerca de dez alunos e um falante nativo conversavam apenas na língua estrangeira - nada além disso. Como eu era um professor de ComeU de aparência relativamente jo vem, resolvi tomar as aulas como se fosse um estudante comum. E, uma vez que ainda não sabia para qual país da América do Sul eu iria, resolvi estudar espanhol, porque lá na maioria dos países se fala espanhol. Assim, quando chegou a época de fazer a matrícula para os cursos, estávamos parados lá fora, prontos para entrar na sala, quando uma loira vo luptuosa apareceu. Sabe quando você sente algo assim, "Nossa!"? Ela era o máximo. Eu disse para mim mesmo: "Talvez ela esteja na aula de espanhol vai ser ótimo! " Mas, não, ela entrou na aula de português. Aí percebi que também deveria estudar português. Comecei a caminhar bem atrás dela, quando minha origem anglo saxônica interferiu: "Não, esse não é um bom motivo para escolher qual a lín gua a estudar." Sendo assim, voltei e matriculei-me na aula de espanhol, para meu grande arrependimento. Algum tempo depois, eu estava na Sociedade de Física em Nova York e me vi sentado ao lado de Jaime Tiomno,** do Brasil, e ele pergúntou-me: "O que você vai fazer no próximo verão? " 4
*Nota do Revisor Técnico: E m português no original. **Nota do Tradutor: O professor Jaime Tiomno é um dos mais renomados físicos teóricos brasileiros.
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- Estou pensando em ir à América do Sul. - Ah! Por que você não vai ao Brasil? Consigo um cargo para você no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. * Agora eu tinha de transformar todo aquele espanhol em português! Descobri um estudante de pós-graduação português em ComeU que me deu aulas duas vezes por semana, e pude alternar com o que tinha aprendido. No avião para o Brasil, comecei o vôo sentado perto de uma pessoa da Colômbia, que só falava espanhol; não conversei com ele porque eu não que ria me confundir de novo. Mas, bem na minha frente, estavam sentados dois passageiros que conversavam em português. Eu nunca tinha ouvido portu guês de verdade, só tinha ouvido aquele professor que falava muito deva gar e claro. Assim, cá estão esses dois caras conversando muito rápido, brrrrrrr-a-ta brrrrrrr-a-ta, e não pude sequer ouvir a palavra que se utilizava para falar "eu", ou para "o" ou qualquer coisa do tipo. Por fim, quando fizemos uma escala para reabastecimento em Trinidad, fui até os dois e disse-lhes, em um português muito lento, ou no que eu achava ser português: "Com licença... vocês conseguem entender . . . o que estou fa lando com vocês agora? " - Pois não, por que não ?** - eles responderam. Expliquei da melhor forma que pude que eu estava tendo aulas de portu guês havia alguns meses, mas nunca escutara o português falado nas conver sações, e que ficara observando os dois conversarem no avião, mas não enten dera uma palavra do que eles disseram. "Ah", eles começaram a rir, "Não é português! É ladão! Judeo! "*** O que eles estavam falando estava para o português assim como o iídiche está para o alemão. Você pode imaginar uma pessoa que tenha estudado ale mão sentada atrás de dois caras conversando em iídiche, tentando descobrir qual é o problema? Obviamente, é alemão, mas não funciona. Ele não deve ter aprendido alemão muito bem. Quando voltamos ao avião, eles me indicaram outro passageiro que real mente falava português, então sentei ao lado dele. Ele havia estudado neuro cirurgia em Maryland, assim era muito fácil conversar com ele - desde que *Nota do Revisor Técnico: No original, Center of Physical Research. **Nota do Tradutor: Em português, no original. ***Nota do Tradutor: Em "português" no original.
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fosse sobre cirurgia neural, o cerebeu* e outras coisas complicadas. As pala vras longas eram realmente fáceis de se traduzir para o português, porque a única diferença é o final: "-tion" em inglês é "-ção" em português; "-ly" é "-mente", e assim por diante. Mas quando ele olhou para fora e disse algo simples, fiquei perdido: não c.pnsegui decifrar "o céu . . . é azul". Desembarquei do avião em Recife (o governo brasileiro ia pagar o trecho de Recife até o Rio) , e o sogro de César Lattes, ** que era o diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio, junto com sua esposa e outro homem, foi me buscar. Enquanto os homens estavam apanhando a minha bagagem, a mulher começou a conversar comigo em português : "O senhor fala portu guês? Que ótimo! Como aprendeu português?" Respondi devagar, com grande esforço: "Primeiro comecei a aprender espanhol. .. depois descobri que ia para o Brasil..." Aí quis dizer: "Então, aprendi português", mas não conseguia lembrar a palavra "então". Eu sabia como construir palavras grandes, e terminei a frase assim: "CONSEQÜ EN TEMENTE, aprendi português! " Quando os dois homens voltaram com a bagagem, ela disse: "Olha, ele fala português! E com palavras tão maravilhosas: CONSEQÜ ENTE MENTE!" Então ouvi um anúncio pelo alto-falante. O vôo para o Rio havia sido can celado e não haveria outro até terça -feira - e eu tinha de estar no Rio, no mais tardar, até segunda-feira. Fiquei contrariado. "Talvez haja algum avião de carga. Vou em um avião de carga", falei. - Professor! - eles disseram -aqui em Recife é muito bom. Vamos dar uma volta com o senhor. Por que o senhor não relaxa? O senhor está no Brasil. Naquela noite, fui dar uma volta na cidade e vi uma pequena multidão pa rada ao redor de um grande buraco retangular que havia sido cavado na rua para o esgoto ou algo assim, e lá, parado bem no meio do buraco, estava um carro. Era maravilhoso: ele cabia direitinho, com o teto no nível da rua. Os operários não tinham se dado ao trabalho de colocar a sinalização, e o carro tinha simplesmente caído no buraco. Percebi uma diferença: quando nós ca vamos um buraco, colocamos todo tipo de sinais e luzes para proteger-nos. *Nota do Tradutor: Em "português" no .original. **Nota do Tradutor: Importante físico brasileiro.
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N O Brasil, eles cavam um buraco e, quando acaba a jornada de trabalho, sim plesmente vão embora. De qualquer forma, Recife era uma cidade agradável, e realmente esperei até a próxima terça para viajar para o Rio. Quando cheguei ao Rio, encontrei César Lattes. A rede de TV nacional queria registrar o nosso encontro; então começaram a filmar, mas sem som. O câmera falou: "Façam como se estivessem conversando. Falem alguma coi sa - qualquer coisa." Então Lattes me perguntou: "Você já encontrou um dicionário de cama?" Naquela noite, o público da TV brasileira viu o diretor do Centro Brasilei ro de Pesquisas Físicas dar boas-vindas ao professor visitante dos Estados Unidos, mas poucos sabiam que o tema da conversa era encontrar uma garota com quem passar a noite! Quando cheguei ao Centro, tivemos de decidir quando eu ministraria as minhas aulas - se pela manhã ou à tarde. Lattes disse: "Os estudantes preferem à tarde." - Então vamos fazer à tarde. - Mas a praia é agradável à tarde; então por que você não dá as aulas pela manhã para poder ir à praia à tarde? - Mas você disse que os estudantes preferem à tarde. - Não se preocupe com isso. Faça o que for mais conveniente para você! Aproveite a praia à tarde. Então aprendi como ver a vida de uma forma diferente da forma como é vista de onde venho. Primeiro, eles não tinham a mesma pressa que eu. Se gundo, se é melhor para você, vá em frente! Então ministrei as aulas pela ma nhã e fui à praia à tarde. Tivesse eu aprendido isso antes teria aprendido por tuguês em vez do espanhol. Pensei, a princípio, que faria minhas aulas em inglês, mas percebi uma coisa: quando os estudantes explicavam algo para mim em português, eu não entendia muito bem, apesar de saber um pouco de' português. Não ficava muito claro para mim se eles estavam dizendo "aumento" ou "diminuição", ou "não aumentar", ou "não diminuir", ou "diminuir vagarosamente" . Mas quando lutavam com o inglês, eles diziam: "ahp" ou "doon", e eu sabia do que se tratava, apesar da pronúncia ser ruim e a gramática toda bagunçada. Aí percebi que se quisesse conversar com eles e tentar ensinar algo, seria melhor
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falar em português, mesmo sendo precário como era. Seria mais fácil para eles entenderem. Na primeira vez que estive no Brasil, por seis meses, fui convidado a fazer uma apresentação na Academia Brasileira de Ciências, sobre um trabalho em eletrodinâmica quântica que eu havia acabado de fazer. Pensei que apresenta ria o seminário em português, e dois estudantes do centro disseram que me ajudariam. Comecei escrevendo meu seminário em um português totalmente confuso. Escrevi sozinho, porque, se eles o tivessem escrito, haveria muitas palavras que eu desconheceria e não conseguiria pronunciá-las corretamen te. Então escrevi a palestra e eles corrigiram a gramática, substituíram as pa lavras mal colocadas e tornaram-na apresentável, mas de maneira que eu con seguia ler com facilidade e sabia mais ou menos o que estava falando. Eles en saiaram comigo para que eu conseguisse ter uma pronúncia absolutamente correta: o "de" deveria ficar entre as palavras em inglês "deh" e "day" - tinha de ser exatamente assim. Cheguei à reunião da Academia Brasileira de Ciências, e o primeiro pales trante, um químico, levantou-se e apresentou a sua palestra - em inglês. Ele estava tentando ser educado, ou o quê? Eu não conseguia entender o que ele estava dizendo, por causa de sua pronúncia, que era péssima, mas talvez algu ma outra pessoa tivesse a mesma pronúncia e tenha conseguido entendê-lo; não sei. Então o próximo palestrante levanta-se e dá a palestra em inglês! Quando chegou a minha vez, me levantei e disse: "Desculpem; eu não ha via percebido que a língua oficial da Academia Brasileira de Ciências era in glês, e por isso não preparei minha palestra em inglês. Então, por favor, des culpem-me, mas terei de fazê-la em português." Daí li o texto, e todo mundo gostou muito. A próxima pessoa a se levantar diz: "Seguindo o exemplo do meu colega dos Estados Unidos, também farei minha apresentação em português." Então, até onde sei, mudei a tradição da língua utilizada na Academia Brasi leira de Ciências. * Alguns anos mais tarde, encontrei um sujeito do Brasil que repetiu para mim exatamente as mesmas palavras que eu usei no começo de minha apre sentação para a Academia. Parece que ela realmente causou algum impacto.
*Nota do Tradutor: Evidentemente isto é um exagero do autor.
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Mas a língua sempre foi difícil para mim e continuei a trabalhar o tempo todo, lendo jornais, e coisas assim. Continuei a dar minhas palestras em por tuguês - o que eu chamo de "Português do Feynman", que eu sabia que não podia ser o mesmo que o verdadeiro português, porque eu entendia o que es tava falando e não conseguia entender o que as pessoas na rua falavam. Como gostei muito do Brasil a primeira vez que estive lá, voltei um ano depois, dessa vez por dez meses. Nessa época, fiz apresentações na Universi dade do Rio,* que deveria pagar-me, mas nunca pagou. Assim, o Centro con tinuou a dar-me o dinheiro que eu deveria ganhar da universidade. Por fim, acabei ficando em um hotel na praia de Copacabana, chamado Miramar. Por algum tempo, fiquei em um quarto no décimo terceiro andar, de onde podia ver o oceano através da minha janela e observar as garotl!� na praia. �? ' Acontece que esse era o hotel onde os pilotos e as aeromoças da Pan Ame rican Airlines ficavam no ponto final da rota e "iam para a cama" - uma ex pressão que sempre me incomodou um pouco. Eles sempre hospedavam-se no quarto andar, e sempre, tarde da noite, havia um sobe e desce furtivo no elevador. Uma vez, saí de viagem por algumas semanas e, quando voltei, o gerente me disse que precisou reservar o meu quarto para outra pessoa, uma vez que era o último quarto vazio disponível e ele havia transferido minha bagagem para um outro quarto. Era um quarto que ficava em cima da cozinha, no qual as pessoas não per maneciam muito tempo. O gerente deve ter imaginado que eu seria a única pessoa a ver as vantagens daquele quarto com suficiente clareza para tolerar os cheiros e não reclamar. Não reclamei: ele ficava no quarto andar, perto das aeromoças. Resolveu uma porção de problemas para mim. As pessoas que trabalhavam para as companhias aéreas estavam um pou co chateadas com a vida que levavam, estranhamente chateadas, e à noite ge ralmente iam aos bares beber. Eu gostava de todos eles e, para ser sociável, ia com eles ao bar tomar alguns drinques, várias noites por semana. Um dia, cerca das 1 5h:30, eu estava andando na calçada oposta ao calça dão de Copacabana e passei por um bar. De repente, tive essa sensação forte,
*Nota do Revisor Técnico: No original, University of Rio·.
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tremenda: " É exatamente o que quero; cairá muito bem. Eu adoraria tomar um drinque agora!" Comecei a caminhar para dentro do bar e, de repente, pensei comigo mesmo: "Espere um minuto! Estamos no meio da tarde. Não há ninguém aqui. Não há razão social para b�ber. Por que você está sentindo tanta neces sidade de beber?" - e fiquei apavorado. Desde então, nunca mais bebi. Acho que realmente não estava corren do risco algum, porque achei muito fácil parar. Mas aquela sensação forte que eu não conseguia entender apavorou-me. Você sabe, acho tão diverti do pensar que não quero destruir essa máquina maravilhosa que faz a vida ser uma grande aventura. É o mesmo motivo pelo qual, mais tarde, fiquei tão relutante em experimentar o LS D, a despeito de minha curiosidade so bre alucinações. Perto do final daquele ano no Brasil, levei uma das aeromoças - uma ga rota adorável, com tranças - ao museu. Quando passamos pela sala egípcia, peguei-me dizendo-lhe coisas do tipo: "As asas nos sarcófagos querem dizer isso e isso, e nesses vasos eles costumavam colocar as entranhas, e nos cantos deveria haver isso e aquilo ... " e pensei comigo mesmo: "Você sabe onde aprendeu essa coisa toda? Com Mary Lou" - e senti falta dela. Conheci Mary Lou em ComeU e, mais tarde, quando fui para Pasadena, descobri que ela havia ido para Westwood, ali perto. Gostei dela por um tem po, mas brigávamos muito; por fim, decidimos que não havia chance de dar certo e nos separamos. Mas depois de ficar saindo um ano com essas aeromo ças e não chegar a lugar algum, me sentia frustrado. Então, quando estava contando essas coisas para aquela garota, pensei que Mary Lou era realmente maravilhosa e que nós não devíamos ter brigado tanto. Escrevi-lhe uma carta e fiz o pedido. Alguém que fosse um pouquinho sá bio me diria que isso era perigoso: quando se está longe, sem nada além do papel, e está se sentindo só, a gente só lembra todas as coisas boas e não con segue lembrar o motivo das brigas. Não deu certo. As brigas recomeçaram imediatamente, e o casamento só durou dois anos. Havia um sujeito na Embaixada Americana que sabia que eu gostava de samba. Acho que comentei com ele que quando estive no Brasil pela primeira vez havia visto um grupo ensaiando samba na rua e eu tinha vontade de co nhecer melhor a música brasileira.
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Ele me disse que um pequeno grupo, chamado "regional", ensaiava na casa dele todas as semanas e que eu poderia ir lá para ouvi-los. No apartamento, havia três ou quatro pessoas, uma era o zelador do pré dio, e elas tocavam música muito baixo; não tinham outro lugar para ensaiar. Um dos caras tinha um tamborete, que eles chamavam de pandeiro, e o outro um cavaquinho. Fiquei ouvindo o bater do tambor em algum lugar, mas não havia tambor! Por fim, descobri que era o pandeiro que o cara estava tocando de um modo complicado, girando o pulso e batendo no couro com o dedo. Achei interessante e aprendi, mais ou menos, a tocar pandeiro. Então começou a aproximar-se a época do carnaval. É quando as novas músicas são apresentadas. Eles não lançam músicas e discos novos o tempo todo; lançam todos durante o carnaval, e é muito excitante. Acontece que o zelador era o compositor de uma pequena escola de sam ba da praia de Copacabana, chamada Farçantes de Copacabana, * que signifi ca "Farsantes de Copacabana" . Para mim, parecia ótimo, e ele convidou-me para participar da escola. Essa escola de samba era uma coisa na qual os caras das favelas** - os bairros pobres da cidade - desciam e reuniam-se atrás de alguma constru ção e ensaiavam a nova música para o carnaval. Eséolhi tocar frigideira. *** É uma espécie de frigideira de metal, de mais ou menos 1 5 centímetros de diâmetro, com uma vareta de metal que se usa para bater. Tentei tocar aquela coisa, tudo estava indo bem. Estávamos en saiando, a música soava bem, éramos mais ou menos uns sessenta, quando o diretor da bateria, um homem grande, negro, gritou: "PÁ RA! Pára aí, pára aí - espera um minuto!" E todo mundo parou. "Tem alguma coisa errada com as frigideiras!", ele gritou. "O americano, outra vez!" Fiquei sem graça:-- Eu ensaiava o tempo todo. Andava pela praia seguran do duas varetas que havia apanhado, treinando o movimento de rotação dos pulsos, ensaiando, ensaiando, ensaiando. Ensaiava o tempo todo, mas mes mo assim me sentia inferior, como se estivesse metido em algum tipo de en crenca e realmente não estivesse à altura.
*Nota do Tradutor: Em português no original. **Nota do Tradutor: Em português no original. ***Nota do Tradutor: Em português no original.
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Bem, o carnaval estava chegando, e uma noite o líder da banda estava conversando com outro sujeito e começou a separar as pessoas: "Você!", ele disse para um cara que tocava trompete. "Você!", ele disse para um cantor. ''Você! '' - e apontou para mim. Deduzi que estávamos fora. Ele disse: "Vão lá .. para a frente!" Fomos para a frente da construção - cinco ou seis de nós. Havia um velho Cadillac conversível, com a capota abaixada. "Entrem!", disse o líder. Não havia espaço para todos nós, e alguns tiveram de sentar-se lá atrás. Falei para o sujeito ao meu lado: "O que ele está fazendo - está nos mandando embora?" - Não sei, não sei.* Fomos por uma estrada que acabava perto de um penhasco que dava vista para o mar. O carro parou e o chefe disse: "Saiam!" - e nos levou para a borda do penhasco. E realmente ele disse: "Agora façam fila! Você primeiro, depois você, de pois você! Comecem a tocar! Andem!" Nós teríamos caído da beira do penhasco se não fosse por uma trilha que levava até lá embaixo. Então o nosso pequeno grupo desce a trilha - o trompe te, o cantor, a viola, o pandeiro e a frigideira - rumo a uma festa na floresta. " Não fomos escolhidos porque o chefe queria ver-se livre de nós; ele estava mandando a gente para uma festa particular que queria um pouco de samba! E no fim de tudo ele ainda conseguiu dinheiro para pagar algumas das fanta sias do nosso bloco. Depois disso, me senti um pouco melhor, porque percebi que, quando ele escolheu o tocador de frigideira, ele me escolheu! Aconteceu outra coisa para aumentar minha confiança. Um tempo de pois, um cara de outra escola de samba, do Leblon, chegou. Ele queria entrar em nossa escola. O líder disse: "De onde você é?" - Do Leblon. - O que você toca? - Frigideira. - O K. Deixe eu ouvir você tocar.
*Nota do Tradutor: Em português no original.
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Aí o sujeito pegou a frigideira dele e sua baqueta de metal e . . . pa ra-ra-ra-tchim-bum. Nossa mãe! Foi maravilhoso! O líder lhe disse: "Vai para lá e fica perto do americano que você vai aprender a tocar frigideira! " Minha teoria é que isso é como uma pessoa que fala francês e vem para a América. No começo, ela comete todo tipo de erro, e você não consegue en tendê-la em quase nada. Aí a pessoa continua a praticar até conseguir falar bastante bem, e você percebe que há um delicioso gingado na forma dela falar - o sotaque é belíssimo, e você adora escutá-lo. Eu deveria ter o mesmo tipo de sotaque quando tocava a frigideira, porque eu não poderia competir com aqueles que tocaram frigideira a vida toda; deve ter sido algum tipo de sotaque diferente. Mas o que quer que tenha sido, me tornei um tocador de frigideira bem razoável. Um dia, um pouco antes do carnaval, o diretor da escola de samba falou: "OI<, nós vamos ensaiar desfilando na avenida." Saímos todos da construção para a rua, e estava um trânsito terrível. As ruas de Copacabana sempre foram uma grande bagunça. Acredite ou não, há uma linha de bonde em um sentido, e carros no outro sentido. Era hora de rush em Copacabana, e nós estávamos indo para desfilar no meio da Avenida Atlântica. Eu disse para mim mesmo: "Jesus! O diretor não tirou uma licença, não pegou autorização da polícia, ele não fez nada. Ele simplesmente está decidi do a fazer-nos desfilar." Então começamos a entrar na rua e todo mundo, em todas as partes, esta va muito animado. Alguns voluntários de um grupo de transeuntes pegaram uma corda e formaram um grande quadrado ao redor da nossa banda para que os pedestres não ultrapassassem nossas linhas. As pessoas começaram a espiar pela janela. Todo mundo queria ouvir o novo samba. Era muito exci tante! Assim que começamos a desfilar, vi um policial perto de outro, no final da rua. Ele olhou, viu o que estava acontecendo e começou a desviar o trân sito! Era tudo informal. Ninguém arrumou nada, mas tudo correu bem. As pessoas seguravam os cordões de isolamento, o policial desviava o trânsi to, os pedestres ficaram amontoados e o trânsito engarrafado, mas estáva mos indo bem! Descemos a rua, viramos esquinas, por toda Copacabana, aleatoriamente!
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Acabamos em uma pracinha em frente ao apartamento onde morava a mãe do diretor. Ficamos ali parados, tocando, e a mãe do sujeito, a tia, e assim por diante, todo mundo desceu. Elas estavam de avental; estavam trabalhan do na cozinha e podia-se ver a emoção delas - estavam quase chorando. Foi realmente maravilhoso participar daquela coisa tão humana. E todas as pes soas olhando pela janela - foi o máximo! Lembrei de quando estive no Brasil antes e vi uma dessas escolas de samba - como adorei a música e quase fiquei louco por ela. Agora eu estava participando! Por falar nisso, quando estávamos desfilando pelas ruas de Copacabana naquele dia, vi duas moças da embaixada com um grupo na calçada. Na sema na seguinte, recebi um bilhete da embaixada dizendo: " É uma coisa maravi lhosa o que você está fazendo, blá, blá, blá ... ", como se meu propósito fosse estreitar as relações entre os Estados Unidos e o Brasil! Então essa era a coisa "maravilhosa" que eu estava fazendo. Bem, quando ia aos ensaios, não queria ir vestido com as roupas que eu usava na universidade. As pessoas da banda eram muito pobres e só tinham roupas velhas, maltrapilhas. Então eu vestia uma camiseta velha, calças surra das e assim por diante, para não destoar tanto do resto do bloco. Mas eu não poderia sair assim do meu hotel de luxo na Avenida Atlântica em Copacabana; então tomava o elevador até o subsolo e saía por lá. Um pouco antes do carnaval, haveria um concurso especial entre as esco las de samba de Copacabana, Ipanema e Leblon: havia três ou quatro escolas, e éramos uma delas. Íamos desfilar fantasiados na Avenida Atlântica. Eu me senti desconfortável em desfilar com uma daquelas fantasias de carnaval, já que não era brasileiro. Mas deveríamos nos vestir de gregos; então pensei: sou tão grego quanto eles. No dia da competição, eu estava comendo no restaurante do hotel e o maftre, que sempre me via batucar na mesa quando tocavam algum samba, veio até mim e disse: "Sr. Feynman, essa noite haverá algo que o senhor vai adorar! É típico brasileiro!* - tipicamente brasileiro. Haverá um desfile de es colas de samba bem em frente ao hotel! E a música é tão boa - o senhor tem de ouvi-la." Eu disse: "Bem, estarei um pouco ocupado essa noite. Não sei se poderei."
*Nota do Tradutor: Em português no original.
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- Ah! Mas o senhor gostaria tanto! O senhor não deve perder! É típico brasileiro! Ele era muito insistente, e quando eu disse que realmertte achava que não estaria lá para assistir, ficou desapontado. Naquela noite, vesti minhas roupas velhas e desci para o subsolo, como sempre. Vestimos as fantasias na construção e começamos a desfilar na Ave nida Atlântica, uma centena de gregos brasileiros em papel machê, e eu lá atrás, tocando uma das frigideiras. Havia uma grande multidão dos dois lados da avenida; todo mundo esta va espiando pelas janelas e estávamos indo em direção ao Hotel Miramar, onde eu estava hospedado. Milhares de pessoas estavam em cima das mesas e das cadeiras. Estávamos tocando quando nossa banda começou a passar em frente ao hotel. De repente, vi um dos garçons gritar, apontando com o braço, e no meio de todo esse barulho consegui ouvi-lo: "O PROFES SOR!" Então o maitre descobriu por que eu não poderia estar lá naquela noite para ver a competição - eu estava nela! No dia seguinte, vi uma moça que eu conhecia de vista da praia e que tinha um apartamento de frente para o mar na avenida. Ela estava com alguns amigos assistindo ao desfile das escolas de samba, e, quando passamos, um de seus amigos exclamou: "Ouça aquele cara tocando a frigideira - ele é bom!" Eu ti nha conseguido! Eu me saí bem em algo que não achava ser capaz de fazer. Quando chegou a época do carnaval, poucas pessoas de nossa escola apa receram. Havia algumas fantasias especiais feitas para a ocasião, mas não ha via gente suficiente. Talvez eles acreditassem que não poderíamos ganhar das grandes escolas de samba; não sei. Achei que estávamos trabalhando todo dia, ensaiando e desfilando para o carnaval, mas, quando o carnaval chegou, uma boa parte do grupo não apareceu e não nos saímos muito bem. Mesmo en quanto estávamos desfilando na avenida, alguns integrantes do bloco saíram. Resultado engraçado! Nunca entendi muito bem, mas talvez o negócio fosse ganhar o concurso das praias, onde a maioria das pessoas achava que estava em seu nível. E, por falar nisso, nós ganhamos. Durante minha estada de dez meses no Brasil, me interessei pelos níveis de energia dos núcleos mais leves. Desenvolvi toda a teoria disso no.:i,\eu quarto de hotel, mas eu queria dar uma olhada nos dados da experiência. Era algo novo que estava sendo trabalhado no Laboratório Kellogg por especialis-
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tas do Caltech; então entrei em contato com eles - o horário estava todo com binado - por rádio. Descobri um operador de radioamador no Brasil e mais ou menos uma vez por semana eu ia à casa dele. Ele fazia contatos com o ope rador de rádio em Pasadena e depois, por ser uma coisa um pouco ilegal, me passava algumas letras de prefrxo e dizia: "Agora vou passar para WKWX, que está sentado ao meu lado, e gostaria de falar com você." Aí eu dizia: "Aqui é WKWX. Você poderia dizer-me o espaçamento entre os níveis do boro sobre os quais falamos semana passada", e assim por diante. Eu usava os dados das experiências para ajustar meus parâmetros e verificar se estava no caminho certo. O primeiro operador saiu de férias, mas me apresentou a outro para que eu pudesse prosseguir. O segundo sujeito era cego mas operava sua estação. Os dois foram muito gentis, e o contato que mantive com Caltech por meio do rádio foi muito efetivo e útil para mim. Com relação à física propriamente dita, resolvi boa parte do problema e o resultado foi bem razoável. Posteriormente, o resultado foi recalculado e veri ficado por outras pessoas. Mesmo assim, decidi que havia muitos parâmetros a serem ajustados - muitos "ajustes fenomenológicos das constantes" para tornar tudo apropriado - de maneira que não eu tinha certeza de que o resul tado fosse muito útil. Eu queria um entendimento mais profundo dos núcleos e nunca fiquei convencido o bastante de que meu conhecimento fosse muito significativo. Por esse motivo é que nunca fiz nada com isso. Em relação à educação no Brasil, tive uma experiência muito interessan te. Eu estava dando aulas a um grupo de estudantes para se tornarem e pro fessores, uma vez que naquela época não havia muitas oportunidades no Bra sil para pessoal qualificado em ciências. Esses estudantes já tinham feito mui tos cursos, e esse deveria ser o mais avançado em eletricidade e magnetismo equações de Maxwell, e assim por diante. A universidade ocupava diversos prédios na cidade, e o curso que eu mi nistrava era dado em um prédio com vista para o mar. Descobri um fenômeno muito estranho: eu podia fazer uma pergunta e os al�nos respondiam imediatamente. Mas se fizesse a pergunta de novo - o m�o assunto e a mesma pergunta, pelo que eu sei -, eles simplesmente não conseguiam responder! Por exemplo, uma vez eu estava falando sobre luz po larizada e dei a eles alguns filmes polaróides.
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o polaróide só deixa passar a luz cujo vetor de campo elétrico esteja em uma determinada direção; então expliquei como se pode dizer em qual dire ção a luz está polarizada, observando se o polaróide está escuro ou claro. Primeiro pegamos duas tiras de polaróide e as giramos até que elas dei xassem passar a maior parte da luz. Podíamos, então, dizer que as duas fitas estavam deixando passar a luz polarizada na mesma direção - o que passou por uma tira de polaróide também poderia passar pela outra. Mas, então, per guntei como se poderia dizer a direção absoluta da polarização a partir de um único polaróide. Eles não faziam a menor idéia. Eu sabia que isto exigia um pouco de engenhosidade; então dei uma pista: "Olhe a luz refletida da baía lá fora." Ninguém respondeu nada. Então eu prossegui: "Vocês já ouviram falar no ângulo de Brewster?" - Sim, senhor! O ângulo de Brewster é o ângulo para o qual a luz refletida por um meio que tem um índice de refração é completamente polarizada. - E em que direção a luz fica polarizada quando é refletida? - A luz fica polarizada perpendicularmente ao plano de reflexão, senhor. - Mesmo hoje em dia, tenho de pensar; eles sabiam responder na hora! Eles sabiam até que a tangente do ângulo era igual ao índice de refração! Eu disse "Bem?" Nada ainda. Eles simplesmente haviam me dito que a luz refletida por um meio com um índice de refração, tal como a baía lá fora, era polarizada: eles haviam me dito até em qual direção ela estava polarizada. Eu disse: "Olhem a baía lá fora, pelo polaróide. Agora girem o polaróide." - Ah! Está polarizada! - eles disseram. Depois de muita investigação, finalmente descobri que os estudantes ti nham decorado tudo, mas não sabiam o que queria dizer. Quando ouviram "luz que é refletida por um meio com um índice de refração", não sabiam que isso significava um material como a água. Eles não sabiam que "a direção da luz" é a direção na qual você vê alguma coisa quando está olhando, e assim por diante. Tudo estava totalmente decorado, mas nada havia sido traduzido em palavras que fizessem sentido. Assim, se eu perguntasse o que é o ângulo de Brewster, eu estava entrando no computador com a senha correta. Mas se digo "Observe a água", nada acontece - eles não têm nada que responda ao comando "observe a água".
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Depois participei de uma aula na faculdade de engenharia. A aula foi assim: "Dois corpos ... são considerados equivalentes ... se torques iguais ... produzi rem ... acelerações iguais. Dois corpos são considerados equivalentes se tor ques iguais produzirem acelerações iguais." Os estudantes estavam todos sen tados lá fazendo anotações e, q\1ando o professor repetia a frase, checavam para ter certeza de que haviam anotado certo. Então eles anotavam a próxima frase, e a outra, e a outra. Eu era o único que sabia que o professor estava falan do sobre objetos com o mesmo momento de inércia, e era difícil descobrir isso. Eu não conseguia entender como eles aprenderiam qualquer coisa da quela maneira. Falava-se sobre momentos de inércia, mas não se discutia quão difícil é empurrar uma porta e abri -la quando se coloca muito peso longe do eixo, em comparação quando você coloca perto da dobradiça - nada! Depois da aula, falei com um estudante: "Vocês fizeram uma porção de anotações - o que vão fazer com elas? " - Ah, nós as estudamos - ele diz. - Nós teremos uma prova. - E como será a prova? - Muito fácil. Eu posso dizer agora uma das questões. - Ele olha em seu caderno e diz - "Quando dois corpos são equivalentes?" E a resposta é: "Dois corpos são considerados equivalentes se torques iguais produzirem acelera ções iguais." - Então, você vê, eles podiam passar nas provas, "aprender" essa coisa toda e não saber nada, exceto o que eles tinham decorado. Assim fui a um exame de admissão para a faculdade de engenharia. Era uma prova oral e tive permissão para presenciá-la. Um dos estudantes foi ab solutamente fantástico: respondeu tudo certinho! Os examinadores pergun taram a ele o que era diamagnetismo e ele respondeu perféitamente. Depois perguntaram: "Quando a luz chega formando um ângulo com a vertical e atravessa uma lâmina de material de uma determinada espessura, e com um certo índice de refração N, o que acontece com a luz?" - Ela aparece paralela a si própria, senhor - e deslocada. - E em quanto ela é deslocada? - Não sei, senhor, mas posso calcular. - Então ele calculou. Ele era muito bom. Mas, nessa época, eu tinha minhas suspeitas. Depois da prova, fui até esse brilhante jovem e expliquei que eu era dos Estados Unidos e que queria fazer algumas perguntas a ele que não afetariam, de forma alguma, os resultados da prova. A primeira pergunta que fiz foi: "Você pode me dar algum exemplo de uma substância diamagnética?"
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- Não. Aí perguntei: "Se esse livro fosse feito de vidro e eu estivesse olhando através dele alguma coisa sobre a mesa, o que aconteceria com a imagem se eu o inclinasse?" - Ela seria defletida, senhor, em duas vezes o ângulo que o senhor tivesse girado o livro. Perguntei: "Você não fez confusão com um espelho, fez?" - Não senhor! Ele havia acabado de afirmar na prova que a luz ficaria deslocada, paralela a si própria, e, portanto, a imagem se moveria para o lado, mas não ficaria al terada de ângulo algum. Havia até mesmo calculado em quanto ela ficaria deslocada, mas não percebeu que um pedaço de vidro é um material com um índice de refração e que o cálculo dele se aplicava à minha pergunta. Ministrei um curso na faculdade de engenharia sobre métodos matemáti cos na física, no qual tentei demonstrar como resolver os problemas por ten tativa e erro. É algo que as pessoas geralmente não aprendem; então comecei com alguns exemplos simples para ilustrar o método. Fiquei surpreso porque apenas cerca de um entre cada dez alunos fez a tarefa. Então, preparei uma grande aula sobre como eles realmente deveriam tentar fazer as coisas e não só ficar sentados observando-me fazê-las. Depois da aula, alguns estudantes formaram uma pequena delegação e vieram até mim, dizendo que eu não havia entendido os antecedentes deles, que podiam estudar sem resolver os problemas, que já haviam aprendido arit mética e que essa coisa toda estava abaixo do nível deles. Então prossegui com as aulas e, independentemente de quão complexo ou obviamente avançado o trabalho estivesse se tornando, eles nunca punham a mão na massa. É claro que eu já havia notado o que estava acontecendo: eles não conseguiam fazer a tarefa! Uma outra coisa que nunca consegui com que eles fizessem foi pergun tas. Por fim, um estudante explicou-me: "Se eu fizer uma pergunta para o se nhor durante a palestra, depois todo mundo vai ficar me dizendo: 'Por que você está fazendo a gente perder tempo na aula? Nós estamos tentando aprender alguma coisa, e você fica interrompendo, fazendo perguntas. ' " .Era como se fosse um processo de tirar vahtagem de alguém, no qual nin guém sabe o que está acontecendo e humilham outros como se eles realmente soubessem. Todos fingem que sabem, e se um estudante faz uma pergunta,
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admitindo por um momento que as coisas estão confusas, os outros adotam uma atitude de superioridade, agindo como se nada fosse confuso, dizendo àquele estudante que ele está desperdiçando o tempo dos outros. Expliquei a importância de se trabalhar em grupo, para discutir as dúvi das, analisá-las, mas também não o faziam porque achavam que se exporiam se tivessem de perguntar alguma coisa a outra pessoa. Era uma pena! Eles, pessoas inteligentes, faziam todo o trabalho, mas adotaram essa estranha for ma de pensar, essa forma esquisita de autopropagar a "educação", que é inú til, definitivamente inútil! Ao final do ano acadêmico, os estudantes pediram-me para dar um semi nário sobre minhas experiências com o ensino no Brasil. No seminário, have ria não só estudantes, mas também professores e funcionários do governo. Assim, prometi que diria o que quisesse. Eles disseram: " É claro. Este é um país livre." Aí entrei, levando os livros de física elementar que eles usaram no primei ro ano de faculdade. Eles achavam esses livros bastante bons porque tinham diferentes tipos de letra - negrito para as coisas mais importantes para se de corar, letras normais para as coisas menos importantes, e assim por diante. Imediatamente, alguém disse: "Você não vai falar sobre o livro, vai? O ho mem que o escreveu está aqui, e todo mundo acha que esse é um bom livro." - Você me prometeu que eu poderia dizer o que quisesse. O auditório estava repleto. Comecei definindo ciência como um entendi mento do comportamento da natureza. Então, perguntei: "Qual será um bom motivo para ensinar ciência? É claro que país algum pode considerar-se civi lizado a menos que ... blá, blá, blá." Eles estavam todos concordando comigo, porque sei que é assim que eles pensam. Então eu disse: "Isso, é claro, é um absurdo. Por que motivo temos de nos sentir em pé de igualdade com outro país? Temos de fazer as coisas por um bom motivo, por uma razão sensata; não apenas porque os outros países o fa zem." Depois, falei sobre a utilidade da ciência e sua contribuição para a me lhoria da condição humana, e toda essa coisa - eu realmente os provoquei um pouco. Daí disse: "O principal propósito da minha apresentação é provar aos se nhores que não se está ensinando ciência alguma no Brasil!" Eu os vejo tremer, pensando: "O quê? Nenhuma ciência? Isso é loucura! Nós temos todas essas aulas."
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Então digo que uma das primeiras coisas que me deixaram chocados quando cheguei ao Brasil foi ver garotos da escola elementar em livrarias, comprando livros de física. Havia tantas crianças aprendendo física no Brasil, começando muito mais cedo do que as crianças nos Estados Unidos, que era estranho que não houvesse muitos físicos no Brasil - por que isso acontece? Há tantas crianças dando duro e não há resultados. Então fiz uma analogia com um erudito grego que ama a língua grega, que sabe que em seu país não há muitas crianças estudando grego. Mas ele vai a outro país, onde fica feliz em ver todo mundo estudando grego - mesmo as crianças pequenas das escolas elementares. Ele vai ao exame de um estudante que está se formando em grego e pergunta-lhe: "Quais eram as idéias de Só crates sobre a relação entre a Verdade ea Beleza?" -e o estudante não conse gue responder. Então ele pergunta ao estudante: "O que Sócrates disse a Pla tão no Terceiro Simpósio? " O estudante fica feliz e prossegue: "Disse isso, aquilo, aquilo outro" - ele repete tudo o que Sócrates disse, palavra por pala vra, em um grego muito bom. Mas, no Terceiro Simpósio, Sócrates estava falando exatamente sobre a relação entre a Verdade e a Beleza! O que esse erudito grego descobre é que os estudantes do outro país aprendem grego aprendendo primeiro a pronunciar as letras, depois as pala vras e então as sentenças e os parágrafos. Eles podem recitar, palavra por pa lavra, o que Sócrates disse, sem perceber que aquelas palavras em grego real mente significam algo. Para o estudante, elas não passam de s o ns artificiais. Ninguém jamais as traduziu em palavras que os estudantes possam entender. Eu disse: " É essa a impressão que tenho quando vejo os senhores ensina rem 'ciência' para as crianças aqui no Brasil." (Um soco forte, certo?) Então ergui o livro de física elementar que eles estavam usando. "Não são mencionados resultados experimentais em lugar algum neste livro, exceto em um lugar onde há uma bola, descendo um plano inclinado, onde ele diz a dis tância que a bola percorreu em um segundo, dois segundos, três segundos, e assim por diante. Os números têm erros - ou seja, se você olhar, você pensa que está vendo resultados experimentais, porque os números estão um pouco aci ma ou um pouco abaixo dos valores teóricos. O livro fala até sobre ter de corri gir os erros experimentais - muito bem. No entanto, uma bola descendo em um plano inclinado, se realmente forfeito isso, tem uma inércia para entrar em rota ção e, se você fizer a experiência, produzirá cinco sétimos da resposta correta,
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por causa da energia extra necessária para a rotação da bola. Dessa forma, o único exemplo de 'resultados ' experimentais é obtido de uma experiência falsa. Ninguém fez rolar tal bola, ou jamais teriam obtido tais resultados!" "Descobri mais uma coisa", continuei. "Ao folhear o livro aleatoriamente e ler uma sentença de uma página, posso mostrar qual é o problema, isto é, que não há ciência, mas sim memorização, em todos os casos. Portanto, tenho coragem o bastante para folhear as páginas agora na frente deste público, co locar meu dedo em uma página, ler e provar para os senhores." Fiz isso. Brrrrrrrup coloquei meu dedo em uma página e comecei a ler: "Triboluminescência. Triboluminescência é a luz emitida quando os cristais são friccionados ... " Digo: "E aí, você fez ciência? Não! Apenas foi dito o que uma palavra sig nifica em termos de outras palavras. Não foi dito nada sobre a natureza quais os cristais que produzem luz quando você os fricciona, por que eles pro duzem luz. Alguém viu algum estudante ir para casa e verificar isto experimen talmente? Ele não pode." "Mas, se em vez disso, estivesse escrito: 'Quando você pega um torrão de açúcar e o pressiona com um alicate no escuro, pode-se ver um clarão azula do. Alguns outros cristais também fazem isso. Ninguém sabe o motivo. O fe nômeno é chamado triboluminescência.' Aí alguém vai para casa e tenta. Nes se caso, há uma experiência científica." Usei aquele exemplo para chamar a atenção deles, mas não faria qualquer diferença em que página eu pusesse meu dedo; o livro era desse jeito em quase todas as páginas. Por fim, disse que não conseguia entender como alguém podia ser educa do neste sistema autopropagante, no qual as pessoas passam nas provas e en sinam os outros a passar nas provas, mas ninguém sabe nada. "No entanto", eu disse, "devo estar errado. Há dois estudantes na minha sala que se saíram muito bem, ademais, um dos físicos que conheço foi inteiramente educado no Brasil. Assim, deve ser possível para algumas pessoas encontrar seu caminho neste sistema, ruim como ele é." Bem, depois de apresentar meu seminário, o chefe do Departamento de Educação em Ciências levantou-se e disse: "O Sr. Feynman nos falou algu mas coisas que são difíceis de ouvir, mas parece que ele realmente ama a ciên cia e foi sincero em suas críticas. Assim sendo, acho que devemos prestar-lhe atenção. Vim aqui sabendo que temos algumas fraquezas em nosso sistema de educação; o que aprendi é que temos um câncer! " e sentou-se. -
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Isso deu liberdade a outras pessoas para falar, e houve uma grande agita ção. Todo mundo estava se levantando e fazendo sugestões. Os estudantes reuniram um comitê para mimeografar as palestras, antecipadamente, e or ganizaram outros comitês para fazer isso e aquilo. Então aconteceu algo que eu não esperava de forma alguma. Um dos es tudantes se levantou e disse: "Eu sou um dos dois estudantes aos quais o Sr. Feynman se referiu ao fim de seu discurso. Não estudei no Brasil; estudei na Alemanha e acabo de chegar ao Brasil." O outro estudante que havia se saído bem em sala de aula tinha algo se melhante a dizer. O professor que eu havia mencionado se levantou e disse: "Estudei aqui no Brasil durante a guerra quando, felizmente, todos os profes sores haviam abandonado a universidade: então aprendi tudo lendo sozinho. Dessa forma, na verdade, não estudei no sistema brasileiro." Eu não esperava aquilo. Sabia que o sistema era ruim, mas 1 00% ruim era terrível! Uma vez que eu havia ido ao Brasil através de um programa patrocinado pelo governo dos Estados Unidos, o Departamento de Estado pediu-me para escrever um relatório sobre as minhas experiências no Brasil, e escrevi os principais pontos do discurso que havia acabado de fazer. Mais tarde, desco bri, por vias secretas, que a reação de alguém no Departamento de Estado foi: "Isso prova como é perigoso mandar alguém tão ingênuo para o Brasil. Pobre rapaz; ele só pode causar problemas. Ele não entendeu os problemas." Bem pelo contrário! Acho que essa pessoa no Departamento de Estado era ingênua em pensar que, porque viu uma universidade com uma lista de cursos e suas descrições, as coisas funcionavam. * *Nota do Tradutor: Desde a famosa visita de Richard Feynman ao Brasil até os dias de hoje, muita coisa mudou no ensino das ciências no Brasil. Em particular, o ensino de física nas universidades brasileiras, que realizam pesquisas em física teórica e experimental, quase todas elas universidades federais ou estaduais, equipara-se aos bons centros de ensino do mundo ocidental. Hoje em dia, nossos melhores alunos podem realizar seus trabalhos de mestrado e doutorado aqui mesmo. Muitos pesquisadores brasileiros são internacional mente reconhecidos e receberam prêmios por suas pesquisas. A física brasileira moderna, não obstante as dificuldades que um país como o nosso apresenta, é de nível internacional. Em outras áreas, como por exemplo na pesquisa agropecuária ou alguns ramos da genéti ca, os pesquisadores brasileiros estão na vanguarda. Embora tenhamos ainda um caminho longo a ser percorrido, a atmosfera encontrada por Feynman em sua visita ao Brasil, feliz mente, já não existe mais.
Homem d as m i l l ín g u as
Quando estava no Brasil, esforcei-me por aprender a língua local e decidi fa zer minhas apresentações de física em português. Um pouco depois de vir para Caltech, fui convidado para urna festa que o professor Bacher daria. Antes de chegar à festa, Bacher disse aos convidados: "Esse tal de Feynman acha que é esperto porque aprendeu um pouco de português; então vamos dar urna lição nele: a Sra. Smith (ela é completamente caucasiana) cresceu na China. Ela vai cumprimentar Feynman em chinês." Entrei inocentemente na festa, e Bacher apresenta-me a todas aquelas pessoas: - Sr. Feynman, esse é o Sr. Fulano. - Prazer em conhecê-lo, Sr. Feynman. - E esse é o Sr. Sicrano. - Encantado, Sr. Feynman. - E essa é a Sra. Smith. - Ai, choong, ngong jia! ! ela diz, se curvando. Foi tão surpreendente para mim que vejo que a única coisa a fazer é res ponder da mesma forma. Curvo-me educadamente para ela e, com total con fiança, digo: "Ah ching, jong jien!" - Ah, meu Deus! - ela exclama, perdendo a compostura. - Eu sabia que isso ia acontecer - eu falo mandarim e ele fala cantonês! -
Certamente, Sr. Big !
Eu costumava atravessar os Estados Unidos de carro todo verão, tentando chegar ao oceano Pacífico. Mas, por diversos motivos, sempre parava em al gum lugar - geralmente em Las Vegas. Lembro-me que, especialmente na primeira vez, gostei muito de lá. Então, assim como hoje em dia, Las Vegas ganhava dinheiro em cima das pes soas que jogam, logo, o problema dos hotéis resumia-se em fazer com que as pessoas fossem até lá para jogar. Para isso, eles ofereciam shows e jantares muito baratos - quase de graça. Você não precisava fazer reservas para nada: podia entrar, sentar em alguma das várias mesas vazias e desfrutar do show. Era simplesmente maravilhoso para um homem que não jogava, porque eu desfrutava de todas as vantagens - os quartos eram baratos, as refeições qua se de graça, os shows eram bons e eu gostava das garotas. Um dia, estava deitado perto da piscina em meu motel, e um sujeito aproximou-se e começou a conversar comigo. Não me lembro como tudo começou, mas a idéia dele era que eu, provavelmente, trabalhava para viver e era realmente bastante tolo fazer isso. "Veja como para mim é fácil", dis se ele. "Só fico passeando ao redor da piscina o tempo todo e curto a vida em Las Vegas." - Como você faz isso sem trabalhar? - Simples: aposto em cavalos. - Não sei nada sobre cavalos, mas não vejo como se pode ganhar a vida apostando em cavalos - respondi com ceticismo. - É claro que se pode - disse ele. - É assim que eu vivo! Vou dizer-lhe uma coisa: vou ensinar a você como fazer. Vamos lá e garanto que você vai ganhar cem dólares. - Como vai fazer isso? -Aposto cem dólares como você vai ganhar - ele disse. - Assim, se você ganhar, não vai custar nada, e se perder, ganha cem dólares!
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Pensei: "Nossa! Está certo! Se eu ganhar cem dólares nos cavalos, tenho de pagar a ele. Não perco nada; é só um exercício - é só uma prova de que o sistema dele funciona. E se falhar, ganho cem dólares. É muito bom!" Ele levou -me a um ponto de apostas onde havia uma listagem dos cavalos e das pistas de corrida no país tod,o. Ele me apresenta outras pessoas, que di zem: "Nossa, ele é o máximo! Ganhei cem dólares!" Gradualmente, fui percebendo que teria de entregar o meu dinheiro para as apostas e comecei a ficar um pouco nervoso. "Quanto dinheiro você tem para apostar?", pergunto. - Ah, trezentos ou quatrocentos dólares. Não tenho tanto dinheiro. Além disso, começo a ficar preocupado: e se eu perder todas as apostas? Aí então ele diz: "Olha só: meu palpite vai custar a você apenas cinqüenta dólares, e só se funcionar. Se não funcionar, lhe dou os cem dólares que você deveria ganhar, de qualquer forma." Penso: "Puxa! Agora eu ganho dos dois jeitos - ou cinqüenta ou cem dó lares! Como é que ele pode fazer isso?" Aí percebo que se você fizer um jogo razoavelmente constante, esqueça as pequenas perdas por um momento para entender, a chance de ganhar cem dólares contra a de perder seus quatrocen tos dólares é de quatro para um. Assim, a cada cinco vezes que ele faz isso com alguém, quatro deles ganharão cem dólares, ele pega duzentos (e mostra a eles como é esperto) ; na quinta vez, ele tem de pagar cem dólares. Então ele recebe duzentos, em média, enquanto está pagando cem! Finalmente, conse gui entender como ele podia fazer aquilo. O processo continuou por alguns dias. Ele inventava algum esquema que no começo parecia ser um grande negócio, mas depois eu pensava um pouco e descobria, paulatinamente, como funcionava. Por fim, com um certo deses pero, ele diz: "Tudo bem, vou te dizer o seguinte: você me paga cinqüenta dó lares pelo palpite e, se você perder, te devolvo todo o dinheiro." Agora eu não tinha como perder! Então digo: "Tudo bem, está combina do!" - Ótimo! - ele diz. - Mas infelizmente tenho de ir a São Francisco neste fim de semana; você me manda os resultados pelo correio e, se você perder seus quatrocentos dólares, te mando o dinheiro. Os primeiros esquemas foram elaborados para que ele ganhasse dinheiro por meio de uma aritmética honesta. Agora, ele estará fora da cidade. A única
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forma de ele ganhar dinheiro com este esquema é não mandar o dinheiro - ser um verdadeiro cafajeste. Nunca aceitei nenhuma das suas ofertas. Mas era divertido ver como ele agia. Outra coisa divertida em Las Vegas era conhecer as garotas dos shows. Acho que elas deviam ficar ali em volta do bar, nos intervalos dos shows, para atrair fregueses. Conheci muitas delas assim, conversava com elas e as achava pessoas agradáveis. As pessoas que dizem "Garotas de show, é?" já têm opi nião formada sobre o que elas são! Mas em qualquer grupo, se você procura, encontrará todo tipo de gente. Por exemplo, havia a filha de um reitor de uma universidade do Leste. Ela possuía talento para a dança, gostava de dançar, ti nha os verões livres e era difícil encontrar emprego como dançarina; assim, trabalhava como corista em Las Vegas. A maioria das coristas eram garotas bacanas, amistosas. Na verdade, as coristas eram o verdadeiro motivo pelo qual eu gostava tanto de Las Vegas. No início, eu estava com um pouco de receio: as garotas eram tão bonitas, tinham tal reputação, e assim por diante. Eu tentava conhecê-las, mas engas gava um pouco quando falava. A princípio era difícil, mas, aos poucos, foi fi cando mais fácil e, por fim, já estava seguro o bastante e não tinha medo de ninguém. Eu tinha uma maneira de ter aventuras que é difícil explicar: é como pes car, você coloca a isca e depois tem de ter paciência. Quando contava a al guém sobre as minhas aventuras, as pessoas diziam: "Ah, não acredito! Va mos fazê-lo!" Então íamos a um bar para ver se acontecia alguma coisa; pas sados mais ou menos vinte minutos eles perdiam a paciência. Você tem de in vestir alguns dias, antes de acontecer alguma coisa. Gastei muito tempo con versando com as coristas. Uma me apresentava a outra e, depois de um tem po, geralmente acontecia alguma coisa interessante. , Lembro-me de uma garota que gostava de beber gibsons. * Ela dançava no Hotel Flamingo, e cheguei a conhecê-la muito bem. Quando eu ia à cidade, pedia um gibson para a mesa dela antes que ela se sentasse para anunciar a minha chegada.
*Nota do Tradutor: Martíni seco com uma cebolinha picante ou uma rodela de limão no lu gar da azeitona.
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Uma vez, sentei-me ao lado dela e ela disse-me: "Hoje estou com um su jeito - um grande apostador do Texas." (Eu já tinha ouvido falar desse sujei to. Sempre que ele participava no jogo de dados, todo mundo ficava ao redor para vê-lo jogar.) Ele voltou para a mesa em que estávamos sentados, e minha amiga corista apresentou-me a �le. A primeira coisa que ele me disse foi: " Sabe de uma coisa? Perdi sessenta mil dólares aqui na noite passada." Eu sabia o que fazer: virei-me para ele, sem deixar-me impressionar nem um pouquinho, e disse-lhe: "Devo encarar isso como esperteza ou estupidez?" Estávamos tomando o café-da-manhã no salão de jantar. Ele fala: "Olhe, deixe-me assinar a sua conta. Eles não me cobram essas coisas porque eu jogo muito aqui." - Tenho dinheiro o bastante para você não precisar se preocupar com quem paga meu café-da-manhã, obrigado. - Continuei a arrasá-lo cada vez que ele tentava me impressionar. Ele tentou de tudo: como ele era rico, quanto petróleo ele tinha no Texas, mas nada dava certo porque eu conhecia a fórmula! Acabamos por nos divertir muito juntos. Uma vez, quando estávamos sentados no bar, ele me disse: "Você está ven do aquelas garotas ali naquela mesa? São todas prostitutas de Los Angeles." Elas pareciam muito legais; tinham bastante classe. Ele disse: "Vou dizer o que vou fazer: vou apresentá-las a você e depois pago aquela que você quiser." Eu não estava com vontade de conhecer as garotas e sabia que ele estava dizendo aquilo para impressionar-me; então comecei a dizer não. Mas aí pen sei: " É sensacional! Esse cara está tentando tanto me impressionar, ele está querendo comprar isso para mim. Se eu contar essa história um dia . . . " Então eu lhe disse: "Bem, está bom, apresente-me." Fomos até a mesa delas, ele apresentou-me às garotas e saiu por um mo mento. Uma garçonete chegou e perguntou o que queríamos beber. Pedi água, e a garota do meu lado disse: "Tem problema se eu pedir champanhe? " - Você pode pedir o que quiser - respondi friamente - porque você está pagando. - Qual o seu problema? - ela disse. - Você é pão-duro ou algo assim? - É isso aí. - Você certamente não é um cavalheiro! - ela disse, indignada.
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- Você me entendeu muito rápido! - respondi. Eu havia aprendido no Novo México, muitos anos antes, a não ser um cavalheiro. Logo, logo elas estavam oferecendo-se para pagar-me drinques - os pa péis haviam sido totalmente trocados! (Por falar nisso, o homem do petróleo do Texas não voltou mais.) Depois de algum tempo, uma das garotas disse: "Vamos até o EI Rancho. Talvez as coisas estejam mais animadas por lá." Entramos no carro delas. Era um belo carro e elas eram pessoas legais. No caminho, elas perguntaram meu nome. - Dick Feynman. - De onde você é, Dick? O que você faz? - Eu sou de Pasadena; trabalho no Caltech. Uma das garotas disse: "Ah, não é de onde vem aquele cientista, Pauling?" Eu já havia estado em Las Vegas por várias vezes e jamais havia encontrado alguém que soubesse alguma coisa sobre ciência. Eu havia conversado com todo tipo de homens de negócios, e para eles um cientista era um Zé Nin- . guém. " É sim!", respondi surpreso. - E tem um rapaz chamado Gellan, ou coisa assim - um físico. - Eu não podia acreditar. Eu estava em um carro cheio de prostitutas, e elas sabiam tudo isso! - Sim! O nome dele é Gell-Mann! Como você sabe disso? - Saiu a foto de vocês na revista Time. - Era verdade, eles publicaram fotos de dez cientistas americanos na revista Time, por algum motivo. Eu estava entre eles, assim como Pauling e Gell-Mann. - Como você lembrou-se dos nomes? - perguntei. - Bem, estávamos dando uma olhada nas fotos e pegamos os mais novos e mais bonitos! (Gell-Mann é mais novo do que eu.) Chegamos ao Hotel EI Rancho, e as meninas continuaram com esse jogo de agir comigo como as pessoas normalmente agem com elas: "Você quer jogar? " , perguntaram. "Nós pagamos e você pode ficar com metade do que ganhar." Joguei um pouco com o dinheiro delas, e todos nos diver timos muito. Depois de um tempo, elas disseram: "Olha, vimos um freguês, então ago ra precisamos deixá-lo", e voltaram para o trabalho. Uma vez, eu estava sentado em um bar e vi duas garotas com um homem mais velho. Por fim, ele foi embora e elas vieram e sentaram-se perto de mim:
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a mais bonita e mais animada ao meu lado, e sua amiga, mais pacata, chamada Pam, do outro lado. As coisas começaram a ir bem desde o início. Ela era muito amistosa. Não demorou muito e estava encostando-se em mim; pus meu braço ao redor , dela. Dois homens chegaram e sêntaram em uma mesa por perto. Então, an tes que o garçom chegasse, eles saíram. - Você viu aqueles homens? - minha nova amiga perguntou. - Sim. - Eles são amigos do meu marido. - Ahn? O que é isso? - Sabe, casei-me há pouco com John Big* - ela mencionou um nome muito famoso - e tivemos uma pequena briga. Estamos em lua-de-mel, e John passa o tempo todo jogando. Ele não presta a menor atenção em mim, então saio e me divirto, mas ele sempre manda espiões para ver o que estou fazendo. Ela pediu-me que a levasse ao seu hotel, e fomos no meu carro. No cami nho, perguntei-lhe: "Bem, e o John?" Ela disse: "Não se preocupe. Procure um carro grande, vermelho, com duas antenas. Se não o encontrar, ele não está por perto." Na noite seguinte, levei a "garota gibson" e uma amiga dela para assistir ao último show no Silver Slipper, que apresentava um espetáculo mais tarde do que todos os outros hotéis. As garotas que trabalhavam nos outros shows gostavam de ir até lá, e o mestre de cerimônias anunciava a chegada de diver sas dançarinas quando entravam. Então entrei de braços dados com essas duas adoráveis dançarinas, e ele anuncia: "E aí vêm a senhorita Fulana e a se nhorita Beltrana do Flamingo!" Todo mundo olhou para ver quem estava che gando. Senti-me o máximo! Nos sentamos em uma mesa próxima ao bar, e depois de um tempo havia uma certa agitação e os garçons movendo as mesas de lugar, seguranças ar mados entrando. Estavam abrindo espaço para uma celebridade. John Big es tava chegando! Ele veio até o bar, perto da nossa mesa, e logo dois caras quiseram dançar com as garotas que eu havia levado. Eles foram dançar e fiquei sentado sozi*Nota do Tradutor: Jogo de palavras com Big John e John Big, no primeiro caso, big (gran de, em inglês) é adjetivo, no segundo um nome próprio, no caso um sobrenome.
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nho na mesa, quando John veio e sentou-se na minha mesa. "Como está você?", perguntou. "Que tá fazendo em Vegas? " Eu tinha certeza de que ele havia descoberto sobre mim e a mulher dele. "SÓ matando o tempo. . . " (Eu precisava parecer durão, certo?) - Há quanto tempo você tá aqui? - Quatro ou cinco noites. - Sei - ele disse. - Eu não te vi na Flórida? - Bem, eu realmente não sei... Ele estava sondando o terreno e eu não sabia aonde ele queria chegar. "Eu já sei", ele disse: "foi no EI Morocco". (O EI Morocco era uma grande boate de Nova York que muitos dos grandes malandros freqüentavam - por exem plo, professores ou físicos teóricos, certo?) - Deve ter sido isso - respondi. Eu estava tentando imaginar onde ele queria chegar com aquilo. Por fim, ele se inclinou em minha direção e disse: "Ei, você vai me apresentar para aquelas garotas que estão com você quando elas voltarem da dança? " Isto era tudo o que ele queria! Ele não me conhecia, nem em sonhos! Então, eu o apresentei, mas minhas amigas coristas disseram que estavam cansadas e que queriam ir para casa. Na tarde seguinte, vi John Big no Flamingo, encostado no bar, conver sando com o garçom sobre máquinas fotográficas e tirando fotos. Ele deve ser um fotógrafo amador, todas essas lâmpadas e câmeras, mas diz as maio res imbecilidades a respeito delas. Descobri que ele não era nenhum fotó grafo amador; era simplesmente um cara rico que tinha comprado algumas câmeras. Naquela altura, eu já havia percebido que ele não sabia que eu havia dado umas voltas com a esposa dele; só queria conversar comigo por causa das ga rotas que estavam em minha companhia. Aí pensei em fazer um jogo. Eu in ventaria um papel para mim: assistente de John Big. - Oi, John - disse. - Vamos tirar algumas fotos. Eu carrego os seus flashes. Pus os flashes no meu bolso e começamos a tirar fotografias. Eu entrega va os flashes para ele e dava palpite aqui e ali; ele gosta dessa coisa. Fomos ao Last Frontier jogar e ele começou a ganhar. Os hotéis não gos tam que um grande jogador saia, mas eu percebia que ele queria ir embora. O problema era como fazer isso educadamente.
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- J ohn, agora temos de ir - eu disse em tom sério. - Mas ainda estou aquecendo. - Sim, mas nós temos um compromisso essa tarde. - Tudo bem, pegue meu carro. - Claro, Sr. Big! - Ele entreg"u-me as chaves e disse-me como era o carro (eu não deixei transparecer que sabia) . Fui até o estacionamento e realmente lá estava aquele carro grande, espa çoso, maravilhoso, com as duas antenas. Entrei nele e virei a chave, mas ele não deu a partida. O carro tinha uma transmissão automática; elas eram novi dade e eu não sabia nada sobre elas. Depois de um tempo, acidentalmente, coloquei a marcha em "estacionar" e o carro deu a partida. Dirigi com muito cuidado, como um carro de um milhão de dólares, até a entrada do hotel, onde saltei e me dirigi até a mesa onde ele ainda estava jogando e disse-lhe: " Seu carro está pronto, senhor!" - Preciso ir - ele anunciou, e fomos embora. Ele me deixou dirigir o carro dele. "Quero ir ao EI Rancho", ele disse. "Você conhece alguma garota lá? " E u conhecia muito bem uma garota lá; então respondi: " Sim. " A essa altura, eu estava bastante s eguro de que ele só estava prosseguindo com esse jogo que eu havia inventado porque queria conhecer algumas garo tas; então toquei em um assunto delicado : "Eu conheci sua esposa outra noite . . . " - Minha esposa? Minha esposa não está aqui em Las Vegas. Falei sobre a garota que havia encontrado no bar. - Ah! Sei de quem você está falando; conheci aquela garota e a amiga dela em Los Angeles e as trouxe para Las Vegas. A primeira coisa que elas fizeram foi usar meu telefone por uma hora para conversar com as amigas no Texas. Fiquei furioso e mandei as duas embora! Então, ela está andando por aí dizen do para todo mundo que é minha esposa, é? Então aquilo estava esclarecido. Fomos ao EI Rancho. O show começaria em mais ou menos quinze minu tos. O lugar estava lotado; não havia um lugar sobrando na casa. John foi ao mordomo e disse-lhe: "Quero uma mesa." - Sim senhor, Sr. Big! Estará pronta em alguns minutos. John deu uma gorjeta a ele e foi jogar. Nesse meio-tempo, fui até os fun dos onde as garotas estavam se preparando para o show, e perguntei-lhes por
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minha amiga. Ela apareceu; expliquei-lhe que John Big estava comigo e que ele queria uma companhia para depois do show. - Claro, Dick - disse ela. - Eu levo algumas amigas e nos encontramos depois do show. Voltei lá para a frente para encontrar J ohn. Ele ainda estava jogando. "Vá sem mim", ele disse. "Estarei lá em um minuto." Havia duas mesas, bem na frente, no canto do palco. Todas as outras mesas do lugar estavam ocupadas. Sentei sozinho. O show começou antes de John che gar, e as garotas saíram. Elas podiam me ver sozinho na mesa. Antes, achavam que eu era algum professor novato; agora, viam que era um grande empresário. Finalmente, John chegou, e logo depois algumas pessoas sentaram à mesa perto de nós - a "esposa" de John e sua amiga Pam, com duas mulheres! Inclinei-me para John: "Ela está na outra mesa." - Tudo bem. Assim que viu que eu estava pajeando John, ela inclinou-se em minha di reção, da outra mesa, e perguntou: "Eu posso falar com John?" Eu não disse uma palavra sequer. John também não falou nada. Esperei um tempo, então inclinei-me na direção de John: "Ela quer falar com você." Aí ele esperou mais um tempo. "Tudo bem", respondeu. Dei mais um tempo e aí me inclinei para ela: "John falará com você agora." Ela veio até nossa mesa. Ela começou com "Johnnie", e sentou-se bem perto dele. Eu diria que as coisas estavam começando a entrar nos eixos. Adoro ser malévolo; toda vez que eles conseguiam dar um jeito na situação, eu lembrava John de alguma coisa: "O telefone, John . . . " - Sim! - ele dizia. - Que idéia é essa de passar uma hora no telefone? Ela dizia que havia sido Pam quem havia dado o telefonema. As coisas melhoraram mais um pouco; então chamei a atenção que tinha sido idéia dela levar a Pam. -Ah, é! - ele disse. (Eu estava me divertindo fazendo esse jogo, que conti nuou por um bom tempo.) Quando o show terminou, as garotas de EI Rancho vieram para a nossa mesa e conversamos até elas terem de voltar para o show seguinte. Então, John falou: "Conheço um bom bar não muito longe daqui. Vamos para lá." Eu o levei até o bar, e entramos. "Está vendo aquela moça ali?", ele disse. "Ela é uma advogada muito boa. Venha, vou apresentar você a ela."
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John nos apresentou e pediu licença para ir ao restaurante. Nunca voltou. Achei que ele queria reconciliar-se com a sua "esposa", e eu estava começan do a interferir. Disse olá para a moça e pedi uma bebida para mim (ainda fazendo o jogo de não me deixar impressionar e !tão comportar-me como cavalheiro) . - Você sabe - ela me disse - sou uma das melhores advogadas aqui em Las Vegas. -Ab, não. Você não é, não - respondi friamente. - Pode ser advogada du rante o dia, mas você sabe o que é nesse exato momento? Não é nada mais do que uma freqüentadora de bares que está em um barzinho em Vegas. Ela gostou de mim e fomos a alguns lugares para dançar. Ela dançava muito bem, e eu adoro dançar, então nos divertimos muito juntos. Então, de repente, p.o meio de uma dança, minhas costas começaram a doer. Era um tipo de dor muito forte e começou de repente. Agora sei o que era: fiquei em pé por três dias e três noites, vivendo essas aventuras loucas, e estava completamente exausto. Ela falou que me levaria para casa. Assim que deitei-me na sua cama, des maiei! Eu estava morto. Na manhã seguinte, quando despertei, estava naquela linda cama. O sol bri lhava e não havia o menor sinal da moça. Em vez dela, havia uma empregada. "Senhdr", disse ela, "o senhor está acordado? O café-da-manhã está pronto". - Bem, ai... - Vou trazê-lo para o senhor. O que o senhor gostaria? - E leu todo um cardápio de desjejuns. Pedi o café-da-manhã e tomei-o na cama - na cama de uma mulher que eu não conhecia; não sabia quem ela era ou de onde vinha! Fiz algumas perguntas à empregada e ela também não sabia nada sobre essa mulher misteriosa: ela tinha acabado de ser contratada e era seu primeiro dia de trabalho. Ela pensou que eu fosse o homem da casa e achou curioso que eu estivesse fazendo perguntas a ela. Finalmente, me vesti e saí. Nunca mais vi a mulher misteriosa. Na primeira vez em que estive em Las Vegas, sentei-me e calculei as chan ces de tudo, e descobri que as chances na mesa de dados eram algo como 0,493 . Se eu apostasse um dólar, ele me custaria apenas 1 ,4 centavos. Assim, pensei comigo mesmo: "Por que estou tão relutante em apostar? Não vai me custar quase nada!"
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Então comecei a apostar e logo perdi cinco dólares sucessivamente - um, dois, três, quatro, cinco. Eu deveria ter perdido apenas sete centavos; mas, ao contrário, havia perdido cinco dólares! Desde então nunca mais joguei (pelo menos com meu dinheiro) . Foi sorte eu ter começado perdendo. Uma vez, estava almoçando com uma das coristas. Era uma parte tran qüila da tarde; não havia aquela enorme agitação de sempre, e ela disse-me: "Você está vendo aquele sujeito ali, andando pelo gramado? Aquele é Nick, o Grego. Ele é jogador profissional." A essa altura, eu já sabia muito bem quais eram todas as chances em Las Vegas, e disse: "Como ele pode ser jogador profissional?" - Vou chamá-lo até aqui. Nick veio e ela nos apresentou. "Marilyn disse-me que você é jogador profissional. " - Correto. - Bem, eu gostaria de saber como é possível sobreviver de jogo, porque na mesa a chance é de 0,493 . - Você está certo - ele disse - mas vou explicar a você. Não aposto na mesa ou em coisas assim. Só aposto quando as chances estão a meu favor. -Ahn? E quando as chances estão a seu favor? - perguntei, sem acreditar. - É realmente bastante fácil - ele disse. - Fico ao redor de uma mesa, quando alguém diz: "Está vindo o nove! Tem de ser um nove!" O cara está ex citado; ele acha que será um nove e quer apostar. Sei a probabilidade de cada um dos números de cor e salteado; então digo a ele: "Aposto quatro contra três que não é um nove", e ganho no final. Não aposto na mesa; aposto com as pessoas ao redor da mesa que têm preconceitos - idéias supersticiosas sobre números da sorte. Nick continuou: "Agora que tenho uma reputação, é ainda mais fácil, porque as pessoas apostam comigo mesmo quando sabem que as chances não são muito boas, só para ter a oportunidade de contar a história, se ganharem, de como venceram Nick, o Grego. Dessa forma, realmente ganho a vida jo gando, e é maravilhoso!" Nick, o Grego era uma pessoa realmente educada. Era um homem muito agradável e cativante. Agradeci a explicação; agora eu entendia. Você sabe, tenho necessidade de entender o mundo.
U ma oferta que você deve recusar
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Em ComeU havia todos os tipos de departamentos que não me interessavam muito. (Isso não quer dizer que havia algo errado com eles; só que eu não ti nha muito interesse neles.) Havia ciências domésticas, filosofia (os rapazes deste departamento eram especialmente vazios) e as matérias culturais - mú sica' e assim por diante. Havia algumas poucas pessoas com as quais eu real mente gostava de conversar, é claro. No departamento de matemática, havia o professor Kac e o professor FeUer; na química, o professor Calvin; e um gran de sujeito no departamento de zoologia, Dr. Griffin, que descobriu que os mor cegos orientam-se emitindo ecos. Mas era difícil encontrar muitas pessoas assim para conversar, e havia todas essas outras coisas que eu achava que eram bobagens de baixo nível. Além disso, Ithaca era uma cidade pequena. O clima não era realmente muito bom. Um dia, eu estava dirigindo, quan do caiu uma daquelas nevascas repentinas que não se espera e, por isso, não está preparado, aí você pensa: "Ah, não vai durar muito; vou continuar." Mas, então, a neve fica tão espessa que o carro começa a derrapar um pouco; aí você precisa colocar as correntes, e sai do carro, põe as correntes e está frio, e você está começando a tremer de frio. Então você empurra o carro para trás sobre as correntes e há um problema - ou havia naqueles dias; não sei o que há hoje em dia - tem um gancho interno que deve ser engatado em primeiro lugar. E como as correntes têm de ficar bem esticadas, é difícil pren der o gancho. Então, você tem de empurrar a braçadeira com os dedos que, a essa altura, já estão quase congelados. E, uma vez que você está na frente do pneu e o gancho está atrás dele, e suas mãos estão geladas, é muito difícil manter o controle. Ele continua escorregando, está frio, a neve está caindo, você está tentando empurrar a braçadeira, sua mão está doendo e a porcaria não está abaixando - bem, lembro que aquele foi o momento quando decidi que aquilo era insano; devia existir algum lugar no mundo no qual não há esse tipo de problema.
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Lembrei -me das poucas vezes que visitei o Caltech, a convite do professor Bacher, que já estivera em ComeU. Ele fora muito esperto quando eu estava lá de visita. Ele me conhecia muito bem; então, disse: "Feynman, tenho esse car ro extra que vou emprestar a você. Agora, aqui está como se vai até HoUywo od e até a Sunset Strip. Divirta-se." Assim, todas as noites, eu ia no carro dele até a Sunset Strip - onde esta vam os clubes notumos, os bares e a agitação. Era o tipo de coisa de que eu gostava em Las Vegas - garotas bonitas, grandes malandros, e coisas assim. Bacher soube como proceder para que eu ficasse interessado no Caltech. Você conhece a história do asno que está parado exatamente entre dois montes de feno e não consegue escolher nenhum dos dois porque está em dú vida? Bem, isso não é nada. ComeU e Caltech começaram a fazer-me propos tas, e assim que decidia mudar-me achando que Caltech era realmente me lhor, em ComeU, eles aumentavam a proposta; e quando eu achava que ficaria em ComeU, eles aumentavam alguma coisa em Caltech. Então você pode ima ginar este asno entre os dois montes de feno, com a complicação adicional de que no momento em que ele vai em direção a um dos montes, o outro fica maior. Isso toma a situação muito difícil! O argumento que finalmente me convenceu foi minha licença sabática. Eu queria ir novamente ao Brasil, desta vez por dez meses, e havia acabado de receber minha licença sabática em ComeU. Eu não queria perdê-la; então, agora que eu havia encontrado um motivo para tomar uma decisão, escrevi para Bacher e contei-lhe o que havia decidido. O Caltech respondeu-me: "Vamos contratá-lo imediatamente e conce der-lhe o primeiro ano como licença sabática." Era assim que eles estavam agindo: o que quer que eu decidisse fazer, eles bagunçavam tudo. Assim, meu primeiro ano no Caltech passou-se, na verdade, no Brasil. Vim para o Caltech lecionar no meu segundo ano. Foi assim que aconteceu. Já estou no Caltech desde 1 95 1 , e sinto-me muito feliz aqui. O Caltech é exatamente o que um sujeito parcial como eu precisa. Aqui estão todas as pes soas que estão quase no topo, muito interessadas no que estão fazendo e com as quais posso conversar. Eu me encontrava em uma situação bastante con fortável. Mas um dia, quando já estava no Caltech há bastante tempo, tivemos um terrível ataque de neblina e fumaça. Foi pior naquela época do que é agora pelo menos os olhos ardiam muito mais. Eu estava parado em uma esquina,
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meus olhos lacrimejavam, e pensei comigo mesmo: "Isso é loucura! Isso é ab solutamente insano! Estava tudo bem em Comell. Vou sair daqui." Então, liguei para Comell e perguntei-lhes se achavam que era possível eu voltar. Eles me disseram: " É claro! Vamos ajeitar tudo e ligamos amanhã para você." No dia seguinte, na hora de tomar a decisão tive a maior sorte. Deus deve ter arrumado as coisas para ajudar-me a tomar a decisão. Eu estava indo para a minha sala quando um sujeito chegou correndo e disse: "Ei, Feynman! Você Viu o que aconteceu? Baade* descobriu que há duas populações diferentes de estrelas! Todas as medidas que estávamos fazendo das distâncias às galáxias estavam baseadas nas variáveis cefeídas de um tipo, mas há um outro tipo� logo, o universo é duas vezes, talvez três ou até mesmo quatro vezes mais ve lho do que pensávamos!" Eu conhecia o problema. Naqueles dias, a Terra parecia ser mais velha do que o universo. A Terra tinha quatro bilhões e meio de anos, e o universo tinha apenas dois ou três bilhões de anos. Era um grande mistério. Essa descoberta resolvia todo o problema: o universo agora era comprovadamente mais velho do que se imaginava. E consegui essa informação imediatamente - o sujeito veio correndo dizer-me tudo isso. Eu não tinha sequer atravessado o campus em direção à minha sala, quando chegou outro sujeito - Matt Meselson, um biólogo que tinha feito um curso de extensão em física. (Participei da banca na sua tese de doutorado.) Ele havia construído a primeira do que eles chamavam de centrífuga de gra diente de densidade - ela podia medir a densidade das moléculas. Ele disse: "Veja os resultados da experiência que estou fazendo!" Ele havia provado que quando uma bactéria produz uma nova bactéria, há uma molécula completa, intacta, que é passada de uma bactéria para outra - uma molécula que agora conhecemos como DNA. Você sabe, sempre pen samos que tudo se divide, e se divide mais ainda. Então pensamos que tudo na bactéria se divide e entrega metade de si para a nova bactéria. Em algum lu gar, a molécula menor que contém a informação genética não pode se dividir ao meio; ela deve fazer uma cópia de si mesma, enviar uma nova cópia para a *Nota do Tradutor: Wilhelm Heinrich Walter Baade ( 1 893- 1 860), astrofísico alemão na turalizado americano cujo trabalho de classificação das estrelas em populações distintas permitiu estimar a idade e o tamanho do Universo.
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bactéria nova e guardar uma cópia para a bactéria mais velha. Ele havia de monstrado este fato da seguinte forma: primeiro, cultivou as bactérias em ni trogênio pesado, e depois cultivou-as todas em nitrogênio comum. Enquanto prosseguia, pesou as moléculas em sua centrífuga de gradiente de densidade. A primeira geração de novas bactérias mantinha todas as suas moléculas cromossomáticas com um peso exatamente entre o peso das moléculas pro duzidas com nitrogênio pesado e o peso das moléculas produzidas com nitro gênio comum - um resultado que poderia ocorrer, mesmo que tudo ficasse dividido, inclusive as moléculas cromossomáticas. Mas, nas gerações subseqüentes, quando se pode esperar que o peso das moléculas de cromossomo seja um quarto, um oitavo e um dezesseis avos da diferença entre as moléculas pesadas e as comuns, os pesos das moléculas pertenciam a apenas dois grupos. Um grupo tinha o mesmo peso que a pri meira nova geração (metade entre as moléculas mais pesadas e as mais leves) , o outro grupo era mais leve - correspondente ao peso das moléculas produzi das no nitrogênio comum. Aporcentagem de moléculas mais pesadas foi cor tada pela metade em cada geração sucessiva, mas não o seu peso. Aquilo era muito excitante e importante - era uma descoberta fundamental. E percebi, quando finalmente cheguei à minha sala, que esse era o lugar onde eu deveria ficar. Um lugar onde as pessoas de todas as diferentes áreas da ciência me contariam as coisas, e era tudo muito excitante. Na verdade, era exatamente o que eu queria. Então, quando Cornell ligou um pouco mais tarde e disse que estavam preparando tudo, e que já estava quase pronto, eu disse: "Sinto muito. Mudei de idéia de novo." Mas, então, decidi nunca mais decidir de novo. Nada - ab solutamente nada - me faria mudar de idéia novamente. Quando se é jovem, temos essas preocupações - se você for para tal lugar, como fica sua mãe? Você se preocupa e tenta tomar uma decisão, mas então surge algo mais. É muito mais fácil simplesmente planejar tomar uma decisão. Não importa - nada mudará a sua idéia. Fiz isso uma vez quando estudava no MIT. Fiquei enjoado e me cansei de ter de decidir que tipo de sobremesa co meria no restaurante; então decidi que sempre seria sorvete de chocolate, e nunca mais me preocupei com isso - eu tinha a solução para aquele problema. De qualquer forma, decidi que seria sempre o Caltech. Uma vez, alguém tentou mudar minha opinião sobre o Caltech. Fermi fa lecera havia pouco tempo, e a Universidade de Chicago estava procurando al-
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guém para substituí-lo. Duas pessoas de Chicago vieram e pediram para visi tar-me em minha casa - eu não sabia do que se tratava. Começaram a fa lar-me sobre os bons motivos pelos quais eu deveria ir para Chicago: poderia fazer isso, poderia fazer aquilo, eles tinham uma porção de gente brilhante lá. Eu teria a oportunidade de fazsr todo tipo de coisas maravilhosas. Não per guntei quanto eles pagariam, e eles continuaram dando a entender que me di riam se eu perguntasse. Por fim, me perguntaram se eu queria saber o salário. "Ah, não!", respondi. "Eu já decidi ficar no Caltech. Minha esposa Mary Lou está no outro quarto, e se ela escutar quanto é o salário, nós vamos discutir. Além disso, decidi não tomar mais decisões. Vou ficar no Caltech para sem pre." Não permiti que eles me dissessem o salário que estavam oferecendo. Cerca de um mês depois, eu estava em uma reunião, e Leona Marshall aproximou -se e disse: " É engraçado que você não tenha aceitado nossa oferta em Chicago. Ficamos tão desapontados e não conseguimos entender como você pôde recusar uma oferta tão boa." - Foi fácil - respondi -, porque nunca deixei que eles me dissessem qual era a oferta. Uma semana depois, recebi uma carta dela. Abri, e a primeira frase dizia: "O salário que eles estavam oferecendo era ", uma enorme quantia de dinheiro, três ou quatro vezes mais do que eu estava ganhando. Estonteante! A carta continuava: "Disse o salário antes de você poder continuar a ler. Tal vez agora você queira reconsiderar, porque eles me disseram que o posto ain da está vago e nós gostaríamos muito de tê-lo conosco." Respondi-lhes dizendo: "Depois de saber o salário, decidi que devo recu sar. O motivo pelo qual devo recusar um salário como esse é que eu poderia fazer o que sempre quis fazer - arranjar uma amante maravilhosa, montar um apartamento para ela, comprar-lhe coisas bonitas ... Com o salário que vocês me ofereceram, eu poderia realmente fazer isso e sei o que me aconteceria. Fi caria preocupado com ela, com o que está fazendo; teria brigas quando che gasse em casa, e coisas assim. Todo esse aborrecimento me faria sentir-me in cômodo e infeliz. Eu não poderia trabalhar bem em física, e seria uma grande confusão! O que eu sempre quis fazer seria ruim para mim; então decidi que não posso aceitar sua oferta."
Parte V
O mundo de um físico
Você resolveria a equação de O i rac?
Perto do final do ano em que eu estava no Brasil, recebi uma carta do profes sor Wheeler dizendo que haveria um encontro internacional de físicos teóri cos no Japão e perguntando se eu gostaria de ir. O Japão tinha alguns físicos famosos antes da guerra - professor Yukawa, * com um prêmio Nobel, To monaga** e Nishina -, mas esse era o primeiro sinal de que o Japão estava voltando à vida depois da guerra, e nós todos achamos que deveríamos ir e ajudá-los. Wheeler anexou um livro de frases e escreveu que seria bom se nós todos pudéssemos aprender um pouco de japonês. Encontrei uma japonesa no Bra sil para me ajudar com a pronúncia, treinei o levantamento de pedacinhos de papel com palitinhos e li muito sobre o Japão. Naquela época, o Japão era muito misterioso para mim, e achei que seria inte!essante viajar até um país tão estranho e maravilhoso; portanto, trabalhei muito duro. Quando chegamos lá, fomos recebidos no aeroporto e levados a um hotel em Tóquio projetado por Frank Lloyd Wright. Era uma imitação de um hotel europeu, havia até um garotinho vestido como o rapaz da Philip Morris. *** Não estávamos no Japão; podíamos muito bem estar na Europa ou na Améri cal O rapaz que nos levou até os nossos quartos ficou por perto, fazendo as persianas subir e descer, esperando por uma gorjeta. Tudo era exatamente como na América.
"Nota do Tradutor: Hideki Yukawa ( 1 90 7- 1 98 1 ) , físico japonês pioneiro no estudo da in teração nuclear forte e que previu a existência do píon. Prêmio Nobel de 1 949. ""Nota do Tradutor: Sin-Itiro Tomonaga ( 1 906- 1 9 79), físico teórico japonês, um dos criadores da eletrodinâmica quântica. Recebeu o prêmio Nobel de 1 965 com Richard Feynman e Julian Schwinger. ""*Nota do Tradutor: Empresa fabricante de cigarros.
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Nossos anfitriões tinham organizado tudo. Naquela primeira noite, jan tamos na parte de cima do hotel, servidos por uma mulher vestida como as ja ponesas ' mas os cardápios eram em inglês. Eu tivera muito trabalho para aprender algumas frases em japonês; então, quando estava acabando a refei ção, disse para a garçonete: "Kohi-o motte kite kudasai. " Ela se curvou e foi embora. Meu amigo Marshak ficou estupefato: "O quê? O quê?" - Eu falo japonês - disse-lhe. - Ah, seu mentiroso! Você está sempre brincando, Feynman. - Do que você está falando? - eu disse, bem sério. - Tudo bem - ele disse. - O que você pediu? - Eu pedi que ela nos trouxesse café. Marshak não acreditou. "Vou fazer uma aposta com você", ele disse. "Se ela nos trouxer café ... " A garçonete apareceu com nosso café, e Marshak perdeu a aposta. Acontece que eu era o único que tinha aprendido um pouco de japonês mesmo Wheeler, que tinha dito que todos deveriam aprender japonês, não havia aprendido nada - e eu não agüentava mais. Eu havia lido sobre os hotéis no estilo japonês que deviam ser muito diferentes do hotel no qual estávamos hospedados. Na manhã seguinte, liguei para o japonês que estava cuidando de tudo, até das minhas acomodações. - Gostada de ficar em um hotel no estilo japonês. - Acho que será impossível, professor Feynman. Eu havia lido que os japoneses são muito educados, mas bastante obstina dos: você deve insistir. Então resolvi ser tão obstinado quanto eles e igualmente educado. Era uma guerra de nervos: levou trinta minutos, para cá e para lá. - Por que o senhor deseja ir para um hotel no estilo japonês? - Porque neste hotel não sinto como se estivesse no Japão. - Os hotéis no estilo japonês não são bons. O senhor terá de dor-mir no chão. - É isso o que quero; quero ver como é. - E não tem cadeiras - senta-se no chão em frente à mesa. - Está tudo bem. Será ótimo! É isso que estou procurando. Por fim, ele abre o jogo: "Se o senhor ficar em outro hotel, o ônibus terá de fazer uma parada extra no caminho para a reunião."
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- Não, não! - eu digo. - Pela manhã venho para este hotel e pego o ôni bus aqui. - Bem, então tudo bem. - Isso era tudo exceto que levou meia hora para chegar ao verdadeiro problema. Ele está prestes a fazer umaJigação para o outro hotel, quando, de repen te, pára; tudo fica de novo travado. Leva-se mais quinze minutos para desco brir que o problema agora é o correio. Se houver qualquer mensagem para al gum participante da reunião, eles já saberri onde deixar. - Tudo bem - respondo. - Quando chegar de manhã para pegar o ônibus, vejo se há mensagens para mim aqui neste hotel. - Então está tudo bem. - Ele pega o telefone, e finalmente estamos a ca minho do hotel no estilo japonês. Assim que cheguei lá, vi que havia valido a pena: era tão agradável! Havia um lugar na frente onde se podia tirar os sapatos; depois, uma garota com a roupa tradicional - o quimono -, com chinelos, vem arrastando os pés e pega nossos pertences: você a segue até um vestíbulo onde há pequenos tapetes no chão, passa por portas de correr feitas de papel e lá vai ela cht-cht-cht-cht dando passinhos. Tudo era maravilhoso! Entramos no meu quarto, o sujeito que tinha arrumado tudo curvou-se, prostrado, e encostou o nariz no chão; ela se abaixou e tocou o nariz no chão. Fiquei muito embaraçado. Eu deveria tocar meu nariz no chão também? Eles se cumprimentaram, ele agradeceu pelo quarto por mim e saiu. Era um quarto realmente maravilhoso. Havia todas aquelas coisas normais, pa dronizadas, que você hoje em dia conhece, mas que eram novidades para mim. Havia uma pequena alcova com uma pintura, um vaso com ramos de salgueiro b'em arranjados, uma mesa baixa junto ao chão com uma almofada e, no fundo do quarto, duas portas de correr que abriam para um jardim. A moça que deveria tomar conta de mim era uma senhora de meia-idade. Ela me ajudou a tirar a roupa e deu-me um yukata, um robe simples, azul e branco, para vestir no hotel. Abri as portas, admirei o adorável jardim e me sentei à mesa para traba lhar um pouco. Não se haviam passado mais do que quinze ou vinte minutos que eu esta va lá quando alguma coisa chamou minha atenção. Olhei para cima, lá para fora, em direção aos jardins, e vi, sentada na entrada da porta, no canto, uma jovem japonesa muito bonita, com uma roupa maravilhosa. -
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Eu lera muito sobre os costumes do Japão e tinha uma idéia do porquê de ela ter sido mandada ao meu quarto. Eu pensei: "Isso pode ser bem interessante!" Ela sabia um pouco de inglês. "O senhor gostaria de ver o jardim?", per guntou. Calcei os sapatos que vieram com o yukata que eu estava vestindo e fomos até o jardim. Ela tomou meu braço e mostrou-me tudo. Aconteceu que, como ela sabia um pouco de inglês, o gerente do hotel achou que eu gostaria que ela me mostrasse o jardim - era só isso. Fiquei um pouco desapontado, é claro, mas foi um encontro de culturas, e eu sabia que era fácil se tirar conclusões erradas. Algum tempo depois, a mulher que tomava conta do meu quarto entrou e disse alguma coisa - em japonês - a respeito de um banho. Eu sabia que os ba nhos japoneses eram interessantes e estava ansioso por experimentá-los, en tão respondi: "Hai. " Eu lera que os banhos japoneses eram muito complicados. Eles usam muita água, que é aquecida no lado de fora, e não se deve levar sabonete para a banheira, evitando sujar a água para a próxima pessoa. Levantei e entrei na seção do lavatório, onde estava a pia, e pude ouvir al gumas pessoas na outra seção, com a porta fechada, tomando banho. De re pente, a porta desliza e se abre: o homem que estava tomando banho parecia estar querendo saber quem estava intrometendo-se. "Professor!", ele me fala em inglês. " É um erro muito grave entrar no lavatório quando outra pessoa está no banho!" Era o professor Yukawa! Ele me disse que sem dúvida a mulher tinha perguntado se eu queria um banho e, se eu o quisesse, ela o prepararia para mim e me avisaria quando o banheiro estivesse livre. Mas de todas as pessoas no mundo com quem eu po deria ter cometido aquele grave erro foi sorte minha que tivesse sido com o professor Yukawa! O hotel no estilo japonês era delicioso, principalmente quando as pessoas iam lá visitar-me. Os caras entravam no meu quarto, sentávamos no chão e começávamos a conversar. Não ficávamos mais de cinco minutos até a senho ra que cuidava do meu quarto entrasse com uma bandeja de doces e chá. Era como se você fosse o anfitrião em sua própria casa e os funcionários do hotel estivessem ajudando a entreter seus convidados. Aqui, quando você tem con vidados em seu quarto de hotel, ninguém dá a mínima; você tem de chamar o serviço de quarto, e coisas assim.
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Fazer as refeições no hotel também era diferente. A garota que serve a re feição fica com você enquanto você come, você não fica sozinho. Eu não conse guia manter uma boa conversação com ela, mas estava tudo bem. E a comida é maravilhosa. Por exemplo, a sopa vem em uma tigela com tampa. Você levanta a tampa e eis um belo quadro: pedacinhos de cebola boiando na sopa; é perfei to. A forma como a comida é apresentada no prato é muito importante. Eu havia decidido que iria viver como os japoneses o máximo que pudes se. Isso significava comer peixe. Nunca gostei de peixe quando era pequeno, mas descobri no Japão que isso era uma infantilidade: comi muito peixe e gos tei. (Quando voltei aos Estados Unidos, a primeira coisa que fiz foi ir a um restaurante de peixes. Era horrível - exatamente como antes. Eu não podia suportar. Depois, descobri a resposta: o peixe deve ser muito, muito fresco se não for, ele fica com um certo gosto que me incomoda.) Uma vez, quando estava comendo no hotel japonês, me serviram uma coisa redonda, dura, mais ou menos do tamanho de uma gema de ovo, em uma xícara com um líquido amarelo. Eu já tinha comido de tudo no Japão, mas essa coisa me assustou: era convoluta, como um cérebro. Quando per guntei à garota o que era aquilo, ela me respondeu: kuri, o que não me ajudou muito. Achei que, provavelmente, fosse um ovo de polvo ou coisa assim. Comi, com algum receio, porque queria ser o mais japonês possível. (Passei a lembrar-me da palavra kuri como se minha vida dependesse disso - eu não a esqueci em trinta anos.) N o dia seguinte, perguntei a um japonês presente à conferência o que era aquela coisa convoluta. Eu lhe disse que tinha achado muito difícil de comer. Que diabos era kuri? - Quer dizer castanha - respondeu ele. o pouco do japonês que eu havia aprendido causava impressão. Uma vez, quando o ônibus estava demorando muito para começar a andar, alguém dis se: "Ei, Feynman! Você sabe japonês, diga a eles para começar a andar!" Eu disse: "Hayaku! Hayaku! lkimasho! lkimasho! " - o que significa: "Vamos! Vamos! Apressem-se! Apressem-se!" Descobri que meu japonês estava fora de controle. Eu havia aprendido essas frases em um livro militar de frases prontas, e elas deveriam ser muito rudes, porque todo mundo no hotel começou a correr como ratos, dizendo: "Sim, senhor! Sim, senhor!", e o ônibus partiu imediatamente.
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A reunião no Japão deu-se em duas partes: uma foi em Tóquio e a outra em Kyoto. No ônibus, a caminho de Kyoto, falei a meu amigo Abraham Pais sobre o hotel em estilo japonês, e ele quis experimentar. Ficamos no Hotel Miyako, que tinha tanto quartos no estilo americano quanto no estilo japonês, e Pais dividiu um quarto japonês comigo. Na manhã seguinte, a jovem que cuidava de nosso quarto prepara os ba nhos, que eram no nosso quarto mesmo. Algum tempo depois, ela volta com uma bandeja para servir o café-da-manhã. Estou seminu. Ela se vira para mim e diz, muito educada: "Ohayo, gozai masu ", que significa "Bom-dia". Pais está acabando de sair do banho, encharcado e completamente nu. Ela se vira para ele e, com igual polidez, diz: "Ohayo, gozai masu ", e deixa a .bandeja à nossa frente. Pais me olha e diz: "Meu Deus, nós somos tão incivilizados!" Percebemos que na América, se a empregada estivesse servindo o café da-manhã e o sujeito estivesse ali, completamente nu, haveria uma gritaria e muita confusão. Mas no Japão elas estavam totalmente habituadas a isso, e sentimos que elas eram muito mais avançadas e civilizadas em relação a essas coisas do que nós. N essa época, eu estava trabalhando na teoria do hélio líquido e tinha ana1isado como as leis de dinâmica quântica explicavam o estranho fenômeno de superfluidez. Estava muito orgulhoso desse feito e apresentaria um seminário sobre o meu trabalho na reunião de Kyoto. Uma noite antes de apresentar o meu seminário houve um jantar, e o ho mem que se sentou perto de mim era ninguém menos que o professor Onsa ger, um grande especialista em física do estado sólido e nos problemas do hé lio líquido. Era uma daquelas pessoas que não falam muito, mas sempre que diz alguma coisa é importante. - Bem, Feynman - disse ele em tom rude -, ouvi dizer que você acha que entendeu o hélio líquido. - Bem, sim .. . - Humpf... . - E foi tudo que ele me disse durante todo o jantar! Portanto, não foi muito animador. N o dia seguinte, apresentei a minha palestra e expliquei tudo sobre o hélio líquido. Ao final, me queixei de que ainda havia algo que não tinha conseguido descobrir: ou seja, se a transição entre uma fase e a outra do líquido hélio era de primeira ordem (como quando um sólido se funde ou um líquido ferve - a
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temperatura é constante) ou de segunda ordem (como você vê algumas vezes no magnetismo, no qual a temperatura fica mudando) . O professor Onsager levantou-se e disse, numa voz dura: "Bem, o profes sor Feynman é novo em nosso campo, e acho que ele precisa ser instruído. Tem uma coisa que ele precisa saber e nós devemos contar a ele." Pensei: "Jesus! O que fiz de errado?" E Onsager disse: "Nós devemos revelar ao Feynman que ninguém jamais descobriu a ordem de qualquer transição corretamente a partir dos primeiros princípios; então o fato de sua teoria não permitir que ele calcule a ordem cor retamente não significa que ele não tenha entendido, satisfatoriamente, todos os outros aspectos do hélio líquido." Acabou sendo um elogio, mas, da forma como ele começou, realmente achei que ia levar uma bronca! Não demorou mais do que um dia para que eu estivesse em meu quarto e o telefone tocasse. Era a revista Time. O sujeito na linha falou: "Estamos mui to interessados em seu trabalho. Você tem uma cópia dele que pudesse nos enviar? " Eu nunca tinha aparecido na Time e estava muito animado. Estava orgu lhoso do meu trabalho, que havia sido bem recebido na reunião. Então eu dis se: "Claro!" - Bem. Por favor envie para nosso escritório em Tóquio. - O sujeito me deu o endereço. Eu estava me sentindo ótimo. Repeti o endereço, e o sujeito disse: " É isso mesmo. Muito obrigado, Sr. Pais." - Não! - eu disse, surpreso. - Eu não sou Pais; é com Pais que você quer falar? Desculpe-me. Darei seu recado a ele quando ele voltar. Algumas horas depois, Pais chegou: "Hei, Pais! Pais!", eu disse, muito animado. "A revista Time ligou! Eles querem que você mande uma cópia do seu artigo." - Eca! - ele diz. - A publicidade é como uma prostituta! Fiquei duplamente surpreso. Depois descobri que Pais estava certo, mas naquela época pensei que se ria maravilhoso ter meu nome na revista Time. Essa foi a primeira vez que estive no Japão. Estava louco para voltar e disse que iria para qualquer universidade que eles quisessem. Então, os ja poneses arranjaram uma série de lugares a serem visitados por alguns dias a cada vez.
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Nessa época, eu era casado com Mary Lou e nos divertíamos onde quer que fôssemos. Em um certo lugar, eles fizeram toda uma cerimônia com dan ça' geralmente apresentada apenas para grandes grupos de turistas, especial mente para nós. Em outro lugar, fomos recepcionados no barco por todos os estudantes. Em outro lugar, o prefeito veio encontrar-nos. Um lugar em particular que ficamos era pequeno, modesto, na floresta, onde o imperador hospedava-se quando ia até lá. Era muito agradável, cerca do por árvores, realmente lindo. Havia uma certa calma, uma elegância sere na. O fato de o imperador ir a tal lugar para hospedar-se mostrava uma maior sensibilidade à natureza, eu acho, do que estamos acostumados no Ocidente. Em todos os lugares, as pessoas que trabalhavam com física me diziam o que estavam fazendo; e eu discutia com eles. Eles relatavam o problema ge ral com o qual estavam trabalhando e começavam a escrever um monte de equações. - Espere um minuto - eu dizia. - Há algum exemplo em particular desse problema geral? - Ab, sim; é claro. - Bom. Dê um exemplo. - Era assim que funcionava comigo: não consigo entender nada no geral, a menos que eu esteja comparando, em minha mente, com algum exemplo e vendo o que acontece. Algumas pessoas acham, a prin cípio, que sou um pouco lerdo e que não entendo o problema porque faço uma porção dessas perguntas "idiotas" : "O cátodo é positivo ou negativo? O ânion é dessa forma ou daquela forma? " Mas, depois, quando a pessoa está no meio d e u m 1l\onte d e equações, dirá alguma coisa e eu direi: "Espere um minuto! Tem um erro! Isso não pode estar certo!" A pessoa examina as equações e, realmente, depois de um tempo, ela des cobre o erro e imagina: "Como o diabo desse homem, que mal entendeu o co meço, encontra o erro nessa confusão de equações?" Ela acha que estou acompanhando matematicamente as etapas, mas não é isso o que estou fazendo. Tenho o exemplo específico, físico, do que ele está tentando analisar, e sei, por instinto e experiência, as propriedades da maté ria. Então, quando a equação diz que isso deve se comportar dessa forma e sei que esse é o caminho errado, levanto e digo: "Espere! Tem um erro aí!" Assim, no Japão, eu não conseguia entender ou discutir o trabalho de uma pessoa sem que ela me desse um exemplo físico, e a maioria das pessoas não
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conseguia encontrar um. Quando conseguiam, geralmente era um exemplo fraco, que poderia ser solucionado por um método muito mais simples de análise. Já que eu pedia sempre que o que eles estavam tentando resolver não me fosse apresentado por equaçõeSo.matemáticas, mas sim por exemplos físicos, minha visita foi resumida em um ensaio mimeografado, que circulou entre os cientistas (era um sistema modesto, mas efetivo, de comunicação que eles ha viam criado depois da guerra) com o título: "Os Bombardeios de Feynman e Nossas Reações". Depois de visitar uma série de universidades, passei alguns meses no Instituto Yukawa, em Kyoto. Realmente gostei de trabalhar lá. Tudo era muito agradável: você chegava ao trabalho, tirava os sapatos e alguém vi nha e servia chá pela manhã, quando você estivesse com vontade. Era mui to agradável. Enquanto estive em Kyoto, tentei muito aprender japonês. Trabalhei duro para tanto e cheguei a uma certa independência, a ponto de andar de táxi e fazer algumas coisas sozinho. Tive aulas com um japonês todos os dias, uma hora por dia. Um dia, ele estava me ensinando a empregar a palavra que significa "ver". "Muito bem", ele disse. "Você quer dizer: ' Posso ver o seu jardim? ' Como você fala?" Criei uma frase com a palavra que tinha acabado de aprender. - Não, não! - ele disse. - Quando você diz a alguém "Você gostaria de ver meu jardim? ", você usa o primeiro "ver". Mas quando quer ver o jardim de outra pessoa, deve usar o outro "ver", que é mais educado. - "Você gostaria de dar uma olhada em meu jardim vulgar?" é essencial mente o que você está dizendo no primeiro caso, mas quando você quer ver o jardim de outra pessoa, você deve dizer algo do tipo: "Posso observar seu ma ravilhoso jardim?" Assim, há duas palavras diferentes que você deve usar. Ele me deu outra: "Você vai a um templo e quer ver o jardim. . . " Dessa vez, criei uma frase com o "ver" educado. - Não, não! - ele disse. - No templo, os jardins são muito mais elegantes. Então você deve dizer algo que seria equivalente a: "Posso pousar meus olhos nos seus exóticos jardins? " Três ou quatro palavras para uma idéia, porque, quando eu estou fazendo isso, é uma droga; quando você está fazendo isso, é elegante.
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Eu estava aprendendo japonês principalmente por causa de assuntos téc nicos; então resolvi verificar se existia o mesmo problema entre os cientistas. No instituto, no dia seguinte, eu disse aos rapazes da sala: "Como digo em japonês 'Eu resolvo a Equação de Dirac' ? " Eles disseram assim e assado. - Tudo bem. Agora quero dizer: "Você resolveria a Equação de Dirac?". Como digo isso? - Bem, você deve usar uma palavra diferente para "resolver" - explica ram. - Por quê? - protestei. - Quando eu resolvo, faço exatamente a mesma coisa que quando você resolve! - Bem, sim, mas é uma palavra diferente - é mais educada. Desisti. Decidi que não era a língua para mim e parei de aprender japonês.
A sol u ção a 7%
o problema era encontrar as leis
corretas do decaimento beta.* Supunha-se haver duas partículas, que eram chamadas tau e teta. Pareciam ter quase exatamente a mesma massa, mas uma desintegrava em dois píons e a outra em três píons. Não só pareciam ter a mesma massa, mas também o mesmo tempo de vida, o que é uma coincidência engraçada. Todo mundo estava in teressado nisso. Em uma reunião da qual participei, relatou-se que, quando essas duas partículas eram produzidas em um cíclotron com diferentes ângulos e com diferentes energias, elas sempre eram produzidas na mesma proporção - tan tos taus em relação a tantos tetas. Agora, uma possibilidade, é claro, era que fosse a mesma partícula, que ora se decompunha em dois píons ora em três píons. Mas ninguém admitiria isso, porque há uma lei, chamada regra da paridade, que é baseada na hipóte se de que todas as leis da física são simétricas frente a uma reflexão no espelho e que afirmam que uma coisa que pode transformar-se em dois píons não pode também transformar-se em três píons. Naquela época, eu não estava realmente a par das coisas: sempre estava um pouco atrasado. Todo mundo parecia ser esperto, e eu sentia que não os estava acompanhando. De qualquer modo, eu estava dividindo uma sala com Martin Block, um físico experimental. Uma noite, ele me disse: "Por que vo cês insistem tanto nessa regra da paridade? Talvez o tau e o teta sejam a mes*Nota do Tradutor: Grosso modo, o decaimento beta é o processo por meio do qual um nêutron transforma-se em um próton mais um elétron, mais o antineutrino associado ao elétron. Este é o processo beta mais. No processo beta menos, um próton transforma-se em um nêutron, mais um posítron, mais um neutrino associado ao elétron. Os dois proces sos podem ser analisados em termos mais fundamentais que envolvem as partículas que constituem o próton e o nêutron (os quarks) . A discussão que o autor apresenta reflete a fí sica da época.
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ma partícula. Quais seriam as conseqüências se a regra da paridade estivesse errada?" Pensei um pouco e disse: "Isso significaria que as leis d a natureza são di ferentes para a mão direita e para a mão esquerda, que há uma forma de defi nir a mão direita por fenômenos físicos. Não acho que isso seja tão terrível, apesar da possibilidade de haver conseqüências negativas, mas não sei. Por que você não pergunta aos especialistas amanhã? " Ele disse: "Não, eles não vão me dar ouvidos. Você pergunta." Então, no dia seguinte, na reunião, quando estávamos discutindo o pro blema tau/teta, Oppenheimer disse: "Precisamos ouvir idéias novas, mais ex travagantes, sobre esse problema." Então levantei-me e falei: "Estou fazendo essa pergunta em nome de Martin Block: Quais seriam as conseqüências se a regra da paridade estivesse errada? " Murray Gell-Mann muitas vezes cobrou-me, dizendo que não tive cora gem de fazer a pergunta por mim mesmo. Mas não foi esse o motivo. Achei que podia muito bem ser uma idéia importante. Lee, de Lee e Yang,* respondeu alguma coisa complicada e, como sem pre, não entendi muito bem. Ao final da reunião, Block me perguntou o que ele havia dito, e respondi que não sabia, mas, até onde podia perceber, a ques tão ainda estava em aberto - ainda havia uma possibilidade. Não imaginei que fosse provável, mas achei que era possível. Norm Ramsey me perguntou se eu achava que ele deveria fazer uma ex periência procurando violações da lei da paridade, e respondi: "A melhor for ma de explicar o que acho é: vou apostar apenas cinqüenta contra um como você não encontra nada." Ele disse: " Para mim, está bom." Mas ele nunca fez a experiência. De qualquer forma, a descoberta da violação da lei de paridade foi feita, experimentalmente, por Wu, ** e isso abriu todo um leque de novas possibili" *Nota do Tradutor: O autor refere-se a Tsung Dao Lee ( 1 926- ) e Chen Ning Yang ( 1 922- ) , físicos teóricos chineses naturalizados americanos que mostraram que a paridade não é conservada nas interações fracas. Ambos receberam o prêmio Nobel de 1 95 7 . **Nota do Tradutor: Chien- Shiung Wu ( 1 9 1 2 - ) física experimental chinesa naturalizada americana que confirmou experimentalmente que a paridade não era conservada nas inte rações fracas. Ao contrário de Lee e Yang, que fizeram a previsão teórica do fenômeno, Wu não recebeu o prêmio Nobel pelo feito experimental. ,
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dades para a teoria do decaimento beta, como também desencadeou uma porção de experiências posteriores. Algumas mostravam os elétrons saindo dos núcleos girando para a esquerda e alguns para a direita, e havia todo tipo de experiências, todo tipo de descobertas interessantes envolvendo a parida de. Mas os dados eram tão confustils que ninguém conseguia juntar as coisas. Em certa ocasião, houve uma reunião em Rochester - a Conferência Anual de Rochester. Eu ainda estava muito desatualizado, e Lee estava apre sentando seu artigo sobre a violação da paridade. Ele e Yang haviam chegado à conclusão de que a paridade havia sido violada, e agora estava apresentando a teoria que explicava isso. Durante a conferência, eu estava hospedado com minha irmã em Syracu se. Levei o artigo para casa e comentei com ela: "Não consigo entender essas coisas que Lee e Yang estão dizendo. É tudo tão complicado." - Não - ela disse - o que você quer dizer não é que não consegue enten der, mas que não inventou isso. Você não descobriu isso da sua maneira, se guindo uma pista. O que você deveria fazer era imaginar que é um estudante de novo e levar esse artigo lá para cima, ler cada linha dele e verificar as equa ções. Aí vai ser muito fácil entendê-lo. Aceitei o conselho e examinei tudo, e descobri que era muito simples e ób vio. Eu é que estava com medo de ler o artigo pensando que era muito difícil. Isso me fez lembrar de uma coisa que eu havia feito há muito tempo com as equações que eram não-simétricas com respeito à mão esquerda ou à direi ta. * Agora estava mais ou menos claro, quando olhei as fórmulas de Lee, que a solução para todas elas era muito simples: tudo sai acoplado à esquerda. No caso do elétron e do múon, minhas previsões eram as mesmas que as de Lee, exceto por alguns sinais trocados. Não percebi isso na época, mas Lee havia considerado apenas os exemplos mais simples de acoplamento do múon e não havia provado que todos os múons girariam para a direita, enquanto, de acor do com a minha teoria, todos os múons deveriam estar automaticamente gi rando para a direita. Conseqüentemente, fiz, na verdade, uma previsão bem sucedida em cima do que ele conseguira. Eu tinha os sinais diferentes, mas não percebi que também tinha obtido a quantidade correta.
*Nota do Tradutor: Isto é, em relação a um sistema de coordenadas orientado de acordo com a mão esquerda ou com a mão direita.
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Previ algumas coisas que até agora ninguém verificou experimentalmen te, mas, quando cheguei ao nêutron e ao próton, não consegui concordância com o que era então conhecido sobre o acoplamento do nêutron e do próton: era muito confuso. No dia seguinte, quando voltei à reunião, um homem muito gentil, cha mado Ken Case, que apresentaria um artigo sobre algum tema, me deu cinco minutos do seu tempo permitido para que eu apresentasse a minha idéia. Eu disse estar convencido de que tudo estava acoplado à esquerda e que os sinais do elétron e do múon estavam invertidos, mas que estava tendo problemas com o nêutron. Mais tarde, os experimentais me fizeram algumas perguntas sobre minhas previsões, e depois fui para o Brasil, passar o verão. Quando voltei aos Estados Unidos, eu queria saber qual era a situação do decaimento beta. Fui ao laboratório da professora Wu, em Columbia. Ela não estava lá, mas havia outra senhora para me mostrar todos os tipos de da dos, todos os tipos de números caóticos que não combinavam com nada. Os elétrons, que em meu modelo girariam todos para a esquerda no decaimen to das partículas beta, em alguns casos giravam para a direita. Nada combi nava com nada. Quando voltei ao Caltech, perguntei a alguns dos experimentais a situa ção do decaimento beta. Lembro-me que três sujeitos, Hans Jensen, Aaldert Wapstra e Felix Boehm, me fizeram sentar em um banquinho e começaram a relatar-me todos os fatos: os resultados experimentais de outras partes do país, bem como os resultados experimentais deles mesmos. Como eu conhe cia esse pessoal e sabia como eram cuidadosos, prestei mais atenção aos re sultados deles do que aos dos outros. Os resultados deles, por si só, não eram tão inconsistentes; inconsistentes eram todos os outros mais os deles. Finalmente, me deram todo aquele material e disseram: "A situação é tão complexa que mesmo algumas das coisas estabelecidas há anos estão sendo questionadas - tais como o decaimento beta dos nêutrons ser S e T.* Está tudo bagunçado. Murray diz até que deveria ser V e A."** Pulo do banco e digo: "Agora entendo tuuuuuuudo!"
*Nota do Tradutor: No jargão da física de partículas da época, S de scalar (escalar) , T de tensorial. Os termos dizem respeito ao tipo de corrente envolvida na interação.
**Nota do Tradutor: No jargão da física de partículas da época, V de vetorial, A de axial. Os termos dizem respeito ao tipo de corrente envolvida na interação.
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Eles achavam que eu estava brincando. Mas o problema que tive na reu nião de Rochester foi a desintegração do nêutron e do próton: tudo se encai xava menos isso, e se fosse V e A em vez de S e T, isso se encaixaria também. Portanto, eu tinha a teoria completa! Naquela noite, calculei todC/'ltipo de coisa com essa teoria. A primeira coi sa que calculei foi a taxa de desintegração do mu e do nêutron. Se essa teoria estivesse correta, eles deviam estar relacionados por meio de uma certa equa ção, e estava correta a menos de 9%. Estava bem perto, faltavam 9%. Deveria ser mais preciso do que isso, mas estava próximo o bastante. Continuei e verifiquei algumas outras coisas que se encaixavam, coisas novas se encaixavam, e mais coisas novas se encaixavam e . . . , eu estava muito animado. Era a primeira vez, e a única, na minha carreira que eu sabia uma lei da natureza que ninguém mais sabia. ( É claro que não é verdade, mas descobrir mais tarde que pelo menos Murray Gell-Mann - e também Su darshan e Marshak - havia trabalhado com a mesma teoria não acabou com a minha alegria.) O que eu tinha feito antes era pegar a teoria de outra pessoa e melhorar o método de cálculo, ou pegar uma equação, como a equação de Schrõdinger, para explicar um fenômeno, como o hélio. Sabemos a equação e conhecemos o fenômeno, mas como isso funciona? Pensei em Dirac, que conservou para si a sua equação por um tempo uma equação nova que dizia como um elétron se comportava. Eu tinha essa nova equação para o decaimento beta que não era tão vital quanto a equação de Dirac, mas era boa. Foi a única vez que descobri uma lei nova. Liguei para minha irmã em Nova York para agradecer-lhe por fazer-me sentar e trabalhar naquele ensaio de Lee e Yang, na Conferência de Roches ter. Depois de sentir-me desconfortável e atrasado, agora eu estava por den tro: tinha feito uma descoberta, só a partir do que ela havia sugerido. Conse gui fazer parte da física novamente, por assim dizer, e gostaria de agradecer a ela por isso. Disse-lhe que tudo se encaixava, exceto os 9%. Eu estava muito animado e continuei a calcular, e as coisas que se encai xavam continuaram a aparecer: elas se encaixavam automaticamente, sem maiores esforços. A essa altura, eu tinha começado a esquecer dos 9%, por que o resto todo estava dando certo. Trabalhei muito durante a noite, sentado a uma mesinha na cozinha, per to de uma janela. Estava ficando cada vez mais tarde - cerca de 2 ou 3 horas
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da madrugada. Estou trabalhando muito, consolidando todos esses cálculos com as coisas que se encaixam, e estou pensando e me concentrando, e está escuro, e está silêncio ... quando, de repente, ouço um toc-toc-toc-toc - alto, na janela. Olho e lá está aquela cara branca, bem na janela, apenas a alguns centímetros de distância, e grito assustado e surpreso! Era uma moça que eu conhecia e que estava zangada comigo porque eu havia voltado de férias e não havia telefonado logo para ela, para avisar que havia voltado. Convidei-a para entrar e tentei explicar que naquele momento estava muito ocupado, que havia acabado de descobrir algo e era muito im portante. Eu disse: "Por favor, saia e deixe-me acabar." Ela disse-me: "Não, eu não quero atrapalhar. Vou só ficar aqui na sala." Respondi: "Tudo bem, mas é muito difícil." Ela não se sentou exatamente na sala de estar. A melhor forma de explicar é dizer que ela praticamente se acocorou em um canto, entrelaçou as mãos, não querendo me "atrapalhar" . É claro que o que ela queria era atrapalhar-me completamente! E conseguiu - eu não conseguia ignorá-la. Fiquei furioso e chateado e não pude agüentar. Eu tinha de fazer esse cálculo, estava no meio de uma grande descoberta e extremamente animado e, de alguma forma, isso era mais importante para mim do que aquela moça - pelo menos naquela hora. Não me lembro como finalmente consegui que ela fosse embora, mas foi muito difícil. Depois de trabalhar um pouco mais, ficou tarde e fiquei com fome. Andei pela rua principal até um restaurante a cinco ou dez quarteirões de distância, como já havia feito muitas vezes antes, tarde da noite. Em ocasiões anteriores, fui freqüentemente parado pela polícia porque eu estava passeando, pensando, e então eu parava - às vezes aparece uma idéia que é tão difícil que você não pode continuar andando; precisa ter certe za de algo. Então eu parava e, às vezes, levantava meus braços, falando sozi nho: "A distância entre eles é assim, e então acontece dessa forma . . . " Eu estava mexendo minhas mãos, parado na rua, quando o policial che gava: "Qual o seu nome? Onde você mora? O que você está fazendo? " -Ah! Eu estava pensando. Sinto muito; eu moro aqui e geralmente vou ao . restaurante ... - Depois de um tempo, eles já sabiam quem eu era e não me pa ravam mais. Assim, fui ao restaurante e, enquanto comia, estava tão animado que contei a uma moça que eu acabara de fazer uma descoberta. Ela começa: ela é esposa
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de um bombeiro, ou de um guarda-florestal ou coisa assim. Ela é muito solitá ria - todas essas coisas que eu não estava interessado. Aí acontece aquilo. Na manhã seguinte, quando cheguei ao trabalho, procurei Wapstra, Bo ehm e Jensen, e disse-lhes: "Já calculei tudo isso. Tudo se encaixa." Christy, que também estava lá, disse: "Qual a constante de decaimento beta que você usou?" - A do livro tal. - Mas já se descobriu que ela está errada. As medidas recentes mostram que ela está errada em 7%. Então, me lembrei dos 9%. Era como um sinal para mim: fui para casa e peguei essa teoria que prevê o decaimento do nêutron a menos de 9%, e eles me dizem casualmente na manhã seguinte que, na verdade, a constante foi al terada em 7%. Mas foi alterada de 9 para 1 6, o que é mau, ou de 9 para 2, o que é bom? Bem nessa hora, minha irmã ligou de Nova York: "E os 9% - o que aconteceu?" - Acabei de descobrir que há novos dados: 7% . . . - Para mais o u para menos ? - Estou tentando descobrir. Ligo de volta para você. Eu estava tão animado que não conseguia pensar. É como quando você está apressado para pegar um avião e não sabe se está atrasado ou não, e não consegue descobrir, até que alguém diz: " É horário de verão!" Sim, mas para mais ou para menos? Você não consegue pensar quando está agitado. Então, Christy foi para uma sala e fui para outra para termos paz e sosse go para podermos pensar: isso se move nesta direção e aquilo se move naque la - não era muito difícil, na verdade; era apenas excitante. Christy saiu da sala, eu saí, e nós dois concordamos : é um percentual que está bem dentro do erro experimental. Afinal, se eles acabaram de alterar a constante em 7%, o 2% poderia ter sido um erro. Liguei de volta para minha irmã: "2%." A teoria estava certa. (Na verdade, ela estava errada: ela estava errada, de fato, em 1 %, por um motivo que não havíamos considerado, que só foi entendido mais tarde por Nicola Cabibbo. Assim, aqueles 2% não eram de todo experimentais.) Murray Gell-Mann e eu comparamos e combinamos nossas idéias e es crevemos um artigo sobre a teoria. Ela era bem agradável, relativamente sim-
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pies e fazia com que uma porção de coisas se encaixassem. Mas, como eu dis se, havia uma impressionante quantidade de dados caóticos. E, em alguns ca sos, avançávamos até o ponto de constatarmos que as experiências estavam equivocadas . Um bom exemplo foi uma experiência de Valentine Telegdi, na qual ele mediu o número de elétrons que vai em cada direção quando um nêutron se desintegra. Nossa teoria havia previsto que o número seria o mesmo em todas as direções, enquanto Telegdi descobriu que havia 1 1 % a mais indo em uma direção do que na outra. Telegdi era um excelente experimental e muito cui dadoso. Em certa ocasião, ele estava dando um seminário em algum lugar e, referindo-se à nossa teoria, disse: "O problema com os teóricos é que eles nunca prestam atenção à experiência!" Telegdi também nos enviou uma carta que não era necessariamente áspe ra, mas na qual ele se mostrava convencido de que nossa teoria estava errada. Ao final, ele escreveu: "A teoria F-G (Feynman - Gell-Mann) sobre decai mento beta não é F-G." Murray diz: "O que devemos fazer sobre isso? Você sabe, Telegdi é muito bom." Eu digo: "Vamos esperar." Dois dias depois, chega outra carta de Telegdi. Ele mudou completamen te. Descobriu, a partir de nossa teoria, que havia descartado a possibilidade de que o próton de recuo de um nêutron não fosse o mesmo em todas as dire ções. Ele havia suposto que era o mesmo. Ao adicionar as correções previstas pela nossa teoria, em vez das que ele estava utilizando, os resultados entraram nos eixos e ficaram em total concordância. Eu sabia que Telegdi era excelente e seria difícil ir contra ele. Mas eu esta va convencido, naquela época, de que devia haver alguma coisa errada com a experiência dele, e que ele descobriria o que era - ele era muito mais indicado para descobrir isso do que nós. Foi por isso que eu disse que não deveríamos tentar descobrir o que era, mas simplesmente esperar. Fui ao professor Bacher e contei a ele sobre nosso sucesso, e ele disse: "Sim; você chega e diz que o acoplamento nêutron-próton é V em vez de T. Todo mundo pensava que era T. Cadê a experiência fundamental que diz que é T? Por que você não procura nas experiências anteriores e descobre o que há de errado com elas?"
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Saí e encontrei o artigo original sobre a experiência que dizia que o aco plamento nêutron-próton era T, e fiquei chocado com uma coisa. Eu lembra va-me de ter lido aquele artigo antes (na época eu lia todos os artigos da Physical Review - eles eram bem curtos) . E lembrei-me, quando li esse artigo de novo, observando aquela cut'Va e pensando: "Isso não prova nada!" Veja bem, ela era baseada em um ou dois pontos limítrofes dos dados, e há um princípio que afirma que um ponto limítrofe dos dados - o último ponto não é muito bom, porque, se fosse, eles teriam outro ponto mais adiante. Eu havia percebido que toda a idéia de que o acoplamento nêutron-próton é T se baseava no último ponto, que não era muito bom, e, portanto, a idéia não es tava provada. Lembro-me de perceber isso! Quando me interessei pelo decaimento beta, diretamente, li todos aqueles artigos escritos por "especialistas em decaimento beta", que diziam ser o de caimento T. Nunca examinei os dados originais: apenas li os artigos, como um tolo. Se tivesse sido um bom físico, quando voltei a pensar na idéia origi nal na Conferência de Rochester, eu teria pensado imediatamente "Até que ponto realmente sabemos que é T?" o que teria sido a coisa sensata a se fa zer. Eu teria reconhecido, imediatamente, que já havia percebido que não es tava satisfatoriamente provado. Desde então nunca presto muita atenção a nada feito por "especialistas"; eu mesmo faço todos os cálculos. Quando as pessoas disseram que a teoria dos quarks era muito boa, fui a dois PhD, Finn Ravndal e Mark Kislinger, para examinarmos . juntos o trabalho todo, para que eu pudesse verificar se tudo estava realmente produzindo resultados bastante adequados e se era uma teoria significativamente boa. Nunca mais cometerei esse erro - ler a opinião de especialistas. É claro, você só vive uma vida, comete todos os erros, aprende o que não deve fazer, e esse é o seu fim. -
Treze vezes
Uma vez um professor de ciências da faculdade da cidade local veio pergun tar-me se eu queria apresentar um seminário. Ele me ofereceu cinqüenta dó lares, mas respondi que não estava preocupado com o dinheiro. " É a faculda de da cidade, certo?" - Sim. Pensei em toda a papelada com a qual normalmente me envolvo quando lido com o governo, então ri e disse-lhe: "Ficarei honrado em apresentar o se minário. Só tem uma condição"- tirei um número da cartola e continuei - "que eu não tenha de assinar meu nome mais de treze vezes, incluindo o cheque!" O sujeito também riu. "Treze vezes! Sem problemas." Então começou. Primeiro tive de assinar algo que dizia que sou leal ao go verno ou não poderia apresentar o seminário na faculdade da cidade: tive de assinar duas vias, OK? Depois, tive de assinar algum tipo de permissão para a cidade - não consigo lembrar exatamente o quê. Logo os números começa ram a aumentar. Tive de assinar que estava devidamente empregado como professor - só para garantir, é óbvio, que nenhum figurão estivesse contratando a esposa ou um amigo para vir e sequer apresentar um seminário. Havia todo tipo de ga rantias a dar, e as assinaturas continuaram a acumular-se. Bem, o sujeito que riu no começo ficou bastante nervoso, mas continua mos. Fiz exatamente doze assinaturas. Restava uma para o cheque; então, fui adiante e apresentei o seminário. Alguns dias depois, o sujeito veio entregar-me o cheque, mas estava suan do frio. Ele não podia entregar-me o dinheiro, a menos que eu assinasse um formulário dizendo que eu realmente proferira a palestra. Respondi: "Se eu assinar o formulário, não posso assinar o cheque. Mas você estava lá. Você assistiu ao seminário, por que você não assina o formulário? "
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- Veja bem - ele disse. - Isso tudo não é uma bobagem? - Não. Foi um acordo que fizemos no começo. Não imaginávamos que realmente chegasse a treze, mas concordamos nesse ponto, e acho que deve ríamos levar o trato até o fim. Ele disse: "Tenho trabalhado R1uito, atirando para todos os lados. Tentei de tudo, e eles me dizem que é impossível. Você simplesmente não pode rece ber o dinheiro se não assinar o formulário." - Está tudo bem, eu disse. Eu só assinei doze vezes e apresentei o seminário. Não preciso do dinheiro. - Mas detesto fazer isso com você. - Está tudo bem. Fizemos um acordo; não se preocupe. No dia seguinte, ele me telefona: "Eles não podem deixar de te dar o di nheiro! Já registraram o gasto e alocaram o dinheiro; então eles precisam re passá-lo a você!" -Tudo bem, se eles querem me dar o dinheiro, deixe que eles me dêem. - Mas você deve assinar o formulário. - Eu não vou assinar o formulário! Eles estavam chocados. Não havia onde pôr o dinheiro que esse homem merece mas não quer assinar. Por fim, tudo se arranjou. Levou muito tempo e foi muito complicado mas usei a décima terceira assinatura no meu cheque.
Para m i m parece g rego!
Não sei o porquê, mas, sempre que saio de viagem, não me lembro de levar o endereço ou o número de telefone, ou qualquer coisa que o valha, das pessoas que me convidaram. Imagino que alguém vá me recepcionar ou que outra pessoa saiba para onde estamos indo: tudo dá certo, de alguma forma. Uma vez, em 1 957, fui a uma conferência sobre gravitação na Universi dade da Carolina do Norte. Se supunha que eu seria um especialista de uma área diferente que estaria dando uma olhada na gravitação. Cheguei com um dia de atraso para a conferência (não consegui chegar no primeiro dia) e saí do aeroporto para apanhar um táxi. Disse ao responsá vel pelo serviço de táxi: "Gostaria de ir até a Universidade da Carolina do Norte." - O que você quer dizer - disse ele - a Universidade Estadual da Carolina do Norte em Raleigh ou a Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill? Desnecessário dizer que eu não tinha a menor idéia. "Onde elas ficam?", perguntei, imaginando que uma fosse perto da outra. - Uma fica ao norte e outra ao sul daqui, cerca da mesma distância. Eu não tinha nada comigo que pudesse mostrar-me qual era a universida de certa, e não havia mais ninguém indo para a conferência com um dia de atraso, como eu. Tive uma idéia: "Ouça", disse a ele, "a reunião principal começou ontem; então havia uma porção de gente indo para a reunião. Eles devem ter chegado ontem. Deixe-me descrevê-los para você: eles pareciam estar com a cabeça nas nuvens, sem prestar atenção para onde estavam indo, falando coisas es tranhas uns para os outros." A face dele iluminou-se. "Ah, sim", ele disse, "você quer ir para Chapel Hill!" Ele chamou o primeiro táxi da fila. "Leve este homem à universidade em Chapel Hill!" , - Obrigado - eu disse, e fui para a conferência.
M as i sso é arte?
Uma vez, eu estava em uma festa tocando bongô e saindo-me muito bem. Um sujeito estava particularmente inspirado pelos tambores. Ele entrou no ba nheiro, tirou a camisa, passou creme de barbear no peito, fazendo desenhos engraçados, e saiu dançando, com cerejas penduradas nas orelhas. Natural mente, fiquei amigo desse maluco na hora. Seu nome era Jirayr Zorthian; ele é um artista. Era comum termos longas conversas sobre arte e ciência. Eu dizia coisas como: "Os artistas são uns perdidos: eles não têm motivação alguma! Costu mavam ter motivos religiosos, mas perderam a religião e agora não têm nada. Não entendem o mundo técnico no qual vivem; eles não sabem nada sobre a be leza do mundo real - assim eles não têm nada em seus corações para pintar." J erry respondia que os artistas não precisam ter um motivo físico; há mui tas emoções que podem ser expressas pela arte. Além disso, a arte pode ser abstrata. Ademais, os cientistas destroem a beleza da natureza quando a re cortam e a transformam em equações matemáticas. Uma vez, eu estava com Jerry no seu aniversário e uma dessas discussões to las durou até as 3 :OOh da madrugada. Na manhã seguinte, liguei para ele: "Ouça, Jerry", falei, "a razão por que discutimos sem chegar a lugar algum é que você não sabe nada sobre ciência e eu não sei nada sobre arte. Então, em domingos al ternados, vou ensinar ciência para você e você vai me ensinar artes." - Tudo bem - ele disse - eu vou ensinar você a desenhar. - Isso vai ser impossível - eu disse -, porque quando estava no ensino médio a única coisa que eu conseguia desenhar eram pirâmides no deserto - fei tas, principalmente, com linhas retas -, e de tempos em tempos eu tentava fa� zer uma palmeira e colocar um sol no desenho. Não tinha talento algum. Eu sentava perto de um sujeito que era igualmente inapto. Quando lhe permitiam desenhar alguma coisa, o desenho consistia em dois borrões elípticos que pa reciam dois pneus empilhados um sobre o outro, com um pau saindo do topo,
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culminando com um triângulo verde. Se supunha que isso deveria ser uma ár vore. Assim, apostei com J erry que ele não conseguiria me ensinar a desenhar. - E claro que você vai precisar treinar - disse ele. Prometi treinar, mas ainda assim apostei que ele não conseguiria ensi nar-me a desenhar. Eu queria muito aprender a desenhar, por uma razão que eu guardava comigo: eu queria transmitir a emoção que sinto sobre a beleza do mundo. É difícil descrevê-la, por ser uma emoção. É análogo ao sentimento que se tem na religião, que tem a ver com um DeUs que contro la tudo em todo o universo: há um aspecto de generalidade quando se pen- . sa sobre como coisas que parecem ser tão diferentes e têm comportamen tos tão diferentes possam ser controladas, "nos bastidores", pela mesma organização, pelas mesmas leis físicas. É uma apreciação da beleza mate mática da natureza, de como ela funciona por dentro; uma percepção de que os fenômenos que vemos resultam da complexidade dos mecanismos internos que envolvem os átomos; uma sensação do quão dramático e ma ravilhoso isto é. É uma sensação de reverência - reverência científica -, a qual eu sentia que poderia ser comunicada por meio de um desenho a al guém que também tivesse sentido essa emoção. O desenho poderia fazer com que a pessoa lembrasse, por um momento, dessa sensação a respeito das glórias do universo. Jerry mostrou-se um ótimo professor. Ele primeiro disse-me para ir para casa e desenhar qualquer coisa. Então tentei desenhar um sapato; depois ten tei desenhar uma flor em um vaso. Foi um desastre! Da outra vez que nos encontramos, mostrei-lhe minhas tentativas: "Ah, veja!", disse ele, "você vê, ao redor, aqui atrás, a linha do vaso da flor não en costa na folha" . (Eu tentei fazer a linha subir até a folha.) "Está muito bom. É , uma forma de mostrar profundidade. É muito esperto de sua parte." "E o fato de você não fazer todas as linhas com a mesma espessura (o que eu não pretendia fazer) é bom. Um desenho com todas as linhas da mesma es pessura é obtuso." Ele continuou assim: tudo que eu pensava ser um erro ele usou para me ensinar alguma coisa, de forma positiva. Ele nunca disse que es tava errado; ele nunca me pôs para baixo. Assim, continuei tentando e fui me lhorando aos poucos, mas nunca estava satisfeito. Para adquirir mais prática, também me inscrevi em um curso por corres pondência na lnternational Correspondence Schools, e devo reconhecer que eles eram bons. Eles fizeram-me começar desenhando pirâmides e cilindros,
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sombreando-os, e assim por diante. Varremos muitas áreas: desenhos, pastel, aquarela e pinturas. Perto do fim do curso, desisti: fiz uma pintura a óleo para eles, mas nunca a enviei. Eles continuaram a enviar-me cartas pedindo-me para continuar. Eles eram muito bons. Eu passava o tempo todo pralicando desenho e fui me interessando cada vez mais. Se eu estivesse em uma reunião que não estivesse levando a nada como aquela na qual Carl Rogers veio ao Caltech para discutir conosco se o Caltech deveria criar um departamento de psicologia -, eu ficava desenhando as outras pessoas. Eu sempre tinha um pequeno bloco de papel comigo e de senhava em qualquer lugar que eu fosse. Assim, trabalhei muito duro enquan to Jerry estava me ensinando. Jerry, por sua vez, não aprendeu muito sobre física. A mente dele divagava muito facilmente. Tentei ensinar-lhe alguma coisa sobre eletricidade e mag netismo, mas assim que mencionei "eletricidade" ele começou a falar de um motor que ele tinha e que não funcionava e como deveria consertá-lo. Tentei mostrar-lhe como um eletroímã funcionava fazendo um pequeno enrolamen to com um fio e pendurando um prego a um pedaço de barbante; liguei a vol tagem, o prego foi puxado para dentro da espira e Jerry disse: "Ah! É igual a trepar!" E esse foi o fim da história. Assim, agora tínhamos uma discussão nova - se ele é um professor me lhor do que eu ou se eu sou melhor aluno do que ele. Desisti da idéia de tentar fazer um artista apreciar a sensação que eu sen tia sobre a natureza para que ele pudesse desenhá-la. Agora eu teria de dupli car meus esforços para aprender a desenhar e conseguir desenhar por mim mesmo. Era um empreendimento muito ambicioso, e guardei a idéia só para mim, porque as chances eram de que eu nunca conseguisse chegar lá. Bem no começo do processo de aprender a desenhar, uma moça que eu conhecia viu minhas tentativas e disse: "Você deve ir ao Museu de Arte de Pa sadena. Eles têm aulas de desenho lá, com modelos - modelos nus." - Não - eu disse -, não sei desenhar bem o bastante; eu ficaria sem jeito. - Você é bastante bom; você deveria ver os outros! Então juntei muita coragem para ir até lá. Na primeira lição, eles nos fala ram sobre o papel-jornal - folhas muito grandes de papel de baixa qualidade, do tamanho de um jornal - e os diversos tipos de lápis e carvão que devería mos adquirir. Na segunda aula, veio uma modelo que começou com uma pose de dez minutos.
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o SENHOR ESTÁ BRINCANDO, SR. FEYNMAN!
Comecei a desenhar a modelo, e, quando eu havia desenhado uma perna, os dez minutos acabaram. Olhei ao redor e vi que todo mundo já havia dese nhado um quadro completo, com sombreamento ao fundo - toda a figura. Percebi que estava muito atrasado em relação aos outros. Mas, eventual mente, ao término do curso, a modelo iria posar por trinta minutos . Trabalhei muito e, com grande esforço, consegui desenhar todo o contorno dela. Desta vez, havia uma esperança. Assim, desta vez não cobri meu desenho, como ti nha feito com todos os desenhos anteriores. Fomos dar uma olhada no que os outros haviam feito e descobri o que eles realmente conseguiram fazer: desenharam a modelo, com detalhes e som bras, o livro de bolso que estava no banco que ela estava sentada, a platafor ma, tudo! Eles todos foram zap, zap, zap, zap, zap com o carvão, em tudo, e percebo que não há esperança - realmente não há esperança. Volto para cobrir meu desenho, que é composto por algumas linhas amontoadas no canto superior esquerdo do papel - até então só havia dese nhado em papel 8 Y2 x 1 1 -, mas algumas pessoas da turma estavam paradas ali perto: "Oh! Veja esse aqui", disse um deles. "Toda linha é importante!" Eu não sabia exatamente o que aquilo queria dizer, mas senti-me encora jado o bastante para voltar na aula seguinte. Nesse meio-tempo, Jerry conti nuava a me dizer que os desenhos muito cheios não são bons. O trabalho dele era ensinar-me a não me preocupar com os outr.os; assim ele me dizia que eles não eram tão bons. Percebi que o professor não falava muita coisa aos alunos (a única coisa que ele me falou foi que para o tamanho da página o meu desenho estava muito pequeno) . Em vez disso, ele tentava incentivar-nos a experimentar novos métodos. Pensei a respeito de como ensinamos física: temos tantas técnicas - tantos métodos matemáticos - que nunca paramos de dizer aos alunos como fazer as coisas. Por outro lado, o professor de desenho tem medo de nos dizer qualquer coisa. Se suas linhas são muito pesadas, o pro fessor não pode dizer " Suas linhas são muito pesadas", porque algum artis ta descobriu uma forma de fazer quadros magníficos com linhas pesadas. O professor não quer conduzir os alunos para uma determinada direção. Assim, o professor de desenho tem este problema de ensinar como desenhar por osmose, e não por instruções, enquanto o professor de física tem o pro blema de sempre ensinar mais as técnicas do que a idéia de como solucionar problemas físicos.
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Eles sempre me diziam para "me soltar", para ficar mais relaxado com re lação ao desenho. Percebi que isso não fazia mais sentido do que dizer a al guém que está aprendendo a dirigir para "relaxar" no volante. Não vai funcio nar. Só depois que você sabe como fazê-lo é que pode, cuidadosamente, co meçar a relaxar. Então, resisti a e�se negócio perene de "me soltar". Um exercício que eles haviam inventado para relaxar era desenhar sem olhar para o papel. Não tirem os olhos da modelo; apenas olhem para ela e tra cem as linhas no papel sem olhar o que estão fazendo. Um dos rapazes diz: "Não posso fazer isso. Tenho de trapacear. Aposto que todo mundo está trapaceando!" - Eu não estou trapaceando! - digo. - Ah, bobagem! - dizem. Termino o exercício, e eles vêm ver o que eu havia desenhado. Descobri ram que, na verdade, eu não estava trapaceando; logo no início, a ponta do meu lápis tinha quebrado e não havia nada além de impressões no papel. Quando finalmente resolvi o problema com o lápis, tentei novamente. Des cobri que meu desenho tinha um tipo de força - uma força divertida, meio pare cido a Picasso - que me agradava. O motivo pelo qual me senti bem em relação ao desenho foi porque eu sabia que era impossível desenhar daquela forma e, conseqüentemente, eu não precisava ser bom - e o relaxamento era exatamente isso. Tinha pensado que "relaxar" significasse "fazer desenhos malfeitos", mas, na verdade, queria dizer relaxar e não se preocupar como o desenho sairá. Progredi muito na aula e estava me sentindo bastante bem. Até a última sessão, todas as modelos eram bastante pesadas e fora de forma; eram muito interessantes de se desenhar. Mas, na última aula, tivemos um modelo que era uma loira atraente, de proporções perfeitas. Foi então que descobri que ainda não sabia desenhar: eu não conseguia fazer nada que se parecesse com aquela linda garota! Com as outras modelos, se você desenhasse alguma coisa muito grande ou um pouco pequena demais, não faria a menor diferença porque, de qualquer maneira, tudo estava fora de forma. Mas, quando se está tentando desenhar algo que forma um conjunto tão belo, você não pode se enganar: tem de ser tudo bem certinho! Durante um dos intervalos, ouvi um rapaz, que realmente sabia desenhar, perguntando à modelo se ela posava para particulares. Ela respondeu que sim. " Ótimo, mas eu ainda não tenho um estúdio; então primeiro terei de ar ranjar um."
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Percebi que poderia aprender muito com aquele rapaz e que nunca mais teria outra chance de desenhar aquela linda modelo, a menos que fizesse al guma coisa. "Com licença", disse a ele, "eu tenho uma sala na minha casa que poderia ser usada como estúdio". Os dois concordaram. Levei alguns desenhos do sujeito para o meu ami go Jerry, mas ele ficou horrorizado. "Esses não são tão bons", ele disse. Jerry tentou explicar-me o por quê, mas nunca entendi de verdade. Até eu começar a aprender a desenhar, nunca me interessara muito em prestar atenção às artes. Apreciava muito pouco as coisas artísticas e só muito raramente, como uma vez que fui a um museu no Japão. Vi um quadro feito em um papel marrom de bambu, e, para mim, o que havia de bonito nele era que estava em perfeito equilíbrio entre ser apenas algumas pinceladas e ser bambu - eu podia fazê-lo mover-se de um lado para o outro. N o verão seguinte à aula de desenho, fui à Itália para uma conferência cien tífica e achei que seria bom conhecer a Capela Sistina. Cheguei lá de manhã bem cedo, comprei minha entrada antes de todo mundo e subi as escadas cor rendo assim que o lugar abriu. Então tive o raro prazer de ver toda a capela em um instante, em admiração silenciosa, antes de qualquer outra pessoa chegar. Logo chegaram os turistas, havia multidões andando por ali, falando dife rentes línguas, apontando para isso ou para aquilo. Estou dando uma volta, olhando o teto por um instante. Então meus olhos descem um pouco e vejo al guns quadros enormes com molduras, e pensei: "Nossa! Nunca soube disso!" Infelizmente, eu havia deixado o meu guia no hotel, mas pensei comigo mesmo: "Sei por que esses quadros não são famosos; eles não são não nada bons. " Mas, então, olhei para um outro e disse: "Vau! Esse é bom. " Olhei para os outros. "Aquele também é bom, aquele também, mas aquele outro é fraqui nho." Eu nunca ouvira falar desses quadros, mas decidi que todos eram bons, exceto dois. Entrei em um lugar chamado Raphael Room e notei o mesmo fenômeno. Pensei: "Raphael é inconstante. Ele nem sempre faz coisas boas. Algumas ve zes é muito bom. Outras vezes, é só lixo." Quando voltei para o meu hotel, dei uma olhada no guia. A parte sobre a Capela Sistina dizia: "Abaixo dos quadros de Michelangelo há quatorze pai néis de Botticelli, Perugino" - todos grandes artistas - "e dois de Fulano de Tal, que não são significativos". Fiquei extremamente animado por poder perceber a diferença entre um belo trabalho de arte e um que não o é, sem ser
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capaz de defini-lo. Como cientista, você sempre acha que sabe o que está fa zendo; então tende a desacreditar o artista que diz: " É ótimo", ou "Não pres ta", e não é capaz de explicar o motivo, como Jerry fez com aqueles desenhos que eu levei para ele. Mas aqui estava eu, perplexo: eu também podia fazê-lo! Na Sala de Raphael, o segre610 era que apenas algumas das pinturas fo ram feitas pelo grande mestre; o resto foi feito por estudantes. Eu havia gosta do das obras de Raphael. Foi um grande incentivo para que eu me sentisse mais confiante na minha capacidade de apreciar a arte. De qualquer forma, o rapaz da aula de arte e a linda modelo vieram à mi nha casa várias vezes e tentei desenhá-la e aprender com ele. Depois de mui tas tentativas, finalmente desenhei o que achava ser um quadro realmente belo - era um retrato da cabeça dela - e fiquei muito animado com esse pri meiro sucesso. Tive ousadia o bastante para perguntar a um velho amigo meu, chamado Steve Demitriades, se sua bela esposa poderia posar para mim, e, como paga mento, eu lhe daria o retrato. Ele riu. "Se ela quiser desperdiçar tempo posan do para você, para mim não tem problema algum, há, há, há." Trabalhei muito no retrato dela, e quando ele o viu, mudou completa mente de idéia: " É simplesmente maravilhoso! ", exclamou. "Você poderia pe dir a um fotógrafo que faça cópias do retrato? Quero enviar um para minha mãe na Grécia!" A mãe dele nunca havia visto a sua esposa. Para mim foi mui to animador pensar que eu havia melhorado, a ponto de alguém querer um dos meus desenhos. Aconteceu algo semelhante em uma pequena exposição de arte que um sujeito no Caltech preparou, na qual contribuí com dois desenhos e uma pin tura. Ele disse: "Nós devemos colocar preço nos desenhos." Pensei: "Que bobagem! Não estou tentando vendê-los." - É que isso torna a exposição mais interessante. Se você não se incomo dar em desfazer-se deles, só ponha um preço. Depois da exposição, o cara me disse que uma garota havia comprado um dos meus desenhos e queria conversar comigo para saber mais sobre ele. O desenho se chamava "The Magnetic Field of the Sun". Para esse qua dro em especial, eu havia tomado emprestado uma daquelas maravilhosas fo tografias das proeminências solares, tiradas no laboratório solar no Colora do. Como eu entendia como o campo magnético do Sol mantinha as chamas e tinha, naquela época, desenvolvido uma técnica para desenhar linhas de cam-
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po magnético (era semelhante ao cabelo esvoaçante de uma garota) , eu que ria desenhar alguma coisa bela que nenhum artista imaginara desenhar; as li nhas bastante complexas e retorcidas do campo magnético, bem juntas aqui e espalhando-se mais ali. Expliquei-lhe tudo isso e mostrei-lhe o quadro que me dera a idéia. Ela contou-me a seguinte história: ela e seu marido haviam ido à exposi ção, e os dois haviam gostado muito do desenho. "Por que nós não o compra mos?", sugeriu ela. O marido era daquele tipo de homem que nunca faz nada de imediato. "Vamos pensar um pouco", respondeu. Ela lembrou-se que o aniversário dele seria dali a alguns meses; então vol tou no mesmo dia e comprou, ela mesma, o desenho. Naquela noite, quando voltou do trabalho, ele estava deprimido. Final mente, ela conseguiu com que ele contasse o que era: ele havia pensado que seria bom comprar aquele quadro para ela, mas quando voltou à exposição disseram-lhe que o quadro já havia sido vendido. Mas ela o tinha comprado para surpreendê-lo no seu aniversário. O que eu inferi desta história foi algo muito novo para mim: eu, finalmen te, entendia qual a verdadeira razão da existência da arte, pelo menos em de terminados aspectos. Ela, individualmente, dá prazer a alguém. Você pode fazer algo que alguém goste tanto que fique deprimido, ou feliz, por conta da quilo que você fez! No caso da ciência, isso é um tanto geral e amplo: você não conhece diretamente os indivíduos que a apreciaram. Percebi que a venda de um desenho não é para ganhar dinheiro, mas sim para ter certeza de que ele fique na casa de alguém que realmente o quer; al guém que se sentiria mal em não possuí-lo. Isso era interessante. Assim, decidi vender meus desenhos. No entanto, não queria que as pes soas os comprassem, só porque não se esperava que o professor de física fosse capaz de desenhar, "isto não é maravilhoso?" Então criei um nome falso. Meu amigo Dudley Wright sugeriu: "Au Fait", que quer dizer "Está feito" em fran cês. Eu escrevi O -f-e-y, que era um nome que os negros usavam para "bran quelo". Mas, afinal de contas, eu era um branqueio; então estava tudo bem. Uma das minhas modelos queria que eu lhe fizesse um desenho, mas ela não tinha dinheiro. (As modelos não têm dinheiro; se elas o tivessem, não es tariam trabalhando como modelos.) Ela ofereceu-se para posar três vezes de graça se eu lhe desse um desenho.
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- Pelo contrário - respondi - eu te dou três desenhos se você posar uma vez de graça. Ela pendurou um dos desenhos que eu lhe dei na parede do seu quartinho e logo o seu namorado notou o desenho. Ele gostou tanto que queria enco mendar-me um retrato dela. Ele. me pagaria sessenta dólares. (Agora o di nheiro estava ficando muito bom.) Foi então que ela teve a idéia de tornar-se minha agente: ela ganharia al gum dinheiro extra andando por aí vendendo meus desenhos, dizendo: "Há um artista novo em Altadena ... " Era engraçado estar em um mundo diferente! Ela, conseguiu fazer com que alguns de meus desenhos fossem expostos na Bullock' s, a loja de departamentos mais elegante de Pasadena. Ela e a moça da seção de arte pegaram alguns desenhos - desenhos de plantas que eu havia feito antes (e que eu não gostava) - e colocaram moldura em todos. Depois recebi um documento assinado da Bullock' s dizendo que eles estavam com tal e tal desenhos em consignação. É claro que ninguém comprou nenhum deles, mas, por outro lado, eu era um grande sucesso: meus desenhos estavam à venda na Bullock' s! Era divertido tê-los lá, só para eu poder dizer um dia que havia atingido o píncaro do sucesso no mundo da arte. Eu conseguia a maioria de minhas modelos por intermédio de Jerry, mas também tentava conseguir modelos por conta própria. Sempre que eu conhe cia alguma jovem que parecia ser interessante de se desenhar, pedia-lhe para posar para mim. Sempre terminava com eu desenhando o rosto dela, porque não sabia exatamente como entrar no assunto de posar nua. Uma vez, quando estava na casa de Jerry, eu disse à sua esposa Dabney: "Eu nunca consigo que essas garotas posem nuas: não sei como Jerry faz isso!" - Bem, você alguma vez já pediu a elas? - Ah! Eu nunca pensei nisso. A outra garota que conheci e que eu queria que posasse para mim era uma estudante do Caltech. Perguntei-lhe se ela posaria nua. "Claro", ela disse, e lá estávamos nós! Foi fácil. Acho que tinha tanta coisa na minha cabeça que, de alguma forma, achava errado perguntar. Por essa época, eu já havia feito uma porção de desenhos e descobri que o que mais gostava era de desenhar nus. Até onde sei, isso não é exatamente arte; é uma mistura. Quem sabe as porcentagens? Uma modelo que eu havia conhecido por intermédio de Jerry havia sido garota da Playboy. Ela era alta e maravilhosa. Qualquer garota que a olhasse
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ficaria com ciúmes. No entanto, ela achava que era alta demais. Quando en trava em uma sala, curvava-se um pouco. Tentei ensinar-lhe, quando estava posando, a por favor ficar em pé, porque ela era muito elegante e sensacional. Finalmente consegui convencê-la. Mas ela tinha outra preocupação: ela tinha "covinhas" perto da virilha. Precisei sair e apanhar um livro de anatomia para mostrar a ela que essa era a cdnexão dos músculos com o ílio e explicar-lhe que não se pode ver essas co vinhas em todo mundo; para vê-las, tudo deve estar no lugar, em perfeita pro porção, como ela as possuía. Aprendi com ela que toda mulher preocupa-se com a aparência, independentemente de quão bela possa ser. Queria desenhar um quadro dessa modelo em cores, em pastel, só para experimentar. Pensei que primeiro faria um esboço em carvão, que posterior mente seria coberto com o pastel. Quando acabei o desenho em carvão que eu havia feito sem me preocupar como ficaria, percebi que era um dos melhores desenhos que já havia feito. Decidi deixá-lo como estava e esquecer de cobrir com pastel aquele desenho. Minha "agente" viu o desenho e queria levá-lo para exibi-lo. - Esse aí você não pode vender - eu disse - está em papel-jornal. - Ah, não importa - ela disse. Algumas semanas depois, ela volta com esse quadro em uma bela moldu ra de madeira, com uma faixa vermelha e bordas douradas. É uma coisa en graçada que deve, geralmente, entristecer os artistas - o quanto um desenho fica melhor quando se coloca uma moldura nele. Minha agente me disse que uma determinada senhora ficou muito encantada com o desenho e elas o leva ram a uma pessoa que fazia molduras. Ele disse a elas que havia técnicas espe ciais para fixar desenhos em papel-jornal: impregná-lo com plástico, fazer isso, fazer aquilo. Então essa moça teve todo esse trabalho com o desenho que eu havia feito, e aí minha agente o traz de volta para mim. "Acho que o artista gostaria de ver como ficou lindo emoldurado", ela disse. Certamente eu gostei. Era um outro exemplo do prazer direto que alguém tivera com um dos meus quadros. Foi verdadeiramente excitante vender os desenhos . Houve uma época que havia restaurantes topless na cidade: podia-se ir lá para almoçar ou jantar. As garotas dançavam sem blusa e, depois de um tem po, sem nada. Acontece que um desses lugares ficava a apenas dois quilôme-
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tros e meio da minha casa e, por isso, sempre eu ia lá. Sentava-me em um dos reservados e trabalhava um pouco com física nas toalhas de papel com bordas ornadas com flores e, às vezes, desenhava uma das dançarinas ou um dos fre gueses, só para praticar. Minha esposa Gweneth, que oé inglesa, não se incomodava se eu fosse a esses lugares. Ela dizia: "Os ingleses costumam freqüentar seus clubes." Esses bares eram mais ou menos como o meu clube. Havia quadros pendurados por toda parte, mas eu não gostava muito de les. Eram feitos com essas cores fluorescentes sobre veludo preto - um tanto feios - uma garota tirando a blusa, ou algo assim. Bem, eu tinha um desenho bem bonito que fizera da minha modelo Kathy; então o cedi ao dono do res taurante para que pendurasse na parede, e ele gostou muito. O fato de eu ter-lhe dado o desenho produziu alguns bons resultados. O dono se tornou muito amável comigo e me dava drinques de graça o tempo todo. Agora, toda vez que eu entrava no restaurante, vinha uma garçonete com meu 7 Up grátis. Eu via as garotas dançarem, trabalhava um pouco com física, preparava um seminário ou desenhava um pouco. Se eu ficasse um pouco cansado, me divertia um pouco e depois trabalhava um pouco mais. O dono sabia que eu não queria ser perturbado; então, se algum bêbado chegas se e começasse a conversar comigo, logo chegava uma garçonete e tirava o su jeito dali. Se uma garota chegasse, ele não fazia nada. Nós tínhamos um rela cionamento muito bom. O nome dele era Gianonni. Outra conseqüência do meu desenho estar exposto ali foi as pessoas per guntarem a Gianonni a respeito dele. Um dia, um rapaz veio até mim é disse: "Gianonni me disse que você fez aquele quadro." - Sim. - Bom. Eu gostaria de encomendar um desenho. - Tudo bem; o que você gostaria? - Eu queria um quadro de uma toureira nua sendo atingida por um touro com cabeça de homem. - Bem, ah .. . , me ajudaria um pouco se eu soubesse para que é esse desenho. - Eu o quero para o meu estabelecimento comercial. - Que tipo de estabelecimento comercial? - É para um salão de massagem: você sabe, quartos privados, massagistas - percebeu a idéia? -
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- Sim, percebi a idéia. - Eu não queria desenhar uma toureira nua sendo atingida por um touro com cabeça de homem; então tentei dissuadi-lo da idéia. - Como você acha que os clientes vão encarar isso e como as garotas vão se sentir? Os homens entram lá e ficam excitados com esse quadro. É as sim que você quer que eles tratem as garotas? Ele não se convenceu. - Suponha que os tiras entrem e vejam esse quadro, e você alegando que é um salão de massagem. - Tudo bem, tudo bem - ele diz - você tem razão. Preciso mudá-lo. O que eu quero é um quadro que, se os tiras olharem, pareça perfeitamente adequa do para um salão de massagem, mas que passe a idéia para um freguês que o olhe. - Tudo bem - eu disse. Nós combinamos que custaria US$60, e comecei a trabalhar no desenho. Primeiro, precisava descobrir como fazê-lo. Pensei e pensei, e cheguei à conclusão de que seria melhor começar desenhando a tou reira nua! Por fim, descobri como fazê-lo: desenharia uma escrava em uma Roma imaginária, fazendo massagem em algum romano importante - um senador, talvez. Por ser escrava, ela carrega uma determinada expressão no rosto. Ela sabe o que vai acontecer em seguida e está resignada. Trabalhei muito nesse quadro. Usei Kathy como modelo. Mais tarde, consegui outro modelo como o homem. Fiz uma série de estudos, e não de morou muito o custo dos modelos já estava em US$80. Eu não me importava com o dinheiro: gostava do desafio de ter de atender a uma encomenda. Por fim, acabei fazendo um quadro de um homem musculoso deitado em uma mesa com a escrava massageando-o; ela está vestindo um tipo de toga que co bre um seio - o outro estava nu - consegui também desenhar a expressão de resignação no seu rosto. Eu estava quase pronto para entregar minha obra de arte feita sob enco menda para o salão de massagem, quando Gianonni me disse que o sujeito havia sido preso e estava na cadeia. Então perguntei às meninas do restauran te topless se elas conheciam algum bom salão de massagem, nos arredores de Pasadena, que pudesse se interessar em ter meu desenho no saguão. Elas me passaram nomes e endereços de lugares, no perímetro urbano e nos arredores de Pasadena, e me disseram coisas do tipo: "Quando você for a tal salão de massagem, pergunte pelo Frank - ele é um cara legal. Se ele não
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estiver lá, não entre." Ou: "Não fale com Eddie. Eddie nunca entenderia o va lor de um desenho." No dia seguinte, enrolei meu desenho, coloquei-o na traseira de minha caminhonete, e minha esposa Gweneth me desejou boa sorte enquanto me preparava para visitar os bor21éis de Pasadena e vender meu desenho. Um pouco antes de partir para o primeiro lugar da minha lista, pensei co migo mesmo: "Você sabe, antes de ir a qualquer outro lugar, devo ir ao local que pertencia a ele. Talvez ainda esteja funcionando e, quem sabe, o novo ge rente queira meu desenho." Fui até lá e bati na porta. Ela abriu-se um pouco, e vi os olhos de uma garota. "Nós conhecemos o senhor? ", ela perguntou. - Não, você não me conhece, mas você gostaria de ter um desenho sob medida para o seu hall de entrada? - Sinto muito - ela disse -, mas nós contratamos um artista para fazer um desenho para nós e ele já o está fazendo. - Eu sou o artista - eu disse - e seu desenho está pronto. Acontece que o sujeito, quando estava indo para a cadeia, contou à sua esposa sobre nosso trato. Então entrei e mostrei-lhe o desenho. A esposa e a irmã dele, que estavam agora gerenciando o local, não fica ram totalmente satisfeitas com o quadro; elas queriam que as garotas o vis sem. Pendurei-o na parede, lá no saguão, e todas as garotas saíram dos diver sos quartos nos fundos e começaram a fazer comentários. Uma disse que não tinha gostado da expressão na face da escrava. "Ela não parece feliz. Ela devia estar sorrindo." Eu disse a ela: "Diga-me uma coisa - quando você está massageando um homem, e ele não está olhando para você, você fica sorrindo? " - Ah , não! - ela disse. - Eu me sinto exatamente como ela parece! Mas não é certo colocar isso no quadro. Deixei o quadro com elas, mas depois de uma semana nesse vai-e-vem elas decidiram que não o queriam. Acontece que o verdadeiro motivo pelo qual elas não o quiseram foi o seio nu. Tentei explicar que meu desenho era um pouco mais suave do que o pedido original, mas disseram que tinham uma idéia diferente de quem encomendou. Pensei como era interessante a ironia de pessoas que gerenciavam um lugar como aquele terem pudores em relação a um seio nu, e levei meu desenho para casa. Meu amigo comerciante, Dudley Wright, viu o desenho, e contei a histó ria para ele. Ele disse: "Você deve triplicar o preço. Quando se trata de arte,
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ninguém tem certeza de seu valor; então, as pessoas geralmente pensam: 'Se o preço é alto, a obra deve ser mais valiosa! ' " Eu disse: "Você está louco!", mas, só por diversão, comprei uma moldura de vinte dólares e preparei o desenho para o próximo freguês. Alguém do ramo de previsão do tempo viu o desenho que eu havia dado a Gianonni e perguntou se eu tinha outros. Convidei-o e à sua esposa para irem ao "estúdio" lá na minha casa e eles me perguntaram sobre meu desenho re cém-emoldurado. "Aquele custa duzentos dólares." (Eu havia multiplicado sessenta por três e somado os vinte da moldura.) No dia seguinte, eles volta ram e o compraram. Assim, o desenho para o salão de massagem acabou no escritório de um meteorologista. Um dia, houve uma batida policial no restaurante de Gianonni e algumas dançarinas foram presas. Alguém quis fazer com que Gianonni parasse com os shows de topless e ele não quis saber de parar. E por causa disso aconteceu um grande caso no tribunal; saiu tudo nos jornais locais. Gianonni procurou todos os fregueses e perguntou-lhes se testemunha riam a seu favor. Todos tinham uma desculpa: "Eu sou responsável por um acampamento, e se os pais virem que freqüento um lugar assim, não manda rão mais seus filhos para o meu acampamento. . . " Ou: "Eu estou em tal ramo de negócios, e se vier a público que venho aqui, perderei clientes." Penso comigo mesmo: "Sou o único homem livre aqui. Não tenho nenhu ma desculpa! Gosto deste lugar e gostaria que ele continuasse a funcionar. Não vejo nada demais na dança de topless." Então eu disse a Gianonni: "Sim, terei prazer em testemunhar." A grande questão no tribunal era: a dança de topless é aceitável para a co munidade - os padrões da comunidade permitem isso? O advogado de defesa tentou me transformar em um especialista nos padrões da comunidade. Ele me perguntou se eu freqüentava outros bares. - Sim. - E quantas vezes por semana normalmente você vai ao Gianonni' s? - Cinco, seis vezes por semana. (Isso saiu nos jornais: professor de física do Caltech vai aos shows de topless seis vezes por semana.) - Que setores da comunidade estão representados no Gianonni' s? - Quase todo setor: há corretores de imóveis, alguém da Junta de Governo da cidade, trabalhadores do posto de gasolina, empregados de firmas de engenharia, um professor de física ...
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- Então você diria que o espetáculo de topless é aceitável para a comuni dade, dado que tantos setores da comunidade o assistem e gostam dele? - Preciso saber o que você quer dizer com "aceitável para a comunidade". Nada é aceito por todo mundo; então, qual porcentagem da comunidade deve aceitar algo para que isso seja '''aceitável para a comunidade"? a advogado sugere um número. a outro advogado objeta. a juiz pede um recesso, e todos vão para a sala do juiz por 1 5 minutos antes de poderem decidir que "aceitável para a comunidade" quer dizer aceito por 50% da co munidade. A despeito do fato de ter feito com que eles fossem precisos, eu não dis punha de números precisos como prova; então disse: "Creio que a dança de topless é aceita por mais de 50% da comunidade e, assim sendo, é aceitável para ela." Gianonni perdeu, temporariamente, o caso, e o caso dele, ou outro muito semelhante, foi parar na Suprema Corte. Entrementes, o estabelecimento dele ficou aberto e ganhei ainda mais 7 Ups de graça. Por volta daquela época, surgiram no Caltech algumas tentativas de se criar interesse pelas artes. Alguém doou dinheiro para converter um antigo prédio de ciências em estúdios de arte. Trouxeram equipamentos e materiais e os distribuíram aos estudantes. Também contrataram um artista da África do Sul para coordenar e dar apoio às atividades artísticas no Caltech. Diversas pessoas vieram para lecionar. Consegui que Jerry Zorthian viesse dar aula de desenho, e alguém veio dar aula de litografia, que têntei aprender. a artista sul-africano veio à minha casa uma vez para ver meus desenhos. Ele disse que achou que seria interessante fazer uma exposição individual. Desta vez, eu estava trapaceando: se não fosse professor no Caltech, eles nun ca teriam achado que meus quadros valiam alguma coisa. - Alguns dos meus melhores desenhos foram vendidos e não me sinto à vontade para ligar para as pessoas - disse. - Não se preocupe, Sr. Feynman - ele me disse. - a senhor não precisará ligar para as pessoas. Faremos os preparativos e realizaremos a exposição ofi cialmente e da maneira certa. Dei a ele uma lista das pessoas que haviam comprado meus desenhos, e elas logo receberam um telefonema dele: "Sabemos que o senhor tem um afey." Ah sim! -
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- Nós estamos planejando fazer uma exposição de Ofeys e pensamos se o senhor poderia nos emprestar o seu. É claro que eles ficavam encantados. A exposição foi realizada no porão do Athenaeum, o grêmio da faculdade de Caltech. Tudo parecia real: todos os quadros tinham títulos, e os que fo ram tomados por empréstimo tinham o devido reconhecimento: "Cedido pelo Sr. Gianonni", por exemplo. Um dos des�nhos era um retrato da bela modelo loira da aula de artes que eu originalmente pretendia que fosse um estudo sobre o sombreamento: coloquei uma lâmpada de mesa na altura das suas pernas, um pouco para o lado, e virei-a para cima. Quando ela sentou-se, tentei desenhar as sombras tal como eram - o nariz dela projetava sua sombra de uma forma pouco natural através do rosto assim, não pareciam tão ruins. Também desenhei o seu torso; assim também se podia ver seus seios e a sombra que eles projetavam. Eu o coloquei com os outros desenhos na exposição e batizei-o de "Madame Curie Observando as Radiações do Rádio". A mensagem que eu pretendia transmitir era que ninguém pensa em Madame Curie como uma mulher, como feminina, com belos cabelos, seios nus, e toda essa coisa. Eles apenas pensam nesse negócio do rádio. Um proeminente designer industrial, chamado Henry Dreyfuss, convi dou várias pessoas para uma recepção em sua casa depois da exposição - a se nhora que havia feito a doação em dinheiro para dar apoio às artes, o presi dente do Caltech e sua esposa, e assim por diante. Um desses amantes da arte aproximou-se e começou a conversar comi go: "Diga-me, professor Feynman, o senhor desenhou a partir de fotografias ou de modelos?" - Eu sempre desenho a partir de um modelo que posa para mim. - Bem, como o senhor conseguiu que Madame Curie posasse para o senhor? Por essa época, o Los Angeles County Museum of Art tinha uma opinião semelhante à minha: a de que os artistas estão longe de uma compreensão da ciência. Minha idéia era que os artistas não entendem a generalidade e a bele za fundamentais da natureza e suas leis (e, portanto, não podem retratá-las em sua arte) . A opinião do museu era a de que os artistas deviam saber mais sobre tecnologia: eles deviam familiarizar-se mais com as máquinas e outras aplicações da ciência. O museu organizou um esquema pelo qual eles convocariam alguns dos artistas realmente bons da época para visitar diversas companhias que -
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tinham oferecido tempo e dinheiro ao projeto. Os artistas visitariam tais companhias e as bisbilhotariam até verem algo interessante que pudessem usar em seu trabalho. O museu achou que seria de grande ajuda se alguém que entendesse alguma coisa sobre tecnologia pudesse trabalhar como uma espécie de elo de ligação cc1m os artistas, quando eles de tempos em tempo visitassem as companhias. Como sabiam que eu era muito bom para explicar coisas às pessoas e não era ignorante de todo quando o assunto era artes, na verdade acho que eles sabiam que eu estava tentando apren der a desenhar, de qualquer forma, eles me perguntaram se eu poderia fa zer aquilo, e concordei. Foi muito divertido visitar as companhias com os artistas. O que normal mente acontecia era que alguém mostrava um tubo que liberava fagulhas em belos padrões azulados, curvos. Os artistas ficavam todos animados e me per guntavam como poderiam usar isso em uma exposição. O que era necessário para fazer aquilo funcionar? Os artistas eram pessoas muito interessantes. Alguns deles eram fraudes completas: alegavam ser artistas, e todo mundo concordava que eram artis tas, mas quando você sentava para conversar com eles, o que eles diziam não fazia o menor sentido! Um deles, em especial, um grande charlatão, sempre vestia-se de forma engraçada; ele tinha um grande chapéu-coco preto. Res pondia às perguntas de uma forma incompreensível, e quando você tentava descobrir mais sobre o que ele dissera, perguntando sobre algumas das pala vras que ele usara, ele mudava de assunto! Ao fim de tudo, elt; só contribuiu para a exposição de arte e tecnologia com um auto-retrato. Os outros artistas com quem conversei diziam coisas que, a princípio, não faziam sentido, mas faziam um esforço enorme para explicá-las para mim. Uma vez, como parte desse esquema, fui a certo lugar com Robert Irwin. Era uma viagem de dois dias, e depois de muita discussão para lá e para cá, finalmente entendi o que ele estava tentando explicarcme e achei que era bastante interessante e maravilhoso. Havia artistas que não faziam a menor idéia a respeito do mundo real. Pensavam que os cientistas eram uma espécie de grandes mágicos que po diam fazer qualquer coisa, e diziam coisas do tipo: "Quero pintar um quadro em três dimensões, onde a figura apareça suspensa no espaço, brilhe e tremu1e." Eles podiam construir o mundo que quisessem e não tinham a menor idéia do que era razoável ou não de se fazer.
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Por fim, houve a exposição, e me pediram para fazer parte do painel que julgaria os trabalhos de arte. Apesar de haver alguns trabalhos bons, inspira do pela visita dos artistas às companhias, eu achava que a maioria dos bons trabalhos de arte eram coisas feitas durante um último minuto de desespero e realmente não tinham nada a ver com a tecnologia. Todos os outros mem bros do painel discordavam, e fiquei em uma situação bastante difícil. Não sou bom crítico de arte e, para início de conversa, não deveria fazer parte do painel. Havia um rapaz do museu que se chamava Maurice Tuchman que real mente sabia o que estava falando quando o assunto era arte. Ele sabia que eu tinha feito uma exposição individual no Caltech. Ele disse-me: "Sabe, você nunca mais vai desenhar." - O quê? Isso é ridículo! Por que eu nunca mais . . . - Porque você fez uma exposição individual e você é um amador. Apesar de depois daquilo eu ainda ter desenhado, nunca mais trabalhei tão duro, com a mesma energia e intensidade com que fazia antes. Também nunca mais vendi um desenho depois daquilo. Ele era um sujeito inteligente, e aprendi muito com ele. Eu poderia ter aprendido muito mais se não fosse tão teimoso!
Será a eletricidade fogo?
N o início dos anos 1 950, fui temporariamente acometido por uma doença da meia-idade: costumava dar seminários filosóficos sobre a ciência - como a ciência satisfaz a curiosidade, como dá uma nova visão de mundo às pessoas, como ela dota o ser humano com a capacidade de fazer coisas, como lhe dá poder - e a pergunta era: em face do recente desenvolvimento da bomba atô mica, será que é uma boa idéia dar ao homem tanto poder? Eu também pen sava sobre a relação entre a ciência e a religião, e foi por essa época que fui convidado para uma conferência em Nova York, que discutiria "a ética da igualdade" . Já havia sido realizada uma conferência entre os mais velhos, em algum lugar de Long Island, e nesse ano eles resolveram que algumas pessoas mais jovens participariam para discutir os trabalhos que eles haviam produzido na última conferência. Antes que eu viajasse, eles distribuíram uma lista de "livros que você po deria achar interessante ler, e, por favor, envie-nos os títulos dos livros que ' você gostaria que os outros lessem e nós os manteremos na biblioteca para que outras pessoas possam lê-los". Chega, então, aquela maravilhosa lista de livros. Comecei a olhar a primei ra página: eu não havia lido nenhum dos livros e me senti desconfortável - eu não fazia parte daquele grupo. Olho a segunda página: não havia lido nenhum. Descobri, depois de ver toda a lista, que não havia lido um livro sequer daquela lista. Devo ser um idiota, um analfabeto! Havia livros maravilhosos na lista, tal como On Freedom, de Thomas Jefferson, ou coisas assim, mas havia alguns au tores que eu já havia lido. Havia um livro de Heisenberg, um de Schrõdinger e um de Einstein, mas eram qualquer coisa do tipo My Later Years, de Einstein e What 1s Life, de Schrõdinger - muito diferente do que eu já lera. Então, fiquei com a sensação de que era um peixe fora d' água e que não deveria participar da conferência. Talvez pudesse simplesmente sentar-me e ouvir.
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Vou para a primeira grande reunião introdutória, e um rapaz levanta-se e explica que temos duas questões a serem discutidas. A primeira é um pouco confusa - algo sobre ética e igualdade, mas não entendo exatamente qual é o problema. E a segunda é: "Nós vamos demonstrar, com nossos trabalhos, que há uma forma de podermos manter um diálogo entre pessoas de diferentes áreas." Havia um advogado internacional, um historiador, um padre jesuíta, um rabino, um cientista (eu), e assim por diante. Bem, na hora, minha mente lógica começa a funcionar: não preciso prestar muita atenção ao segundo problema, porque se funcionar, funcio nou; se não funcionar, não funcionou - nós não precisamos provar que po demos dialogar e discutir se podemos manter um diálogo, se não tivermos diálogo algum para discutir! Então, o principal problema é o primeiro, que eu não entendi. Eu estava pronto a erguer minha mão e dizer: "Você poderia, por favor, definir melhor o problema", mas então pensei: "Não, eu sou o ignaro, é me lhor ouvir. Não quero criar problemas de imediato." O subgrupo do qual eu participava deveria discutir a "ética da igualdade na educação" . Nas reuniões do nosso subgrupo, o padre jesuíta sempre falava sobre "a fragmentação do conhecimento". E dizia: "O verdadeiro problema na ética da igualdade na educação é a fragmentação do conhecimento." Esse jesuíta estava voltando ao século XIII, quando a Igreja Católica estava a cargo de toda a educação e o mundo todo era simples. Havia Deus, e tudo vinha de Deus; tudo era organizado. Mas, hoje em dia, não é fácil entender tudo isso. Então o conhecimento tornou-se fragmentado. Senti que "a fragmentação do conhecimento" não tinha nada a ver com "isso", mas "isso" nunca foi defini do; então não havia como demonstrá-lo. Por fim, perguntei: "Qual é o problema ético associado à fragmentação do conhecimento? " Ele só me dava respostas obscuras, e eu dizia: "Eu não entendo", mas todas as outras pessoas diziam que entendiam, e tentavam ex plicar-me o problema, mas acho que elas não conseguiram! Então, os outros membros do grupo me disseram que escrevesse por que achava que a fragmentação do conhecimento não era um problema ético. Voltei para o meu dormitório e escrevi com cuidado, da melhor forma que consegui, o que eu achava que poderia ser o assunto "a ética da igualdade na educação", e dei alguns exemplos dos tipos de problemas sobre os quais eu achava que iríamos discutir. Por exemplo, na educação, você aumenta as dife-
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renças. Se alguém é bom em alguma coisa, você tenta desenvolver a sua capa cidade, o que resulta em diferenças ou desigualdades. Assim, se a educação aumenta a desigualdade, ela é ética? Então, depois de dar mais alguns exem plos, escrevi um pouco mais para dizer que, uma vez que "a fragmentação do conhecimento" é um obstáculo, 'Porque a complexidade do mundo torna difí cil aprender as coisas - à luz da minha definição da abrangência do tema -, eu não conseguia ver como a fragmentação do conhecimento teria alguma coisa a ver com qualquer coisa parecida com o que seria mais ou menos a ética da igualdade na educação. No dia seguinte, levei meu artigo para a reunião, e o sujeito disse: "Sim, o Sr. Feynman levantou algumas questões muito interessantes que devemos dis cutir, e nós as guardaremos para uma possível discussão futura." Eles não pe garam a idéia. Eu estava tentando definir o problema para depois mostrar como "a fragmentação do conhecimento" não tinha nada a ver com ele. E o motivo pelo qual ninguém estava chegando a lugar algum naquela conferência era que eles não tinham definido claramente o tópico "a ética da igualdade na educa ção", e, portanto, ninguém sabia exatamente sobre o que se deveria discutir. Havia um sociólogo que tinha preparado um artigo para que todos nós lêssemos - alguma coisa que escrevera há um tempo atrás. Comecei a ler a bendita coisa, mas não conseguia manter meus olhos fixos na leitura: era sem pé nem cabeça! Imaginei que fosse porque eu não tinha lido nenhum dos li vros da lista. Eu estava com essa sensação incômoda do tipo "eu não sirvo", até que finalmente disse para mim mesmo: "Vou parar e ler u�a frase bem de vagar para que eu possa descobrir que diabos isso quer dizer." Então parei aleatoriamente - e li a frase seguinte com muito cuidado.,Não me lembro dela com precisão, mas era qualquer coisa parecida com: "O indi víduo da comunidade social geralmente recebe sua informação via canais vi suais, simbólicos." Li e reli a frase e a traduzi. Você sabe o que quer dizer? "As pessoas lêem." Então passei para a frase seguinte, e percebi que eu também podia tradu zi-la. Aí a coisa se tornou meio vazia: "Às vezes, as pessoas lêem; às vezes, as pessoas ouvem o rádio", e assim por diante, mas escrito de uma forma tão fantástica que eu, a princípio, não consegui entender, e, quando finalmente consegui decifrá-la, ela não tinha nada demais. Só aconteceu uma coisa na reunião que foi agradável ou divertida. Nessa conferência, toda palavra dita por qualquer pessoa na sessão plenária era tão
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importante que eles tinham um estenógrafo anotando tudo. A uma certa altu ra no segundo dia, o estenógrafo veio a mim e disse: "Qual a sua profissão? Com certeza não é professor." - Eu sou professor - disse. - De quê? - De física - ciência. - Ah! Deve ser por isso - ele disse. - Por isso o quê? Ele disse: "Você sabe, sou estenógrafo e anoto tudo o que é dito aqui. Quando as outras pessoas falam, escrevo o que elas dizem, mas não entendo o que falaram. Mas toda vez que você se levanta para fazer uma pergunta ou di zer algo, eu entendo exatamente o que você quer dizer - qual é a pergunta e o que você está dizendo -; então achei que você não podia ser professor!" Houve um jantar especial, e o chefe da cadeira de teologia, um homem muito agradável, judeu, fez um discurso. Foi um bom discurso - ele era um orador muito bom. Então, mesmo que quando eu fale sobre isso hoje em dia pareça loucura, à época, a idéia principal dele me pareceu totalmente óbvia e verdadeira. Ele falou sobre as grandes diferenças no bem -estar de diversos países, que causam ciúmes, que levam ao conflito, e agora que temos as armas atômicas, basta uma guerra e estaremos perdidos. Então, conseqüentemente, a melhor saída é lutar pela paz, assegurando-nos de que haja grandes diferen ças de um lugar para o outro, e, uma vez que temos tanto nos Estados Unidos, deveríamos entregar quase tudo aos outros países até que estivéssemos todos em equilíbrio. Todos estávamos prestando atenção e imbuídos de sentimen tos de sacrifício, todos acreditávamos que devíamos fazer isso. Mas, no cami nho para casa, meu bom senso voltou. No dia seguinte, alguém do nosso grupo falou: "Eu achei aquele discurso de ontem à noite tão bom que devemos endossá-lo, e deveria ser a síntese de nossa conferência." Comecei a falar que a idéia de distribuir tudo com igualdade baseava-se na teoria de que no mundo todo há apenas uma quantia X de alguma coisa que, de alguma forma, nós, anteriormente, tiramos dos países mais pobres e que, portanto, devíamos devolvê-la. Mas essa teoria não leva em conta o ver dadeiro moti�o das diferenças entre os países, ou seja, o desenvolvimento de novas técnicas para cultivar alimentos, o desenvolvimento de maquinário para cultivo de alimentos e para outras coisas e o fato de que todo esse maqui-
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nário demanda concentração de capital. Não são as coisas em si, mas o poder de fazer as coisas é que é importante. Mas agora percebo que essas pessoas não entendiam a ciência; elas não entendiam isso. Não entendiam a tecnolo gia; não entendiam o seu tempo. A conferência me deixou tão irritado que uma garota que eu conhecia em Nova York precisou me acalmar. "Veja", ela disse, "você está tremendo! Você está totalmente louco! Fique calmo e não leve isso tão a sério. Pare um instante e analise o que é isso". Então pensei sobre a conferência, como ela era louca, e não me pareceu tão ruim. Mas se alguém me convidasse de novo para participar de alguma coisa daquele tipo, eu fugiria como o diabo foge da cruz! Não! Definitivamente não! Mas ainda hoje recebo convites para esse tipo de coisa. Quando ao final chegou a hora de avaliar a conferência, os outros disse ram o quanto aprenderam com ela, o sucesso que tinha sido, e assim por dian te. Quando me perguntaram, respondi: "Essa conferência foi pior do que um teste Rorschach: há uma mancha de tinta completamente sem sentido, e os outros te perguntam o que você acha que está vendo, mas, assim que você res ponde o que pensa estar vendo, começam a discutir com você!" Para piorar mais ainda, ao final da conferência eles fariam outra reunião, mas dessa vez aberta ao público, e o responsável pelo nosso grupo teve a cora gem de dizer que, já que tínhamos trabalhado tanto, não haveria tempo para discussão em público; então nós simplesmente relataríamos ao público tudo o que discutimos. Meus olhos saltaram das órbitas: eu achava que não tínha mos chegado a lugar algum! Por fim, quando estávamos discutindo a questão sobre se tínhamos de senvolvido uma forma de mantermos um diálogo entre as pessoas de diferen tes disciplinas - nosso segundo "problema" básico - disse que havia percebi do uma coisa interessante. Cada um de nós falou o que nós achávamos o que era a "ética da igualdade", sob nosso ponto de vista, sem prestar atenção algu ma ao ponto de vista do outro. Por exemplo, o historiador propôs que o cami nho para o entendimento dos problemas éticos seria uma visão histórica sobre como eles evoluíram e como se desenvolveram; o jurista internacional sugeriu que o caminho era verificar como as pessoas de fato agiam em diferentes si tu ações e como davam conta dos seus problemas; o padre jesuíta sempre se referia à "fragmentação do conhecimento" ; e eu, como cientista, propus que deveríamos isolar o problema de forma análoga às técnicas experimentais de
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Galileu, e assim por diante. "Então, na minha opinião", disse, "nós não trava mos diálogo algum. Pelo contrário, não tivemos nada além do caos!". É claro que todo mundo me atacou. "Você não acha que a ordem pode vir do caos? " - Ahn, bem, como um princípio geral, o u. . . - Eu não entendia o que uma pergunta como "A ordem pode vir do caos?" tinha a ver. Sim, não, e daí? Havia uma porção de gente tola naquela conferência - tolos pomposos e tolos pomposos me fazem subir pelas paredes. Não tenho problema em rela ção aos tolos comuns; pode-se conversar com eles e tentar ajudá-los. Mas os tolos pomposos - pessoas que são tolas e estão escondidas em todos os can tos, impressionando as pessoas, dizendo o quão maravilhosas elas são com toda essa baboseira - IS S O EU NÃO AG Ü ENTO! Um tolo comum não é um charlatão; tudo bem com um tolo honesto. Mas um tolo desonesto é terrível! E era isso o que havia na conferência, um monte de tolos pomposos, e eu fiquei muito irritado. Não vou mais me chatear dessa forma, por isso não vou parti cipar nunca mais de conferências interdisciplinares. Uma nota de pé de página: enquanto eu estava na conferência, fiquei hospedado no Seminário Teológico Judaico, onde os jovens rabinos - acho que eram ortodoxos - estavam estudando. Como tenho antepassados ju deus, eu sabia algumas das coisas que eles me contaram sobre o Talmude, mas eu nunca havia visto o Talmude. Foi muito interessante. Ele tem pági nas grandes, e em um pequeno quadrado no canto da página está o Talmude original, e então em uma espécie de margem em forma de L, ao redor do quadrado, há comentários escritos por diferentes pessoas. O Talmude evo luiu, e tudo foi discutido de novo, com muito cuidado, com um tipo de racio cínio medieval. Acho que os comentários cessaram por volta dos anos 3 00, 400 ou 5 00 - não havia nenhum comentário moderno. O Talmude é um li vro maravilhoso, um grande e importante pot-pourri de coisas: questões tri viais e questões complexas - por exemplo, problemas de professores e como lecionar - e depois algumas triviais de novo, e assim por diante. Os estudan tes me disseram que o Talmude nunca fora traduzido, o que achei curioso, uma vez que é tão valioso. Um dia, dois ou três dos jovens rabinos vieram a mim e disseram: "Nós notamos que no mundo moderno não podemos estudar para sermos rabinos sem sabermos um pouco de ciência; então gostaríamos de fazer algumas per guntas ao senhor."
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É claro que há milhares de lugares para se aprender ciência, e a Universi dade de Columbia era perto dali, mas eu queria saber o tipo de questões nas quais eles estavam interessados. Eles disseram: "Bem, por exemplo, a eletricidade é fogo?" - Não - eu disse - mas ... qUhl o problema? Eles disseram: "No Talmude, é dito que não se deve acender fogo em um sá bado; então nossa dúvida é: nós podemos usar aparelhos elétricos no sábado?" Fiquei em estado de choque. Eles não tinham o menor interesse em ciên cia! A única influência que a ciência exercia sobre a vida deles era no sentido de uma melhor interpretação do Talmude! Eles não estavam interessados no mundo exterior, nos fenômenos naturais; estavam interessados, apenas, em resolver algumas questões levantadas no Talmude. E então, um dia - acho que era um sábado -, quero tomar o elevador e há um rapaz parado próximo à porta. O elevador chega, eu entro, ele vem a mim e diz: "Qual o andar?", a minha mão está pronta para apertar o botão. - Não, não! - ele diz. Eu devo apertar os botões para o senhor. - Como é que é? - Sim! As pessoas daqui não podem apertar os botões no sábado; então eu devo fazer isso para eles. Sabe, não sou judeu; então para mim não tem pro blema algum apertar os botões. Fico perto do elevador, eles me dizem o an dar, e eu aperto o botão para eles. Bem, isso realmente me incomodou; então decidi pegar os estudantes em uma discussão lógica. Eu havia crescido em um lar judeu; eu sabia o tipo de lógica minuciosa a usar, e pensei: "Vamos nos divertir!" Meu plano era o seguinte: eu começaria perguntando: "O ponto de vista judeu é um ponto de vista que qualquer homem pode abraçar? Porque se não for, então certamente não é algo realmente valioso para a humanidade . . . ha, ha, ha." E eles seriam obrigados a dizer: "Sim, o ponto de vista judeu é bom para qualquer homem." Aí eu começaria a conduzi-lo s um pouco mais, perguntando: " É ético que um homem contrate outro homem para fazer algo que não seja ético que ele o faça? Você contrataria um homem para roubar para você, por exemplo?" E continuo levando-os para onde quero, muito devagar e com muito cuidado, até eles caírem na armadilha! E você sabe o que aconteceu? Eles eram estudantes rabínicos, certo? Eles eram dez vezes melhores do que eu! Assim que perceberam que eu os coloca-
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ria contra a parede, eles foram se desviando para um lado, para o outro - não me lembro como -, e conseguiram se safar! Pensei que tinha aparecido com uma idéia original -bobagem! Eles livraram-se de mim facilmente, facilmente -, eles se saíram muito bem. Por fim, tentei dar certeza aos estudantes rabínicos de que a centelha de energia que os estava incomodando quando eles apertavam o botão do eleva dor não era fogo. Disse-lhes: "Eletricidade não é fogo. Não é um processo químico como o fogo." - Ah? - eles disseram. - É claro, há eletricidade entre os átomos em uma chama. - Arrá! - disseram eles. - Bem como em qualquer outro fenômeno que ocorre no mundo. Cheguei a propor uma solução prática para eliminar a centelha. "Se for isso o que incomoda vocês, podem colocar um capacitor entre os terminais da chave; então a eletricidade fluirá sem soltar qualquer tipo de centelha em qualquer ponto." Mas, por algum motivo, eles também não gostaram dessa idéia. Foi realmente uma decepção. Cá estão eles, despertando lentamente, só para interpretar melhor o Talmude. Imagine! Em tempos modernos como es ses, jovens estudando para fazer parte da sociedade e realizar algo - ser rabi no -, e a única forma pela qual eles pensam que a ciência pode ser interessante é porque problemas antigos, provinciais, medievais estão sendo um pouco re avaliados por causa de alguns fenômenos novos. Naquela época, aconteceu outra coisa que merece ser mencionada aqui. Uma das questões que eu e os estudantes rabínicos discutimos bastante foi o porquê em matérias acadêmicas, tal como física teórica, haver uma porcenta gem maior de crianças judias do que a porcentagem delas na população em geral. Os estudantes rabínicos achavam que o motivo era porque os judeus têm uma história de respeito ao aprendizado: eles respeitam seus rabinos, que são verdadeiros professores, e respeitam a educação. Os judeus passam essa tradição o tempo todo para suas famílias, de modo que, se um garoto for um bom estudante, isso é tão bom quanto, se não for melhor, do que ser um bom jogador de futebol americano. Foi nessa mesma tarde que me lembrei como isso era verdade. Fui convi dado para ir à casa de um dos estudantes rabínicos, e ele me apresentou à sua mãe, que tinha acabado de retornar de Washington, DC. Ela bateu palmas,
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em êxtase, e disse: "Ah! Ganhei meu dia. Hoje conheci um general e um pro fessor!" Percebi que não há muita gente que acha que conhecer um professor é tão importante e agradável como conhecer um general. Portanto, acho que faz al gum sentido o que eles disseram. '
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Depois da guerra, os físicos eram freqüentemente chamados a Washington para dar assessoria a diversas áreas do governo, especialmente a militar. O que aconteceu, eu acho, foi que, já que os cientistas haviam construído essas bombas que eram tão importantes, os militares sentiam que eles serviam para alguma coisa. Uma vez, pediram-me para prestar serviços a um comitê de avaliação de diversas armas destinadas ao exército. Respondi explicando que eu era ape nas um físico teórico e não sabia nada sobre armas para o exército. O exército respondeu-me que eles haviam descoberto, com a experiência, que os físicos teóricos eram muito úteis para eles no processo de tomada de decisões; então eu poderia, por favor, reconsiderar? Respondi-lhes novamente e disse que realmente não sabia nada e que du vidava que pudesse ajudá-los. Por fim, recebi uma carta do secretário do exército, que propunha um trato: eu iria à primeira reunião, na qual poderia ouvir e ver se seria capaz de dar uma contribuição ou não. Depois eu poderia decidir se continuaria. Respondi que aceitava, é claro. O que mais eu poderia fazer? Fui para Washington, e o primeiro evento a que compareci foi a um co quetel para encontrar-me com todos. Lá estavam generais e outras figuras importantes do exército. Foi bastante agradável. Um militar aproximou-se e disse que o exército estava feliz que os físicos estivessem dando assessoria aos militares, porque havia muitos problemas. Um dos problemas era que os tanques consumiam o combustível rapidamen te e não podiam percorrer longas distâncias. Então, a questão era como rea bastecê-los à medida que avançavam. Ora, esse cara teve a seguinte idéia: uma vez que os físicos conseguem tirar energia do urânio, será que eu não poderia elaborar uma forma pela qual pudéssemos usar dióxido de silício areia, sujeira - como combustível? Se fosse possível, então tudo o que aque-
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les tanques precisariam fazer seria ter uma pequena pá embaixo, e a coisa fun cionaria por si só, pegando o pó e usando-o como combustível! Ele achava que era uma grande idéia e que tudo que eu precisava fazer era trabalhar nos detalhes. Eu tinha a impressão que seria sobre esse tipo de problema que con versaríamos na reunião no dia seguinte. Fui à reunião e percebi que a pessoa que havia me apresentado a todo mundo no coquetel estava sentada perto de mim. Aparentemente, era um ba julador que havia sido designado para ficar perto de mim o tempo todo. Do meu outro lado estava um supergeneral do qual eu já tinha ouvido falar. Na primeira sessão da reunião, eles falaram sobre alguns problemas téc nicos e teci alguns comentários. Mas depois, perto do final da reunião, come çaram a discutir um problema de logística, sobre o qual eu nada sabia. Tinha a ver com calcular quanto material deveria haver em diferentes locais, em dife rentes ocasiões. Até tentei manter minha boca fechada, mas quando se entra numa situação assim, onde se está sentado ao redor de uma mesa com todas essas "pessoas importantes" discutindo eSses "problemas importantes", você não consegue ficar calado, mesmo que não saiba nada sobre o assunto! Então também formulei alguns comentários naquela discussão. Durante o intervalo seguinte, o sujeito que havia sido designado para me acompanhar disse: "Fiquei muito impressionado com as coisas que o senhor falou durante a discussão. Com certeza foram contribuições im portantes ." Parei e pensei na minha "contribuição" ao problema logístico e percebi que alguém como o responsável pelo estoque de Natal da Macy' s seria mais capaz do que eu para imaginar uma forma de lidar com problemas daquele tipo. Aí concluí: a) se eu tivesse dado uma contribuição importante, teria sido por pura sorte; b) qualquer um poderia tê-lo feito tão bem quanto eu, mas a maioria das pessoas poderia ter feito melhor; e c) essa bajulação me despertou para o fato de que eu não sou capaz de contribuir muito. Logo depois, eles decidiram que fariam melhor discutindo a organização da pesquisa científica (por exemplo: o desenvolvimento científico deveria fi car sob responsabilidade do Corpo de Engenharia ou da Divisão de Intendên cia?) do que problemas técnicos específicos. Eu sabia que se houvesse algu ma esperança de que eu pudesse dar uma contribuição real seria somente so bre algum problema técnico específico e, certamente, não sobre como organi zar a pesquisa no exército.
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Até aquele momento, não havia deixado transparecer nada do que estava achando da situação ao presidente da reunião - o figurão que me havia feito o convite inicial. Quando estávamos arrumando a bagagem para partir, ele me disse, todo sorrisos: "Então você vai estar conosco na próxima reunião . . . " - Não, não estarei. - Vi sua expressão mudar de repente. Ele ficou muito surpreso que eu dissesse não depois de dar aquelas "contribuições". No início dos anos 1 960, uma porção de amigos meus ainda estava as sessorando o governo. Até então, eu não tinha nenhum senso de responsabi lidade social e estava resistindo, o máximo possível, às ofertas para ir para Washington, o que exigia uma certa dose de coragem naquela época. Eu estava ministrando uma série de aulas aos calouros de física naquela época, e, depois de uma delas, Tom Harvey, que me havia ajudado a fazer as demonstrações, disse: "Você precisa ver o que está acontecendo com a mate mática nos livros escolares! Minha filha chega em casa com uma porção de coisas malucas!" Não prestei muita atenção ao que ele disse. Mas, no dia seguinte, recebi uma ligação de um advogado bastante famo so em Pasadena, Sr. Norris, que, à época, fazia parte do Conselho Estadual de Educação. Ele perguntou-me se eu poderia trabalhar na Comissão Curricular Estadual, que precisava escolher os novos livros didáticos para o estado da Califórnia. Veja bem, o estado tinha uma lei que dizia que todos os livros didá ticos utilizados por todas as crianças em todas as escolas públicas deviam ser escolhidos pelo Conselho Estadual de Educação; assim, eles tinham um co mitê para examinar os livros e dar opiniões sobre quais adotar. Acontece que muitos dos livros estavam usando um novo método de ensino de aritmética que eles chamavam de "nova matemática", e, como geralmente as únicas pessoas a examinar os livros eram professores ou administradores na área de educação, eles acharam que seria uma boa idéia ter alguém que utilizas se, cientificamente, a matemática, que soubesse qual é o produto final e para que estamos tentando ensiná-la, para ajudar na avaliação dos livros didáticos. Nessa época, eu devia estar com algum sentimento de culpa por não coo perar com o governo, porque concordei em fazer parte do tal comitê. Imediatamente, comecei a receber cartas e telefonemas dos editores dos livros. Eles diziam coisas do tipo: "Ficamos felizes em saber que o senhor está no comitê, porque realmente queríamos uma pessoa de mente científica . . . "
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ou "É maravilhoso ter um cientista no comitê, porque nossos livros são cienti ficamente orientados ... " Mas também diziam coisas do tipo: "Nós gostaría mos de explicar ao senhor sobre o que o livro trata . . . " e "Teremos muito pra zer em ajudá-lo, como pudermos, a julgar nossos livros . . . " Isso pareceu-me um pouco coisa de maluco. Sou um cientista objetivo e me parecia que, já que a única coisa que as crianças da escola receberiam seriam os livros (e os pro fessores receberiam o manual do professor, que eu também recebera) , qual quer explicação extra por parte da companhia era uma distorção. Não quis fa lar com nenhum dos editores, e sempre respondia: "O senhor não precisa me explicar; tenho certeza de que os livros falarão por si mesmos." Representei um determinado distrito que compreendia a maior parte da área de Los Angeles, exceto a cidade de Los Angeles, que estava representada por uma senhora muito agradável do sistema escolar de Los Angeles, chama da Sra. Whitehouse. O Sr. Norris sugeriu que eu me encontrasse com ela para conhecer o que o comitê fazia e como funcionava. A Sra. Whitehouse começou falando sobre os assuntos que eles discuti riam na próxima reunião (eles já tinham feito uma reunião; fui nomeado pos teriormente) . "Eles falarão sobre os números contáveis." Eu não sabia o que era aquilo, mas acontece que era o que eu costumava chamar de números in teiros. Eles tinham nomes diferentes para tudo, por isso eu tive muito trabalho desde o início. Ela contou-me como normalmente os membros da comissão davam as notas aos livros didáticos. Eles pegavam um número razoavelmente grande de cópias de cada livro e as distribuíam para diversos professores e adminis tradores em seus distritos. Depois eles recolhiam os relatórios com o parecer dessas pessoas sobre os livros. Uma vez que eu não conhecia muitos dos pro fessores ou administradores, e como eu achava que podia, lendo os livros, formar minha opinião sobre como eles me pareciam, optei por ler eu mesmo todos os livros. (Havia algumas pessoas no meu distrito que tinham esperado para examinar os livros e queriam ter uma chance de dar sua opinião. A Sra. Whitehouse se ofereceu para colocar o relatório dessas pessoas junto com o dela; assim, elas se sentiriam melhores e eu não precisaria me preocupar com as queixas delas. Elas estavam satisfeitas, e eu não tive muito trabalho.) Alguns dias depois, uma pessoa do depósito de livros me ligou e disse: "Nós estamos prontos para mandar os livros para o senhor, Sr. Feynman; são 1 36 quilos."
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Fiquei desesperado. - Está tudo bem, Sr. Feynman; nós vamos conseguir alguém para aju dá-lo a lê-los. Eu não conseguia imaginar como se faz isso: ou você lê ou não lê. Eu tinha uma estante especial no meu estúdio lá no porão (os livros ocupavam cinco metros) e comecei a ler todos os livros que seriam discutidos na próxima reu nião. Nós começaríamos com os livros didáticos da escola primária. Era uma tarefa enorme, e trabalhei o tempo todo no porão. Minha esposa diz que durante esse período foi como viver em cima de um vulcão. Ficava cal mo por um tempo, mas, de repente, "brrrrruuuuuummmmm!!!!" -, acontecia uma grande explosão do "vulcão" lá embaixo. O motivo era que os livros eram muito ruins. Eram mentirosos. Eram feitos às pressas. Eles tentavam ser rigorosos, mas usavam exemplos (como au tomóveis na rua para "conjuntos") que eram quase bons, mas nos quais havia sempre algumas sutilezas. As definições não eram precisas. Tudo era um pouco ambíguo - eles não eram espertos o bastante para entender o que que ria dizer "rigor" . Estavam fingindo. Estavam ensinando algo que não enten diam e que era, na verdade, inútil, naquela época, para a criança. Entendi o que eles estavam tentando fazer. Depois do Sputnik, muitas pessoas achavam que estávamos atrasados em relação aos russos e pediram a alguns matemáticos opinar sobre como ensinar matemática usando alguns dos conceitos modernos bastante interessantes de matemática. O propósito era realçar a matemática para as crianças que a achavam tediosa. Vou dar-lhes um exemplo: eles falavam sobre as diferentes bases numéri cas - cinco, seis, e assim por diante - para mostrar as possibilidades. Isso se ria interessante para uma criança que conseguisse entender a base dez - algu ma coisa para entreter sua mente. Mas o que eles acabaram fazendo com es ses livros foi obrigar que toda criança aprendesse outra base! E então vinha o horror de sempre: "Transforme esses números que estão escritos em base sete, para a base cinco." Transformar de uma base para outra é uma coisa completamente inútil. Se você consegue fazer isso, pode ser interessante; se você não consegue, esqueça. Não há motivo para fazer uma coisa dessas. De qualquer forma, vou examinando todos esses livros, e nenhum deles diz nada sobre a aplicação da aritmética na ciência. Se há algum exemplo que seja de aritmética (na maioria das vezes é essa nova coisa moderna, abstrata, sem sentido) , eles são sobre coisas como, por exemplo, comprar selos.
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Finalmente, chego a um livro que afirma: "A matemática é utilizada na ciência de muitas formas. Daremos um exemplo da astronomia, que é a ciência das estrelas." Viro a página e está escrito: "As estrelas vermelhas têm uma tem peratura de quatro mil graus, as estrelas amarelas têm uma temperatura de cin co mil graus ... " -, até agora tudQ bem. Ele continua: "As estrelas verdes têm uma temperatura de sete mil graus, e as estrelas violetas têm uma temperatura de... (algum número grande) ." Não há estrelas verdes ou violetas, mas os nú meros referentes às outras estão aproximadamente corretos. Está vagamente certo - mas há problemas! Era como as coisas aconteciam: tudo era escrito por alguém que não sabia que diabos estava dizendo, assim, sempre havia algum erro! E como podemos ensinar bem usando livros escritos por pessoas que não entendem muito sobre o que estão falando, eu não consigo entender. Eu não sei por quê, mas os livros são péssimos; UNIVERSALMENTE P É SSIMOS! De qualquer forma, estou contente com esse livro, porque é o primeiro exemplo de aplicação da aritmética à ciência. Fico um pouco descontente quando leio sobre as temperaturas das estrelas, mas não muito porque está mais ou menos certo -, é só um exemplo de erro. Então vem a lista de proble mas. O problema diz: "João e seu pai saem para olhar as estrelas. João vê duas estrelas azuis e uma estrela vermelha. O pai de João vê uma estrela verde, uma violeta e duas amarelas. Qual a temperatura total das estrelas vistas por João e seu pai?" -, e eu quase explodi de.tanto horror. Minha esposa comentou sobre o vulcão lá embaixo no porão. Isso foi só um exemplo: era sempre assim. Eterno absurdo! Não há propósito algum em somar a temperatura de duas estrelas. Ninguém jamais faz isso, exceto, tal vez, para depois pegar a temperatura média das estrelas, mas não para desco brir a temperatura total de todas elas! Era incrível! Não passava de um jogo para você fazer a adição, eles não entendiam do que estavam falando. Era como ler frases com alguns erros de tipografia e, de repente, encontrar uma frase inteira escrita de trás para a frente. A matemática estava assim. Simples mente sem salvação! Em seguida, fui para a minha primeira reunião. Os outros membros ha viam atribuído algum tipo de nota a alguns dos livros e me perguntaram quais eram as minhas notas. Minha pontuação era, com freqüência, diferente da deles, e eles me perguntavam: "Por que você deu nota baixa para esse livro?" Eu dizia que o problema era que o livro era assim e assado na página tal eu tinha minhas anotações.
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Eles descobriram que eu era uma espécie de mina de ouro: dizia a eles, com detalhes, o que era bom e o que era ruim em todos os livros; tinha uma explicação para cada nota. Eu lhes perguntei por que deram nota tão alta àquele livro, e eles disse ram: "Vamos ouvir o que você achou de tal livro." Nunca descobri por que da vam as notas da forma como o faziam. Em vez disso, ficavam o tempo todo me perguntando o que eu achava. Chegamos a um livro, parte de um conjunto de três livros complementa res publicados pela mesma companhia, e eles me perguntaram o que eu acha ra dele. Eu lhes disse: "O depósito não me mandou esse livro, mas os outros dois eram bons. " Alguém tentou repetir a pergunta: "O que você acha daquele livro?" "Eu disse que não recebi aquele; então, não tenho opinião sobre ele." O homem do depósito de livros estava lá e disse: "Desculpe-me, eu posso explicar. Não o enviei ao senhor porque aquele livro ainda não estava fi nalizado. Há uma regra que toda entrada precisa ser feita em determinado prazo, e o editor estava com alguns dias de atraso. Assim, só nos mandaram as capas, o interior está em branco. A companhia mandou uma nota descul pando-se e esperando poder ter os três livros analisados, apesar de o último estar atrasado." Acontece que alguns dos outros membros haviam atribuído nota ao livro em branco! Eles não acreditavam que ele estivesse em branco, porque afinal haviam atribuído uma nota. Na verdade, a nota para o livro que faltava era um pouco maior do que a dos outros dois. O fato de não haver nada escrito dentro do livro não tinha nada a ver com a nota. Acredito que o motivo disso tudo é que o sistema funciona assim: quando você distribui os livros às pessoas, elas estão ocupadas; elas são negligentes; elas pensam: "Bem, tem uma porção de gente lendo este livro; então, não faz a menor diferença." E escrevem um número qualquer alguns deles, pelo me nos; não todos, mas alguns deles. Então, quando você recebe os relatórios, não sabe por que para um determinado livro há menos relatórios do que para os outros - ou seja, talvez para um livro haja dez e para esse outro haja apenas seis pessoas apresentando o relatório -; então você faz a média da nota da queles que apresentaram o relatório; não se inclui na média os que não o fize ram; deste modo, consegue-se um número razoável. Esse processo de fazer -
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médias o tempo todo deixa passar o fato de que não há absolutamente nada escrito entre as capas do livro! Elaborei essa teoria porque vi o que aconteceu na comissão curricular: no caso do livro em branco, apenas seis dos dez membros apresentaram o relató rio, enquanto para os outros livrQs oito ou nove dos dez fizeram o relatório. E quando eles retiraram a média dos seis, conseguiram uma média tão boa quanto a que conseguiram quando fizeram a média dos oito ou nove. Eles fi caram muito sem jeito ao descobrir que estavam atribuindo notas para aquele livro, e me deixaram um pouco mais confiante. Acontece que os outros mem bros do comitê tinham tido muito trabalho distribuindo os livros e coletando os relatórios e haviam participado das sessões, nas quais os editores lhes ex plicaram o conteúdo dos livros antes que eles os lessem; eu era a única pessoa da comissão que havia lido todos os livros e não tive informação alguma dos editores, exceto a que estava nos próprios livros, as coisas que, por fim, iriam para as escolas. Essa questão de tentar descobrir se um livro é bom ou ruim, examinan do-o cuidadosamente ou analisando o relatório de uma porção de gente que o examinou negligentemente, é como aquele velho problema: ninguém po dia olhar para o imperador da China, e a questão era: Qual o tamanho do na riz do imperador da China? Para descobrir, você sai pelo país todo pergun tando às pessoas qual o tamanho que elas acham que o nariz do imperador da China tem e estipula uma média das respostas. E a média seria muito "precisa", porque você estabeleceu a média entre tantas pessoas. Mas não é essa a forma de descobrir alguma coisa; quando se tem muita gente contri buindo sem prestar atenção, você não melhora seu conhecimento sobre a si tuação calculando médias. Em princípio, não deveríamos falar sobre o custo dos livros. Fomos infor mados sobre quantos livros poderíamos escolher; então, elaboramos um pro grama que usava uma série de livros complementares, porque todos os livros de texto novos tinham falhas de um tipo ou de outro. As falhas mais sérias es tavam nos livros sobre a "nova matemática": não havia aplicações; não havia muitos problemas enunciados. Não havia aquela conversa sobre venda de se los; pelo contrário, havia muita conversa sobre comutação e coÍsas abstratas, sem correspondência com situações reais. O que você faz: soma, subtrai, multiplica ou divide? Então, sugerimos alguns livros que tinham algumas coi sas assim, como complementos - um ou dois para cada sala - além de um li-
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vro para cada aluno. Depois de muita discussão tínhamos tudo planejado para equilibrar as coisas. Quando levamos nossa recomendação ao Conselho de Educação, eles nos disseram que não tinham tanto dinheiro quanto imaginavam; assim, te ríamos de rever tudo e fazer cortes aqui e ali, desta vez levando o custo em consideração e arruinando o que era um programa bastante equilibrado, no qual havia uma chance de que o professor encontrasse exemplos das coisas que ele necessitaria. Agora que eles haviam mudado as regras sobre a quantidade de livros, po deríamos recomendar e não tínhamos mais a chance de compensar, o progra ma ficou bem ruim. Quando o comitê de orçamento do Senado teve acesso ao programa, ele ficou mais deturpado ainda. Agora ele estava realmente péssi mo! Pediram-me que fosse aos senadores estaduais quando o assunto fosse discutido, mas recusei-me: àquela altura dos acontecimentos, tendo discuti do tanto o assunto, eu estava cansado. Nós tínhamos preparado nossas reco mendações para o Conselho de Educação, e eu achava que era função deles apresentá-las ao Senado - o que era legal, mas não politicamente correto. Eu não devia ter desistido tão rapidamente, mas ter trabalhado duro e discutido tanto sobre esses livros para elaborar um programa razoavelmente equilibra do, e, no fim, ver tudo ser jogado fora - isso era desanimador! Foi tudo um es forço desnecessário que podia ter sido invertido e feito da forma oposta: co meçar com o custo dos livros e comprar o que se pudesse pagar. O que me dobrou e acabou por provocar a minha renúncia foi o fato de que no ano seguinte discutiríamos os livros sobre ciência. Pensei que com a ciência a coisa seria diferente, e por isso examinei alguns deles. Aconteceu a mesma coisa: algo parecia bom à primeira vista e depois mostrava-se ser horrível. Por exemplo, havia um livro que começava com quatro ilustrações: primeiro havia um brinquedo de corda; depois um carro; depois um garoto andando de bicicleta; depois uma outra coisa qualquer. E debaixo de cada figura lia-se: "O que faz com que ele se movimente?" Pensei: "Eu sei do que s e trata: eles falarão sobre mecânica, como as mo las funcionam no interior do brinquedo; sobre química, como funciona o mo tor do automóvel; e biologia, sobre como os músculos funcionam." Era o tipo de coisa sobre a qual meu pai teria dito para mim: "O que faz com que ele se movimente? Tudo se movimenta porque o sol está brilhando." E depois nos divertiríamos discutindo o assunto.
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- Não, o brinquedo funciona porque a mola está esticada - eu diria. - Como a mola ficou esticada? - ele perguntaria. - Eu a estiquei. - E como você conseguiu se mover? - Comendo. - E os alimentos só crescem porque o sol brilha. Logo, todas essas coisas se movimentam porque o sol brilha. - Isso transmitiria o conceito que o movi mento é simplesmente a transformação da energia solar. Virei a página. A resposta era, no caso do brinquedo de corda: "A energia faz com que ele se movimente." E para o garoto andando de bicicleta: "A energia faz com que ele se movimente." Para tudo: "A energia faz com que ele se movimente." Mas isso não diz nada. Suponha que seja "Wakalixes" . Eis o princípio ge ral: "Wakalixes faz com que ele se movimente." Isto não resulta em conheci mento. A criança não aprende nada: é só uma palavra. O que eles deveriam ter feito era observar o brinquedo de corda, ver que há molas lá dentro, aprender como funcionam, aprender como funcionam as rodas, sem se importar com "energia". Mais tarde, quando a criança soubesse um pouco mais sobre como o brinquedo realmente funciona, eles poderiam discutir os princípios mais gerais de energia. Também não é sequer verdade que "a energia faz com que ele se movimente", porque, caso ele pare, você também poderá dizer: "A energia faz com que ele pare." E quando as coisas param, a energia transforma-se em calor, em caos geral. Mas assim eram todos os livros: eles diziam coisas tTlúteis, ambíguas, misturadas, confusas e parcialmente incorretas. Como alguém pode apren der ciência com esses livros eu não sei, porque isso não é ciência. Assim, quando vi todos esses livros horríveis, com o mesmo tipo de pro blema que os livros de matemática, meu processo vulcânico recomeçou. Como eu estava exausto por ter lido todos os livros de matemática e desenco rajado por tudo não ter passado de uma perda de tempo, não consegui enca rar mais um ano disso, e tive de renunciar. Algum tempo depois, eu soube que o livro a-energia-faz-com-que ele-se-movimente seria recomendado pela comissão curricular ao Conselho de Educação, aí fiz um último esforço. O público podia fazer comentários em qualquer reunião da comissão; então eu me levantei e disse por que achava que o livro era ruim.
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o homem que me substituiu na comissão disse: "O livro foi aprovado por sessenta e cinco engenheiros da Companhia Fabricante de Aviões Tal." Não duvidei que a companhia tivesse alguns engenheiros muito bons, mas pegar sessenta e cinco engenheiros é considerar um espectro amplo de capacida des - e necessariamente incluir alguns realmente ruins! Era mais uma vez o pro blema de tirar a média do tamanho do nariz do imperador ou das notas de um li vro que não tinha nada dentro. Teria sido muito melhor que a companhia deci disse quais eram os seus melhores engenheiros e pedisse a eles que examinassem o livro. Eu não podia alegar ser mais inteligente do que os outros 65 sujeitos mas mais inteligente do que a média deles eu podia, com certeza! Não consegui convencê-los, e o livro foi aprovado pelo Conselho. Quando eu ainda fazia parte da comissão, tive de ir a San Francisco algu mas vezes para as reuniões, e quando voltei a Los Angeles, na primeira via gem, fui ao escritório da comissão pedir reembolso das minhas despesas. - Quando custou, Sr. Feynman? - Bem, fui de avião para San Francisco; então é a tarifa aérea, mais o estacionamento no aeroporto enquanto eu estava fora. - O senhor tem o bilhete? Por acaso eu tinha o bilhete. - O senhor tem o recibo do estacionamento? - Não, mas custa dois dólares e trinta e cinco centavos para estacionar meu carro. - Mas precisamos de um recibo. - Eu disse quanto custa. Se o senhor não acredita em mim, por que me deixa dizer o que acho que é bom e o que é ruim em relação aos livros didáticos? Houve um grande estardalhaço por causa disso. Infelizmente, eu estava acostumado a apresentar seminários para alguma empresa ou universidade 'ou para pessoas comuns, não para o governo. Eu estava acostumado a: "Quanto foi sua despesa?" - "Tanto" - "Aqui está, Sr. Feynman". Aí decidi que não entregaria a eles recibo de coisa alguma. Depois da segunda viagem a San Francisco, eles pediram novamente meu bilhete e os recibos. - Não tenho nenhum dos dois. - Isso não pode continuar assim, Sr. Feynman. - Quando eu aceitei trabalhar para a comissão, me disseram que os senhores pagariam minhas despesas.
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- Mas nós esperávamos que o senhor tivesse alguns recibos para compro var as despesas. - Eu não tenho nada para comprová-las, mas o senhor sabe que moro em Los Angeles e que vou a essas cidades; como o senhor acha que eu chego até lá? Eles não desistiram, nem eu. 'Y\cho que, quando se está em uma posição dessa, na qual você decide não se dobrar ao sistema, deve-se arcar com as conseqüências, caso não funcione. Assim sendo, estou plenamente satisfeito, mas nunca consegui reembolso das viagens. Esse é um dos jogos que faço. Eles querem um recibo? Eu não dou um reci bo a eles. Então você não receberá o dinheiro. Tudo bem, não recebo o dinheiro. Eles não acreditam em mim? Vão para o inferno; eles não precisam me pagar. É claro que é absurdo! Sei que é assim que o governo funciona: bem, o governo que se dane! Acho que os seres humanos devem tratar os seres humanos como seres humanos. E, a menos que eu seja tratado assim, não tenho nada a ver com eles! Eles se sentem mal? Pois que se sintam. Eu me sinto mal, também. Bem, deixa prá lá. Sei que eles estão "protegendo o contribuinte", mas veja o quanto você acha que o contribuinte estava sendo protegido na situação a seguir. Havia dois livros sobre os quais, depois de muita discussão, não consegui mos chegar a uma conclusão; eles eram extremamente parecidos. Então, deixa mos a questão em aberto para que o Conselho de Educação decidisse. Como o Conselho agora estava levando em consideração o custo, e como os dois livros eram muito parecidos, ele resolveu abrir as propostas e aceitar a mais baixa. Surgiu a questão: "As escolas receberão os livros no prazo normal ou poderão, talvez, recebê-los com uma certa antecedência p-ara o próximo pe ríodo?" O representante de uma editora levantou-se e disse: "Estamos contentes que os senhores tenham aceitado nossa proposta; podemos produzi-los a tempo para o próximo período." O representante da editora que havia perdido a concorrência também es tava lá e levantou-se e falou: "Como nossas propostas foram apresentadas com base no prazo final, acho que deveríamos ter uma chance de apresentar um novo preço relativo ao prazo antecipado, porque também podemos satis fazer o prazo antecipado." O Sr. Norris, advogado de Pasadena e membro do Conselho, perguntou ao representante da outra editora: "E quanto nos custaria receber o livro em um prazo menor? "
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E ele apresentou um número: custava menos! O primeiro rapaz levantou-se: "Se ele muda o seu preço, eu tenho o direi to de mudar o meu!" - o preço dele era ainda menor! Norris perguntou: "Bem, como é isso - nós recebemos os livros em um prazo menor e é mais barato?" - Sim - disse um deles. - Podemos utilizar um método especial de offset que normalmente não usaríamos ... - uma desculpa para explicar por que fica ria mais barato. E o outro concordou: "Quando' você faz mais rápido, custa menos!" Aquela situação foi realmente chocante. Acabou ficando dois milhões de dólares mais barato. N orris ficou muito admirado com tal mudança repentina. É claro que o que aconteceu foi que a incerteza sobre a data abriu a possi bilidade de que os dois representantes pudessem apresentar suas propostas de novo. Normalmente, quando os livros são escolhidos sem levar o custo em consideração, não há por que abaixar o preço; as editoras desses livros po diam colocar os preços da forma que quisessem. Não havia vantagem em competir diminuindo o preço; a forma de competição era impressionar os membros da comissão curricular. Falando nisso, sempre que nossa comissão fazia uma reunião, havia edi tores de livros entretendo os membros da comissão, levando-os para almoçar e conversando sobre seus livros. Eu nunca fui. Agora parece óbvio, mas não percebi o que estava acontecendo quando recebi um pacote de frutas secas e coisas semelhantes enviado via Western Union, com um bilhete que dizia: "De nossa família para a sua, Feliz Dia de Ação de Graças - A família Pamílio." Era de uma família da qual eu nunca tinha ouvido falar em Long Beach; obviamente alguém querendo mandar o pacote para a família de um amigo e que pegou o nome e o endereço errados. Achei, então, que era melhor conser tar o erro. Liguei para a Western Union, peguei o número do telefone das pes soas que haviam mandado o pacote e liguei para elas. - Alô, meu nome é Sr. Feynman. Recebi um pacote ... -Ah, alô, Sr. Feynman. Aqui quem fala é Pete Pamilio - e ele falou de uma forma tão amistosa que achei que deveria saber quem ele era! Normalmente, sou tão estúpido que não consigo lembrar quem são as pessoas. Então falei:
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- Desculpe, Sr. Pamilio, mas não consigo lembrar muito bem quem é o senhor ... Acontece que ele era um representante de uma das editoras cujos livros eu tinha de julgar na comissão curricular. - Entendo: Mas isso poderia..., er mal-interpretado. - É apenas de família para família. - Sim, mas estou julgando um livro que o senhor está publicando e pode ser que alguém interprete mal sua gentileza! - Eu sabia o que estava aconte cendo, mas fiz parecer que eu era totalmente idiota. Aconteceu outro Jato semelhante quando um dos editores me mandou uma maleta de couro com meu nome gravado a ouro. Dei a eles a mesma res posta: "Não posso aceitar; estou julgando alguns dos livros que vocês estão publicando. Não acho que vocês tenham entendido isso!" Um membro da comissão, que fez parte dela por longo período, disse-me: "Eu nunca aceito os brindes; isso me deixa muito triste. Mas isso continua." Mas eu realmente perdi uma oportunidade. Se tivesse pensado rápido o bastante, teria aproveitado muito naquela comissão. Vou para o hotel em San Francisco, à tarde, para participar de minha primeiríssima reunião no dia se guinte, e resolvo sair para dar uma volta pela cidade e comer alguma coisa. Saio do elevador, e vejo, sentados em um banco no saguão do hotel, dois ho mens, que logo se levantaram e disseram: "Boa-tarde, Sr. Feynman. Onde o senhor vai? Há alguma coisa que possamos lhe mostrar em San Francisco? " Eles eram de uma editora, mas eu não queria nada com eles. - Vou sair para comer. - Nós podemos levá-lo para jantar. - Não, quero ficar sozinho. - Bem, o que o senhor precisar nós podemos ajudá-lo. Não pude resistir. Eu disse: "Bem, vou sair para arrumar confusão." - Achamos que também podemos ajudar o senhor com isso. - Não, acho que vou cuidar disso sozinho. - Então, pensei: "Que erro! Eu devia ter permitido que eles me acompanhassem e escrever um diário; assim as pessoas do estado da Califórnia veriam a que ponto os editores são capazes de chegar!" E quando descobri a diferença de dois milhões de dólares, Deus sabe a pressão!
Outro erro de Alfred Nobel
N o Canadá, existe uma grande associação de estudantes de física. Eles fazem reuniões, apresentam trabalhos e coisas assim. Uma vez, a seção de Vancou ver quis que eu fosse até lá para uma palestra. A garota responsável pelo even to fez os arranjos com minha secretária para eu ir até Los Angeles sem me consultar. Ela simplesmente entrou em minha sala. Era realmente bonita, uma bela loira. (Isso ajudou; não deveria, mas ajudou.) E fiquei impressiona do que os estudantes em Vancouver tivessem financiado tudo. Eles me trata ram tão bem em Vancouver que agora sei o segredo para realmente se divertir e dar palestras: espere um convite dos estudantes. Uma vez, alguns anos depois de eu ter ganho o prêmio Nobel, alguns ga rotos do grêmio de estudantes de física de Irvine me convidaram para dar uma palestra. Respondi: "Adoraria ir. O que eu quero fazer é só falar para o grêmio de física. Mas - não quero parecer arrogante -, aprendi com a expe riência que haverá problemas." Contei a eles que eu costumava ir a uma escola secundária local, todo ano, para falar no grêmio de física sobre relatividade, ou qualquer assunto que me pedissem. Assim, depois de ter ganho o prêmio, voltei lá, como sempre, sem preparação alguma, e eles me colocaram na frente de uma platéia de trezentos garotos. Foi uma bagunça! Sendo um idiota e não percebendo de imediato, passei por situações se melhantes três ou quatro vezes. Quando fui convidado para ir a Berkeley mi nistrar uma palestra sobre algum tema ligado à física, preparei algo bastante técnico, esperando apresentar a palestra para o grupo habitual do departa mento de física. Mas, quando cheguei lá, a enorme sala de conferências estava cheia de gentel E eu sabia que não havia tanta gente em Berkeley preparada para o nível de palestra que eu apresentaria. Meu problema é que gosto de sa tisfazer as pessoas que me ouvem, e não posso fazê-lo se todo mundo e mais alguém quer ouvir: dessa forma fico sem conhecer meu público.
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Depois que os estudantes entenderam que eu não podia simplesmente ir a algum lugar e dar uma palestra para o grêmio de física, eu disse: "Vamos in ventar um tema bobo e um nome qualquer de professor; assim, as únicas pes soas que virão serão as realmente interessadas em física, aquelas que quere mos que venham, certo? Vocês lílão precisam vender nada." Apareceram alguns cartazes no campus de lrvine: "O professor Henry Warren da Universidade de Washington fará uma apresentação sobre a estru tura do próton, em 1 7 de maio, às 3 :00h, na sala D I 02." Apareci e disse: "O professor Warren teve alguns problemas pessoais e não pôde vir falar para vocês hoje, então ele me ligou e perguntou-me se eu poderia fazer a apresentação sobre o assunto, uma vez que tenho trabalhado nesse campo. Assim, estou aqui." Funcionou muito bem. Mas, então, de uma forma ou de outra, o conselheiro do grêmio da facul dade descobriu o truque e ficou muito chateado com o grêmio. Ele disse: "Vocês sabem que se soubessem que o professor Feynman faria uma apresen tação aqui, uma porção de gente poderia ter vindo e ouvi-lo." Os estudantes explicaram: "Justamente por isso ! " Mas o conselheiro estava furioso porque não havia sido chamado para participar da brinca deira. Sabendo que os estudantes estavam realmente com problemas, decidi es crever uma carta ao conselheiro e explicar-lhe que havia sido tudo culpa mi nha, que eu só fizera a apresentação mediante esse acordo; que eu havia dito aos estudantes para não contar a ninguém; sinto muito; por favor, descul pe-me, blá, blá, blá... É por esse tipo de coisa que passo por conta de uma dro ga de prêmio! Um pouco depois, fui convidado pelos estudantes da Universidade dei Alasca, em Fairbanks, para ministrar uma palestra e passei momentos muito agradáveis, exceto pelas entrevistas para a rede local de televisão. Não preciso de entrevistas; não vejo sentido nisso. Vou para falar aos estudantes, só isso. Se todo mundo na cidade quiser saber sobre isso, deixe que o jornal da escola informe a eles. Foi por conta do prêmio Nobel que tive de dar uma entrevista sou um cara importante, certo? Um amigo meu, que é rico - ele inventou um tipo de relógio digital sim ples -, me falou sobre as pessoas que doam dinheiro para patrocinar prêmios ou palestras: "Sempre os olhe com cuidado e descubra por que eles estão fa zendo isso, que ato ilícito em suas consciências querem apagar."
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Uma vez, meu amigo Matt Sands ia escrever um livro que se chamaria O outro erro de Alfred Nobel. Por muitos anos, acompanhei quem ganharia o prêmio quando chegava a época da entrega. Mas, depois de um tempo, eu sequer sabia quando era a "época" certa. Portanto, eu não tinha a menor idéia de por que alguém me li garia às 3 :30h ou 4:00h da madrugada. - Professor Feynman? - Hei! Por que o senhor está me incomodando a essa hora da madrugada? - Pensei que o senhor gostaria de saber que ganhou o prêmio Nobel. - Sim, mas eu estou dormindo! Seria melhor se o senhor tivesse me ligado de manhã - e desliguei. Minha esposa perguntou: "Quem era?" - Eles me disseram que eu ganhei o prêmio Nobel. - Richard, quem era? - Sempre faço brincadeiras, e ela é tão esperta que nunca se deixa enganar, mas dessa vez consegui pegá-la. O telefone toca novamente: "Professor Feynman, o senhor ouviu ... " , (Com desapontamento na voz.) "Sim." Então, comecei a pensar: "Como posso desligar-me disso tudo? Não quero nada com isso!" Aí a primeira idéia foi tirar o telefone do gancho, por que estava recebendo uma ligação atrás da outra. Tentei voltar a dormir, mas descobri que seria impossível. Desci ao estúdio para pensar: o que vou fazer? Talvez eu não aceite o prê mio. O que aconteceria então? Talvez isso seja impossíveL Coloquei o telefone no gancho novamente, e ele logo tocou. Era alguém da revista Time. Eu lhe disse: "Olha só, estou com um problema; então quero que isso não seja gravado. Não sei como sair dessa. Tem algum jeito de não receber o prêmio?" Ele disse: "Eu receio, senhor, que não há como fazer isso sem criar mais confusão, é melhor simplesmente deixar o barco correr." Era óbvio. Conver samos bastante, por cerca de quinze ou vinte minutos, e o repórter da revista Time nunca publicou nada sobre isso. Agradeci muito ao sujeito da Time e desliguei. O telefone tocou imediata mente; era o jornal. - Sim, você pode vir aqui em casa. Sim, tudo bem. Sim, Sim, Sim, . . . Uma das ligações foi de alguém do Consulado d a Suécia. Ele daria uma recepção em Los Angeles.
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Percebi que, uma vez que tinha decidido aceitar o prêmio, eu precisava participar dessas coisas todas. O cônsul disse: "Faça uma lista das pessoas que o senhor gostaria de con vidar e farei uma lista das pessoas que nós estamos convidando. Então iremos ao seu escritório para comparar 'hs listas e verificar se há alguma duplicação, depois faremos os convites... " Preparei a minha lista. Tinha cerca de oito pessoas - meu vizinho em frente, meu amigo artista Zorthian, e assim por diante. O cônsul veio ao meu escritório com a lista dele: o governador do esta do da Califórnia, o Fulano, o Beltrano; Getty, o produtor de petróleo; uma atriz - havia trezentas pessoas ! E, desnecessário dizer, não havia duplica ção alguma ! Então, comecei a ficar um pouco nervoso. A idéia de encontrar-me com todas essas figuras notórias me assustava. O cônsul viu que eu estava preocupado. "Ah, não se preocupe", ele disse. "A maioria deles não virá." Bem, eu nunca havia preparado uma festa para a qual eu tivesse convida do pessoas e soubesse que devia esperar que elas não viessem! Eu não preciso ser conhecido de ninguém para dar a eles o prazer de serem honrados com esse convite que eles podem recusar; isso é estúpido! Quando cheguei em casa, estava realmente chateado com aquela coisa toda. Liguei para o cônsul e disse: "Pensei melhor e vi que não posso aceitar a recepção." Ele ficou maravilhado. Ele disse: "Você está totalmente certo." Acho que ele estava na mesma posição - tendo de preparar uma festa para esse paspalho que não passa de um chato de galochas. N oJinal, todo mundo ficou contente. Ninguém queria ir, inclusive o convidado de honra! O anfitrião também ficou em uma situação bem melhor! Tive uma certa dificuldade psicológica durante todo esse período. Você vê, eu havia sido criado pelo meu pai com aversão a pompa e a realeza (ele era do ramo de uniformes, então ele sabia a diferença entre um homem quando estava vestido com um uniforme e quando estava sem - é o mesmo homem) . Na verdade, eu havia aprendido a ridicularizar toda essa coisa durante toda a minha vida, e isso estava tão forte e profundamente enraizado em mim que eu não podia chegar perto de um rei sem alguma tensão. Era infantilidade, sei, mas fui criado assim; então isso era um problema.
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As pessoas diziam que havia uma regra na Suécia que dizia: depois de aceitar o prêmio, você tem de se afastar do rei sem dar as costas para ele. Você desce alguns degraus, aceita o prêmio, e depois sobe novamente os degraus. Então eu disse para mim mesmo: "Tudo bem, vou dar um jeito neles!" - e pratiquei pular os degraus para trás, para mostrar-lhes como era ridículo o costume. Eu estava de péssimo humor! Aquilo era estúpido e tolo, é claro. Descobri que isso não era mais uma regra; você podia dar as costas para o rei quando estivesse saindo e andar como um ser humano normal, na direção que pretendia ir, com o nariz para a frente. Fiquei contente em descobrir que nem todo mundo na Suécia leva as ceri mônias reais tão a sério quanto se pensa. Quando se chega lá, descobre-se que eles estão do seu lado. Os estudantes, por exemplo, tinham uma cerimônia especial na qual eles concediam a todo ganhador do prêmio Nobel a especial "Ordem da Rã" . Quando você recebe essa pequena rã, você tem de fazer u m som d e rã. Quando mais novo, eu era anticultura, mas meu pai tinha alguns bons li vros. Um era um livro com a antiga peça grega As rãs, e dei uma olhada nela uma vez e vi que uma rã falava. Estava escrito como "brek, kek, kek". Pensei: "Nenhuma rã jamais fez um barulho assim; é uma forma louca de descrever o som da rã!" Então, tentei imitar o som e, depois de praticar um pouco, desco bri que isso é exatamente o que uma rã fala. A minha olhada fortuita em um livro de Aristófanes tornou-se útil mais tarde: consegui fazer um som de rã na cerimônia dos estudantes para os ven cedores do prêmio Nobel! E pular para trás também deu certinho. Gostei des sa parte; a cerimônia correu bem. Mesmo me divertindo bastante, eu realmente continuava a ter aquele blo queio mental o tempo todo. Meu maior problema era o discurso de agradeci mento que se faz no Jantar do Rei. Quando eles concedem o prêmio, entre gam uns livros belissimamente encadernados sobre os anos anteriores, com todos os discursos de agradecimento escritos, como se fossem grande coisa. Aí você começa a pensar que o que você diz no discurso de agradecimento tem alguma importância, porque ele será publicado. O que não percebi foi que quase ninguém prestaria atenção a ele e ninguém o leria! Eu havia perdi do meu senso de proporção: não podia simplesmente dizer muito obrigado, blá-blá-blá-blá-blá; teria sido muito fácil fazer isso, mas não, tenho de fazê-lo
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da forma honesta. E a verdade era: eu não queria realmente esse prêmio; en tão, como agradeço se eu nunca o quis? Minha esposa diz que eu estava uma pilha de nervos, preocupado com o que eu diria no discurso, mas, finalmente, descobri uma forma de fazer um discurso que soaria perfeitamen� satisfatório e que era, no entanto, comple tamente honesto. Tenho certeza de que quem ouviu o discurso não teve a me nor idéia do que esse sujeito tinha passado para prepará-Io.* Comecei dizendo que já havia sido premiado pelo prazer que tive ao desco brir o que descobri, pelo fato de outras pessoas fazerem uso do meu trabalho, e assim por diante. Tentei explicar que eu já havia recebido tudo o que esperava, e o resto não era nada comparado a isso. Eu já havia recebido meu prêmio. Mas, então, falei que havia recebido, de uma vez só, uma grande pilha de cartas - falei muito melhor no discurso -, cartas que me fizeram lembrar de todas essas pessoas que eu conhecia: cartas de amigos de infância que deram um pulo quando leram no jornal e gritaram: "Eu o conheço! Ele é aquele garo to que costumava brincar comigo!", e assim por diante; cartas como aquela, que eram muito reconfortantes e expressavam o que eu interpretava como um tipo de amor. Eu os agradeci por isso. O discurso foi bem, * mas sempre tive dificuldades com a realeza. Durante o Jantar do Rei, eu estava sentado perto de uma princesa que havia freqüenta do a universidade nos Estados Unidos. Presumi, erroneameI}.te, que ela teria as mesmas atitudes que eu. Imaginei que ela fosse exatamente como todo mundo. Observei como o rei e toda a realeza precisavam ficar em pé tanto tempo, apertando as mãos de todos os convidados na recepção antes do jan tar. "Na América", eu disse, "nós poderíamos fazer isso de forma mais eficien te. Nós criaríamos uma máquina para apertar as mãos" . - Sim, mas não haveria muito mercado para ela aqui - ela disse, constran gida. - Não existe tanta realeza. - Pelo contrário, haveria um grande mercado. Em primeiro lugar, apenas o rei precisaria ter uma máquina, e nós a daríamos a ele gratuitamente. De pois, é claro, as outras pessoas também quereriam uma máquina. A questão agora é quem poderá ter a máquina? O primeiro-ministro pode comprar uma; então, o presidente do Senado pode comprar uma também, e depois os *Nota do Revisor Técnico: O discurso de aceitação do prêmio Nobel de Feynman pode ser encontrado na íntegra em: http://nobelprize.org/physics/laureates/ 1 965/feynman-lec ture.html.
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deputados mais importantes. Assim, há um mercado muito grande, que pode aumentar, e logo vocês não precisariam passar pela fila da recepção para apertar mãos das máquinas, cada um mandaria sua própria máquina! Também sentei perto da senhora responsável por organizar o jantar. Uma garçonete aproximou-se para encher meu copo de vinho, e eu lhe disse: "Não, obrigado. Eu não bebo." A senhora falou: "Não, não. Deixe-a colocar a bebida." - Mas eu não bebo. Ela disse: - Tudo bem. Apenas observe. Você verá que ela está com duas garrafas. Nós sabemos que o número 88 não bebe. (O número 88 estava atrás da minha cadeira.) Elas parecem exatamente iguais, mas uma é sem álcool. - Mas como vocês sabem? - exclamei. Ela sorriu: "Agora observe o rei", ela disse. "Ele também não bebe." Ela me contou alguns dos problemas que tiveram naquele ano, especificamente. Um deles foi decidir onde o embaixador russo deveria sentar-se. O problema em jantares desse tipo era decidir quem senta mais próximo ao rei. Os ganhadores do prêmio, normalmente, sentam mais próximos do rei do que o corpo diplomático. E a ordem pela qual os diplomatas sentam-se é de terminada de acordo com o tempo que estão na Suécia. Naquela época, o em baixador dos Estados Unidos estava há mais tempo na Suécia do que o embai xador russo. Mas, naquele ano, o vencedor do prêmio Nobel de Literatura foi o Sr. Sholokhov, um russo, e o embaixador russo queria ser o tradutor do Sr. Sholokhov - e, portanto, sentar-se ao lado dele. Assim, o problema era como deixar o embaixador russo sentar-se mais próximo do rei sem ofender o em baixador dos Estados Unidos e o restante do corpo diplomático. Ela disse-me: "O senhor precisava ter visto a confusão que foi - cartas para cá e para lá, ligações telefônicas, e coisas assim -, antes de eu ter a per missão para colocar o embaixador sentado perto do Sr. Sholokhov. Final mente, concordou-se que o embaixador não representaria oficialmente a em baixada da União Soviética naquela noite; em vez disso, ele seria apenas o tra dutor do Sr. Sholokhov." Depois do jantar, fomos para uma outra sala, onde estava acontecendo um tipo diferente de conversação. Lá estava a Princesa Qualquer Coisa, da Dinamarca, sentada à mesa com uma porção de gente ao redor dela, e eu vi uma cadeira vaga na mesa e sentei-me.
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Ela virou-se para mim e disse-me: "Ah! O senhor é um dos ganhadores do prêmio Nobel. Em qual área o senhor trabalha?" - Em física - eu disse. - Ah. Bem, ninguém sabe nada sobre isso; então acho que não podemos conversar sobre física. - Pelo contrário - respondi. É porque alguém sabe alguma coisa que não podemos conversar sobre física. São as coisas sobre as quais ninguém sabe nada que podemos discutir. Nós podemos conversar sobre o tempo; po demos conversar sobre problemas sociais; podemos conversar sobre psicolo gia; podemos conversar sobre finanças internacionais - sobre transferências de ouro nós não podemos conversar, porque são entendidas - então é sobre um assunto que ninguém conheça que podemos conversar! Não sei como eles fazem isso. Há uma forma de gelar a expressão, e ela o fez ! Ela voltou a conversar com outra pessoa. Depois de algum tempo, posso dizer que fui completamente cortado da conversação; então, levantei-me e comecei a sair. O embaixador japonês, que também estava sentado à mesa, levantou-se e veio atrás de mim. "Professor Feynman", disse-me, "há algo que gostaria de lhe falar sobre a diplomacia". Ele contou uma longa história sobre como um homem: no Japão vai para a universidade e estuda relações internacionais porque acredita que pode dar uma contribuição ao seu país. Como aluno do segundo ano, ele começa a ter uma ponta de dúvida sobre o que está aprendendo. Depois da faculdade, ele as sume o seu primeiro posto em uma embaixada e tem ainda mais dúvidas sobre o seu entendimento de diplomacia, até que finalmente percebe que ninguém co nhece nada de relações internacionais. Nesse ponto, ele se torna embaixador! - Então, professor Feynman - ele disse -, da próxima vez que o senhor der exemplos de coisas sobre as quais todo mundo fala e ninguém conhece, por favor inclua relações internacionais! Ele era um homem muito interessante, e começamos a conversar. Sem pre me interessei como os diferentes países e diferentes povos desenvol vem-se de maneira diferente. Eu disse ao embaixador que havia algo que sem pre me parecera um fenômeno notável: como o Japão desenvolvera-se tão ra pidamente, a ponto de se tornar um país tão moderno e importante no mun do. "Qual a característica e o caráter do povo japonês que tornaram possível ao Japão fazer isso?", perguntei. �
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o embaixador respondeu de uma forma que gostei de escutar: "Eu não sei", ele disse. "Eu posso supor algo, mas não sei se é verdade. O povo do Ja pão acreditava que só havia uma forma de reerguer-se: investir ainda mais na educação das suas crianças; que era muito importante para elas libertar-se da condição de camponeses e ter acesso à educação. Então, aconteceu um gran de esforço familiar para encorajar as crianças a sair-se bem na escola e seguir em frente. Por causa desta tendência em aprender coisas o tempo todo, as no vas idéias do mundo externo expandiam-se pelo sistema educacional com muita facilidade. Talvez essa seja uma das razões pelas quais o Japão se de senvolveu tão rapidamente." Ao fim de tudo, devo dizer que gostei da visita à Suécia. Em vez de voltar logo para casa, fui ao CERN, o Centro Europeu para Pesquisa Nuclear na Suíça, dar uma palestra. Apareci diante de meus colegas vestindo o terno que havia usado no Jantar do Rei - eu nunca antes havia vestido um terno para apresentar um seminário - e comecei dizendo: "Coisa engraçada, você sabe; na Suécia estávamos sentados, conversando sobre se haveria alguma mudan ça por eu ter ganho o prêmio Nobel, e na verdade acho que já percebi uma mudança: estou começando a gostar deste terno." Todo mundo diz: "Buuuu!", e Weisskopf 1evanta-se, rasga o paletó e diz: "Nós não vamos usar terno nos seminários!" Tirei meu paletó, afrouxei minha gravata e disse: "No tempo que passei na Suécia, comecei a gostar dessa coisa, mas agora que estou de volta ao mun do real, tudo voltou ao normal. Obrigado por me colocarem no caminho cer to!" Eles não queriam que eu mudasse. Assim, tudo aconteceu muito rápido; no CERN, eles desfizeram tudo o que havia sido feito na Suécia. Foi bom eu ter ganhado algum dinheiro - pude comprar uma casa de praia -, mas, no todo, acho que teria sido muito melhor não ter recebido o prêmio - porque nunca mais, nunca mais mesmo, em qualquer situação pú blica, pude ser levado em conta de forma simples e direta. De certa forma, o prêmio Nobel tem sido algo incômodo, apesar de ter havido, pelo menos, uma ocasião na qual me diverti por causa dele. Pouco de pois de eu ganhar o prêmio, eu e Gweneth recebemos um convite do governo brasileiro para sermos os convidados de honra no Carnaval no Rio. Ficamos felizes em aceitar e nos divertimos bastante. Fomos de um baile para outro e vimos novamente o grande desfile de rua que apresentava as famosas escolas de samba tocando suas maravilhosas músicas e ritmos. Fotógrafos de jornais
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e revistas estavam tirando retratos o tempo todo - "Aqui, o professor ameri cano está dançando com a Miss Brasil." Foi divertido ser uma " celebridade", mas éramos, obviamente, as celebri dades erradas. Ninguém estava muito animado com os convidados de honra daquele ano. Mais tarde, descob\-i como tinha surgido o nosso convite. Gina Lollobrigida deveria ser a convidada de honra, mas em cima da hora ela recu sou. O secretário de Turismo, que estava encarregado de organizar o Carna val, tinha alguns amigos no Centro de Pesquisa em Física que sabiam que eu havia tocado em um bloco de carnaval, e, como havia recebido recentemente o prêmio Nobel, fui notícia por um tempo. Em um momento de desespero, o secretário e seus amigos tiveram essa idéia maluca de substituir Gina Lollo brigida pelo professor de física! É desnecessário dizer que o secretário fez um trabalho tão ruim naquele Carnaval que perdeu seu cargo no governo.
Levando cultu ra aos fís icos
Nina Byers, professora da UCLA, era responsável pelo colóquio acadêmico de física no início dos anos 1 9 70. Os colóquios acadêmicos, normalmente, são um local onde os físicos de outras universidades vão e discutem assuntos puramente técnicos. Mas, em parte como resultado do clima daquela época particular, ela achava que os físicos precisavam de mais cultura. Então, pen sou em arranjar algo nessa linha: como Los Angeles fica perto do México, ela pensou em um colóquio acadêmico sobre a matemática e a astronomia dos maias - a antiga civilização do México. (Lembre-se da minha posição em relação à cultura: esse tipo de coisa me deixaria louco se fosse na minha universidade!) Ela começou a procurar um professor para ministrar uma palestra sobre o assunto e não conseguiu encontrar ninguém na UCLA que o entendesse o bastante. Ela ligou para vários lugares e, mesmo assim, não conseguiu encon trar ninguém. Aí ela lembrou-se do professor Otto Neugebauer, da Universidade Brown, o grande especialista na matemática da Babilônia.* Telefonou para ele em Rhode Island e perguntou-lhe se conhecia alguém na Costa Oeste que pudesse apresentar um seminário sobre a matemática e a astronomia maias.
*Nota do autor: Quando eu era jovem professor em ComeU, o professor Neugebauer foi até lá um ano para apresentar uma série de palestras, chamadas Messenger Lectures (Pales tras Messenger), sobre a matemática na Babilônia. As palestras foram maravilhosas. Oppenheimer apresentou uma palestra no ano seguinte. Lembro de ter pensado comigo mesmo: "Como seria bom chegar um dia e poder fazer conferências assim!" Alguns anos mais tarde, quando eu já estava recusando convites para fazer conferências em diversos lu gares' fui convidado a apresentar as Messenger Lectures em ComeU. É claro que não pude recusar, porque já tinha posto essa idéia na minha mente. Então aceitei um convite para passar o fim de semana na casa de Bob Wilson, e discutimos várias idéias. O resultado foi uma série de palestras chamada "The Character of Physical Law".
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- Sim - ele disse. - Conheço. Ele não é um antropólogo ou um historia dor profissional; é um amador. Mas, certamente, conhece muito sobre o as sunto. O nome dele é Richard Feynman. Ela quase morreu! Ela está tentando trazer alguma cultura aos físicos, e a única forma de fazê-lo é chamar um físico! O único motivo pelo qual eu sabia alguma coisa sobre a matemática dos maias era que a minha lua-de-mel no México com minha segunda esposa, Mary Lou, estava deixando-me exausto. Ela se interessava muito por história da arte, especialmente do México. Então, fomos passar a lua-de-mel no México e subimos pirâmides e descemos pirâmides; ela me fez acompanhá-la a todos os lugares. Ela me mostrou muitas coisas interessantes, como por exemplo cer tas relações nas tramas de algumas figuras, mas depois de alguns dias (e noites) de subidas e descidas nas florestas quentes e úmidas, eu estava exausto. Em alguma pequena cidade guatemalteca, no meio do nada, entramos em um museu que tinha uma caixa expondo um manuscrito cheio de símbolos es tranhos, figuras, barras e pontos. Era uma cópia (feita por um homem cha mado Villacorta) do Códice de Dresden, um livro original escrito pelos maias, que se encontra em um museu em Dresden. Eu sabia que as barras e os pontos eram números. Meu pai havia me levado à Feira Mundial de Nova York quan do eu era criança, e lá ele"s haviam reconstruído um templo maia. Lembrei-me dele contando-me como os maias haviam inventado o zero e feito muitas coi sas interessantes. O museu tinha cópias do Códice para venda, comprei uma. Em cada pági na, à esquerda, havia a cópia do Códice e, à direita, uma descrição e a tradu ção parcial para o espanhol. Adoro quebra-cabeças e códigos; então, quando vi as barras e os pontos, pensei: "Vou me divertir um pouco!" Cobri a parte em espanhol com um pe daço de papel amarelo e comecei a fazer esse jogo de decifrar as barras e os pontos dos maias, sentado no quarto do hotel, enquanto minha esposa subia e descia as pirâmides o dia todo. Logo descobri que uma barra era equivalente a cinco pontos, o qual era o símbolo para zero, e assim por diante. Levei um pouco mais de tempo para descobrir que as barras e os pontos sempre levavam a vinte da primeira vez, mas levavam a dezoito da segunda vez (fazendo ciclos de 360) . Também cal culei todo tipo de coisa envolvendo diversas particularidades: certamente, eles estavam referindo-se a dias e a semanas.
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Depois de voltarmos para casa, continuei trabalhando no Códice. No todo, é muito divertido tentar decifrar algo assim, porque, quando você co meça, não sabe nada - não tem pista alguma para seguir. Mas, então, você nota certos números que aparecem com freqüência e os adiciona a outros nú meros, e assim por diante. Havia uma parte no Códice na qual o número 584 era muito proeminente. Esse 584 era dividido em períodos de 236, 90, 250 e 8.* Outro número proe minente era 2.920, ou 584 x 5 (também 365 x 8) . Havia uma tabela de múlti plos de 2.920 até 1 3 x 2.920; depois havia múltiplos de 1 3 x 2.920 por um certo tempo e depois - números interessantes! Até onde pude perceber, trata va- se de erros. Só muitos anos depois descobri o que eram. Como os números que indicavam os dias estavam associados a esse 584, que era dividido de forma tão peculiar, imaginei se não seria algum tipo de pe ríodo mítico; podia ser alguma coisa relacionada à astronomia. Por fim, fui à biblioteca de astronomia, dei uma olhada e descobri que 583,92 dias é o pe� ríodo de Vênus visto da Terra. Aí 0 236, 90, 250, 8 ficaram claros : deviam ser as fases da passagem de Vênus. Vênus é inicialmente uma estrela matutina;** logo, não pode ser observada quando fica no lado mais distante do Sol; de pois, vira uma estrela noturna e, por fim, desaparece novamente (fica entre a Terra e o Sol) . O 90 e o 8 são diferentes porque Vênus se move mais lenta mente pelo céu quando está no lado mais distante do Sol, quando comparado com a situação em que fica entre a Terra e o Sol. A diferença entre o 236 e o 250 poderia indicar uma diferença entre os horizontes do Leste e do Oeste na terra dos maias. Descobri outra tabela que tinha períodos de 1 1 .959 dias, que mostrou-se ser uma tabela para prever os eclipses lunares. Ainda uma outra tabela conti nha múltiplos de 9 1 em ordem decrescente. Nunca, realmente, descobri o que era (nem ninguém mais) . Quando já tinha feito o máximo que podia, finalmente resolvi dar uma olhada no comentário em espanhol para ver o quanto eu tinha conseguido descobrir. O comentário era completamente sem sentido. Esse símbolo era
*Nota do Tradutor: Isto é, 2 3 6 + 9 0 + 25 0 + 8 = 584. **Nota do Tradutor: Vênus, na verdade, é um planeta que os antigos confundiam com uma estrela. É comum referir-se a este planeta como "Estrela da Manhã" ou "Estrela Ma tutina".
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Saturno, esse símbolo era um deus - não fazia o menor sentido. Logo, eu não precisava ter coberto o comentário; de qualquer forma, não teria aprendido nada com ele. Depois disso, comecei a ler muito sobre os maias e descobri que o grande entendido era Eric Thompson,..de quem agora tenho alguns livros. Quando Nina Byers ligou-me, vi que tinha perdido minha cópia do Códi ce de Dresden. (Eu o havia emprestado à Sra. H. P. Robertson, que havia en contrado um códice maia em um velho baú de um antiquário em Paris. Ela o trouxera até Pasadena para que eu pudesse dar uma olhada nele - ainda re cordo estar dirigindo rumo a casa com ele no banco da frente do meu carro, e pensando: "Preciso tomar cuidado na direção: tenho esse novo códice" - mas assim que o examinei com cuidado, pude perceber, imediatamente, que era uma completa farsa. Depois de um pouco de trabalho, consegui descobrir de que lugar do Códice de Dresden cada figura do novo códice tinha vindo. Aí emprestei meu livro para que ela o examinasse, e acabei esquecendo que ele tinha ficado com ela.) Assim, os bibliotecários da VCLA tiveram muito traba lho para encontrar outra cópia da tradução do Códice de Dresden feita por Villacorta, mas a emprestaram para mim. Refiz todos os cálculos e, na verdade, consegui ir um pouco além do que eu havia conseguido: descobri que aqueles "números interessantes" que eu antes achava que eram erros eram, na verdade, múltiplos inteiros de algo pró ximo ao período correto (583,923) - os maias haviam percebido que 584 não estava exatamente certo!* Depois do colóquio acadêmico na VCLA, a professora Byers presente ou·me com algumas belas reproduções coloridas do Códice de Dresden.
* Enquanto eu estudava essa tabela de correções para o período de Vênus, descobri um raro exagero do Sr. Thompson. Ele escreveu que, olhando para a tabela, se pode deduzir como os maias calculavam o período correto de Vênus - use esse número quatro vezes e a diferença uma vez, e você chega à precisão de um dia em 4.000 anos, o que é bastante notável, especialmente porque os maias observaram Vênus por apenas algumas centenas de anos. Thompson teve a sorte de pegar uma combinação que cabia no que ele pensava ser o período certo para Vênus, 583,92. Mas quando se coloca em um número mais exato, as sim como 583,923, você descobre que os maias estavam um pouco mais errados. É claro, ao escolher uma combinação diferente, pode-se chegar aos números da tabela para conse guir 583,923 com a mesma precisão notável!
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o SENHOR ESTÁ BRINCANOO, SR. FEYNMAN!
Alguns meses depois, o Caltech quis que eu apresentasse o mesmo colóquio para uma audiência em Pasadena. Robert Rowan, homem do ramo imobiliá rio, emprestou-me algumas esculturas em pedra, muito valiosas, dos deuses maias e figuras de cerâmica para o colóquio no Caltech. Provavelmente, era ilegal retirar peças desse tipo do México, e elas eram tão valiosas que contra tamos guardas de segurança para protegê-las. Alguns dias antes do colóquio no Caltech, fez-se um grande estardalhaço no New York Times, com reportagens afirmando que havia sido descoberto um novo códice. Havia apenas três códices (sendo que é muito difícil extrair qualquer coisa de dois deles) de que se tinha notícia da existência naquela época - milhares haviam sido queimados pelos padres espanhóis como "obras do Demônio" . Minha prima trabalhava na AP, e forneceu-me uma có pia fotográfica do que o New York Times havia publicado, e fiz um slide dela para incluir em minha palestra. Este novo códice era uma farsa. No meu colóquio, mostrei que os nú meros eram no estilo do Códice de Madrix, mas eram 236, 90, 250, 8 - mui ta coincidência! Conseguimos outro fragmento dos milhares de livros origi nalmente feitos, e este fragmento apresenta a mesma coisa que os outros frag mentos! Obviamente, não passava, mais uma vez, de uma reunião de várias coisas que não trazia nada de original. Essas pessoas que fazem cópias de coisas nunca têm coragem de criar algo realmente diferente. Se você descobre l!lgo que é realmente novo, elepre cisa exibir alguma coisa diferente. Seria uma verdadeira fraude tomar algo, como por exemplo, o período de Marte, inventar uma mitologia relacionada com ele e depois fazer desenhos relacionados com essa mitologia com núme ros apropriados para Marte - não de forma óbvia; ao contrário, ter tabelas de múltiplos do período com alguns "erros" misteriosos, e coisas assim. Os nú meros precisariam ser trabalhados um pouco. Então, as pessoas diriam: "Nossa! Isso tem a ver com Marte!" Além disso, haveria uma porção de coisas nele que não daria para entender e não seria exatamente igual ao que já havia sido visto. Isso seria uma boa farsa. Tive muito prazer em dar minha palestra sobre " Decifrando os Hieró glifos Maias". Lá estava eu, sendo algo que não sou, mais uma vez. As pes soas, em fila no auditório, passavam por essas caixas de vidro, admirando as reproduções coloridas do Códice de Dresden e os autênticos artefatos maias, vigiadas por um guarda armado uniformizado; elas ouviram uma pa-
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lestra de duas horas sobre a matemática e a astronomia dos maias dada por um especialista amador na área (que chegou a contar a elas como reconhe cer um códice falso) , e depois foram embora, admirando as caixas mais uma vez. Murray Gell-Mann contra-atacou nas semanas seguintes, apresentan do uma bela série de palestras stlbre as relações lingüísticas de todas as lín guas do mundo.
Desmascarados em Paris
Ministrei uma série de aulas sobre física que a editora Addison -Wesley trans formou em um livro.* Uma vez, durante o almoço, estávamos discutindo so bre como deveria ser a capa desse livro. Eu achava que, como as aulas eram uma combinação de mundo real e da matemática, seria uma boa idéia ter uma foto de um tambor e, em cima dele, alguns diagramas matemáticos - círculos e linhas para as protuberâncias do couro do tambor em oscilação, que eram discutidas no livro. O livro saiu com uma capa lisa, vermelha, mas, por algum motivo, no pre fácio havia uma foto minha tocando tambor. Acho que eles puseram a foto para satisfazer a idéia que eles puseram na cabeça: a de que "o autor quer um tambor em algum lugar". De qualquer forma, todo mundo imagina o porquê daquela minha fotografia tocando tambor estar no prefácio das Feynman Lec tures, porque não há diagrama algum nela ou qualquer outra coisa que a ex plique. (É verdade que gosto de tocar tambor, mas isso é outra história.) Em Los Alamos, as coisas eram bastante tensas por causa do trabalho e não havia como se divertir: não havia cinemas ou coisas do tipo. Mas descobri alguns tambores que a escola para meninos, que antes funcionava lá, havia coletado: Los Alamos ficava no meio do Novo México, onde há muitas vilas indígenas. Então eu me distraía - às vezes sozinho, às vezes com outra pessoa - simplesmente fazendo barulho, tocando esses tambores. Não conheço ne nhum ritmo em especial, mas os ritmos dos índios eram muito simples, os tambores eram bons e eu me divertia.
*Nota do Tradutor: A editora Addison -Wesley publicou essas aulas em três volumes, com o titulo: The Feynman Lectures on Physics. Os volumes foram na verdade escritos por
� athews Sand e Robert Leighton, a partir de fitas de áudio contendo as aulas gravadas do
autor. Hoje esses volumes fazem parte da biblioteca pessoal de inúmeros professores de fí sica universitária.
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Às vezes, eu levava os tambores comigo para a floresta, a uma certa dis tância para não perturbar ninguém, batia neles com um graveto e cantava. Lembro de uma noite, eu dando voltas ao redor de uma árvore, observando a Lua e batendo tambor, fingindo que era um índio. Um dia, um rapaz me disse: 'Wocê não estava na floresta batendo tambor perto do Dia de Ação de Graças, estava?" - Sim, estava - eu disse. - Ah! Então minha esposa tinha razão! - Aí ele me contou a história: U ma noite, ele ouviu umas batidas de tambor ao longe e foi até o outro su jeito que morava na casa de dois andares com eles, que também tinha ouvido. Não se esqueça que todas essas pessoas eram do Leste. Elas não sabiam nada sobre índios e ficaram muito interessadas: os índios deviam estar fazendo al gum tipo de cerimônia, ou algo excitante, e aí os dois decidiram sair e ver o que estava acontecendo. Enquanto caminhavam, à medida que se aproximavam, o som ficava mais alto, e eles começaram a ficar nervosos. Eles se deram conta de que os índios, provavelmente, tinham sentinelas vigiando para que ninguém perturbasse a cerimônia. Então deitaram-se de barriga no chão e rastejaram pelo caminho até ouvirem o som vindo aparentemente na próxima colina. Eles subiram a colina rastejando e descobriram, para surpresa deles, que era apenas um ín dio, fazendo a cerimônia completamente só - dançando ao redor de uma ár vore, batendo o tambor com um graveto, cantando. Os dois afastaram-se dele bem devagar, porque não queriam perturbá-lo: provavelmente, ele estava fa zendo algum tipo de feitiçaria ou algo assim. Os dois contaram às suas esposas o que tinham visto, e elas disseram: "Ah, deve ter sido Feynman - ele gosta de tocar tambor." - Não sejam ridículas! - os homens disseram. - Nem Feynman seria tão louco! Na semana seguinte, eles procuraram descobrir quem era o índio. Havia ín dios das reservas próximas trabalhando em Los Alamos, e eles perguntaram a um deles, que era da área técnica, quem poderia ser. O índio perguntou por ali, mas nenhum dos outros índios sabia quem poderia ter sido, exceto por um índio com quem ninguém podia conversar. Ele era um índio que conhecia sua raça: ele ti nha duas tranças até as costas e a cabeça erguida; sempre que andava, onde quer que fosse, o fazia com dignidade, sozinho; e ninguém podia falar com ele. Você ficaria com medo de aproximar-se dele e perguntar-lhe alguma coisa; ele tinha
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muita dignidade. Ele trabalhava no fomo. Assim, ninguém jamais teve coragem para perguntar a esse índio, e decidiram que devia ter sido ele. (Fiquei feliz em sa ber que haviam descoberto o índio tão típico, tão maravilhoso que eu poderia ter sido. Era uma honra ser confundido com esse homem.) O sujeito que estava conversando comigo, por via das dúvidas, estava só verificando - os maridos sempre gostam de provar que suas mulheres estão erradas - e descobriu, como geralmente acontece com os maridos, que a sua mulher estava com a razão. Quando a guerra terminou e estávamos voltando para a "civilização", as pessoas em Los Alamos troçaram de mim dizendo que eu nunca mais conse guiria tocar de novo porque fazia muito barulho. E como estava tentando vi rar um nobre professor em Ithaca, vendi o tambor que havia comprado en quanto estava em Los Alamos. No verão seguinte, voltei ao Novo México para fazer um relatório e, quando vi os tambores novamente, não pude resistir. Comprei outro tambor, e pensei: "Desta vez só vou levá -10 comigo para que eu possa olhar para ele." Naquele ano, em ComeU, eu morava em um pequeno quarto em uma casa grande. Estava lá com o tambor, só para olhar, mas um dia não consegui re sistir e disse: "Bem, vou tocar bem baixinho . . . " Sentei-me em uma cadeira, coloquei o tambor entre as pernas e batuquei um pouco com os meus dedos: pá, pá, pá, pará pá. Depois um pouco mais alto - afinal, ele estava me tentando! Toquei um pouco mais alto e TRRIIM! - o te lefone tocou. - Alô? - Aqui é a sua senhoria. O senhor está tocando tambor? - Sim; eu es ... - O som está tão bom. Será que e u poderia descer para ouvir mais de perto? A partir de então, a senhoria sempre descia quando eu começava a tocar o tambor. Aquilo era liberdade, sem dúvida! Depois disso, comecei a diver tir-me bastante tocando meu tambor. Por essa época, conheci uma senhora do Congo Belga* que me deu al guns discos étnicos. Eram raros discos como esse, com música de tambor dos
*Nota do Tradutor: Atualmente, Zaire.
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Watusi e outras tribos da África. Eu realmente admirava muito, muito mes mo, os percussionistas de Watusi e tentava imitá-los - não com muita preci são, mas só para fazer um som parecido com o deles - e, como resultado, de senvolvi uma porção de ritmos. Uma vez, eu estava na sala de re�reação, tarde da noite, quando não havia muita gente; peguei um cesto de lixo e comecei a batucar no fundo dele. Alguém lá embaixo subiu correndo e disse: "Ei! Você toca tambor!" Acontece que ele realmente sabia tocar tambor e me ensinou a tocar bongô. Havia um sujeito no departamento de música que possuía uma coleção de música africana, e eu ia à casa dele e tocava tambor. Ele gravou e depois, nas festas dele, fazia um jogo chamado "África ou Ithaca?", no qual ele tocava al gumas fitas de música de tambor, e a idéia era adivinhar se o que se estava ou vindo havia sido produzido no continente africano ou localmente. Naquela época, eu devia ser bastante bom na imitação da música africana. Quando vim para o Caltech, eu costumava ir muito ao Sunset Strip. Uma vez, havia um grupo de percussionistas liderados por um músico enorme, da Nigéria, chamado Ukonu, tocando aquela maravilhosa música de tambor só percussão - em um dos clubes noturnos. Um outro componente do grupo, que foi bastante simpático comigo, convidou-me para subir ao palco com eles e tocar um pouco. Então, subi com os outros rapazes e toquei um pouco de tambor com eles. Perguntei então se Ukonu dava aulas, e ele disse que sim. Assim, comecei a ir à casa de Ukonu, perto do Center Boulevard (onde mais tarde ocorreu o distúrbio de Watts) para ter aulas de tambor. As aulas não eram muito eficien tes : ele enrolava, conversava com as outras pessoas e era interrompido por todo esse tipo de coisa. Mas, quando estavam trabalhando, era muito emocio nante, e eu aprendi muito com ele. Nos bailes perto da casa de Ukonu havia poucos brancos, mas era muito mais tranqüilo do que hoje em dia. Uma vez, fizeram um concurso de percus são, e não me saí muito bem: eles disseram que minha forma de tocar era "muito intelectual"; a deles era muito mais emoção. Um dia, quando estava no Caltech, recebi uma ligação telefônica muito séria. - Alô. -Aqui é o Sr. Trowbridge, Mestre da Escola Politécnica. -A Escola Politécnica era uma escola pequena, particular, que ficava do outro lado da rua
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em frente ao Caltech, em diagonal. O Sr. Trowbridge continuou em seu tom formal: -Tenho um amigo do senhor aqui comigo que gostaria de lhe falar. - Certo. - Oi, Dick! - Era Ukonu! Acontece que o Mestre da Escola Politécnica não era tão formal quanto estava querendo parecer e tinha um grande senso de humor. Ukonu estava visitando a escola para tocar para as crianças; então, convidou-me para ir até lá e subir ao palco, para tocar com ele. Nós tocamos juntos para as crianças: toquei bongô (que eu tinha no meu escritório) contra o grande tambor surdo dele. Ukonu tinha um hábito: ele costumava ir a diversas escolas falar sobre os tambores africanos e o que eles significavam, e falava sobre a música. Ele tinha uma grande personalidade e um sorriso aberto; era um sujeito muito, muito agradável. Era simplesmente sensacional com os tambores - já havia gravado discos - e estava aqui estudando medicina. Ele voltou para a Nigé ria quando a guerra lá começou - ou antes da guerra - e não sei o que foi fei to dele. Depois que Ukonu partiu, não toquei mais muito tambor, exceto em festas, de vez em quando, para me divertir um pouco. Uma vez, eu estava em um jantar na casa de Leighton, quando o ftlho de Bob, Ralph, e um amigo pediram-me para fazer um solo; recusei. Mas aí eles começaram a batucar em algumas mesas de madeira e não pude resistir: peguei uma mesa também e nós três tocamos nessas mesinhas de �adeira, que faziam uma porção de sons interessantes. Ralph e seu amigo, Tom Rutishauser, gostavam de tocar bateria, e come çamos a nos encontrar toda semana só pelo prazer de criar ritmos e mexer com essas coisas. Eles dois eram músicos de verdade: Ralph tocava piano e Tom, violoncelo. Tudo que eu tinha feito eram ritmos, e eu não sabia nada de música, que, até onde sei, era só tocar tambor com notas. Mas ftzemos um belo som e tocamos algumas vezes em escolas para entreter as crianças. Tam bém marcávamos o ritmo para uma aula de dança na faculdade local - algo que descobri ser divertido de se fazer quando trabalhei um tempo em Brook haven - e nós nos chamávamos Os Três Quarks. Daí dá para imaginar quando isso aconteceu. Uma vez, fui a Vancouver fazer uma apresentação para os estudantes, e eles ftzeram uma festa com uma banda de verdade, excelente, tipo rock, to cando no porão. A banda era muito boa: eles tinham um agogô extra e me in centivaram a tocá-lo. Comecei a tocar um pouco e, como a música deles era
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muito rítmica (e o agogô é só um acompanhamento - não dá para causar mui tos danos) , eu me saí muito bem. Depois de acabada a festa, o rapaz que a havia organizado contou-me que o líder da banda havia dito: "Nossa! Quem é aquele cara que chegou e tocou o ago gô! Ele realmente consegue arrasar cQ.m aquilo! E por falar nisso, aquele figurão para quem era a festa -você sabe -ele não apareceu aqui; não vi quem ele era!" De qualquer forma, no Caltech há um grupo que monta peças. Alguns dos atores são estudantes do Caltech; outros são de fora. Quando sobra al gum papel pequeno, como, por exemplo, um guarda que deve prender al guém, eles chamam um dos professores para fazê-lo. É sempre uma grande piada - o professor chega e prende alguém, e sai de cena de novo. Alguns anos atrás, um grupo estava ensaiando Guys and Dolls e havia uma cena na qual o personagem principal leva a menina para Havana e eles estão em uma boate. O diretor achou que seria uma boa idéia que o tocador de bongô da boate fosse eu. Fui ao primeiro ensaio, e a senhora que estava dirigindo o show apontou para o maestro e disse: "Jack vai lhe mostrar a música." Bem, aquilo me deixou petrificado. Não sei ler música; achei que só preci saya ficar lá no palco e fazer barulho. Jack estava sentado ao piano e apontou para a partitura e disse: "Tudo bem, você entra aqui, está vendo?, e faz isso. Aí toco panan, panan, panan " ele tocou algumas notas no piano. Ele virou a página. "Depois você toca isso e nós dois damos uma pausa para uma fala, está vendo, aqui" - e ele virou mais algumas páginas e disse: "Por fim, você toca isso." Ele mostrou-me aquela "música" que estava escrita em uma forma malu ca de padrão de pequenos xs nas barras e nas linhas. Ele continuou a falar toda aquela baboseira, pensando que eu fosse músico, e não consegui lembrar de nada. Felizmente, fiquei doente no dia seguinte e não pude comparecer ao ou tro ensaio. Pedi ao meu amigo Ralph para ir em meu lugar, e, como ele é músi co, ele deveria saber do que se tratava. Ralph voltou e disse: "Não é tão mau. Primeiro, bem no começo, você precisa fazer alguma coisa bem exata porque você está dando início ao ritmo para o resto da orquestra, que vai segui-lo. Mas depois de a orquestra entrar, é uma questão de se divertir, e haverá mo mentos nos quais você terá de parar para alguma fala, mas eu acho que conse guiremos descobrir quando, por causa das deixas do maestro."
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Nesse meio-tempo, consegui que a diretora aceitasse o Ralph também; então, estaríamos os dois no palco. Ele tocaria tuba e eu bongô - assim ficou muitíssimo mais fácil para mim. Então, Ralph mostrou-me como era o ritmo. Deveria ser de apenas cerca de vinte ou trinta batidas, mas não podia passar disso. Nunca tinha precisado tocar nada assim, e foi muito difícil conseguir fazê-lo direito. Ralph explica va-me com paciência, "mão esquerda e mão direita, duas mãos esquerdas, depois a direita... " . Dei muito duro e, finalmente, muito devagar, comecei a pegar o ritmo certinho. Levou uma infinidade de tempo - muitos dias - para conseguir fazer corretamente. Uma semana depois, fomos ao ensaio e descobrimos que havia um novo baterista - o baterista habitual havia largado a banda para fazer outra coisa - e nos apresentamos a ele: - Oi. Somos os caras que vão ficar no palco para a cena em Havana. - Ah, oi. Deixa eu encontrar a cena aqui... - e ele abriu a página na qual estava nossa cena, pegou sua baqueta e disse: "Ah, vocês começam a cena com ... ", e batendo a baqueta no lado do tambor ele toca, pá, pá-pá, pá-rá-pá, pá-rá-pá, tan, tan a toda velocidade, enquanto olhava a partitura! Que cho que foi para mim. Eu tinha trabalhado quatro dias para tentar pegar o diabo do ritmo, e ele conseguia tamborilar ali, na hora! De qualquer forma, depois de treinar de novo e de novo, finalmente con segui pegar o jeito e toquei no show. Fez bastante sucesso: todo mundo estava surpreso em ver o professor no palco tocando o bongô, e que a música não fosse de todo ruim; em cáda apresentação, a parte improvisada era diferente, era fácil, mas a parte do começo, que precisava ser sempre a mesma, essa era difícil. Na cena da boate em Havana, alguns estudantes precisavam fazer um tipo de dança que devia ser coreografada. Então, a diretora chamou a esposa de um dos caras do Caltech, que era uma coreógrafa que estava trabalhando para a Universal Studios, para ensinar os rapazes a dançar. Ela gostou da nos sa batucada e, quando as apresentações acabaram, perguntou-nos se gosta ríamos de tocar percussão em San Francisco para um balé. - O quê? Sim. Ela ia para San Francisco e estava fazendo a coreografia de uma dança para uma pequena escol� de balé de lá. Tinha idéia de criar um balé no qual a música não fosse nada além de percussão, e queria que eu e Ralph fôs-
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semos à casa dela antes de se mudar e tocássemos os diferentes ritmos que co nhecíamos. Ela criaria, a partir do que tocássemos, uma história que acompa nhasse os ritmos. Ralph tinha algumas dúvidas, mas eu o encorajei a ir adiante com essa aventura. Insisti, no entanto, que ela não contasse a ninguém que eu era pro fessor de física, ganhador do prêmio Nobel ou qualquer outra baboseira. Não queria tocar se fosse porque, como disse Samuel J ohnson, "Se você vir um ca chorro andando nas patas traseiras, tanto faz se ele faz isso bem ou não, o que importa é que ele consegue fazê-lo". Não queria fazê-lo como um professor que consegue tocar; éramos apenas alguns músicos, que ela havia descoberto em Los Angeles, que iriam tocar aquela música de percussão que eles haviam composto. Fomos à casa dela e tocamos diversos ritmos que havíamos criado. To camos todos os ritmos por alguns minutos, e, então, Ralph fez alguns cor tes e emendas com seu gravador para obter a duração exata. Ela levou uma cópia da fita quando se mudou e começou a ensaiar as bailarinas em San Francisco. Enquanto isso, precisávamos ensaiar o que estava naquela fita: cinqüenta e dois ciclos disso, quarenta ciclos daquilo e assim por diante. O que havía mos feito espontaneamente (e editado) antes tínhamos de aprender agora com exatidão. Precisávamos imitar nossa bendita fita! O grande problema era a marcação. Eu achava que Ralph saberia como fazê-la, porque ele é músico, mas descobrimos uma coisa engraçada. O de partamento "executar a música" nas nossas mentes também era o departa mento "marcação" - nós não conseguíamos tocar e marcar o tempo ao mes mo tempo! Quando fizemos o nosso primeiro ensaio em San Francisco, descobrimos que, se observássemos as bailarinas, não precisaríamos marcar, porque elas seguiam determinados movimentos. Aconteceu-nos uma porção de coisas, porque devíamos ser músicos pro fissionais, mas eu não o era. Por exemplo, uma das cenas era sobre uma pe dinte que peneira a areia em uma praia do Caribe, onde as senhoras da socie dade, que saíram no começo do balé, haviam estado. A música que a coreó grafa havia usado para criar esta cena era feita com um tambor especial que Ralph e seu pai tinham construído alguns anos antes, de forma bastante ama dorística, e do qual nunca havíamos conseguido tirar um bom som. Mas des-
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cobrimos que, se sentássemos de frente um para o outro e colocássemos esse "tambor maluco" entre nós, sobre nossos joelhos, com um batendo badá-ba dá-badá-badá-badá bem rápido com dois dedos, constantemente, o outro po deria percutir no tambor com as mãos em diferentes lugares e mudar o tom. Agora ficou booda-booda-booda-bidda-beeda-beeda-beeda-bidda-booda-b00da-booda-badda-bidda-bidda-bidda-badda, criando uma porção de sons in teressantes. Bem, a bailarina que fazia a pedinte queria que os altos e baixos coincidis sem com a sua dança (nossa fita tinha sido gravada, arbitrariamente, para esta cena) . Então, ela começou a explicar o que faria: "Primeiro, faço quatro des ses movimentos dessa forma; depois, abaixo-me e peneiro a areia dessa for ma, em oito tempos ; depois, levanto e viro desse jeito." Eu sabia muito bem que não poderia acompanhar aquilo; então, interrompi-a e disse: - Vá em frente e dance, nós acompanhamos. - Mas você não quer saber como a dança continua? Veja bem, depois de eu terminar a segunda parte do ato de peneirar, faço dessa forma por oito tempos. - Era inútil; eu não conseguia lembrar-me de nada e queria inter rompê-la de novo, mas aí vinha o problema: ia dar a impressão de que eu não era um músico de verdade! Bem, Ralph me tirou dessa muito bem, explicando: "O Sr. Feynman tem uma técnica especial para esse tipo de situação: ele prefere desenvolver a di nâmica direta e intuitivamente, enquanto vê você dançar. Vamos tentar uma vez dessa forma e, se você não ficar satisfeita, podemos corrigir." Ela era uma bailarina de primeira, e podia-se prever o que ela faria. Se ela fosse cavar na areia, ela preparava-se para abaixar-se na areia; todo movimen to era suave e esperado; então, foi muito fácil fazer os bzzzzs e bshshs e boodas e biddas com minhas mãos, bem de acordo com o que ela estava fazendo, e ela ficou satisfeita. Assim, conseguimos passar ilesos por aquela situação na qual nossas máscaras poderiam ter caído. O balé fez um relativo sucesso. Apesar de não ter contado com um grande público, as pessoas que vieram assistir à apresentação gostaram muito. Antes de irmos para San Francisco, para os ensaios e para as apresenta ções, não tínhamos muita noção sobre a idéia toda. Quero dizer, nós acháva mos que a coreógrafa era maluca: primeiro, o balé era feito só com percussão; em segundo lugar, era realmente uma coisa de louco que nós fôssemos bons o bastante para fazer música para um balé e recebermos por isso! Para mim, que
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nunca tinha tido "cultura", acabar como músico profissional em um balé seria o máximo da realização, como foi. Não pensamos que ela fosse capaz de encontrar bailarinos que quisessem dançar nossa música. (Na verdade, havia uma prima-dona brasileira, esposa do cônsul português, que achou �ue estava abaixo do nível dela dançar essa música.) Mas os outros bailarinos pareceram gostar muito, e meu coração fi cou em paz quando tocamos para eles a primeira vez no ensaio. O prazer que eles sentiram quando ouviram como nosso ritmo realmente soava (até então eles estavam usando a fita gravada) foi genuíno, e fiquei muito mais confiante quando vi como eles reagiram à nossa performance ao vivo. E, com os comen tários das pessoas que tinham vindo assistir às apresentações, vimos que éra mos um sucesso. A coreógrafa quis criar outro balé para nossa percussão na primavera seguinte, e então seguimos as mesmas etapas . Preparamos uma fita com mais alguns ritmos, e ela criou outra história que, desta vez, se passava na África. Falei com o professor Munger, no Caltech, e ele me deu algumas frases africanas de verdade para eu cantar na abertura (GAwa baNYUma GAwa WO ou qualquer coisa que o valha) , e ensaiei até conseguir fazer tudo certo. Depois, fomos a San Francisco para alguns ensaios. Assim que chegamos lá descobrimos que eles estavam com um problema. Não conseguiam imagi nar como fazer as presas de elefante parecerem bem no palco. As que haviam feito em papel machê ficaram tão ruins que alguns bailarinos ficaram sem graça de dançar em frente a elas. Não apresentamos solução alguma, pelo contrário, esperamos para ver o que aconteceria quando chegasse a hora das apresentações no fim de semana seguinte. Combinei uma visita a Werner Erhard, que eu havia conhecido ao participar de algumas conferências que ele havia organizado. Eu estava na sua bela casa, ouvindo alguma filosofia ou idéia que ele tentava me explicar, quando, de repente, fiquei paralisado. - Qual o problema? - ele perguntou. Meus olhos se arregalaram enquanto eu gritava: "Presas! " Atrás dele, no chão, estavam aquelas enormes, maciças, lindas presas de marfim! Ele nos emprestou as presas. Elas ficaram muito bem no palco (para grande alívio dos dançarinos) : verdadeiras presas de elefante, tamanhogigan te, cort,esia de Werner Erhard.
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A coreógrafa mudou-se para a Costa Oeste 'e montou seu balé caribenho lá. Depois soubemos que ela inscreveu aquele balé em um concurso para co reógrafos de todos os Estados Unidos e acabou em primeiro ou segundo 11\ gar. Encorajada por esse sucesso, entrou em outra competição, desta vez em Paris, para coreógrafos do mundo todo. Ela levou uma fita de alta qualidade que havíamos gravado em San Francisco e treinou alguns dançarinos, lá na França, para executarem uma pequena parte do balé - foi assim que ela en trou no concurso. Ela saiu-se muito bem. Chegou às finais, que tinham apenas dois grupos - um grupo da Letônia que estava apresentando um balé padrão, com seus dançarinos de sempre, para uma bela música clássica, e um solo da América, com apenas dois dançarinos, que ela havia treinado na França, dançando um balé que não tinha nada além de nossa música de percussão. Ela era a favorita do público, mas não era um concurso de popularidade, e os juízes decidiram que o grupo da Letônia havia ganhado. Mais tarde, ela foi aos juízes para saber quais as falhas de seu balé. - Bem, madame, a música não foi muito satisfatória. Não foi sutil o bas tante. Faltaram crescendos controlados ... Assim fomos, finalmente, desmascarados: quando chegamos a algumas pessoas em Paris que realmente tinham cultura, que conheciam música de percussão, nos saímos mal.
Estados alterados
Eu costumava apresentar uma palestra toda quarta-feira na Hughes Aircrafts e, um dia, cheguei um pouco antes da hora. Eu estava paquerando a recepcio nista, como sempre, quando cerca de doze pessoas chegaram - um homem, uma mulher e alguns outros. Nunca os havia visto antes. O homem disse: " É aqui que o professor Feynman vai apresentar uma palestra?" - Sim, é aqui - respondeu a recepcionista. O homem pergunta se o grupo dele pode assistir a palestra. - Eu não creio que o senhor vá gostar muito - digo. - Elas são bastante técnicas. Logo a mulher, que era bastante perspicaz, percebeu: "Aposto que o se nhor é o professor Feynman!" Acontece que o homem era John Lil1y, que já havia trabalhado com golfi nhos. Ele e sua esposa estavam fazendo uma pesquisa sobre privação dos sen tidos e haviam construído alguns tanques. - Não é verdade que as pessoas têm alucinações nessas circunstâncias? perguntei, todo animado. Sempre tive essa fascinação pelas imagens dos sonhos e outras imagens que chegam à mente sem uma fonte sensorial direta, como isso funciona den tro da nossa cabeça, e eu queria experimentar alucinações. Uma vez, cheguei a pensar em tomar drogas, mas fiquei com medo: adoro pensar e não quero estragar a máquina. Mas parecia-me que simplesmente deitar em um tanque de privação dos sentidos não traria riscos psicológicos, e por isso fiquei muito animado em fazer o teste. Rapidamente aceitei o convite de Lilly para usar os tanques, um convite muito gentil de sua parte, e eles vieram ouvir a palestra com seu grupo. Na semana seguinte, fui testar os tanques. O Sr. Lil1y mostrou-me os tan ques, como deve ter feito com outras pessoas. Havia muitas lâmpadas, pareci das com luzes de néon, mas de diferentes gases. Ele mostrou-me a Tabela Pe-
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riódica e falou uma porção de invencionices sobre os diferentes tipos de luz que apresentam diferentes tipos de influência. Ele me falou em como prepa rar-me para entrar no tanque mirando-me no espelho, com o nariz encostado nele - todo tipo de coisa esquisita, todo tipo de energia. Não prestei atenção alguma à energia, mas fiz tudo, porque queria entrar nos tanques e também achei que talvez essa preparação pudesse facilitar as alucinações. Então fiz tudo como ele disse. A única coisa difícil foi escolher a cor da luz que eu que ria, principalmente porque o interior do tanque deveria ficar escuro. Um tanque de privação dos sentidos é como se fosse uma grande banhei ra, mas com uma tampa por cima. O seu interior é completamente escuro e, como a tampa é selada, não há som algum. Há uma pequena bomba que bom beia o ar para dentro do tanque, mas você não precisa se preocupar com isso porque o volume de ar é bem grande e você só fica lá dentro por umas duas ou três horas e, na verdade, não se consome muito ar quando se respira normal mente. O Sr. Li11y disse que as bombas serviam para tranqüilizar as pessoas; então, imaginei que fosse meramente psicológico e pedi que desligassem as bombas, porque elas faziam um pouco de barulho. A água no tanque tem sais de Epsom para torná-la mais densa do que a água normal, ficando assim fácil flutuar nela. A temperatura é mantida igual à temperatura do corpo, ou seja, 3 4 graus, ou coisa assim - ele tinha tudo calculado. Não deveria haver luz, barulho algum, qualquer sensação de tem peratura' nada! De vez em quando, pode-se flutuar para o lado e dar uma batidinha na parede do tanque, ou, por causa da condensação na tampa do tanque, uma gota de água pode cair, mas essas pequenas perturbações eram muito raras. Devo ter ido lá uma dúzia de vezes, passando a cada vez cerca de duas ho ras e meia no tanque. Na primeira vez, não tive alucinação alguma, mas, de pois de já ter experimentado o tanque, o casal Lilly me apresentou a um ho mem que se dizia médico e que falou-me a respeito de uma droga chamada cetamina, utilizada como anestésico. Sempre me interessei por questões rela tivas ao que acontece quando uma pessoa dorme, ou o que acontece quando se desmaia de exaustão; assim, eles me mostraram as bulas que vinham com o remédio e ministraram-me um décimo da dose normal. Fiquei com aquela estranha sensação que nunca consigo entender quando tento explicar qual foi o efeito. Por exemplo, a droga afetou bastante a minha visão: senti que não podia enxergar com clareza. Mas quando eu
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olhavafixo para alguma coisa, ficava tudo bem. Era como se você não se im portasse em olhar para as coisas; você está olhando sem atenção, sentindo uma espécie de tontura, mas, assim que olha e se concentra, tudo fica bem, pelo menos por um instante. Peguei um livro que eles tinham sobre química orgânica e olhei uma tabela cheia de substâncias complexas e, para minha surpresa, consegui lê-las. Fiz uma porção de outras coisas, como mover minhas mãos em direção uma à outra, a uma certa distância, para ver se meus dedos se tocariam. Ape sar de estar me sentindo completamente desorientado, completamente inca paz de fazer praticamente qualquer coisa, nunca descobri nada que não fosse capaz de fazer. Como disse antes, na primeira vez que entrei no tanque não tive alucina ção alguma e, na segunda vez, também. Mas o casal Lilly era muito interes sante; eu gostava muito deles, muito mesmo. Muitas vezes davam-me o almo ço e coisas assim e, depois de um tempo, discutíamos assuntos em um nível diferente daquelas coisas sobre luzes. Descobri que algumas pessoas tinham achado o tanque de privação dos sentidos bastante aterrador, mas para mim era uma invenção bastante interessante. Eu não estava com medo porque sa bia o que era: não passava de um tanque de sais de Epsom. N a terceira vez, havia um visitante - conheci muita gente interessante lá que atendia pelo nome de Baba Ram Das. Era um sujeito de Harvard que ti nha ido para a Índia e escreveu um livro popular chamado Be Here Now. Ele relatava como seu guru na Índia ensinou-o a ter uma "experiência extracor poral" (palavras que muitas vezes vi escritas no quadro de avisos) : concen trar-se na sua respiração, em como o ar entra e sai de suas narinas enquanto você respira. Percebi que eu não estava fazendo nada para ter uma alucinação, e en trei no tanque. Em algum momento percebi, de repente, que - é difícil expli car - eu estava deslocado em alguns centímetros para o lado. Em outras pa lavras, o local onde minha respiração entrava e saía, entrava e saía, não esta va centrado: meu ego estava afastado um pouco para o lado, cerca de uns dois centímetros. Pensei: "Agora onde está o ego? Sei que todos acham que o centro do pensamento é no cérebro, mas como eles sabem isso? " Eu já sabia, por coisas que lera, que, antes de terem sido feitos diversos estudos psicológicos, isso não estava tão claro assim para as pessoas. Por exemplo, os gregos achavam
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que o centro do pensamento estava no fígado. Pensei: "Será possível que a lo calização do ego seja aprendida pelas crianças observando as pessoas coloca rem a mão na cabeça quando dizem: 'Deixa eu pensar um pouco? ' Desta for ma, a idéia que o ego esteja localizado ali, atrás dos olhos, pode ser uma con venção!" Calculei que, se havia deslocado meu ego em uns centímetros para um lado, eu poderia deslocá-lo mais ainda. Esse foi o início das minhas aluci nações. Tentei e, depois de um tempo, consegui que meu ego descesse pelo meu pescoço' até o meio do meu peito. Quando uma gota de água caiu e bateu no meu ombro, senti o ego "ali", acima de onde o "eu" estava. Toda vez que uma gota caía, eu ficava um pouco assustado e meu ego pulava de volta, através do meu pescoço, para o lugar habitual. Então eu tinha de fazê-lo descer de novo. Na primeira vez, demorou muito tempo para fazer com que ele voltasse a des cer, mas foi ficando mais e mais fácil. Eu conseguia conduzi-lo até um dos la dos dos quadris, mas durante muito tempo foi o máximo que consegui. Foi em uma outra ocasião em que eu estava no tanque que resolvi que, se podia mover-me até os meus quadris, deveria ser capaz de sair completamen te do meu corpo. Assim, eu poderia "ficar de lado" . É difícil explicar - eu me xia minhas mãos e agitava a água e, apesar de não conseguir vê-las, sabia onde elas estavam. Mas ao contrário do que acontece na vida real, onde cada mão fica de um lado, um pouco para baixo, elas estavam, as duas, de um só lado do corpo! O que sentia em meus dedos e tudo o mais era exatamente o mesmo que o normal, apenas meu ego estava sentado do lado de fora, "observando" tudo isso. A partir de então, tive alucinações quase todas as vezes e conseguia mo ver-me cada vez mais para fora do meu corpo. Acontece que, quando movia minhas mãos, eu as via como coisas mecânicas que subiam e desciam - elas não eram de carne e osso, elas eram mecânicas. Mas eu ainda era capaz de sentir tudo. As sensações eram totalmente consistentes com o movimento, mas eu também tinha esse sensação de que "ele é aquilo". O "eu" chegou a sair da sala, por fim, e vagou por ali, indo até alguns lugares onde aconteciam coisas que eu já vira antes. Tive muitos tipos de experiência extracorporal.'Uma vez, por exemplo, pude "ver" a parte de trás da minha cabeça, com minhas mãos repousando nela. Quando mexia meus dedos, eu os via: mover-se, mas entre os dedos e o polegar eu via o céu azul. É claro que não era bem isso; era uma alucinação.
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Mas a questão é que, enquanto mexia os dedos, o movimento deles era total mente consistente com o movimento que eu estava imaginando estar vendo. Aparecia toda a imagem, e era consistente com o que se sente e se faz, muito parecido, por exemplo, com quando você acorda de manhã, bem devagar, e toca alguma coisa (e você não sabe o que é) e, de repente, fica claro o que é. Aí toda a imagem aparece de uma vez, só que é incomum, no sentido que você normalmente imaginaria que o ego estivesse localizado na frente da parte posterior da cabeça, mas, em vez disso, você o vê atrás da parte poste rior da cabeça. Uma das coisas que sempre perturbaram-me psicologicamente enquanto eu estava tendo alucinações era o fato de que eu poderia ter dormido e portan to estar simplesmente sonhando. Já tinha tido algumas experiências com so nhos e queria uma experiência nova. Era um pouco entorpecente, porque, quando se está tendo alucinações, e coisas assim, você fica meio atordoado e aí faz essas coisas estúpidas as quais você já preparou sua mente para execu tar, por exemplo, verificar se você não está dormindo. Desse modo, eu estava sempre verificando se estava dormindo ou não esfregando um polegar no ou tro - uma vez que normalmente minhas mãos estavam atrás da minha cabeça -, sentindo-os. É claro que poderia estar sonhando aquilo, mas não estava: eu sabia que era real. Depois daquela fase bem inicial, na qual a excitação de ter uma alucina ção faz com que 'ela "caia fora" ou pare de acontecer, consegui relaxar e ter alucinações duradouras. Depois de uma semana ou duas, eu estava pensando bastante sobre o fun cionamento do cérebro em comparação com o funcionamento de uma má quina de calcular - especialmente sobre como a informação é armazenada. Um dos problemas interessantes nesta área é como as memórias são armaze nadas no cérebro: você pode recuperá-las de muitas formas, se comparamos com uma máquina - não é necessário fornecer diretamente o endereço corre to na memória. Se eu quiser buscar a palavra "aluguel", por exemplo, posso estar fazendo uma palavra cruzada, procurando uma palavra de sete letras que comece com a e termine com I; posso estar pensando em tipos de renda ou atividades, como, por exemplo, tomar e fazer empréstimo, o que, por sua vez, pode levar a qualquer outro tipo de lembranças ou informações pertinen tes. Estava pensando em como fazer uma "máquina imitadora" que aprende ria a linguagem como as crianças: você falaria com a máquina. Mas não con-
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segui calcular como armazenar o material de forma organizada para que a máquina pudesse recuperar a informação por conta própria. Nessa semana, quando fui para o tanque e tive minha alucinação, tentei recordar fatos muito antigos. Fiquei dizendo para mim mesmo: "Precisa ser mais antigo ainda; precisa ser mais antigo" - eu nunca ficava convencido de que as lembranças eram antigas o bastante. Quando recuperei uma lembran ça muito antiga - digamos da minha cidade natal, Far Rockaway - toda uma seqüência de lembranças ressurgiu, todas da cidade de Far Rockaway. Se ti vesse pensado em alguma coisa de outra cidade - Cedarhurst ou qualquer ou tra -, então uma porção de coisas associadas a Cedarhurst teriam ressurgido. Então percebi que as coisas são armazenadas de acordo com o local onde você vivenciou a experiência. Eu me senti bastante bem com essa descoberta e saí do tanque, tomei um banho, me vesti e comecei a dirigir rumo a Hughes Aircrafts para apresentar a minha palestra semanal. Havia aproximadamente quarenta e cinco minutos que saíra do tanque quando percebi, pela primeira vez, que eu não tinha a me nor idéia do modo como lembranças são armazenadas no cérebro; tudo que tive foi uma alucinação sobre como as lembranças são armazenadas no cére bro! O que eu havia "descoberto" não tinha nada a ver com a forma como as lembranças são armazenadas no cérebro; estava relacionado com o modo pelo qual eu estava brincando comigo mesmo. Em nossas inúmeras discussões sobre alucinações durante as visitas ante riores, eu havia tentado explicar a Lilly e aos outros que o fato de imaginar que essas coisas são reais não representa a verdadeira realidade. Se você vê muitas vezes globos dourados, ou qualquer coisa assim, e eles falam com você duran te suas alucinações e dizem que são uma outra inteligência, isso não significa que eles sejam uma outra inteligência; significa apenas que você teve essa de terminada alucinação. Naquela hora, tive a tremenda sensação de ter desco berto como as lembranças são armazenadas, e é surpreendente que tenha de morado quarenta e cinco minutos para eu perceber o erro que eu estava ten tando explicar para todo mundo. Uma das questões sobre as quais eu pensava era se as alucinações, assim como os sonhos, são influenciadas pelo que você já tem na mente - por outras exper�ências no decorrer daquele dia ou no de dias anteriores, ou então por coisas que você espera ver. O motivo, creio, de eu ter tido uma experiência ex tracorporal foi que estávamos discutindo experiências extracorporais um
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pouco antes de eu entrar no tanque. E a razão pela qual tive uma alucinação sobre como as memórias são armazenadas no cérebro foi, acho, eu ter passa do a semana toda pensando sobre isso. Discuti muito com diversas pessoas sobre a realidade das experiências. Elas argumentavam que algo é � onsiderado real, na ciência experimental, se a experiência puder ser reproduzida. Então, quando muitas pessoas vêem glo bos dourados que de vez em quando conversam com elas, os globos devem ser considerados reais. Meu argumento era que nessas situações discutia-se um pouco sobre os globos dourados antes de entrar no tanque; então a pessoa que está tendo uma alucinação, com a mente já pensando em globos dourados quando entrou no tanque, vê algo parecido com os globos - talvez sejam azuis ou coisa assim - e acha que está reproduzindo a experiência. Eu sentia que podia entender a diferença entre o tipo de concordância entre as pessoas, cu jas mentes estão preparadas para concordar, e o tipo de concordância que se chega no trabalho experimental. É interessante que seja tão fácil perceber a diferença - mas tão difícil defini-la! Não acredito que haja alguma coisa nas alucinações que tenha a ver com qualquer fator externo ao estado psicológico interno da pessoa que está tendo a alucinação. Mas, no entanto, há diversas experiências de várias pessoas que acreditam haver realidade na alucinação. A mesma idéia geral pode contribuir para o relativo sucesso que têm as pessoas que interpretam sonhos. Por exem pIo, alguns psicanalistas interpretam os sonhos falando sobre os significados de vários símb �los. E não é totalmente impossível que depois esses símbolos realmente apareçam nos sonhos. Então acho que, talvez, a interpretação das alucinações e dos sonhos seja um processo de autopropagação: em geral, se consegue fazê-la, mais ou menos, principalmente se antes você tiver conver sado bastante sobre o assunto. Geralmente, eu levava quinze minutos para ter uma alucinação, mas, em algumas poucas ocasiões em que eu fumei maconha antes, ela chegava muito rapidamente. Mas quinze minutos era rápido o bastante para mim. Uma coisa que geralmente acontecia era que, enquanto a alucinação che gava, o que pode ser descrito como "lixo" também chegava: eram simples mente imagens caóticas - lixo total, aleatório. Tentei lembrar-me de alguns itens do lixo para poder caracterizá-lo novamente, mas foi particularmente difícil lembrar-me deles. Acho que estava chegando perto do que acontece quando você começa a dormir: há conexões aparentemente lógicas, mas
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quando se tenta lembrar do que fez você pensar no que está pensando, não se consegue. Na verdade, você logo esquece o que você está tentando lembrar. Só consigo lembrar-me de coisas como, por exemplo, um sinal branco com uma erupção, em Chicago, e então ela desaparece. O tempo todo esse tipo de coisa. O Sr. Lilly tinha uma porção de tanques diferentes, e fizemos uma série de experiências. Eles não pareciam fazer muita diferença em relação às aluci nações, e fiquei convencido de que o tanque era desnecessário. Agora que ti nha visto o que fazer, notei que bastava ficar bem quieto - por que era neces sário ter tudo absolutamente em grande estilo? Assim, quando eu chegava em casa, apagava as luzes e sentava na sala de estar em uma poltrona confortável, e tentava, tentava - nunca funcionou. Nunca consegui ter uma alucinação fora dos tanques. É claro que eu gostaria de ter tido uma alucinação em casa, e não duvido que alguém possa meditar e fazer acontecer, se praticar, mas eu não pratiquei.
A ciência do cu lto da carga*
Durante a Idade Média, existia todo tipo de idéia maluca, como por exemplo a idéia de que um pedaço do chifre do rinoceronte aumentava a potência. Então descobriu-se um método de seleção, que consistia em testar uma idéia para ver se funcionava e, se não funcionasse, eliminá-la. Este método desembo cou, é claro, na ciência. E desenvolveu-se muito bem, tanto que agora esta mos na era da ciência. Na verdade, esta é uma era tão científica que temos di ficuldade em entender como ainda podem existir curandeiros, uma vez que nada que eles propunham jamais funcionou realmente - ou funcionou muito pouco. Mas, mesmo hoje em dia, encontro muita gente que mais cedo ou mais tarde trava uma conversa sobre OVNIs, ou astrologia, ou alguma forma de misticismo, consciência dilatada, novos tipos de consciência, percepção ex tra-sensorial e coisas assim. E concluí que esse não é um mundo científico. A maioria das pessoas acredita em tantas coisas maravilhosas que resolvi investigar por que acreditam nelas. E aquilo a que me referi como a causa da minha curiosidade pela investigação levou-me a uma situação difícil na qual descobri muita baboseira que me sufocava. Primeiro, comecei investigando diversas idéias a respeito do misticismo e de experiências místicas. Fui aos tanques de privação dos sentidos e arranjei muitas horas de alucinações; en tão, conheço um pouco sobre isso. Depois fui a Esalen, que é um foco deste tipo de pensamento (é um lugar maravilhoso; você deveria "ir lá conhecê-lo) . Depois, me senti sufocado. Eu não havia percebido o quanto existia. Em Esalen, havia umas banheiras grandes abastecidas por fontes quen tes, a cerca de nove metros acima do mar. Uma de minhas experiências mais agradáveis foi sentar-me em uma daquelas banheiras e observar as ondas ba-
*Adaptado do discurso de formatura da turma 1 9 74, no Caltech.
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tendo contra os rochedos lá embaixo, fitar o claro céu azul e espiar uma bela jovem nua enquanto ela, sorrateiramente, aparecia e se acomodava na ba nheira junto comigo. Uma vez, sentei-me em uma banheira na qual estava uma bela moça com um sujeito que parecia não conhecê-la. Imediatamente, comecei a pensar: "Nossa! Como vou começar a conversar com essa bonequinha nua?" Tento pensar em alguma coisa para falar, quando o sujeito diz a ela: "Eu estou, uh, estudando massagem. Posso praticar com você?" - Claro - ela diz. Eles saíram da banheira e ela se deita em uma mesa de massagem ali perto. Penso comigo mesmo: "Que papo malandro! Nunca consigo pensar em alguma coisa assim!" Ele começa a esfregar o dedão dela. "Acho que posso senti-lo", ele diz. "Sinto uma espécie de cavidade - é a hipófise? " Falei sem pensar: "Você está a quilômetros da hipófise, cara!" Eles olharam para mim, horrorizados - eu tinha me desmascarado - e disseram: "Isto é reflexologia!" Imediatamente, fechei os olhos e fingi estar meditando. Esse é só um exemplo do tipo de coisa que me deixa desesperado. Tam bém dei uma olhada em fenômenos de percepção extra-sensorial e de para normalidade. A última moda era Uri Geller, um homem que dizia ser capaz de entortar chaves esfregando-as com os dedos. Então, fui a seu quarto no hotel, a convite dele, para ver uma demonstração tanto de leitura da mente como de entortamento de chaves. Ele não conseguiu fazer nenhuma leitura da mente que desse certo: ninguém consegue ler minha mente, acho. Meu garoto esta va segurando uma chave, e Geller esfregou-a e nada aconteceu. Então, ele nos disse que funcionava melhor dentro da água, e daí dá para imaginar todos nós dentro da banheira, com a torneira ligada, a chave imersa na água e ele esfre gando a chave com seu dedo. Nada aconteceu. Assim, não consegui investi gar aquele fenômeno. Mas aí comecei a pensar: em que mais nós acreditamos? (E pensei, então, nos curandeiros e como teria sido fácil detê-los ao mostrar que na verdade nada funcionava.) Descobri coisas que ainda mais pessoas acreditavam, como, por exemplo, que nós temos algum conhecimento sobre como educar. Há grandes escolas de pensamento sobre métodos de leitura e métodos de en sinar matemática, e coisas assim, mas, se você reparar, verá que o nível de lei tura continua a cair - ou sobe com dificuldade - a despeito de continuamente
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usarmos as mesmas pessoas para aprimorar esses métodos. Há um remédio de um curandeiro que não funciona. Ele çleveria ser examinado; como eles sa bem que método dele funcionará? Outro exemplo é o tratamento que se dá aos criminosos. Certamente, não fizemos nenhum progresso - muitas teo rias, mas nenhu� progresso - pàra diminuir a quantidade de crimes com o método que usamos para lidar com criminosos. Ainda assim, dizem que essas coisas são científicas. Nós as estudamos. E acho que as pessoas comuns, com idéias sensatas, ficam intimidadas por esta pseudociência. Um professor que tem uma boa idéia sobre como ensinar as crianças a ler é forçado pelo sistema escolar a fazê-lo de outra forma - ou che ga até mesmo a ser enganado pelo sistema escolar para pensar que o método dele não é necessariamente bom. Ou a mãe de um garoto desajustadQ, depois de discipliná-lo de uma forma ou de outra, sente-se culpada pelo resto da vida porque não fez "a coisa certa", de acordo com os especialistas. Assim, realmente precisamos dar uma olhada nas teorias que não funcio nam e na ciência que não é ciência. Acho que os estudos educacionais e psicológicos que mencionei são exemplos do que eu gostaria de chamar de ciência do culto da carga. Nos Ma res do Sul, os povos praticam o culto da carga. Durante a guerra, eles viram os aviões levando muitas riquezas e querem que agora a mesma coisa aconteça. Deste modo, eles fizeram todos os preparativos como construir coisas do tipo pistas de decolagem e aterrissagem, colocaram tochas ao longo das pistas, construíram uma guarita de madeira para alojar um homem com dois peda ços de madeira na cabeça, como se fossem fones de ouvido e troncos de bam bu enfiados como antenas - ele é o controlador de vôo - e ficam esperando o avião aterrissar. Eles fazem tudo certo. A forma é perfeita. Está exatamente como era antes. Mas não funciona. Nenhum avião aterrissa. Chamo essas coisas de ciência do culto da carga, porque elas seguem todos os preceitos e as formas aparentes da investigação científica, mas falta-lhes algo essencial, porque os aviões não aterrissam. Agora me sinto obrigado, é claro, a dizer o que está faltando. Mas seria tão difícil quanto explicar aos ilhéus do oceano Pacífico como eles precisa riam ajeitar as coisas para conseguir alguma forma de prosperidade no siste ma deles. Não é algo simples como dizer-lhes como melhorar a forma dos fo nes de ouvido. Mas há um aspecto que percebo que geralmente não está pre sente na ciência ritualística da carga. É a idéia que todos esperamos que você .
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tenha aprendido ao estudar ciência na escola - nunca mencionamos, explici tamente' o que é, mas simplesmente esperamos que você pegue a idéia por meio de todos aqueles exemplos de investigação científica. É interessante, portanto, trazer isso à tona agora e mencioná-la explicitamente. É um modo de integridade científica, um princípio de pensamento científico que corres ponde a uma espécie de honestidade absoluta - um tipo de distanciamento. Por exemplo, se você estiver fazendo uma experiência, precisa anotar tudo que acha que pode torná-la válida -não apenas o que você acha que é o certo: há também outras causas que, possivelmente, poderiam explicar seus resulta dos; e há as coisas que você pensou e que eliminou por meio de alguma outra experiência, e precisa descrever como elas funcionaram - para fazer com que outra pessoa possa dizer que essas outras causas realmente foram eliminadas. Detalhes que possam lançar dúvidas sobre a sua interpretação, se você souber quais são esses detalhes, devem ser fornecidos. Você precisa fazer o melhor que pode - informar se souber de alguma coisa totalmente errada ou possivelmente errada - para justificar a sua interpretação. Se você cria uma teoria, por exemplo, e a divulga ou a expõe, então você também precisa relatar todos os fatos discordantes, assim como os concordantes. Há também um problema mais sutil. Quando você precisa reunir uma porção de idéias para criar uma teoria elaborada, você quer ter certeza, quando explicar para o que ela serve, de que as coisas para as quais ela serve não sejam simplesmente só as que geraram a idéia que leva à teoria, mas que a teoria finalizada gere algu ma coisa mais e que isto esteja correto. Em suma, a idéia é tentar fornecer a informação completa para ajudar os outros a julgar o valor da sua contribuição; não apenas a informação que leve o julgamento para uma determinada direção ou para outra. A forma mais fácil de explicar esta idéia é compará -la com, por exemplo, a propaganda. Noite passada, ouvi que o óleo Wesson não empapa os alimen tos. Bem, isso é verdade. Não é desonesto; mas o que estou falando não é sim plesmente uma questão de não ser desonesto, é uma questão de integridade científica, a qual encontra-se em outro nível. O fato que precisaria ser acres centado àquela frase da propaganda é que nenhum óleo empapa os alimentos quando usado a uma determinada temperatura. Se usados em outra tempera tura, todos eles - inclusive o Wesson - empaparão o alimento. Então, é uma meia-verdade o que foi transmitido, nãu o fato em si, que é verdadeiro, e é com essa diferença com que temos de lidar.
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Nós aprendemos com a experiência que a verdade emergirá. Outros ex perimentadores repetirão a sua experiência e descobrirão se você estava certo ou errado. Os fenômenos da natureza confirmarão ou desabonarão a sua teo ria. E, apesar de você poder obter alguma fama e incentivos temporários, não conseguirá uma boa reputação cQmo cientista se não tiver tentado ser cuida doso neste tipo de trabalho. E é esse o tipo de integridade, esse cuidado em não enganar a si mesmo, que é muito ausente na maior parte da pesquisa na ciência do culto da carga. Grande parte da dificuldade deles é, obviamente, a dificuldade do tema e a inaplicabilidade do método científico ao problema. Contudo, deve-se res saltar que essa não é a única dificuldade. É o motivo pelo qual os aviões não aterrissam - mas eles não percebem. Aprendemos muito com a experiência a lidar com algumas das formas de enganarmos a nós mesmos. Um exemplo: Millikan mediu a carga de um elé tron por meio de uma experiência com gotas de óleo que caíam verticalmente, e conseguiu uma resposta que agora se sabe não estar muito correta. Esta res posta quase não é mais usada, porque ele tinha um valor errado para a viscosi dade do ar. É interessante ver a história das medidas da carga do elétron, de pois de Millikan. Se você as colocar como uma função do tempo, descobrirá que uma é um pouco maior do que a de Millikan, e a próxima é um pouco maior do que a anterior, e a próxima é um pouco maior ainda, até, finalmente, que chegaram a um número que é maior. Por que não se descobriu imediatamente que o novo número era maior? Essa história é algo da qual os cientistas envergonham-se, porque está claro que as pessoas faziam as coisas do seguinte modo: quando obtinham um nú mero muito maior do que o de Millikan, achavam que alguma coisa estava errada - investigavam e descobriam um motivo pelo qual algo estava saindo errado. Quando mediam um número mais próximo ao valor de Millikan, eles não investigavam tanto a razão. E assim eliminaram os números que es tavam muito distantes e fizeram outras coisas desse tipo. Hoje em dia, já aprendemos esses truques e já não sofremos dessa coisa, que mais parece uma doença. Mas essa longa história sobre aprender a não enganar a nós mesmos - ou termos integridade científica absoluta - é, sinto dizer, algo que não incluímos especialmente em qualquer curso específico sobre o qual eu tenha conheci mento. Simplesmente esperamos que vocês absorvam por osmose.
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o primeiro princípio é que você não deve se enganar - e você é a pessoa mais fácil de ser enganada. Então, precisa ter muito cuidado. Depois de não ter enganado a si próprio, é fácil não enganar os outros cientistas. Depois dis so, só precisa ser honesto, da forma convencional. Gostaria de acrescentar algo que não é essencial para a ciência, mas em que eu acredito: você não deve enganar o leigo quando estiver falando como cientista. Não estou falando sobre enganar sua esposa ou fazer sua namorada de boba, ou coisas assim, quando não se está tentando ser cien tista, mas simplesmente tentando ser um ser humano normal. Deixaremos esses problemas para vocês e seus rabinos. Estou falando sobre um tipo es pecífico, extraordinário, de integridade - que não é não mentir, mas sim voltar atrás para mostrar que você pode estar errado - que você deve ter quando estiver agindo como cientista. E é essa a nossa responsabilidade, como cientistas, para com os outros cientistas com certeza, e acho que também para com os leigos. Por exemplo, fiquei um pouco surpreso quando estava conversando com um amigo que ia apresentar-se no rádio. Ele trabalha cQm cosmologia e astro nomia e estava imaginando como explicaria a aplicabilidade de seu trabalho. "Bem", eu disse, "não há aplicação alguma." Ele disse: "Sim, mas assim não teremos apoio para mais pesquisas desse tipo." Eu acho que isso é um pouco desonesto. Se você está se apresentando como cientista, então deve explicar ao leigo o que você está fazendo - e se eles não quiserem dar apoio a você nes sas circunstâncias, a decisão é deles. Um exemplo do princípio é o seguinte: se você decidiu testar uma teoria, ou se quiser explicar alguma idéia, sempre deve escolher publicá-la não im porta o resultado. Se publicássemos apenas determinado tipo de resultados, poderíamos fazer a argumentação parecer boa. Devemos publicar os dois ti pos de resultados. Digo que isso também é importante, ao dar certos tipos de assessoria ao governo. Suponha que um senador peça um conselho sobre se deve ser cons truído um duto em seu estado e você decide que seria melhor que o fosse em outro estado. Se não publicar tal resultado, parece-me que você não estará dando um conselho científico. Você estará sendo usado. Se a sua resposta for aquela que o governo ou os políticos querem, eles podem usá-la como argu mento a favor deles; se for no sentido oposto, simplesmente não a publicarão. Isso não é assessorar cientificamente.
RICHARD PHILLlPS FEYNMAN
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Os outros tipos de erros são mais característicos da ciência malfeita. Quando eu estava em ComeU, sempre conversava com o pessoal do departa mento de psicologia. Uma das estudantes disse-me que queria fazer uma ex periência, que era mais ou menos assim - alguém havia descoberto que sob determinadas circunstâncias X, os ratos faziam uma determinada coisa A. Ela estava curiosa por saber se mudando as circunstâncias para Y eles ainda fa riam A. Então a proposta dela era fazer a experiência sob as circunstâncias Y e verificar s e eles ainda responderiam com A. Expliquei-lhe que primeiro era preciso repetir no seu laboratório a expe riência da outra pessoa - fazer com a condição X para verificar se ela obtinha o resultado A e depois mudar para Y e verificar se A mudaria. Aí ela saberia que a verdadeira diferença era o que ela pensava estar sob seu controle. Ela estava entusiasmada com essa idéia nova e foi até seu professor. E a resposta dele foi não, você não pode fazer isso, porque a experiência já foi fei ta e você estaria perdendo tempo. Isso aconteceu por volta de 1 947, e parece que a política geral da época era não tentar repetir experiências psicológicas, mas apenas mudar as condições e ver o que aconteceria. Hoje em dia há um certo risco de que a mesma coisa aconteça, mesmo no famoso campo da física. Fiquei chocado ao saber de uma experiência feita no grande acelerador do National Accelerator Laboratory, onde alguém usou o deutério. Para comparar seus resultados válidos para o hidrogênio pesado com o que teria acontecido se a experiência tivesse sido feita com hidrogênio leve, ele precisou usar os dados da experiência realizada por outra pessoa, que a havia realizado com um equipamento diferente. Quando perguntado o por quê disso, o experimentador declarou que não havia conseguido tempo sufi ciente de uso daquele equipamento (uma vez que há tão pouco tempo e o equipamento é muito caro) para fazer a experiência com hidrogênio leve, uma vez que não haveria nenhum resultado novo. E, assim, os responsáveis pelos programas de pesquisa do NAL estão tão ansiosos por novos resulta dos, a fim de arrecadar mais fundos para manter as coisas fluindo, para fins de relações públicas, que eles mesmos estão destruindo - provavelmente - o va lor das experiências, que é todo o propósito da coisa. Muitas vezes é difícil para os experimentadores do NAL conseguir completar seus trabalhos de acordo com o que exige sua integridade científica. Nem todas as experiências em psicologia, porém, são desse tipo. Por exemplo, tem havido muitas experiências daquelas que fazem os ratos percor-
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o SENHOR ESTÁ BRINCANDO, SR. FEYNMAN !
rerem todo tipo de labirintos e coisas assim - com poucos resultados claros. Mas, em 1 9 3 7, um homem chamado Young fez uma experiência muito inte ressante. Ele tinha um longo corredor com portas por todos os lados por onde os ratos entravam e portas do outro lado onde estava a comida. Ele queria ve rificar se conseguiria treinar os ratos para irem até a terceira porta a partir de qualquer ponto em que ele os deixasse. Não. Os ratos iam imediatamente para a porta onde a comida estava na vez anterior. A pergunta era: como os ratos sabiam, uma vez que o corredor havia sido construído de forma tão bela e uniforme, que essa era a mesma porta de an tes? Obviamente, tinha alguma coisa naquela porta que a fazia diferente das outras portas. Então, Young pintou as portas com muito capricho, deixando as texturas frontais exatamente iguais. Mesmo assim, os ratos ainda sabiam onde ir. Então, ele achou que os ratos poderiam estar farejando a comida, e então empregou substâncias químicas para alterar o cheiro, depois de cada trecho do percurso. Os ratos ainda sabiam onde ir. Aí, Young percebeu que os ratos poderiam ser capazes de descobrir qual era a porta, vendo as luzes e a disposição do laboratório, como qualquer pessoa de bom senso. Então, ele cobriu o corredor, mas os ratos ainda sabiam qual era a porta. Finalmente, ele percebeu que os ratos descobriam a porta pelo som do chão enquanto corriam sobre ele. E ele só pôde consertar isso colocando o corredor sobre a areia. Aí ele cobriu, uma a uma, todas as possíveis pistas e, fi nalmente ' conseguiu enganar os ratos para que eles aprendessem a ir até a terceira porta. Se ele tivesse relaxado em alguma das suas condições, os ratos continuariam a saber em qual porta haviam estado antes. Agora, sob o ponto de vista científico, essa é uma experiência de primeira classe. Essa é a experiência que faz com que as experiências com ratos em la birintos façam sentido, porque ela revela as pistas que o rato realmente está usando - não o que você acha que ele está usando. E essa é a experiência que diz exatamente quais condições devem estar presentes para que você seja cui dadoso e controle tudo em uma experiência desse tipo. Pesquisei a história do que aconteceu depois com essa pesquisa. A expe riência seguinte e a subseqüente nunca fizeram referência ao Sr. Young. Seus critérios de fazer o corredor sobre a areia ou ser muito cuidadoso nunca fo ram usados. Eles simplesmente continuaram a colocar os ratos para fazer o percurso da mesma forma antiga e não prestaram atenção à grande descober ta do Sr. Young, e não são feitas referências a seus artigos porque ele não des-
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cobriu nada sobre os ratos. Na verdade, ele descobriu todas as coisas que são necessárias para descobrir algo sobre os ratos. Mas não prestar atenção a ex periências desse tipo é uma característica da ciência do culto da carga. Outro exemplo são as experiências em percepção extra-sensorial feitas pelo Sr. Rhine e outras pessoas. Cbmo muitas pessoas fizeram críticas - e elas próprias criticaram suas próprias experiências - elas melhoraram as técnicas de tal modo que os efeitos ficaram cada vez menores, até gradualmente desa parecerem. Todos os parapsicólogos ainda buscam uma experiência que pos sa ser repetida - que se possa fazer novamente e obter o mesmo efeito - esta tisticamente. Eles fazem milhões de ratos percorrer o caminho - não, desta vez são pessoas - eles fazem uma porção de coisas e obtêm um determinado efeito estatístico. Da próxima vez que tentarem, já não o obterão mais. E aí você se depara com alguém afirmando que é um requisito irrelevante esperar que uma experiência que possa ser repetida. Isso é ciência ? Em um discurso no qual ele estava renunciando ao cargo de diretor do Instituto de Parapsicologia, esse homem também fala sobre uma instituição nova. E, ao falar para as pessoas o que fazer em seguida, ele diz que uma das coisas que devem fazer é ter certeza que sejam treinados apenas estudantes que tenham provado sua capacidade de obter resultados paranormais até um ponto aceitável - que não perdessem tempo com aqueles estudantes ambicio sos e interessados que obtêm apenas resultados fortuitos. É muito perigoso ter tal política no ensino - ensinar os estudantes a obter apenas determinados resultados, e não como fazer uma experiência com integridade científica. Então, só posso desejar uma coisa a vocês - a boa sorte de se encontrarem em um lugar onde sejam livres para manter o tipo de integridade que descrevi e onde não se sintam forçados a perdê-la por uma necessidade de manter sua posição na organização, ou o apoio financeiro, ou coisas assim. Que vocês possam ter essa liberdade.
índice
,
Academia Brasileira de Ciências, 3 1 2 Adrian, Edgar, 6 1 Aristófanes, 300 Arsenal Frankfort, Filadélfia, 92-93 As mil e uma noites, 1 66, 1 6 7 Baade, Walter, 227 Bacher, Robert, 97, 1 24, 2 1 3, 250 Be Here Now (Ram Das) , 325 Bell, Alexander Graham, 6 Bernays, Peter, 27-28, 1 22 Bethe, Hans, 1 04, 1 05, 1 24, 1 49, 1 55, 1 60, 1 68, 1 8 7-88 Block, Martin, 243 -44 Boehm, Felix, 246, 249 Bohr, Aage (Jim Baker) , 1 24-25 Bohr, Niels (Nicholas Baker) , 1 24-25 Bronk, Detlev, 6 1 Bullock's, 263 Byers, Nina, 3 06-7, 309 Cabibbo, Nicola, 249 Cálculo avançado (Woods), 7 7 Cálculo para o homem prático, 77 Calvin, professor, 225 Case, Ken, 246 Centro de Pesquisa em Física, Rio de Janeiro, 1 94-95, 205- 1 2, 304 CERN, 304 Christy, Robert, 1 04, 1 1 3, 1 20, 1 3 5, 249 Códice de Dresden, 298, 299, 3 0 1 Códice de Madrix, 301 Companhia Bausch and Lomb, 40 Companhia General Electric, 1 45 Companhia Hughes Aircraft, 3 1 2 Compton, Arthur Holly, 1 00- 1 Conferência de Rochester, 23 7
Conselho Estadual, de Educação da Califórnia, 275-286 Crick, Francis H . C., 62 Curie, Marie, 270 de Hoffman, Frederic, 45 -46 Del Sasso, professor, 55 Delbrück, Max, 62 Demitriades, Steve, 2 6 1 Dirac, Paul, 247 Dreyfuss, Henry, 270 Edgar, Robert, 62, 65 Editora Addison-Wesley, 3 02 Einstein, Albert, 25, 69, 70, 92, 1 66, 2 73 Eisenhart, Dean, 50, 56-57 Eisenhart, Sra., 50-5 1 Erhard, Werner, 3 2 1 Esalen, 33 1 -32 Escola Politécnica, 3 05
Fausto (Goethe) , 34 Feller, professor, 226 Fermi, Enrico, 1 24, 228 Feynman Lectures, 302 Feynman, Arlene, 96-97, 1 02, 1 05, 1 0 7 - 1 0, 1 2 1 -23 Feynman, Gweneth, 265, 304 F eynman, Lucille, 1 5 1 Feynman, Mary Lou, 1 94, 223, 233, 298 Feynman, Mel, 79-8 1 , 1 43 -44 Frankel, S tanley, 1 1 7 - 1 9 Fuchs, K1 aus, 1 2 1 Geller, Uri, 3 3 2 Gell-Mann, Murray, 206, 244, 247 General Atomics, 44
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o S E N H O R ESTÁ B R I N CA N D O , S R . F E Y N M A N !
Gianonni (dono de restaurante) , 265, 266, 268-69 Gibbs, professor, 1 62, 1 63 Griffin, Dr., 225 Guys and Dolls, 3 1 6-3 1 7 Harvey, E. Newton, 6 1 Harvey, Thomas, 284 Heisenberg, Werner, 273 Huxley, Thomas, 33 Instituto de Parapsicologia, 339 Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) , 62, 84, 95, 1 99, 220-223, 238, 249, 2 6 1 -264, 300, 306 Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) , 9, 1 8, 32, 40, 49, 5 1 , 52 Instituto de Estudos Avançados, Universidade Princeton, 1 59, 1 66-67 Instituto Yukawa, 234 International Correspondence Schools, 256 Irwin, Robert, 2 7 1 Jefferson, Thomas, 273 Jensen, Hans, 246, 249 Kac, professor, 225 Kemeny, John, 1 1 0 Kerst, Donald, 1 43 -44 Kislinger, Mark, 2 5 1 Laboratório Bell, 40, 89-91 Laboratório de Testes Elétricos, 40 Laboratório Kellogg, 1 98 Lamfrom, Hildegarde, 64-65 Lattes, Cesar, 1 95 -96 Laurence, William, 1 2 7 Lavatelli, Leo, 1 29 Lee (físico), 244, 245 Leighthon, Ralph, 3 1 6 - 1 7, 3 1 8-22 Leighthon, Robert, 3 1 6 Lilly, lohn, 3 23 - 25, 328, 330 Lodge, Sir Oliver, 1 53 Lollobrigida, Gina, 3 05 Marcuso (motorista de táxi), 1 69-70 Marshall, Leona, 229
Meselson, Matthew, 64, 227 Messenger Lectures, 306n Metaplast Corporation, 46 Meyer, Maurice, 20, 9 1 Mill, John Stuart, 3 3 Millikan, Robert, 335 Modem Plastics, 44, 46 Munger, professor, 303 Museu de Arte de Pasadena, 249 Museu de Arte do município de Los Angeles, 262 My Later Years (Einstein) , 273 National Accelerator Laboratory, 337 Neugebauer, Otto, 306-7 Neumann, lohn vou, 68-69, 1 2 4 New York Times, 300 Nick, o Grego, 224 Nishina (físico) , 233 Norris (advogado), 284, 285, 294 Oak Ridge, Tennessee, Usina, 1 1 2- 1 7, 1 36-38 Ofey (Richard Feynman) , 262 Olum, Paul, 66, 1 02, 1 03 , 1 89 "On a Piece of Chalk" (Huxley) , 3 3 O n Freedom (Jefferson) , 273 Onsager, Lars, 238-39 Oppenheimer, J. Robert, 1 00, 1 02, 1 1 3, 1 1 4, 1 20, 244, 306n Pais, Abraham, 238, 239 Pamilio, Pete, 294 Pauli, Wolfgang, 69, 70 Pauling, Linus, 2 1 8 Phi Beta Delta, 1 8- 2 1 Physical Review, 1 03, 25 1 Prêmio Nobel, 1 64, 287-296 Processo e realidade (Whitehead) , 59-60 Projeto Manhattan, 44-45, 97- 1 25, 1 27- 1 29, 1 3 1 - 1 44, 1 56 Rabi, I. 1., 1 00 Ram Das, 325 Ramsey, Norman, 244 Rãs, As (Aristófanes), 29 1 Ravndal, Finn, 25 1
RICHARD PHllllPS FEYNMAN
Reminiscências de Los Álamos, 1 943 - 1 945 (Badash e outros), 99n Revista Time, 2 1 2, 233, 289 Rhine, Joseph, 339 Robertson, Sra. H. P., 309 Robinson, professor, 34-3 7 , Rogers, Car!, 257 Rowan, Ro bert, 3 1 0 Russel, Henry Norris, 68-69 Rutishauser, Tom, 3 1 6- 1 7 Sands, MaU, 298 Schrõdinger, Erwin, 247, 273 Segre, Emilio, 1 1 2 - 1 3 Seminário Teológico Judaico, 2 70 Serber, Robert, 1 03 Shock1ey, Bill, 4 1 , 9 1 Sholokov, Mikhail, 302 Sigma Alpha Mu, 1 8 Slater, professor, 49, 53, 1 56 Smith (oficial de patente), 1 75 - 7 7 Smith, J. D . , 64 Smyth, H. D., 1 00, 1 2 7 Spellbound, 1 49-50 Sputnik, 286 Staley (cientista de Los Álamos), 1 33-34 Talmude, 2 78 Telegdi, Valentine, 250 Teller, Edward, 1 1 1 , 1 53 Thompson, Eric, 309 Tiomno, Jaime, 1 93-94 Tolman, Richard, 1 00- 1 Tomonaga, Sinitiro, 233n Três Quarks, Os, 306 Trichel, general, 92 Trowbridge (mestre) , 3 1 5 Tuchman, Maurice, 272 Ukonu, 3 1 5, 3 1 6 Universidade da Califórnia em Los Angeies (UCLA), 306
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Universidade de Chicago, 228 Universidade de ComeU, 5 1 -52, 1 25, 1 56- 1 64, 1 65, 1 88, 2 1 9-220, 22 1 , 222, 247, 325 Universidade de Harvard, 65, 3 1 4 Universidade de Princeton, 24, 49-52, 56, 59, 67, 7 1 , 74, 78, 82, 89, 90, 98, 1 55, 1 6 1 - 1 63, 1 82 Universidade do Alasca, 297 Universidade do Rio, 1 98 Universidade Estadual da Carolina do Norte, 246 Urey, Harold, 1 00
Vida de Leonardo, A, 1 5 Villacorta, 307, 308 Wapstra, Aaldert, 246, 249 Watson, James Dewey, 62, 65-66 Webb, Julian, 1 1 4 Weisskopf, Victor, 304 What is Life (Schrõdinger), 2 73 Wheeler, John, 54, 67- 70, 233, 234 Whitehouse, Sra., 285 Wigner, Eugene, 69 Wildt, professor, 50 Williams, John, 1 03 Wilson, Robert, 99, 1 0 1 , 1 02, 1 2 7-28, 1 6 7, 306n Woodward, Bill, 80 Wright, Dudley, 262, 267 Wright, Frank Lloyd, 233 Wu, Chien-Shiung, 244, 246 Yang (físico) , 245 Young (psicólogo), 338-39 Yukawa, Hideki, 241 Zorthian, Dabney, 263 Zorthian, Jirayr, 255-58, 260, 26 1 , 263, 269, 299 Zumwalt, tenente, 1 1 4, 1 1 5, 1 1 6