temporadas de abandono
rafael leopoldo
• poesia •
juiz de fora - 2012
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temporadas de abandono
rafael leopoldo
• poesia •
juiz de fora - 2012
Copyright © 2012 Rafael Leopoldo Capa da edição especial limitada Nagash Capa da editora e projeto de miolo Sor B
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Leopoldo, Rafael Temporadas de abandono / Rafael Leopoldo. -- 1. ed. -- Juiz de Fora, MG : Bartlebee, 2012.
ISBN 978-85-64914-27-8 1. Poesia brasileira I. Título.
CDD 869.91
Índices para catálogo sistemático: 1. Poesia : Literatura brasileira 869.91 Todos os direitos desta edição reservados à BARTLEBEE EDITORA LTDA Rua Nicolau F Mendes, 195 Quintas das Avenidas Juiz de Fora - MG 36046-540 www.bartlebee.com.br
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Às Temporadas, Os meus passos fazem consonância com a minha pobreza. Lembro-me de quando criança subir e descer um pequeno corredor escuro para chegar à minha casa ao fundo. As paredes com a pintura desfeita, descascando, desfazendo-se. Estreito corredor escuro, do qual tinha cheiro de urina, geralmente fluido dos bêbados do bar ao lado, que minha mãe alugava. Ao descer, saía de casa, subia a rua e, seguindo alguns quarteirões, então encontrava algo bem diferente, fascinante. Tratavase de ver a mata fechada, as montanhas. Chegando mais perto via a linha de trem, que passava então a seguir. Do lado, às vezes encontrava os ciganos, com suas roupas largas e levando junto com eles somente aquilo que é possível para poder ir em frente. Que despojamento. Até hoje poderia descrever aquelas roupas, em detalhes. Somente os olhava de longe com admiração e medo. No quarto dia que fui à espreita para vê-los, não estavam mais lá. A cada partida a saudade. Não é necessário muito querer – e cada vontade sempre ata alguma coisa ao ponto do estrangulamento. Mover-se sem um sentido e com roupas leves. Os ciganos eram esta imagem para mim. Depois me veio o conceito – a vida é passagem e o sentido ás vezes não. As nossas ações, por sua vez, mesmo que singelas são duras demais. Ainda procura a leveza daquelas roupas.
Não-Desejada
Os olhos docemente agressivos ainda eram afetos Não existe mais a sépia genealogista do antiquário A fisiologia se curva sobre o peso do que é velho: Um arco ferrugem sobre si mesmo chama-se saber.
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33-Vértebras
A idade de Cristo banhada a sangue Corpo que deixa de lado a vértebra O açougue e a carne deitada no chão: Moscas e a matéria da decomposição.
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Moderno
Cortamos a língua de nossos mortos O passado é somente mais um cadáver Deixado ao calor úmido dos vermes: A história sem as expressões da face.
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Seios Negros
O beijo recorda o paraíso da infância Lembrança da tela pintada de branco O retornar a um local que não existe Para então encontrar o lar chamado: Vida sem possibilidade de sofrimento.
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Corpartilhado
Os desenhos na sua pele que desbotam As cores de Van Gogh que se tornam sépia Os sorrisos amarelos dos cadáveres Os meus dedos que vão ao teu corpo O toque enrugado pela velhice O toque que não esperávamos A vida pintou os teus cabelos de branco Deu-me chinelos para arrastar-me na noite Você ainda se encolhe de medo Medo de uma lembrança inventada A vida nos abandona, mas temos um abraço
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Corpo
Os músculos estão cansados e a dor é contínua A respiração é calma como também é pesada Ela leva consigo o tom ameno da melancolia O pensamento triste toca o corpo feito à música Os cílios metálicos e brilhantes se fecham Desta forma levamos a noite no nosso olhar
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Cadáveres
A minha pele é barroca por causa dos cortes Estou curado do seu cheiro forte e viciante Sinto-me mais saudável distante do seu corpo: Não volte a matar no meu peito o que já morreu.
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Cárceres
Uma prisão construída com a fúria da imaginação Levantam-se memórias como se levantam palácios As envolvemos como corda em nossos pescoços: Por fim esperamos o estrangulamento do corpo.
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Sexo
Gotas de sol pingando no final da tarde rósea Navalha penetra a paisagem e faz o horizonte Mar dos sabores que se encontram na saliva: Cavalos deitados na areia são tocados pela água.
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Pombas
Memória hospitalar na tela branca do museu Os girassóis brancos enfeitam o nosso leito A almofada de algodão deformada pela face Olhar lacônico que vai para além da vidraça: Peso morto das nuvens sobre os nossos corpos.
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Mantra. Solidão
O orientalismo da reza e do crochê As vozes em off do lamento noturno Os filhos os netos e a porta fechada: Corpo que é esquecido dentro da casa.
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Possessão-cartesiana Para Fédon
A corda arrebenta e o som se liberta Escolha no que é antiquário e amigo O imaterial impulsiona o corpo vivo: Com um pensamento e uma doença.
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Imaginação
Especular corpo poético e melancólico As vozes em off do membro fantasma Caixa espelho faz o exorcismo da dor: Por favor, livrai-me do que não possuo.
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Booleano
As artérias frias e suas conexões infravermelhas Colisões e a desativação dos neurônios corticais Veio a mim como o homem cornífero e magoado Um soco fraco como a força diante do abandono: Pulsar booleano no meu corpo oferece a outra face.
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Fotografia
O culto do que está sempre ausente e nas artérias brancas [do papel O riso se transformou em nostalgia quando perdeu as cores [da áurea Saudade marcada dentro da foto transforma todos os fogos [de artifício A multiplicidade das cores do abandono não esconde o seu [fundo sépia
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Manhãs na Praia
Os cavalos brancos em disparada na praia Minha saudade tem a força vibrante do mar Raios solares caem no meu rosto feito chuva O dia continuará belíssimo junto a minha dor A brisa e todo o resto contêm a sua falta
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Filhos
O corpo que leva outra vida com sutileza As contrações do mar dentro da placenta Sal marinho da saliva dos nossos beijos Meu escuro reino e o seus astrolábios: Um dia você será um belo farol para mim.
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Mancha na Perna
Seu riso distante cura o mal da vida A saudade dos seus cabelos longos Recordo de cada sílaba do seu corpo Delas faço poema de efêmera-lembrança
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Esquecimento
Dançarino das recordações na casa vazia E não existem mais iluminárias neste céu Música atropela o porto com os seus tons: Corpo cai no chão banhado pelo suor do oblívio.
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Vazio
O corpo um dia se cansa do nauseante lamúrio Somos um pouco mais calados diante da vida Estou esvaziado e sem nenhuma obra futura: Estou exaurido e sem a beleza estéril da alegria.
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Contemplação
A chuva é uma gota daquele frio antigo A aura gelada antes do corpo convulso Ainda contemplo o mar todas as noites: A neblina como as nuvens aos nossos pés.
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Astrolábios
A noite escura dos seus olhos fechados Obrigou-me a ver a beleza das estrelas Guio-me com os astrolábios nesta morte: O corpo ainda recusa o fundo do oceano.
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Pássaros Negros
É-se relva que se entrelaça aos ventos Interstícios e pontos diversos de conexões O canto do pássaro é distinto nele e em nós: As asas negras em nossas costas e a vértebra.
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Filho imaginário e Morto
Os filhos da senhorita Bertha Pappenheim Os seios brancos para alimentar a palavra A neblina envolve o corpo com água pura: Luz apagada pela curvatura da temporada.
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Ela
Ela morre continuamente dentro de mim Resta-me a sombra de todos os seus gestos Ela é a doença escura que chamo de morte: Procuro o que pode ser sentido na penumbra.
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Background
A família em volta da mesa grande Riso daquela mesma história velha O filho então abandona a doce casa: Ele vestido de todas as vozes em off.
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Jardim fraturado
Dilúvio dentro do próprio corpo Torna as belas flores insepultas Deitada no ventre azul da relva: Não há motivo para primaveras.
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Semilobo Para um amigo russo
O pelo grama-escura mostra a lembrança Emaranhado de chifres negros na derme Olhos lupinos por entre o escuro florestal: Uivo barroco toca os galhos, a relva e a raiz.
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O Homem e o Lobo
As marionetes com glândulas pineais Os espíritos dos animais e o respirar A bela máquina com o andar do lobo: O relojoeiro não sabe das nossas horas.
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Budismo e Esquizofrenia
A velha apatia estoica e o orientalismo da reza Deixar a própria mente seguir as suas malhas Ver-se longe como quem olha um desconhecido: Este singelo outro poderia ser chamado de próximo.
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Alteridade
Minha alteridade consiste em responder as minhas perguntas.
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Circo
O dançarino que cai com o suor do oblívio E o último movimento dentro da escuridão As palavras evaporam e se desfazem no ar: O salto ornamental sem o calor dos aplausos.
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Reativos Amistosos
Amizades ensinam afastamentos As alegrias tornam-se discretas Cuidado com os espelhos d’água: Abandono é o princípio de seleção.
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Bílis Negra
Fogo dentro do veludo íntimo Vísceras abertas ao sol quente Mão adentra no bucho negro: Cheiro de cabelo queima na noite.
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Olhar
Voam os pássaros negros de Quintana Sobre o soluçar dos afogados no mar O grito fantasmagórico ecoa nas ondas: O sobrenatural olhar do recém-nascido.
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Fusco Fluir
O fluir escuro na água límpida e turva As faces as vozes os gestos e os sonhos A saudade e o lampejo e as ambiências: Líquida superfície onde nada se articula.
42
Grande Mal
A praça imaginária e aquele banco vazio E ninguém alimentará as pombas negras Com suas asas abertas tocando o asfalto Asas convulsas de um velho mal sagrado: A pomba caminhará quando for necessário.
43
Cadáver Serelepe
Você ainda diz “lembro-me de ti” Eu posso dizer “nunca te esqueci” Um reino de diferença entre nós: A memória seleciona o que é vida.
44
Mímico
O mímico é a sombra do distraído A penumbra manca na tarde rósea Alma desapegada do próprio corpo: Espectro falso recitando às entranhas.
45
Abandonar-te
Eu espero que leve o seu cadáver contigo Também as suas roupas e as velhas cartas Seus livros não lidos e também seu cheiro Pois não suporto o ar putrefato que exala: Leve também todo o veneno e faça disso cura.
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A Doença
Hoje os seus cabelos são longos A minha mão passou a estremecer Feito a bandeira estiada ao vento: E mesmo assim nunca terei pátrias.
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O Sintoma
A doença tocou todo meu corpo Fez nascer uma voz involuntária Da minha boca muda o seu nome: Surge como um eterno ato falho.
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A Esposa
E eu que escuto sempre o nome dela Nome que brota das suas lembranças Cuido então do seu corpo adoentado: Como se a memória também fosse doença.
49
A Curvatura Máxima
Uma dose maior me livraria do sofrimento Já não sou seu amor mas a sua enfermeira Da sua boca em um lapso brota outro nome Ainda cuido do seu corpo docemente infantil
50
Cuidado
Não sei para quem é este riso belo e distraído Teu olhar se perde em algum lugar do passado Hoje também me perco neste jardim hospitalar: Nas lembranças turvas da expressão da sua face.
51
Arquipélagos
A alopecia franciscana é um halo Retidão militar na massa religiosa A terra e a água são irmãs gêmeas: Os mortos nos desertos e nos oceanos.
52
Receio
O medo é proteger os órgãos vítreos Soberbo andar receado dos lupinos Noite cáustica tenciona os membros: Elo daquele que caminha em matilha.
53
Passeio de Canoa
A margem de um rio intenso A chuva cai na madeira mole Escuto a gota de uma ajuda: Era então a morte na canoa.
54
Profilaxia
A memória um ventre patológico O berço escurecido da lembrança A cura é aprender o esquecimento: Amnésia queima o objeto retalhado.
55
Mortos
O abandonado animal ferido Não reconhecerá o seu dono Perdeu tudo que era humano Os mortos são perigosamente
56
Cavalos
Profilaxia contra a má recordação É o esquecimento de areia na praia Cavalos correm movendo os grãos: A concha quebrada produz silêncios.
57
Afeto Degrade
Eu tenho medo daquele que só Amou! E levou consigo a fúria da exclamação O conhecer não é uma certeza límpida: A afeição leva um fluir de sentimentos.
58
Veludo Íntimo
Conhecer bíblico e o gosto da pele Os fios de cabelos dos seus braços Veludo que sempre chama o toque Carícia das pontas dos dedos finos Plainar na dorsal e na grama escura.
59
Suicídio
O primeiro cachorro que morre O cavalo que fenece nesta praia O oceano vazio e o silêncio frio: Figo desmorona daquela árvore.
60
Partida em Massa
Filigranas azuis que atam as mãos Fila dos que têm buracos no peito Eles andam golpeados pelo jejum As crateras abertas em plena sala O globo ocular contém as aflições Uns impelem as palavras ao vazio Corpo marca a partida involuntária
61
Leveza
A noite explode de brancura Pluma então plainando no ar Cai com o peso das bigornas Abrindo as coisas inauditas
62
Mistério
Algo sobre o manto do nome O caule que bebe toda a jarra Além da borda um novo caos: A explosão de uma gota d´água.
63
Caminhar na Sombra
O mover da vértebra no escuro Para ver todas as células em off Um passo para trás e as fraturas: Atar os acontecimentos com solda.
64
Redenção de Nós
A tarde ela tece o tempo Vai linear como uma seta A noite ela desata as ligas: Para a redenção de cada nó.
65
Reatar o Tempo
Pulsar do relógio antigo Dobra sobre si o tempo A lembrança é revivida: O alívio à memória salva.
66
Psicanálise
Dentro da arma uma memória A boneca russa tenta se despir As falas e a surdez do analista: Não toca a profundidade da pele.
67
Tempo Musical
As narrativas musicais E notas arborescentes O galho perfura a pele: O tonal instante da dor.
68
Tempo Operístico
Uma linha musical progressiva Outra camada rasteja ao fundo A multiplicidade da temporada
69
Despojamento
A casa vazia dos espanhóis Quarto branco sem móveis Corpo e o sono sem sonho
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Rascunho
A região que reina o lápis Territorializa intimidades Na gaveta-placenta a letra: Esvanecida pelo rascunho.
71
Época
Bradicardia do órgão de vidro Algumas células estão em off Em uma escuridão construtiva: Êxtase ratar diante dos felinos.
72
Possessão Arcana
Com o tempo o pensamento abandona as suas aspas.
73
Escrita I
A escrita como um presente Abandonado a qualquer um Uma máscara chamada pele: Tem suas vibrações no papel.
74
Escrita II
Criam-se os órgãos nos rascunhos O papel placentário e o nascimento Abandonar-se por completo no livro: Escrita como pretensão de livrar-se de si.
75
Menor Poético
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Deus
Então caio na noite fria e indiferente O nosso completo silêncio sem alma Nenhum deus nos serve de consolo: A noite é a doçura e o amargo da voz.
77
Nulidade
A nulidade das horas que passam O nascer do sol é uma bela ilusão As mudanças são menos abruptas: Como o tédio espraiando as estrelas.
78
Epilepsia
Corpo que mantém a calmaria E a paz de uma bomba relógio Uma frase inesperada na vida: Dentro deste jardim hospitalar.
79
Exilado do Nada
Crucificado sem ouvir a voz de Deus Inutilidades do sofrimento da criança Nulidade da vida perante o escombro: Nascimento é o único erro injustificável.
80
Cama Umedecida
A cama furada então afoga Lençol branco sobre a água Corpo úmido acha o fundo: Escurecida a noite dos lagos.
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Vetor Bilioso
E a máquina gordurosa que produz o fel Que dissolve a noite desfazendo as casas Acolhe todo o corpo e faz dele saturnos: Entrando nos orifícios e dilatando os poros.
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Avizinhar-se
O teu fio de cabelo na cama Minhas malhas sentimentais Corpo retalhado e a espera: E ela estará sempre chegando.
83
Grandeza
Tudo que é oceânico respira bolhas de afogamento.
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