PAUL VIRILIO
GUERRA E CINEMA Tradu(:iio Paulo Roberto Pires
Titulo original em frances: GUERRE ET CINEMA I. LOGISTIQU...
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PAUL VIRILIO
GUERRA E CINEMA Tradu(:iio Paulo Roberto Pires
Titulo original em frances: GUERRE ET CINEMA I. LOGISTIQUE DE LA PERCEPTION
INDICE
1984 © Cahiers du Cinema
1~ edic;:ao brasileira: fevereiro de 1993 © EDITORA PAGINA MERTA LTDA. Publicado mediante contrato firmado com Editions de I'Etoile
Todos os direitos em lingua portuguesa reservados por: EDITORA PAGINA MERTA LTDA.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sob qualquer forma, sem previa autorizac;:ao dos editores.
ISBN 85-85328-08-8 ISBN 2-866421086 (Cahiers du Cinema)
EDITORA PAGINA MERTA LTDA.
R. Dona Germaine Burchard, 286 05002-061 - Sao Paulo - SP Telefone: (011) 262-1155. 871-5550 Telefax: (011) 864-9320
"A forc;:a militar e medida em relac;:ao a aparencia" ............ 11 "0 Clnema . -e , nao eu . veJo, mas eu voo ................................ .23 A
"
'V6s que entrais no inferno das imagens, perdei toda esperanc;:a ..................................................................... 57 "A·lmpostura d· 0 lme d·· Iatlsmo " ........................................... .95 o cinemaFernAndra ........................................................ 125 "Quem tern prioridade no tempo tern prioridade no direito" .......................................................................... 145 Urn travelling de oitenta anos ............................................. 157 Iconografia ......................................................................... 191
, CAPtrULOUM
"A FORCA MlLITAR E DETERMINADA PELA
APARENCIA" Sun Tzu
A partir do momemo em que os combatentes c1andestinos - irlalldeses ou \)ascos, membros da ~~o Direla o u das Brigadas VcrmcJhas- utilizam 0 atemado, a mo ne, a tonura com fin s publici(fuios, alimentando os me ios de COlllunicacao com as fotogr.tfias de suas \'ltimas expiatbrias, 0 ate de guerra in lerna regressa as suas oogens psicotropicas, ao fciti~o, ao espet:icuJo fascinallle da imolacao e da agonia, apanagios cL"lS religiOes antigas e das reuniOes uibais.O lerronsmo nos relcmbra insidiosamente que aguerra eum sinloma delirante que se produz na meia-Iuz do transe, da droga e dosangue.Ai se produz uma unidade que idenlifica em seu corpoa
I. FOlOgrafia espirila oblida :ura\cs de sllpcrposi~.1o. Anonimo. final do sCculo XIX.
( I) Difmse POPUJom tt tutln 1978.
~
Paul Virilio, Edi.;6cs Galiltt,
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A guerra nao pode jamais ser separada deste espet
te quanto a explosao atomica em si (~). Ja se tratava do principio da dissuasao. o termo credibilidade, tao freqiientemente empregado em rela(ao as armas nucleares, nos revela 0 que se encontra implicito no equilibrio do terror: assimilado como dom de Deus pelos americanos, este equilibrio assemelha-se mais a urn dogma do que a qualquer teoria estrategica (4). Como declarava 0 marechal Gretchko, ministro da Defesa de Brejnev: "0 desenvolvimento continuo de nossas jor(:as armadas euma necessidade para a constru(:iio do socialismo e do comunismo... " Em outras palavras, mesmo quando nao empregados, os armamentos sao elementos ativos na conquista ideologica. Ainda assim, esta fe nuclear come(a a vacilar e ja encontra seus primeiros hereges. Alguns generais afirmam hoje que, antes de mais nada, "um conjlito nuclearniio sma 0 jim do mundo", repetindo, vinte anos depois, a afirma(ao do general Buck Turgdison, personagem principal do Dr: Fantastico, de Stanley Kubrik: senhor presidente, eu niio dina que nos niio nos chamuscaremos, mas acredito que so sofreremos dez ou vinte milhOes de baixas, dependendo do impacto das explosOes." 0 equilibrio do terror vacila, pois, uma vez que todo 0 mundo ou quase todo possui a bomba, 0 costume a gesticula(ao nuclear torna-se a ilusao de urn novo saber. Ilustrando ao nivel da perce~ao a divisa de Lord Mountbatten "quando funciona, esta ultrapassado" - uma nova Hiroshima nao passaria de urn lament
(2) Ortega y Gasset, em uma epigrafe do jomal de extrema direita chileno Orden Nuevo.
(3) En trevistas de Einstein para Abbe Pierre. (4) L'Evangile Nucliaire, p. 115, L'Insecuriti du Tmitoire, Paul Virilio, edi~Oes Stock, 1976.
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cientifica, ainda que, por tnis do especiculo necessario, se delineie urn programa bern concreto no qual 0 Pencigono gas tara em torno de urn bilhao de d6lares por ano. A mesma estrategia eempregada na estocagem de armamentos, que, sem duvida,jamais serao utilizados. Considerada insensata pelos profanos, a opera~ao nao e nenhuma aberra~ao sob 0 ponto de vista militar: sua magia consiste exatamente na falta de uma justificativa que nao seja a enumera~ao publica do potencial belico. Ja que, segundo J.P. Goebbels, "a grandeza unica de uma operaeao militar consiste no que ela tem de monstruoso", e exatamente a despropor~ao dos numeros anunciados (rela~ao de numero de megatons por habitante etc.) que procura alterar os habitos das popula~oes interessadas e estimular sua fe nuclear. E certo que, para criar 0 terror, os militares dos dois campos deverao fazer bern mais do que os quarenta milhoes de mortos da Segunda Guerra Mundial. E por este motivo que 0 presidente Carter, de certo modo prolongando 0 discurso de Eisenhower- que em 1961 denunciava 0 complexo militar-industrial-, declarou em sua mensagem de despedida ana~ao: "Nao emais do que uma questao de tempo para que a loucura, 0 desespero, a cobiea ou os erros de avaliaeao liberem estaJorea terrivel. Uma guerra nuclear liberaria uma potencia destruidora superior aquela desencadeada durante toda a Segunda Guerra Mundial e esta potencia estaria presente em cada segundo da longa tarde que seria necessaria para o laneamento de todos os misseis e de todas as bombas. A cada segundo teria lugaruma segunda guerra mundiale as primeiras horas deste conflito Jariam mais mortos do que todas as guerras da HistOria". Esta e uma corrida armamentista em que a doutrina de produ~ao e seus delirios tern progressivamente substitufdo a doutrina da utili dade mi.litar no campo de batalha, pois agora - como na guerra das Malvinas, em 1982 - a surpresa se destina aos dois adversarios simultaneamente, ja que as decisoes nao partem mais de politicos, de comandos militares ou do exercito, mas da tecnica. A batalha e nada mais do que a autonomia, a automa~ao da maquina de guerra com suas armas inteligentes, quase indetecciveis: missil Exocet, bomba Beluga, torpedo Tigerfish,
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Rayg14,m Project (urn projeto de ataque nuclear instantaneo desenvolvido pelo Pencigono), maquina do juizo final... Desde os primeiros misseis da Segunda Guerra Mundial ate a explosao de Hiroshima, a arma de teatro substituiu 0 teatro de opera~oes e, ainda que fora de moda, 0 termo arma de teatro empregado pelos militares revela que a hist6ria das batalhas e, antes de mais nada, a histOria da metamorJose de seus campos de percepeao. Ou seja, a guerra consiste menos em obter vit6rias materiais (territoriais, economicas ... ) do que em apropriar-se da imaterialidade dos campos de percep~ao. A medida que os modernos combatentes estao decididos a invadir a totalidade destes campos, impoe-se a ideia de que 0 verdadeiro filme de guerra nao deve necessariamente mostrar cenas de guerra em si ou de batalhas. 0 cinema entra para a categoria das armas a partir do momenta em que esci apto a criar a surpresa tecnica ou psico16gica. Nao foi por mero acaso que os filmes em cores multiplicaram-se durante a Segunda Guerra Mundial. Na Alemanha, a produ~ao de filmes coloridos foi uma consequencia direta de atos de pirataria logistica. No inicio da guerra, Josef Goebbels - que era nao s6 ministro da Propaganda, mas tambem patrono do cinema alemao - proibiu a proje~ao do primeiro filme em Agfacolor, A bela diplomata (Frauen sind doch bessere Diplomaten), com Marisa Rokk, porque julgou suas cores abominaveis e sinistras. Goebbels havia assistido aos filmes americanos, mais recentes, apreendidos em barcos aliados pela marinha alema, em especial Eo vento levou. Comparada ao Technicolor americano, a tecnica alema era, para Goebbels, "uma vergonha". Pouco depois, e especialmente gra~as a Eduard Schonicke, urn dos diretores da celebre empresa IG-Farben, 0 Agfacolor foi aperfei~oado e, em 1942, Veit Harlan, dire tor de 0 judeu Suss, po de realizar A cidade dourada (die goidene stadt), filme que se tornaria urn grande sucesso na Europa ocupada. Em 1943, por ocasiao do decimo aniversario do cinema hitlerista e do 25 Q ana da funda~ao da Universum Aktion Film (UFA) , 0 cineasta J. von Barky lan~ou As aventuras do barao de Munchhausen, urn filme de alto
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custo realizado em Agfacolor e contando com efeitos especiais muito bem-sucedidos para a epoca. E ainda gra~as a urn epis6dio ligado aguerra que S. M. Eisenstein viria pouco depois a rodar uma longa sequencia em cores para seu lvii, 0 Terrivel, realizado com pelicula Agfacolor confiscada do inimigo. Lembremos que a UFA foi fundada em 1917, em meio ao primeiro conflito mundial, e que no ana seguinte ja se tornaria 0 principal complexo de produ~ao, distribui~ao e comercializa~ao da Alemanha em guerra. Beneficiando-se de subsidios do Estado, desde sua funda~ao, a UFA sempre foi dependente do grande capital e, principalmente, dos Krupp e de sua industria beIica. Em plena guerra, pareceu estimulante a Goebbels e ao prOprio Hitler que 0 cinema ale mao se afastasse do preto-e-branco para rivalizar com a tonicidade da produ~ao americana. A guerra viria justificar a observa~ao de Goethe, que anotou em sua teoria das cores: "As cores tern uma estranha duplicidade e, se me epermitido assim diz.er, possuem um tipo de duplo hermafroditismo, uma maneira singular de se atrair, de se misturar, de se neutralizar, de se anular etc. Elas pruvocam, alim disso, efeitos psico16gicos, pato16gicos e esteticos que permanecem espantosos... " Conversando com minha mulher sobre esta potente faculdade mimetica do cinema americano, ela me disse que 0 que lhe pareceu mais insuportavel na chegada das tropas nazistas a Fran~a foi a sensa~ao de ser separada dos Estados U nidos, pois, de urn s6 golpe, desapareceram as revistas, os jornais e, sobretudo, os filmes americanos. Em seu universo de crian~a, o cinema era, de certa maneira, urn luxo da percep{:iio (Bergson) absolutamente distinto de outros tipos de espetaculo e diversao, urn luxo abstrato, semanal, do quallhe parecia muito penoso se privar. Esta sensa~ao foi muito bern compreendida pelos dirigentes alemaes: logo no inicio das hostilidades, atores e diretores foram submetidos a urn regime militar em que a simples ausencia dos estudios era considerada urn ato de deser~ao e, enquanto tal, passive I de puni~ao. Ate en-
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tao Goebbels mantinha uma rela~ao de desprezo com os profissionais de cinema, muitos deles pouco convictos da causa nazista, alguns comunistas e outros judeus ou casados com mulheres judias. Estes ultimos conheceriam urn destino tragico como Hans Meyer-Hanno, Joachim Gottschalk e Fritz Khune, eletricista-chefe da UFA, que em 1944 suicidou-se junto com sua esposa Loni para evitar a separa~ao iminente que viria com a deporta~ao da jovem judia (5). Dispondo de tais meios coercitivos, a Alemanha continuaria . a produzir, ate 0 fim da guerra, filmes bastante caros. Quando, nas cidades bombardeadas, as salas de cinema eram reduzidas a ruinas, exibiam-se os filmes nos ultimos redutos nazistas. Este foi 0 caso de Kolberg, rodado entre 1943 e 1944 com recursos ilimitados - 0 filme custou oito milhoes e meio de marcos, oito vezes mais do que uma produ~ao de qualidade - , que s6 viria a ser exibido pela primeira vez no dia 30 de janeiro de 1945, na fortaleza atlantica de La Rochelle, na Fran~a, ainda sob dominio alemao. Detenhamo-nos urn pouco mais nas circunstancias extraordinarias da realiza~ao de Kolberg. Em plena derrota militar, Goebbels queria fazer deste filme "0 maior de todos os tempos, uma epopeia que ultrapasse, por seu fausto, as mais suntuosas produ{:oes amencanas ... ". (6) Mais uma vez a Alemanha cedia aobsessao pe10 arsenal de percep~ao americano, do qual podia obter-se facilmente elementos mais ou menos esparsos, como revistas, jornais ou filmes. Nao nos esque~amos de que, alem dos agentes secretos e dos viajantes credenciados, continuavam a transitar mais ou menos discretamente os correios dos prisioneiros de guerra e dos diplomatas, alem da imprensa internacional, servidos pelas liga~oes aereas toleradas, vaos rotineiros entre Londres, Lisboa, Estocolmo e Genebra. Ai se encontravam preciosas fontes de informa~ao para os envolvidos no conflito: (5) Le CinhnaAllemand seWn Goebbels, Veit Harlan, edi~oes France-Empire,1974. (6) Ibid.
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os avioes de carreira, aliados ou alemaes, eram encontrados, lado a lado, nos aeroportos dos paises neutros. Nos Estados Unidos, a prodU/;:ao cinematografica era acompanhada atentamente pelo Alto Comando militar, quando. 0 proprio Pentagono nao se tornava diretamente produtor e dlStribuidor de filmes de propaganda. Nos Estados Unidos, a guerra tambem fez com que cineastas seguissem urn rumo tao ambiguo - sendo os casos mais famosos de John Huston e Anton Litvak-quanto inesperado. Em 1942, Luiz Bunuel podia servisto rodando documentarios para 0 exercito americano, enquanto Frank Capra abandonava suas satiras realizadas no periodo entre-guerras (principalmente em colaborayao com Harry Langdon) e realizava pesados monumentos didaticos como Por que nos combatemos (lVhy we fight). As coreografias e canyoes de Fred Astaire tambem ofereciam, ainda que mais simplesmente, convites dissimulados a uma nova mobilizayao. A propria agressividade das cores destes filmes, por muito tempo considerados de mau gosto pelos europeus e principalmente pelos franceses, funcionou como verdadeira pintura de guerra, encarregada de reativar os espectadores, afasta-Ios da apatia diante da desgraya ou do perigo iminente, evitar a desmoralizayao das massas, tao temida pelos comandantes militares e pelos chefes de Estado. Nos Estados Unidos, a magia das armas renova diretamente a magia do mercado: nos anos trinta, guerra economica com 0 New Deal e, mais tarde, guerra total ate 1946 quando, no dia seguinte a Hiroshima, Fred ( Astaire canta em Blue Skies urn ceu tao luminoso quanta nu:f: \ blado, ceu technicolor tao difundido durante 0 conflito e que agora!:-efl.t.:te a distanc~'.l~_~~l.a?~::olia daqu~les ~ue, em meio as ruinas finalmente sucumblram ao luto e as ruznas. Por vol) ta de 19~O, com a Guerra Fria'~: ;~~ tarde, :~·~··os ~~nflitos da Coreia e do Vietna, a politica de Roosevelt foi abandonada e a antiga produyao de propaganda (principalmente no estilo de Por que nos combatemos) e retirada de circulayao. A alegria convalescente do imediato pos-guerra se apaga progressivamente e a desmobilizayao das massas esta na ordem
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do dia. A partir de entao desaparece a grande comedia musical americana, privada tanto de suas aspira~oes generosas quanto de suas necessidades militares e politicas pela dissuasao nuclear(7}. Segundo Napoleao, a "aptiddo a guerra ea aptiddo ao movimento". No seculo XIX, 0 desenvolvimento da psicologia militar coincide exatamente com 0 desenvolvimento da psicologia experimental e da fisiologia: EJ..MaITY, medico fisiologis, ta e disdpulo de Claude Bernard, colo~a a cronofo~ogr~~ - da qual e urn dos inventores - a serVl~O da pesqmsa mtll(' tar sobre 0 movimento ... 0 charme persistente de Fred Astai) re esta, sem duvida, nesta fusao/ confusao insuspeitada en~re a ciencia e a danya: ja pude demonstrar 0 quanto seu smokzng debruado com finas faixas brilhantes e suas coreografiasque quase sempre exaltam 0 andar ou os gestos mais banais do cotidiano - relembram 0 desvio do olhar presen te nas experiencias de Marey. A brancura dos passaros ou cavalos registrada pelo inventor da cronofotografia, ou ainda as faixas prateadas sobre roupas negras das pessoas que participavam de suas experiencias, tinham como principal caracteristica promover 0 desaparecimento do corpo em meio a uma mistura instantanea de dados que oscila entre a produyao de impressoes luminosas resistentes e esta pura fascina~ao que destroi a percep~ao consciente do espectador eo conduz ahipnose, ou a qualquer outra condil,;ao patologica analoga (8). ft, portanto, normal que 0 sapateado dos anos trinta, quarenta e cinqiienta ainda impressione quando reproduzido em copia pirata e absorvido em altas doses. A superexposi~ao do espectador a estas imagens plenas de ideias e segundas inten~oes continua a ser urn dos remedios mais eficazes contra a escuridao. (7) Durante os anos cinqiienta, pesquisam-se novas surpresas tecnicas: cinemascope, cinerama, terceira dimensao, vista atraves dos 6culos polaroid. (8) L 'Art de Voir, A. Huxley, edi~6es Payot.
CAPiTuLo DOIS
"0 CINEMA NAo t EUVEJO, MAS
Euv6o" parifrase de NamJune Pail:.
Foi em 1861, observando 0 funcionamento da roda com pas que impulsionava 0 navio em que viajava, que 0 futuro coronel Gatling se inspirou para criar a metralhadora com tambor cilindrico movida a manivela. Em 1874, 0 frances Jules Jansen se inspirou no revolver com tambor (patenteado em 1832) para criar seu revolver astronamico, capaz de obter fotografias em serie. Servindo-se desta ideia, Jules Etienne Marey aperfei~oou seu fuzil cronofotografico, que permitia focalizar e fotografar urn objeto que se desloca no espa~o. E gra~as as informa~oes transmitidas pelo Entreprenant, 0 primeiro balao de observa~ao a sobrevoar urn campo de batalha, que 0 general Jourdan obtem a vitoria de Fleurus em 1794. Em 1858, Nadar obtem suas primeiras fotografias aereas, tiradas de dentro de urn balao. Durante a guerra civil americana, as forps da U niao utilizam baloes equipados com urn telegrafo cartografico aereo. Logo os militares lan~ariam mao das mais variadas combina~oes: pipas equipadas com cameras, pombos carregando pequenas maquinas fotograficas, baloes com cameras, precedendo assim ao uso intensivo da cronofotografia e do cinema em avioes de reconhecimento (milhares de fotografias foram obtidos durante 0 primeiro conflito mundial). Em 1967 a For~a Aerea americana utilizou vaos nao pilotados para sobrevoar 0 Laos e transmitir informa~oes aos centros da IBM instalados na Tail~mdia e no Vietnam do SuI. A partir de enta~, niio mais existe
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a visiio direta: em urn espa~o de 150 anos, 0 campo de tiro transformou-se em campo de filmagem, 0 campo de batalha tornouse uma loca~ao de cinema fora do alcance dos civis. Durante 0 primeiro conflito mundial, D.W. Griffith foi 0 unico cineasta americano autorizado air ao Jrontcom 0 objetivo de rodar urn filme de propaganda para os aliados. Filho de urn ex-combatente da Guerra da Secessao e antigo profissional de teatro, Griffith realizou nos Estados Unidos as cenas de batalha de Nascimento de uma nafiio ao mesmo tempo em que se iniciava na Europa umaguerrareal (1914). Nestefilme, 0 campo de batalha e mostrado atraves de urn plano geral tornado de uma colina, estando a camera colocada na mesma posi~ao de Pierre Bezoukhov, 0 her6i de Guerra e Paz, de King Vidor e Mario Soldati (1955), como se 0 cineasta contemplasse os combates de Borodino sofrendo todos os riscos da visao direta. Na verdade, Griffith filma "sua guerra" menos como urn pintor de epopeia do que como os diretores de cena, que anotam com minucia extrema 0 minimo movimento a ser executado no palco do teatro. Karl Brown relembra: "Nos conheciamos a localizafiio de cada canhiio. Gada movimento de cada grupo na multidiio. Eu Jalo em grupos porque cada um deles estava sob comando de um subdiretor, um dos inumeros assistentes de Griffith: Victor Fleming,Joseph Henaberry, Donald GrisP"(I).
o conjunto da a~ao nao era organizado atraves de urn megafone (pois ninguem poderia ouvir as ordens em meio a explosOes e tiros de festim), mas como nas opera~oes navais, utilizando uma serie de bandeiras coloridas que, quando combinadas, determinavarn 0 movimento a ser realizado. Hoje, escreve Kevin Brownlow (2), qualquer cineasta amador poderia reproduzir as condi~oes desta filmagem, pois teria a sua disposi~ao recursos infinitamente maiores do que Griffith e seu fiel operador, Billy (1) Hollywood- os pioneiros, edi~oes Calmann-Levy, 1981. Obra insubstituivel de Karl Brownlow e John Kobal, principalmente pelas fotografias. Muitas passagens aqui comentadas sao extraidas deste livro. (2) Ibid.
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Bitzer, que nao dispunha de fotometros, zoom ou cameras aceleradas, mas somente de uma camera de madeira Pathe movida a manivela. Sem dispor tampouco de equipamentos de ilumina~ao, Bitzer utilizava-se unicamente de espelhos para redirecionar a luz do sol. Apesar da precariedade, os resultados obtidos sao extraordinanos. No final do seculo passado, Billy Bitzer havia filmado 0 que chamava de "demonstra~oes de movimeI].tos" - pequenos filmes inspirados no trabalho dos irmaos Lumiere e exibidos em salas de music-hall- e tinha viajado a Cuba em plena guerra hispano-americana, enviado pela American Mutoscope Company. Ainda que, em 1898, Bitzer tenha realizado experiencias fixando sua camera Mutograph no para-choques de uma locomotiva em alta velocidade, 0 cinema que ele faria junto a Griffith seria ainda semelhante ao do Salao Indiano, onde se projeta A chegada de um trem na gare de Giotat: observa-se 0 movimento do exterior, de maneira sedenciria, a imagem se constitui, acirna de tudo, em urn olhar sobre 0 que se move. A camera reproduz as circunstancias da visao comum, ela e a testemunha homogenea da a~ao e, ainda que as imagens impliquem urn retardamento temporal, sua for~a consiste em dar ao espectador uma ilusao de proximidade em urn conjunto temporal coerente. Lembremos que muitos cineastas, para evitar ao maximo os cortes no processo de montagem, organizavam seus filmes, do come~o ao fim, atraves de urn ensaio de continuidade, cronometrando cada cena para que fosse conhecida antecipadamente a dura~ao aproximada do filme. Este metodo, frequente na Alemanha dos anos vinte, influenciara nomes como Carl Dreyer, que se esfor~ara para criar uma unidade de tempo artificial gra~as a uma unidade de lugar real, ilustrando assim a reflexao de Walter Benjamin, que definia 0 cinema como uma obra de arte "cuja percepfiio se dti coletivamente, assim como ocorreu desde 0 inicio com a arquitetura". (3) E (3)"A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tecnica", Walter Benjamin, in: OlTrasf-scolhidas- volume 1, Sao Paulo, Brasiliense, 1985.
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esta caracteristica da arquitetura que marcara 0 cinema no inicio do seculo XX, principalmente na Europa. A luz do cinema nao se opoe a opacidade do material arquitetonico (da camara escura); ela e apenas, como a eletricidade, urn padrao tecnico surpreendente por sua dura<;:ao, pela produ<;:ao de urn novo dia. A arquitetura resiste ao niilismo da objetiva assim como, cinco seculos atras, as muralhas da antiga fortaleza resistiram a cinematica da artilharia antes de desaparecerem, destruidas pelo impressionante progresso de seu poder de proje<;:ao. ;>t, No fim do seculo XIX, Oskar Messter transformou 0 quarto onde morava em uma camara escura. Na falta de uma camera, Messter abriu urn simples orificio na parede ao lado da rua e utilizava 0 mecanismo de seu projetor para imprimir em pelicula virgem. Suas experiencias precedem os teoricos do Kammerspielque, assim como Lupu Pick, pensavam que a pressiio insuportavel do tempo e do lugar pudesse substituir a psicologia dos atares. Em 1925, Dreyer roda Le Maitre du Logis no espa<;:o mais exiguo possivel, urn predio de dois andares, reconstituindo os estiidios em seus minimos detalhes; dois anos depois filmaria A paixiio deJoanaD 'Arc em uma iinica loca<;:ao, verdadeira arquitetura compacta erguida as portas de Paris, com 0 plano das filmagens coincidindo cronologicamente com 0 desenrolar do processo real movido contra a personagem. Pode-se pensar aqui na celebre Black Maria, de Edison, uma outra camara escura que serviu como estiidio e sala de proje<;:ao, capaz de girar sabre seu proprio eixo para captar, atraves de seus flancos abertos, 0 maximo de luz solar. A exposi<;:ao a uma logica cronolOgica substitui insidiosamente a demora da antiga pose fotogritfica e a arquitetura do cenano. Seus volumes e paredes que dividiam os espa<;:os sao substituidos pelas seqiiencias livres da montagem: cria-se a elipse da narrativa. Urn pouco como minha neta - que ao se deslocar pelos comodos , do apartamento ever 0 sol brilhar em cada uma dasjanelas acredi\. ta que existam muitos s6is - 0 cinema e a inaugura<;:ao de urn ci)clo da luz independente e ainda desconhecido. Se para 0 fotogra-
fo era tao penoso mover-se, e sobretudo porque a opera<;:ao de rnavimentar 0 tempo cinematico, perceber sua velocidade original em urn ambiente antigo, imovel e rigidamente ordenado foi, para os pioneiros, uma tarefa tao fascinante quanto dificil de inventar(4). Quando, no seculo XVII, 0 engenheiro Joseph Cugnot inventa a tra<;:ao automovel, ele a demonstra lan<;:ando urn veicu10 militar contra uma parede, que e destruida. Curiosamente os irmaos Lumiere iriam demonstrar a automobilidade cinematica, urn seculo mais tarde, exibindo urn filme intitulado DemoliCiio de uma parede: em urn primeiro momento, a pare de de saba em meio a uma nuvem de poeira. Em seguida a cena e projetada ao contrario e a pare de se reconstitui, inaugurando assim a trucagem cinematogritfica. Melies tam bern gostava de repetir este ritual de destrui<;:ao acidental, bastando que nos lembremos do episodio de Voyage atravers l'impossible, rodado em 1904, em que 0 automabouloj dos sabios do Instituto de Geografia Incoerente renova a experiencia de Cugnot, destruindo a parede de urn albergue; 0 plano seguinte mostra 0 interior do local, onde os clientes jantam tranqiiilamente e sao surpreendidos pelo desabamento que ocorre logo em seguida, como se a parede tivesse retido 0 tempo cinematico. A partir de entao, os cineastas nao mais se preocupam em passar de urn plano a outro, fazendo seus atores atravessarem paredes, abrindo portas dentro de casa sem fachada, onde as paredes do cenario aparecem de perfil para os espectadores, tao finas quanto os intersticios que separam os fotogramas da pelicula. Ao adotar esses procedimentos, os cineastas se mostravam pouco conscientes dos deslocamentos do tempo cinematico, negligenciando 0 fato de que, mesmo em uma arqui,tetura res-
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(4) E conhecida a refIexao de Walter Benjamin sobre urn rel6gio em funcionamento cuja presell(;a em urn palco de teatro seria inconcebivel, enquanto no cinema pode intervir utilmente na a~ao. Benjamim ve ai uma reciprocidade de atua~ao entre 0 objeto eo homem que pode servir eficazmente a urn pensamento materialista. Hoje vemos que tal considera~ao e mais uma prova de independencia do tempo cinematico.
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trita, tudo nao passa de urn problema de velocidade. 0 motorclmera funciona con tendo suas energias pot~s como os colegiais de Pagnol, que evitavam correr para "prolongar" seu horario de recrea~ao.
*** No final do primeiro conflito mundial, quando Griffith chega ao front frances para rodar seu filme de propaganda, a fase arcaica
daguerraja havia terminado ha muito tempo, desde 1914, com a batalha de Marne, 0 ultimo combate romantico. Griffith deparou com urn conflito que se tornava estitico e onde, para milhoes de homens, a a~ao principal consistia em fixar-se nos territ6rios, camuflando-se por meses - ate mesmo durante anos, como em Verdun - em meio a prolifera~ao impressionante de cemiterios e de valas comuns. Cineasta dos antigos combates; Griffith defronta-se bruscamente com a incapacidade de dimensionar os acontecimentos, agora dependentes do desenvolvimento fulminante de novas tecnicas e ciencias desconhecidas que enfatizam os meios no lugar dos fins. A olho nu, 0 imenso campo de batalha parecia nao ser formado por nada, nenhuma arvore ou vegeta~ao, agua e tampouco terra. Entre as trincheiras dos alemaes e dos aliados, separadas somente por sessenta ou oitenta metros, nao se ve mais os combates corpo-a-corpo ou a dupla homicida-suicida. 0 famoso slogan "nao passarao" assume urn outro sentido,ja que ninguem efetivamente se desloca em dire~ao alguma. Muitos ex-combatentes de 1914 me disseram que, se mataram os inimigos,jamais souberam em quem atiraram, porque a partir dessa guerra outros eram encarregados de olhar em seu lugar. Esta regiao abstrata, que Apollinaire descreveu com precisao como 0 lugar de urn desejo cego e sem dire~ao, os soldados conheceram somente pela trajet6ria de seus tiros ("Meu desejo estti Iii no qual eu atiro") (5), (5) Teru1re Comme lR Souvenir, Gullaume Apollinaire, edi~Oes Gallimard. I
tensao telesc6pica para uma aproxima~ao imagimiria, uma formaliza~ao do aliado/adversario, desaparecido antes mesmo de sua provavel fragmenta~ao. Na defasagem inesperada da visao indireta, 0 soldado tern menos a sensa~ao de ser destruido do que de ser desrealizado, desmaterializado, de perder bruscamente todo 0 referencial sensivel em beneficio de uma exacerba~ao dos sinais visiveis. Estando constantemente sob vigilancia do adversario, 0 soldado torna-se como 0 ator de cinema do qual fala Pirandello, exilado da cena e de si pr6prio, contentando-se em atuar diante da peque~a maquina que, por sua vez, atuara diante de urn publico proJetando sua sombra: "Percebem confusamente, com um sentido inquieto, indefinivel de vazio, alias, de esvaziamento, que 0 seu corpo quase subtraido, suprimido, despojado de sua realidade, de seu resPiro, de sua voz, do barulho que ele produz ao movimentar-se, para se tornar somente uma imagem muda que treme por um momento na tela e desaparece em silincio... ". (6)
e
Se a nitro-celulose que e utilizada na fabrica~ao de filmes virgens tambem e empregada na fabrica~ao de explosivos, a divisa da artilharia - 0 que eiluminado erevelado - nao seria a mesma do cinegrafista? Ja em primeiro de outubro de 1914, a artilharia antiaerea acopla holofotes aos canhoes. Em 1918, alem das onze esquadrilhas de ca~a, a defesa do territ6rio britilnico conta 284 canhoes e 377 holofotes varrendo 0 ceu. Em 9 de janeiro de 1915, quando 0 Kaiser ordena os primeiros ataques aereos sobre Londres e suas zonas industriais, 0 DCA britanico produz filmes notiveis dos bombardeios noturnos realizados pelos Zeppelins alemaes. Pode-se avaliar aqui 0 impressionante atraso da cinematic a civil, ainda fortemente tributiria da ilumina~ao solar quando, desde 1904, as For~as Armadas russas ja utilizavam refletores na defesa noturna de Port Arthur. Esses refletores logo seriam acoplados as cameras-metralhadoras.
~6) C~~s de Serafino Cubllio Dperador (Si Gira), Luigi PirandeIIo, tradupo de SergIO Mal'ro, Petr6polis, Vozes, 1990, p.72.
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Griffith devia mostrar-se "muito desapontado com a realidade do campo de batalha", pois a facticidade da guerra moderna tornouse realmente incompativel com a facticidade cinematografica tal como ainda a concebemos e tal como seu publico prefere. Apesar disso, Griffith obtem algumas tomadas interessantes na guerra, tendo como operador de camera 0 capitao Kleinschmidt. :E possivel assistir a esses filmes no Imperial War Museum de Londres. Em seguida, Griffith deixa 0 continente para recriar na Inglaterra batalhas que realmente se desenrolavam a poucos quilometros de distlncia. Hearts of the World (1918) e rodado na planicie de Salisbury, que, pouco depois, viria a servir como "cemiterio especial" para as vitimas da epidemia de gripe viral que se abatia sobre 0 mundo e viria causar, em urn ano, cerca de 27 milhoes de mortes alem das ocorridas na guerra. Retornando a Hollywood, Griffith termina 0 filme no rancho Landsky com 0 orc;:amento reduzido, e tendo Stroheim como cpnselheiro militar. Apesar de seu roteiro banal, 0 filme alcanc;:a grande sucesso nos Estados U nidos e causa urn forte impacto sobre a opiniao publica. Sem duvida, Griffith sentiu diante da guerra modern a uma amargura comparavel a que ja havia experimentado ao descobrir a Cabiria, de Pastrone, um filme rodado em 1912 na lcilia e que chegaria aAmerica em 1914. Eis 0 relato de Karl Brown: "As criticas de Cabiria provocaram um tal efeito sobre Griffith que ele proprio e os membros de seu estad(}-maior embarcaram no primeiro trem para assistir ao filme em San Francisco... " E Kevin Brownlow acrescen ta: "ele devia estar exultante por terrealizado um filme como 0 nascimento de uma N ac;:ao, entao saudado como a maior obra-prima do mundo, mas que se mostrava imensamente deprimente ao ser assistido depois de um filme como Cabiria... Do ponto de vista dos meios de realiza(:ao e habilidade tecnica, 0 filme de Griffith parecia pre-histDrico se comparado a produ(:ao italiana".(7) Cabiria foi produzido no pais
(7) Hollywood, de K. Brownlow.
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dos futuristas, que divulgaram seu manifesto tres anos antes do inicio das filmagens da obra de Pastrone. Tanto 0 dire tor quanto os futuristas tern em comum 0 fim da organizac;:ao do pensamento de acordo com a linearidade euclidiana e a pretensao de alcanc;:ar a equivalencia entre a visao humana e a propulsao energetica. 0 diretor negligencia voluntariamente 0 carater narrativo do roteiro em beneficio do efeito tecnico, do aperfeic;:oamento dinamico das tomadas: "Obcecado pela terceira dimensao, Pastrone conseguiu criar a ilusao de profundidade separando os planos visuais por constantes movimentos de camera... " (8) • Usando e abusando sistematicamente do carello (travelling), que ele proprio havia aperfeic;:oado, Pastrone mostrou que a camera serve menos para produzir imagens (0 que os pintores e fotografos ja faziam ha muito tempo) do que para manipular e falsificar dimensoes. "Para criar 0 onirico, ou seja, a alucina(:ao visual, afirma Ray Harryhausen, urn dos mestres contemporaneos dos efeitos especiais, enecessario nao mais copiar 0 'movimento cinema' assim c(}mo um pintor nao copia uma fotof!7afia." Esta reflexao de Harry Hausen coloca urn problema preciso: a verdade-cinema seria produzida 24 vezes por segundo pelo motor-camera, mas a primeira d~ferenc;:a entre cinema e fotografia e 0 fato de que 0 ponto de VIsta possa ser movel e escapar a estagnac;:ao do foco ou da pose para confundir-se com as velocidades veiculares. A partir das experiencias de Marey, 0 equipamento de filmagem torna-se movel, e 0 estavel substitui 0 fixo. Com Pastrone, 0 que vai ser falso no cinema nao e 0 efeito de perspectiva ace lerada, mas a. profundidade em si, a distancia entre 0 tempo e 0 espac;:o proJetado ... a luz eletronica da holografia (laser) e da infografia (circuito integrado) viria a confirmar esta relativi~ade em que a velocidade surge como grandeza primitiva da Imagem e, enquanto tal, como origem da profundidade. o filme de Pastrone e con temporaneo da guerra colonial na
(8)Ibid.
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Lfbia, urn conflito que e uma das conseqiiencias do delirio patriotico assumido pelos italianos depois da celebra~ao do cinqiientemirio de sua unidade nacional. A partir de enta~, 0 pais e lan~ado no esfor~o militar-industrial. Gabriele D'A,nnunzio, que colabora no roteiro de Cabiria e, ele proprio, urn dandy guerreiro proximo ao movimento futurista e tambem urn piloto de guerra que, pouco mais tarde, desempenharia urn papel crucial na tomada de Fiume (9). Curiosamente, a automobilidade cinematica tern pouca participa~ao nas atividades futuristas: apenas dois filmes, em 1914 e 1916, urn dos quais estigmatizado por Marinetti (10), ainda que ele proprio tenha realizado uma primeira jun~ao entre a guerra, a avia~ao e uma visao, que, na fugacidade da perspectiva aerea, torna-se dromoscopica (11) • Em 1912, Marinetti publica quase'que simultaneamente 0 Monoplano do Papa - relato (9) Marinetti. Giovanni Lista, edic;:Oes Seghers, 1976
(10) Em 1963, em Tempo de Guerra (Les Carabiniers), Godard relaciona os bombardeios com os cartoes-postais de paisagens. Em 1914, Apollinaire incorpora a seu primeiro ideograma a colagem de urn cartao postal enviado por seu irmao e, no mesmo ano, Marinetti insere na textura cinematogratica de Zang Toumh Toumh 0 texto integral de urn panfleto lanc;:ado de urn aviao bulgaro durante a guerra dos Balds. Em 9 de agosto de 1918, a esquadrilha americana "A Serenissima", chefiada por D'Annunzio, inunda com panfletos a cidade de Viena. Depois da guerra de 1870, a industria do cartao-postal inaugurou urn transporte da fotografia: imagens in termediadas e nao mais imediatas, muito frequentemente an6nimas, populares e baratas. Alem das ilustrac;:oes sentimentais, eroticas ou simplesmente publicitfuias, os cartoes-postais difundiam uma propaganda nacionalista e revanchista de uma politica natalista e cientificista. Mas, acima de tudo, muitos cartoes prefiguravam as colagens surrealistas: pode-se encontrar montagens fotograticas que juntam paisagens reais, acessorios desenhados, veiculos inventados e personagens burlescos esboc;:ando uma estetica proxima aos futuros filmes de Melies e Zecca. (11) Virilio define a dromologia como 0 estudo da velocidade. "Dromologia vern de dromos, corrida. Para mim foi a entrada no mundo do equivalente velocidade ao equivalente riqueza", explica na longa entrevista com Silvere Lotringer publicada no Brasil sob 0 titulo Guerra Pura, Sao Paulo, Brasiliense, 1984 (N do T).
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de viagem de urn aviador futurista no qual pode-se reconhecer o proprio autor - e A Batalha de Tripoli, urn relato inspirado em sua entusiasta temporada no front libio onde a mao que escreve "parece separar-se do corpo e prolongar-se em liberdade hem distante do cerebro, que tambem se separa do corpo, que por sua vez. parece tornar-se aereo e observar, bem do alto, as frases inesperadas que saem da caneta." t Se, no fim do seculo XIX, 0 cinema e a avia~ao surgem si\ multaneamente, e somente em 1914 que 0 aviao deixara de ser urn simples meio de transporte ou de bater recordes (0 Deperdussin ja ultrapassava os duzentos quilometros por hora em 1913) para tornar-se urn modo de ver ou talvez 0 ultimo modo ) de ver. Ao contrario do que se pensa, a avia~ao de observa~ao encontra-se na origem da for~a aerea, que em urn primeiro momento seria criticada pelos estados-maiores. Encarregados de informar as tropas no solo, de regular os tiros de artilharia ou de fotografar, os avioes de reconhecimento sao admitidos somente como urn "observador voador", quase tao estagnado quanto 0 balao de observa~ao com seus cartografos armados de papeis e lapis. A informa~ao movel seria atribuida ainda acavalaria e asua velocidade de penetra~ao terrestre ate a batalha do Marne quando, pela prime ira vez,Joffre leva em conta as informa~oes dos pilotos e calcula os movimentos necessarios para sua ofensiva vitoriosa. As condi~oes tecnicas dos avioes de observa~ao eram tao precarias na epoca que, durante as missoes de reconhecimento, era necessario manter uma altitude constante para que fosse respeitada a escala das fotografias, man tendo os avioes em uma virtual imobilidade que os tornavam extremamente vulneraveis. Jean Renoir, que fez parte de uma dessas esquadrilhas, pediu a Jean Gabin para que em A Grande [lusdo usasse 0 uniforme que ele proprio vestiu durante a guerra. "A hist6ria deA Grande Ilusao erigorosamente verdadeira, diz Renoir, ela me foi contada por muitos de meus companheiros da guerra de 1914/18 e especialmente por Pinsard. Ele servia na avia¢o de ca(:a e eu na divisdo de reconhecimento. Freqiientemente eu ia fotografar as linhas alemiis e, por muitas vez.es, ele me salvou a vida no momento em que os ataques inimigos tornavam-se muito insistentes. Ele mesmo foi derruba-
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do sete vezes, sete vezes Joi preso e por sete vezes escapou ... " Finalmente os estados-maiores encararam seriamente a avia~ao de reconhecimento aereo, uma opera~ao que, fosse titica ou estrategica, a partir de entao seria cronofotografica e, mais tarde, cinematografica. Apesar de os avioes serem equipados com telegrafos sem fio que os mantinham em contato imediato com 0 estado-maior, a analise dos documentos pelos militares em terra implicaria uma grande demora, criando urn importante intervalo entre a produ~ao das fotografias e sua reintrodu~ao na atividade militar. Eram poucos os pilotos realmente excepcionais: no inicio havia os de "tipo esportivo" como Vedrines ou Pegoud e mais tarde a grande maioria teria sua origem em outras armas, principalmente na cavalaria, divisao de reconhecimento por excel€~ncia. A liga~ao entre a avia~ao e a cavalaria e uma tradi~ao ainda hoje mantida nos Estados Unidos. No come~o da guerra, os pilotos preferiam voar solitariamente, mas, ao longo dos combates e missoes de reconhecimento, tornou-se necessaria uma destreza excepcional para, a urn so tempo, atirar, filmar e pilotar. Frequentemente os experimentadores enfrentavam essas dificuldades, inventores como Roland Garros (morto em 1918), que criou urn blindado especial que permitia acoplar a metralhadora ahelice do aviao, ou Orner Locklear, integrante do "Air Corps" que se torna famoso por andar na asa de urn aviao em pleno voo para provar que poderia instalar-se uma metralhadora extra. A partir de 1919 inicia em Hollywood a carreira de "stuntfly" (doubleaereo) como na Fran~a Roland Toutin, 0 aviador de A Regra do fogo, de Renoir, ou ainda 0 antigo pilato de guerra Howard Hawks, que, financiado por Howard Hughes, realiza em 1930 A Patrulha da Alvorada (The Dawn Patrol}, baseando-se em SUas recorda~oes. Emjulho de 1917, Manfred von Richthofen, 0 celebre "Barao Vermelho", inaugura seu "flying circus", composto por quatro esquadrilhas de dezoito avioes cada. No "Richthofen Circus" nao mais havia acima, abaixo ou qualquer outra polaridade visual. Para os pilotos de guerra, os
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efeitos especiais ja existiam e se chamavam "looping', "fo lha-seca", "grande-oito" ... A partir de en tao a visao aerea escapa avisao euclidiana tao forte mente experimentada pelos combatentes nas trincheiras. A avia~ao abre tuneis endoscopicos, e 0 acesso mais surpreendente possivel avisao topologica, ao "ponto cego" antevisto nas atra(,;oes dos parques de diversoes do seculo anterior, nas rodas-gigantes e mais tarde nas montanhas-russas e em outras diversoes presentes, por exemplo, na Berlim do posguerra. Depois de mais de quarenta anos de estagna~ao, os americanos compreenderam, no Vietna, a importancia de repensar as opera~oes de observa~ao aerea. Neste momenta produziu-se uma revolu~ao tecnica que pouco a pouco venceu os limites da pesquisa no tempo e no espa~o ate que 0 reconhecimento aereo e seus metodos de observa~ao desaparecessem por si pr6prios na instantaneidade da informa~ao em tempo real. A partir de entao os objetos e os corpos sao esquecidos em beneficio de suas linhas fisiologicas, panoplia dos novos meios, sensores do real, mais sensiveis a vibra~oes, ruidos e odores do que as imagens; cameras de video de hipersensibilidade luminosa, luzes infravermelhas, imagem termograficaque define os corpos segundo sua natureza e temperatura ... Quando os lapsos de tempo tornam-se tempo real, 0 proprio tempo real escapa arestri~ao da apari~ao cronologica para tornar-se cinematico. A informa~ao nao e mais congelada como na antiga fotografia e permite, ao contrario, a interpreta~ao do passado e do futuro na medida em que a atividade human a e sempre fonte de calor e luz e pode, portanto, extrapolar no tempo e no espa~o ... Em 1914, entretanto, a cobertura sistematica do campo de batalha atraves do reconhecimento aereo e seus equipamentos era ainda tributiria da noite, do nevoeiro e das nuvens baixas. Somente os bombardeiros escapavam aalternfmcia do dia e da noite. Tendo iniciado suas opera~oes equipados com simples lampadas eletricas, os bombardeiros logo receberiam holofotes, colocados sob os trens de aterrissagem, e lampadas instaladas nas extremidades da asa.
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Esta investigal,;ao, condicionada a luminosidade e as condiI,;oes climaticas e dominada alternadamente pela visao aerea e terrestre, forma a tram a dialetica de Figures in a Landscape, urn filme pouco conhecido, de Joseph Losey (1970). Assim como o helic6ptero da Defesa Civil ou da policia, 0 helic6ptero utilizado por Losey na perseguil,;ao de dois fugitivos superpoe paisagens do Oeste a imagem. 0 combate e aqui urn jogo de espa1,;0, todos os instrumentos colaboram para sua satural,;ao. Para aqueles que perseguem visualmente, e necessario abolir 0 intervalo, anular a distancia, primeiro atraves dos meios de transporte e em seguida atraves de suas armas. Quanto aos que escapam, sua munil,;ao e menos urn meio de destruil,;ao do que urn meio de distanciamento, eles situam-se exatamente no local que os separa e s6 podem sobreviver atraves da pura distancia. Sua ultima protel,;ao e a continuidade, a natureza. Evitando tudo que design a a utilidade - como a estrada ou a casae tudo 0 que con tern alguma informal,;ao, eles se entranham nas dobras do terreno coberto de vegetal,;ao e arvores, nas perturbal,;oes atmosfericas e na noite. E interessante lembrar que Figures in a Landscape foi rodado em plena Guerra do Vietna, quando a Prime ira Divisao de Cavalaria - a me sma que perseguiu os indios nas grandes planicies do Oeste americano - foi equip ada com helic6pteros de combate, fazendo prosseguir a tradil,;ao desta arma. Dez anos mais tarde, Coppola viria a se inspirar bastante na obra de Losey para realizar as dan~as dos helic6pteros em Apocalypse Now, seguin do 0 ritmo do western ao som de urn toque de corn eta caracteristico de urn esquadrao de cavalaria. A partir de 1919, quando foram reiniciados os voos comerciais - utilizando principalmente os antigos bombardeiros como 0 Breguet 14 - a visao aerea vai se generalizar e alcanl,;ar urn grande publico. Entretanto, desde a sua origem, a fotografia aerea questiona qual fator da combinal,;ao tecnica "tempo/foto/aviao/arma" teria maior importancia para a realizaI,;ao de urn filme de guerra ese, finalmente, a libertal,;ao topol6gica obtida com a velocidade dos aparelhos - e mais tarde atra-
ves de seu poder de fogo - nao seria criadora de outras facticidades cinematicas tao eficazes quanta as produzidas pelo motor-camera. "Eu ainda me lembro do eJeito que produzi sobre um grande grupo de uma tribo que se encontrava reunido em circuw em volta de um homem com roupas negras", narra 0 filho de Mussolini, referindo-se a guerra da Eti6pia (1935/36), "mergulhei com meu aviao bem no centro dos homens eo grupo se dispersou como uma rosa jlorescendo ... "
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Neste testemunho, a al,;ao da arma (no caso 0 aviao) e definida como subversiva, pois uma forma se dissolve diante dos olhos do piloto e reconstitui-se instantaneamente em uma extraordinana fusao. 0 piloto criou estas formas agindo como urn dire tor de cinema que, ao trabalhar na moviola, obtem urn grande prazer estetico ao montar lima cena de seu filme. Ja que, desde 0 inicio das guerras, 0 campo de batalha e urn campo de percepl,;ao, a maquina de guerra e para 0 polemarco urn instrumento
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dade humana. Eu perten(:o ao movimento ininterrupto. Eu me aproximo e me afasto dos objetos, me insinuo sob eles ou os escalo, avan(:o ao lado de uma cabe(:a de cavalo a galope, mergulho rapidamente na multidiio, corro diante de soldados que atiram, me deito de costas, al(:o voo ao lado de um aeroplano, caio ou levanto voo junto aos corp os que caem ou quevoam... ".(12) Esses cineastas, que parecem "desviar" as imagens assim como os surrealistas "desviavam" a linguagem, so seriam realmente "desviados" atraves da guerra. No campo de batalha, eles nao se transformaram em simples combatentes, pois pensavam, assim como os aviadores, que pertenciam a urn tipo de elite tecnica. 0 primeiro conflito mundiallhes revelou a tecnologia militar em a~ao como urn ultimo privilegio de sua arte. E interessante constatar a formidavel fusao/ confusao criada por esta surpresa tecnologica no conjunto da produ~ao de vanguarda do imediato pos-guerra. Ainda que os documentarios de guerra e os documentos cronofotograficos aereos permanecessem ineditos como segredo militar ou fossem abandonados e julgados desinteressantes, principalmente nos Estados Unidos, os cineastas vao oferecer esses efeitos tecnologicos ao grande publico como urn espetaculo inedito, urn prolongamento da guerra e de suas destrui~oes morfologicas. Este e 0 caso do celebre coronel Seitchen, que comandava as opera~oes de reconhecimento das tropas americanas na Fran~a durante a Prime ira Guerra Mundial(l3). Depois da guerra, aproximadamente 1,3 milhao de fotografias militares tor-
(12) Em 1919, Vertov publica na Lef, a revista de vanguarda editada por Maiakovski, urn artigo condenando 0 fiIme narrativo e, retomando os termos dos Futuristas, declara guerra aos roteiros burgueses e a sua psicoIogia. "ResoIu(,:ao do ConseIho dos Tres em 10.04.1923", Dziga Vertov, tradu(,:ao de Marcelle Pithon in: A expmencia do cinema, Ismail Xavier (arg.), Rio de Janeiro, GraaI/EmbrafiIme, 1983, p.296 (13) "Seitchen na Guerra", urn apaixonante ensaio de Allan Sekula publicado hi alguns anos na revista Art Forum do qual muitas passagens sao aqui comentadas.
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naram-se parte de sua cole~ao pessoal e urn born numero destas foi exposto e vendido sob a assinatura do autor, como se fossem de sua propriedade pessoal. Seitchen dirigiu 0 reconhecimento fotografico, tendo sob seu coman do 55 oficiais e 1.111 soldados. 0 trabalho iria abranger toda a guerra e organizar a produ~ao de informa~oes "como uma fabrica", gra~as adivisao de trabalho e a produ~ao intensiva de imagens. A fotografia deixa de ser episodica, e, mais do que imagem, trata-se agora de urn fluxo de imagens que entra em consonfmcia com as tendencias estatisticas do primeiro conflito militar-industrial. Esta pressao industrial sobre a produ~ao de imagens (as linhas de montagem das empresas Ford entram em opera~ao em 1914) nao se dara, como no caso de Griffith, sem alterar completamente as concep~oes de Seitchen em materia de fotografia. Como a maioria dos fotografos, Edward Seitchen e, antes de mais nada, urn "pintor fotografo" amigo da Fran~a e admirador de Rodin, tendo inclusive comparecido a seus funerais em 1917 ... Seu auto-retrato fotografico mostra-o com pinceis e uma palheta e pretende ser a "replica fotografica" do "Homem com uma luva", de Ticiano. Os cineastas americanos tambem realizaram este tipo de "respostas fotograficas" a grandes obras da pin tura (como 0 fizeram Cecil B. de Mille ou Griffith). 0 jornal Camera Work tern sua publica~ao interrompida no exato momento em que os Estados Unidos entram em guerra (1917). Seu ultimo numero rejeita a credibilidade do "pictorialismo" como procedimento de vanguarda. 0 proprio Seitchen nao tardara a assumir totalmente seus objetivos militares. Depois do armisticio, completamente deprimido, Seitchen retira-se asua casa de campo na Fran~a, onde queima todos os seus quadros com a promessa de jamais voltar a pintar, de abandonar toda a inspira~ao pictorica - julgada "elitista" - e buscar a redefini~ao das imagens inspirando-se diretamente na fotografia de reconhecimento aereo e seus metodos de planifica~ao. Com Seitchen, a fotografia de guerra torna-se a fotografia do "sonho americano". Imagens que logo vao confundir-se com aquelas
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produzidas pelo grande sistema hollywoodiano de produ<=ao industrial e seus codigos de introdUl;:ao no con sumo em massa.
*** No Cahiers du Cinema, Alain Bergala escreveu: "A fotografia da estrela de cinema niio teve de ser inventada ... para sua criariio foi suficiente radicalizar 0 ato de isola men to que ja caracterizava a imagem da estrela na melhorfase do cinema hollywoodiano." Assim que Ii esta frase, lembrei-me da cena de A grande ilusiio, de Renoir,
quando os prisioneiros de guerra, para realizar uma festa, tirayam de uma grande moe hila de figurinos teatrais alguns murchos instrumentos de sedu<=ao feminina. "Lingeries" intimas e roupas de baixo rendadas sao passadas de mao em mao entre gargalhadas e mimicas insinuantes ate que, subitamente, os rostos se tornam sombrios e cada urn se recolhe em uma comunhao secreta na qual a hostia seria urn pouco da subs tan cia desses despojos de mulheres desaparecidas com a separa<=ao imposta pela guerra. Esta cena ocorre paralelamente a refei<=ao servida pelo rico prisioneiro judeu interpretado por Marcel Dalio, personagem de outro tipo de segrega<=ao. Aqui e criada mais uma vez uma percep<=ao indireta e nao logica: cada urn termina por transferir seu gosto, seu julgamento e sua medida das coisas da existencia para a figura<=ao, da forma para sua imagem. Urn delirio geral e imposto por esta logistica militar que leva ao soldano, atraves dos malotes, sobras de umjantar que vao alem da verdadeira refei<=ao, uma mecha de cabelo que e mais do que a cabeleira de uma mulher. Renoir mostra que, mesmo fora de urn campo de batalha - que nao aparece no filme - , a guerra subverte 0 born uso do sexo e da morte. Pode-se lembrar aqui de Irma Pavolin, a pequena prostituta sifilitica criada par Maupassant que transformava seu sexo em arma para dizimar 0 Exercito prussiano, contabilizando deliciosamente os batalhoes de soldados inimigos que contaminou em uma pioneira guerra bacteriologica. Ou enta~ de Henny Porten, vedete ale rna lan<=ada em filmes de propaganda anti-
franceses, que se tornaria uma das primeiras pin-ups famosas, tendo suas fotografias afixadas nos alojamentos militares de 1914. A pin-up exemplar, imagem da mulher jovem ideal, atualiza a fotografia cuidadosamente retocada, enviada pela madrinha de guerra, esta noiva da morte, distante, intocavel e, na maior parte do tempo, desconhecida,ja que so aparece para 0 soldado atraves de cartas e malotes que continham, alem de outros "regalos", algumas reliquias da propria mulher como mechas de cabelo, perfumes, luvas, flores secas. Esta situa<=ao ilustra a reflexao de Rudolf Arnheim sobre urn cinema em que, depois de 1914, 0 ator torna-se acessorio e 0 acessorio torna-se protagonista: realmente, a mulher e ainda excluida em uma guerra e torna-se uma tragedia objetiva. o olhar obsceno que 0 conquistador militar lan<=a sobre 0 corpo distante da mulher e 0 mesmo dirigido ao corpo territori"* al desertificado pela guerra, precedendo assim ao vouyerismo do / dire tor, que enquadra 0 rosto da estrela como se filmasse uma paisagem com seu relevo, lagos e vales que ele deveria iluminar com uma dimera que, segundo Sternberg, 0 inventor de Marlene Dietrich, atingia a queima-roupa (muitos dos diretores importados pelos americanos depois de 1914 participaram da guerra, principalmente nos exercitos austro-hungaros ou alemaes). Mais recentemente, Carol Reed diria a uma iniciante: "0 im-
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portante niio e seruma boa atriz, 0 que interessa e que a camera se apaixone porvoce." Durante e depois do segundo conflito mundial, a generaliza<=ao do strip-tease (este jogo de palavras entre 0 filme
de cinema e a excita<=ao sexual) indica as dimensoes assumidas por esta transferencia tecnofila em uma sociedade que se militariza. Antes censurado, 0 strip-tease sera imposto pelo exercito na Inglaterra, principalmente atraves da celebre Phyllis Dixey. Assim como 0 soldado, a dan<=arina que se despe em cena torna-se urn filme para os que a observam, tirando lentamente as pe<=as de roupa como se desenrolam as seqiiencias, com os movimentos lascivos desempenhando 0 papel de fusao das imagens e servindo-se da musica de fun do como trilha sonora. Esta rela<=ao torna-se ainda mais clara nos locais em que 0 corpo nu
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e isolado diante de uma sala espelhada, que se torna uma tela entre a dan~arina e os clientes, desta vez armados com maquinas fotograficas ou cameras disparadas a "queima-roupa"; ou ainda nos videogames em que a partida e considerada vencida quando uma pequena lampada vermelha, simbolo do orgasmo, surge na tela durante noventa segundos (14). A reflexao de Bergala sobre 0 isolamento sequencial do ator pode ser completada pelas considera~oes de Syfney Franklin: "Todo 0 esJar{:o do 'star-system' e canalizado para aproximar a estrela do publico em todos os sentidos". E acrescenta: "poderia-se mostrar trezentos metros de filme com Norma Talmage sentada em uma cadeira e seus admiradares carreriam para assisti-la." o star-system e a inven~ao do sex-symbol sao os efeitos da intensa logistica da percep~ao que se desenvolve durante 0 primeiro conflito mundial e os dominios, dimensoes logisticas imprevisiveis em que os Estados Unidos, naturalmente nomades, verao triunfar seus metodos em uma Europa ainda encravada e tributaria da sedentariedade. Este foi 0 principal motivo da vitoria dos Estados Unidos em uma das primeiras guerras do petroleo, quando 0 mercado frances foi posto nas maos da Standard Oil: nosso exercito, que havia partido para 0 combate apoiado por quatrocentos vagoes-tanque, tornou-se dependente dos americanos, que podiam dispor de mais de vinte mil veiculos identicos. E obvio que a partir de entiio os mercados nao foram criados tanto pelos meios de consumo, mas pelos vetores de deslocamento. Desde os anos vinte, bern antes do New Deal, ocorre nos Estados Unidos a desneutraliza~ao dos meios de comunica~ao, que passam a ser controlados por poderes industriais e comerciais a servi~o da guerra econ6mica, interesses comerciais que, como vimos, controlam estritamente Hollywood e suas in-
(14) Vma das primeiras fitas de videogame pornografico chamava-se, por acaso, A revanche do General Custer e permitia deslocar 0 personagem principal (que usa s(,mente seu quepe) atraves de um deserto repleto de emboscadas. 0 jogo terminava quando uma india era violada pelo personagem.
dustrias associadas, que "pululam em toino dos estudios como as cidades da [dade Media surgiam em tarno dos castelos eJartalezas" (15).
*** Em 1889, Thomas Edison e alguns indios do "Grande Show do Oeste Selvagem", de Buffalo Bill, que entiio visitavam Paris, entusiasmaram-se com a torre Eiffel e seu terra~o circular- onde foram instalados refletores - e sua agencia telegrafica - aberta ao publico no dia 9 de setembro. Foi 0 tenente-coronel Gustave Ferrie, urn ex-aluno da Politecnica, que teve a ideia de utilizar a torre como uma antena e, quando a guerra se inicia em 1914, ele proprio e encarregado de ir ao front e cuidar de todos os servi~os radiotelegraficos. Sob 0 estimulo deste militar, 0 material radiotelegrafico dos aliados passa a ser fabricado na Fran~a e logo 0 antigo telegrafo sem fio transforma-se em radio (em 1915Ian~a da a produ~ao em serie da primeira valvula eletr6nica, a TM telegrafia militar, inventada por urn dos membros da equipe de Ferrie; no final da guerra ja iria se falar em televisao ... ). Simbolicamente, 0 logotipo da RKO mostra uma enorme torre que, antes de impressionar 0 mundo por suas dimensoes, tern como principal finalidade cobrir com mensagens 0 globo por ela dominado. A logistica das imagens (fotograficas, cinematograficas), a guerra acrescenta a logistica dos sons e logo uma logistica musical, gra~as aexplora~ao desta "radiofonia popular" que conheceria urn desenvolvimento consideravel entre as duas guerras mundiais, com 0 surgimento dos gran des auditorios e das transmissoes publicas. De Roses oj Picardie (1914) a Lili Marlene (1940) e Glenn Miller - que se tornara urn dos patronos desta logistica musical, tendo urn fim misterioso - , a ambiguidade destes sistemas surge claramente durante as blitz e suas angustiantes gargalhadas, transcri~oes sonoras para 0 continente europeu, informa~oes cifradas para os membros da Re-
(15) HoUywood, de K. Brownlow.
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sistencia e os guerrilheiros, combatentes clandestinos. No Ministerio da Informal,;ao ingles, mantinha-se permanentemente urn "comite de ideias para a propaganda", do qual fazia parte 0 ator britanico Leslie Howard, urn dos her6is de ... E 0 vento levou. Tendo chegado a Londres em 1939, Howard participa de transmissoes destinadas a America, enquanto urn ingles chamado William joyce fala aos britanicos diretamente da Alemanha ... De sua parte,joseph Goebbels inovou bastante em termos de propaganda entre as duas guerras, favorecendo assim a ascensao de Hitler atraves dos mais diversos metodos. 0 exjornalista, que se tornou chefe da propaganda, enviou cerca de cinqiienta mil discos de propaganda a todos os lares alemaes que possuissem urn fon6grafo e imp&s aos diretores de salas de cinema, freqiientemente atraves da violencia, a projel,;ao de curtas-metragens ideo16gicos. Desde que assumiu 0 ministerio, Goebbels conseguiu que a grande maioria dos cidadaos possuisse radios portateis.
tando a imagem da destruil,;ao com suas brincadeiras, confidencias e ate mesmo canl,;oes romanticas ... Stanley Kubrik reproduziu fielmente este efeito audio-visual servindo-se da voz de Very Linn cantando We will meet again para embalar a grande serie de explosoes nucleares que encerra 0 Dr. Fantastico. A critica 0 condenou por utilizar antigas seqiiencias de documentirios mostrando os bombardeiros sobre Hiroshima ou sobre as ilhas Christmas, material barato e exaustivamente exibido(l6). Kubrik realmente agiu com maior realismo, ele foi ao essencial de uma imagem de guerra em que nao subsiste nada alem do registro dos estados sucessivos do material destruido e uma voz distante, cantando 0 desejo de urn reencontro que, simultaneamente, se torna fisicamente impossivel, mas desta vez para sempre e para todo 0 mundo. ***
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Em 1914,0 "isolamento" do piloto de aviao consistia na colocal,;ao de mechas de algodao nos ouvidos - para a amenizar o ruido do motor e do vento - e em utilizar 6culos para a protel,;ao dos olhos, sendo facultativo 0 uso de capacete. Vinte e cinco anos mais tarde, a partir da Segunda Guerra Mundial, a cabine pressurizada das superfortalezas norte-american as preparadas para bombardear a Europa torna-se urn sintetizador impressionantemente refratario avida sensivel. A partir de entao, 0 efeito do isolamento tecnico e tao traumatizante e prolongado que 0 "strategicAirCommaruJ:' decide amenizar as perigosas travessias de suas unidades pintando sobre a camuflagem de seus..a.vioes, em cores vivas, her6is de desenhos animados e imensas "pin-ups" com nomes evocativos. Imagine assim urn tipo de sistema "cibista" (CB system) de locutoras de vozes melodiosas que se encarregam nao somente de guiar radiofonicamente os pilotos, mas tambem de tranqiiiliza-los durante sua missao, parasi-
Produtora abusiva de movimento, misturando as performances dos meios de destruil,;ao ao desempenho dos meios de comunical,;ao da destruil,;ao, a guerra falsifica as distancias e a aparencia, pois para 0 polemarco toda dimensao e instavel e a ele se apresenta em estado isolado, fora de seu contexto natural. Hermes, deus encarregado de todas as logisticas, e batizado trismegisto como 0 deus Thot dos egipcios. ja a IIiada mostra 0 gigante Aquiles avanI,;alldo contra as muralhas de Troia superdimensionadas com as efigies dos conquistadores, Ramses ou Stalin, colossos de pedra ou bronze que parecem capazes de se mover em urn mundo vazio e ampliado, urn campo de al,;ao insuspeitado, urn pouco como Gulliver ouAlice, que dizia "Me modificaram muitas vezesr' Mas, para Alice, 0 mundo visivel nao vern se chocar contra 0 espelho, pois 0 reflexo lurninoso nao eurn limite, mas urn lugar de passagem. Eborn (16) Le cinema de Stanley Kulnik, Norman Kagan, edi~oes L' age d'Homme - Laussane, 1979, e edi~ao original, Holt, Rinehard and Winston, New York.
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lembrar que 0 autar da historia, Lewis Carrol, era tambem 0 matematico Charles Dodgson - urn dos inventores das "matematicas transcendentes", tipo de 10glstica matematica em que continuo e descontinuo se comunicam - e urn fotografo amador apaixonado. 0 star-system parte desta mesma instabilidade de dimensoes, que nao e percebida da mesma maneira par todos os publicos: certos espectadores mostram-se derrotados pelas solu(oes de continuidade espa(o-temporais imaginadas pelos cineastas (17). Ainda mais uma vez, nao e por acaso que uma das ultimas estrelas, Marylin Monroe, viria a ser descoberta por urn fotografo do exercito americano em plena guerra da Coreia. Conhecida como "Miss Lan(a-Chamas" (pode-se lembrar dos substantivos compostos criados por Marinetti: mulher-chamas, vei'culo-relampago, cora(ao-motar... ), Marylin ganha 150 dolares por semana e torna-se a pin-up mais encontrada nas paredes dos alojamentos. 0 que faz 0 poder de Marylin e suas consortes nao e somente a fotogenia ideal de seus corpos, mas 0 fato de que nao sejam divulgadas em sua escala natural. 0 carpo de Marylin encontra-se em permanente exilio de suas rlimensoes imediatas e naturais e parece nao estar ligado a nada, <1mpliavel como uma tela gigante e pequeno e dobravel como urn poster ou uma capa de revista. Compreende-se melhor agora por que as agencias tern 0 habito de divulgar, como urn "corolario" das fotografias, as medidas "reais" de suas modelos: medidas dos seios, da cintura e altura sao necessarias para a boa aprecia(ao da imagem assim como a escala e as conven(oes inscritas na margem dos mapas do Estado-maior sao indispensaveis para sua leitura e interpreta(ao pelo observadar militar. 0 corpo de Marylin - que os medicos da Setima Divisao americana declararam ser 0 que mais desejavam examinar e que nao foi reclamado por ninguem no necroterio - nos relembra 0 corpo penetrante do cirurgiao e do operador de cinema que atravessa a prime ira guerra mundial e so se tomaria evidente depois de 1914. "0 cinegrajista, es(17) Visual thinking, Rudolf Arnheim, University of California Press, 1979.
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creve Benjamin, penetra proJundamente nas visceras da realidade... a imagem do pintor e total, a do operador e composta de inumeros Jragmentos, que se recompoem segundo novas leis". (18) Assim como a interpreta(ao da fotografia aerea de reconhecimento depende de tudo que possa ser captado pelo ato racionalizado de interpreta~ao, 0 uso da endoscopia e do scanner permite uma colagem instrumental e coloca em evidencia os orgaos escondidos, realizando a leitura totalmente obscena das destrui(oes causadas pela doen~a ou pelos traumatismos. Esta propriedade de tomar visivel 0 invisivel- experiencia que consiste em examinar indefinidamente uma determinada imagem, encontrar urn sentido ao que, a prime ira vista, parece urn caos de forma sem significa~ao - ou a analise manual do filme (que segundo Painleve assemelha-se a pesquisa cientifica) estao proximas ao procedimento militar de avaliar a paisagem inimiga a partir das destrui(oes realizadas por elementos geralmente camuflados (trincheiras, acampamentos, bunkers) "realizando, atraves dos processos observados, estes processos desconhecidos que a tecnica cinematografica gosta de Jazer surgir". (19) A publicidade do cinema industrial nao se equivocara: se a estrela pode ser chamada de "0 corpo" e sua imagem e pintada sobre as bombas e os avioes de ca~a, este corpo desprovido de dimensoes estaveis logo sera oferecido "em peda(os" aos espectadores, repetindo ainda mais uma vez a percep~ao heterogenea do vouyeurmilitar. DeJean Harlow a Betty Grable, a aten~ao sera dirigida a urn detalhe exageradamente ampliado: as pernas, 0 olhar, as ancas etc. A exposi~ao cinematica - reveladora de formas exteriores a percep(ao imediata - renova a disseca(ao da anatomia antiga.
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(IS) Benjamin, op. cit., p.lS7. (19) Germanie Dulac.
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Griffith, que assimilou a lil,;ao futurista de Cabiria para realizar Intolerancia (confusao de elementos temporais, improvisal,;ao sem decupagem previa, montagem convergente unindo al,;oes que se desenrolam simultaneamente em dez lugares e quatro seculos diferentes, maior mobilidade da camera ... ) , defrontou-se com uma nova e "intoleravel" surpresa tecnica no campo de batalha militar-industrial: desta vez e a camera civil que, apesar de sua invenl,;ao recente, parece pre-historica diante dos progressos fulminantes do equipamento militar. A fase aurea de Griffith viria a encerrar-se pouco depois da guerra, porvolta de 1922. Abel Qance.l..grande admirador de Griffith e quatorze anos maisjovem do que este, tambem trabalhou para 0 exercito durante 0 primeiro conflito mundial e realizou seu J'Accuse em 1917 - enquanto os soldados se concentravam no front - , beneficiando-se da figural,;ao de combatentes feridos, reformados ou em convalescenl,;a (incluindo Blaise Cendrars entre outros) . Gance da ao cinema uma definil,;ao proxima daquela da maquina de guerra e sua fatal autonomia: "Magi co enfeiticador, capaz de proparcionar aos espectadares, em cada fracao de segundo, esta sensacao desconhecida de ubiqiiidade em uma quarta dimensao, suprimindo 0 espaco e 0 tempo". A guerra vem do cinema, eo cinema ea guerra mas, de fato, Gance ainda nao havia percebido que este amalgam a seria provisOrio para 0 cinema. Suas multiplas invenl,;oes (tela tripla - patenteada em 20 de agosto de 1926, perspectiva sonora, polivisao, magirama etc.) tern 0 sentido de uma corrida tragica depois do dinamismo ubiqiiitirio dos militares, uma decadencia de suas tecnicas visuais e acusticas. 0 declinio prematuro da obra de Gance e 0 fim desta corrida, a certeza de que a recuperal,;ao e tecnicamente impossivel, a derrota de urn poder cinematico civil que "ndo foi capaz de descobrir sua bomba atomica ... " (carta que Gance enviou, em 5 de agosto, ao ministro da Cultura,] acq ues Duhamel). o cinema nao seria mais do que urn genero bastardo, urn parente pobre da sociedade militar-industrial. Assim destruiu-se
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por si proprio 0 que parecia ser uma vanguarda da cinematica, o filme de arte. Em 1905, Einstein enunciou sua teoria energetica e, dez anos mais tarde, em plena guerra mundial, a teoria da relatividade geral. Giuseppe Peano, Haussdorf, von Koch contribuiram para a logistica matematica e a ideografia, e Kurt COdel provou matematicamente a existencia de urn objeto sem produzi-Io, criando a prova existencial que, com Von Neumann e a celebre Teoria dos Jogos, se torn aria a base da estrategia nuclear contemporanea... Derivada das figuras e figural,;oes da realidade fisica, a teoria cientifica - que subentende 0 esforl,;O militar - alcanl,;aria em meio seculo as aspiral,;oes surrealistas de uma cinematica desconhecida: a completa destruil,;ao dos campos da percepl,;ao.
*** Enquanto, depois de 1914, se multiplicam em Hollywood os mais extravagantes movimentosde camera, na Uniao Sovietica, Eisenstein fala da serie de "explosoes" que movem urn filme. "0 conceito de colisao, de conjlito, ea expressao, na arte, da dialitica marxista". Ai estiio as varial,;oes no enquadramento, os "fades" e divisoes da imagem, movimentos inesperados de camera, camera lenta, reversoes na imagem, intromissao subita de objetos, personagens e locais sem explical,;oes anteriores, movimentos de multidao (20). A revelal,;ao da profundidade torna-se, como em Marinetti, propriamente apocaliptica, pois visa adestruil,;ao dinamica das dimensoes do mundo. "Na medida em que somos criad~es, ~screve 0 arquiteto alemao Mendelsohn, sabemos com qual dzverszdade as jarcas motrizes e 0 jogo de tens6es agem sobre 0 detalhe. " Distincia, profundidade, terceira dimensiio - depois de alguns anos de guerra 0 esp~o tornou-se urn campo de manobra (20) Film as a subversive art, Amos Vogel, Weindenfeld and Nicholson, Londres. Edi~ao francesa, Buchet Chastel, 1977. E Language o/vision, de Gyorgy Kepes, New York, 1967, Paul Theobald & Co.
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para a ofensiva dinamica, a grande maquina!;ao energetica. Desde que" 0 intenso ritmo de sua marcha nos impele em direriio a uma nova ciaridade e 0 impacto de seu material nos lanra em uma nova luz ... ", o cinema e a metafora desta nova geometria que transforma os objetos em figuras/fusao, confusao de generos que introduz a futura e terrivel transmuta!;ao das especies, 0 privilegio exorbitante concedido pela guerra a velocidade de penetra!;ao e tambern uma industria de guerra que se reconverte, depois do primeiro conflito mundial, em produ!;ao de meios de comunica!;ao e transp
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f~nes de baixa?otencia para dirigir-se as multidoes. A conjura!;.ao que nesta epoca envolve a t~cnica cinematica - 0 pragmallsmo industrial originado na produ!;ao intensiva da imagem de guerra, atraves da produ!;ao de filmes que nao sao produtos de urn autor, mas de grupos organizados que detem meios tecnkos e financeiros importantes - faz do antigo cinema uma atividade que logo seria nacionalizada, a exemplo do ocorrido na Uniao Sovietica com Unin. Todas essas caracteristicas tern sua origem em parte na carencia de meios de propaganda mas principalmente, em urn fato historico ao qual quase nao confe~ rimos importiincia nos dias de hoje: depois da separ~ao entre a Igreja e 0 Estado na Fran!;a, ocorre em toda a Europa, no inicio do seculo XX, a queda das monarquias e dos imperios fundados -no direito divino.
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primeiro conflito mundial marca 0 fim das rela!;oes privilegladas entre as antigas religioes e os jovens Estados militar-industriais. Esses ~stados, fundados sobre a violencia aberta como na Uniao Sovietica, necessitam, para serem aceitos, da adesao do maior numero de pessoas possi'vel (devem tornar-se legais) , de criar uma nova unanimidade, dai' a urgente necessidade de impor as massas cultos de substituiriio. Ao permanecer no poder, 0 materialismo mi'stico e cientificista do seculo XIX transforma-se em uma efetua!;ao de "milagres" da ciencia realizados pela tecnica. 0 pseudo-acontecimento da Razao na Historia torna-se, paradoxalmente, uma confusao de cultos, urn sincretismo tecnofilo, a instala!;ao de toda uma demonologia periferica e suas inquisi!;oes, processo do qual 0 culto da personalidade e urn dos aspectos mais conhecidos. Ja na metade do seculo XIX, as entao recentes descobertas cientificas e suas aplica!;oes tecnicas tinham como resultado insolito a volta amoda, nos Estados Unidos e na Gra-Bretanha, do mesmerismo (21) e das teorias do teosofo sue co Emanuel Swendenborg. Eo Iluminismo, momento em que "0 espi'rito" (Deus, (21) Mesmerismo: relativo a doutrina de Franz Mesmer, medico alemao (1734-1814) que teorizasobre 0 magnetismo animal (N do T).
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o Eterno ... ) sera fluido, magnetico, fenomeno eletrico, aquecimento cinetico ... Na casa das irmas Fo, em Hydesville, sao observados, em 1845, os primeiros rapping (espiritos manifestos). Nos Estados Unidos amplia-se urn grande movimento mortifero no qual pessoas ou seitas se utilizavam de sessoes de possessao sagrada, psicografia, comunica~oes mediunica<; e hipnose como meios de comunica~ao que as pcrmitiam move-r-se no espa(:0 com Jacilidade, conforme escreve em 1900 0 coronel de Rochas, administrador da Politecnica. A propria Igreja Catolica americana nao desaprovara totalmente essas praticas. Trata-se, portanto, da busca de novos vetores do alem, depo is da decadencia proviso ria das gran des religioes e de sua degrada~ao sob a forma do Estado. Nesse meio tempo, a fotografia penetra em todos os meios e lugares, ate mesmo sob a clausura dos conventos como 0 de Lisieux, onde no final do seculo XIX a objetiva fotografica viola 0 isolamento da futura santa Therese Martin ... Do mesmo modo da-se a polemica em torno do Santo Sudario de Turim, "primeiro fenomeno fotografico da Historia", verdadeira "revela~ao" da tecnica fotografica como meio de comunica~ao dos iconolatras. Walter Benjamin logo compreende 0 lugar que 0 cinema pode ocupar neste conjunto mistico-cientifico e rejeita-o com veemencia, ainda que ele proprio seja fascinado pela aura fotografica. Benjamin nos relembra que, para muitos - principalmente na Alemanha, pois se trata de uma inven~ao francesa-, "(l Jotograjia continua a ser uma experiencia misteriosa, desconcertante", lan~ando mao de uma sombra e uma luz que, como observa Jarry, dificilmente se interpenetram. Em tal contexto, logo e criada 0 que se chamou de "industria dos espectros", urn empreendimento florescente que utilizara, alem dos meios humanos, 0 meio fotografico: se, para os iluministas, os espectros sao fenomenos de energia eletrica, por que nao poderiam ser fotogenos ou ate mesmo fotogenicos? Depois da guerra de 1870, 0 diretor da Revue spirite, Leymarie, auxiliado pe10 fotografo Buguet, obtem fotografias de espectros sobrepondo as imagens de pessoas vivas e reais as imagens superexpostas que
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supostamente aparecem para 0 mais comum dos mortais no momen to de passagem acamara escura. Leymarie seria condenado a urn ano de prisao e quinhentos francos de multa por charlatanismo. Salvo quando sao utilizados como efeitos de aura acentuados por habeis retoques, os espectros sao jovens e bonitas modelos vestidas no estilo pre-Rafael. Em urn periodo de grande mortalidade, os clientes que "compravam" a apari~ao estabeleciam rela~oes freqiientemente tragicas com as imagens. Da guerra aepidemia - que dizimou muitas pessoas, sobretudo na faixa entre 15 e 35 anos - , a "industria dos espectros" causou urn forte impacto sobre os vocabularios estetico e tecnico do cinema e, em particular, do novo cinema alemao. Este ultimo, que so se torn aria uma potencia artistica durante 0 primeiro conflito mundial, iria OP(ff as dimensoes solYrenaturais acrise das dimensoes naturais revelada pelos futuristas e logo pelas multas abusivas do Tratado de Versalhes. Oskar Messter foi urn dos primeiros a realizar as experiencias de superposi~ao de imagens utilizando do is projetores acionados simultaneamente. Urn dos primeiros filmes importantes do cinema alemao, 0 estudante de Praga (Der studente von Prag), de Stell Rye - que morreria em 1914 no front frances - , e premonitorio nesse sentido (22).0 filme conta a historia de urn estudante que vende sua imagem refletida no espelho a urn feiticeiro. A imagem passa a agir no lugar do estudante, "desonrando-o" na medida em que 0 transformava em urn conquistador, em urn belicista. Acreditando destruir este duplo incomodo, atira na imagem, erra e termina por suicidar-se. A proposito deste filme, Noel Sin solo escreve: "Esta i talvez a primeira olYra que Jala do cinema. f;; a imagem de uma pessoa que se rouba, uma imagem enquadrada como a do cinema ... 0 at(ff i responsavel pelos atos cometidfJs P(ff sua imagem, que i estimulada pelo desejo de um outro, diret(ff ou Jeiticeiro ... ". Sinsolo observa que os dois ro(22) A tela demoniaca, Lotte Eisner, paz e Terra/lnstituto Goethe, Rio de Janeiro, 1985, e Le Cinema Allemand sous Guillaume II, Noel SimsoIo, La Revue du Cinema, septembre 1982.
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teiristas do filme , Hans-Heinz Ewers e 0 grande alor Paul Wegener Lrabalharam para os fi lmes de fOlografia de propaganda nazista do Terceiro Reich. Com 0 cinema. 0 rcflexo "fiel" deixa de existir, "tude dejJentU do. imagem, de uma nivoa na qual 0 mundo Janl6,slico do passado junta-se aofflunde presentt', declara Paul Wegener em 19 16. Ao lado da ordem sens.vel e bem visivel ja se inst.a1a 0 caos de uma ordem insensivel , novas imagens espectrais e deliranles que, depois de lereOl sido roubadas, relocadas e invocadas, podem ser capturadas, vendidas. rransformando-se em objeto atraente de urn produtivo tnilico de aparencias, aiem de poderem ser projetadas no espac;:o e no lempo. "A partirchagora, observa Duhamel em 1930. ntio passo mnis pensar 0 que quem. A!; irnagellS em rnovimento substituem meus proprios pensamentos." 0 cinema e a guerra, conform e explica 0 doutor Custave Le Bon, que em 1916, e.screve: "A guerra nao atin~ sommte a vida material dos puuos, mas tambern seus pcnsamentos... t: aqui voltamos a e:;ta nO(.iio fundamental: nao t 0 racio'lOl que amdm 0 mundo, mas as J(fffOS de origem aJetiva, mistica ou coktiva, que condw:nn os homens, as sugtst6es arrt!hatad~ ras dtstas J6rmulas mislicas, cada va mais pamllts, mas ainda vagas ... asJorfO.S imateriais sao as verdadeims condutoras dos comhates." Nos Estados Unidos, no inicio do cinema, os alores nao tinham nome ou sobrenome. mas, em 1910, quando os jornais noticiaram a mone da BiograPhic Gir~ eSle anonimalOdesapareceu. Ajovem foi finalmente iden tificada: ehamava-se Florence Lawrence e, surpreendentemente, pareciaestar em sua melhor forma fisica. 0 an Unciode sua morte, proximo aos alOS de siderac;:ao terrorista descritos no infcio desle Livro, foi nad a mais do que uma jogada pub1icit
CAPiTULO TREs
"V6s QUE ENTRAIS NO INFERNO DAS IMAGENS PERDEI TODA ESPERANc;::A" Abel Ganee
Na ultima versao do ]'Accuse, de Abel Gance, soldados mortos se levantavam e, em frente ao ossano de Douaumont, desfilavam em meio aos vivos como aterrorizantes hologramas. Depois de 1914, enquanto a Europa e coberta por cenotafios e mausoleus indestrutiveis erguidos - como 0 proprio Douaumont - em homenagem a seus milhares de mortos, os americanos - que sofreram poucas baixas - erguem seus grandes templos de cinema, semelhantes a santmirios de sativados onde, segundo Paul Morand, 0 espectador experimenta uma sensa~ao de fim do mundo em urn ambiente de missa negra e profana~ao. Nos ultimos anos, alguns estudos foram consagrados a estes palacios de cinema que se espalharam por todo o mundo como moda e vieram a desaparecer rapidamente nos anos sessenta, em urn fenomeno que indica claramente a necessidade historica do cinema no periodo entre as duas guerras mundiais - que na verdade formam urn unico conflito, interrompido por urn tipo de armisticio, urn intervalo de aproximadamente vinte anos. Estes monumentos, dos quais hoje so restam fotografias (I), parecem menOs irreais se comparados aos grandes magazines que, no seculo anterior, abriam suas portas nas grandes cidades (1) Architectures de Cinemas, Francis Lacloche, edit;oes du Moniteur, Paris.
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ocidentais, provocando imediatamente um grande entusiasmo entre 0 publico. o vocabulario arquitetonico das futuras catedrais americanas do cinema ja se encontrava presente nesses magazines: aglomerado de estilos heteroclitos, naves imensas, longos corredores, uma escadaria central desproporcional mas, sobretudo, urn imponente ambiente tecnico (eletrifica~ao, elevadores, climatiza~ao ... ). A simples logica do comercio e abandonada ostensivamente, pois, com a inven~ao do marketing, 0 conjunto dos sistemas de mercadorias da jovem civiliza(:ao industrial passa a manifestar-se nos campos de percep(:ao imateriais. Aristide Boucicaut inventa 0 "mois du blanc' (2) nos dias seguintes ao Natal por ter constatado que 0 grande magazine ficava deserto amedida que o inverno se tornava mais rigoroso. Quando a inova~ao foi lan~ada, apoiada por urn esquema publicitario refor~ado, alcan~ou imediatamente 0 sucesso que conhecemos, atraindo uma numerosa clientela que decidiu enfrentar 0 mau tempo simplesmente porque Boucicaut elevou suas mercadorias a urn "desses sistemas de ideias elementares e precisas que 0 entendimento deixa de lado com os nomes que as conJerimos habitualmente, do mesmo modo como ocorre com os modelos aos quais possamos relacionar as coisas reais ... " Uohn Locke) . Ainda ha poucos anos, algumas mulheres passavam a maior parte de seu tempo nesses monumentos, assim como em esta~oes de trens e cinemas que exibiam sessoes continuas. Estes ultimos substituem melhor os grandes magazines que os antigos "music-halls". Se Taine constata que, em seu seculo, a Europa se deslocava para ver as mercadorias, no cinema vende-se nada alem do que puras visoes. 0 cinema e 0 lugar privilegiado de urn trajico de desmaterializa(:ao, de urn novo mercado industrial que desta vez nao mais produz materia, e sim luz: a ilumina~ao (2) 0 termo "mois du blanc", Iiteralmente "mes do branco", e ainda usado na Fran~a referindo-se ao periodo imediatamente posterior ao Natal, quando os grandes magazines substituem as mercadorias tradicionalmente natalinas por ofertas.
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dos imensos vitrais dos antigos edificios concentra-se subitamente sobre uma tela. "Death is just a big show in itself (A morte em si e exatamente urn grande show), afirmava Samuel Lionel Rothapfel, filho de urn sapateiro e ex-fuzileiro alemao que inventou a primeira sala de cinema batizada como catedral, 0 Roxy. (3) Estes efeitos da velocidade da luz criam nestes novos templos uma forma distinta de memoria coletiva, uma introversao astronomica comparavel a descrita por Evry Shatzmann: "Se atentarmos para 0 Jato de que a observa(:ao se do' por meio da luz e de que esta se propaga a uma velocidade jinita, constataremos que os objetos sao observados em um passado tanto mais afastado quanto sua distancia espacial... " Ocorre uma heroifica(:ao cinematica em que "0 tragico lirismo da ubiqiiidade e da velocidade onipresente" renova 0 chronos m! tico da autoctonia antiga, este eterno presente dos jilhos da patria, para os quais 0 tempo se anula incessantemente no irrevogavel retorno do jim ate a origem (4).
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(3) Conhecido como "Roxy", Rothapfel convenceu urn proprietirio de urn "music-half' de Milwaukee, 0 "Alhambra", a transformar seu estabelecimento em urn cinema. Sua ideia alcan~ou sucesso imediato e Roxy pode criar em Nova York as primeiras gran des salas de cinema como 0 Regente, 0 Rialto, 0 Capitol etc. Em 1927 foi inaugurado 0 Roxy, que custou 12 milhoes de dolares e tinha capacidade para 6.200 espectadores. Inaugurado por Gloria Swanson, 0 Roxy foi demolido em 1960 "depois de uma homenagem Ii estrela em rrieio ao ruido apocaliptico das escavadeiras, em uma cena digna de Sunset Boulevard (Crepusculo dos Deuses) "(F. Lacloche). RothapfeI
era descendente de alemaes, e nao nos esque~amos de que neste pais foram construidos grandes cinemas bern antes do que nos Estados Unidos e no restante da Europa. Boa parte dos Palast alemaes foi destruida pelos bombardeios ali ados durante a Segunda Guerra Mundial. A arquitetura dos cinemas alemaes era francamente inspirada nas Iinhas "modemas" e no dinamismo. 0 Lichtburgde Berlim era, como seu proprio nome indica, uma JortalRza luminosa, uma camara escura iluminando a cidade com seus potentes holofotes. (4) "L'Autochtonie athinienne, Ie my the dans lespace civique" in: Annales
(janeiro / fevereiro 1979).
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Pode-se lembrar aqui de declara~oes como as de Isser Harel, o chefe do Mossad: "Desde a criar;iio do Estado Judaico, em maio de 1948, car;ar Eichman era um dos principais objetivos dos servir;os secretos israelenses, pois ele era considerado responsavel por nossos seis milhOes de mortos... encontrar Eichman tinha uma importancia maior do que 0 julgamento de Nuremberg, que por razOes diplomtiticas, evitou cuidadosamente JaZar em um genocidio judeu: nos campos de concentrar;iio Joram exterminados franceses, poloneses, hungaros etc. mas em nenhum momento Joi mencionado 0 Jato de que, em sua grande maioria, os mortos eram judeus ... Logo em seguida, sma negada a realidade do holocausto, principalmente pelo proJessor Faurrison e seus adeptos... " Se tomarmos literalmente a declara~ao de Isser Hassel, tudo ja esta dito: a nova autoctonia do povo judeu baseia-se na existencia, na memoria do povo, de seis milhoes de desaparecidos que devem ser for~ados a reaparecer em algum lugar. Eichman e procurado como uma prioridade porque sua fun~ao e men os de carrasco do que de exato responsavel pelo holocausto, 0 funcionario que "chamava as vitimas por seus proprios nomes". Negar 0 grande numero de vitimas, como ocorreu em Nuremberg, e para 0 Estado de Israel urn ataque a sua existencia politica tanto quanto seria uma viola~ao militar de suas fronteiras. De fato, os Faurrison retomam de modo inquietante 0 trabalho de desinforma~ao empreendido quarenta anos antes pelos proprios nazistas - pois, como mostra claramente Walter Laqueur em seu livro 0 Terrivel Segredo, a Solur;iio Final e a InJormafiio SuJocada (5) , os judeus foram vi timas de uma implosao de informa~ao que os impedia de compreender 0 que entao se passava. Eles foram os primeiros a nao acreditar em seu proprio exterminio. Como narra 0 diretor de cinema Veit Harlan,Joseph Goebbels tornou-se urn mestre na arte da desinforma~ao: a di(5) Ver Le Terrifiant Secret (Callimard) e urn texto de C.H. Rabinovitch na revista Tracesn Q 3: "La Chine de Buchenwald".
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de rumores contraditorios - incluindo certas noticias mencionando diretamente 0 exterminio - era marcada por uma transparencia das fontes e documentos fotograficos destinados a desvalorizar as informa~oes exatas, como no simulacro da "Conquista do Oeste", em que artigos e filmes mostravam a pseudo-instala~ao dos judeus, que eram descritos como colonos ... Ainda que, em 1942, mais de dois mi( 1 lhoes de judeus ja tivessem sido assassinados, a imprensa judaica na Palestina ainda encontrava motivos para estar tranqiiila em rela~ao aos centros de educa~ao agricola na Polonia \ e em outros paises, "interpretando sign os que ja niio tinham mais \ sentido ", rejeitando as informa~oes exatas por serem por de) , mais aterrorizantes... (6) Ainda assim, a leve sidera~ao e a anestesia psiquica das vitimas - que tornaram os judeus incapazes de encarar a impressionante realidade - nao sao procedimentos especificamente nazistas, mas antes argumentos de uma gesticula~ao militar ancestral, base ada em uma simples ideia: "0 homem s6 ecapaz de suportar uma determinada quantidade de terror'. Esta afirma~ao do teorico militar Charles Ardant du Picq teria influido, 25 anos antes, sobre a mentalidade e 0 tratamen to dispensado aos soldados franceses de 1914 em sua dizima~ao. "A primeira vitima de uma guerra ea verdade", escreveu Kipling, mas nos diriamos que a primeira vitima de uma guerra eo conceito de realidade. A atividade dos necrofaros(7) e sempre intensa na funda-
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(6) GoebbeIs era tao apaixonado pela questao da manipula{:ao de inponto de querer produzir urn filme. 0 projeto nao seria realizado, mas 0 ministro do Reich continuanl, ate 0 fim, a inundar a imprensa,o radio e 0 cinema com uma informa~ao dramaticamente dosada em que a "veracidade" dos documentos fotograficos serviria de suporte tecnico a falsas notfcias que se queria colocar em circula~ao. 0 metodo e antigo, mas os nazistas souberam integra-lo perfeitamente asua estrategia militar, principalmente durante a campanha da Fran~a em 1940. (7) Relativo ao grego "nekrophoros", 0 que transporta os mortos. 0 necrofaro e tambem urn tipo de coleoptero que enterra os cadaveres dos animais antes de por seus ovos. forma~oes ao
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~ao ou na restaura~ao de Estados militares e, se para
0 guerrei-I ro a memoria e a propria ciencia, nao se trata de uma memoria coletiva semelhante aproduzida pela cultura popular, basea- / da na experiencia comum, mas uma memoria paralela, uma paramnesia, localiza~ao aleatoria no tempo e no espa~o, uma ilusao de "deja vu". A prime ira existencia do Estado e onirica, na medida em que a alucina~ao visual assemelha-se ao sonho. o general MacArthur afirmava: "Os grandes soldados nao morrem, desaparecem". Esta cren~a e antiga, pois a primeira democracia militar, em Esparta, ja era fundada sobre 0 que se denominou "individualidades inorganicas", urn deslocamento sutH do sentido entre 0 nascer e 0 reproduzir, que faz com que os espartanos sejam menos qualificados como iguais do que como semelhantes(8). Por sua vez, os judeus dec1aram que 0 Estado-Cidade e urn travestimento do nascimento, um campo de morte Jantasiado de vida. Em Atenas, cada guerreiro morto via renascer seu duplo, e a arte pela arte de morrer na guerra, a invoca~ao agonica se basta, feliz por nascer na terra mae, feliz por a ela retornar. A cidade antiga e formada pela uniao dos desaparecidos, antes dispersos sob os pisos dos lares e a partir de agora reunidos nas grandes necropoles dos suburbios. 0 encontro com os herois torna-se mais trabalhoso, Hermes, 0 Psychopompe, as segura a liga~ao, restituindo ao Estado seus protetores naturais. Hermes eo deus da "herme", ou seja, da pesada pedra que e utilizada especialmente para cobrir 0 tumulo, a camara escura, "estela atica que nos Jaz surgir 0 proprio morto em um quadro vivo". A sensa~ao de uma presen~a entre as pedras tumulares, a chama que se mantem acesa e 0 culto aos herois sao cren~as e praticas antes de mais nada universais, mas que tambem sao muito freqiientes nas regioes asiaticas ou nordicas: foi 0 que se viu em 1979, no Ira, quando 0 aiatola Khomeini planejou a proc1ama~ao da "Republica Islamica" nesta imensa necropole
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(8) Les En/ants d'Athina, Nicole Loraux, edi~oes Seuil, 1981.
do suI de Teera, onde sao enterradas as vitimas de diversos enfrentamentos que enlutaram a cidade durante urn ano. Nas cerimonias fUnebres dos combatentes do IRA nao sao mais as esposas ou as maes que se vestem de preto, mas os proprios combatentes. Os herois sao aque1es que perdem os tra~os reais, que escapam a memoria sensivel das pessoas que lhes sao pr6ximas e de suas famHias, presentes e apesar de tudo desconhecidos como esta multidao de dezoito milhoes de pessoas, mortas ou vivas, que os mormons americanos (a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Ultimos Dias) decidiram recensear para batizar. Indo de cidade em cidade, atraves da Europa e do mundo, os mormons arquivam em microfilmes todos os registros civis que encontram, armazenando as informa~oes em urn abrigo antiatomico a mais de duzentos metros de profundidade nas MontaJ;lhas Rochosas, necropole em que 0 filme substitui 0 corpo para a eternidade ... Ainda mais recentemente, em maio de 1981, urn dos primeiros atos do presidente Mitterrand no inicio do novo Estado socialista frances consistiu em uma ce1ebra~ao iconica ambigua. Virando as costas deliberadamente para a multidao parisiense em de1irio, Mitterrand preferiu tornar-se urn filme para milhoes de telespectadores. Atribuindo-se 0 papel do antigo "Psychopompe", pode-se ve-Io circulando, com uma rosa na mao, entre os corredores do Pantheon, onde cameras de televisao foram cuidadosamente espalhadas. Indo da sepultura de Jean Jaures a de Jean Moulin, Mitterrand transformava a telinha em tela do alem-tumulo. Se Mendes-France afirmava que a Historia nao e cronologica, Mitterrand nos relembra que as tecnologias de comunica~ao na~ sao obrigatoriamente atuais, mas, ao contrario, antigas e retrogradas. Abel Gance na~ se enganou quando, em 1927, escrevia depois de finalizar seu Napoleon: "todas as iendas, tada a mitologia e todos os mitos, tiJdos os Jundadores de religiiies e as religioes em si esperam sua ressurrei{:ao luminosa e os herOis se acotovelam em nossas portas para entrar. " Gance observa ainda: "E lti estamos nOs, atraves de
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bral,;os cruzados sobre 0 peito, segurando 0 chicote e 0 freio simbolicos. 0 alem nao interrompe os dias do farao: se, depois da partida da alma (0 que anima), 0 corpo torna-se inerte, a ambil,;ao da arte egipcia nao e tanto ve-lo continuar a se mover, pois para 0 farao tudo continua a mover-se. 0 "realismo" egipcio e essencialmente uma tenta~ao cinematica. Desde entao, organizar 0 proprio tumulo torna-se urn prazer dromoscopico para seu futuro ocupante, como se viu recentemente no caso do milionario americano que foi enterrado em seu Cadillac, passando a dirigir "com 0 tumulo aberto" no lugar da capota do carro. Compreende-se que 0 eventual passageiro mobilize meios consideraveis - tanto materiais quanta tecnicos - comparaveis aos exigidos para uma conquista distante, para uma expedil,;ao na qual 0 objetivo e desconhecido. A propria represental,;ao pictorica ja e urn esbol,;o dromoscopico, pois seu procedimento de construl,;ao e sistematico: trata-se da justaposil,;ao de episodios autonomos em que 0 procedimento habitual "dois + urn" e concebido como urn ritmo imposto aretina humana, sendo a animal,;ao produzida pelo que os egipcios chamavam de vitalidade luminosa. Este conceito demonstra ate que ponto os egipcios dominaram 0 problema anatomico da percepl,;ao e a produl,;ao de aparencia. A percepl,;aO na~ e tomada por urn dado, mas como uma operafiio ativa do espirito, principio que mais tarde seria descoberto por pintores como Seraut (e 0 divisionismo) e Kandinsky e por cineastas como Gance, que entendia que 0 necessario efalar primeiro aos olhos. 'No Egito nao existe simetria, mas equivalencias; as paredes sao paredes de imagens, faixas de calcario pintadas de alto a baixo onde desfilam figuras "em al,;ao", aproximando os egi pcios, mais uma vez, da definil,;ao de cronofotografia: "Imagens sucessivas representando
um prodigioso retorno, voltando ao tempo dos egipcios ... A linguagem das imagens ainda niio se encontra pronta porque niio somos feitos para ela. Ainda niio ha respeito suficiente, um culto pelo que as imagens exprimem".
Ao mesmo tempo que Gance escreve estas lin has a proposito dos hieroglifos, 0 tumulo de Tutankamon tinha acabado de ser descoberto no Vale dos Reis (1922). A fabulosa descoberta e ate mesmo as pesquisas foram cercadas por urn grande aparata publicitirio gral,;as, principalmente, ao reporter fotografico americano Burton, que cobriu todo 0 acontecimento. Enotoria a influencia do estilo egipcio sobre 0 cinema no mobiliario, na decoral,;ao, na arquitetura das salas e na imagem de atores como Rodolfo Valentino, verdadeiro sosia do jovem farao. Mais do que isso, a inestimavel descoberta funeraria nos lembra que toda arte e, como a morte, uma inercia do instante e portanto uma modificafiio na velocidade do tempo vivido. Se os egipciosja viviam intensamente os lapsos de tempo ~ "como se fossem morrer amanha e construissem como se fossem viver eternamente" - e porque tinham consciencia, assim como Cleopatra ao fun dar a "sociedade das vidas inimitaveis", de que uma vez que tudo passa, eles viviam dias inimitaveis. Quando Agnes Varda supoe que, nos impressionistas, a luminosidade corresponde a uma certa ideia de felicidade, e sem duvida porque eles estavam entre os ultimos a captar em suas pinturas esta intensidade do instahte, ou seja, a solaridade como expressao do tempo, reagindo assim contra a pintura de atelie, marcada pel a iluminal,;ao fixa e artificial. Pouco depois, 0 motor cinematico precipitaria 0 declinio da antiga arte pictorica (quadro no cavalete, comercializal,;ao de retratos) como a restaural,;ao de urn culto solar tardio. Quando declara que 0 cinema ecolocar um sol em cada imagem, Gance nao faz nada alem de repetir, tres mil anos depois, 0 canto de Akhnaton: "0 sol criou milhares de aparencias ... " Tudo neste mundo solar destina-se a velocidade. 0 pr6prio tumulo contem os instrumentos da dromologia, VelCUlos tecnicos, carros, naves: 0 soberano e representado com os
as diferentes posifoes que um ser vivo ocupa no espafo a uma distiincia qualquer em um momento dado" (EJ. Marey).
Este movimento, que e urn movimento de retirada, remete diretamente a etnologia. Enquanto 0 sonhador moderno nao reconhece e recusa seus sonhos, observa Jean Duvig-
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naud(91, 0 sono paradoxal e os sonhos sao essencialmente exprimiveis nas sociedades antigas: "fazer kabary", dizem os pastores de Madagascar ao pe do Mandraka ... "Riikut pit" (sono ausente) eo que se diz entre os Jorai para designar os que adormeceram, sendo que "riikut" tambem e utilizado para designar quem nao esta em casa, realmente viajando. Tendo seu corpo estirado sobre a esteira eomo um morto, quando 0 jorai sonha e que 0 "bongat" saiu para passear, e eexatamente esta viagem que forneee ao nativo inerte as imagens do sonho e, mais tarde, de uma narrativa impossivel de ser situada no espa(:o geografteo e no tempo astronomieo.
Ainda uma vez nos encontramos diante de praticas universais. Desde a Renascelll;:a, quando a invelll;:ao da imprensa desencadeia na Europa a revolu~ao da leitura sileneiosa, a paramnesia da narrativa onirica, freqiientemente religiosa (podese pensar tambem no nascimento do romance em que os herois invariavelmente encontravam-se viajando ou caminhando em urn universo ilimitado), nao mais passa pela reuniao e pela troca da palavra, mas pela produ~ao industrial, pela estandartiza~ao. Depois de algumas decadas, milhoes de livros seriam editados, prefaciando a futura difusao da fotografia, do cinema e, hoje em dia, da eletronica. A inova~ao da leitura sileneiosa faz com que cada urn acredite que 0 que se escreve e verdadeiro pois, no momento da leitura, tem-se a ilusao de que se e0 unieo a vero que esta escrito, assim como 0 sonhaoor inerte estabelece previamente a equivalencia entre a vigilia e 0 sono paradoxal. Existem numerosas afinidades entre 0 instante da escrita e 0 instantaneo fotografico, cada urn se inscreve menos no tempo que passa do que no tempo de ex-
(9) Foret, Femme, Folie, Jacques Dournes, edi\;oes Aubier-Montaigne, 1978. Em "La Terre et les Reveries de La Volonte~, Bache!ard observa que 0 sonho se expIica pelo sonho, cadeia de irnagens oniricas que podern corresponder a urn encadearnento na vida durante 0 estado de vigilia. Ver tarnbern La Banque et les Reves,Jean-Pierre Corbeau, edi\;oes Payot, 1979.
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posi~ao.
Com a impressao,ja se estabelece uma nova interface tecnica em que 0 meio de comunica~ao retem 0 imediato e desacelera-o para fixa-Io em urn tempo de exposi~ao que escapa a dura~ao diaria e ao calendario social, aprofundando a separa~ao entre 0 instrumento de transmissao e nossa capacidade de assumir a existencia presente. Ofere~amos urn livro novo a duas crian~as: a que 0 lera por ultimo tera seu prazer comprometido. 0 mesmo ocorre com aqueles que, no metro, leem 0 jornal sobre 0 ombro de seu vi·zinho: este ultimo sera importunado pela ideia de dividir uma leitura que na realidade e realizada por dezenas de milhares de pessoas no mesmo momento. Contrariando a afirma~ao de Robespierre, a Historia e sua leitura nao sao um passado earregado de nao-presente e: 0 proprio fato de sua transmissao mediatica torna a Historia uma viagem por urn tempo vazio e logo heterogeneo (Benjamin). E da abusiva assimila~ao da leitura de signos de urn saber, e mesmo da totalidade de urn saber, que nasce 0 imperialismo do quarto poder, aquele que mobiliza a imprensa e conta com a participa~ao direta dos meios de comunica~ao na dura~ao atipica que e propria das tecnicas de transmissao. A partir do momenta em que a imprensa fala de sua objetividade, pode-se facilmente difundir a cren~a em sua veracidade: se compararmos urn jornal a urn livro, a atual superioridade do primeiro sobre 0 segundo consistira exatamente em nao possuir urn autor, ainda que 0 lei tor possa the atribuir uma verdade que ele sera 0 unico a conhecer, julgand(H) verdadeiro por crer em seus proprios olhos. Ve-se aqui por que os jornalistas e seu estilo anonimo adquiriram urn grande poder na encruzilhada dos meios de comunica~ao, tanto no campo editorial quanta na area politica apesar de que, desde 1914, a imprensa opinativa tenha desaparecido na Fran~a com seus polemistas e grandes escritores - reporteres como Dumas, London ou Kipling, para quem 0 romance e realmente um espelho que passeia em uma estrada (Stendhal) . Eeviden te que os meios de comunica~ao a distancia tomaram progressivamente 0 lugar da "anima" e que a partir de encio 0 motor (duplo projetor, produ-
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tor de velocidade e propagador de imagens) reconta a viagem e fornece as imagens do sonho como 0 automovel, que faz "com que a cabera do viajante expWda sob a pressiio de tudo 0 que reterrws, imagens truncadas que tentam em viio se recompor. .. ", (10) pois os primordios da transformal,;ao dinamica provocam a dissipal,;ao das estruturas visuais. Escreveu-se a respeito de Outubro, de S.M. Eisenstein e G. Alexandrov (1927): "A tensiio interna nofilme, 0 jluxo interno da montagem desencadeia perturbaroes tao fartes que nenhuma determinariio l6gica parece possivel... desprovida de ancaragem espaw·tempara~ a legilibilidade das figuras e questionada par um numero de planos tiio elevado que se torna impossivel memoriui-ws... ".ol). A mixagem tecnologica generalizada realiza de fato este "continuar a mover-se" experimentado pelo sonhador etnologico inerte em sua esteira e pode converter-se facilmente em religiao ou culto de substituil,;ao, tese que M. Servan Schreiber retomara inconscientemente em uma obra recente, Le Nouveau Deft, que e mais urn ate de fe, uma aposta pascalina, do que uma perspectiva do mundo racional. Podemos nos questionar sobre uma verdadeira exultal,;ao social observada em relal,;ao as tecnicas avanl,;adas desprovidas de toda verossimilhanra, urn panteismo logistico imaterial. 0 tempo de exposil,;ao da leitura silenciosa desaparece.no olho anatomico da camera, provocando nos paises desenvolvidos uma enorme onda de analfabetismo: osjogos eletronicos renovam a antiga sidera¢o leveporque, a partir de entio, se trata menos de compreender do que de ver. Da mesma maneira, 0 grande piiblico ja nao se interessa tanto pelos esportes que envolvam equipes (como 0 ciclismo, 0 futebol etc.) e prefere urn esporte como 0 tenis, geralmente transmitido ao vivo, partidas em que, durante horas, se ve a pequena bola de contornos irregulares cruzar a quadra, reproduzindo a tela eletronica em que 0 operador de computador realiza figuras sinteticas que nao mais remetem a nenhum referencial. Paul Claudel escreveu sobre os vitrais das catedrais: "todas estas (10) La 628-E-8, Octave Mirbeau, edi~oes FrasqueIle, 1905. (11) La Revolution Figuree, Michele Lagny, Marie-Claire Ropars, Pierre Sorlin, edi~oes Albatros, Paris, 1979.
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cares reunidas, todos estes pontos diversos, nada permanece im6vef'. No seculo XIII, Guillaume Durant escrevia sobre os vitrais de Chartres, entio considerados uma inoval,;ao tecnica: "os vitrais siio escrituras divinas quefalam soln'e a claridade do sol verdadeiro, ou seja, 0 sol de Deus na igreja, a iluminariio do cararao de todos os homens... " Tudo o que e visivel nos aparece na luz, nos acreditamos em nossos olhos e a luminosidade nos aparece indistintamente como a verdade do mundo. Se, no comel,;o do seculo, as salas de cinema foram comparadas as catedrais e porque estas iiltimas ja consistiam, por si sos, em salas de projel,;ao solar que, quando inauguradas, pareceram tio impressionantes quanto os cinemas. Sua demolil,;ao se iniciara da mesma maneira que ocorreu com os cinemas quando, no final do seculo XVIII e bern antes da Revolul,;ao Francesa, urn novo iluminismo - do secuw das luzes- introduz 0 cientificismo que marcara 0 seculo XIX. Nao nos esquel,;amos que a liturgia, desde a antiguidade, e urn serviro publico que reagrupa a organizaI,;ao logistica das expedip">es distantes na organizal,;ao das cerimOnias religiosas determinadas pelas autoridades espirituais e dos espetciculos enquanto "efeitos especiais", como uso do "deus ex-machina". Parafraseando Heidegger, pode-se dizer que, na catedral, o Cristo ja se encontra morto,ja que 0 novo santuano tern 0 objetivo de expor, imediata e totalmente, a ciencia ao poder do mundo sem a preocupal,;ao de misturar as disciplinas da existencia humana (povo, costumes, Estado, guerra, poesia, pensamento, crenl,;a, doenl,;a, loucura, morte, tecnicas ... ) Antes de tornar-se trono da totalidade, 0 santuano cristio era, antes de mais nada, caixa-forte, bunkere igreja fortificada para os que a ela se ligavam, pois todas as suas forl,;as e aptidao se estendiam e se reforl,;avam atraves do, no e como combate... Diz-se frequentemente que e dificil, talvez impossivel, imaginar 0 comportamenteo dos cristios na Idade Media em sua entio nova Igreja, mas hoje em dia tambem ja nao podemos imaginar exatamente 0 comportamento dos cinefilos dos anos trinta ou ate mesmo dos quarenta, acotovelandose diante das catedrais de cinema do Estado militar.
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"Euatribuo a origem de Hollywood aPrimeira Guerra Mundiaf', afirmava Anita Loos. A cidade-cinema da era militar-industrial (Cinecitta, Hollywood) sucede a cidade-teatro do Estado-Cidade antigo. No inicio, os estudios e as salas de proje~ao eram construidos nos suburbios como as antigas necropoles, pois 0 teatro ainda era empiricamente reconhecido como detentor da cidadania e fonte de rela~oes vivas, ao passo que 0 cinema mudo era marginal e destinava-se a uma popula~ao ainda nao integrada e nem mesmo naturalizada: proletariado migrante e iletrado, escondido nos limbos da periferia. o transe cinematografico e fundado - assim como 0 transe do combatente - sobre urn certo sofrimento social, da redu~ao a uma vida cotidiana nos suburbios superpovoados onde se misturavam - sem se confundir ou alcan~ar uma fraternidade civica-o Oriente e 0 Ocidente. Nao importade que maneira, a popula~ao visada e a mesma, e 0 "conglomerado sociologico informe" do proletariado militar-industrial, convocado indiferentemente a fabrica ou a guerra em urn momento em que a "amea~a bolchevique" se estende de Munique as portas da india e quando os americanos se perguntam todos os dias se os russos ja escio acampados em Paris. Paradoxalmente, 0 cinema vai satisJaur 0 desfjo de uma patria estavel e ate mesmo eterna dos migrantes, tornando-se para eles uma cidadania. A tecnica cinematografica substitui a religiao da cerfunica por urn retardamento cinematico, urn Walhalla estandartizado com suas imagens devanos tipos de acontecimentos, objetos e personagens. A sala de cinema nao e uma nova" ogara", urn forum destinado aos habitantes vivos da cidade, que poderiam encontrar-se e entrar em contato com migrantes de todo 0 mundo: 0 cinema esci mais pro.. ximo de urn cenotafio e sua capacidade essencial, manifesta em seus '1astos templos, e uma formaliza~ao social obtida atraves da ordena~ao do caos da visao, fenomeno que faz do cinema uma verdade ira missa negra necessaria a nova autoctonia do pais em plena anarquia demografica. Marcel Pagnol, em suas memorias, mostra esta penetrante infalibilidade do raio cinematografico: "Em um teatro, mil espectadares niio podem sentar-se no mesmo lu-
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gar e logo podemos afirmar que nenhum dentre eles assistira amesma peea . 0 autar dramatico deve, para conduzir carretamente seu publico, empunhar sua espingarda de caea e carrega-la com mil balas para atingir, de um s6 golpe, mil alvos diferentes. 0 cinema resolve este problema, pois 0 que cada espectadar ve, onde quer que ele estfja sentado na sala (ou em um territOrio onde existam milhoes de espectadares), eexatamente a imagem que a aimeraJocalizou. Se Carlitos olha a objetiva, sua imagem olhara deJrente todos que a observam quer estfjam aesquerda, adireita, no alto ou abaixo ... Niio mais existem mil espectadares (ou milhoes, se juntarmos todas as salas), agora existe niio mais de um unico espectador, que ve e escuta exatamente 0 que a camera e 0 microJone registram." J.F.C. Fuller dizia que todo individuo, homem ou mulher, eum alvo nervoso em potencial. Foi exatamente a precisao do tiro-dimera que, na origem do cinema, criou panico entre os espectadores durante as "demonstra~oes de movimento" dos irmaos Lumiere com a famosa chegada do trem na gare de Ciotat, quando cada urn teve a sensa~ao de ser pessoalmente esmagado ou ferido pelo trem. Este tipo de cren~a, que reconstitui as impressoes de velocidade buscadas nos parques de diversoes, nao deve desaparecer, pois 0 habito torna 0 me do mais pernicioso. A partir do momento em que aprende a controlar suas rea~oes nervosas, 0 publico come~a a ver a morte como algo divertido; nos westerns a morte seria cada vez mais comum e logo nos veriamos contabilizando as mortes exatamente como ocorre nos comandos militares, on de a rela~ao entre 0 numero elevado de mortos e a deteriora~ao das tropas e equipamentos era considerada como sinal de talento e personalidade dos comandantes e representava ate mesmo uma prova da ortodoxia de sua arte. Indo ainda mais alem, pode-se observar que 0 duelo da dupla homicida-suicida (hetero e homo) - que e a propria essencia da guerra e suas peripecias - e indefinidamente reproduzido pelo cinema industrial que, reprisando-o reiteradamente, 0 transforma de tal maneira em urn modelo que chega a alterar rapidamente costumes ancestrais. 0 sociologo Lewis Feuer observa que a sobrecarga emocional do western modificou completamente as mentalidades na Asia, on de no drama ritual clas-
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sico os bons sao geralmente derrotados pelos maus, que triunfam; 0 cinema instaura, com a noriio de guerra justa, uma nova filasofia da HistOria no Oriente (A Critical Evaluation, in New Politics). No momenta em que Wells publica sua Maquina do Tempo, 0 "Hale's Tour' coloca os espectadores na posi~ao de agressores, lan~ando-os em uma sala de quinze metros de profundidade em que as cadeiras sao posicionadas nos dois lados de urn corredor central, exatamente como em urn vagao de trem que viajasse em alta velocidade. 0 proprio filme, que tinha suas cenas tomadas da parte de tras de urn trem ou da locomotiva que atravessava paisagens acidentadas, era projetado em uma tela colocada na frente da sala, onde existiria urn para-brisa. A sala era geralmente financiada por empresas de transporte e armamentos que nao tardariam a se destacar no primeiro conflito mundial. Pouco de po is V. Bush constataria que os milhares de jovens que dirigem e se interessam pela meca.nica, eletronica e motocicletas estao, despercebidamente, em verdadeiros campos de treinamento militar que, no momenta oportuno, podem transformar 0 hohlry em aptidao para a constrU(;:ao de urn complexo militar. As salas de cinema sao igualmente campos de treinamento que criam uma unidade agonistica insuspeitada, ensinando as massas como controlar 0 me do do desconhecido ou, como dizia, Hitchcock, do que nem mesmo se conhece. 0 cineasta dizia que "nos mamos a violin cia essencialmente a partir de nossas lembranras e niio a partir do que vemos diretamente, do mesmo modo como na sua injlincia 0 espectador preenchia as lacunas de sua cabera com imagens que so se produziriam posteriormente... " o ensaistaJohn A. Kouwenhoven publicaria mais tarde uma obra tendo como tema "0 que a America tern de americano", em que se perguntava qual seria 0 fator capaz de unir este pais de "sintomas" tao diferentes como 0 arranha-ceu, 0 chiclete, a linha de montagem, 0 desenho animado, 0 beisebol etc. De fato, 0 cinema militar-industrial estava carregado de feixes de signos e informa~oes para compor a unidade nacional mais alem do perfil da personalidade de cada novo cidadao. A contra-espionagem aliada lan~ara mao de questionarios baseados neste
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tipo de enumera~oes aparentemente heteroclitas para desmascarar os eventuais membros da Quinta Coluna nazista nos Estados Unidos ou na Inglaterra. Durante 0 segundo conflito mundial, 0 militar americano enviado a Europa levari a em sua bagagem este mesmo feixe de sintomas: Biblia, chicletes, papel higienico. Esta tradi~ao prossegue depois da guerra nos "libertyships", for~a e fraqueza de urn exercito que, desde que perca seu apoio logistico da percep~ao, se torna incapaz de enfrentar uma campanha dificil como na Africa do Norte, em 1942/44 com Eisenhower, na Coreia ou depois no Vietna. Depois de 1914,0 "star-system" utilizara os mesmos tipos de gatilho "oscilando entre zonas alim do universo das coisas praticas e abaixo das jorras desencarnadas que animam as coisas" (R. Arnheim). No inicio, as grandes produtoras e diretores americanos mostravamse violentamente contrarios a forma~ao de urn estrelato cinematografico semelhante ao ja existente no teatro. Quando a existencia nominal dos atores e finalmente admitida, eles serao considerados como "semelhantes" do "star-system", perdendo seus tra~os reais como os herois an tigos, escapando a memoria imediata das pessoas que Ihes sao proximas e de suas familias, tornando-se, gra~as a uma selepio arbitraria de tra~os comuns, individualidades inorganicas que podem ser reproduzidas indefinidamente. Logo os atores nao deverao, em sua vida pessoal, separar-se da 10caliza~ao paramnesica que Ihes e assegurada por contrato: a gravidez ilegitima de Ingrid Bergman (ajovemJoana D'Arc!) e sua liga~ao com Roberto Rosselini chegou a motivar uma interven~ao no Senado americano em plena Guerra da Coreia, antes de arruinar a carreira da atriz em Hollywood. o cinema ja se inicia na fachada de seus palacios, onde sao escritos, em letreiros iluminados, os nomes das estrelas. 0 cinema e "como este esplendor da vida, que se encontra ao /ado de cada ser, invisivel, distante e portanto presente. Basta que 0 invoquemos pelo nome certo, pela palavra certa, e ele vira, ai estti a essen cia da magia", observa Kafka em seu diario em 1921. A medida que a estrela de cinema faz parte do universo isolante da percep~ao indireta, ela com poe uma figura iconica que nao
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pode ser comparada a presen(:a da crial,;ao teatral. Ela e uma vestal deste solem cada imagemao qual Gance se refere, guardia de urn lar nacional onde a iluminal,;ao intensa nao pode ser comparada a nenhuma ~Utra. A estrela conhecera urn destino semelhante ao da antiga sacerdotisa: ceder a paixoes demasiado humanas e amar 0 amor mortal representa 0 fim de sua propria imortalidade, 0 comel,;o de urn isolamento do qual a censura e as ligas puritanas e politicas se encarregarao de reforl,;ar diligentemente. Desde que, em 1914,0 cinema tern seu papelcfvicoevidenciado, passaa existir urn regime de liberdade vigiada e instala-se urn sistema de regulagem da produl,;ao cinematografica, orientado pelos metodos de desinformal,;ao empregados na propaganda de guerra. Falsos rumores, revelal,;oes tardias, trafico de personalidade, boicotes, processos, delal,;ao, inquisil,;ao, cal,;a as bruxas em que 0 terror do inimigo comunista ou nazista mistura-se ao terror da droga, a proibil,;ao do aleool ou do sexo. Nos Estados Unidos, Will Hays, antigo membro do gabinete Harding, e solicitado pelos proprios produtores para tornar-se patrono da censura cinematografica dos anos vinte. As ligas religiosas, cfvicas ou familiares vern se aliar altos funcionarios da policia, membros do exercito, a imprensa Hearst, os agentes antidroga etc. Depois das listas negras e da tragedia do macarthismo, 0 relatorio da Comissao Trilateral de 1975 denuncia os "intelectuais e artistas" como marginais e irrecuperaveis. o documento tambem advoga a limital,;ao estrategica do crescimento economico no mundo e denuncia a progressiva deterioral,;ao do modelo democratico base ado na cHula familiar tal como ainda a concebe muitos americanos ... A partir de enta~, Hollywood perdeu sua razao de ser. Ainda assim impoe-se a comparal,;ao com 0 universo teatral, com as vedetes de "music-half' ou as divas que cultivavam ostensivamente "carreiras imorais" de cortesas como no caso de Sarah Bernhardt, fichada na Franl,;a como prostituta... A propria Sarah estaria paradoxalmente ligada a fortuna de Zukor, que comprou dos ingleses, por 20 mil dolares, 0 filme ~eenElisabeth, exibindoo em Nova York no dia 12 de julho de 1912 em um teatro especial-
mente alugado para este jim. A campanha publicitaria do evento fazia crer que 0 publico poderia contemplar efetivamente a atriz, atraves da visao direta. Apostando na confusao entre presenl,;a carnal e cinema, Al Lichtman continuaria a alugar diversos teatros nos Estados Unidos para apresentar 0 filme. Este novo tipo de golpe rendeu cerca de 80 mil dolares a Zukor;permitindo-lhe iniciar uma carreira de produtor... Estes produtores que logo iriam impor as estrelas exibidas na tela uma dissimulal,;ao de suas vidas privadas comparavel a reserva recomendada aos chefes de governo. Algumas estrelas, como Greta Garbo - que amava John Gilbert publicamente, diante das cameras - , guardariam para sempre 0 me do de todo olhar mais proximo. A notoriedade da mulher-estrela - obtida facilmente, enquanto os negros e as mulheres americanos tern de lutar para obter 0 reconhecimento de seus direitos civis - nos relembra que, no momenta da fundal,;ao ou da restaural,;ao de todo Estado Militar, amalgamando-se a sua intensa atividade necrofora, sempre se produzem trocas e delegal,;oes de poderes entre guerreiros masculinos e esposas 10gisticas(l2), ou seja, entre a re(12) Nas migra<;:oes enos enfrentamentos, a mulher controlada e adestrada pe!o homem assegura 0 transporte, permitindo que 0 ca<;:ador se especialize no duelo homossexual, ou seja, na fun<;:ao de matador de homens, de guerreiro. Os conflitos, que ate entio cram restritos devido a deficiencia de mobilidade dos grupos etnicos, podem estender-se a vastos espa<;:os, e a mulher em combate permite que 0 guerreiro avance e assegure o comando fornecendo-Ihe suas armas. Gra<;:as a inven<;:ao deste primeiro rebanho, 0 macho passa a possuir 0 que em termos militares chama-se uma boa capacidade de deslocamento. Neste nive!, ate a domestica<;:ao do cavalo, os grupos heterossexuais serao mais bem-sucedidos do que as associa<;:oes homossexuais. Por duas vez.es a mulher ajuda 0 homem a vir ao mundo: primeiramente em seu nascimento e mais tarde transformando-o em urn ~ guerreiro. Com sua dupla fun<;:ao de primeiro mei9.2.e_~r~I}.~p2~.~e!!~ ~.s~ $ie (durante a gravid_ez:.e a iIlf~nfg) e primeiro "apoio logistico"..:-~~ul~r_ funda a guerra isentando ~c:a,"
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produ\;ao natural da an tiga ginecocracia - em que 0 parentesco e, na maior parte do tempo, matrilinear - e todas as tecnicas de conserva\;ao e reprodu\;ao das novas Cidades-Estados, indo da fortaleza conhecida como "mae" ate as matrizes industriais beticas e finalmente ao cinema militar-industrial. Ainda ai, podemos ver estas series de trocas serem retomadas na Europa durante a Idade Media, no momento da fixa\;ao feudal, principalmente com 0 advento da Lei Salica. Nesta epoca, a mulher desempenhava um papel ambiguo nas narrativas, proveniente de um lugar mais ou menos movedi\;o, incerto e perigoso, agua, floresta impenetravel, talvez magica ... Se ela,encontra 0 parceiro masculino e porque este encontra-se perdido em um meio desconhecido onde a muIher esta avontade e, de certa maneira, domina 0 local. Na lenda dos Jorai, a mulher e fada e ca\;adora, e ela quem confecciona as iscas, tece as redes e as armadilhas em que a ca\;a ou 0 inimigo serao capturados. Ainda que ca\;adora, a mulher Jorai nao participa do massacre da ca\;a ou da guerra, deixando que o macho desempenhe 0 papel definitivo de matador. No momento da constru\;ao estrategica da fortaleza ou da cidade, a mulher conserva ainda seu poder tcitico. Existe um velho ditado normando que diz que "nao ha umaJortaleza em que, no inicio de sua constru(:ao, a mulher nao tenha colocado a mao ou 0 pe". Nos lembramos bem de Vivian ou da Metusine de Lusignan, muIher-fada-animal que ao estender sua fortaleza por um terreno tornava-o imenso devido a suas armadilhas topol6gicas ou ainda desta outra encantadora, que consentia em permanecer com um cavalheiro que a encontrou em um bosque desde que nao fosse pronunciada a palavra morte. "Estes tra(:os comuns, simples e precisos", dos quais fala John Locke a respeito da conota\;ao do isolamento, ainda encontram-se aqui presentes como nos modelos dos quais se desconhecem ate mesmo a procedencia... No romance cortes, 0 corpo da mulher e imediatamente assimilado a cidade-fortaleza e suas armadilhas, pois a mulher sera considerada uma "caixa de surpresas e estratagemas", po-
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dendo fazer durar indiferente ou indistintamente amoroso ou 0 duelo homossexual da guerra.
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combate
*** Assim como a cidade colonial antiga adotava indistintamente os deuses dos conquistadores ou vizinhos, Hollywood reune e adapta sem cessar os talentos do mundo ocidental para que se conformem a modelos abstratos e por vezes visualmente perceptiveis que sao necessanos aprograma\;ao de diversos tra\;os comuns de um cinema universal: Louise Brooks, a fatal Lulu, personagem principal de A Caixa de Pandora (Die Buche der Pandora), de Pabst (1928), descrita por Lotte Eisner como uma "singular criatura terrena dotada de beleza animaf', e um dos mais antigos mediuns de mulher-fada e da imortal Pandora, criatura de Hephaistos, deus do fogo e das forjas, detentora da caixa fatal que contem tanto a felicidade quanto as desgra\;as dos homens, mas que guarda em seu fundo a esperan\;a. No fim da Idade Media, Joana D'Arc, tao popular em Hollywood,ja representa a cristaliza\;ao desses sintomas universais, mostrando-se extremamente poderosa, a ponto de modificar 0 destino de uma guerra de cem anos. Inicialmente pastora, ou seja, tambem habitante dos bosques e dos prados, ela sera admitida como estrategista com uma facilidade que ate hoje nos surpreende, mas que, como vimos, era antologicamente concebivel em sua epoca. Vma estrategista de 17 anos a quem se confia um exercito e a quem os principes obedecem, mas que vai ao combate e nao participa da matan\;a dos homens, como osJorai. Tendo, ao contrario, um imenso cuidado com sua aparencia transexual,Joana D'Arc vai sublimar seus instrumentos guerreiros (armadura, cavalo, estandarte) enquanto instrumentos de reconhecimento, intervindo energicamente no desenrolar das batalhas, estes campos de percep\;ao ocasionais que, desde sua origem, sao 10cais privilegiados dos estimulos rapidos, de slogans e logoti-
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pos que seriam utilizados mais tarde no design comercial e no cinema industrial. o destino de Joana D'Arc sera exatamente igual ao da antiga estrategista: depois da restaura~ao do Estado-exercito em Reims, sera vendida, julgada e condenada a fogueira como feiticeira - ou seja, fada-ocasiao - e deste modo sera retratada na obra shakespereana. Pucelle d'Orleans ou Artemis remetem a abstinencia sexual e a uniformidade de urn modelo casto. Sao precisamente estes criterios de semelhan~a que, em 1949, precipitaram a decadencia de Ingrid Bergman, ilegttimamente gravida urn ano depois de tervividoJoana D'Arc no cinema.
*** Depois da guerra civil e da conquista do oeste, os americanos colocaram na cena e em cena seus "herois veridicos" do SuI ou do "Far West" precariamente pacificados como nos casos de Calamity Jane, Buffalo Bill, Sitting Bull etc. Depois de 1914 e durante a Guerra Fria, diversos combatentes reeditarao suas conquistas diante das cameras, servindo-se de seus titulos militares e condecora~oes para fazer carreira no cinema, tal como ocorreu com Audie Murphy. Quando urn veterano de Hollywood vai disputar a Presidencia dos Estados Unidos, surge a ideia de organizar durante a campanha eleitoral urn shoow televisivo, uma estranha Festa politico-militar que contaria com a participa~ao de autenticos sobreviventes do ultimo conflito mundial, como 0 general Bradley, misturados a sobreviventes de Hollywood, imitadores e sosias de politicos. 0 proprio Reagan, sentado em urn trono, presidia, ao lado de sua mulher, estes jogos delirantes dignos de Lewis Carrol ou de Monty Python. Depois de sua elei~ao, em janeiro de 1982, Reagan pede a seu amigo Charles Wick - urn milionario californiano que dirigia a Voz da A mmca - que organizasse 0 "maior show desde a cria~ao do mundo". As vedetes seriam uma dezena de chefes de
Estado ou de governo. Cada urn dos convidados leria uma mensagem exprimindo a solidariedade de seu pais com 0 povo polones e 0 repudio ao regime do general J aruzelski e ao dominio sovietico na Polonia. Estas mensagens, urn tanto austeras, seriam amenizadas pela presen~a de cantores, music os e atores como Frank Sinatra, Charlton Heston, Kirk Douglas, Bob Hope etc., em urn programa transmitido via satelite para todos os Estados Unidos e 0 mundo, durante 0 que foi chamado de urn "final de semana de solidariedade" organizado pelos ocidentais. A transmissao para a America do Norte acarretaria urn grave problema que necessitou da interven~ao do Congresso para ser solucionado, pois a Voz da America, que produziu 0 programa, e uma antiga agencia de propaganda que nao permite a realiza~ao de transmissoes dentro dos Estados Unidos. Apesar dos impedimentos legais, 0 Congresso aprovou a realiza~ao do programa. Em mar~o de 1983, 0 presidente Reagan assinava a "National Security Decision Directive 75". Ainda que nao divulgada oficialmente, esta resolu~ao foi publicada resumidamente pelo Los Angeles Times. Seu autor e Richard Pipes, antigo conselheiro sobre a URSS no Conselho de Seguran~a Nacional. A "Directive 75" determina, entre outros assuntos, 0 esbo~o do "Projeto Democracia", que consiste em urn grande esfor~o de propaganda que acompanha as medidas economicas e 0 esfor~o militar dos Estados Unidos. Para este fim a administrariio reivindicou 85 milhoes de d6lares de credito para serem empregados em filmes, livros enos meios de comunicariio com 0 objetivo de promover a democracia em geral e especialmente os sindicatos livres, principalmente na Europa Ocidental e Oriental. Ainda assim 0 Congresso nao deixou de demonstrar varias reservas ao projeto, logo superadas na vota~ao final (13). Em 1982, a agencia sovietica Tass qualificou a opera~ao Let Poland Be Poland como telesubversao preparada pela Casa Branca em urn ato de provoca~ao. Sem que ninguem se desse conta, (13) Cahiers d'Etudes Strategiques nQ1, CIRPES. Documental;ao de Janet Finkelstein.
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o presidente Reagan conduziu, do alto do poder mundial, urn velho estoque de materiais perceptivos, uma replica fiel das cenas e dos metodos pragmatic os que remetem ao passado de Hollywood. Ator de filmes "serie B", Reagan serviu como testemunha durante as reunioes do Comite de Atividades Antiamericanas que precedeu 0 celebre processo dos "Dez de Hollywood" e, em pleno macarthismo, presidiu a poderosa Liga dos Atores. Com a "Directive 75", Reagan prepara urn novo tipo de violac;ao de fronteiras apoiado em seu saber cinematico, instalando simultaneamente os euromisseis e uma nova forc;a audiovisual, uma potente logistic a da imagem destinada a integrar ainda mais estreitamente 0 suburbio Europa ao sistema de seguranc;a americano. Mais do que urn remanejamento, trata-se de urn complemento indispensavel a "Power Projection" em urn momenta em que M. Weinberger insiste, no relat6rio orc;amentcirio americano, sobre a fragilidade geogrcifica dos paises nomundo. Com esta desneutralizac;ao dos meios de comunicac;ao Leste / Oeste, sem diivida caminhamos em direc;ao auma outra Yalta ou a urn novo Estado mundial. Se, no seculo XIX, Ratzel escrevia que a guerra consiste em fazer passear suas fronteiras pe10 territ6rio alheio, e certo que com a difusao mundial do "Show Reagan" n6s assistimos a uma tentativa de superac;ao dos antigos rituais de fundac;ao do Estado. 0 ator que se tornou presidente passa a conferir a estrelas como Sinatra ou Charlton Heston urn status de imortais da cidade, ou seja, urn poder politico realmente fundador do Estado americano e de sua empreitada cultural sobre 0 mundo. Apesar da mobilizaC;ao, urn jornalista escreveu no dia seguinte do programa Let Poland Be Poland: "0 show de Reagan niio teve casa cMia". 0 programa, que custou 500 mil d6lares, s6 obteve urn sucesso limitado e 0 espetciculo, que transmitia uma curiosa impressao de final de festa, foi desprezado pela multidao de telespectadores, que viraram as costas para as vedetes do cinema e da politica. A expressao utilizada nao foi menos interessante do que 0 show, pois compara 0 mundo a uma s6 e (mica sala de projec;ao,
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como se "0 maior show depois da criac;ao do mundo" fosse ao mesmo tempo 0 menor espetciculo, assinalando esta impostura de imediatez denunciada pelo te610go Dietrich Bonhoeffer, a uma s6 vez uma crise das dimensoes e da representac;ao.
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2. So!dad os ing!eses nas lrinche ir::I$. em 19 17. -Nfl mttl idll "" tplt Dm mpo d~ !JaW/h(l podill sn-v&slo (l olJtD " " , nOD txislia amftmlo, ncieluaO, lnrgum, profUtulld"d~, dinmlSlio ou lonna: (I ("'''PO tuio tro composlo por "ada. N,.sla.s (tmdi(Ot;s, rada grupo rk soIdadlJS cotlti""(l1J(l a Imoor sIla fW6pna ba/ltlho n" uWlaItti: ,.opon"M· Ignom1lnn rio Sllu(I(iio gfflll;jrfqiU:ritnJJntk 110 i(,Pfloffl1lnn do lata d~qtU' II/rIO /)QUi/hOl'loVnta Y ~roin-. Kinglake
3. D.W. Griffit.h e m Yisita
,
as uinchciras de Somme no inicio d e 191 7.
Griffith roi 0 unico cineasta chi ! autorizado a ir ao froll t rodar urn film e de p ro p.aganda, HmrtsoltheulCrld. Masoscomb:ues q ue 0 cineasrn d C!lejava filmar 0 dettpdonarnm. poi$ 05~ldados rnrame nte Yiam ~1l5 pro.
prios ad\'ersirios.
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5. Camera instalada !IObre um tripe de metralhadora, interngindo com as defesas do a\;OO. A empunhadura cia anna ecolocada sob a camera.
4. Gabriele O'Annunzio,oco-roteirisrade CabiriG-em parceriacom
Paslrone - , ao rctomar de uma mimo aerea durante conflito mundiaJ.
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primeiro
6. Equipamento m(wel de fotografia aerea em campanha, Exercito americano. 1918.
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1' 0 IIIiHKNO OA S IMA(;[/li S • H 7
7;,~~~~C;;;:~ as melho~s fontes de inf. dur,ulle a i Gucrra Mundial: pode-se vcr aqui um piloto comentando um foto de mos..ieo montado eom fotografias por e le obtidas durante \1m3 missao.
8. Fotomoillagem de fotografias sueessi\fa5 mostrando a d estrui~o progressiva de lIllla f37.enda durante a Segunda Guerra Mundial (exc!rcito americano).
9. Jog-o de cartOeSo-postais formando uma C'.u-icaHml. do Kaiser (1914/ 191 8) .
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I I . 0 d neasta Jean Painteve rodando urn film e em cinemacrofotografia , 1930.
10. Nofilme Hdl'sangtis. produzido e realiudo entre 1927 e 1930 por Howard Hughes.Jane Harlow recompensa 0 piloto sobreviveme.
12. 0 capitiio A.W. SlC'o'ens da forca Aerea americana em filmagem (1929) .
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13. Logotipoda2Oth CenFox. Obser"l'e~ a imponfUlcia dos holofOles e dil projclVao de luz depois da Grande Guerra. lUry
15. Chegada do piloLO Ho .....ard Hughes e m Bourget depois de sua viagem ao redor do mundo, em 1938.
14. ProjelO de cinema monumenlal com tela tripla realizado relo i1rquileLO espanhol Fenlilndez Shaw em 1930, ou seja, cinco an05 ante!! dos fauslO$de Alben Speerelll Nuremberg. Obsen·e-se que, pdo desenho. traLa-5e de urn dri\'e-in para aUlomo••eise avloo.
16. Em 9 de junho de 1939,0 major Goddard apresenlll 0 material de filmagem mililar americano. No segundo plano, lllll aviao 8 18 da Fon;a Aerea americanll.
CAPiTuLo QUATRO
"A IMPOSTURA DO IMEDIATISMO" Dietrich Bonhoeffer
Com a inven~ao da telegrafia otica, que come~a a ser utilizada em 1794, 0 campo de batalha mais distante podia interferir quase que imediatamente na vida interior de urn pais, alter;i-Io completamente sob os aspectos social, politico ou economico ... Ja se trata da instantaneidade propria da a~ao a distancia. Desde enta~, numerosas testemunhas podem constatar que os lugares desaparecem continuamente, que os espa~os geograficos restringem-se em propor~ao direta com 0 progresso da velocidade e, finalmente, que a localiza~ao estrategica tern sua importancia pouco a pouco substituida pela deslocaliza~ao dos vetores e de suas performances, em urn fen orne no telurico e tecnico que nos introduz em urn universo topologico factivel, expresso pelo face a face de todas as superficies da terra (1) • Depois da guerra de movimento das for~as mecanizadas, passa-se para uma estrategia fundada em movimentos brownianos, em uma homogeneiza~ao geoestrategica anunciada no final do seculo XIX pelo ingles Mackinder, em sua teoria do "World Islana', segundo a qual os diversos continentes voltariam a reunir-se em urn unico territorio (pode-se pensar aqui na recente guerra das Malvinas, em que a distancia nao se constituiu em urn obstaculo diante da vontade de contra~ao antarti-
(1) Vitesseet Politique, Paul Virilio, edi<;:oes Galilee, 1977.
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ca dos britfulicos). Com as grandes exposi~oes, universais e coloniais,ja nao sao os viajantes que se deslocam para os lugares distantes, mas e 0 distante enquanto tal que se apresenta a eles instantaneamente sob a forma de uma serie de maquinas mais ou menos obsoletas. A revolu~ao dos transportes caracteriza-se menos pelo desejo de exotismo do que por uma nova autoctonia: romper com 0 ambiente circundante atraves da velocidade da viagem ao pais dos sonhos e fazer desaparecer a viagem, e apagar a propria consciencia da viagem. As empresas Disney (consultadas pelos franceses para a realiza~ao da fantasmatica Exposi~ao Universal de 1989) retomam a ideia das exposi~oes na constru~ao da "Disneyworld" e mais tarde no EPCOT Center (Prototipo Experimental da Comunidade do Amanha): "rwvo tipo de cidade, projetada a partir de uma concejJ(:ao revolucioruiria que empregaremos para tentar resolver os problemas de comunica~ao e relacionados com 0 meio ambiente, que serao enfrentados pelos habitantes das cidades futuras ... ", afirmou Walt Disney em 15 de novembro de 1965, duran te urna memo ravel entrevista coletiva realizada em urn grande salao do hotel Cherry Plaza em Orlando. Disney morreria subitamente treze meses mais ~de, enquanto as esc~vadeiras inici~vam seu trabalho sobre os 11 mil hectares de pantanos da Florida adquiridos em 1964,0 equivalente a uma superficie superior ade San Francisco. Significativamente, os colaboradores de Disney decidiram, depois de sua morte, resolver os "problemas de comunica~ao" da cidade do futuro construindo 0 "Show Case oj the World" em que presente, passado e futuro se interpenetram, local para onde convergem os diversos continentes, alinhados na estreita margem de urn lago artificial e representados por uma cole~ao de residuos visuais de monumentos e objetos verdadeiros. As dimensoes das constru~oes e dos meios de transporte sao reduzidas em ate cinco vezes em rela~ao a escala natural e nem mesmo os trens e automoveis rigorosamente reproduzidos sao encontrados em seu tamanho real, fato que, na visao de Disney, e responsavel pela cria~ao do sonho: 0 "saber cinematografico" renova-se aqui pela nega~ao estrategica das dimensOes.
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Quando nos letreiros dos cinemas dos anos trinta podia-se ler 0 slogan "A volta ao mundo em oitenta minutos", podia-se ter a certeza de que 0 desenvolvimento do filme se sobrepunha a uma geoestrategia que, ha urn seculo, conduzia irresistivelmente a uma comuta~ao imediata de coisas e locais que mais tarde viria a resultar na desintegra~ao desses lugares. Em 1926, no "Hall das Na~oes" da Paramount, em Nova York, Adolf Zuckor teve a ideia de reunir os destro~os e as amostras de ruinas coletadas em todo 0 mundo como se fosse 0 caso de reunir as ultimas testemunhas de urn universo fisico desaparecido nos efeitos especiais das maquinas de comunica~ao. Os milionarios americanos, como John D. Rockefeller Jr., seguirao este exemplo, incorporando a arquitetura moderna detalhes arquitet6nicos autenticos recolhidos em igrejas ou castelos medievais enquanto as marc as funerarias das atrizes, deixadas nas cal~a das do Grauman's Chinese Theater de Hollywood,ja evocam os negativos humanosque surgiriam com a guerra at6mica. ***
Apesar do acumulo de documentos, informa~oes e filmes, ainda hoje os jovens recrutas afirmam que nao poderiam imaginar 0 que a guerra pudesse ser. Este e 0 caso do soldado iniciante que, antes de enfrentar 0 campo de batalha pela primeira vez, 0 contempla a distancia e, impressionado com 0 que ve, "acredita ainda estar assistindo a um espetaculo ~ como escreve Clausewitz em urn belo capitulo de Vom Kriege. Em seguida 0 soldado devera deixar 0 calmo ambiente do campo que 0 cerca para aproximar-se progressivamente do que pode ser definido como 0 epicentro dos combates, atravessando sucessivas regioes em que 0 perigo aumentava incessantemente. Estrondo de canhoes, zumbido de projeteis, estremecimento de terra: em torno do soldado, seus companheiros sucumbem em grande numero, mortos ou instantaneamente mutilados "sob es-
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ta tempestade de afO em que as leis naturais parecem estar suspensas, onde 0 ar treme em pleno inverno CO'TTUJ nos dias injlamados do veriio, em que suas cintilafOesJaz.em dan{Xlr aqui e ali os objetos im6veis". (2) E0 fim incompreenslvel de urn sentimento estatico do mundo. "A partir deumcertoponto, constataClausewitz, almdaraziiosemoveparaum outTO meio e se desloca de uma outra maneira". (~) Sua capacidade de percep~ao e raciodnio nao mais Ihe serve, 0 soldado deve manifestar esta virtude militar que consiste em acreditar que ele pr6prio sera, apesar de tudo, urn sobrevivente. Ser urn sobrevivente e permanecer ator e espectador de urn cinema vivo, continuar a ser alvo de urn bombardeio visual subliminar ou ilurninar a si proprio e aos adverscirios, como dizem os soldados. Os soldados tentam enfim diferenciar sua morte, 0 ultimo acidente tecnico, separafiio final entre 0 som e a imagem (William Burroughs) . (2) Orages d 'Acier (In Stahlgewittem), EmestJurgen, edi~6es Christian Bourgois, Paris, 1970. (3) Em entrevista ao Cahiers du Cinema (nR 311), Samuel Fuller argumentava que seria impossivel filmar 0 desembarque da Normandia,ja que nao se pode filmar decentemente metros de intestinos espalhados em uma praia. Ainda que os mortos nao causem uma boa impressao quando fotografados (vide as fotografias de atentados e acidentes automobilisticos), a brincadeira de Fuller e suficiente para demonstrar que os filmes do cinema militar-industrial nao podem ser decentemente filmes de terror ja que, de uma maneira ou de outra, sua principal fun~ao e embelezar a morte. Alem disso, 0 desembarque dos aliados colocou mais uma vez 0 problema do realismo no testemunho filmado: de fato todos hoje sabem que nao foram espalhados metros de intestinos nas praias da Normandia e que, enquanto batalha, 0 proprio desembarque foi uma opera~ao tecnica notavel e dificil de ser realizada menos em razao das for~as alemas - quase inexistentes no local-, mas devido a condi~6es meteorologicas desastrosas e, mais tarde, em razao da complexidade da paisagem normanda. Por esses motivos, para fazer numero, os comandantes aliados lan~aram seus homens em opera~6es tao espetaculares quanto suicidas como a tomada da ponte de Hoc ... Antes que Zanuck utilizasse cinquenta atores, vinte mil figurantes e seis diretores assistentes para rodar, em 1962, seu documentario ficcional na ilha de Re ou na Espanha, em praias mais espetaculares que as daArromanche, imortalizando assim uma batalha que nao aconteceu efetivamente. 0 Mais Longo dos Vias obteve grande sucesso comercial.
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Na Segunda Guerra Mundial, ainda crian~a, me vi inicialmente diante da ilumina~ao dos bombardeios estrategicos e, mais tarde, presenciei uma serie de combates terrestres em companhia de urn ex-oficial de artilharia que havia sobrevivido ao primeiro conflito mundial. Ai pude me dar conta da facilidade com que uma pessoa experiente podia veneer racionalmente esta barreira subliminar e ser capaz de situar e materializar no espa~o as dimensoes atmosfericas de uma batalha, alem de antecipar as atitudes que as partes envolvidas deverao ado tar. Em suma: meu velho amigo me descreveu com alegria 0 roteiro da batalha que eu, ainda aprendiz, encarava como urn efeito especial da batalha, a me sma sensa~ao experimentada pelos jeyens recrutas do Exercito americano, que descreveram sua experiencia com perfei~ao ao utilizar a expressao "Nos vamos ao cinema!" quando ocupam postos avan~ados e perigosos.
*** Depois de 1945 esta facticidade cinematica da maquina de guerra iria mais uma vez se perpetuar em novos espetaculos. Quando 0 territorio frances foi libertado, assistiu-se ainaugura~ao de museus de guerra em todos os lugares, ate mesmo em 10cais onde ocotreram diversos desembarques em campos de batalha, em antigas fortalezas ou bunkers. Nas salas principais desses muse us geralmente sao expostas diversas reliquias do ultimo conflito militar-industrial: equipamentos fora de usa, veIhos uniformes, eondeeora~oes, fotografias amareladas ... tambern projetam-se cinejornais da epoea e exibem-se documentos militares. Logo depois, 0 sempre numeroso publico e convidado a entrar em uma grande sala sem janelas que se assemelha a urn planetario. Devido asua arquitetura, esta sala assemelha-se a urn simulador de voo (ou automobilistico), ou melhor, a urn simulador de guerra no qual 0 visitante tern a sensa~ao de se encontrar todo 0 tempo na situa~ao do espectador-sobrevivente do campo de batalha: 0 visitante se ve em meio a uma escuridao
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quase total quando, imitando 0 horizonte, ilumina-se urn contorno distante sob 0 vidro de urn grande para-brisa panoramico contra 0 qual precipitam-se series de acontecimentos representados por fulgura~oes, silhuetas esquematicas de avioes ou veiculos ou labaredas. Como se 0 documencirio fosse excessivamente "realista" para reproduzir a pressao de movimentos abstratos e surpreendentes da guerra moderna, recorre-se aqui a velha tecnica do diorama, que, ao valorizar 0 campo visual, da ao espectador a ilusao de ser projetado em uma imagem que praticamente nao mais possuiria limites. Se pensarmos nos mausoleus-cinemas ou nas salas atmosfericas dos anos trinta, percebe-se at urn novo desdobramento da realidade imediata, atraves da paramnesia cinematica da maquina de guerra que ocorre no momento exato em que come~am a multiplicar-se pelo mundo os "especiculos de som e luz" inventados nos anos trinta pelo neto do celebre ilusionista Houdin. Estes ambientes sao urn tipo de museu em pleno ar em que 0 passado e reintroduzido nos locais reais (templos, castelos, paisagens) atraves de projetores, equipamentos de som, brumas artificiais e, mais tarde, com 0 auxilio de grafismos realizados com raios laser. Podese lembrar ainda destas verdadeiras freedom lands americanas, onde podemos ver a velha Chicago desmoronar e sucumbir nas chamas em apenas vinte minutos ou participarmos da guerra civil conseguindo escapar facilmente no exato momento em que os tiros do inimigo estouram em nossa volta. Estando superexposto ao tempo, 0 suporte material e desqualificado em beneficio da luz artificial tornando-se urn prindpio crepuscular diante do qual 0 pr6prio publico ja nao tern certeza se as ruinas sao reais ou se as paisagens sao apenas simuladas, imagens calei:" dosc6picas de destrui~oes mais abrangentes. Os locais escolhidos para a instala~ao de museus da Segunda Guerra Mundial nos relembram tambem que os tumulosfortalezas, os torreoes e os bunkers sao, antes de mais nada, ca.maras escuras com suas janelas de formato eliptico, suas aberturas longilineas e frestas, concebidas para clarear 0 exterior da constru~ao deixando seu interior na penumbra. Utilizando-se
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de suas estreitas canhoneiras, 0 sentinela e, mais tarde, 0 artilheiro atentam - bern antes do fot6grafo ou do cineasta para a necessidade de urn enquadramento btisico. "Pode-se ver 0 inferno bem melhor atraves de uma fresta do que se pode avista-lo de uma s6 vez. com os dois olhos", escrevia Barbey d' Aurevelly, descrevendo urn tipo de piscar de olhos necessario tanto para 0 tiro quanto para 0 born funcionamento do olhar. 0 mesmo piscar que, nos anos trinta tinha 0 valor de uma mensagem de sedu~ao, aumenta a impressao de profundidade de campo visual em detrimento de sua extensao, como revelam as recentes experiencias sobre a percep~ao anartosc6pica: "Niio e suficiente saber que olhamos atraves de uma fenda, e igualmente necessano ver a fenda, e, em certas condi(:Oes, 0 observador pode ate mesmo inventa-la. De qualquer forma, fica demonstrado que a forma da abertura determina a identifica(:iio dos objetos percebidos e que a busca visual e um dos elementos constitutivos da percep(:iio anartosco:.. pica de uma figura em movimento... " Analisando a questao mais simplesmente, podemos dizer que a obscenidade do olhar militar dirigido ao lugar que 0 cerca e, mais tarde, a todo mundo - uma arte de dissimular ao olhar para poder ver - nao representa somente urn voyeunsmo de mau agouro, mas define a origem de uma ordena~ao duravel no fundo do caos da visao que prefigura as maquina~O es sin6ticas da arquitetura e, depois, da tela de cinema. Mira, angulo de visao, angulo morto, ponto cego, tempo de exposi~ao: a linha de mira pre nun cia a linha do horizonte da perspectiva utilizada nos quadros pelo pintor de cavalete, que tambem e engenheiro militar ou estrategista como Durer ou Da Vinci. A partir do seculo XIX, com 0 desenvolvimento de equipamentos de registro 6tico das imagens, que nada mais sao do que equipamentos de registro militar das imagens - fornecendo c6digos de interpretal,;ao destinados a determinar a identidade tridimensional de imagens vistas em duas dimensoes - , assistese nao somente a uma nova leitura do campo de batalha, mas a urn aumento consideravel da impotencia e da obscenidade do comandante militar, em crescente risco de ser observado e 10-
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go destruido. Para escapar ao reconhecimento aereo bidimensional realizado por baloes que alcan-,;am entre quatrocentos e quinhentos metros de altitude, as constru-,;oes militares e fortalezas vao se enterrar na terceira dimensao, lan-,;ando 0 adversario nos dellrios da interpreta-,;ao. Invisivel, afundada em grandes profundezas, a camara escura torna-se cega e surda. No seculo XIX, as rela-,;oes entre 0 frontmilitar e 0 pais dependem da logistica da percep-,;ao, das tecnicas de comunica-,;ao sub terraneas, aereas e eletricas. Ai ja se coloca 0 problema da terceira janela (4) ou de como iluminar seu ambiente sem ve-lo. A partir de entao a estrategia se dissimula nos efeitos especiais das maquinas de transmissao: "Instalados nos alnigos profundos, atravessados por corredores, os aparelhos de proje{:iio inventados pelo general Magin podem transmitir a um raio maior do que oitenta qui16metros. A luz emitida por uma potente lampada a petr6leo econcentrada sobre uma tente gra{:as a um espelho concavo. Esta tente emunida de um obturador mOvel que permite obecr-se um Jacho fixo, um piscar curto ou demorado que correspondem ao ponto e ao tra{:o do alfabeto Morse" (Ecole du Genie Fran-,;ais, 1887). Desde essa epoca, as paredes internas dos postos de comando dos principais gabinetes transformam-se em paredes de imagens, mapas milimetrados de teatros de opera-,;ao ainda proximos, cobertos pela anima-,;ao perpetua de urn reconhecimento abstrato que reproduz os menores movimentos das tropas ... Por volta de 1930, muitos paises, como a Gra-Bretanha, abandonarao os meios de defesa tradicionais e se dedicarao a pesquisa da percep-,;ao: e 0 inicio da cibernetica, do radar, 0 progresso da goniometria, da microfotografia e, como vimos, do radio e das telecomunica-,;oes. Durante a ultima guerra, as salas dos bunkers de coman do e dos gabinetes de guerra nao foram necessariamente instalados nas proximidades dos campos de batalha, mas em Berlim ou Londres. Comparaveis as vastas salas
(4) Bunker Archeologie, Paul Virilio, edil;oes CCI, Paris, 1975.
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de espetciculos, sao rebatizadas como "6peras de coman do " em urn conflito que se transformou em space opera. Privados da extensao espacial real, os centros de intera-,;ao reunem uma infinidade de informa-,;oes e mensagens transmitidas pelo radio e difundem-nas no sentido inverso do universo que Ihes e proprio, renovando a inercia do antigo Kammerspiel submetido a pressao do tempo. A sensa-,;ao de carga negativa e tao traumatizante e a representa-,;ao visual e sonora e tao tensa nesses habitats assepticos que, quando foi desencadeada a opera-,;ao "Seelowe" contra a Inglaterra, Hitler decide instalar efeitos de ressoniincia acustica em seu QG de Bruly-le Pesch para ter uma sensa-,;ao mais grandiosa, uma profundidade de campo artificial que combate a miniaturiza-,;ao do poder tecnico, esta redu-,;ao a nada do espa-,;o e do tempo incompativel com a expansao imaginana do Lebensraum nazista.
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CI NEMA
17. AdolfHiticren.saia.seu gestual de orador p(lhlico.
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18. Publicidade,jounl6J Signa~ 1941 .
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19. I'ublicidade ingleQ de abrig05 antiaereo!>, 1941 .
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20. Publici dade de um prodUlo de beleza que sel'\'e comoca.nmflagem para uma defesa costeira bricinica. 1940.
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2 1. HoiofOlC antiaereo alemao. Scgunda Guerra Mundial.
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22. Po pula(:io inglesa rcfugiada e m urn tune! do metrO londrino.
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24 . Fotografia noturna do bombaroeio de Essen. em 4 de abol de 1943. ~te.s efeilOS especiais. ch~mados de WIt de pmta pelos pilotos aliados,.sao urn dos resultado5 da Illtensa defesa antiaerea alema.
23. camera instalada na -lorrinha~ dianteira de urn bombardeiro Lancaster (1943) .
25. Depois de urn bombardeio nOlUrno sobre a Alemanh" em 1943 os pilotos bririnic05 da Path-Finder-Force observam 0 re~ultado d~ sua missiio.
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26. Quadro de missOeS do servi'0 de reconhecime nto aereo americano.
28. 0 plloto embarca em seu bimOIOl·.
29. (I) Ensai4?S de sincronizatfuJ da \'elocidade da camera e a velocid....
d~ do aviao. E fundamental c~rtificar-se. antes da decolagem. de que 0
27. Troca de cameras no nari]. de urn bimotor americano F5-Moulll Fann. Inglaterra. 19 dejulho de 1 94~.
d lsparo dOl anna e 0 filme dll ClnemClrnlhadorn est:io devid:uneme incronizados. Depois da de<:olllgelll. 0 inter"aio e ntre os tiros delermina os inlen'aios entre os disparos da carner-d. deixando 0 piloto livre para conduzir 0 aviao. Mount Fallll. (I I) resuhado do filme-l.cste .
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30. Plano de vOo e de fOlografias de lllll spilfiIY.
S l. Oficiais americanos examinam os filmes produzidos em mi55Qes de reconhecimento aereo exu-aidosde llma Multiprinter Williamson , nos laborat6rios de Mount Faml , Inglalerra. l ' dejulho de 1943.
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:'S~. Sistema de cameras - rrimetrogon - (duas cameras obliquas e OUUa vertical) instalado a bordo de Ulll 8.17 da For.;a Aerea americana.
32. Filme de cobertura aerea da Noruega. Lenles de 142 graus, 1943.
34. Ci negrafista lilllpao vidro de prot~odaobjeli\'ll de lima camera obli'qua 'Trimel ~ a bordo de urn B. 17.
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A IMPOSTURA 00 IMEOIATISMO • 1 I 9
35.0 Hughes XF ll . Prot6l.ipo de um aviio de reconhecime nto projetado e conSlmido por Howard l'lughes e m 1944. Dois anos mais tarde Hughes iria destmi-Io durante UI11 teste em Berverly Hills. 37.lnstalacaode umacamera em um "Libernlor~. GuadaJcanal, 1943.
36. Labor-uario fotogrifico de campanha do exercito americano. Challanaoga. 1940.
~. Pequeno 1aborat6rio da Marinha americano instalado em Rendava, nas ilhas SaJonlllo. A camuflagem indica a proximidadc do /rrmL Junhode 1943.
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39. Laborat6rio de G uadalcanal. Oficial entrega fihnes militares para serem d eslruidos.
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40. Oficial americano interpreta as fotogrnfias com 0 resuhado d o bombardeio d e 24 de agosto d e 1944 sabre Weimar-Buchenwald. As conslnl{Oes em destaque sao considerndas como seriamen Ie dani ficadas. 0 campo de COn Centnl{ao. aci ma. ad ireita, nao foi ati ngido.
CAPiTuLo CINCO
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Quando, depois de 1916, os Estados Unidos finalmente decidem participar da guerra, todos que trabalhavam em Hollywood foram tornados por urn verdadeiro deHrio patri6tico, relembraJesse Lasky(l). Passa-se facilmente da fiq:ao cinematografica afic(ao da guerra em que Cecil B. de Mille e 0 capitao improvisado e 0 contingente do estudio forma a "Lasky Home Guard". Todas as quintas-feiras a noite, a grande famllia do cinema desfilava peIo Hollywood Boulevar armada com fuzis cenograficos e usando uniformes retirados da Se(aO de figurinos do estudio. A senhora De Mille e Mary Pickford transformavam-se em beIas enfermeiras e percorriam as ruas da cidade. se espantando em nao encontrar feridos. Na Wall Street, Fairbanks e Chaplin discursavam para imensas multidoes que nem mesmo os ouvia, pois na epoca s6 se podia dispor de urn simples megafone para falar em publico. A ausencia do som nao incomodava uma multidao habituada tanto ao cinema mudo quanto ao mutismo dos chefes de Estado. Subjugada pela mimic a dos atores, a multidao se separava de seus d6lares em beneficio do Esfor(o de Guerra como jamais havia feito por qualquer politicd 2 ) •
(1) HoUywood, Kevin Brownlow. (2) Ibid.
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Quando Cecil B. de Mille rodou seu filme biblico Os Dez. Mandamentos, dizia-se que ele proprio havia se tornado por Deus, te~ do a tarefa de conduzir 0 povo judeu. A ditadura que ele ex~r,:a so bre as pessoas ao seu redor e principalmente sobre a .multIda.? anonima de figurantes que ele gostava de colocar em nsco de~ da assemelha-se apossessao. Todos esses .fatore~ le~~ De MIlle a adotar uma atitude divinatoria, urn tIpo de mfaliblhdade carismatica originada essencialmente no conhecimento previo de roteiros que porvezes nem mesmo existiam. P:rra :oda uma g~ra ~o de cineastas taumaturgos, 0 trabalho de dir~<=ao, mesmo 1~ provisado, tinha assumido literalmente urn carater de reveia(:ao, a<=ao de urn Deus que fazia com que os h.omens.cor:he~essem verdades que seriam incapazes de descobnr po~ SI prop~.?s. ._ . Neste mesmo momento, come<=a a surgu na Umao SOVletIca e na Europa uma nova ra<=a de comandantes militar~s, lideres revolucionarios, guias hist6ricos e outros que exerClam s~ bre as massas 0 mesmo efeito carismatico que a gera<=ao de ~1neastas e atores taumaturgos. Esses homens eram os anunCladores da era transpolitica: a partir de entao 0 poder real p~ssa va a dividir-se entre a logistica das imagens e sons e os gabmetes de guerra e propaganda. Como tem.ia A~el Ferry em 19 ~ 4, o poder parlamentar havia desaparecldo. A propaganda e a minha melhor armaJ, dizia Mussolini. Observemos como Rosavita descrevia 0 Duce: "Vai Cisar. .. J Tua tarefa esta terminada: de Cisar surge Benito Mussolini, forte e potente como a HistOria jamais mostrou' sua vontade tern algo de sobrenatural, de divino, de milagr~so, como 0 Cristo entre os homen~ ... ~ (trecho de Reencarna(:ao de Cesar: 0 Predestinado, 1936). Tao mesper~da. q~an to esta caracteriza<=ao e a resposta de Hitler que, na l~tlmlda de, dizia que seu grande modelo historico nao era BIsmarck, como se podia supor, mas Moises! Talvez nao tenhamos compreendido suficientemente que esses ditadores taumaturgosja nao governavam, mas comportavam-se como diretores. Em seu discurso final durante 0 julgamento de Nuremberg, Albert Speer iria declarar:
CINEMA FERN ANORA. 1 27
"A ditadura de Hitler foi a primeira ditadura de um Estado industrial, uma ditadura que, para dominar seu proprio povo, serviu-se perfeitamente de todos os meios tecnicos... dito isto, nao se pode responsabilizarunicamente a personalidade de Hitlerpelos acontedmentos criminosos destes anos. A desmedida de seus crimes poderia se explicar pelo fato de que, para comete-los, Hitler soube servir-se primeiro dos meios ofereddos pela tecnica". o cinema foi urn destes meios.
*** "Attavessando Munique de carro, no outono de 1939, Hitler descohriu que seu dnema favorito, 0 Fern Andra, havia trocado de nome, 0 que 0 deixou extremamente furioso ". (') Ao observar as multidoes que se espremiam para celebrar as missas negras do cinema, Hitler declara em 1938: "As massas predsam de ilusiio, nao somente no teatro ou no dnema, mas tambbn nas coisas sCrias da vida". 0 "Lebensraum" nazista separa menos a realiza<=ao dos gran des projetos politicos de Bismarck _ que formam 0 pano de fun do do discurso de Hitler _ do que uma extensao das dimensOes de uma tela de cinema a todo 0 continente europeu, formando urn face a face de todas as superficies para urn povo "a quem 0 cotidiano e 0 ordinario freqilentemente causam horror, um povo fasdnado pela tenta(:iio do inabitual..." (Leni Riefenstahl). Hitler profana nada mais do que 0 realismo cotidiano, e a propria natureza de seus crimes permanece incompreensivel se nos esquecermos de seu extraordinano conhecimento recnico nos campos da dire~ao teatral, da trucagem, do mecanismo de al~poes e cenas giratorias e sobretudo das diferentes possibilidades de ilumina<=ao e manejo de refletores. "Talvez.Hitlerniio fosseo homem deEstadoque viamos nele, observa seu ministro Albert Speer, mas ele era e continua a ser um psic6logo amwjarnais vi igual. Mesmo enquanto comandante supremo.las tropas, (3) Testemunho de Rudolf Hess, p. 401,}ournal despandau, de Albert Speer.
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ele imaginava antes 0 efeito psicoLOgico do que afmra operacional de uma anna ... " (deve-se a ele, entre outras conquistas tecnicas, a instala~ao de sirenes nos Stukas e 0 aperfei~oamento dos misseis A4... ). Segundo 0 escritor Jay Doblin, Hitler era tambem 0 maior criador de logotipos de sua epoca: 0 desenho da smistica, por exemplo, desencadeia fortes conota~oes afetivas e nao se confunde com qualquer outro simbolo, caracterizando-se por uma simplicidade que continua a impressionar os espiritos, como ainda provam os numerosos grafites(4). 0 proprio Hitler, segundo a descri~ao de pessoas que the eram proximas, emanava urn certo poder de sugestao hipnotica: "sabia-se que alguma coisa era falsa, mas, a partir do momenta em que era dita por ele, tornava-se verdadeira", constata 0 dire tor Veit Harlan, que lembra 0 interesse do Fuhrer pelo faquirismo, suas rela~oes com Hanussen ou a conversa com EmilJannings a respeito de sua propria seguran~a: "Vqa, senhorjannings, quando me encontro diante da multidiio e discurso para ela, minha respirariio se assemelha a inalarii,o. Nesta fase, meu poder de defesa esta em plena atividade... jamais atirariio contra mim, tudo acontecera de acordo cOm meu desqo na medida em que farei juncionar meu poder de dissuasiio". Harlan relata que, em seguida, pos-se a observar Hitler com uma curiosidade ilimitada, refletindo sobre as novas possibilidades que a respira~ao da aos atores, constatando tambem que 0 poder hipnotico do Fuhrer se exercia exatamente em sua vida real, nao passava pelas imagens e tampouco se devia as suas inumeras apari~oes nos documentarios cinematograficos. Para realizar seu projeto politico, Hitler precisou, pois, do auxilio de cineastas e homens de espetaculo, mas sobretudo de homens capazes de transformar 0 povo ale mao em uma IIiassa de visionarios comuns" obedecendo a uma lei que eles nem mesmo co(4) Rudolf Arnheim ressalta que 0 desenho abstrato da suastica apoiava-se fortemente em urn solido contexto explicativo. Ele relembra que, durante a visita de Hitler a Mussolini, Roma estava literalmente coberta por bandeiras nazistas e que, na ocasiao, uma jovem italiana observou aterrorizada: "Acidade foi invadida por aranhas pretas!" "I, 'l",',',I' H,II
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nheciam, mas que podiam recitar em sonko" Uoseph Goebbels, 1931). Assim como, noNew Deal, Roosevelt lan~a mao do radio e do cinema para decretar a "guerra do mercado domestico" e reativar assim a Il}aquina de produ~ao industrial americana, Hitler coloca em' cena os milhoes de dese~pregados alemaes para relan~ar a guerra como superprodw;ao. Alguns farao a guerra para ganha-Ia, Il)as 0 povo alemao e seus lideres ja se movern em urn universo "mule nada mais tem sentido, nem 0 hem nem o ma~ neni 0 tempo OU 0 esparo e mule 0 que os outros komens chamam de ixito nao pode seniir como criterio" U. Goebbels). Em 1934; Hitler pede a Leni Reifensthal para rodar 0 Triunfo da Vontade (Triumph des Willens). 0 Fuhrer coloca a disposi~ao dajovem,~inea.sta urn or~amento ilimitado, uma equipe de trezentos tecnicose nove cinegrafistas (instalados em elevadores, torrinhas e plataforIIias construidas especialmente para a ocasiao). Todo este apai:ato e mobilizado para registrar 0 congresso do Partido Nacional-Socialista, que por uma semana se reuniria em Nuremberg com 0 objetivo de recolocar para 0 mundo 0 mito nazista atraves de urn filme de uma amplitude sem precedentes. Amos Vogel observa a este respeito: "0 aspecto mais espantoso deste gigantesco empreendimento esta na cria¢o de um universo artificial que parece absolutamente rea~ tendo como resultado a produriio do primeiro e mais importante exemplo jamais realiuulo de um documentario autentico relatando um acontecimento completamente encenado. Fica-se absolutamente conJuso em admitir que este enorme congresso com seu um milhiio de figurantes (numero superior a qualquer superprodu¢o) foi organizado tendo em vista a realiz.ariio de urn filme ... " Em seu Hinter den Kulisse'n des Reichs-Parteitag-Films, Leni Riefenstahl escreve: "Os preparativos para 0 congresso foram realiuulos simultaneamente com a produ¢o do filme, ou seja, 0 evento foi organi%ado de maneira espetacular, niio somente do ponto de vista de uma reuniao popular, mas de modo a fOTnecer material para um filme de propaganda ... tudo foi determinado em jun¢o da camera... " . Por outro lado, Hitler encarrega 0 arquiteto Albert Speer de construir os cenanos "reais" de sua superprodu~ao poll tica. Ini-
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cialmente nomeado inspetor-geral de arquitetura, Speer iria se tomar 0 grande projetista da guerra total depois da morte de Fritz Todt, em 1942. Estas duas funl,;oes sao no entanto menos contraditorias do que pode parecer, conforme 0 proprio Speer escla:ece. e~ 1938 em sua Teoria sobre 0 Valor das Ruinas. Nesta obra, e atnbUlda a arquitetura uma funl,;ao cinematica analoga a do comandante militar, ou seja, a capacidade de determinar, em uma construl,;ao, 0 que deve permanecer naquilo que se move. Erguer uma construl,;ao e, no minimo, prever a mane ira atraves da qual ela sera destruida para obter urn tipo de ruinas que depois de milenios "inspirariio tantos pensamentos heroicos co~~ os modews antigos". Neste mesmo ano, Hitler e Speer, sem dUVlda impacientes para ver 0 futuro cenario da tragedia na qual trabaIhavam, ordenam a demolil,;ao do centro de Berlim que, antes de transformar-se em urn campo de batalhas, tornou-se pre maturamente urn campo de ruinas. As obras arquitetonicas de Speer, inspiradas nos projetos ciclopicos de Boulee ou nas Termas de Caracalla, nao deveriam durar mais tempo do que os cenarios de cinema como os utilizados em Intoierancia, que foram considerados "muito caros para serem demolidos". Speer logo deixaria de construir, contentando-se em projetar sua arquitetura: quando Hitler pede-lhe para projetar a perspectiva gigantesca do grande campo de reunioes de Zeppelinfield em Nuremberg, ele substitui as colunas de pedra de seus esbol,;os iniciais pelas colunas de luz de 150 holofotes de DCA apontados para 0 ceu, dando ao publico a impressao de estar em urn teatro hipostilo de 6 mil metros de altura, destinado a se dissipar no espal,;o com os primeiros raios da aurora.
*** Quando finalmente a Europa comel,;a a ser iluminada pelos "Hashes" da guerra reHlmpago (Blitzkrieg), continua-se a rodar nos estudios alemaes os filmes sentimentais pelos quais 0 publi-
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co se apaixonou antes mesmo da chegada dos nazistas ao poder, ainda que Goebbels insistisse em produzir urn cinema realista de fortes tra(:os populares. Multiplicam-se enta~ as comedias musicais, os "heimatfilme" (filmes que exaltavam a vida no campo e urn homem alemao "simples e vigoroso") e os "espetaculos de som e luzes", provando a existencia de urn cinema de retaguarda e que 0 cinema-vivo dos imortais da Cidade e 0 ''front de al,;o" das tropas e carros de assalto de Guderian ou Rommel, 0 isobaro guerreiro que renova os ritos de funda(:iio da Fortaleza Europa, a Festung Europa. o poder envelheceu: 0 exercito alemao passou a contar com urn cinegrafista em cada uma de suas unidades. Ao con trario de Griffith, em 1914, estes operadores talentosos e corajosos serao bem-sucedidos em sua tarefa e cada regimen to possuira sua PK (Companhia de Propaganda) realizando uma al,;ao conjunta entre cinema-exercito-propaganda - ou seja, imagem-taticaroteiro - que tern como objetivo reorganizar e tratar instantaneamente a informal,;ao. "Muitos se perguntam com espanto como epossivel que um fato ocorrido a centenas de quiwmetros no cora(:iio de um pais inimigo possa, desde 0 dia seguinte, tornar-se tema de reportagens e de retatos difundidos pew radio", questiona-se em 1941 urn jomalista da Berliner Illustriert Zeitung... Realizam-se assim filmes baseados exclusivamente nos documentanos jornalisticos absolutamente autenticos como Feuertaufe (0 Batismo deFogo), um resumoda invasao da Polonia pelos nazistas destinado a aterrorizar os espectadores estrangeiros e forl,;a-Ios a reconhecer a superioridade do exercito alemao. "Imagens desprovidas de tensiio dramatica imediata mas que, quando montadas simplificadamente com associa(:oes mais ou menos disparatadas e sublinhadas por uma narra(:iio, devem projetar sobre 0 espectador seu ritmo vibrante de grande acontecimento histOrico" (Signal). o cinema da PK retoma 0 trabalho de Leni Riefenstahl e de seus filmes em que, segundo suas proprias palavras, tudo e verdadeiro, mas se desenrola em urn tempo intensivo proximo do tempo real da Blitz, da autentica velocidade do assalto tecnico. Em 1943, no encerramento da Conferencia de Casablanca,
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Roosevelt - que havia se tornado um homem debilitado pela doen~a que logo iria maci-lo - declara inadvertidamente 0 inicio da guerra total(5) . A partir de entao a frota aerea aliada colocava em pnitica uma nova estrategia: 0 bombardeio por etapas, que tem como objetivo nao mais 0 aniquilamento de objetivos preciSOS, mas a destrui~ao de regioes inteiras como na opera~ao Gomorra, em que uma tempestade de fogo destruiu Hamburgo e 0 Ruhr foi bombardeado sendo invadido por uma inunda~ao apocaliptica... desta vez a massa de figurantes-sobreviventes alemaes e lan~ada em um pan-cinema, um cinema tao totalizante quanta a propria guerra. Curiosamente, as popula~oes reivindicam esta guerra como um especiculo cada vez mais grandioso, capaz ainda mais uma vez de rivalizar-se como as superprodu~oes hollywoodianas e seus gran des cataclismas biblicos. Nestes especiculos, as popula~oes se mostram dispostas a trabalhar ate dezesseis horas por dia e na~ medir esfor~os se assim 0 Fuhrer ordenar. o dia lOde fevereiro de 1943 e uma data historica e marca 0 pronunciamento de um discurso oficialmente designado como guerra totaL Speer e Goebbels, 0 arquiteto das ruinas e 0 ministro da Propaganda, estreitamente associados, decidiram vencer as resistencias dos dignacirios do partido que, assim como Hitler, se opunham a radicaliza~ao da situa~ao. Por intermedio dos participantes da reuniao realizada no Palacio de Esportes de Berlim, Goebbels pergunta a totalidade da sociedade alema: " Os ingleses pretendem que 0 pavo alemao preJira a capitulariio Ii guerra tota~' eu lhes pergunto, voces querem a guerra total? Voces ainda a querem mais total, mais radical do que podemos imagina-la Mje?" Depois da aprova~ao tragica de uma entusiasmada assem-
(5) Bodyg;uard ofLies, edir;ao francesa La Guem Secrete, de Anthony Cave Brown, edir;oes Watelet, Paris, 1981. Divulgar;ao de arquivos que pennaneceram secretos ate 0 momento em que, em 1975, "quase todas as barreiras em Washington foram rompidas e as infonnar;oes foram liberadas confusamente e conduzindo ao erro como na anaIise criptognifica da Segunda Guerra Mundial".
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bleia o. C~~~?ho es~ livre e 0 "Gauletiei' conclui: "Que a tempestade se znzcze. A parur de entao a guerra nao mais se estendia exclusivamente as dimensoes espaciais, mas ao conjunto da realidade, sem limite e sem fim. Durante 0 ternvel inverno de 1942-1943,0 Sexto Exercito d~ :aulu~ ~ncontra-se cercado e destruido em Stalingrado, vitona declSlva que marca 0 inicio da grande contra-ofensiva sovietica... No final de 1943, Berlim e atingida pelos bombardeiros aliados e desde entao muitos dos dirigentes alemaes se convencem de que a derrota e inevicivel. Com as vitorias imediatas tornando-se cada vez mais raras ~i~er de~ide oferecer ao seu publico uma retrospectiva das vi~ tonas obudas desde 0 inicio do conflito. 0 diretor Veit Har1 (~. an e encarregad 0 de rodar na Noruega um filme historico sobre os violentos combates que, dois ou tres anos antes, envolveram os alemaes e os aliados em Narvik eo general Dietl e convocado a desempenhar seu proprio papel na reconstitui~ao da invasao e ocupa~ao da cidade. Veit Harlan ocupa entao o fjord de Narvik, on de ainda se encontravam as carca~as de t~rpedei~os alemaes e de navios ingleses afundados. A propria Cldade nao passava de um campo de ruinas onde os soldados do Reich sobreviviam precariamente. Os ingleses sao imediatamente informados sobre 0 projeto de Hitler e em Londres sabe-se que 0 Fuhrer decidiu por a disposi~ao de Veit Harlan diversos navios de guerra e centenas de avioes, que deveriam l~n~ar milhoes de para-quedistas. Narvik, que para os ingleses unha ~epresentado uma ternvel derrota e perda de prestigio, tornana-se gra~as ao cinema um alvo dos mais interessantes: por que nao participar de um "remake" no qual desta vez 0 desfecho seria vitorioso? Os ingleses logo anunciaram no radio que, se Veit Harlan ~esejasse fil~ar a batalha, suas cameras poderiam registrar Imagens parucularmente sangrentas gra~as ao patrocinio do (6) As lembranr;as oniricas de Veit Harlan constituem-se em urn testemunho insubstitufvel sobre 0 cinema segundo Glebbels.
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"Home Fleet". Por seu lado, os soldados alemaes manifestaram pouco entusiasmo em rela~ao ao projeto apesar de sua devo~ao a Hitler: "Morrer pela patria lhes parecia mais logico do que morrer pelo cinema!", constata Veit Harlan; os almirantes Raeder e Donitz intervieram junto a Hitler, assim como Goering. Seus apelos foram bem-sucedidos e 0 projeto, proposto com tanto entusiasmo pelo proprio Fuhrer, caiu no esquecimento". Goebbels, por sua vez, mostrou-se profundamente desapontado com a decisao, pois ele proprio havia fornecido centenas de documentos fascinantes para serem utilizados no filme; no caso de os ingleses intervirem, Goebbels ja havia ate mesmo previsto 0 envio ao local de diversas equipes dos cinejornais. Pouco depois, Hitler ordena as filmagens de Knlberg, que sao iniciadas no dia 28 de outubro de 1943. Ainda que 0 exercito alemao esteja recuando em todas as frentes, 0 Fuhrer exige que suas tropas sejam colocadas ainda mais uma vez adisposi~ao dos cineastas: trata-se de uma ordem militar. Ainda que a precariedade seja total, cerca de 6 mil cavalos e 200 mil homens sao engajados para as cenas de batalhas em que sao utilizadas toneladas de sal para simular a neve que deveria cobrir 0 cais do porto. Os quarteiroes da cidade de Kolberg sao reproduzidos nas proximidades de Berlim para serem bombardeados pelos "canhOes de Napoleao" no momento em que a cidade e realmente atingida por bombardeios. Seis cameras, estando uma instalada em urn barco e outra em urn balao, filmam simultaneamente a tomada da cidade. Trinta pirotecnicos provocam inumeras explosoes e chega-se a reproduzir ate mesmo uma inunda~ao, desviando urn rio atraves de canais construidos especialmente para este fim enquanto os explosivos construidos sob a agua sao detonados atraves de urn sistema de telecomando eletrico. Quando, em janeiro de 1945,0 filme esta pronto para ser exibido, as salas de cinema de Berlim nao passam de ruinas. No dia 30 de abril, Hitler deixa seu inferno das imagens suicidando-se em sua camara escura no bunker da Chancelaria de Berlim.
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Testemunhas dizem que, em seus ultimos dias, Hitler havia retomado os projetos de arquiteturae, indiferente a tudo 0 que ocorria, elaborava pIanos para uma "nova Berlim" que ressurgiria das ruinas como a parede dos irmaos Lumiere. Quanto aos visionarios cotidianos do Terceiro Reich, lhes era destinado urn severo tratamento de desnazificayao com 0 objetivo de desperta-Ios. Os sobreviventes afirmariam nao estar compreendendo o que lhes acontecia e outros, como os Faurrison, poderiamjurar que nada aconteceu. Como se pode cons tatar, nao se trata aqui de filmografia, mas de osmose entre guerra e cinema industriais e, sob este aspecto, os filmes de guerra mais serios sao por vezes os mais burlescos, pois as proprias tecnicas militares no comeyo do seculo tinham uma forte caracteristica bufa: em 1929, existe urn toque de Lumiere no aviao de Fritz Opel que no aeroporto de Frankfurt decola impulsion ado por foguetes a polvora ou nos trenos movidos a reatores inventados por Max Valier. Tambem nao existe nenhuma diferenp entre as novelas de fic~ao cientifica escritas por Werner von Braun e 0 roteiro de Uma Mulher na Lua, escrito por Thea von Harbou e Fritz Lang. Quanto ao pobre professor secundarista Hermann Oberth, poderia ser descrito como urn heroi romanesco por seus trabalhos sobre foguetes, que so suscitam desprezo e incompreensao. Movido unicamente pela esperan~a de ver suas experiencias reais financiadas pela produtora UFA, Oberth colabora na concep~ao tecnica do filme de Lang que, para por fim ao mercantilismo e a reticencia do produtor, financiou pessoalmente as experiencias de Oberth. o filme seria lan~ado no dia 30 de setembro de 1929, sem con tar com 0 apoio publicitario inicialmente previsto: 0 lan~a mento de urn foguete verdadeiro na praia de Horst, na Pomerania, que deveria atingir uma altura de 40 quilometros ... Em 1932 a tecnica dos reatores torna-se urn dos principais segredos militares do Terceiro Reich e 0 filme de Lang e saudado pelas autoridades porque, a partir de entao, sua histana passa a ser verossimil. No dia 7 de julho de 1943, Werner von Braun e Dornberger apresen-
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tam a Hider 0 fHme do lan~amento real do foguete A4. 0 Fuhrer recebe 0 resultado mostrando-se amargo: "Por que duvidei do sucesso de seus trabalhos? Se tivessemos estefoguete em 1939, niio precisariamos terfeito a guerra... Diante de engenho semelhante, deve-se reconhecer que a Europa e 0 mundo senam pequenos demais para uma guerra". Saberia-se pouco depois que a vitoria dos aliados na Segunda Guerra Mundial deveu-se em parte a sua capacidade de compreender 0 Lebensraum nazista e ao ataque da essencia do poder de Hider: sua infalibilidade carismatica entra em declinio quando os aliados se colocam na vanguarda das tecnicas cinematicas. o enipna tecnoLOgico substitui agora 0 enigma do roteiro e tende a transformar-se no proprio conceito de guerra real: e exemplar neste sentido 0 episodio do Enigma e de sua resposta tecnica Ultra, batalha anglo-alema de mtiquinas de decodificafiio substituindo o corpo-a-corpo da dupla homicida-suicida em uma modifica~ao no tipo das armas empregadas(7). 0 ponto decisivo de uma batalha foi realmente ultrapassado pela amplitude dos meios que nela podem ser empregados. A partir do momento em que 0 olhar de Napoleao (ou de Griffith ... ) criava urn campo de batalha, era possivel que fossem obsorvidos simultaneamente previsao, decisao, restitui~ao de organiza~ao e controle com uma rapidez incomparavel, sem negligenciar os minimos detalhes. Mas desde que, em 1812, a guerra napoleonica eclode na imensidao russa e mobiliza meio milhao de homens somente no lado frances, este tipo de organiza~ao visual fracassa logisticamente.Ja ia longe 0 tempo em que Frederico II e alguns outros podiam ver em "escala natural" a forma~ao e a evolu~ao de uma ordem de batalha tao regular e contando com figuras tao geo-
(7) 0 presidente Truman, em urn memorando datado de 28 de agosto de ,1945, determina que nao seja divulgado 0 grau de desenvolvimento tecnol6gico, atual ou nao, dos metodos, dos exitos e dos resultados obtidos por cada unidade especializada na cripto-analise. Os aliados tinham urn conjunto de bons motivos para agir desta forma, principalmente devido ao temor de que, em uma eventual guerra contra os russos, seria necessano reativar os Ultra e os LeS.
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metricas quanto as projetadas no papel. Os exercitos eram entao compostos por numerosos corpos moveis, que deverao abordar-se durante a a~ao nao livres de dificuldades, mas seguindo ordens dadas de fora de seu proprio campo visual. Para obter a veracidade objetiva de uma batalha, era necessario que 0 olho-camera (de Napoleao, de Griffith ... ) nao fosse mais aquele do general ou do dire tor teatral, mas urn monitor capaz de registrar, analisar e reinserir no proprio cenano uma quantidade de fatos e efeitos infinitamente mais importantes do que 0 olho e 0 cerebro humanos podem perceber em urn momento e urn local dados. A previsao moderna requisitada pelas novas dimensOes geopoliticas dos campos de batalha exigia uma verdadeira meteorologia de guerra. Ou seja, ja nascia nesta epoca a ideia-video de que 0 olhar do voyeu~militar e prejudicado por sua lentidao ao percorrer seu campo de a~ao, exageradamente distendido pela revolu~ao dinamica (representada pelos armamentos e os transportes de massa). Ainda mais uma vez, 0 vetor tecnico seria 0 unico meio a com bater, atraves de novas combina~oes tecnolOgicas, esta tendencia que ele pr6prio fez nascer. 0 efeito de proximidade, desaparecido nas pr6teses de viagem acelerada (ria atividade-velocidade, como dizia Napoleao) implicava a cria~ao de uma aparincia inteiramente simulada, a restitui~ao em tres dimensoes da totalidade da mensagem-protese, desta vez holografica, transmitida ao espectador pela inercia do comandante militar, multiplicando seu olhar no tempo e no espa~o atraves de jlashes permanentes aqui e ali, ontern e hoje, ate quando nao estivermos mais ptesentes... Esta miniaturiza~ao cronologica,ja evidente com 0 jlash-back e com 0 feedback, e 0 resultado imediato de uma tecnologia militar em que, desde sua origem, os acontecimentos se desenrolam sempre em tempos teOricos. Como ocorreria mais tarde com 0 cinema, os dados recebidos nao sao mais organizados segundo urn prindpio de tempo e de espa~o, mas obedecendo sua distor~ao relativa e contingente: 0 poder de resposta repressiva dependera do poder de antecipa~ao. o que Abel Gance compreendeu perfeitamente em 1914.
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42. A ddade de J e rico. Ilustf"il{:io da blblia he braica (Faroi Bibk- 1366! 1382.J en iSalem, Rabi 5;.1\0mo n, Sas.wn Library).
4 1. Mo numelllO conSlrUido no desen o de Wh ite Sands lIa regiao de O scu ra Peak, o nde OCorreu a explosao da primeir.t bomba alomica em 16deju lhode 1945.
43.. Folografia ac!~ea da cidade de H iroshima. allles c dc pois do pfirne n-o bombarde ro nuclear da Hisloria. e m 6 de agosto de 1945.
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44. 0 pr~idente americano Johmon assiste pela lelevisao, Ita Ca5a Branca, ao \'00 do foguele SarunlO I, no dia 29 de janeiro de 1964. Como escreveu Andre Malraux: MCisorpodia dialogarrom NapokOo, mas NapoktW nao trnI nada a diurMpmUknuJohnson'".
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45. A saJa do comando do DoutorFanUistirono filme de Stanley Kubril.
CAPiTULO SEIS
"QUEM TEM PRIORIDADE NO TEMPO TEM PRIORIDADE NO DIREITO" adagio romano
Os exitos e reveses dos guerreiros transfigurados nao cessam jamais. Seus espectros vern assombrar as telas ou, ainda mais freqiientemente, reencarnam em uma maquina de guerra, geralmente em urn navio, como 0 Tirpitz, que, depois de naufragar ao bater em urn fjord em 1943, teve sua metempsicose tecnica celebrada pelo cinema. 0 almirante americano William Nimitz, comandante-em-chefe das fon;as aeronavais aliadas no Pacifico de 1942 a 1945, deu seu nome a urn porta-avioes nuclear e a urn filme lan~ado recentemente. Nesta fic~ao em que o tema e a guerra do tempo, a frota japonesa encontra-se ainda a caminho do ataque de Pearl Harbor e e detectada pelo moderno Nimitz. Vma perturba~ao no Vortex espa~o-temporal conduz 0 porta-avioes americano a meio seculo atras e seu comandante se defronta com urn dilema: impedir 0 ataque aeronaval abase de Pearl Harbor utilizando toda sua potencia de fog~ ou deixar que hist6ria se fa~a. o mais significativo nesta trama e finalmente a nova crise decis6ria nascida da coexistencia pouco paciijca de tecnologias distintas: de onde devem partir as ordens? Do comando de for~ do Pacifico - que em 1941 nao conhecia nenhuma unidade com 0 nome de Nimitz,ja que 0 almirante encontrava-se na ativa e assumiria 0 comando de opera~oes no ano seguinte ou do coman do de defesa dos Estados Vnidos e portanto do Departamento de Estado em 1980? Reencontramos aqui, como
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no fato autentico da filmagem de Narvik, a intenr;:ao de estender a potencia militar aos dois lados de urn hipotetico centro do tempo, aquem de todos os limites presentes, passados ou futuros, utilizando a relatividade como manobra de guerra. No filme 0 porta-avioes nuclear Nimitz funciona como urn ~osto de obse~ var;:ao dos tempos hist6ricos, assim como os melOS de comumcar;:ao e a identificar;:ao do combate moderno sao utilizados da me sma forma que os meios de prevenr;:ao e dissuasao da hist6ria. Tornando perceptivel para 0 espectador a durar;:ao diferencial presente em cada objeto tecnico, a nova midia catastr6fic,a provoca urn impressionante eJeito de relevo temporal em que a maquina de guerra fornece 0 tempo material de guerra de ~ma propaganda militar-industrial da qual somos os protagomstas involuntarios. Inventores do Fleet in being, que lhes permitiu reinar tanto sobre 0 oceano quanto sobre os mais vastos continentes, os brici.nicos destinaram, no periodo entre guerras, altos orr;:amentos para a pesquisa no campo da comu~icar;:ao e ~a deteq:ao, sendo particularmente sensiveis a este tipO .de eAfelto espe~tro projetivo. Leslie Howard, 0 grande ator mg~es .que delxou Hollywood para colocar-se a servir;:o de seu paiS, tinha rodado urn pouco antes, em 1930, urn ~lme pr:monit6rio: Outw.ard Bound. Nesta ficr;:ao, urn determmado numero de passagelros se encontra a bordo de urn aviaode carreira sem saber exatamente qual 0 seu destino. Ao fim de certo tempo, torna-se claro que ja estiio mortos e que 0 veiculo tec.nico os cond~ s~m~n te para urn outro mundo. Treze anos malS ta~de, nO.?l~ 1- de JUnho de 1943, 0 DC-3 Ibisa no qual Leslie Howard naFva tambern desapareceu com seus passageiros sem deixar pistas, no que os alemaes chamam de "SpurZose Ve:sc~windu~i'. . A prop6sito, Leslie Howard nao haVla sldo mUlto conVlncente ao tentar obter em outubro de 1939 0 apoio de Whitehall para rodar filmes de propaganda na Grii-Bretanha. "Par que nao Jazer este fUme nos Estados Unidos? Aqui nao temos nada.:." 0 comando ingles propoe que Howard assuma urn posto mtermediario semelhante ao ocupado por Noel Coward, enviado a Pa-
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ris para auxiliar 0 governo frances na decodificar;:ao da propaganda nazista. Howard recusa a proposta e submete a Whitehall a sinopse do filme que desejava realizar: "Trata-se de um documenttirio sobre 0 inicio das hostilidades baseado no 'Livro Branco' britiinico. Quero realizar um documenttirio utilizando cenas de alguns cinejornais, mas tambhn quero desempenhar grandes papeis. Existe um tema que quero desenvolver: 0 espirito termina sempre por triunJar sobre a Jorra brutal... " Questionado so bre qual personagem preferiria representar, Howard responde: "para comerar, Hitler, mas tambem desejo interpretar 'sir' Neville Henderson e a ultima tentativa para manter a paz contra a ttitica Ribbentrap... Observe 0 senhor que ninguhn no exterior compraria nosso 'Livro Branco' para ler documentos oficiais, mas se acotovelariam diante dos cinemas para assistir a urn documentario oficial..." As tentativas de Howard fracasSalll, mas resultam na criar;:ao de Pimpernel Smith, 0 professor distraido que conseguiu enganar os nazistas, personagem que encarnava as ideias de Howard de urn modo ligeiro e que nao 0 agradava particularmente(l). 0 ator roda" ria em seguida diversos filmes de propaganda, especialmente The First oJtheFew, baseadona vida de RJ. Mitchel, 0 criador do aviao Spitfire, e contando com a colaborar;:ao dos melhores pilotos militares da Inglaterra: Peter Townsend, Bader e Cunningham. Em 1943, Lubitsch apresenta ao publico americano To Be or Not to Be. A inda que predominan temente inspirado nas desventuras de Leslie Howard, 0 filme suscita indignar;:ao nos Estados U nidos. Era 0 ano em que Roosevelt havia declarado guerra total, e na epoca preferia-se ver 0 Superman triunfando sobre Hitler a alguns obscuros atores shakespearianos acima de tudo la-
(1) Le TragiqueDestin de Leslie Howard, Ian CaIvin,edip)es France-Empire. Howani viria a modificar 0 tom da propaganda britiinica, pois agora ja niio se tratava de rir cia guerra como em 1914... Lembremos aqui do Soldado Carlitos e de outras satiras de Langdon. 0 filme de Chaplin, em sua versao montada antes do armisticio, tinha 1.500 metros e ridicularizava indistintamente Wilson Poincare, Hindemburg ou 0 Kaiser.
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menciveis. Em 1954, a acolhida na Fran~a e igualmente desfavonivel... Esta "fantasia desrespeitosa" era no entanto urn filme de guerra serio e ate mesmo inquietante, pois desvendava a filosofia dos Servi~os Especiais Aliados. Cercados por uma censura que deveria durar mais de trin ta anos, os segredos da Defesa britanica se encontravam, como na obra de Lubitsch, no prOprio teatro shakespeariano e nao nos Estados-Maiores. Por exemplo, 0 plano da celebre batalha de EI-Alamein, em que Montgomery ven~eu Rommel (1942), e tirado da literatura por urn cineasta, Geoffrey Barkas, e urn ilusionista de "music-half', Maskeline. Os dois homens reproduzem a a~ao de Malcolm no bosque Birnham: em uma planicie de areia dura, praticamente desprovida de pontos de referencia marcantes, 0 exercito britanico se move tao lentamente que 0 mais perspicaz dos inimigos ou as melhores filmagens nao podem deduzir a progressao real deste retardamento citico. Os ingleses logo teriam uma outra ideia genial: depois da grallde atividade cronofotogcifica de reconhecimento aereo realizada durante a Primeira Guerra Mundial, a informa~ao passa a depender mais de fatores de aprecia~ao e de interpre~ao adistancia e, neste dominio, os britanicos conhecem bern a insaciabilidade do servi~o de informa~oes alemao, reconstituido desde os anos trinta por Theo Rowehl, urn amigo intimo do celebre almirante Canans, com quem havia servido na marinha imperial. Ja que os avioes de reconhecimento e bombardeios da Luftwaffe sao mistos tecnicos - pois trata-se ao mesmo tempo de maquinas de destrui~ao e de cinema °encarregadas de filmar nao somente 0 campo de batalha mas 0 proprio territorio britanico - , os aliados, que decerta forma desempenham 0 papel de produtares de filmes de guerra, decidem na~ mais se opor a filmagem de cinejornais encenados de pn lpaganda hitlerista, ate mesmo participando de sua rea1iza~ao. Nao se recorre mais aclassica camuflagem, mas exatamente a seu oposto, a superexposi~ao, oferecendo as cameras inimigas cenanos, materiais, movimentos de multidao e todas as trucagens que, no espa~o real, sao praticamente ilimitadas.
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No momento crucial dos gigantescos preparativos para 0 desembarque naNormandia, 0 "East Anglia" assemelha-se a urn imenso set de filmagem: a paisagem e coberta por constru~oes ficticias fabricadas com papelao e borracha como os cenarios de Hollywood. Os criadores, como 0 professor de arquitetura Basil Spence, sao cercados por uma multidao de artistas, poetas, tecnicos de teatro e de Cinema na realiza{:ao de seu trabalho de desinforma{:ao visual... Celebres estudios como os de Sheeperton, nas proximidades de Londres, se consagrariam pela fabrica~ao de veiculos blindados falsos ou navios de desembarque artificiais. "Confeccionados com tela e madeira jlutuante, os navios praticamente surgiam da fuma(:a, sendo possivel ver sua pintura secando e bujoes de gas jlutuando em seu redor. .. As 'embarca(:oes' possuiam ate mesmo uma triPUlafao defigurantes farmada par soldados refarmadOS ... ",!21 A trilha sonora e igualmente estudada, sendo composta por verdadeiros roteiros de breves dialogos a serem escutados pelos operadores de radio alemaes do outro lado do Canal da Mancha, signos esporadicos como os emitidos normalmente por tropas em a{:ao. Para conferir verossimilhan{:a a estas replicas, personalidades autenticas como 0 Rei da Inglaterra ou os os generais Eisenhower ou Montgomery sao convidados a visitar estes navios e canteiros de obras factfveis. Em outros momentos cruciais e a vez de sosias de Churchil e de outros chefes militares embarcarem em avioes para realizar viagens ficticias. Como se pode ver, as rela{:oes entre atores e chefes de Estado e as cenas de substitui{:ao grotesca de To & ar Not to & desvendam bern 0 tipo, ardis e estratagemas de guerra imaginados pelos aliados para mistificar Hitler e 0 Estado-Maior alemao, enganando-os sobre 0 verdadeiro desenrolar das opera{:oes executadas contra 0 Terceiro Reich, estes meios especiais destinados a deixar 0 inimigo tao perplexo quanta abatido.
(2) La guerre secrete.
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Depois do conflito, os servi~os de escuta britanicos - em desde 1939 - continuariam a cumprir sua fun~ao de decodifica~ao da propaganda internacional e de seus roteiros, ocupando-se desta vez dos paises do Leste. Os tecnicos ingleses passariam sem dificuldade da concep~ao dos meios especiais militaresaos efeitos especiaiscinematognificos e os setsdos antigos estudios Sheeperton continuarao a abrigar as maquetes e as maquinas de fic~ao cientifica: "durante 0 venio e 0 outono de 1978, quatro dos grandes auditOrios dos estudios Sheeperton - um dos quais e considerado 0 maior do mundo - abrigaram as filmagens de Alien. A 20th Century Fox preocupou-se em garantir que somente pessQas autorizadas pudessem assistir.is dezesseis semanas da filmagem principal... deste modo estaria guardado 0 maior segredo da histOria do cinema... ".(3) Roger Christian, diretor de arte do filme, recorda-se: "Ridley nos mostrou 0 Doutor Fantistico e niio cansou de dizer: eisto que eu quero, vejam, niio eum B-52 flutuando no espa{:o, mas sua aparencia militar. .. Eu sabia 0 que ele queria dizer, pois ja havia feito algo semelhante para Star Wars". Como muitos dos veiculos e naves do cinema antes dele, 0 Nostromo de Alien utilizara em sua constru~ao diversos elementos reais provenientes de coura!;ados, tanques e bombardeiros da Segunda Guerra Mundial, "0 painel de bordo, por exemplo, era feito de fragmentos de avioes e tinha quase um milhiio de manivelas... " Os veiculos de fic~ao no cinema tornam-se a materia plastica, luminosa e sonora de urn tipo de mixagem tecnologica generalizada em que se procura, como nos engenhos militares reais, os efeitos de sintese entre diversos elementos mais ou menos anacronicos. "A critica cinematografica niio tem mais sentido, me disse recentemente Hans Zischler, urn dos atores de Wim Wenders, e a realidade que devemos tentar analisar de uma maneira filmica". Enecessano constatar que, com os novos engenhos de guerra, a verossimilhan{:a niio emais assegurada, as tecnologias militares encontram-se excessivamente evoluidas, nos as perdemos de vista.
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(3) Histoire d'Alien, artigo de Paul Scanlon e Michael Gross. A versao francesa foi publicada na revista "Metal Hurlant" n043 bis. 1979.
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o segredo dos corpos tecnicos nos renova a atra~ao por paises distantes, 0 desejo de proximidade dos engenhos repete a impostura da imediatez. Design sonhado, perfil bern acabado, 0 corpo do aparelho persegue a desregulagem de suas aparencias, cada urn parece estar cercado por uma esperan~a extremamente intensa em que 0 aerodinamismo perde subitamente seu valor de ciencia da circula{:iio do arpara tornar-se urn panteismologistico da circula~ao do tempo.
*** Durante os anos quarenta, Orson Welles afirmava: "para mim, tudo 0 que echamado de 'mise en scene' eum grande blefe. A montagem e o unico momento em que se pode exercer um controle absoluto sobre 0 filme'. Admirador de Abel Gance, Francis Ford Coppola tambem deve compartilhar sua Eaixao pelas tecnicas utilizadas pelos estrategistas militares para eliminar os acasos. Depois da yoga dos efeitos eletronicos nos anos setenta, que permitiram reduzir consideravelmente as contingencias objetivas naturais dos cenarios e equipamentos, cineastas como Coppola praticamente eliminam as contingencias da filmagem gra~as ao registro previo, em suporte eletronico, das imagens e dos sons. A partir de entao as filmagens nao'mais se apoiam sobre a rigorosa distribui~ao no tempo e no espa~o como no antigo Kammerspiel. Como no radio, os atores sao integrados gra!;as a urn ensaio nos estudios, tendo sua imagem traficada e reinserida de acordo com a vontade do diretor, que trabalha "em casa" com os monitores de video, "obtendo assim, afirma Coppola, 0 produto mais sofisticado possivel com 0 menor or{:amento possivel." A evolu~ao de Coppola depois da semidecep~ao de Apocalypse now e interessante de ser observada. 0 sentimental 0 Jundo do cora{:iio (One from the heart) e urn filme de guerra na mesma medida de Apocalypse now, pois e bern evidente que esta nova arte cinematica - em que atores e cenarios desaparecem segundo a vontade do dire tor - e uma arte do exterminio.
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Coppola utiliza diretamente equipamentos militares como 0 The Star (sistema de informa~ao da marinha americana desenvolvido pela Xerox). A rela~ao custo/eficacia a que se refere Coppola encontra-se presente nos sistemas modern os de armas, sendo comparavel a solu~ao adotada pelos militares: miniaturiza~ao e automa~ao, sendo que esta ultima tern a propriedade de "transfnir a possibilidade de erro do estagio da afOO para 0 estagio da concepfiio" (Andrew Atratton). Desta maneira, 0 ultimo poder do dire tor, assim como 0 do militar, seria menos imaginar do que prever, sim!tlar e memorizar as simula~oes. Ainda ai trata-se da perda do espa~o material do comandante militar da guerra total em seu posto de comando, a perda do tempo real, "este obstaculo expresso POT toda intromissao da monotonia do dia-a-dia, do cotidiano". Assim como estas novas cabines opacas - que impedem que os pilotos militares vejam 0 ambiente porque "ver pode ser perigoso" - , a guerra e as tecnologias suprimiram progressivamente os efeitos teatrais e, picturais no tratamento da imagem da batalha. A guerra total e mais tarde a dissuasao tendem, a partir de enta~, a fazer desaparecer 0 efeito cenogrcifico em urn efeito tecnico ambiente e permanente, privado de substancia. Com os novos mitos, 0 mundo desaparece na guerra e a guerra enquanto fenomeno desaparece aos olhos do mundo. Os membros da tripula~ao do porta-avioes Nimitz de clararam recentemente a urn jornalista: "Nosso trabalho etotalmente irreal, de vez em quando e necessario que a fic~ao se una a realidade para nos dar a prova irrefutavel e incontestavel de nossa presen~aqui ... "
*** Com a guerra total, passa-se do segredo militar (verdade diferenciada do campo de batalha) a super-exposi~ao da transmissao ao vivo, pois com os bombardeios estrategicos tudo passa a situar-se na proximidade urbana e os espectadores deixam
de ser urn sobrevivente qualquer do conflito e tornam-se uma massa de espectadores sobreviventes. Com a dissuasao nuclear, nao se pode falar propriamente em guerras estrangeiras, como vinte anos atras 0 fazia 0 prefeito da Filadelfia: agora as fronteiras passam pelo interior das cidades. Depois de Berlim, Harlem, Belfast, Beirute, Varsovia, Lyon, a rua e a estrada tambem transformam-se em sets de filmagem de urn cinema perman ente sob 0 olhar das cameras das for~as militares ou dos grandes reporteres-turistas da guerra civil mundial. 0 Ocidente, que ja havia passado das ilusoes poHticas da cidade-teatro (Atenas, Roma, Veneza) as ilusoes da cidade-cinema (Holywood, Cinecitta, Nuremberg), insere-se a partir de enta~ no pan-cinema transpolitico da era nuclear, que produz uma viscio cinematica global do mundo. As cadeias de televisao americanas compreenderam bern a nova situa~ao, transmitindo programa~ao jornalistica 24 horas por dia, divulgando uma informa~ao sem comentcirios ou roteiro porque, de fato, nao se trata de uma imagem informativa, mas da materia primordial da visOO, uma materia primeira que fosse 0 mais confiavel possivel. A comercializa-. ~ao extraordinaria de tecnicas audiovisuais atende a mesma demanda: 0 video e 0 walkman sao como a realidade e a aparencia disponiveis em um kit, aparelhos projetados nao para olhar as imagens ou escutar a musica, mas para acrescentar uma trilha visual e sonora ao visto e ouvido, permitindo que cada urn encene sua propria realidade. Ja nos anos cinqiienta e sessenta, quando se perguntava as pessoas por que gostavam de se espremer em concertos ou outras gran des reunioes como Woodstock, a resposta mais comum definia os concertos como lugares em que era possivel nOO ouvir os proprios pensamentos ou a preferencia era ainda justificada pelo fato de que estas reuni6es eram organizadas por pessoas equivocas e nao era mais possivel distinguir 0 publico dos artistas... Enecessario relembrar que, na maioria das vezes, este tipo de manifesta~ao era organizada nos Estados Unidos e na Europa por militares de alto escalao; cicloramas formados em grandes estadios onde se espremem centenas de milhares
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de atore,s.espectadores e onde as cim.eras e os kunl nao iluminam somente as estrelas, mas a multidao e seu paroxismo, psicologia dupla em que osque comparecem para ver se mostram e se exibem, precedendo assim outras at-6es espetaculares dos aDOS setenta, como 0 assassinato deJohn Lennon . Agora e 0 diretor (ou 0 politico) que nao maisse distingue e desaparece no efeito tecnico, como Nicholas Ray em Lightning uwr water, de Wim \Venders. ~ Nosso grupo tira sua energia do aws ... n, afirmavam ainda onlem os Ro lling Stones; do terrorisrno comum aos assassinatos ao vivo, 0 pan-cinerna vivo desenvolve hoje sob nossos o lhos 0 caos que em outro tempo se dissimulava com perfeit-ao na cria¢o ordenada da guerra. Mesmo que subitamente !lOSSOS atos escapem as referencias habituais, nao se tratam de atos gnlluitos, mas de atos cinematogr.ificos. Com a bomba de neutrons as populat-Oes perderam se u valor ultimo de refens nucleares. Abandonados pelos comandantes militares. os cidadtiosntiostio mais o..f imorJais da cidak. 0 cinema perdeu seu "alor iniciatico. nao e mais a missa negra da autoctonia guerreira propondo 0 Walhala cinematico aos filhos na comunhao de vivos e mortos. A dispersao comercial de imagens e sons destruiu esta extraordimiria propriedade do antigo cinema, esta formaliza.;:ao social obtida atraves da visao que tinha a propriedade de fazer com que sO existis.sc um unico espectador em uma sala onde estivessem mil pes.soas.
CAPiTULO SETE
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UM TRAVELLING DE OITENTA ANOS
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Esta nanativa poderia ter se iniciado em 1854, com a tomada de Sebastopol durall te a guerra da Crimeia, ou ainda sete anos mais tarde, tom a Guerra de Secessao, conflitos em que foi utilizada uma profusao (Ic tecnicas modernas como as armas automaticas, a fotografia, 0 trem blindado, 0 balao dirigivel... Mas optei por inicia-\a em 1904, primeiro ann da "guerra da luz". Urn ann depoi~ do voo dos irmaos Wright no ~tty Hawk, se iluminaria, pela primeira vez na historia dos conflitos, urn holofote. Instalado no alto de Port Arthur, este primeiro "projetor de guerra" reunia todas as tochas e todos os incendios das guerras do passado na incandescencia dirigida de seu facho. Seu raio de luz transpassava nao somente a escuridao, as trevas do conflito russo-japones, mas tambem 0 futuro, um"futuro proximo em que a opera~ao de detec~ao, a "maquina de espreita" logo iria desenvolver-se ao ritmo da maquina de guerraate que as duas se confundissem nas tecnicas de aquisi~ao de objetivos das "Blitzkrieg'. N a cinemetralhadora do aviao ca~a e sobretudo no clarao de Hiroshima - clarao nuclear cegante que iria fotografar litera1ment~ a sombra das pessoas e das coisas, transformaI)do toda superficie em superficie de inscri~ao - ja se encontrava 0 filme de guerra que prenunciava a arma de luz dirigida, 0 raio coerentedo laser... Muitos acontecimentos concorreram para fazer deste ano
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de 1904 uma data importante: eo ana da morte de Etienne:Jules Marey, elo essencial entre a arma automaticae ajotografia instantiinea. Como vimos, Marey foi 0 inventor do fuzil cronofotognifico, que nao s6 precedeu a camera dos irmaos Lumiere como tambem descendia das armas com tambor e cano m6vel, como 0 rev6lver Colt e a metralhadora Gatling, uma arma automatica inventada no inicio da guerra de Secessao e que viria a encerrar sua carreira militar neste mesmo ana de 1904, na tomada de Port Arthur. A metralhadora voltaria a ativa em sua versao eletrificada durante a guerra do Vietnam. Ainda em 1904,0 assistente de Marey, Georges Demeny, entao membro da comissao de elaborar;:ao do manual de infantaria, publica L 'Education du Marcheur, onde e demonstrada, com 0 apoio de urn filme, a utilidade da cronofotografia na dosagem dos esforr;:os do combatente (marcha forr;:ada, manejo de armas ... ). Demenyvira a desempenhar urn importante papel na formar;:ao fisica do exercito frances antes de 1914. Enfim, em 18 de maio de 1904, Christian Hiilsmeyer testa em Colonia seu "telemobilosc6pio", aparelho que informa a urn observador afastado a presenr;:a de objetos metaiicos, ou seja, 0 ancestral da radio-telemetria, a "radiolocalizar;:ao" de sir Watson Watt, 0 RADAR A partir do momenta em que nos lembramos de que foi durante a Grande Guerra, trabalhando no aperfeir;:oamento da telemetria de artilharia, que 0 professor de 6ptica Henri Chretien descobriu as bases da tecnica que, 36 anos mais tarde, viria a chamar-se "Cinemascope", pode-se dimensionar melhor a coerencia fatal que sempre se estabelece entre as funr;:6es do olho e da arma. Se 0 progresso da telemetria panoramica resultaria na projer;:ao de filmes sobre uma grande tela, 0 progresso dos radio-telemetros deveria alcanr;:ar 0 aperfeir;:oamento da imagem expresso na imagem radar, imagem eletronica que prefiguraria 0 video e a 6tica eletronica. De fato, desde as altas fortificar;:6es que dominaram 0 passado - como a inovar;:ao arquitetonica da "torre·de observar;:ao" _ passando pela utilizar;:ao do balao, da aviar;:ao e da restituiriio jotograficado campo de batalhaem 1914, ate 0 "SateliteAvanr;:a-
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do de Alerta" - anunciado pelo presidente Reagan - nao deixamos de assistir a extensao do campo de percepr;:ao dos conflitos. A visao ocular e os olhares diretos vao progressivamente cedendo lugar aos procedimentos 6tico e 6tico-eletronico e as "miras telesc6picas" mais avanr;:adas. Pode-se imaginar a importclncia estrategica da 6tica durante 0 primeiro conflito mundial observando que a fabricar;:ao francesa de vidros 6ticos (lunetas de regulagem de tiro, perisc6pio, telemetro, goniometro, objetivas fotograficas e cinematograficas etc.) passara de quarenta para 140 toneladas por ano, representando apenas a metade da produr;:ao total dos aliados. Se toda guerra e, antes de mais nada, urn jogo de esconde-esconde com 0 adversario, e necessario reconhecer que este principio elementar pode ser largamente verificado pelos combatentes de 1914, que vivenciaram 0 absurdo da criar;:ao de trincheiras onde milh6es de homens se enterraram durante quase quatro anos. Com a aparir;:ao das armas ditas "de saturar;:ao", como 0 fuzil automatico, a metralhadora, 0 canhao de tiro rapido, a guerra se afina com a consagrada expressao "0 fogo decide". Nao e mais a disposir;:ao das tropas, a rigorosa geometria de seus movimentos no territ6rio que decidem os combates, mas somente 0 "poder de fogo", a ballstica das armas automaticas. A partir de entao, todo esforr;:o foi concentrado em dissimular as tropas em vez de expOlas, em dispersa-Ias no lugar de concentra-Ias. Dai se originam as ondas sucessivas de sacrificados soldados de infantaria, que marcham, saltam e rastejam para terminarem enterrados, vivos ou mortos, a salvo das armas e dos olhares do adversmo. Se a Primeira Guerra Mundial e 0 primeiro conflito mediatizado da hist6ria (I), e porque as armas automaticas suplantam a multidao de armas individuais. 0 corpo-a-corpo sistematico do enfrentamento fisico e abandonado em beneficio do massacrea distclncia em que 0 adversario e invisivel ou quase, exceriio jeita aos claroes dos tiros que marc am sua presenr;:a. Dai esta impe-
(1) A batalha naval ja prefigurava este tipo de pratica ha algum tempo.
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riosa necessidade de urn olhar otico e do aumento telescopico, a importcincia do filme de guerra e da restitui~ao fotognifica do campo de batalha, mas tambem e sobretudo a descoberta do papel militar dominante da avia~ao de observ~ao na condu~ao das opera~oes. Se, nos antigos conflitos, 0 essencial da estrategia consistia em escolher e delimitar 0 teatro de opera~oes e 0 campo de bataIha, deduzindo as perspectivas da melhor maneira possivel, no inicio da Grande Guerra trata-se, antes de mais nada principalmente devido a excessiva importcincia conferida aos novos materiais - , de compreender a tendencia do movimento adverscirio, delimitar os objetivos e finalmente definir a imagem do enfrentamento para as tropas, cegadas nao somente pelo grande alcance dos equipamentos e PelO repentino dos tiros indiretos, mas tambem pelo continuo desordenamento do ambiente. Dai esta multiplicidade de periscopios utilizados em trincheiras, telescopios e aparelhos de detec~ao acustica. Mesmo que os soldados da Grande Guerra tenham sido atores de combates sangrentos, eles tambem foram os primeiros espectadores de urn espeticulo pirotecnico do qual ja se reconhecia 0 aspectomagico e grandioso (vide ErnestJiinger, Apollinaire ou Marinetti... ). Dez anos depois da tomada de Port Arthur, inaugura-se uma guerra total que nao mais seria interrompida com o dia ou com a noite. Por que se interromperia a guerra,ja que a presen~a do inimigo somente se faz notar pela luminosidade de seus tiros e pelo fogo das trincheiras? A cegueira dos homens enterrados em suas estreitas trincheiras durante 0 dia nao e substancialmente diferente da cegueira provocada pela escuridiio. Depois do advento da" guerra relampagoem 1940, sera suficiente desenvolver a guerra de ilurnina~ao atraves da ad~ das primeiras balas tra~antes, dos foguetes luminosos - artificios que permitem a ilumin~ao do no man sland- do desvendamento de objetivos noturnos e finalmente atraves do desenvolvimento correspondente da porencia dos holofotes (em ate nove quilometros) e da defesa antiaerea tal como ela se es~a desde 1914. 0 velho ditado, "a cavala-
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ria ilumina, a infantaria conquista", tornou-se realmente obsoleto. Com a fixidez do front, a guerra de posi~ao, a avia~ao de reconhecimento transforma-se em orgao de percep~ao do Alto Comando, a protese privilegiada do estrategista caseiro do Estado-maior. t a avia~ao que ilumina a guerra e torna os locais visiveis em urn meio que continuamente confunde as armas e os explosivos de alta potencia; mas estes olhos serao, antes de mais nada, os 01hos das objetivas das primeiras cameras de bordo. A realidade da paisagem de guerra torna-se cinematica, pois a partir de enta~ tudo muda, tudo se transforma, as referencias desaparecem umas apos as outras, tornando inuteis os mapas do Estado-Maior e os antigos relevos topognificos. Somente 0 obturador da objetiva pode conservar 0 filme dos acontecimentos, a forma momentanea da linha de £rente, as seqiiencias de sua progressiva desintegra~ao. Novas localiza~oes de combate, impactos de tiros de longo alcance, grau de destrui~ao das posi~oes: somente a fotografia instantanea pode compensar a poiencia das armas de uma destrui~ao igualmente instantanea. o que para Marey representava 0 cuidado de isolar as fases sucessivas de urn movimento ou de urn gesto, torna-se aqui 0 cuidado de interpretar da melhor maneira possivel as seqiiencias de uma viola~o, de uma subita dissolu~ao da paisagem que nao e captada em toda sua amplitude pelas seqiiencias fotognificas. Ainda ai existe a conjun~ao entre a potencia da maquina de guerra moderna, 0 aviao, e as novas performances da maquina de observa~ao, como a fotografia aerea e 0 fotograma cinematognifico. Mesmo se 0 filme militar e feito para ser visto em uma proje~ao que dissimula a analise das fases do movimento em questao - deixando assim sua utilidade pratica as series fotograficas - , a situa~ao e inversa a desencadeada pelos trabalhos de urn Muybridge ou de urn Marey: nao mais se trata de observar urn cavalo ou urn homem, ou seja, urn curpo inteiropara estudar as deforma~Oes inerentes ao seu deslocamento, e necessario agura tentar reconstituir as linhas de ruptura das trincheiras, a injinita fragmenta¢.o de uma paisagem minada que eanimada par incessantes virtualidades; dai 0 papel- a partir de enta~ essencial- da restitui-
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c;:ao fotografica e dos filmes militares, prime ira forma conhecida de macrocinematografia que nao e aplicada ao infinitamente pequeno - como em Painleve - mas ao infinitamente grande ... Deste modo, como indica 0 almanaque Hachette de 1916, as tecnicas de representac;:ao demonstram sua imensa importincia para a guerra: "grafos as fotograjios e aos filmes, pode-se reconstituir 0 front de maneira extremamente clara, desde Belfort ate Yser. " Por urn lado, 0 segredo da vitoria esta inscrito nos ares com a balistica dos projeteis e a hiperbaHstica da aeronautica e, por outro, 0 segredo e vencido pela velocidade, pois somente a velocidade de exposifiio dos filmes e capaz de registrar 0 segredo, segredo militar que cada urn dos protagonistas tentara preservar atraves da dissimulac;:ao, da camuflagem de objetivos cada vez maiores, como as baterias de artilharia, estradas de ferro, estac;:oes de triagem, e, finalmente, cidades inteiras grac;:as ainovac;:ao do blecaute, resposta tardia a "guerra de luz" de 1904. Se a arma e a armadura se desenvolveram paralelamente durante a Historia, agora e a visibilidade e a invisibilidade que se desenvolvem simultaneamente, originando por fim estas armas invisiveis que tornam visivel, como 0 radar, 0 sonar e a camera da alta definic;:ao dos satelites de observac;:ao, herdeiras das antigas camaras escuras da Grande Guerra. 0 problema dos comandantes de hoje nao e 0 mesmo de Wellington, que afirmava ter passado toda sua vida "adivinhando 0 que se encontrava do outro lado da colina", pois se trata agora de evitar a confusao, 0 amalgama diante das figuras de uma representac;:ao que abrange as mais vastas regioes do fronte os detalhes mais infimos, que sempre sao suscetiveis de influenciar 0 resultado dos enfrentamentos. 0 problema nao reside exclusivamente nas mascaras, nas telas ocultando a visao ou no olhar distante - apesar da camuflagem nascente e do blecaute - pois se trata exatamente da ubiquidade, ou seja, da dificuldade de gerar a simultaneidade de informa¢es em um ammente global e instavel onde a imagem (fotografia/ cinema) e a forma mais concentrada e mais instavel de informac;:ao. Os registros cinematograficos e fotograficos obtidos durante 0 primeiro conflito mundial prefiguram a memoria estatisti-
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ca dos computadores tanto pela gestiio dos dados fornecidos pelo reconhecimento aereo quanto pela administrac;:ao cada vez mais rigorosa da ac;:ao e da reac;:ao. o "pregador Bofor" da Segunda Guerra Mundial nao seria 0 ancestral do "calculador estrategico" do imediato pos-guerra? Neste equipamento de defesa antiaerea destinado a fazer coincidir a trajetoria ballstica e a do aviao visado em urn ponto e urn momenta dados - em urn aperfeic;:oamento do telemetro - 0 resultado final era obtido atraves da superposic;:ao esteroscopica em uma tela da imagem e suas trajetorias em tempo real. Atraves de processos similares, 0 campo de batalha das guerras napole6nicas transformou-se em uma caixa-preta. 0 teatro de operac;:oes do passado - em que se agitavam cadenciadamente os atores de urn massacre e on de 0 corpo-a-corpo se efetuava a olho nu e utilizando armas brancas - foi substituido no inicio deste seculo por uma camara escura em que 0 face a face dos adversarios teve de ceder lugar ainterface, uma interface instantinea em que a noc;:ao de te"1po real deveria finalmen te suplantar as distincias, a configurac;:ao territorial dos combates. A ordenac;:ao estrategica do espac;:o, com a construc;:ao da fortaleza permanente com seus fossos e muralhas - telas de dissimulac;:ao propicias aocultac;:ao do segredo definidas por urn general do seculo passado como "um tipo de caixa de surpresas" - e substituida por uma ordenac;:ao do tempo, pela surpresa tecnica do surgimento das imagens e dos signos em telas de controIe, tetas de simulafao de uma guerra que cada vez'mais se assemelha a urn cinema permanente, a uma televisao em funcionamento ininterrupto ... Mas seria necessario aguardar 0 segundo conflito mundial para que 0 cinema mudD da radiotelegrafia se transformasse finalmente em cinema sonoro devido aos progressos da radiotelefonia ... Em seu livro Tempestades de afo, de 1920, ErnstJunger, combatente alemao que lutou na linha de frente, traduz esta desrealizac;:ao propria da guerra industrial: "Nesta guerra em que 0 fogo ocorre antes no espa(:o do que entre os homens, eu me sentia inteiramente estrangeiro a mim mesmo, como se estivesse me observando atra-
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ves de binoculos... pude ouvir os projeteis assoviandq em meus ouvidos como se passassem por um objeto inanimado". Junger constataria mais adiante: "a paisagem era de uma transparencia cristalina... " Esta sensat;ao de uma transparencia absoluta que afeta 0 objeto, 0 sujeito e 0 ambiente, em que cada urn dos antagonistas se sentiam observados simultaneamente por sentinelas invislveis e observadores distantes, ilustra a desregulagem da percepriioem urn ambiente onde as tecnologias de guerra iriam alterar 0 terreno, a materia e principalmente a dimensiio espat;otemporal da visao atraves da imbricat;ao e do acoplamento da maquina de observat;ao a maquina de guerra moderna, a tal ponto que Junger viria a constatar por si so: "a faculdade de pensar logicamente e 0 sentido da gravidade parecem ter sido paralisados". Esta sensat;ao sera renovada ainda uma vez com 0 equipamento de radar em que 0 operador tinha a exata sensat;ao de estar voando, de ter uma visao aerea de seus objetivos. Para eliminar este elemento humano, seria inventado no final da Segunda Guerra Mundial 0 metodo do "True Motion Radar' em que a tela do monitor indica 0 "movimento verdadeiro" e 0 operador renuncia deliberadamente a imagem otica... tudo se reproduzira mais uma vez com 0 triunfo da imagem eletronica sobre a gravidade universal (Nam June Paik). Esta falta de gravidade, esta suspensao das sensat;oes comuns indicam a confusao que comet;a a instalar-se entre a "realidade ocular" e sua representat;ao mediatica, uma representat;ao instantanea em que a intensidade das armas automaticas e as novas propriedades dos equipamentos fotograficos alltomaticos associam-se para projetar uma ultima imagem do mundo, de urn mundo em vias de desmaterializat;ao e logo de completa desintegrat;ao, urn mundo em que 0 cinematografo dos irmaos Lumiere tern mais credibilidade do que 0 sentinela melancolico que nao mais acredita em seus pr6prios olhos. Urn episodio particularmente significativo confirmaria estas observat;oes e, curiosamente, se repetiria 26 anos mais tarde, em 1940, com uma variante esclarecedora sobre a evolut;ao do campo de batalha. No inicio da Grande Guerra, os comandos franceses e alemaes nao conferiam muita imporcincia aos
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resultados da observat;ao aerea, privilegiando 0 trabalho de observat;ao realizado pelas patrulhas. Durante a batalha do Marne, 0 capicio Bellenger, comandante da aviat;ao na area fortificada ao redor de Paris, cede ainfluencia de Gallieni e multiplica os voos de reconhecimento sobre as imediat;oes da capital. Surge enta~ urn conflito de interpretariio entre este general especializado em guerras coloniais que evita lant;ar mao de novas tecnicas e os responsaveis pelo front: vista do solo, a diret;ao da ofensiva alema e tao incerta quanto os relatorios dos informantes sao contraditorios, mas ambos sao reconhecidos pelo Estado-maior. Vistos do cCu, 0 eixo e a tendencia geral de movimento se fazem claros, mas 0 Alto Comando frances recusa-se a admiti-Io, preferindo naturalmente a visao horizontal e dentro da perspectiva avisao vertical e panoramica propria do sobrevoo. Finalmente 0 comandante do VI Exercito ira imp or seu ponto de vista sobre 0 movimento inimigo nao mais em Paris, mas no Marne. 0 resultado desta atitude e conhecido, assim como as consequencias desta primeira batalha do Marne, que alguns quiseram atribuir adensa rede ferroviaria da regiao parisiense, rede radioconcentrica que permite uma boa regulagem do tnifego. Mas hoje parece por demais judicioso observar que este resultado positivo dependeu igualmente de uma regulagem do ponto de vista, de uma definit;ao da imagem da batalha em que a perspectiva da cavalaria subitamente cedeu lugar a visao do olhar perpendicular proprio da aviat;ao de observat;ao ... A partir de enta~, como Winston Churchil viria confirmar, a tendencia prevalece soln'e a sucessiio dos episodios. A situat;ao e comparavel aque distinguia a invent;ao do "cinematografo" da criat;ao da "cronofotografia": a partir de enta~ os enfrentamentos arm ados so se tornavam perceptiveis em projet;ao, somente 0 filme de guerra permitia a compreensao da dinamica interna, da linha geral, deixando as patrulhas terrestres a funt;ao de controle tatico. 0 sistema de exposit;ao acelerada das imagens e das sequencias aplica-se a partir de enta~ aos desfiles e movimentos militares sobre urn terreno de exerdcio que e nada mais do que uma tela onde se inscreve a projet;ao da guerra do
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movimento. Sendo 0 unico meio que permite registrar a verossimilhan~a do ataque, 0 cinerp.a associa-se aos conflitos assim como a mira telesc6pica e acoplada aos fuzis e a cinemetralhadora a guerra aerea.
*** Com a Blitzkrieg, esta inversao de perspectiva torna-se manifesta e 0 epis6dio da batalha do Marne se repetini. Durante a primavera de 1940, precisamente a partir do dia 10 de maio, os acontecimentos se sucedem com tamanha rapidez que somente a avia~ao pode chegar a dimensionar a catastrofe. No dia 12 de maio, em seu relat6rio - preservado pelos arquivos da for~a aerea - , 0 tenente Chery, que pertence ao mesmo grupo de reconhecimento de Saint-Exupery, observa: "as pontes SOMe 0 Meuse estiio intactas, impressiio de conjunto: 0 inimigo avan(:a com divisoes blindadas em Ardennes e niio encontra nenhuma resistincia". Apesar desta informa~ao decisiva, 0 Estado-Maior frances recusa-se a acreditar no tenente observador. 0 axioma "Ardennes, meio a-estrategico e impermeaver e 0 que impede 0 prolongamento da linha Maginot ao norte. Nao se trata portanto de acreditar em uma comunica~ao tao heretica. Os desdobramentos desta atitude sao suficientemente conhecidos. o problema nao e mais a extensao do ponto de vista, mas da maior ou menor permeabilidade de urn meio ao avan~o dos blindados. A transparencia de vidro da paisagem de guerra descrita por Junger acrescenta-se 0 trespassamento de urn meio denso, a transparencia de uma compacta regiao florestal diante do olhar de divisOes blindadas. Nao se trata somente de uma ilusiio de 6tica que afeta urn combatente em estado de desordem psiquica, mas de uma ilusiio motriz que afeta toda uma regiao estrategica, urn territ6rio que nao mais oferece resistencias aos tanques na mesma medida em que 0 espa~o aereo nao bloqueia os bombardeios ...
Em seus escritos de piloto de guerra, Antoine de Saint-Exupery emprega metaforas surpreendentes: "da vertical eu via somente bibe16s antigos sob um cristal puro que niio tremia. Eu me debru(:0 SOMe vi trines de museu, domino uma grande placa espelhada, a grande placa de minha vitrine. La embaixo os homens, micr6bios em um lamina de microsc6pio... eu sou um sabio glacial e para mim a guerra deles niio e nada mais do que uma experiencia de laboratOrio"(2). A distancia aterrorizante entre os combatentes da guerra escitica transforma-se na dis tan cia caracteristica das tt~cnicas da guerra reHimpago, que incluem as lentes das objetivas de longo alcance e as lupas estereosc6picas da foto - interpreta~ao militar em urn meio pr6ximo ao aquoso, ao vidro e aos fen6menos de refra~ao e difra~ao pr6prios destas condi~6es. A guerra de posi~ao venceu. A extrema mobilidade dos exercitos (mecanizados e motorizados) imprime ao conflito uma nova unidade de tempo que po de ser apreendida somente atraves da cinematografia, por vezes com dificuldade, ja que a velocidade dos avioes acelera a sequencia das imagens e as gran des altitudes provocam 0 congelamento do mecanismo das cameras. Por estes motivos intensificam-se as pesquisas no campo visual: a mem6ria falha do piloto e compensada pela instala~ao de urn gravador que precede 0 computador de bordo, a instala~ao de urn "hiposc6pio" imprime maior precisao as fotografias permitindo que a vertical do aviao seja facilmente visualizada, as emuls6es em placas pesadas e inconvenientes sao substituidas por filmes acondicionados em tambores girat6rios. Os dispositivos de sincroniza~ao entre a velocidade do aviao e a velo,cidade das objetivas, a marca~ao dos negativos durante 0 voo e • 0 acoplamento de celulas fotograficas melhoram ainda mais a qualidade dos documentos, simplificando sua interpreta~ao. Os limites da investiga~ao sao regulados tanto no tempo quanto no espa~o. A rapidez de deslocamento dos exercitos suscita 0 desenvolvimento de mecanismo de detec~ao com 0
(2) Pilote de Guerre, Saint-Exupery, edi~oes Gallimard.
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maior raio de a.,;ao possivel para que os comandos tenham tempo para preparar sua defesa. Ja se vai 0 tempo em que a infan taria se deslocava a quatro quilometros por hora e que a informa.,;ao conservava 0 frescor da atualidade por urn dia, uma semana ou mais tempo. A partir de agora a informa.,;ao perde seu valor em algumas horas, em somente alguns minutos ... Se 0 segredo da guerra sempre esteve inscrito nos ares, somente a velocidade de transmissiio permite que sua importancia seja desvendada utilmente. Depois da derrota da Fran.,;a, motivada por Sidney Cotton, os britanicos irao reorganizar 0 reconhecimento aereo substituindo os Bristol-Blenheim pesados e armados por Spitfires desarmados, porem equipados com reservat6rios de combustivel. Este aparelho, que entao desempenhava a melhor performance possivel, funcionava como uma verdadeira camera-voadora, ancestral dos atuais "misseis-video", vetores capazes de detectar (em transmissoes ao vivo ou grava.,;oes) nao somente a sucessao das a.,;oes, mas tambem sua simultaneidade ... Lembremos que em 19120 alemao Alfred Maullan.,;ava urn foguete movido a p6lvora que levava em sua ogiva uma pequena maquina fotografica. No momento em que 0 aparelho atingia sua altura maxima, a ca.mera era disparada e 0 foguete descia lentamente, trazendo ao solo sua (mica fotografia (na verdade tratava-se de uma experiencia militar destinada a prolongar as tentativas de N adar com suas fotografias aerostaticas). Vinte anos mais tarde, em 1933, nos laborat6rios da RCA, Vladimir Zworykin - inventor do "iconosc6pio", prime ira denomina.,;ao da televisao eletronica - apresentava seu invento nao como urn meio de comunica.,;ao de massa, mas como um meio de ampliar a capacidade da visiio humana, chegando ate mesmo a propor a instala.,;ao de uma ca.mera fotografica em urn foguete para observar as regioes mais inacessiveis, antecipando em alguns anos as sondas espaciais Pionner e Voyager... Esta vontade deliberada de ampliar a extensao do campo de observa.,;ao, de ampliar cada vez mais 0 raio de a.,;ao da detec.,;ao, encontrara finalmente sua solu.,;ao cientifica na varredura eletromagnetica do Radar. Em 1940, durante a batalha da Ingla-
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terra, a transparencia do ar torna-se semelhante ado iter: Sir Watson Watt ergue na atmosfera uma misteriosa tela, urn plano invisivel que se eleva a uma altura tal que nenhuma aeronave podera atravessa-la sem que sua apari.,;ao seja detectada em algum lugar no solo, no fundo de uma camara escura, sob a forma de urn sinalluminoso. 0 que em outros tempos se passava na camera de registro de Niepce e Daguerre, a partir de entao se daria no ceu da Inglaterra. Instalado em Keith Park, no cora.,;ao de Londres, o teatro de opera.,;oes de guerra torna-se uma sala escura lotada por oficiais superiores e auxiliares femininas, anfitrioes de uma cerimonia estrategica que imita a guerra real. Nesta central subterranea organiza-se a recep.,;ao dos dados·das esta.,;oes de radar da "Chain-Home" e a coordena.,;ao dos destacamentos de combate da RuyalAirForce. Atraves do eter trocam-se palavras, breves diruogos entre as equipes e seus anfitrioes de guerra, como se as duplas estivessem reunidas em uma (mica sala. Alertados, guiados e consolados, os pilotos de ca.,;a sao acompanhados durante todo 0 tempo, perseguidos por vozes em off 0 filme de guerra nao somente e sonoro, como os bombardeios sao pontuados por exclama.,;oes, comentados pelos pilotos que, sem combate, sentem a onipresen.,;a de urn publico situado na sala de opera.,;Oes, a presen.,;a desses auxiliares que contribuem ao sucesso de seu lider, mas tambem para a desrealiza.,;ao de urn conflito em que os espectros desempenharao urn papel cada vez mais importante: espectro dos adversanos abatidos, projetados para homologa.,;ao gra.,;as aos filmes das cinemetralhadoras, espectro da imagem do radar sobre as telas, voz nos ares, rastreamento do sonar... A proje.,;ao da luz e das ondas sucede a proje.,;ao de armas do passado como a flecha e a lan.,;a. Se a for.,;a militar e regulada em rela.,;ao aaparencia, ao longo dos anos esta potencia torna-se inverossimil:. camuflagem, disfarce, medidas de defesa eletronicas, interferencias radiofOnicas, bombas de fuma.,;a ... 0 arsenal de ataque se ve equipado por novos 6rgaos, pr6teses de urn conflito em que a ilusao de 6tica e a ilusao motora se misturaram ate 0 delirio, delirio cinematico da guerra relampago, guerra da velocidade de propaga-
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c;:ao dos objetos, das imagens e dos sons que se estende ate 0 advento do clarao nuclear. Se, na primavera de 1940, ao contrario de 1914, os apareIhos de reconhecimento aereo eram colocados em ligac;:ao permanente com bases no solo grac;:as as ondas curtas da radiofonia (algumas dezenas de quilometros de alcance em 1940 e quatrocentos e quinhentos quilometros em 1945), no outono desse mesmo ano, grac;:as as ondas eletromagneticas, os cac;:as da RAF, que realizavam patrulhas noturnas, seriam os primeiros a ser equipados com a "radiolocalizac;:ao", radar de bordo que permitia ao piloto ''ver'' em uma tela coloca~a s~b 0 par~ brisa, os Dornier, os Messerschmitt 110 voando a nolte, a malS de cinco quilometros de dismncia. E0 inicio de urn novo desdobramento da personalidade do guerreiro, 0 dom de visilo dupla concedido aos aviadores: cabec;:~ erguida, a transparencia da atmosfera, a visao ocular; cab~~a balXa, a transparencia do eter, a televisao ... Dois espac;:os mIhtares, 0 proximo e 0 distante, e urn so co~bate, uma so gu~~ra. Es~ te:nologias atingirao mais tarde os sIstemas de armas transhorizon. Por sua vez, em face a ofuscan te claridade dos projetores de 200 milhoes de velas do DCA, os bombardeiros destinados a realizar missoes noturnas foram equipados progressivamente com novoS recursos, aperfeic;:oamento de novos metodos de bombardeios noturnos. Se em Londres e em Conventry a Lujtwajjeutilizava, em 1940, bombas incendiarias para delimitar a zona de lanc;:amento das bombas explosivas, ja no ana seguinte, em ColOnia, os aliados recorrerao as bombas de ilumina(:ilo, que ao se incendiar no solo desenham nas trevas urn quadrilatero de brilhos vermelhos, no interior do qual os Halifax e os Lancaster lanc;:arao sua carga destruidora duran te a operac;:ao "Milenar". Logo depois os aliados utilizarao novas armas de luz: flash de magnesio ou flash eletronico como os utilizados nos avioes da forc;:a aerea americana, capazes de iluminar e sobretudo ofuscar por urn curto tempo as defesas inimigas; estas inovac;:oes seriam aperfeic;:oadas por Sam Cohen e utilizadas na guerra do Vietnam com 0 objetivo de cegar 0 adversario durante mais de
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uma hora. 0 resultado dessa pesquisa levara ao desenvolvimento de granadas siderantes e a sua utilizac;:ao contra terroristas em Mogadiscio e Londres. Por outro lado, as combinac;:oes eletronicas permitem, a partir de 1942, dirigir os esquadroes aereos de estac;:oes terrestres localizadas a uma grande dismncia, facilitando os bombardeios, noturnos ou nao, em quaisquer condic;:oes meteorologicas. Esta tecnica mobilizava duas estac;:oes designadas como The Cat e Mickey Mouse! 0 aviao equipado com urn receptor captava os raios emitidos pelo gato e se deixava guiar passivamente ate aproximar-se de seu objetivo. 0 rato, que ate enta~ observava em silencio a operac;:ao, reunia os dados e calculava (com uma precisao que ia de cern metros a quatrocentos quilometros de dismncia) 0 in stante em que 0 bombardeiro deveria lanc;:ar suas munic;:oes e enviava a ordem de ataque pelo radar. Esta rede eletronica sofisticada, chamada GEE, cobria 0 este europeu e logo seria constantemente aperfeic;:oada, inicialmente sob a designac;:ao tecnica de OBOE e, finalmente, em 1943, com 0 nome de H2S, sistema que fornecera aos aviadores nao mais urn simples "sinal de radar", mas uma silhueta luminosa do objeto sobrevoado, uma "imagem de radar". 0 bombardeiro era enta~ equipado com urn emissor de ondas centimetricas que, quando projetadas verticalmente em direc;:ao ao solo, retornavam ao aviao materializando-se em uma tela catodica. A imagem eletronica assim obtida englobava uma zona de quinze quilometros quadrados. Este sistema seria utilizado pela primeira vez durante a Operac;:ao Gomorra, que destruiu Hamburgo. Aos sistemas tradicionais de armas visiveis, como 0 canhao e a metralhadora, vern juntar-se· agora a confusao propria dos sistemas de armas invisiveis utilizadas em uma guerra eletronica cujas redes cobrem todo urn continen teo Para os pilotos, e 0 fim da invisibilidade dos alvos que 0 meio natural protegia dissimulando-os aos golpes de seus adversarios e interferia mascarando seus objetivos. Com a cac;:a noturna, a artilharia antiaerea, por sua vez, se beneficiara com a ubiqiiidade guerreira: e principalmente a "Linha Kammhuber" que organizara a resposta da
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seus setores de alerta, que cobrem a Europa desde 0 Mar do Norte ate 0 Mediterd.neo, tendo urn centro operacionallocalizado em Arnheim, na Holanda. 0 mesmo ocorre com a instala(ao de uma rede de "radar panoramico" em que cada aparelho de detec(ao ilumina urn raio de trezentos quilometros, transmitindo "por cabo'i a imagem eletronica do ceu para as baterias do DCA da "FestungEuropa". Esta visibilidade integral, que atravessa as trevas, os obstaculos naturais e anula as distancias, torna 0 espa(o de guerra translucido, deixando seus responsaveis extralucidos,ja que 0 tempo e os atrasos de resposta sao incessantemente restringidos pelos metodos de preven~ao e antecipa~ao tecnicas. o sistema de alarme dos avioes desempenhara um papel psicol6gico consideravel sobre 0 conjunto do territ6rio. No momento em que as unidades inimigas atravessam a costa, a opera~ao e comunicada as popula~oes civis atraves de urn alerta previo e, a medida que objetivos se sucedem, alerta-se as cidades visadas em seguida. A rela(ao espa~o-tempo se comprime, 0 perigo e percebido simultaneamentepor milhares de ouvintes atentos. 0 unico fator de prote(:ao e a informa(ao, 0 radio, e, na falta de espa(:o, ter tempo para recuar. Com a ofensiva aerea aliada sobre as grandes concentra(:oes europeias, 0 ataque torna-se subitamente urn espetaculo de som e luz, uma serie de efeitos especiais, uma proje(:ao atmosferica destin ada a confundir uma popula(ao amedrontada, lan(ada em rneio a um blecaute; salas escuras de dimensoes dramaticas onde as futuras vitimas assistem aos mais aterrorizantes espetaculos noturnos, faustos do inferno de um cinema invasor que reproduz a arquitetura de luz de Nuremberg. Em suas mem6rias, Albert Speer, 0 organizador das comemora(oes nazistas do Zeppelin-Feld, escreve a respeito do bombardeio de Berlim, em 22 de novembro de 1943: "0 bombardeio proporcionou urn espetaculo do qual a lembran(:a nao pode se apagar e era necessario lembrar 0 TOsto atroz da realidade para niio mais se deixar jascinar por esta visiio. Os joguetes
para-quedas - as arvores de N tal .. iluminavam subitament , . , a , como dzzzam os berlinenses _ 0 vidopelafi d . e~ ce:'" Ja que 0 clariio das explosoes era absoruma[:a os zndndws. De todas asp ., cruzavam 0 ceu ... artes, znumeros holoJotes e se znzczava um duelo em . localizado pelo Jacho de luz m oczonante quando um aviiio j'."()curava escapar. sendopor .. d o e minutos dejJois transtormad ' vezes atingz·. 'J' oemumatochadetoDYl' d wsa vzsiio do apocalipse". J' 0 -. era uma gran-
Do inferno das imagens a ima em d . de Hitler pode dimensio g . ~ 0 l.nferno, 0 arquiteto nar a curta dlstanCla entr d· tos e escreveu ainda' "p e os OlS ponremberg em 1935 fl'· ~1ra500 congresso do Partido, realizado em Nu-
, u z zzez holojotes do DCA P ad mente para 0 ceu fiormand ~ a ont os vertical. , 0 um retangulo de luz na ·t l ; ' . • nor dessasparedes lum· . . not e. rot no znteznosas, as primezras do o-en, . congresso com todo seu ritual c ,. 'fi ' . o· em, que se realzzou 0 cristal imaginados pelos po:tasen;;;d:C(~:t;. ~brav~ os cas~elos de uma curiosa sensa[:iio diante d ·d'. de e za. xperimentez entiio . az eza queacria r ~. . mazs bem-sucedida de m· h i d . . "ao arquztetonzca zn a v a tznha sido u fi . uma miragem irreal. " ma antasmagona,
Tratava-se menos de uma ima em d uma prefigura~ao hologrcifica dag 0 qu~ de urn ensaio geraI, materiais empregados pelo ' ~ehr~a o~tlda atraves do uso de A ~. exerClto a mats de trinta an
s::;~:e;ac~~:c~~!U~~:!~ ~
i::~ta-
neo e conhecimento que as frotas ' . , _ es operas de comandos, em man tlmas e aereas sao diri .d quanto de Bedim. gt as tanto de Londres "0 centro de transmissiio do quartel-general e1i ~ TO, escreve Speer, de sua mesa na sala de r. ~_um m~elo do gene~andar todas as divisoes no campo de batalheu;s, Hztler.podi~ co[:ao se degradava mais este instrumento da tic:ic :to mazs a s.ztuc:P~ra acentuar 0 divOrcio mire a realidade em tam erna c~ntnbuza mznava a condu[:iio das op _ d erra e a Jantasza que do. eraroes esta mesa ". (3)
A partir de entao, a autoridade . intermediarios possivel se exerCla com 0 minimo de _ ' mas se, por sua vez, 0 Fuhrer utiliza a (3) AuCoeurdu TroisiimeRei h,A Spandau, A Speer ed· - r ~CC C . Speer, edi~oes Fayard, e Le Tournai de .
,l~oes
LauOnt.
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1 enerais privando-os de radiotelefonia para contro ar se~s gt do si~tema de comunisuas iniciativas, e finalmente 0 conJun 0 trole do chefe dois campos - 0 con cal,;ao que favorece - nos , der assa a ser exercido disupremo sobre seus subordmado,s, Opo P, 't e sempre forretarnente, Se, na visao do est~ateg~sta, um enxde:~~~ desdobrar na . , e pode lr e Vlr se est e te e sufiClent~ porqu d e' ado (Se-Ma), e necessario direl,;ao deseJada, no mome~tdo des J rra estas idas e vindas este peno 0 ague , reconhecer que, n d do jeed-backestabesao menos os movime~~os das tropa~ ~ !~:smissao, aparelhos lecido entre os matenalS de detecl,;ao mente a mar, ' .' tendem a renovar nao so visuais e audIOVlsuals que 1914 mas 0 deslo, - 0 distante como em , cha forl,;ada e a mc~rs~ b ' ficio do recolhimento autocamento real do exerClto em ene . _ oreal Como 'ti de dados e logo de sua retransmzssao em temp ,,' d" rna co , ao da presenl,;a de uma IVlinterpretar de outra for~~ a :~:~rmacht, a multiplical,;ao de sao de PKem cada bata ao a ~c: dos exercitos(4) substiviro cinematognulCO cinecomandos d 0 ser ... tre os aliados senao tuindo os correspondentes d~, g~err~oe:mpre mais a;anl,;ada pela necessidade de uma me latlzal,;a d'do pelos equipad da visiio dupla conce I da al,;ao em que 0 om d m alto comando simultaneamenmentos torna-se 0 po d er e u te ausente e onipresente? em que a guerra inOrigem da desrealizal,;ao de urn ataque , denunciadustrial deixaria de ser 0 aparelho dos grandes {:::z;roximo, a do pelos moralistas para tornar-sel'hemdumdeceprao 0 disfarce "fi sivel' apare 0 e ..., maior mlstl lCal,;ao p o s , G d GOuerra a industria, - Desde a ran e , da estrategia da dlssuasao, '1 tr ndo como vimos, esta lizal,;ao ~a irr:agem, i~stantanea :e:e:t~~il,;:O o~erada nas dimendimensao cme~atl~a de urn, desardens de uma paisagem que soes de regioes mtelras, contlnuas ";·as sucessivas defioto. . - operada par sequenCl exigiria uma.reconstztuzfao ,-' tografica da reao grafias para ser compreend·d z a, perseguw cmema
alidade, decomposil,;ao e recomposil,;ao de urn territorio incerto em que 0 filme sucede ao mapa do Estado-Maior, A partir de enta~, a desrealizal,;ao cinematografica encontra-se na propria natureza do poder, Este ultimo se instala nurna regiao tecnologica aparte, onde 0 espal,;o-tempo nao mais eo vivido pelo mais comum dos mortais, mas somente pela maquina de guerra, urn espal,;o-tempo proprio de uma percepr;iio sequencial que se assemelha aos fenomenos oticos resultantes da persistencia retiniana, origem e fim da apreensao do real, ja que a visao do movimento e nada mais do que urn processo estatico ligado anatureza da decupagem e amaior ou menor velocidade de observal,;ao das especies, Macrocinematografia do reconhecimento aereo, televisao a cabo dos radares panoramicos, retardamento e acelera.,;ao da fotointerpreta.,;ao das fases da opera.,;ao: 0 desenho do comandante militar e nada mais que urn desenho animado, urn organograma. A Tapel,;aria de Bayeux e urn exemplo de urn modelo de desfile pre-cinematografico em uma guerra na qual a logistica do desembarque normando prefigurava a logistic a do Mais Longo dos Dias, 0 6 de junho de 1944. Alem disso, nao se pode esquecer que a descoberta da estatistica indutiva tern sua origem nos calculos de recenseamento efetuados por Vauban durante os periplos repetitivos que levaram 0 marechal a passar pelo mesmo local em periodos distintos ... na verdade, a cada uma de suas viagens 0 comissario-geral das fortifica.,;oes torna-se urn tipo de "comissaire aux montres".(5) 0 reino desfila diante de seus olhos como uma grande revista de detalhes na qual 0 territorio se expoe a inspe.,;ao. Nao mais se trata simplesmente do desfile das tropas diante do inspetor, responscivellogistico pela boa forma do exercito, trata-se da revisao geTal do pais, 0 conselho de revisao do corpo territorial. Nao e mais 0 corpo do exercito que passa e repassa em forma.,;oes rigidas sob os olhares atentos do intendente do rei, mas eo inspe-
- - - - - - - - .eristica abstrata da reconquista das i(4) Para os amencanos, a caract _ filmografica dai a importanIhas do Pacifico necessitava de uma encenal;,:ao Ih ' , ·adas nesta bata a. cia das equipes de cmema engaJ
(5) Oficial responsivel pela revista dos exercitos e equipamentos no Antigo Regime,
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tor-geral que passa em revista as provincias, alinhadas como na parada militar. Esta repetic:iio de viagens, que determina 0 desenvolvimento do filme regional, enada mais do que um artificio, uma trucagem cinematica que beneficia somente 0 observadoritinerante. Observando solitariazpente 0 encadeamento das situal,;oes, as seqiiencias, progressivamente 0 observador perdera de vista as realidades 10cais, exigente em terminar a reforma do direito costumeiro em beneficio de uma norma administrativa... Com a estatistica, estamos no inicio da economia politica, economia que repousara sobre a persistencia do signo e das tendencias dominantes, mio se limitando a cronologia e a sucessao da realidade dos fatos. E finalmente este mesmo movimento de ideias que conduzira do "seculo das luzes" ao registro fotogr:ifico, as cfunaras multiplas de Muybridge, a cronofotografia de Marey e, finalmente, a camera cinematogr:ifica dos irmaos Lumiere, passando por Melies, 0 artesao da mistifical,;ao da montagem. "Nos antigos conjlitos, explica Winston Churchil, os episOdios tinham mais importancia do que as tendincias, enquanto nas guerras ~ dernas a tentJencia se sobrep6e aos episOdios". Efetivamente, os fenOmenos de massa escapam a apreensao imediata e sao perceptiveis somente atraves da intromissao do computador, da invenl,;ao de captadores e camaras de registro que nao existiam em urn outro tempo (dai 0 car:iter relativo da afirmal,;ao de Churchil). Deve-se portanto concluir que a guerra total contribuiu essencialmente para 0 desenvolvimento de materiais de proje{:iio suscetiveis de revelar e tornar enfim possiveis as tendincias totalittirias do momento. Dai a invenl,;ao das armas "secretas", bombas voadoras, foguetes estratosfericos, premissas do "Cruise Missile", dos equipamentos balisticos intercontinentais e, antes de mais nada, destas armas invisiveis que tornam visivel (armamento que ja utiliza diversos raios) nao somente 0 que se encontra alem do horizonte, mas 0 que a noite esconde e sobretudo 0 que niio existe au ainda niio existe, a ficl,;ao estrategica da necessidade de urn armamento que utilize as radial,;oes atomicas, ficl,;ao que conduzira ao fim da guerra e da arma "absoluta". Como vimos no inicio desta narrativa, critica-se muito os
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bombardeios de 6 e 9 de agosto de 1945, mas geralmen te negligencia-se 0 fato de que se tratava de uma arma de l'liz, a prime ira do genero antes da crial,;ao da arma de raios refol'l,;ados como a bomba de neutrons, as armas de laser e os canh()es de particulas carregadas, no momento CIIl fase de pesquisa. Alem disso, muitos sobreviventes de Hiroshima definiram a e>-plosao, pouco tempo depois, como a detonal,;,lo de uma bomba de magnesio de potencia insuspeitada. Originalmente lanl,;ada para explodir a cerca de quinhentos metros de altitude, a primeira bomba provocou efetivamente urn clarao, urn flash nuclear de 1/15000000 de segundo, clarao do qual a luz se infiltrou em todos os locais, nas residencias e ate nos poroes, deixando sua impressiio nas pedras - que tinham sua coloral,;ao alterada pela fusao de certos elementos minerais - , mas curiosamente deixando intactas as superficies protegidas. 0 mesmo ocorreu com as roupas e os corpos, pois 0 desenho dos quimonos tatuou a pele das vitimas ... Se, segundo seu inventor, Nicephore Niepce, a fotografia era nada mais do que urn metodo de gravura atmves da luz, "fotogravura" em que os proprios corpos inscreviam seus tral,;Os por efeito da propria luminosidade, a arma nuclear e herdeira da camara escura de Niepce e Daguerre e da camara escura do holofotemilitar. Nao e mais uma silhueta que surge ao fundo das camaras escuras, mas uma sombra, uma sombra que por vezes alcanl,;a os poroes de Hiroshima. As sombras japonesas nao mais se inscrevem, como antes, nas paredes de urn "teatro de sombras", mas sobre a tela, as paredes da ddade.
*** Bomba A, 1945. Bomba H, 1951. Guerra da Coreia ... Depois da guerra tudo se acelera, a potencia de fogo nao e somente a das armas de fogo, mas aquela das turbinas dos avioes de combate. A "barreiradosom"erompidaem 1952.A "barreiradocalor" em 1956 e, quanto a "barreira da luz", sua superal,;ao sO se da-
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ria mais tarde. Nos ares, os bombardeiros do "Strategic Air Commana encontram-se em alerta permanente e os interceptadores do "Air Defense Commanlf' estendem seu "guarda-chuva" protetor para prevenir quanto a urn eventual ataque sovietico de longo alcance. Este perigo torna-se cada vez maior depois que a URSS detona, em 12 de maio de 1953, sua primeira bomba de hidrogenio. Para os Estados Unidos, torna-se entao urgente dispor de novos meios de capta~ao de informa~oes. :E neste momento . que 0 aperfei~oamento do filme com base Mylarpela Eastman Kodak e da camera de alta defini~iio pelo doutor Edwin Land da Hycon Corporation se aliam para permitir a execu~ao do reconhecimento aereo regular sobre a Uniao Sovietica. As conseqiiencias desta opera~ao sao bern conhecidas: 0 Loockheed U2 pilotado por Gary Powers e abahdo sobre a URSS no dia primeiro de maio de 1960... Em outubro de 1961, inicia-se a crise de Cuba, premissa de uma terceira guerra mundial. Em 29 de agosto de 1962, urn aviao U2 trazia como resultado de uma missao sobre a ilha de Fidel Castro a prova cinematogr:illca da instala~ao de misseis sovieticos, originando 0 atrito entre Krucheve Kennedy, atrito que resultaria, meses mais tarde, na instala~ao do telefone vermelho, interconexao dos chefes de Estado, interface imediata de suas salas de opera~ao ... Alem dos sistemas de fotografia e vigilancia eletronica, lembremos que 0 U2, ainda em servi~o no Ira e no Golfo Persico, dispoe igualmente de colimador telescopico, "cinederivOmetro", que permite ao piloto realizar 0 rastreamento de urn territorio a mrus de 25 mil metros de altitude. Neste mesmo ano de 1962, ainda que ja existissem mais de dez mil conselheiros americanos sobre 0 Vietnam do SuI, elabora-se em Harvard e no MIT a primeira guerra eletronica da Historia. A opera~ao inicia-se com a instala~ao de captadores, de sensores lan~ados com para-quedas ao longo da estrada Ho-Chi-Min e, mais tarde, precisamente a partir de 1966, pela organiza~ao de uma linha de defesa eletronica, a "Linha MacNamara", campos de detectores acusticos (Acouyboy, Spike-boy) e sismicos (Adsid, Acousid) distribufdos entre as
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vias de acesso ao Lao, em volta de bases do exercito americano e particularmente em torno da fortaleza de Ke Sanh. o conceito estrategico do professor Roger Fischer (Harvard) era entao fundado sobre a constru~ao de uma "barragem terra-ar" utilizando 0 conjunto das tecnologias de ponta do momento, tecnologias que permitem vigiar com eficacia os movimentos inimigos; tecnologia de aquisi~ao utilizando 0 infravermelho e a televisao de alta sensibilidade, aliados aos meios de destrui~iio aereos mais desenvolvidos: avioes de combate F 105, Tunderchief, Phantom, helicoptero Huey-Cobra, Gunship, avioes de transporte transformados em verdadeiras baterias aereas como 0 Douglas AC 47 e sobretudo 0 Hercules C 130, equipados com novos equipamentos eletronicos como uma mira laser capaz de guiar as bombas com uma infinita precisao, sistema de ilumina~ao noturna e amplia~ao de imagens, computador de comando de tiro acoplado as metralhadoras Minigun de canos multiplos, herdeiras da velha Gatling, mas com capacidade de tiro de 6 mil disparos por minuto ... Este sistema avan~ado de alarme se tornava necessario porque os deslocamentos dos inimigos se davam geralmente a noiteo Neste tipo de conflito, 0 blecaute e urn recurso ultrapassado, a escuridao e a melhor aliada do combatente e 0 proprio teatro de opera~oes diurno transforma-se em uma camara escura, urn cinema para os combatentes da sombra, dai 0 esfor~o insensato dos americanos para ultrapassar este ofusc amen to lan~ando mao de dispositivos intensivos de iluminaciio (pirotecnicos, eletricos, eletronicos), dispositivos que freqiientemente utilizam 0 intensificador de luz, 0 scanner infravermelho, inovando ate mesmo 0 filme infravermelho e a termografia em que a imagem termica substitui a imagem otica, 0 fotograma; sistemas de armas que resultam em uma nova cenografia da guerra, na utiliza~ao massiva das imagens sinteticas, no recolhimento automatico de dados, mas igualmente na desfolhagem quimica que permite enfim obter 0 vazio, livrar a tela de toda vegeta~ao parasita. Em outubro de 1967, 0 centro de vigilancia eletronica de Nakhon Phanon, na Tailandia, captava, in terpretava e apresen-
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tava em uma tela os dados transmitidos pelos captadores instalados em terra, que por sua vez os captavam dos avioes Loockheed Bat-Cat. Nesses procedimentos, que representavam 0 novo ponto "Nodal" da guerra, urn computador IBM 360.35 classificava imediatamente os dados transmitidos e fornecia aos especialistas do centro uma imagem que indicava 0 Lugar e a hora em que os captadores foram ativados. Baseados nessas informat,;oes, os especialistas elaboravam enta~ urn esquema do trafego inimigo e forneciam aos cat,;as os dados de combate "Skyspot", 0 que lhes permitia a maior rapidez possivel na execut,;ao dos pIanos e uma maior precisao. No entanto 0 que e mais interessante para nos e ainda 0 Drone, 0 RPVTeledyne Ryan, aviao telecomandado de cerca de tres metros de envergadura equipado com uma d.mera capaz de obter duas mil fotografias e urn sistema de video que pode realizar transmissoes ao vivo para uma estat,;ao receptora situada a 240 quilometros de distincia. "Minha alma chora, chora mas chora os olhos mortos", escrevia Apollinaire em 1915 a respeito dos tiros inimigos. Com a guerra eletronica esta metafora e ultrapassada, pois 0 projeteis levantam-se e abrem seus numerosos olhos: ogivas rastreadoras, guias infravermelhos ou a laser, ogivas equipadas com cameras de video que transmitem sua visao aos pilotos, aos controladores instalados em terra diante de seus con troles. A fusao esta feita e a confusao e perfeita, pois nada mais distingue a funt,;ao da arma da funt,;ao do olho, a imagem do projetil e 0 projetil da imagem formam uma mistura: detect,;ao, aquisit,;ao, perseguit,;ao e destrui~ao, 0 projetil e uma imagem, uma "assinatura" sobre uma tela, e a imagem televisiva e como urn projetil hipersonico que se propaga na velocidade da luz ... A projet,;ao das armas de lan{:amento, a balistica do passado, sucede a projet,;ao da luz, do olho eletronico, do engenho teleguiado ou do missil-video, projet,;ao em escala verdadeira de urn filme que arrebataria Fromiaut, 0 inventor do veiculo-travelling, e sobretudo Abel Gance, que, na batalha de Brienne, queria lant,;ar suas cameras como se fossem bolas de neve.
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De fato, desde que se operou a superposi¢oda linha de mira ao cano das armas de fogo, nao se deixou de associar 0 uso do projetil ao uso da luz - esta luz que e a alma dos canhoes - ate que fosse inventado, ha pouco tempo, 0 acelerador de f6tons, a intensificadorde luz (Starton, sistema FUR) que terminaria por originar a arma laser, 0 armamento de facho dirigido, 0 canhao de particulas carregadas ... Alem disso, nao sendo suficiente a superposit,;ao da mira ao cano das armas, introduz-se a mira em urn "tunel de fogo" para obter melhores performances. Nos laboratorios de pesquisas balisticas e aerodinamicas (nos Estados Unidos e na Frant,;a) dispoem-se por exemplo de tuneis de tiro hiperbalistico de cerca de cern metros de comprimento, capazes de lant,;ar as maquetes de "corpos de reentrada" (os projeteis de testes) a cinco mil metros por segundo. Para visualizar sua trajetoria no interior do canhao, utiliza-se urn equipamento de "cinerradiografia-iluminat,;ao" capaz de gerar 40 milhoes de imagens por segundo(6). Ai deparamos com as origens do cinema, como 0 primeiro fuzil cronofotogrcifico de Marey, de 1882, com uma objetiva no cano e uma culatra cilindrica na qual se movimentava a placa sensivel. A partir do Vietnam e ao longo dos anos setenta, assiste-se a uma mediatizat,;ao cada vez mais abrangente do comllate. Se, durante a Guerra da Coreia, urn "Sabre" da Fort,;a Aerea americana ja necessitava de mais de quarenta quilometros para contornar os Mig 15, durante a Guerra do Vietnam - e durante a Guerra dos "Seis Dias" - 0 Phantom recorria a urn sistema de tiro controlado por instrumentos para abater urn Mig 21, sistema de aquisit,;ao de objetivos que mais tarde resultara no conceito de "Fire and Forget" e nos sistemas de armas Transhorizon em que 0 ataque se efetuara fora de campo. A desintegra~ao da personalidade do guerreiro ja Se encontra em estado avant,;ado: cabe{:a erguida, 0 colimador do pcira-brisa transformando em tela digital (otico-eletronica ou holografica), cabe{:a baixa, tela do radar, computador de bordo, radio e (6) Ver 0 resumo do col6quio:" Le cinima grande vitesse - instrumentations et applications" - ANRT, Paris, decembre, 1981.
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monitor de video que permitem que 0 piloto realize 0 rastreamento do terreno, de quatro ou cinco alvos simultaneamente, e enfim 0 rastreamento de seus proprios equipamentos, misseis autodirecionados Sidewinder equipados com cameras ou sistemas de direcionamento infravermelho. Esta guerra de ondas acarretava inconvenientes maiores, como explica 0 coronel Broughton, piloto de F 105 durante a guerra do Vietnam: "0 ruido do radio era tal que nao conseguiamos nem mesmo pensar, muito distantes uns dos outros, pois as patrulhas aereas formavam uma sequencia de unidades que operavam separadamente; cada piloto tinha comunicados too importantes a fazer que as comunica¢es se interrompiam, pois cada um gritava coordenadas e ordens para se defender dos Mig e dos Sam e era impossivel compreender 0 que se passava. Este era sempre um problema, pois, uma vez que 0 processo se inicia, multiplica-se incessantemente e torna-se impossivel interrompe-lo. Cada pilato e imediatamente lan~ado na confusao e no medo, perguntando-se quem fala e com quem ele proprio fala" .(7) Esta confusao passageira e ainda mais acentuada devido as condi~oes meteorologicas desfavoraveis do Vietnam do Norte: ''Esta regido do globo talvez possua as piores condiroes atmosfbicas, prossegue Broughton, e quando estamos em meio a uma destas violentas tempestades que produzem correntes de ar nos sentimos seriamente abalados. Estas sensa~oes resultam frequentemente em urn fenomeno de desorienta~ao conhecido como vertigem. Em tais casos pode-se estar VDando na horizontal e ter a impressdo de que 0 avido registra uma inclinardo de sessenta graus, ou vice-versa. E uma situardo particularmente abatedora, da qual por vezes edificil se abstrair. Pode-se sacudir a cabera, mas a impressdo persiste e suas conseqilencias podem ser fatais. Eu reCDmendo este tipo de voo na noite escura aos amantes das sensaroes fortes". A ausencia de gravidade experimentada por ErnstJunger durante os tiroteios de artilharia da Grande Guerra se reproduzem aqui, mas a confusao das sensa~oes nao mais se assemelha ao terror panico, e uma sensa~ao de vertigem da tecnica, de uma des-
(7) Thud Ridge,Jack Broughton, edi\;oes Lippincott, 1969.
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realizacao puramente cinematica, que afeta 0 sentido do espa~o e suas dimensOes. Submetido amaquina, encarcerado nos circuitos fechados da eletronica, 0 piloto de guerra e nada mais do que urn deficiente motor, vitima passageira de urn fenomeno de possessao ancilogo ao ocorrido na guerra primitiva com seus alucin6genos. Nao nos esque~amos de que os primeiros produtos dopantes foram produzidos para suprir as necessidades dos pilotos da Luftwaffe... A droga, ruina do corpo expedicionano americano no Vietnam, era antes de mais nada a droga do delirio tecnico de urn combate que nao mais diferenciava 0 real do figurado, guerra de imagensem que, como escreve ainda Broughton: "Aconteceu-me de perder homens e equipamentos unicamente porque o tenente encarregado de examinar os filmes de nossos bombardeios nao distinguiu muito bern os estragos ocasionados e exigiu que os ~as retornassem sobre 0 objetivo". Ainda ontem morriase por urn brasao, uma imagem em urn estandarte ou uma bandeira, mas a partir de agora morre-se para aperfeiroar a nitidez de um filme, a guerra torna-se enfim a terceira dimensao do cinema... Eigualmente curioso constatar que grande parte dos novos materiais de guerra como helic6pteros, misseis, sistemas de detec~ao e telecomunica~oes e agora produzida pela Hughes Aircraft Company, a empresa do celebre Howard Hughes, que em 1930 rodou 0 filme HeU's Angels, hist6ria de uma esquadrilha de bombardeiros da Primeira Guerra Mundial. Este milionano esquizofrenico, morto em 1976, construiu, como se sabe, urn imperio industrial atraves da associa~ao significativa entre 0 cinema e a avia~ao. Ainda hoje, a Hughes Aircraft e uma das empresas mais importantes dos Estados U nidos. Em abril de 1983, dentre outros projetos, a Hughes desenvolvia uma pesquisa para aperfei~oar 0 dispositivo de direcionamento dos misseis antitanque TOW, dispositivo de visao estabilizada (ajustada oticamente) que permite a detec~ao dos misseis com precisao apesar do balan~ e das vibra~Oes do helicoptero. A empresa trabalhava ainda em urn equipamento de distrarOO de bordo que se utilizava da radia~ao infravermelha para transmitir aos passageiros dos avioes comerciais programas musicais e cinematograficos.
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Depois da derrota do Vietnam, os cientistas e industriais do Pentagono iriam aperfei~oar cada vez mais a guerra eletranica. A linha MacNamara foi transferida para 0 suI dos Estados Unidos, na fronteira mexicana, sob pretexto de detectar a passagem de trabalhadores clandestinos. Quanto aos interceptadares pessoais, dariam inicio em 1971 a urn projeto deliran te de con trole judicicirio individual chamado Transponder. Este aparelho, desenvolvido pela National Security Agen£)" registra a distancia percorrida, a velocidade do trajeto do individuo, transmitindo esses dados muitas vezes par minuto para urn computador central (digital) que os compara com os itinercirios autorizados e que pode advertir a policia a partir do momenta em que 0 portador deste aparelho se distancia das zonas permitidas ou ainda 0 momento em que ele tenta fugir. Proposto aos delinqiientes em liberdade condicional, este sistema de carceragem eletronica deveria finalmente permitir a reforma das prisaes, a substitui~ao das celas pela caixa-preta, do recolhimento para a exposi~ao da vida cotidiana. Em 1974, com 0 agravamento da crise do petroleo, esta desrealiza~ao alcan~aria propor~oes fantasticas com 0 advento dos simuladores militares. Hci dez anos 0 velho "home trainer"cedia lugar aos simuladores de vao e sobretudo aos simuladores de combate. A gera~ao sintetica de imagens "a luz do dia" permitia par fim ao treinamen to dos pilotos para que efetuassemcontinuamente as missoes compreendendo as fases habituais de navega~ao, penetra~ao e ataque. Desde enta~ nao mais se tratava de aprender a pilotar por instrumentos, mas de aprender a pilotar imagens de urn realismo impressionante, encena~ao da guerra que, anos mais tarde, resultaria em urn fenameno que passou despercebido: a equivalincia reconhecida entre 0 tempo do simulador eo tempo do vOo reaL .. A partir do momento em que conhecemos a severidade 00 treinamento dos pilotos, compreende-se melhor a importall' i.1 de tal decisao. Hoje em dia, as cabines de simula~ao sao ainda mais aperfei~oadas e existem ate mesmo os "simuladores de combate gira-
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torios" (dogflight) que associ am duas cabines esferi( .1' I ),Ira simular 0 combate entre dois avioes inimigos ... E necessario observar aqui que a simula~ao hci algum tempo se estendeu a outras armas. A Sperry Corporation, urn dos maiores fabricantes deste tipo de material ao lado da Thompson, produziu tanto para a marinha quanto para a forr,;:a aerea. Alem disso, no contexto de nao-agressao direta entre Oriente e Ocidente, fruto da estrategia nuclear da dissuasao, as manobras militares a~sumi ram progressivamente 0 aspecto de grandes jogos elel I !.)nicos, kriegspiel que necessita de territorios inteiros para reconstituir os diferentes metodos e materiais do combate moderllo. Especialmente construido no deserto de Nevad;t. () poligono de exercicios "red Flag' representa uma amostra lipica de urn ambiente hostil sovietico. Equipados com misseis terra-ar verdadeiros e foguetes de defesa aerea com radar (tornados durante a guerra pelos israelenses ou fornecidos pelos egipcios), e possivel recriar um ambientp elelronico perfeitamente realista com emissoes de radar, tiros, radiocomunica~oes etc. permitindo que as equipes american as conher,;:am determinada situa~ao para neutralizci-la. Os destacamentos aereos envolvidos neste tipo de exercicio compreendem, alem de urn aviao AWACS (Airborne Waming and Control Squadron), uma torre de con trole aereo, urn Agressor Squadron, sempre equipados com recursos de caracteristica semelhante aos Mig 21 e Mig 23 sovieticos. No deserto de Mojave, na California, realizam-se opera~oes semelhantes, em que 0 "National Training Center" do exercito promove simula~oes de guerra em dimensoes reais ... Gra~as ao "Miles" (Multiple Integrated Laser Engagement '~1'.5tern) as armas dos combatentes dos dois campos projetam raics laser e infravermelho de alcance e trajetoria semelhantes as armas reais. Os diferentes alvos, equipados com placas de silicio, saO ligados a caixaspretas; os soldados e seus equipamentos tambem carregam estas placas nas superficies mais vulnerciveis; quando urn raio laser toea uma dessas placas sen
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completam este quadro ... No mesmo tipo de racioci~io, citemos ainda 0 Tatical Mapping S)'II 'I, videodisco produzldo pela Agencia para ser utilizado nos projetos de pesquisas avan~adas da defesa dos Estados Unidos, que pen'nite observar contmuamente a cidade de Aspen, acelerando ou retardando a sequencia de 54 mil imagens, modificando a dire~ao ou a esta~ao como se troca 0 canal da televisao, transformando a pequena cidade do Colorado em uma especie de t'!inel balistico para os pilotos de tanques, que se utilizam deste procedimento para se exercitar nos combates de rua ... Nao nos esque~amos de que a camera Dykstraflex, que dispoe de um computador que registra seu proprio movimen to, foi criada por John Dykstra para 0 filme Guerra nas Estrelas (Star Wars) e e herdeira de um sistema destinado ao treinamento de pilotos de aviao. Nesta mesma ordem de "recaidas" tecnologicas, citemos tambem a camera Spaace, sistema de rastreamento automatico aplicado ao cinema, criado por dois franceses que utilizaram como base de sua inven~ao a plataforma de um radar de rastreamento antiaereo. Este novO tipo de camera permite seguir sem esfor~o os movimentos esponcineos dos atores. Dotada de uma teleobjetiva potente, a Spaace pode enquadrar 0 rosto de um piloto de jato realizando uma acrobacia em baixa altitude sem jamais perde-Io de vista ... A crise de energia permitiu realmente a rentabiliza~ao da industria da simula~ao: no final dos anos setenta viriamos a assistir a um delirio tecnologico crescente, delirio que finalmente determinara a automa~ao da maquina de guerra. . A complexidade das manobras, a exigencia de uma velocldade cada vez maior, 0 trabalho conjunto com os satelites e a obriga~ao, mesmo durante os ataques terrestres, de voar em velocidade supersonica mesmo em baixa altitude levaram os construtores a automatizar a pilotagem. A bordo de um F 16, "AFf 1" desenvolvido por Robert Swortzel, 0 piloto tem a op~ao de, uma vez acionada a sequencia automatica, nao tocar nos comandos e dirigir 0 aviiio por sua propria voz.. Em contrapartida, a maquina informa, atraves da tela interposta no para-bri-
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sa, sobre seu "plano de voo", seu "plano de tiro" e afixa no campo de visao do piloto, em transparencias, a acelerapio prevista e a contagem regressiva para 0 tiro ser disparado assim como 0 tipo de manobras que 0 aviao efetuara. Para 0 tiro 0 piloto dispoe de um capacete munido de uma mira, que por sua vez e ligada a um sistema de visihiliza<;:ao laser e infravermelho: basta apenas fixar 0 alvo e ordenar oralmente 0 disparo das armas ... este equipamento revolucionario, concebido em 1982 pela For<;:a Aerea americana em conjunto com a marinha e a Nasa, combina diversos tipos de tecnologia de ponta, principalmente relacionados com 0 visor laser: 0 "Eye-Tracker!', sistema de sincroniza<;:ao que fixa 0 olhar do piloto, qualquer que seja 0 nivel do movimento brusco de seus olhos, permitindo 0 disparo do tiro a partir do momenta em que e efetuada esta acomoda<;:ao binocular. Neste mesmo genero de equipamentos podemos citar ainda a "imagem Home", que consiste no acoplamento entre um raio infravermelho e uma carga explosiva associada a um dispositivo especifico. 0 dispositivo funciona como um olho que capta a imagem do objeto iluminado a infravermelho, fazendo com que 0 explosivo dirija-se a esta imagem e, portanto, contra 0 objetivo a ser destruido com a mesma facilidade com que entramos em nossas proprias casas (Homing). Este sistema, presente nos misseis mais recentes, ilustra mais uma vez a confusao fatal entre 0 olho e a arma. Compreende-se melhor entao a vontade das duas partes em desenvolver armas que sejam tao indetectaveis quanta um submarino submerso. Avioes e misseis Stealth, inyisiveis nao somente aos olhares human os, mas sobretudo aos olhares aten tos e infaliveis da tecnica. Na decada de oitenta, a geoestrategia experimenta uma reversao, uma significativa conversao, po is 0 conflito Ocidente/Oriente torna-se urn conflito norte-suI. Golfo Persico, Africa, Oceano indico: apesar do Oriente Medio e Proximo e da questao dos "Euromisseis", 0 espa<;:o militar se desloca e se organiza em torno de oceanos, nas ilhas do Pacifico ou do Atlantico SuI. Conhecemos bern as consequencias deste movi-
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mento: "a guerra das Malvinas", ensaio geral de urn conflito at6mico que utiliza tanto os satelites americanos e sovieticos quanto os submarinos nucleares britanicos e os misseis franceses capazes de eliminar os navios de superfide expostos; mas neste conflito sao igualmente utilizadas as contramedidas eletronicas, os disfarces que superpunham aimagem do radar - otica ou infravermelha - , que ve 0 missil, uma imagem inteiramente criada pelo disfarce, imagem mais importante e atraente do que a imagem real da constru~ao visada, mas ainda assim verossimil para 0 missil inimigo. Logo depois que a primeira fase e concluida, 0 autocomando do missil se instala sobre 0 baricentro do conjunto "imagem disfarce" "imagem construciio" e nada mais resta do que conduzir 0 missil para alem do navio; explorando da melhor maneira possivel 0 espectro do disfarce e afastando-o da constru~ao, realizando todo este processo em fra~oes de segundo. Nao terminaremos jamais de enumerar as armas, a panaplia da guerra-luz, a estetica do campo de batalha eletronico, a utiliza~ao militar de urn espa~o que finalmente foi conquistado pela imagem: imagem eletronica da teledetec~ao, imagem sintetica da cartografia automatica dos sate lites cobrindo a superfide dos continentes em seus incessantes passeios; filmes de tamanho natural em que 0 dia da velocidade das tomadas sucede o dia do tempo astronomico, dia subliminar de uma transparencia incomparavel em que a tecnica expoe por fim 0 mundo inteiro. Verao de 1982. Na opera~ao "paz na Galileia", guerra preventiva realizada no Llbano, Israel utiliza todos os recursos do arsenal dentifico: Grumman "Hawkeye", aviao radar capaz de detectar 259 alvos simultaneamente para serem atingidos pelos ca~a-bombardeiros F 15 e F 16, mas sobretudo constata-se 0 emprego sistematico e massivo, pela primeira vez na historia das batalhas, de automatos teleguiados "Scout" de menos de dois metros de envergadura,joguete miniaturizado digno das "Abelhas de vidro" da fic~ao de Ernst Junger, olho de Tsahal equipado com cameras de TV e sistemas de "imagerie" tecnica sobrevo-
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ando Beirute sitiada proximo a seus telhados ou os quarteiroes palestin os mais expo!!tos, fixando suas imagens sobre os paineis de controle, a mais de cern quilometros por hora, para que os analistas israelenses observem 0 deslocamento das popula~oes ou 0 graftco termico dos veiculos palestinos... Outono de 1982, os Estados Unidos instalam urn alto comando militar do espar,:o e anundam 0 lan~amento proximo de urn satilite de alerta avancado. Primavera de 1983, exatamente no dia 23 de marr,:o, 0 presidente Reagan evoca a instala~ao de urn sistema balistico antimissil utilizando a energia de fusao, arma radioativa refoq:ada, armamento de facho dirigido, canhao de particulas carregadas. Cinco de julho de 1983, no ultimo verao, urn aviao americano KC135, equipado com urn dispositivo laser, abate em pleno voo urn missil Sidewinder que se deslocava a mais de 3 mil quilometros por hora. 1984, "Scan Freeze", imagem paralisada. Paul Virilio 31 de agosto de 1983
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ICONOGRAFIA •
La IUcherclu, Paris, 1983: [o to I Museu Imperial da Guerra: COlOS 2, 3,e 7 Colonel Roy M. Stanley: Photo InulJigma. Sidgwick eJackson,
1982:[0[0, 5,6, 12, 16, 26, 27, 28,29,30,31, 32, 33, 34, 35, S6, 37, 38.39 , 40 e 41 N1U:IJaFQn'fU1., Madrid , 1973: fOlO 14 L'Histomnz ima~ Cerclt: Europet:n du Livre: foto 17 E. Steichen: A mmean Aerial Phorogmphy at llu Front, US Air Service, 191 9: fOlO 8 Signal, 194 1: folO 18 After the Battlr. nil 4 1, 1983: fOlOS 42 e 44 ChazBow)'er: PaJhFindmaJ "hr, Ian Allan, 1977: fo tos23, 24 e25 Mallory el OUar: Archituture ofAggression, Architectural Press, 1973: fotos 19. 20 e 22 David Shermer. La Gmruk ~ Octopus Book, 1973: fOlOS 4 t: 9 CiruMBXA, Cine=: Doc, 1983: fOlO 11 Histori~lkl'Aviat;on, R. Charube. flammarion , 1972: fOlO 15 Cosmos Encydopidie, nil 2, 1970: fOlO 47 Daidalosnll3: fOlO 43 BombtrOfftnsivt, N. Frankland. Purnell 's, 1969: fOLO 21 Culture T~chniqtu. nil 10, 1983: fOLOS 13 t: 45 46. Fotogrnfia d a T erra trdllsmitida atraves do proc~sso d e telefoto-
grafia pelo satelite espaciaJ ~LullarOrbiter~. Sde agoslO de 1967.