Estudos Galego-Brasileiros 2
Francisco Salinas Portugal. Mª do Amparo Tavares Maleval.
A Coruña, 2006 Universidade da Coruña Servizo de Publicacións
Estudos Galego-Brasileiros 2. Edición a cargo de Francisco Salinas Portugal e Mª do Amparo Tavares Maleval. A Coruña. Universidade da Coruña, Servizo de Publicacións. 2006. 450 pp. 17 x 24 cm. Monografías nº 115. Índice: p. 7-9. Depósito legal: C-36/2006 ISBN: 84-9749-180-7.
Edición: Universidade da Coruña. Servizo de Publicacións. http://www.udc.es/publicaciones Co apoio da Embaixada do Brasil en Madrid. © Universidade da Coruña. Distribución: Galicia: CONSORCIO EDITORIAL GALEGO. Estrada da Estación 70-A, 36818, A Portela. Redondela (Pontevedra). Tel. 986 405 051. Fax: 986 404 935. E-mail:
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Índice
PRESENTACIÓN ........................................................................................................ ESTUDOS BRASILEIROS Mª do Amparo Tavares Maleval .................................................................................. Brasilidade plural: a título de apresentação.
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1.- Délia Cambeiro ........................................................................................................ Metamorfose e permanência na figura literária do soter, em a Casca da Serpente, de José J.Veiga.
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2.- Sérgio Nazar David.................................................................................................. Machado de Assis: escritor pessimista?
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3.- Nadiá Paulo Ferreira .............................................................................................. O inferno do homem são os afetos que se enterram na alma.
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4.- Carlinda Fragale Pate Nuñez ................................................................................ A poética do mito no teatro brasileiro.
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5.- Marcus Alexandre Motta ........................................................................................ Sertão, Mentira e Desatino: emergência literária em Guimarães Rosa, Antônio Vieira e Machado de Assis.
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6.- João Cezar de Castro Rocha .................................................................................. É possível reler Teixeira e Sousa? novas perspectivas do romance em países “periféricos”.
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7.- Maria Helena Sansão Fontes .................................................................................. Ressonâncias da tradição satírica galego-portuguesa no moderno cancioneiro popular brasileiro.
157
8.- Maria do Amparo Tavares Maleval ...................................................................... Tradição medieval e “brasilidade” no teatro nordestino. 9.- Flavio García............................................................................................................ Tendências da narrativa curta de Murilo Rubião e Méndez Ferrín percursos estéticos aproximativos.
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10.- José Carlos de Azeredo ........................................................................................ Lugares da língua na crônica de Carlos Drummond de Andrade.
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ESTUDOS GALEGOS Francisco Salinas Portugal .......................................................................................... A maneira de presentación: Lingua e literatura como signos dun proceso.
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1.- Xosé Manuel Sánchez Rei ......................................................................................
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A emerxencia da lingüística galega no século XIX. 2.- Xosé Ramón Freixeiro Mato ..................................................................................
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A emerxencia da conciencia lingüística (galego-portuguesa-brasileira) en Murguía e Castelao. 3.- Goretti Sanmartín Rei ............................................................................................ A contribución do discurso xornalístico de Ramón Vilar Ponte ao proceso de emerxencia do Segundo Renacemento.
297
4.- María Pilar García Negro ...................................................................................... Ensino e realidade: de Sarmiento a Castelao.
325
5.- Francisco Salinas Portugal .................................................................................... A literatura galega e os contornos da identidade.
349
6.- Carme Fernández Pérez-Sanjulián........................................................................ A literatura de viaxes nos contextos de emerxencia literaria: o caso galego.
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7.- Laura Tato Fontaíña................................................................................................ Unha novela de formación: Intres, de Luis Manteiga.
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8.- Carlos Paulo Martínez Pereiro .............................................................................. Da palabra á (cali)grafía en Uxío Novoneyra: Influencias interculturais e afluencias plástico-escriturais».
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CONFERENCIA Abel Barros Baptista .................................................................................................... Esquema de capítulo que escapou a Aristóteles.
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ESTUDOS GALEGO - BRASILEIROS 2
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Presentación
Como continuación do libro Estudos Galego-Brasileiros publicado no Rio de Janeiro en 2003, hoxe damos a lume estes Estudos GalegoBrasileiros 2 que recollen os contributos do grupo de profesores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do grupo da Universaidade da Coruña que foron expostos no Encontro de investigadores que decorreu na Universidade da Coruña en Novembro de 2004. Baixo a epígrafe xeral da Emerxencia lingüística e literaria na Galiza e no Brasil os resultados das investigacións que aquí presentamos insérense en proxectos de colaboración interuniversitaria que, tendo surxido de convocatorias do Ministerio de Educación español e da CAPES do Brasil para a realización de seminarios iniciados en 2003, teñen vocación de continuidade a través de publicacións conxuntas como a presente e doutras colaboracións en publicaións periódicas ou elaboración en teses de doutoramento e de mestrado. Este volume contén tamén o texto do profesor Abel B. Baptista, da Universidade Nova de Lisboa que foi convidado para abrir o Encontro ao que antes fixemos referencia, encontro no que participou tamén o Profesor Vitor M. Aguiar e Silva. Como editores deste libro, queremos agradecer o apoio que deu a esta publicación a Embaixada do Brasil en España, agradecemento que se extende ao Servizo de Publicacións da Universidade da Coruña e á área de Filoloxías Galega e Portuguesa desta mesma Universidade. Mª do Amparo Tavares Maleval (UERJ)
Francisco Salinas Portugal (UDC)
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Parece óbvio a qualquer observador menos desatento que a unidade na diversidade constitui a grande característica do Brasil. Multiplicidade de etnias e culturas, multiplicidade de regionalismos, mas uma língua única, que é o traço definidor por excelência de um povo, abalada em seus usos muito mais pela diferença de classes sociais, pela abissal desigualdade entre os poucos muito ricos e os muitos extremamente pobres, além de pelas língua da globalização, do que pelas diversidades apontadas, etnico-culturais. Os estudos escritos por professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, reunidos neste volume inscrito no âmbito do Projeto de Cooperação Internacional com a Universidade da Corunha, se debruçam sobre variadas facetas da nossa língua literária, da nossa literatura, em perspectivações diferenciadas. Apresentam-se iniciando pelos dois estudos que se propõem, de forma mais direta, pensar a questão da emergência literária, com base em obras fundacionais; em seguida vêm os três estudos que observam o diálogo do presente com o passado na nossa literatura, desde a Antiguidade Clássica à Idade Média e ao Barroco, inseparáveis da constituição do nosso processo cultural; parte-se daí para o enfoque ao Machado crítico do mundo oitocentista, século que em seus fins presenciou a utopia da Canudos de Antônio Conselheiro, do qual o estudo seguinte apresenta duas visões; após essa reflexão sobre o mito soteriológico e sua desconstrução, apresenta-se uma observação do fantástico, através de estudo comparado de obras do século XX, de autor brasileiro e galego; e o estudo final se debruça sobre a nossa língua plural em seus usos, com base no poeta Drummond novecentista-de-todos-os-tempos. Seguindo essa seqüência, apresentamos a seguir a súmula de cada texto, vem seguirmos necessariamente a ordem de apresentação. O estudo de João Cezar de Castro Rocha tematiza a questão do romance fundacional no Brasil. Sob o título “Como e por que reler Teixeira e Sousa ou reescrever a história do romance no Brasil”, propõe uma releitura de dois romances de Teixeira e Sousa, O filho do pescador e As tardes de um pintor. A partir daí, apresenta formas para a reescrita da história da gênese do gênero romance na literatura brasileira com base nas seguintes hipóteses: 1) Associar a gênese do gênero romance com a própria configuração do sistema literário nas circunstâncias históricas brasileiras; 2) Associar a gênese do gênero romance com a ideação do público leitor, tal como pode ser identificada no textos e nos paratextos dos dois romances de
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Teixeira e Sousa acima mencionados; 3) Associar a escrita de romances no Brasil especialmente com a leitura da tradição romanesca, que já era muito rica na literatura européia. Tais hipóteses, frisa o estudioso, apóiam-se na necessidade de ampliar os estudos da história literária brasileira mediante análise comparativa, tendo em vista que a gênese do gênero romance no Brasil somente será melhor compreendida a partir da sua comparação com a gênese do romance em outros contextos culturais. Para tanto, parte do princípio que o escritor brasileiro, desde os primórdios do que se pode denominar “literatura brasileira”, é, antes de tudo, um leitor da tradição ocidental e, por isso mesmo, o esforço de criar o romance no Brasil levou em consideração a história do romance europeu. Daí a necessidade de uma abordagem comparativa. Também Marcus Alexandre Motta trata da questão da emergência literária, desta feita em três autores e momentos da nossa história literária. Em “Sertão, mentira e desatino: a questão da emergência literária em Guimarães Rosa, Antônio Vieira e Machado de Assis”, estabelece uma reflexão sobre a possibilidade de se pensar a institucionalização da Literatura a partir da noção de emergência literária, reconhecendo a herança teórica proveniente de Guimarães Rosa, Antônio Vieira e Machado de Assis, particularmente em Grande Sertão: Veredas, História do Futuro e Memórias Póstumas de Brás Cubas, respectivamente. Tais obras teriam sua síntese nas palavras sertão, mentira e desatino, imbricadas umas nas outras. Destaca-se que são palavras relacionadas à dor e, portanto, ao sofrimento, à violência, a perdas, particularmente quando delas se espera que sustentem as idéias que apresentam. Então, observa que a aptidão dessas três palavras é inventariar o problema que sustenta a Literatura como emergência literária - sem sequer poder sair deste dilema. Assim, se elas tendem a abordar as idéias que apresentam, mostrando-se incapazes de expressá-las completamente, é porque os seus significados primários sempre simulam uma outra Nação da qual descender, criando um tipo de reversão que impõe, como ato de descontinuidade histórica, a aversão ao estatuto histórico da Literatura. Ou seja: tornam a ação literária uma evidência de futuro, ou de arcaico pretérito, que se mantém declarável por não constituir uma herança literária; portanto, exigem uma Nação que se faça por argúcia das perdas. A Antiguidade revisitada, como marca da nossa literatura, será o objeto do estudo de Carlinda Fragale Pate Nuñez, intitulado “A poética do mito no teatro brasileiro”. Nele, parte da constatação de que, a exemplo do que ocorre na dramaturgia internacional, o teatro brasileiro contemporâneo também tem na reatualização dos mitos greco-latinos um fecundo veio temático, recorrentemente explorado. Levando em conta o teatro latino-americano em geral, observa que uma peculiaridade sobressai no repertório das peças teatrais brasileiras: enquanto se pode confirmar uma predileção dos dramaturgos hispanófonos por determinados temas/mitos (e Antígona seria a campeã do protagonismo nos palcos latino-americanos), bem como uma maior recorrência ao trágico, o teatro brasileiro vem explorando uma ampla variedade de heróis e heroínas míticas e tem privilegiado as realizações não-trágicas, nas suas adaptações cênicas dos enredos míticos, mesclando o gênero e a fórmula tradicional da tragédia de modo bastante arrojado. Com base na dramaturgia dos brasileiros Jorge de Andrade, Vinicius de Moraes, dos parceiros Chico Buarque de Hollanda e Paulo Pontes, e pelo ainda relativamente pouco conhecido Carlos Henrique Escobar, demonstra que cada qual, abordando o trágico pelo viés da
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história, da poesia popular, da crítica social ou da filosofia política, ilustra uma faceta desta flexibilidade do gênero, em suas atualizações contemporâneas. Do mesmo modo que a fórmula cômica, em mãos que souberam tirar proveito da tradição perdida de Aristófanes e de Plauto, transformou Guilherme Figueiredo, Augusto Boal e Ariano Suassuna em mestres do gênero. Mas, acentua a autora, o grande teatrólogo da literatura brasileira, trágico e farsesco a um só tempo, é, sem dúvida, Nelson Rodrigues, que se baseou exclusivamente nas psicopatologias familiares e numa incomum capacidade de exploração da teatralidade, para reinventar a tragicidade à brasileira. O passado, desta feita o medieval, também é perscrutado por Maria Helena Sansão Fontes no seu estudo, que trata das “Ressonâncias da tradição satírica galego-portuguesa no moderno Cancioneiro popular brasileiro”. Começa por lembrar as fontes clássicas da sátira medieval, bem como a de outras culturas, como a árabe, tão importante na Península Ibérica a ponto de tornar polêmica a origem da poesia trovadoresca galaico-portuguesa. Passa daí para a caracterização das cantigas de escárnio e maldizer, mostrando a revitalização de alguns dos seus aspectos na moderna música popular brasileira. Parte da evidência de que a tradição satírica, atualizando-se através dos mais variados gêneros e formas poéticas, encontra no Brasil um espaço ideal para se expandir. Isto porque, ressalta a autora, dentro das marcas identitárias do povo brasileiro encontra-se a capacidade de transformar em pilhérias e sátiras os sentimentos diante de situações político-sociais provenientes de desmandos do poder ou condições precárias de sobrevivência. Esse típico bom humor do povo brasileiro, observável sobremaneira nas camadas mais populares, encontra sua expressão veiculada especialmente através da canção popular, seja a marchinha de carnaval do início do século ou a música popular que se imortaliza pela consagração de compositores e intérpretes como representantes das camadas menos favorecidas socialmente. Dentre os mais destacados desses compositores citam-se Noel Rosa, nas décadas de vinte e trinta, e Chico Buarque de Holanda, na atualidade. Através de exemplos dos seus cancioneiros, comprova-se que souberam magistralmente transformar, através do chiste e da sátira, fatos universalmente considerados tragédias, atenuando pelo cômico e o burlesco o peso e o sofrimento causados pelos dramas sociais e pelas mazelas políticas, o que confirma a teoria de André Jolles sobre o chiste, enquanto forma desatadora de nós. Da mesma forma, a Idade Média enquanto arché da nossa literatura é objeto do estudo de Maria do Amparo Tavares Maleval, intitulado “Tradição medieval e ‘brasilidade’ no teatro nordestino”. Nele, é ressaltada a preocupação do teatro do Nordeste do Brasil com a questão da identidade nacional, pela via do regionalismo; lançando mão da cultura popular, coloca em cena personagens que, principalmente através de um discurso coloquial, repleto de provérbios, frases feitas, etc., satirizam o contexto, a ordem social vigente, os valores. Mas o destaque é dado, sobretudo, à constatação de que muitos aspectos caracterizadores do teatro medieval são nele atualizados. Os autos selecionados para análise foram Morte e vida severina: auto de Natal pernambucano, de João Cabral de Melo Neto, e Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, ambos do século XX. Neles são observados aspectos formais, temáticos e contextuais que os relacionam com os Autos medievais, notadamente com as moralidades e as farsas, perpetuadas em língua portuguesa por Gil Vicente. Este, como sabemos considerado o ‘criador’ do
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teatro português, movimentava a cena portuguesa no primeiro terço do século XVI, coincidentemente com os primeiros anos do ‘descobrimento’ do Brasil que, posteriormente, seria cristianizado pelos jesuítas lançando mão, diga-se de passagem, do teatro como recurso didático e dessa forma introduzindo na Terra de Santa Cruz a tradição dos Autos. Os textos brasileiros em foco, além de atualizarem técnicas presentes nas peças de Gil Vicente, e no Auto medieval por extensão, desenvolvem temas a estes muito caros, como a peregrinatio existencial e o julgamento após a morte, com suas recompensas e punições. As relações intertextuais são apontadas tendo por base os seguintes autos vicentinos: da Alma, da Barca do Inferno, do Purgatório e da Glória, além do Auto dos Mistérios da Virgem, mais conhecido como da Mofina Mendes. Enfim, observando o diálogo intertextual operado, são destacados os elementos identificadores e os elementos comuns entre esses textos e contextos postos em confronto, bem como a sua contribuição para a determinação da “brasilidade” dos autos nordestinos. Nadiá Paulo Ferreira, estabelecendo uma ponte entre o Brasil colonial, barroco, e a contemporaneidade, em “O inferno do homem são os afetos que se enterram na alma”, analisa comparativamente, com respaldo nas teorias de Freud e Lacan, o universo dos afetos nos poemas de Gregório de Matos e Guerra e no teatro de Nelson Rodrigues . Partindo da premissa que a literatura produz de forma antecipada um saber, destaca que a descoberta do Inconsciente e a construção de uma série de conceitos, elaborados por Sigmund Freud e retomados por Jacques Lacan, para tentar dar conta da estrutura e do funcionamento da alma (aparelho psíquico para Freud e estrutura subjetiva para Lacan), sistematizaram a via que já vinha sendo traçada pelos artistas em sua experiência de escrita. Demonstra, então, que em Nelson Rodrigues os afetos se tornam o inferno do homem, porque o desejo mesmo sendo enterrado (recalcado) pelo eu (agente do recalque) é desenterrado (retorno do recalcado) pelo sujeito do inconsciente para ser abjurado. Já em Gregório, o turbilhão de afetos se volta contra os desconcertos do mundo e do sexo, revelando, em seus poemas satíricos, o que acontece na Bahia como metonímia do mundo: a mentira, a ambição, a usura, a injustiça, a corrupção e a luxúria. Muito embora em seus poemas eróticos ele confesse haver sucumbido aos apelos da carne e em seus poemas religiosos se mostre arrependido e acossado pelo sentimento de culpa, exortando a complacência do amor divino, o perdão. Sérgio Nazar David, debruçando-se sobre o século XIX, no trabalho “Machado de Assis e as ilusões oitocentista: leitura de ‘Singular ocorrência’, ‘Terpsícore’ e ‘A causa secreta’”, começa por questionar o niilismo que a crítica costuma atribuir a Machado de Assis. Então, observa que na verdade o que este escritor questiona na raiz são os sistemas dominantes do pensamento oitocentista: Romantismo, Liberalismo, Cristianismo, Realismo, Naturalismo, Positivismo. Propõe-se, a partir dessa constatação, mostrar, com o concurso da Psicanálise, através da leitura das obras apontadas, o quanto a singularidade do desejo estará sempre denegada, quando se esperam as promessas do amor enquanto Felicidade (onde nada faltaria), ou quando o que está em foco é o mero bem-estar do corpo dentro do que prevê o sistema de trocas da sociedade capitalista, ou ainda quando se aceita o lugar de vítima dos padrões morais dominantes que impõem um sofrimento sem fim. Délia Cambeiro contrapõe obras de dois momentos do século XX, que retomam um mesmo fato histórico de finais do XIX: a revolucionária comunidade de Canudos e o seu líder.
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Em “Renovação e permanência da figura do soter em A casca da serpente, de José J. Veiga”, começa por frisar a importância documental da obra Os sertões, de Euclides da Cunha, fecundo instrumento de análise e de interpretação da contrastiva realidade brasileira desde sua publicação, em 1902. Destaca que este autor, conferindo grandeza e forma literária à leitura do Brasil, descreve de forma eloqüente a terra, o meio e o homem do sertão; e, representando o Conselheiro com aguda e dramática linguagem, firma extremadas concepções a respeito do líder, do arraial que fundara e de seus seguidores. Por outro lado, José J. Veiga, mesclando História e invenção, reinterpreta, em A casca da serpente, aquela polêmica figura de líder carismático, reelaborando acontecimentos posteriores à morte do fundador de Canudos. A partir daí, a estudiosa observa que a narrativa veiguiana desconstrói a verdade exposta no texto euclidiano, além de, em abrangente leitura do encadeamento histórico-mítico do poder, sugerir a metamorfose do mito do chefe políticoreligioso, ou seja, do soter, do salvador. Dessa forma, analisa em A casca da serpente o processo de dessacralização do soter, processo, portanto, inverso ao de personificação do salvador e do chefe absoluto desenvolvido em Os sertões. Flavio García coteja um autor brasileiro do século XX e um galego da atualidade em “Tendências da narrativa curta de Murilo Rubião e de Méndez Ferrín: percurso estéticos aproximativos”. Começa por lembrar que a produção literária de Murilo Rubião, iniciada em 1947, consagrou-o como contista filiado às estratégias estéticas do Fantástico, destacando-o como um dos raros escritores brasileiros que se enveredaram por tal gênero. Também Méndez Ferrín, dono de uma obra bastante diversificada (narrativa curta, novela, romance, dramaturgia, poesia), iniciada em 1958, com predominância quantitativa e qualitativa na narrativa curta, é considerado representante do gênero Fantástico por muitos críticos galegos. Destaca que esses autores se aproximam tanto pelas temáticas abordadas quanto pelos tratamentos estéticos empregados, inscrevendo-os num mesmo universo que transcende as barreiras do Fantástico e ultrapassa os limites da modernidade. Os espaços, as paisagens representados nas suas narrativas trazem à baila os elementos aparentemente inexplicáveis do mundo pós-moderno, esfacelado e esfacelador. Dessa forma, desconstroem o mundo como ele se apresenta instituído pelo quotidiano apaziguador e o apresentam relativizado e, às vezes, negado por si mesmo. Conclui pela importância de se avaliar o que lhes é singular e o que é universal, bem como o justo lugar que ocupam nas literaturas de seus países. Finalmente, o estudo conclusivo é da autoria de José Carlos de Azeredo, que se debruça sobre uma das marcas da brasilidade: a nossa diversidade, no caso lingüística, a que aludimos de início. Em “Língua e estilo da crônica: o caso Drummond”, analisa as crônicas do poeta novecentista maior, Carlos Drummond de Andrade, destacando-lhes a significativa importância para o conhecimento da diversidade de usos do português do Brasil. Observa inicialmente que Drummond “não teorizou sobre a linguagem literária nem se aplicou à criação de um dialeto literário, como Mário de Andrade; também não subverteu a sintaxe nem se emaranhou no território da inventividade lexical, como fez Guimarães Rosa”. Antes, aproxima-se muito mais de Bandeira pelas táticas experimentalistas de que lança mão; e, “valendo-se da elasticidade conceitual do gênero que chamamos de crônica, adotou o auto-recomendado viés gauche para captar e exprimir o desconcerto da existência”, não raro em diapasão machadiano.
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Comprova, através de exemplos retirados da obra drummondiana, que, enquanto vários escritores buscaram nos usos regionais e caracteristicamente populares o traço de brasilidade de suas linguagens, Drummond textualizou a versatilidade, a mobilidade e a diversidade do universo verbal do país. Nada lhe escapou: o coloquial e o solene, o dialógico e o monológico, o usual e o técnico, o passageiro e o permanente, o antigo e o contemporâneo, o regional e o nacional. Enfim, destaca na obra do autor os múltiplos meios de que se utiliza para verbalizar a sua (a nossa) experiência do mundo, fundados em atenta pesquisa, ilustrando exemplarmente na literatura brasileira a necessidade de “multiplicar as experiências de mundo na multiplicidade de fontes da palavra”.
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METAMORFOSE E PERMANÊNCIA NA FIGURA LITERÁRIA DO SOTER, EM A CASCA DA SERPENTE, DE JOSÉ J.VEIGA. Délia Cambeiro
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METAMORFOSE E PERMANÊNCIA NA FIGURA LITERÁRIA DO SOTER, EM A CASCA DA SERPENTE, DE JOSÉ J.VEIGA.
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Reflexões iniciais. É indiscutível que a obra Os sertões, de Euclides da Cunha, desde sua publicação, em 1902, passou a importante instrumento de análise e de interpretação da realidade brasileira. O texto eternizou-se como libelo denunciador de quadros contrastivos da terra, fascinando os leitores por sua forma eloqüente de descrever a terra, o meio e o homem, conferindo, ainda, grandeza e forma literária à leitura do Brasil. Sem dúvida alguma, o texto valorizou o sertanejo, o homem do interior afastado das transformações da sociedade do litoral. O autor traçou a representação literária do Conselheiro com aguda e dramática linguagem marcada de extremadas concepções a respeito do lider, do arraial que fundara e de seus seguidores. Já o ficcionista J.J.Veiga, mesclando História e invenção, reinterpreta, em A casca da serpente, aquela polêmica figura carismática, reelaborando acontecimentos posteriores à morte do fundador de Canudos. Deve-se principalmente assinalar que a narrativa veiguiana desconstrói a verdade exposta no texto euclidiano, além de, em abrangente leitura do encadeamento histórico-mítico do poder, sugerir a metamorfose do mito do chefe político-religioso, ou seja, o soter, o salvador. Este trabalho, com base em tais sugestões, tendo como guia uma perspectiva comparada, visa a refletir, em A casca da serpente, sobre o processo de dessacralização do soter: portanto, processo inverso ao de personificação do salvador e do chefe absolutos desenvolvido em Os sertões. Não se pode refletir sobre o tema metamorfose e permanência da figura do soter em A casca da serpente, sem um breve olhar crítico a respeito de História e Ficção. A busca inicial será auxiliada por outra não menos provocadora: a questão da intertextualidade. As duas, agindo como questionamentos iniciais, estimulam e provocam no sentido propedêutico, estando brevemente desenvolvidas. Tratadas de forma resumida, buscam através de indagações teóricas iniciais chegar ao problema da metamorfose e da desssacralização por que passa a figura do chefe político-religioso na referida obra. Como se sabe, a escrita literária e a histórica são, aparentemente, duas práticas discursivas diversas. A primeira pertence ao mundo da ficção e concerne às especialidades próprias de obras literárias; a segunda está ligada ao mundo real e diz respeito aos historiadores.
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História e Literatura são vistas como duas disciplinas bem distintas, mas, em realidade, quando se questiona tal divisão, os limites existentes entre essas duas práticas e disciplinas ficam bastante incertos e móveis. Nos meandros das múltiplas vias e traços comuns entre as duas, a narratividade constitui elo fundamental às duas ciências. A História é, sem dúvida, uma forma de narrativa através da qual o historiador organiza e estrutura fatos e acontecimentos do passado, concedendo-lhes um sentido. Quanto à Literatura, especificamente o romance, sabe-se que, na Idade Média européia, foi o primeiro gênero histórico e que seu desenvolvimento moderno está ligado à formação do subgênero romance histórico, cujo sucesso prende-se ao fato de entrelaçar de modo inextrincável referentes reais e elementos imaginados. Repensar o texto literário correlacionado a outras ciências abre ao comparatista novos ângulos de busca, estabelece diferenças e identidades entre a Literatura Comparada e as várias óticas de indagação sobre o homem. A ponte estabelecida entre História e Literatura ganhou destaque com o advento da chamada “Nova História”, que também redimensionou e revalorizou os fundamentos dos estudos históricos. Tal abertura ganhou amplitude com os estudos de Fernand Braudel (Braudel, 1958), o reelaborador dos conceitos tempo e espaço, ao conceber as categorias “temps long” e “temps bref”, proposta integrada à idéia de “durée”, ou duração. Elas atingem sobremaneira o estudo da Literatura, na pesquisa das influências e evolução literárias, ao provocarem a releitura de imobilismo - o tempo longo, ou o da permanência, medido pelo antagonismo da “atemporalidade” subjetiva, da tradição - e mudança - o tempo breve, ou o da evolução do processo histórico e cronológico, o do novo. Nessa mirada, portanto, a figura do soter ganha a possibilidade de ser investigada não só como fenômeno restrito a uma determinada data, ou geografia, mas, em especial, a uma manifestação aparentemente imperceptível, imóvel no tempo, cuja permanência é detectada a cada vez que, na sociedade, surgem contextos favoráveis. Seguir os vestígios da metamorfose e da permanência da figura literária do soter consiste em caminhar nessa enriquecedora seara aberta pelos novos horizontes da pesquisa histórica. A partir dessa proposição e sabendo-se haver a respeito do movimento de Canudos textos de cunho histórico e literário, o estudo de uma obra como A casca da serpente, que entrecruza os dois discursos e, principalmente, subverte o da realidade, em contraponto com Os sertões, precisase considerar que A análise da ficcionalidade na narrativa literária deve levar-se a cabo nos termos de um equilíbrio entre dois extremos evitáveis: por um lado, o (...) imanentista que recusa quaisquer conexões entre o mundo possível da narrativa literária e o mundo real; por outro lado, o (...) que adota uma atitude imediatista, lendo a narrativa literária como reflexo especular do real, projeção não modelizada de eventos e figuras empiricamente existentes (Reis 2001: 372).
Dessa forma, o universo ficcional, segundo o apelo criativo, não inibiria, antes solicitaria “a referência a personalidades e acontecimentos históricos” (Reis 2001: 372), a figuras empiricamente históricas. Assim, figuras atestadas pelos documentos oficias não colocariam em causa
METAMORFOSE E PERMANÊNCIA NA FIGURA LITERÁRIA DO SOTER, EM A CASCA DA SERPENTE, DE JOSÉ J.VEIGA.
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o estatuto ontológico da ficção, [pois] essas entidades correspondem às chamadas modalidades mistas de existência: a ficção incorpora certas propriedades históricas reconhecíves nessas entidades (a vitória dos cristãos em covadonga, no Eurico, a derrota de Napoleão em Waterloo, em La Chartreuse de Parme de Sthendal, etc.) e utiliza essas propriedades como factor de verosimilhança, mas contando, para isso, com a cultura do leitor (Reis 2001: 372).
Acrescente-se, ainda, a seguinte concepção de R. Ingarden: As personagens que ‘aparecem’ nas obras literárias não têm só nome, p. ex., como ‘C. J. César’, (...). ‘Ricardo II’, etc. , mas devem, em certo sentido, ‘ser’ também essas personagens outrora assim chamadas e realmente existentes. [...] Devem, portanto, ser em primeiro lugar ‘reproduções’ das pessoas (coisas, acontecimentos) outrora existentes e activas, mas ao mesmo tempo devem representar aquilo que reproduzem (Ingardem 1973: 266).
Partindo-se de tais afirmativas relacionadas ao mundo real, deve-se assinalar o papel criador desenvolvido pela alteração da realidade factual ou histórica ao longo da narrativa literária e a força geradora de sentido “dessa veracidade empírica e instituída, impondo-se, pois, com tal alteração, uma espécie de ‘verdade’ interna da ficção” (Ingardem 1973: 373). Graças à verdade interna do literário, encontram-se, em especial na obra veiguiana em estudo, palavras que desdizem a realidade histórica instituída por vários documentos oficiais, além da realidade eternizada em Os sertões, de Euclides da Cunha. Se a morte de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, fora desde a sua ocorrência atestada publicamente, tais palavras, responsáveis pela alteração da realidade factual, explicam bem o que vem a ser coerência e verdade internas da ficção: No dia 2 de outubro de 1897 (...) quando os chefes remanescentes decidiram pela retirada levando o Conselheiro ferido e doente, esses dois [Bernabé e Beatinho] se ofereceram para simular a rendição dos derradeiros defensores da praça. (...) Quando deixaram Canudos no fim da tarde de 2 de outubro, eles não sabiam para onde ir. A preocupação imediata era não deixar que o Conselheiro fosse apanhado pelos federais, nem morto. Não foi uma decisão fácil; o Conselheiro estava molengo, quase não falava, passava o mais do tempo dormitando, e devia ter febre (Veiga 1989: 5-13).
Como se vê, o mundo possível criado na dimensão ficcional de A casca da serpente renova a história verdadeira da morte do líder de Canudos. A trama reproduz elementos caracterizadores da personagem central, reafirma a importância de seu papel como guia políticoreligioso; por isso, querem salvá-lo, e, assim, a narrativa estabelece ligação, embora tranformando-a, entre acontecimentos e coisas existentes no mundo real. Nesse contexto, vão-se tecendo processos reais e simbólicos que supõem “uma ordenação do real e a busca da coerência através de uma correlação de elementos e do estabelecimento de relações entre os dados” (Leenhardt & Pesavento 1998: 12). Na parte concernente à História, encontra-se “uma produção (...) circunscrita pelos dados da passeidade (as fontes), a preocupação com a pesquisa documental e os critérios de cientificidade do método” (Leenardt & Pesavento 1998: 12).
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Nesse jogo de ficção e realidade, depreende-se que a “fala do historiador (...) salva o passado para o presente. No caso da literatura, o fato (re)criado/inventado acontece realmente para a voz narrativa, mas a sua autoridade como discurso se constrói a partir da proximidade que o leitor pode sentir com a relação aos fatos distantes” (Leenardt & Pesavento 1998: 13). Também não se pode esquecer que os dois discursos trabalham com princípios afins, tais como convicção, verossimilhança, credibilidade e autoridade da fala. Quanto à controvertida questão sobre narrativa histórica e literária, discute-se que a histórica sugere haver limites à livre interpretação, já a literária aponta para a sua abertura. Convém assinalar, portanto, o fato de a coerência do texto ser construída por intermédio da leitura e que tal coerência é traçada pela significância que lhe dá o leitor. Sem dúvida, tanto a narrativa histórica quanto a literária desenvolvem estratégias particulares, que se impõem como formas de percepção e de leitura do real, conduzidas pelas linhas da veracidade e da verossimilhaça, entrelaçadas de tal forma que a História passa a ser o fomento da ficção. A originalidade de José J.Veiga está em tomar como paradigma a tradição documental a respeito da verdade sobre o Conselheiro, intercomunicando-a a partir da inovação/renovação, princípio aparentemente oposto dessa verdade documental, mas que por ironia é elemento produtor de originalidade. A tradição histórica é também superada, sem prejuízos, entretanto, para o real instituído, ela é mostrada de uma outra forma no novo, mesmo que trate do mesmo motivo. Nessa trama intertextual, as interações dos discursos histórico e literário fazem a obra veiguiana adquirir um estatuto de revelação poética, por sua escrita/reescrita literária e de representação, como também por seus diversos filamentos tecidos/destecidos com relação à História. Quanto ao texto de Os sertões, muito já se discutiu a respeito de como o narrador depositou na figura central do lider uma farta gama de interpretações consideradas por alguns críticos preconceituosas, devido à linguagem empregada para descrevê-lo física, moral, psicológica e socialmente. Entre esses, cita-se Roberto Ventura, que, nos traços de Ataliba Nogueira, fez uma profunda investigação do assunto. O início do século XX apresentou o místico sertanejo através da focalização dada por Euclides da Cunha, fortemente influenciado pelo pensamento positivista. Em boa parte, o discurso do engenheiro, segundo a posição dos críticos anteriormente mencionados, estava eivado de considerações que, em A casca da serpente, são propostas de forma revigorada, resultante do tom irônico utilizado para retraçar e renovar parodisticamente os rumos de Canudos, de seus habitantes e, em especial, a figura de seu fundador. O estudo, ou mesmo a simples leitura dos textos euclidiano e veiguiano, evidencia que essas duas obras têm “do ponto de vista genético, das fontes, conluio com a intertextualidade” (Jenny 1979: 6). Tal afirmativa, no que toca a A casca da serpente, não a desmerece, não a invalida em importância, nem a torna cliché, pois, como diz Laurent Jenny, “a obra literária entra sempre numa relação de realização, de transformação ou de transgressão”, com a que a precedeu. Para o mesmo autor, trata-se de um processo criativo, independente e renovador e, “é em grande parte essa relação que a define” como obra literária. (Jenny 1979: 5). Também Harold Bloom, condensando crítica formal e crítica das fontes, confirma em outros termos tal visão, ao conceber que o autor criativo produz uma obra que, ao invés de repetir, apenas lembra a obra antecedente, dando-se um afastamento ou rompimento com os rastros do “pai” intertextual (Bloom 1991: passim). Com um pensamento não condicionado à dicotômica idéia
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de ruptura, aberto à intertextualidade como aquisição e memória cultural e artística, Mário de Andrade afirmou, em “A escrava que não é Isaura: Não imitamos Rimbaud. Nós desenvolvemos Rimbaud. Estudamos a lição Rimbaud” (Jobim 2002: 163-171). Como se vê, a literatura especializada confirma a concepção de H. Bloom, sublinhando que relação ou relações intertextuais são aquelas encontradas em determinado texto e outros que ele cita, re-escreve, absorve, prolonga, também geralmente transforma, mantendo porém o elo compreensível e demonstrável da relação entre eles. Mesmo fugindo de certa forma aos objetivos do trabalho, comenta-se, em rápido parêntesis, serem numerosos os exemplos de intertexto na literatura mundial de todos os tempos, tais como, Ecatommiti, de Giambattista Giraldi Cinzio. Uma das novelas constantes dessa obra, cujo título é “Moro di Venezia”, serviu de inspiração a Shakespeare para sua tragédia Otelo. Também “Romeu e Julieta”, os infelizes amantes separados pela morte, percorreram várias páginas de releitura e re-interpretação. Em Ovídio, mais precisamente em Metamorfose, está uma ponta da linha narrativa, que, já bastante transformada pelo inglês A. Broocke, serve de base para Shakespeare, que, mais uma vez, retoma a idéia. O possível fio intertextual estaria, ainda, em uma lenda da Idade Média, re-escrita por criativo narrador do 500 italiano, Masuccio Salernitano, que modificou os nomes dos dois jovens. As linhas passam por Luigi Da Porto, um nobre de Vicenza, que mudou os nomes para Romeo e Giulietta, imaginando passar-se a trama da novela em Verona. Da mesma forma, Da Porto imaginou serem mortalmente rivais duas famílias citadas por Dante Alighieri, na Divina Commedia. Mas o labirinto intertextual não pára por aqui, passando por Lope de Vega, mas foi Matteo Bandello que enriqueceu a fábula e complicou a intriga. O fértil palimpsesto estende-se ao século XIX, com a atmosfera de tragédia amorosa descrita em Amor de perdição, de C. Castelo Branco, e a duas óperas: uma de N.Zingarelli e outra de C. Gounod. Quanto a Os sertões, tem-se outra reescrita criativa em A guerra do fim do mundo, de Vargas Llosa. Também Euclides da Cunha parece ter-se inspirado, apesar de várias polêmicas sobre o assunto, no livro Facundo: Civilização e barbárie, do escritor Domingos. F. Sarmiento, embora tal inspiração seja rebatida por alguns. Em A casca da serpente, evidencia-se o fato de o autor não seguir o estilo hiperbólico, nem abusar dos instigantes oxímoros de Euclides da Cunha, dentre esses, cita-se o mais famoso: Hércules-Quasímodo. J.J.Veiga apenas partiu da temática do famoso livro, retomando o tema em outra forma de representação. Os sertões seriam o pré-texto, o pretexto, ou tecnicamente denominado o hipotexto instigador do processo mimético e renovador, Nesse lúdico impulso textual “a primeira condição da intertextualidade é que as obras se dêem por inacabadas, isto é, que permitam e peçam para ser prosseguidas” (Perrone-Moisés 1979: 217). Trata-se de uma concepção dinâmica do texto literário, propiciadora da intertextualidade, e que remetem ainda aos conceitos dialogismo e pluridiscursividade de M.Bakhtine. Não concebendo o texto sob uma perspectiva monológica, mas interativa, para esse crítico, os textos literários acolhem contribuições e discursos de origens diversas. Outros pesquisadores também alargam concepções relativas ao problema, citando-se Gérard Genette, que, entre um número bastante significativo de nomes, propõem terminologias mais abrangentes, tais como, transtextualidade. Tal termo trabalharia com o sentido de transcendência textual, sugerindo tratar-se de “tudo o que o põe em relação, manifesta ou secreta, com outros textos” (Genette 1982: 7-14).
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A reflexão crítica aqui encaminhada, para uma leitura de A casca da serpente, aponta para uma obra que dialoga, em sugestivo e polifônico processo de transformação, com Os sertões. Ao longo da estrutura do romance, insinua-se uma velada referência mítica ao soter, cuja figura literária está em constante evolução, em simbólica perda das cascas da serpente. Tentativa de leitura dos símbolos. Além de provocar debate acadêmico e discussão epistemológica para o estudo dos discursos, A casca da serpente propicia instigante leitura simbólica. A obra já traz em seu título um dado interessante, remetendo ao próprio processo de transmutação, de metamorfose por que passa a serpente. Indaga-se, porém, por que a escolha da palavra “serpente”, como determinante de “A casca”, nesse sintagma que nomeia um livro cuja ação se relaciona a Canudos e a Antônio Conselheiro? Por que, sobretudo, “casca”, que logo remete à pele que cai e se modifica, atingindo a serpente, chegando a outro estágio em que o mesmo da essência se mantém, mas, ao mesmo tempo, já é outro? Em leitura simbólica, a serpente aparece em movimento de contraposição ascendente e descendente no caduceu de Mercúrio, insinuando forças em equilíbrio, tais como a serpente domada, a força sublimada e a selvagem, representando saúde e doença. Também designa o mundo abissal, a exemplo das serpentes marinhas, ou ainda quando rasteja nos desvãos da terra, marcando a linha das tentações humanas. Ela acena para a persistência do inferior e para planos superiores que se conjugam coesos. Ela é tanto veneno, como antídoto: mata e cura conjuntamente, segundo a sua utilização. Seguir a serpente conduz à vida ou à perdição. Assim foi com o destino do líder e de seus seguidores na Canudos inaugural. A cobra está ligada ao tema bíblico da tentação de Adão e Eva, além de bastante popularizada pelos bestiários da Idade Média sob a forma também do fabuloso e do encantatório dragão mítico. Tais símbolos e representações ctônicas são igualmente correntes, com as devidas modificações e transmutações, na literatura clássica, entre elas citam-se: Quimera, Esfinges, Górgonas e tantas outras do imaginário coletivo. A troca da casca é símbolo da mutação e, para Filon de Alexandria, a perda da pele impediria que a serpente envelhecesse, continuando a mesma em outra. Ela se conecta, ainda, com o arquétipo da besta do Apocalipse, da voracidade feroz, das repulsões instintivas, fonte imaginária dos terrores e das trevas, é um elemento que aponta para o processo de decadência e regeneração nomeado nos textos sagrados hebraicos como Nachash e encarna a astúcia, a esperteza. Todas essas significações dão-se a ler, em certa medida, na rede da escrita de J.J Veiga, flagrando o processo por que passa o Conselheiro, personagem central do romance. Durante a leitura da obra, nota-se que o líder sertanejo se transmuta, é destronado, perde a mítica aura sagrada de soter, de chefe político-religioso. Numa visão relativa ao sagrado, em conseqüência desse processo, dilui-se a sua majestas, entendida como a grandeza de sua figura, também perde “o chamado totalmente outro, o ganz anderes - enfim, o alienum, para sintetizar toda uma terminologia do sagrado proposta por R. Otto, designativa de um objeto sem definição objetiva nem clara” (Cambeiro 1999: 185). Como já comentado, o enredo do livro, sob o fio História e Ficção, dá continuidade aos fatos sucedidos nos últimos dias de Canudos, mesclando a fantasia ao factual. Em A casca da serpente, “a guerra acabara, a cidade fora destruída, mas o líder, ao inverso do fato histórico - portanto, já desconstruindo, invertendo o consignado - não morrera: havia fugido antes
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de os bombardeios destruírem sua cidade” (Cambeiro 2002 b: 405-412). Quando se inicia a narrativa, o Conselheiro e um pequeno grupo de seguidores partem em retirada, a caminho de outra região, fugindo pela única saída ainda livre: a Várzea da Ema. A astúcia utilizada para prosseguirem fora um plano montado pelos jagunços, a fim de as autoridades acreditarem que o Conselheiro estava morto. Dessa forma, o cadáver desenterrado, degolado, fotografado e reconhecido oficialmente era de outra pessoa. Nas sinuosidades da ficção, passo a passo, o escritor entrelaça a fantasia à realidade. Reescreve o fato histórico e real da morte do líder, já que no romance Antônio Conselheiro sai do arraial ferido, doente, enfraquecido, não sendo capaz de caminhar, mas ainda vivo. Os outros sobreviventes o carregaram até à serra da Canabrava, onde fazem uma parada, para descanso e assistência ao doente. A obra retoma o dia 2 de outubro de 1897, quando dois servidores do chefe comunicam ao general Artur Oscar que “os derradeiros defensores do arraial queriam se render” (Veiga 1989: 6). Entretanto, isso era um ardil, uma vez que já haviam tudo combinado e esperavam que lhes perguntassem pelo Conselheiro, o que de fato ocorreu no mundo ficcional. Ao ser indagado sobre o Conselheiro, Beatinho “carregou mais na tristeza das feições, e respondeu: ‘O nosso bom Conselheiro já está no céu’ ”(Veiga 1989: 7). O que era verdade histórica, porém, aqui, passa a ser farsa, mentira, cristalizando o próprio fingir - o fingere - transformador da verdade em ficção. Entretanto, “o corpo do bárbaro agitador” (Veiga 1989: 11) era de um outro seguidor. Para que se acreditasse que aquele era, de verdade - embora de mentira! o Conselheiro, seus seguidores (...) tiveram de arranjar um cadáver da mesma estatura e compleição que ele, o que não foi difícil por haver na praça muitos corpos de pessoas mortas nas últimas semanas e mal enterradas em covas rasas. O cadáver foi vestido de novo com um camisolão de zuarte do Conselheiro e reenterrado em um casebre da periferia, para ser exumado depois pelos federais se o plano vingasse. E vingou. (...) A comissão de oficiais aceitou que aquele era o cadáver do Conselheiro (Veiga 1989: 8).
Desse jogo de ser e parecer, similar à natureza da serpente, vai-se desencadeando a trama que, aos poucos, despe e veste o líder com outras roupagens, outra casca em atmosfera carnavalizadora, metamorfoseando, transfigurando camaleonicamente a sua representatividade histórica. Até o cadáver do desconhecido, após a troca de vestimentas, parecia mesmo ser aquele que, em verdade, não era. Observe-se que, no livro, as trocas, as peles, as cascas da serpente são largadas e reutilizadas e recicladas, em novas dimensões e ciclos. O desconhecido, após a mudança de vestimentas, ou peles, parecia tratar-se mesmo (...) do famigerado e bárbaro Antônio Vicente Mendes Maciel, vulgo Antônio Conselheiro, como afirma a ata então redigida, e transcrita em parte pelo repórter Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha na correspondência que mandou para o seu jornal, e que faz parte do livro que publicou sobre a campanha de Canudos cinco anos depois. A divulgação dessa ata, a publicação de fotografias do cadáver na imprensa de todo o país, e a exibição da cabeça em algumas cidades, tudo isso alcançou o resultado desejado de convencer a opinião pública de que o fascínora que havia derrotado três expedições militares e quase fizera o mesmo com a quarta, estava finalmente morto, para desagravo e glória das forças da ordem e do progresso (Veiga 1989: 13).
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Como se vê, são tecidas e emaranhadas, passo a passo, a verdade histórica e a ficcional, sempre com dados críticos velados ou explícitos, como o final da citação anterior, enfatizando o nome do “repórter”, as forças de ordem e progresso da bandeira, entrevendo-se no texto o irônico desmoronamento do emblema nacional. No polifônico intertexto, a falsa morte do Conselheiro é sustentada no plano ficcional com o artifício da alusão ao fato histórico, eternizado tanto na ata oficial, como na obra de Euclides da Cunha e tem-se, assim, dois elementos que se interpenetram para dar sentido ao romance. A morte verdadeira do Conselheiro firmada em ata oficial ao tempo do conflito engendram a verossimilhança da trama ficcional, que aquela outra diz ser morte fictícia, pois o Conselheiro não morrera. O registro real está desmentido pela invenção; dessa forma, o que foi atestado, de fato, passa a não ser mais verdadeiro: o Conselheiro não morrera como parecia. Tudo fora possível pela astúcia da imaginação dos seguidores, demonstrando também, segundo o narrador, “que trabalho feito com capricho não deixa rabo” (Veiga 1989: 5). Foi no instante em que o Conselheiro expressa o desejo de se encontrar com o Anticristo que seus seguidores decidiram dá-lo definitivamente como morto e passam a sua identidade para o corpo de um desconhecido. A idéia de salvar o Conselheiro foi de Baianinho Gonçalves: - E se a gente achar um jeito de espalhar para os federais que o Conselheiro já morreu, com perdão do nosso bom Jesus? - sugeriu Baianinho Gonçalves. Fez-se demorado silêncio, enquanto o Beatinho apalpava a testa do Conselheiro e perguntava se ele tinha ouvido a proposta do comandante Baianinho. O Conselheiro demorou a falar, e quando falou, com dificuldade, foi para dizer que tinha ouvido, mas não queria opinar para não parecer que estava forçando. Ele meditara muito sobre a possibilidade de uma retirada mais para o norte; mas reconhecia que estava com seu tempo de vida praticamente no fim; e sabia que seus filhos já andavam muito sacrificados. (...) Até que o Baianinho indagou: - E o nosso bom Conselheiro? O que tenciona fazer? - Fico para ver de perto o Anticristo (Veiga 1989: 6-13).
Compreende-se que a obra de J.J.Veiga parte da figura literária e histórica atestada, conhecida e reconhecida de Antônio Conselheiro para recriar uma outra que, depois de esvaziada e desprovida dos antigos elementos identificadores, não representa ninguém em especial, podendo ser encarnada por qualquer um. Tornou-se “uma personagem dotada da máscara, da casca, da persona que se cola à pele de todos ou de ninguém. No fluxo do esvaziamento da sua representatividade e posterior remontagem de uma nova identidade, é sugerido o aspecto proteiforme do mito” (Cambeiro 2002 a: 59), proposta por Pierre Brunel, em Le mythe de la metamorphose (Brunel 1974: passim). De fato, a partir de tal prisma, cada um é capaz de ser o que é e o que foi, de verdade, além de o que parece ser: no caso, o Conselheiro recriado nas lentes de J.J.Veiga. O processo de metamorfose engendrará, também, a desmitificação de Antônio Conselheiro como chefe religioso, sendo profanada a “casca” do sacer nele contida. Esse processo se evidencia em uma cena irreverente, acontecida quando o grupo, ao levar o Conselheiro serra acima, pára, um momento, porque
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(...) o Conselheiro, que ia no banguê carregado por dois homens, ergue a mão, pedindo que parassem. Bernabé (...) indagou solícito: - O bom Jesus quer se aliviar? - Também. Primeiro vamos rezar nossa ladainha. Já deve ser hora da Ave-maria, e não vejo motivo para quebrar o costume. Arriem o banguê e se ajoelhem (Veiga 1989: 13).
A partir dessa cena - em que se misturam atos orgânicos e espirituais - a aura mítica/mitificada do Conselheiro começa, fortemente, a descascar e, aos poucos, mostra-o como um homem comum, sujeito a todas as funções fisiológicas. Tal passagem o dessacraliza, ao mesmo tempo em que une duas instâncias: o divino da reza e o grotesco das imagens coprológicas, similares aos textos de François Rabelais, eivados de grotescas funções - urina, fezes e flatos. O escritor trabalha ludicamente signos e visões consignadas e introduz efetivamente o jogo carnavalesco instalado no texto desde as primeiras páginas. Parodiando o discurso eleito - e paródia aqui se lê na acepção de uma crítica paralela à História oficial, embora existam outros conceitos para o termo - vai invertendo, pervertendo o perfil aurático do Conselheiro e de tudo aquilo que gravita em torno dele. Configura-lhe traços da estrutura carnavalesca, segundo a conhecida teoria do russo Mikhail Bakhtin, desenvolvida no livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, acerca da obra de François Rabelais (Bakhtin 1999: passim). A cena do carnaval sempre instaura o espaço da não-fronteira, da ruptura do instituído, desconstruindo posições hierárquicas e, não raro, dando voz a camadas marginais, ao colocar polifonicamente o mundo “à rebours”, ou seja, às avessas. Na estrutura do carnaval há, também, uma transformação incessante, pois o carnaval é signo da consciência protéica do inacabamento do universo. Reafirma-se, mais uma vez, o que vem ocorrendo desde a abertura do livro: a destronização, o destronamento carnavalesco da personagem-chave. O texto é “exímio em desmistificar/desmitificar o profeta-líder, em quebrar o determinismo lógico da ação real. O líder religioso, ao invés de ter suas íntimas necessidades veladas, a fim de ser imaginado como um ser desprovido de imposições fisiológicas vulgarizadoras e grotescas, aparece focalizado por esse ângulo, principalmente em momentos de ligação com o sagrado das rezas e das ladainhas”(Cambeiro 1999: 205).
Com isso, ao inverso de Euclides da Cunha, J.J.Veiga dá um tom de ironia, de humor grotesco e irreverente ao intocável bom Jesus que quer-se aliviar somente após cumprir com os hábitos relativos ao sagrado. O Santo Guia, ponte de ligação entre o céu e a terra, participa das horas canônicas, das Vésperas - precisamente as seis horas da tarde - quando a estrela Vésper costuma aparecer. Portanto, encontra-se regido pelo ritmo do tempo do sagrado, mas já desvelando, descascando seu mistério como sacer. Rezar e aliviar-se fazem parte, agora, da nova concepção de mundo do antigo mentor político-religioso. Pode-se, ainda, retirar um sentido mítico das cenas escatológicas - do genitivo grego skor, significando “excremento” - pois, simbolicamente, o material orgânico associa-se ao processo alquímico da transformação. Em vários autores, encontra-se a interpretação dos excrementos como receptáculo de forças biológicas regeneradoras dos seres, representando
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uma potência em forma de resíduo humano que, ao ser excretada, pode ser recuperada, tranformada, de alguma maneira. O excremento liga-se à noção de pecado e àquilo que em ritual é devorado ou eliminado. Tal noção é reconfirmada pela alquimia, que relaciona as fezes com o ouro, pois “a nigredo e a obtenção do aurum philosophicum são os dois extremos da obra de transmutação” (Cirlot 1984: 247). Assim sendo, o Conselheiro, como herói civilizador e, portanto, político-religioso, lança as fezes como alquímico batismo transformador do local que será, mais tarde, uma nova Canudos. Em J. J.Veiga, a partir da fuga, a teofania consagradora do lugar “aberto (...) comunicante com o Alto” (Eliade s.d.: 40) foi provocada pela cena do rezar e depois “se aliviar”. Como se lê, o Conselheiro primeiro reza, depois se libera do que trazia do antigo sacer nas fezes que elimina, inaugurando um espaço “outro”. Consciente ou inconsciente, ele “provocou um sinal (...) para indicar a sacralidade do lugar” (Eliade s.d.: 40). Nessa passagem, de modo irônico, dá-se a irrupção do sagrado que tem por resultado destacar um território do meio envolvente e torná-lo diferente. Ao invés de fundar a cidade a partir do modelo inicial, em que as coletividades primitivas perseguiam um animal feroz e no lugar onde o sacrificavam elevavam o santuário, o Conselheiro - ou já a serpente sagrada ganhando casca nova repete a cosmogonia a partir de si mesmo. Desse modo, traçou uma nova orientação, decidiu uma outra conduta e os sinais teofânicos foram provocados por restos de matéria daquele que encarnava o sacer, sugerindo sua forma pessoal renovada para a consagração do espaço. A obra se encaminha sempre para a metamorfose do mito, por meio de gradual e completa transformação/transfiguração da figura eternizada pela tradição popular e literária do Conselheiro, simbolizado pela serpente em processo de mutação. Como resultado, a experiência do sagrado vai-se modificando, na medida em que chefe e comunidade religiosa restantes também evoluem por força das imposições históricas acontecendo na verossimilhança do texto. A nova situação em que o Conselheiro se encontra no mundo provocará a revisão do comportamento pessoal e do sagrado, processando-se um sugestivo movimento alquímico, tanto em seu interior e exterior, quanto em seus “filhos”. A prova da nova visão que se formava no grupo fica demonstrada na ordem dada pelo Conselheiro de arriarem o banguê e de se ajoelharem para rezar. Apesar de “ser hora da Avemaria”, os seguidores achavam que a reza “naquele momento parecia fora de propósito, assunto de maluco, com perdão do pensamento” (Veiga 1989: 13). Após tomarem conhecimento da verdade histórica e não mais protegidos pelo omphalos de Canudos, a verdade religiosa manifestada antigamente em preces e sermões começava a ser racionalmente criticada pelo grupo. Frente à nova situação que se formava, os seguidores já interferem direta ou indireta nas ordens do líder. As reações do Santo Guia são bastante reveladoras de sua nova maneira de ser, já que seguiam uma nova marcha da história do grupo. Quanto à praticidade das rezas, dessacralizando o tempo já afetado pela situação crítica por que passavam, ousavase mesmo refletir sobre a função social do sagrado. Diz, então, o narrador onisciente que, Se ladainha adiantasse, eles não estariam naquela avaria. Foi isso mais ou menos que Joaquim Norberto cochichou para cabo Nestor, que também entrara muito em dúvida quanto à oportunidade ou conveniência de se ajoelharem (...). Quando viu que estava sozinho na vontade de ficar de fora, persignou-se desajeitado e tratou de se ajoelhar (...).
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Vendo todos ajoelhados e em atitude mais ou menos contrita - só Joaquim Norberto parecia meio contrariado, e cabo Norberto que tentava esconder um sorriso de zombaria, detalhes que sería melhor fingir que não se percebia - o Conselheiro levantou a mão direita num gesto de abençoamento, e disse: _ Dada a nossa pressa em seguir marcha, hoje só vamos rezar três Padre-nossos, com as Avemarias e a Salve-rainha correspondentes, e mais um Credo pra reforçar (Veiga 1989: 14).
Bernabé, um dos fugitivos, foi designado para puxar a reza, mas, como não as sabia de cor, olhou para outro companheiro que começou a rezar e os outros continuaram. O novo Conselheiro em formação, permanecendo de olhos fechados, já manifestando seu cambiamento em novos estágios, não percebeu a troca ou fingiu que não tinha percebido, às vezes fechava os olhos para deixar os homens mais à vontade. (...) Não convinha agravar os embaraços naturais com rigores de protocolo, talvez fosse com esse pensamento que o Conselheiro, antes tão exigente em questões de disciplina e cerimonial, agora preferisse fechar os olhos (Veiga 1989: 15).
Em nova situação coprológica, de contexto rabelaisiano, sempre dessacralizando o sagrado, tem-se, no trecho abaixo, outro dado desconstrutor, desconcertante (Cambeiro 1999: 208), quando terminadas as orações o Conselheiro falou: _ Agora aquele outro assunto. Quero ir no mato. Isso era desconcertante, porque nenhum daqueles retirantes tinham ainda ajutorado o Conselheiro nessa parte (...). Não entendendo o embaraço deles, o Conselheiro chapou: _ Estão acanhados por quê? Eu só quero aliviar a bexiga e a barriga, e não preciso de
ajutório para isso. Basta me levarem para trás daquela pedra ali, e me deixarem lá. Vamos, molezas! (...) Bela escolta eu arranjei. Se demorarem, eu faço aqui mesmo no banguê, e vocês vão ter que aviar outro (Veiga 1989: 17). Em Canudos, as atitudes do Conselheiro eram manifestações obtidas devido à estreita relação que mantinha com o sagrado, mas agora, durante o êxodo forçado, receberia inspirações em momentos nada canônicos, que o coloca em situações contrastantes às que se consolidaram no pré-texto de Os sertões. Com isso, sua antiga condição de líder político-religioso continua sendo profanada de forma irônica e cômica. Constata-se nessa passagem a mistura satírica, saturando o discurso com a comparação com Jesus Cristo, no instante de grotesca revelação: Antes de retomarem o caminho, o Conselheiro pediu a atenção do bando com o gesto de levantar a mão, o que lhe dava aquele ar de Jesus Cristo de gravura que as beatas tanto apreciavam nos bons tempos de Canudos, e explicou que enquanto se aliviava esteve também meditando, e nesse meditar recebeu inspiração alvissareira, talvez mesmo salvadora. Era para eles se instalarem por algum tempo no alto da serra (...) Podemos ficar lá rezando e descansando até os Anticristos irem embora. Enquanto isso, resolvemos com calma para onde ir em definitivo. O que é que vocês acham? (Veiga 1989: 17).
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J. J.Veiga inventa uma espécie de inspiração alvissareira, uma outra maneira irreverente, irônica e dessacralizadora de instaurar-se a conexão entre o profeta e o mundo sobrenatural. Aqui, a inspiração perde a carga numinosa tornando-se a henosis - ou a união com o divino - uma situação de grotesco e de humor. As linhas do sagrado e do profano ganham outros traçados que merecem ser comentados, sublinhando mais e mais o poder inovador do tecer intertextual do escritor goiano. Do sagrado e do profano O teólogo Rudolf Otto, em sua obra O sagrado, ao refletir sobre o meio direto de expressão do numinoso, tenta mostrar como ele se exprime e manifesta, como se propaga e se transmite de alma para alma. Diz que o sagrado é provocado no espírito, só podendo ser sugerido, excitado, despertado. Isso “não se faz por meio de simples palavras, mas da mesma forma como se transmitem estados de alma. Para o teólogo, onde sopra o espírito, basta um estímulo, um incitamento externo, para se apresentar e despertar o sentimento direto de ligação com o sagrado”(Cambeiro 1999: 40-61). Declara, ainda, quanto à manifestação direta com o numinoso, que “o mistério (...) da adivinhação, da intuição religiosa, (...) da manifestação do sagrado (...) só será [atingido] pela via da contemplação, em que nossa alma se abre e abandona à pura intuição do objeto” (Otto 1992: 211). Nessa visão, o Conselheiro, segundo exemplo anterior, passa pela primeira experiência de um numen após a saída de Canudos. O sinal ligador com o Divino dá-se, exatamente, no momento escatológico da excreção corporal. Através dela, o Conselheiro revigora poderes do espírito e a antiga posição de profeta - ou, para Rudolf Otto, de kahin, forma primitiva de profeta -; entretanto, em situação absolutamente inesperada. No entanto, o que despertaria o sentimento esplendoroso de mysterium e de fascinans, mistério e fascínio provocados pelo toque do sagrado, assume um caráter cômico, destronando a categoria e o sentimento do sublime. Tal efeito é conseguido pelo espaço e pela situação em que a intuição se efetivou para o Conselheiro: no instante de se aliviar entre as pedras do caminho. Foi meditando e se aliviando que ele teve a intuição pura do objeto, classificando a experiência de uma inspiração alvissareira e salvadora - passagem que, segundo o código, dessacraliza a comunicação com o numen e, por isso, o caráter de chefe absoluto mostrado em Os sertões recebe um sutil tratamento em A casca da serpente. Confirmando que “a palavra bem manejada, e dita na hora certa, tem poderes a bem dizer mágicos” (Veiga 1989: 13), tem-se o comentário dos seguidores, a respeito do que dissera o Conselheiro, sobre o lugar de abrigo na serra. Quanto a isso, Bernabé e cabo Nestor que começavam a fazer boa liga, se olharam e se entenderam. Os outros, talvez por estarem ainda muito abalados com a derrota, parece que não prestaram atenção na fala do Conselheiro, e por isso não notaram a mudança no modo de falar usado agora por ele. Antes ele resolvia tudo sozinho e comunicava a decisão aos seguidores; agora falava no plural, nós resolvemos depois para onde ir. Assim ficava melhor, claro: muitas cabeças pensando e se consultando alcançavam melhor resultado. A dúvida era se aquilo seria uma mudança de verdade ou efeito passageiro do descalabro em que se achavam (Veiga 1989: 17)
A resolução não emanava mais do logocentrismo do chefe. À medida que a narrativa evolui, dessacralizando a força mítica do Conselheiro, as mutações da serpente vão-se marcando, ele vai-se humanizando e irmanando aos companheiros de fé. Os antigos seguidores
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mais espertos já começavam a sentir alguma mudança no novo/velho Conselheiro. Além disso, sentiam-se também libertos de antigos hábitos e maneiras de se conduzirem, quando falavam com o Conselheiro ou mesmo entre eles. O “nós”, demonstrativo de próxima decisão coletiva, emitido pelo chefe, provocou uma mudança nas maneiras dos seguidores que, naquele instante, Sabendo enfim para onde ir e o que fazer nos próximos dias, ou semanas, ou meses, tudo dependendo do que Deus mandasse, (...) sentiram um relaxamento repentino, que mudou completamente o comportamento de cada um; sentiram vontade de (...) falar, de cantar, de assoviar, de rir ao menor pretexto ou à toa mesmo, sem se incomodar com a presença do Conselheiro, era a primeira vez que acontecia isso de ninguém ficar cheio de dedos ou calado perto do chefe, e não era por desrespeito, era resultado do clima de cordialidade e despreocupação que envolveu o bando de uma hora para outra e contagiou até o próprio chefe (...) (Veiga 1989: 18).
As vozes tornavam-se, agora, igualitárias, já descentralizada a fala hegemônica, exercida pelo chefe. Partindo em direção do alto da serra pensavam em comer, na defesa, nos abrigos e na arrumação da casa que, no entendimento do Conselheiro, guardamos dentro de nós. A casa - a morada do ser - terá outra arquitetura, de acordo com a metamorfose do mundo particular e coletivo, que também mudava/mutava. Enquanto se empenhavam em tais afazeres, “o Conselheiro se fortalecia para traçar o futuro” (Veiga 1989: 18-24). Nesse novo projeto de História do guia sertanejo - concebido por J. J.Veiga - não se encontram, porém, muitos resquícios do antigo. Em meio à dúvida do que significaria a arrumação de uma casa, que, aliás, ainda não existia, os “filhos” do Conselheiro já não conseguiram mais entender a “mania que o Conselheiro tinha de pôr máscara nas palavras; devia ser resultado do muito ler a Bíblia” (Veiga 1989: 26). Eles já questionavam, quanto à utilidade prática de tudo aquilo. O líder punha máscaras na palavra e, como se sabe, a máscara é um dos constantes signos do carnaval. Através dela, oculta-se a face do indivíduo, auxiliando a ocultar sua identidade, possibilitando liberar o que se reprimiu. A máscara afasta da cena ou encobre o ser do homem, em sua irreversibilidade, ela se constitui símbolo do jogo vital que, ao encobrir as palavras, encobre a verdade do pensamento. Não é por nada que o narrador de A casca da serpente já diz, em outra passagem, que a palavra bem manejada é eficaz. O discurso de J. J.Veiga é permanente jogo de máscaras, de significados mascarados e desmascarados do ser e parecer, não sendo gratuita a alusão à Bíblia, pois as Escrituras preservam em si o duplo da linguagem: o latente e o manifesto, o esotérico e o exotérico, no seu encadeamento de alegorias e símbolos. Mesmo que os conselheiristas considerem - agora - o hábito de muito ler a Bíblia um exagero, não perdiam o elo que os prendia ao Santo Guia. Ao contrário, esse sentimento expressado sugere - em breve reflexão política em que são enaltecimentos valores pessoais do carismático Conselheiro - o mito do chefe religador e do herói fundador. Os seguidores já começavam a compreender que Tudo que cai no exagero desanda. Mas não podiam negar que a presença do Conselheiro era uma espécie de grude forte, que segurava todos; sem ele nem estariam ali. Era ele quem
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traçava o rumo, dizia o que era acertado fazer, o que era perigoso. Sem ele o bando desfacelava, tantos seriam os desatinos. Ele tinha um jeito de influir nas pessoas para elas o respeitarem de vontade própria, sem que ele precisasse falar grosso. Falar grosso aliás não resolve emperrações, a pessoa que recebe o ronco obedece se não tem outro jeito, mas fica de sobreaviso; e na primeira vaza em que pega o outro em quebra, vai à forra com juros. Grito impõe obediência, mas não impõe respeito (Veiga 1989: 26).
Evidenciam-se na prática quotidiana do grupo reflexão e questionamento e as pessoas que continuaram “grudadas” ao Conselheiro tomam consciência das mudanças nele ocorridas. Tem-se, por exemplo, o fato de, aos poucos, não andar mais tão apegado a citações da Bíblia, falava uma linguagem mais singela, mais comum, mais humana. O Conselheiro criado por J. J.Veiga reestruturou sua sede de Paraíso, tencionando “evitar os erros de Canudos” (Veiga 1989: 27). Na transposição dos argumentos apresentados aos fiéis, discutem-se, de forma irônica, temas polêmicos como o da justiça divina e a humana, instâncias às quais ele tivera acesso, quando era chefe político-religioso de Canudos. Reunido com os fiéis, o novo Conselheiro começou a repensar a sua nova cidade de Deus. Sem esquecer ou abolir Deus, ela deveria estar voltada para os problemas do homem e da Terra em práxis política. Querendo equilibrar em sua nova utopia o que é de Deus e o que é do homem, o diálogo se estende ao plano coletivo e individual por considerações teológicas sobre a graça, o determinismo, a ira de Deus e, como já se referiu, à justiça divina e à humana. O Conselheiro diz ser preciso formar outro arraial mais voltado para as necessidades das pessoas, não se perdendo tanto tempo com rezas. No novo arraial ia-se rezar, claro, mas não como em Canudos. As rezas agora iam ser entoadas em agradecimento e regozijo, não mais para pleitear graças impossíveis. Porque de duas uma, falou o Conselheiro: ou o castigo é merecido, e decorre de alguma lei superior que não foi observada, e nesse caso nem Deus pode abrir exceção; ou é injusto. Mas considerar um castigo injusto é blasfêmia do castigado; pois não sabe ele que Deus é justo? Então é perda de tempo rezar pedindo abertura de buracos no pano da lei. Se uma pessoa ou um povo tem direito a um benefício, não será ofensa a Deus, ou no mínimo impertinência, estar cutucando ele com rezas para ele não se esquecer de deferir um direito? Então ele é relaxado com suas obrigações? É, esse assunto das rezas precisa ser muito bem pensado (Veiga 1989: 27).
De fato, o Conselheiro de J. J.Veiga não se parece com o descrito no século XIX, percorrendo o sertão para anunciar que o Final estava próximo, falando do céu e também do inferno, da morada do Cão, ou de como o Demônio podia manifestar-se em novidades de aparência inofensiva. Os homens que o escutam, em A casca da serpente, tomaram outras luzes, já ousavam questionar, da mesma forma que o chefe; em Os sertões escutavam-no em silêncio, intrigados, atemorizados, comovidos. J. J.Veiga estabelece a metamorfose do mito do chefe e a própria mudança da face da utopia, pelo veio irônico que dessacraliza o sacer. Virando ao contrário a figura de Antônio Conselheiro, historicamente conhecido, A casca da serpente traz a visão renovada do tema da falsa morte utilizada como recurso mimético para dar continuidade à saga do Conselheiro -
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agora, arauto de uma outra verdade. A relação transformadora entre os componentes da comunidade revitaliza, também, o simbolismo da morte como ritual iniciático, como rito de passagem, instâncias do sagrado que desempenham um papel considerável no mito do herói, do chefe. Segundo Mircea Eliade (Eliade, s.d.: passim), a morte - para a condição profana seguida da renascença - para o mundo sagrado - transforma o objeto sacrificado, fazendo-o nascer uma segunda vez. Pelo sacrifício chega-se a uma condição sobre-humana e entre os frutos desejados dessa iniciação encontra-se o conhecimento sagrado - ou seja, a sabedoria, em outro estágio da vida pessoal e coletiva. A falsa morte do Conselheiro, na obra veiguiana, é um verdadeiro quadro iniciático, um profundo e ambígüo jogo em que está sugerida a metamorfose do mito. Ser simbolicamente enterrado, seguido de um simbólico renascimento, equivale a uma cosmogonia, a engendrar um mundo. A morte iniciática sugere o simbolismo lunar da transformação pelo velar e desvelar constantes do satélite que, em suas múltiplas formas, representa as fases ou faces da preparação à nova vida espiritual. De acordo com tal perspectiva, para o homem religioso, a vida, em sua totalidade, é suscetível de ser santificada, desenrolando-se como existência humana e, ao mesmo tempo, participando de uma vida trans-humana, relacionada ao Cosmos ou aos Deuses. Para esse homem, seu corpo, seus órgãos e suas “experiências fisiológicas, assim como seus gestos tiveram uma significação religiosa, já que todos os comportamentos foram fundados pelos Deuses ou pelos Heróis Civilizadores, in illo tempore” (Eliade s.d. : 175-177). Estes fundaram não apenas as várias formas de trabalhos como “as maneiras dos homens se alimentarem, copularem [e] até os gestos aparentemente sem importância” (Eliade s.d. : 175-177), entre elas, uma posição especial de urinar, por exemplo, como provável gesto repetitivo de algum Deus ou Herói. Todo o corpo do homem religioso comporta símbolos, de sorte que seus órgãos e as suas funções específicas foram valorizadas, religiosamente, pela aproximação com as diversas regiões e fenômenos cósmicos. Foi, então, a partir de “um sistema de correspondências que fizeram a assimilação do ventre à gruta, dos intestinos aos labirintos, do olho ao Sol, dos cabelos às ervas, etc.” (Eliade s.d.: 175-177). Tais assimilações - ou, como explica Mircea Eliade (Eliade s.d.: 175-177), homologações antropomórficas - interessam sobretudo na medida em que são as cifras das diversas situações existenciais. No caso do Conselheiro, em processo de renovação, não se trata mais de um simples ato fisiológico, mas: ou de “uma outra coisa” (Otto 1992: 210-211), como diz Rudolf Otto, ou um “rito místico, uma transfiguração da experiência carnal” (Eliade s.d.: 180), no entender de Mircea Eliade. Tais homologações antropomórficas e, sobretudo, a sacramentação de um ato puramente fisiológico, podem ser transformados em ritual, conseguindo-se, por isso, repetir um ato primordial. O novo Conselheiro teve sua experiência fisiológica também santificada, apesar de se apresentar como algo sem sentido e já vulgarizado frente a uma sociedade industrial, como a do século XX. Ainda segundo Mircea Eliade, tal sacralização só “conserva (...) o seu valor sugestivo porque nos revela uma experiência que já não é accessível numa sociedade dessacralizada” (Eliade s.d.: 180). O fato marcante de se aliviar e ter uma inspiração encerra um claro esvaziamento pela utilização do humor desconstrutor, entretanto, ironicamente, a transformação por que passa atinge a forma de comunicação com o divino e ao inverso do que possa sugerir não a fragmenta, solidifica-a mais ainda, para a verdade do intertexto.
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Em J. J.Veiga, as fórmulas imagéticas da morte, do aliviar e do templo significam a passagem de uma existência vivida por antigos e gastos condicionamentos a um novo modo de ser, não condicionado, sugerindo a liberdade. Com seu processo iniciático, o Conselheiro renova Canudos e os que o seguem. Os simbolismos de passagem, no plano existencial, significam que o homem ainda não está acabado, devendo chegar à plenitude e/ou ao conhecimento por uma série de ritos ou iniciações sucessivas - na prática, estágios evolutivos e transformadores do espírito e da personalidade. Ainda em leitura simbólica, o caminho e a marcha na existência do homem - religioso ou não - são possíveis de ser transfigurados em valores sagrados. É bem conhecida tal simbologia, podendo representar o caminho da vida e a marcha da peregrinação, em direção de um novo centro, remetendo igualmente para uma situação existencial de procura, de busca. Nela se inclui a existência do Conselheiro que abandonou a situação estável e estática do mundo em que vivia, antes de qualquer chamamento, para se consagrar à caminhada para achar o seu centro. A transformação por que passou o líder de Canudos implicou, interiormente, na mutação do regime ontológico. O Conselheiro, do ponto de vista da passagem, não sendo um homem acabado e indo ao encontro de seu centro, precisou morrer, sair de seu espaço, a fim de renascer para uma vida superior. Ele só começou a ser completo depois de ultrapassar as barreiras de seu antigo mundo, de cair no caos da descoberta, na paradoxal experiência de morte e renascimento simbólicos, transfigurada ficcionalmente por J. J.Veiga. A morte iniciática - sugerida na falsa morte - instala o caos e propicia outra cosmogonia, ou seja, o nascimento de um novo mundo. O Conselheiro, com certeza, penetrou nessa geografia. Talvez por isso tenha sido em Euclides da Cunha um Santo endemoniado de temperamento vesânico. Esse caos psíquico é o sinal de que o homem profano se encontra perto da dissolução e que uma personalidade outra está prestes a nascer. Ao experimentar, no início de Canudos, um caminho de passagem que lhe abrisse o limiar do profano para o sagrado, assumiu uma outra situação existencial, renovando sua casa, seu templo e tempo, construindo/reconstruindo o mundo. O autêntico trajeto histórico por ele empreendido pode ser acompanhado desde a hégira pelo sertão, até a chegada a Canudos, esforçando-se por encontrar o ponto do sagrado. O encontro culmina com sua morte verdadeira, durante o ataque do exército da República, conforme relatam os fatos. Toda essa transformação histórica - mas que para o chefe religioso, visava ao sagrado - vem apontada com olhar racional por Euclides da Cunha, criativo, ficcional por J. J.Veiga. Em J. J.Veiga, encontram-se registros desse tempo histórico e sagrado, antes da primeira Canudos, já prenúncios daquele que se transformaria no soter e, sob influência da majestas de sua figura, despertaria o fascinans et tremendum, ou o fascínio e o horror, em todos os que dele se aproximassem: Deve ter sido um desses ventos prestimosos o que o levou uma vez, há muito tempo, a um lugar apartado, num desvão da serra de Ariranga, quase na divisa com Pernambuco. Ele vagava pelos sertões, evitando lugares freqüentados, para esconder a vergonha de um desastre pessoal (...). Ele ainda não tinha trinta anos, e ainda não era o Antônio Conselheiro, mas Antônio Mendes Maciel simplesmente, um moço sem rumo e sem projeto. Não tinha pressa porque não tinha amanhã, ninguém o esperava em parte alguma, ninguém sentia falta dele. Naquele momento seu único objetivo era chegar ao alto da serra
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(...)[onde] encontrou umas pessoas morando. (...) Aquele homem quase maltrapilho, aparência de mendigo, de rejeitado do mundo, tinha a presença e o olhar de criatura superior. Ele desarrumava as pessoas, mas em nenhum mau sentido. Quem lhe olhasse firme, sentia um tremor interno que atraía para ele. E em pouco tempo de convívio, mesmo silencioso, implantou-se nos moradores a crença de que aquele homem tão despossuído e tão fraco de corpo tinha dentro uma força e uma qualidade que tocavam a todos, tanto que ninguém se animava a tomar liberdades com ele (Veiga 1989: 55-56).
De fato, após desejar e atingir por meio da hégira histórica a experiência do sagrado, o Conselheiro tornou-se um outro, apresentado de forma singular no trecho acima. Apesar de os dois escritores - respeitando-se suas identidades e diferenças - marcarem a passagem do peregrino pelos caminhos histórico e sagrado, apenas em José J. Veiga o Santo Guia continua sua dinâmica peregrinação transformadora. Esses momentos, plenos de perquirição interior, sem dúvida, causaram nos dois autores forte impressão, a ponto de tal passagem encontrada no hipotexto, ou seja, em Os sertões, ser selecionada e reescrita com tintas mais psicológicas. A gradual metamorfose Desde a primeira transformação iniciática, em Ariranga, o escritor goiano elabora a figura do Conselheiro de forma ambígua, embasando-a, portanto, na bivalência do sagrado; por isso, o espanto, a indefinição, a falta de história, de um passado definidor. Encoberto pelo mistério sobre sua pessoa, o peregrino talvez nem soubesse “que estava escorraçando os seus demônios” (Veiga 1989: 58). Como sugere o texto, os pobres moradores do alto da serra em que se escondeu do mundo não tinham discernido, até sua descida, se aquela criatura era um santo, se tinha poderes, ou pactuara com o demo. Acabaram concluindo que pacto não, o jeito era de santo, mesmo. Santo, enviado, demônio ou qualquer outro tipo de poder foi logo captado pelas crianças. Elas começaram a lhe pedir bênção. Foi aí que começou a transformação que o levaria de simples recusante da sociedade a pregador de uma nova era - conta o narrador. Em A casca da serpente, o móvel da vida do pregador está caracterizado tanto no valor social, pois ele recusou a sociedade, quanto religioso, na medida em que, ao descer pelas trilhas da caatinga, já se sentia o escolhido por forças superiores. Tais forças compactuavam, também, na visão do narrador, com a composição da figura de Antônio Conselheiro como líder político-religioso. Elas o invocaram para falar aos desprotegidos e consolá-los com a descrição dos castigos que já estavam providenciados para os grandes e poderosos. Assim, J. J.Veiga retoma em flash-back o primeiro renascimento daquele que seria o Santo Guia - cuja história verídica vem rememorada na ficção reitera o sentido de organizador social e de salvador de almas, ao compor/recompor o perfil de Antônio Conselheiro. A partir da falsa morte inventada por Beatinho, a obra constrói um renascimento interior e exterior do antigo líder e, com a mudança gradativa à total, o autor atualizou o processo de metamorfose do mito. A aparência física do líder sofreu expressiva renovação, com seu novo visual, manifestado no corpo já pelo asseio dos cabelos e a mudança das roupas, ele instiga os seguidores, que acreditam ver nisso um sinal: Outro episódio que deixou os homens embasbacados foi o banho. Em Canudos nunca se soube que o Conselheiro tomasse banho. (...) alguns falavam no cheirum que ele exalava;
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e parece que ele mesmo falou na igreja contra o banho das mulheres. Pois não é que agora, (...) o Conselheiro quis saber se estavam tomando banho na bacia da mina. Os homens se olharam apreensivos (...) . - Pois eu vou experimentar essa bacia. Estou precisando limpar o ceroto. Também sou filho de Deus - disse o velho. (...) ele tinha entrado para a irmandade dos asseados. Seria bom ou ruim? Era cedo para saber. (...) tinha apenas tomado um banho, Baianinho repetiu que não era agouro, era apenas um aviso (...) (Veiga 1989: 27-29).
Mais uma vez ironizando carnavalescamente o até então ocultado e desconhecido corpo daquele justo com palavras do tipo “ceroto” e “cheirum”, o texto aprofunda o correspondente grotesco dessacralizador daquele homem, cada vez mais em processo de metamorfose. O ridículo e vulgar da situação gera o riso bem rabelaisiano, fora da esfera social e da literatura considerada elevada, ultrapassando os cânones. Dá-se, então, o travestimento da gramática narrativa, descongelando signos majestáticos encontrados em Euclides da Cunha. De fato, todos se admiravam da curiosidade do chefe com o próprio corpo, espantaram-se, muito mais, quando declarou acabarem-se daquele momento em diante “bênçãos e ajoelhações. Não queria mais nem de manhã cedo bodes velhos ajoelhando, babando a sua mão. Bastava somente um bom dia, um suscrito” (Veiga 1989: 30-31). Outra pertinente inspiração veio juntar-se ao nós coletivo, já anunciado e que acabou solenemente com o poder centralizador do Conselheiro. Inverteu-se de tal modo o contexto logocentrista, hegemônico, que para o novo Conselheiro as coisas andaram tortas em Canudos por causa da praxe de somente ele dar a última palavra. Radicalizando a transformação, ele queria experimentar a idéia que lhe veio como inspiração de discutir os assuntos por meio de uma reunião com os filhos, onde se opinaria e se votaria, sendo adotada a decisão da maioria. Todos se entreolhavam, na tentativa de saber o que o companheiro deduzia daquela mudança do chefe. Antes ele decidia sozinho e dava ordens, mas, na medida em que perdia a antiga casca, o Conselheiro percebeu que dali em diante ele deveria “ser mais mestre do que chefe” (Veiga 1989: 48). A nova assembléia democrática, sugerida por ele, foi testada com a proposição de se procurar um outro sítio para a comunidade. O Conselheiro não queria voltar para Canudos, pois, como afirmou, o arraial fora pisado pelos cascos do Anticristo, havia sofrido profanação: secara, morrera. Apesar da abertura concedida através da mudança, ele seria considerado ainda por seus seguidores como um verdadeiro chefe, pois sabia ver com tanta clareza a “arrumação complicada das coisas” (Veiga 1989: 48). Essa superioridade se evidencia na vontade subalterna e simples que seus homens sentiam de ele ensinar-lhes, deixá-los ainda escorados na sua sabedoria. Aquele era o momento de decidirem o novo caminho, induzidos pelo impulso interior de mudança. A obra veiguiana trabalha, como se vê, o problema da corrupção e da permanência, encaminhando o questionamento para a metamorfose do guia de Canudos. A cidade como espaço da salvação sofreu significativa mudança: o que era/foi não devia ser mais, a modificação do fundador implicou radical reorganização estrutural da nova cidade santa. Apesar de ele não querer mais olhar para trás e pensar só em continuar, deixou que alguns dos homens fossem ver como ficara o arraial. Lá encontrarão o menino Dasdor e uma sobrinha do Conselheiro, que ele não conhecia, mas passou a chamá-lo de tio. O grupo salvo da guerra cresce na medida em que se deslocava, sem pressa, queimando
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etapas passo a passo e de forma imperceptível. A serpente ia mais e mais mudando de pele, sendo outra, embora a mesma. Alguns já estavam até pensando no que deveriam mudar para entrarem nos novos tempos. O trabalho de transformação incluía um clima de felicidade, uma atmosfera de celebração a ser consumada com o assentamento da nova urbs, sede da festa carnavalizadora, cujas formas populares têm os olhos voltados para o futuro e apresentam a sua vitória sobre o passado. Marigarda, fictícia sobrinha do Conselheiro, única mulher sobrevivente da luta, segundo J. J. Veiga, é levada para onde se encontravam os outros e informada de que o líder, ao contrário do divulgado, estava vivo - ou melhor, não morrera. Os companheiros sabiam da necessidade de prepararem-lhe o espírito para o encontro com o Conselheiro, já que ela o tinha como morto. O momento do reconhecimento do Conselheiro por Marigarda deu-se quando ele cochilava: (...) Não havia dúvida, era o Conselheiro. E vivo, olhe aí: o peito e a barba arfando com a respiração. Como podia ser aquilo? O Conselheiro não tinha morrido no fim de setembro, diziam que ferido por um pedaço de bomba quando passava da igreja para o santuário durante um bombardeio? E o corpo não tinha sido desenterrado depois pelos federais, para terem certeza que era ele mesmo, tanto que fizeram um documento contando isso? Então ele ressuscitou? E a cabeça, que os federais cortaram e levaram para comprovar? Onde ele achou outra para ressuscitar? É o Conselheiro. Não tem erro (Veiga 1989: 69-70).
Ao acordar, o reconhecimento é mútuo, pois ele chega à conclusão de que ela era sua sobrinha. Assim, ele que não conversava com mulher frente à frente - e observe-se a mudança - considerando esssas criaturas como portadoras de malefícios para os homens, agora, queria falar com “Marigarda, mulher até puxada pra bonita, por conseguinte uma das que devia mais evitar”(Veiga 1989: 72). Esse e tantos exemplos marcam a gradual e significativa modificação de comportamento sofrida pelo Conselheiro. Deve-se aludir ao mito sebástico, sugerido na volta ou no renascimento do Conselheiro, também encontrados nas quadras da Canudos inicial, ligado, sem dúvida, ao do soberano que não morreu e se encontra desaparecido, podendo regressar a qualquer momento. Aproximando-se, portanto, de um deus da vegetação, pois morre e ressuscita periodicamente. Dom Sebastião, como se sabe, no imaginário cultural português encarnou esse mito que se dinamiza, agora, em outras roupagens, na morte e renascimento do Conselheiro, de maneira arquetípica. Mesmo assumindo outras faces veladas, o líder continua sendo ele mesmo na identidade e um outro miticamente. Ele retorna por meio do renascimento ficcional veiguiano, que eterniza o Conselheiro como um deus ou um herói, que voltou sebasticamente para refazer e dar sentido a um mundo tornado caos pelo Anticristo República. Seja o Conselheiro, seja Dom Sebastião ou qualquer outra figura histórica, a obra de J. J.Veiga mostra a dinamização de desejos universais guardados no imaginário coletivo e deflagrados por um momento crítico da cultura. Assim, não pode causar um certo espanto “o fato de aparecer, no nordeste brasileiro, ecos de um movimento ocorrido no século XVI, em Portugal. Basta apenas ressaltar que sebastianismo e/ou conselheirismo são emergências de origem mais profunda, religando-se ao
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mito do salvador, do soter (Cambeiro 1999: 199-232). Molda-se tanto no rei Dom Sabastião, quanto no Conselheiro uma fase, uma forma de messianismo, já reavivado com as Trovas do sapateiro Bandara, indo ao encontro da imaginação portuguesa da decadência, da crise civilizacional. O conselheirismo, originado em condições sociais semelhantes às do sebastianismo, encarnou na figura do Conselheiro o salvador de uma coletividade que o seguiu até sua morte. Completa-se, como se vê, o elo existente entre tempo longo, o da essência do mito, o da atemporalidade, e tempo breve, relativo à fragmentação, à cronologia e ao particular. Reforçando a importância do chefe salvador, tem-se vários epítetos disseminados em A casca da serpente, entre eles: “nosso bom Conselheiro”, “o Santo Guia”, “o/meu bom Jesus”, “o bom Jesus Conselheiro”, “Senhor nosso Conselheiro”, o/meu bom Conselheiro”, “o bom homem”, “o santinho”, “Guia insubstituível”, “Sôr Conselheiro”, “o bom velho”, “o chefe” (Veiga 1989: passim). Porém, após a chegada da sobrinha Marigarda, todos esses tratamentos dispensados ao Conselheiro evoluem para Tio Antônio, utilizado pelos que chegavam à “crescente Nova Canudos” (Veiga 1989: 100). Como explica seu fundador, Canudos não acabara. Acabara ali, mas iria nascer de novo em outro lugar. Para ele, a crescente Nova Canudos era uma página virada. O arraial do passado, antigo abrigo de espera do Final, onde seria vencido o Anticristo, agora, “tinha seu plano traçado no chão” (Veiga 1989: 89). Tal sintagma realiza a ambigüidade semântica entre cidade do homem - em oposição a Cidade de Deus, imaginada por Santo Agostinho - e cidade mal estruturada, traçada à última hora e conforme a necessidade, sem obedecer a uma arquitetura. O texto de José J. Veiga parodia o de Euclides da Cunha. Aquele escritor, ao determinar o tipo de organização do espaço, ironiza a Nova Canudos, também como urbs monstruosa, que deveria ser remodelada (Cambeiro 1999: 199-232). A idéia parece nova, mas os traços são os mesmos, pois, na realidade, como se pode ver, a geografia primitiva, sem planejamento urbano da Nova Canudos parece com o antigo. No plano da nova cidade, tudo tinha de ser traçado no chão, mas o plano arquitetônico não evoluíra grande coisa, com “uma casinhola melhorzinha aqui, conforme os conhecimentos e o gosto, ranchos precários, ruas tortas, largas numa ponta, estreitas na outra, uma praça aqui pra respeitar uma pedereira, e nesse sentido foi crescendo (...)” (Veiga 1989: 89). Mas de onde viria e “onde seria esse mundo novo”? (Veiga 1989: 55). Apesar das mudanças que vão ocorrendo, a cidade nasceu como a platônica: de um sentimento nostálgico, guardado no espírito de seu fundador, durante sua primeira experiência mística na serra da Ariranga, ainda com trinta anos. Agora, após a fuga fictícia, parece que o Conselheiro ouviu, de fato, “os ventos prestimosos (...) [que] sabem o oculto, sopram sugestões, tilintam chaves, quando a pessoa está perdida” (Veiga 1989: 55). O mundo novo dos conselheiristas teria o nome do lugar que testemunhou a deflagração do sagrado no futuro chefe. Aquele lugar e aquele tempo em que esteve contemplando a natureza, rezando, conversando com ele mesmo, ficaram na lembrança como a quadra mais serena de sua vida; e sempre que sentia necessidade de esquecer um pouco as pressões acabrunhantes do momento, ia buscar alívio na lembrança daquele tempo. Tendo ouvido de um menino (...) que o nome do lugar era Itatimundé guardou-o como o nome de um paraíso entrevisto, nome revigorante que ele murmurava para si mesmo em momentos de abatimento.
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Ora, se só o nome já era um conforto, não poderia o lugar vir a ser uma das cidades de refúgio de que fala o Livro Sagrado? Vamos então para Itatimundé, fazer de lá um refúgio de pecadores que estejam dispostos a romper com o pecado, uma cidade, um reino onde quem entrar se limpa automaticamente. (Veiga 1989: 60). Ele mantém o mesmo desejo de querer um local sagrado, um refúgio, porém, adaptado ao momento presente e às necessidades, unindo o tempo longo fermentador da utopia com o tempo longo das necessidades imediatas, proporcionadoras das mudanças sociais. Como se depreende, sua práxis está mais próxima à da utopia do princípio esperança, de que fala Ernst Bloch (Bloch, 1991: passim), do que à descrita em Os sertões. A experiência vivida no sagrado conservou-se em profundidade; entretanto, ele e os seguidores mudaram o que tinham de mudar. Tal metamorfose no corpo físico e psicológico sugere a recomendação feita aos filhos: tinham muito que fazer na arrumação da casa que guardamos dentro de nós - a locância do ser. Para que o lado de fora fique formoso, “é preciso arrumar primeiro o lado de dentro” (Veiga 1989: 25). Em verdade, tanto a casa/corpo como a cidade que refundou passam, ao final da obra, por reveladoras/desveladoras arrumações. Acordando para o problema das rezas, com outro enfoque religador da participação coletiva e da descoberta do corpo, o Conselheiro não parou de evoluir, junto com a sua cidade. Preocupava-se com a morte, para que não chegasse antes de ver tudo arrumado. Tal arrumação leva à de grande significação profana: Estava já com setenta anos, e a saúde falhando. Não teria mais muito tempo de vida. Ele gostaria de deixar as obras adiantadas, num ponto que permitisse a outros acabá-las sem grandes sacrifícios. (...) e quem era ele, Antônio Vicente Mendes Maciel, para reclamar? Falar nisso, era tempo também de ir largando a casca de Conselheiro (...). A verdade verdadeira é que o Antônio Vicente Mendes Maciel de hoje não correspondia mais ao de Canudos, isso qualquer sobrevivente da guerra podia perceber. Era preciso soltar a casca antiga. (...) Não convinha ele andar para aqui para ali orientando e fiscalizando vestido de camisolão de zuarte, como em Canudos, e mandou Bernabé localizar um alfaiate para fazer uns dois parelhos de roupa para ele se apresentar como todo mundo e não chamar atenção. E resolveu que já era tempo de ceifar aquela barba, que não tinha mais razão de ser, já que o dono dela, para todos os efeitos, estava enterrado em Canudos. Vida nova, cara e estampa novas. E também a maneira de falar com as pessoas: acabar com o distanciamento, que gera mais distanciamento. _ Ó, senhor Bernabé! Você mesmo serve Dasdor. Vá caçar alguém com prática de rapar barba comprida (Veiga 1989: 89-102).
Várias vezes assinalado no trabalho, o livro de J. J.Veiga propõe um grande questionamento sobre as óticas da verdade, sobretudo a da vida e a da obra, sempre em constante jogo de verdade e mentira. Radicalizando a mudança, o líder torna-se também mais tolerante, afastando-se a casca construída por José J. Veiga daquela eternizada no retrato realista de Euclides da Cunha. O Conselheiro, agora, aproxima-se do chefe moderno, do político que submete sua aparência às exigências da mídia, dos meios de comunicação, para perpetuar sua casa. O corpo - o cadáver - do Conselheiro, metonímia do corpo social e o da própria cidade emergente, mostram-se semelhantes no processo das reformas:
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Assim, o chefe muda e a cidade muda, tudo cresce e, já modernizado, ou por acaso, ou pelos fios do telégrafo da caatinga, a notícia de que um outro Canudos se formava correu (...) começou a soprar gente para lá. O arraial não ficou ignorado do mundo. Por algum processo misterioso de comunicação capilar os centros urbanos de perto e de longe ficaram sabendo (Veiga 1989: 88).
A sociedade começou a crescer e atraiu estrangeiros que, ironicamente, “não carregavam armas” (Veiga 1989: 139), ajudando, trazendo técnicas desconhecidas. Para o lugar, começou a ir de repente muita gente, de “todos os lugares do mundo. Será que viramos pousada?” pensou o Conselheiro (Veiga 1989: 139). No sistema das transmutações, tornava-se local do pouso, da parada existencial do peregrino. Entretanto, já não é mais Nova Canudos e sim Concorrência de Itatimundé - materialização da esperança anunciada em sonho ao chefe quando, uma noite, um rei lhe falou em uma árvore. J.J.Veiga, retoma, mais uma vez, o veio do fantástico, que percorre sua produção, desde Os cavalinhos de Platipanto. Alás, esse filão se anuncia no próprio jogo de ser e parecer, instaurando a dúvida - espaço por excelência do fantástico. No sonho de Antônio Conselheiro, um homem vestido de rei ou imperador mostrava-lhe uma árvore de casca grossa escamosa, que dava flores amarelas em forma de espiga e, como fruta, uma vagem achatada, meio curva, de um palmo de comprimento mais ou menos. O sonho impressionou muito o sonhador, pois O rei ou imperador disse que a árvore era uma riqueza, a flor dá mel, a vagem pode ser comida de várias maneiras, crua, cozida ou assada. A madeira serve para obras diversas e para mobiliário, a serragem é uma farinha que nem precisa ser torrada, ele não ficou sabendo. De onde era o imperador, ele não ficou sabendo. (...) Antes de sumir, o imperador recomendou ao Conselheiro que plantasse a tal árvore em Itatimundé. (...) Que raio de árvore seria essa, que mais parecia uma despensa cheia, e mais uma serraria? (...) Haveria mesmo tal pé de planta no mundo, ou seria fantasia de sonhador (...)? Esse sonho, e a preocupação com ele, não seria sinal de que a cabeça do bom velho já estava carunchando? (Veiga 1989:127-128)
Em verdade, o bom velho Conselheiro participou do sentido oracular existente nas manifestações oníricas. Sem recorrer-se, ainda, ao simbolismo da árvore, o sonho que teve naquela noite, de caráter profético, aparece revestido de um caráter enigmático, como se fora enviado por Deus através do emissário vestido de rei. O próprio sonhador conferiu a conotação simbólica, cifrada, pois no momento do sonho preocupava-se com o projeto de inaugurar, firmar, em definitivo, uma nova Canudos. O líder renascido, na obra veiguiana, “perpetua a cidade perfeita como um rei-lavrador, dá continuidade a um solo já arroteado e plantado anteriormente por ele e por outros, deixando para gerações futuras o resultado de seu labor” (Cambeiro 1999: 199-232). A idéia do sonho em vigília, encontrada em E. Bloch (Bloch 1991: passim), confirma a práxis efetiva da utopia transformada em realidade. O sonho-antevisão que instigara o primeiro assentamento do arraial da esperança, em Belo Monte, transformou-se, de novo, em uma realidade construída paulatinamente em Itatimundé. No intertexto veiguiano, a cidade replantada pelo Conselheiro e os sobreviventes, tal qual a árvore da vida, mostrada no sonho, começou a dar frutos e a atrair pessoas da mesma forma que Canudos.
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O mesmo em outro Também passam por Itatimundé personagens famosas, conhecidas do mundo exterior, que não fazem parte dos sobreviventes da guerra. Ainda que elas não tenham ajudado, diretamente, na arrumação da casa, deixavam algo de seu, após a visita. Acima de tudo, representam o ser humano em passagem pela existência, estabelendo contato com o outro, em momentos importantes de troca e de diálogo - de conhecimento mútuo. Dentre as personagens que se hospedaram no novo espaço de fraternidade, formado à volta do Conselheiro de casca nova, está Dr. Orville, um estrangeiro - paródia de Euclides da Cunha - mostrado em seu trabalho de descrever a geografia e a história do sertão. Ele chega acompanhado de uma compositora, a maestrina Dona Francisca Edwiges, ou, como se depreende, a famosa iconoclasta Chiquinha Gonzaga. O Conselheiro socializou-se, mudou mesmo de casca, pois hospedou em sua pousada a campositora - ele que na vida real era um misógeno contrário aos prazeres do mundo. Nessa carnavalização em que fios diversos - verídicos e imaginados - se encontram, o estrangeiro era um cientista, fazia estudos de terrenos e minerais para o governo, vivia no país há muito tempo, e não se envolvia em política; (...) seus primeiros trabalhos sobre terrenos e minerais tinham sido encomendados, pelo imperador. (...) [Saía] cedo com sua lentezinha, suas ferramentazinhas e seu caderno de apontamentos e desenhos, material esse que resultou no livro sobre estruturas rochosas do norte da Bahia, publicado pela Universidade de Wisconsin em 1906 (...) (Veiga 1989: 138-139).
Já Dona Chiquinha, que havia chegado aos cinqüenta e um anos aparentando bem menos, por não se preocupar com insignificâncias, (...) se interessava muito pela vida. (...) optou por uma carreira então vedada a mulheres: escolheu ser compositora e executante de música, e com muito esforço conseguiu fazer nome no meio teatral. Voltava de Lisboa, onde musicara uma peça e dirigira a orquesta do teatro. O navio tocou na Bahia, e lá ela conheceu o Dr. Orville no hotel. [No terreiro], ia tirar som de uma flauta a canivete. (...) Saiu uma música que põe o ouvinte em harmonia com a vida (...) de uma alegria que não faz barulho para fora (...) em silêncio para não espantar o encanto, (...) ela tocou valsas, maxixes, improvisos. Até que, embriagados de música, foram todos dormir. (...) Aos poucos a noite foi baixando sobre o mundo (...) (Veiga 1989: 135-138).
Outras pessoas foram, igualmente, atraídas para o novo arraial, parecia que todos tinham marcado encontro justo ali, vindas de todos os lugares do mundo. Surgiu ainda um senhor com um livro em francês e muitos manuscritos. De nome complicado para ouvidos e língua sertanejos, achou melhor que o chamassem de Pedro - caricatura do príncipe russo falando com Chiquinha em francês. Durante uma conversa do grupo ele disse: “eu ficava como um pavão quando alguém me tratava de príncipe. Felizmente me curei logo dessa bobagem. Interessei-me por geografia” (Veiga 1989: 144). Uma noite, em que estava sem sono, ele e o Conselheiro ficaram conversando o que não se sabe, já que não teve testemunhas o diálogo.
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Na Nova Canudos - nome que não agradava ao Conselheiro, mudado para Itatimundé - as metamorfoses foram acontecendo devagar, embora substanciais. O Conselheiro, agora já sofisticado chefe, desde que tirara a barba e o camisolão de penitente, fez “uma limpeza também nas idéias” (Veiga 1989: 147). Como se sabe, já não rezava constantemente, não entendia tudo apenas sob o prisma da Bíblia e perdera “o fanatismo religioso” (Veiga 1989: 147). Nas entrelinhas da morte, do renascimento e da transformação do antigo beato - já fora de Canudos - delineia-se a construção literária da metamorfose do mito do chefe. Os momentos finais de A casca da serpente atestam o movimento cíclico do arquétipo mítico, desconstruído e inovado. Ao ligar idéia e práxis, no sentido pessoal e coletivo, o Conselheiro adaptou várias atitudes de seus seguidores, como, por exemplo, o hábito de conseguirem-se as coisas não mais a partir da força. Tentava, de fato, passar a limpo o mundo, mas não o mundo todo, pelo menos, como projeto inicial apenas aquele pedaço de sertão. No entanto, “o Pedro” desenvolvia pretensões bem maiores do que o Conselheiro: Dona Marigarda um dia perguntou se eles estavam a fim de passar o mundo a limpo. Quem respondeu foi o tio. _ O mundo não. Só este nosso pedaço de sertão. Não é, Sr. Pedro? _ Por enquanto. Quando tivermos arrumado o sertão, vamos cuidar do país. Depois atacaremos o mundo. (...) parecia que Tio Antônio tinha finalmente encontrado um companheiro a sua altura para verrumar projetos estrambóticos (Veiga 1989: 147).
Antônio Conselheiro - o tio Antônio - e o Pedro - como várias vezes é apresentado na obra - são equivalentes, na visão do autor. O Conselheiro encontrou alguém que o compreendeu e correspondeu em idéias, unindo-os o estigma de chefes que vislumbram projetos megalômanos. Denuncia, também, que o inconsciente do Conselheiro guarda, apesar da transformação, resquícios de poder e de autoridade similares aos de Pedro. Os planos traçados nas idéias durante conversas dos dois - mas aos quais o leitor não tem acesso direto - são cortados com a partida do estrangeiro para a Rússia. Lançando pistas e despistando, sempre no jogo aparência x essência, verdade x mentira. Entretanto, as conversas misteriosas velam/desvelam seu conteúdo, quando se tornaram projetos históricos em Itatimundé: (...) Mas os debates que entravam pela noite no alto de Itatimundé não ficaram soterrados no tempo. Num livro que o Pedro publicou anos depois na França para expor seu projeto de sociedade sem governo, eles são reconstituídos. E no arraial o resultado de tanta conversa e escritos foi aparecendo nas simples e belas construções materiais e nas normas de convivência e trabalho que deram corpo e alma à Concorrência de Itatimundé, comunidade que serviu de modelo a uma infinidade de outra mundo afora. Se daquele sonho e daquele esforço hoje só restam ruínas, isso não significa que o sonho fosse absurdo. Ele deu tão certo que precisou ser demolido à força, como fora Canudos setente anos antes (Veiga 1989: 154-155).
Alude o texto, claramente, a Itatimundé “como uma cidade utópica, desde Platão a nossos dias imagem de tantas outras, literárias ou reais, passando pelas mais conhecidas e já
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citadas no corpo do trabalho. J. J.Veiga desfaz o sentido da esperança de continuidade de um projeto útil ao homem, desvelando o conteúdo perverso do poder maior” (Cambeiro 1999: 199-232). Tal poder, indiferente a que todos participem de um bem comum, não deixa vingar a cidade da revelação, a Utopia política e religiosa, inspirada pelas experiências pessoal do sagrado e coletiva da miséria material por que passou o fundador. Ao final da obra, a Concorrência de Itatimundé, alicerçada para ser a cidade de Deus na Terra, foi destruída, mesmo configurando uma outra comunidade fraterna. Outra vez caiu o sonho, quebrou-se o ídolo, em patente ressonância com a quebra da estátua de Lênin, em praça pública na Rússia. Note-se a mordaz crítica aos interesses particulares da ciência, desprovidos de memória humanística: E da mesma forma que o Conselheiro, o “gnóstico bronco”, um “caso notável de degenerescência intelectual”, foi “degolado” depois de “morto”, também a estátua do tio Antônio, que completava o visual da praça principal da Concorrência, foi dinamitada pelos invasores em 1965 e seus pedaços jogados serra abaixo. O tio Antônio mesmo tinha morrido antes, aos noventa e quatro anos, (...) [mas] a estátua de tio Antônio enquanto existiu [foi] fotografada. Nela o velho Conselheiro aparecia como tronco de uma árvore robusta, talvez aquela com que sonhara e cujo nome jamais soube, os pés se confundindo com as raízes, os membros se confundindo com as asperezas da casca, os cabelos se cofundindo com galhos e folhas. Se essa estátua não mais existe, fotografias dela estão em revistas e livros de arte editados em vários países. E a terra, o chão onde foi a Concorrência de Itatimundé, é agora depósito de lixo atômico administrado por uma indústria química com sede fictícia no Principado de Mônaco (Veiga 1989: 154-155).
J. J.Veiga, em A casca da serpente, traçou o resumo essencial do Conselheiro, não apenas ao desfazer e ironizar diversas vezes a tese euclidiana do homem síntese do sertão, mas ao reconstruir e desenvolver um outro retrato literário do líder de Canudos. A falsa morte, verdadeiro renascimento, acrescida de constantes transformações espirituais e materiais por que passou Antônio Conselheiro confirma, na atualidade, a perpetuação do mito do chefe político-religioso, ciclicamente renovado. Concebe-se, ao final, que essa figura ciclicamente renovada representa estruturas do poder materializadas nos indivíduos, em qualquer um que chegue ao poder. A verdadeira morte do Conselheiro, nas mãos das tropas do Governo, e registrada pela História, lembraria “imolações, ou melhor, para retomarem-se os termos empregados por René Girard, em La violence e le sacré, rituais de sacrifício, (...)” (Vuillemin 1989: 183). A figura do soter é reabilitada por um processo sagrado de disseminação, de continuidade no imaginário coletivo. Mas a morte, o desaparecimento dessas figuras, em especial o soter, é condição para o poder, já que elas “reinam porque serão mortos, sem escapatória, virá o instante em que serão imolados” (Vuillemin 1989: 190). Assim, a execução do Conselheiro junto com os conselheiristas, em Canudos, foi a perpetuação do mito do chefe político, que se renova ciclicamente. A violência executada sobre uma vítima por sua posição ou suas funções teria o objetivo de dar alívio a uma coletividade do insuportável fardo de sua responsabilidade no pacto fixado com o líder. Mas o guia político-religioso não se resume à identidade que o materializa.
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Ele representa, em movimento contínuo de metamorfose e permanência, denunciando o mesmo no outro, “uma figura imaterial, eterna e universal, de onde se extrai uma misteriosa força vital, quase sacralizada de regeneracão e de ressurreição” (Vuillemin 1989: 203). Assim, o mito do chefe político e religioso alimentaria a tese de que esse poder estaria em eras longínquas, quando as duas atividades não eram diferenciadas, pois o poder encerra uma noção sagrada, “mesmo que hoje venha mascarada e o detentor do poder representaria deuses salvadores e essa teologia política é um legado esquecido da proto-história dos povos indo-europeus, remetendo, pois, ao arquétipo do Soberano Mágico” (Vuillemin 1989: 207). Em A casca da serpente, o novo Conselheiro, saído da morte - do mundo ctônico para refundar a cidade sonhada, apresenta-se como um ser fundamental. Enraizado como “árvore robusta” (Veiga 1989: 150), no imaginário coletivo ele ficou na forma de semente, tronco, membros e frutos de uma esperança coletiva. Além de árvore, perpetuou-se ainda como serpente, símbolo também do astúcia, da transformação. Tal qual o réptil, o Conselheiro efetuou metaforicamente os movimentos existenciais de catábase - de cima para baixo - e anábase - movimento de baixo para cima - ao morrer e ao renascer/vencer a morte no imaginário coletivo. Fênix renascida, o líder de Canudos, de Nova Canudos ou de Concorrência de Itatimundé tornou-se a expressão do próprio homem, em busca do mundo e de si mesmo. Ainda que o resultado prático de sua insistente esperança seja outra vez destruída, por interesses de uma minoria figurativa da página central, as idéias a que deu continuidade repetem-se ciclicamente através de outros seres preocupados com valores essenciais da humanidade, enquanto houver despossuídos na Terra (Cambeiro 1999: 231-232).
Em resposta a uma evidente crise na civilização, renasceu, renasce e sempre renascerá uma emblemática figura de Conselheiro. Demonstrado, ficcionalmente, na obra de José J. Veiga, que qualquer um, com qualquer outro nome, em qualquer época, consolida a ação histórico-cronológica do tempo breve e a mítico-imperceptível escrita do tempo longo. Antônio Vicente Mendes Maciel encarnou, sem dúvida, na História do Brasil, a metamorfose do mito do soter, o condutor religioso e, sem dúvida, chefe político, designado a cumprir uma missão tanto social, civilizatória quanto religiosa.
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MACHADO DE ASSIS: ESCRITOR PESSIMISTA?
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Em sua introdução ao terceiro volume da História da vida privada, Nicolau Sevcenko faz referência à raiz do que sabemos ser a expansão da economia capitalista em fins do século XIX: A raiz dessa dinâmica expansionista foi a irrupção, em fins do século XVIII, em redor de 1780, da Revolução Industrial. Esse surto inaugural da economia industrializada fora baseada em três fatores básicos: o ferro, o carvão e as máquinas a vapor, propiciando o surgimento das primeiras unidades produtivas, as fábricas. Seu centro de origem e irradiação fora a Inglaterra (...)
O momento seguinte da expansão da economia industrial, e aquele que mais diretamente nos interessa aqui, foi desencadeado pelo advento da chamada Segunda Revolução Industrial, também intitulada Revolução Científico-Tecnológica, ocorrida de meados do século à sua plena configuração em 1870. (...) a Revolução Científico-Tecnológica (...) representava de fato um salto enorme, tanto em termos qualitativos quanto quantitativos, em relação à primeira manifestação da economia mecanizada. Resultado da aplicação das mais recentes descobertas científicas aos processos produtivos, ela possibilitou o desenvolvimento de novos potenciais energéticos, como a eletricidade e os derivados de petróleo, dando assim origem a novos campos de exploração industrial, como os altos-fornos, as indústrias químicas, novos ramos metalúrgicos, como os do alumínio, do níquel, do cobre e dos aços especiais, além de desenvolvimentos nas áreas de microbiologia, bacteriologia e da bioquímica, com efeitos dramáticos sobre a produção e conservação de alimentos, ou na farmacologia, medicina, higiene e profilaxia, com um impacto decisivo sobre o controle das moléstias, a natalidade e o prolongamento da vida (Sevcenko 1998: 8-9).
Inserir o Brasil nisso que parece ser a marcha do mundo implica inicialmente voltar as costas para o nosso passado colonial e escravocrata, fazer de conta que não tínhamos que nos haver com esta história da qual pouco, já então, havia para nos orgulharmos. O mesmo
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tempo que corria cada vez mais rápido também mostraria de modo cada vez mais evidente o quanto o progresso e a ciência nem explicavam toda a verdade e nem eram para todos. Vejamos Machado de Assis, em crônica de 25/3/1894: (...) que é o tempo? É a brisa fresca e preguiçosa de outros anos, ou êste tufão impetuoso que parece apostar com a eletricidade? Não há dúvida que os relógios, depois da morte de López, andam muito mais depressa (Assis 1959 vol. III: 628).
Em 16/10/1892, Machado olha com desconfiança para os bondes elétricos. Afirma mesmo que deixara de falar neles, por não ter assistido à sua inauguração. Depois disso, nem sequer tinha entrado em algum: Anteontem, porém, indo pela Praia da Lapa, em um bond comum, encontrei um dos elétricos, que descia. Era o primeiro que êstes meus olhos viam andar. Para não mentir, direi que o que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do cocheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu bond, com um grande ar de superioridade. Pôsto que não fôsse feio, não eram as prendas físicas que lhe davam aquêle aspecto. Sentia-se nêle a convicção de que inventara, não só o bond elétrico, mas a própria eletricidade (Assis 1959, vol. III: 577).
Após cruzarem-se os bondes, o cronista segue até quase o fim da linha, quando então estavam no bonde apenas o condutor, o cocheiro e ele. O condutor e o cocheiro cochilavam. O cronista então ouve uma conversa dos burros. Um deles argumentava que, passando a tração elétrica para todos os bondes, estariam eles livres. Ao que o outro responde: - O bonde elétrico apenas nos fará mudar de senhor. - De que modo? - Nós somos bens de companhia. Quando tudo andar por arames, não somos já precisos, vendem-nos. Passamos naturalmente às carroças (...) onde a nossa vida será um pouco melhor; não que nos falte pancada, mas o dono de um só burro sabe mais o que êle lhe custou. Um dia, a velhice, a lazeira, qualquer cousa que nos torne incapaz, restituir-nos-á a liberdade... - Enfim! - Ficaremos soltos, na rua, por pouco tempo, arrancando alguma erva que aí deixem crescer para recreio da vista. Mas que valem duas dentadas de erva, que nem sempre é viçosa? Enfraqueceremos; a idade ou a lazeira ir-nos-á matando, até que, para usar esta metáfora humana, - esticaremos a canela. Então teremos a liberdade de apodrecer. Ao fim de três dias, a vizinhança começa a notar que o burro cheira mal; conversação e queixumes. No quarto dia, um vizinho, mais atrevido, corre aos jornais, conta o fato e pede uma reclamação. No quinto dia sai a reclamação impressa. No sexto dia, aparece um agente, verifica a exatidão da notícia; no sétimo, chega uma carroça, puxada por outro burro, e leva o cadáver (Assis 1959, vol. III: 578-9).
Machado de Assis nos mostra aqui, a partir de um certo tom de parábola, o quanto os
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homens naquele momento atribuíam às descobertas trazidas pela ciência uma melhoria para o bem-estar e para a liberdade. Na contramão deste rio largo da ciência, Machado constrói sua filosofia de meias-verdades, diferentemente tanto da filosofia dos antigos, de braço dado com a teologia, e também daqueles que o século XIX tantas vezes chamou de “modernos”, de braços dados com a ciência, sem abandonar os benefícios da mais uma vez propalada verdadeira fé, expurgada dos vícios da sociedade burguesa e dos exageros das revoluções, que, quais desordens atmosféricas, vinham varrendo a Europa. A este respeito lembro as defesas que Garrett fizera da razão e da fé. Lembro também a cena de Madame Bovary, quando Rodolfo e Ema assistem do alto, do primeiro andar da prefeitura, da sala das audiências, ao discurso do Conselheiro Lieuvain, colocando lado a lado a ciência e a religião, qual “novas artérias do corpo do Estado” (Flaubert 1979: p. 108). É contra isso que Machado se põe. Após uma pausa, o outro burro contrapõe argumentos: - Tu és lúgubre (...) Não conheces a língua da esperança. - Pode ser, meu colega; mas a esperança é própria das espécies fracas, como o homem e o gafanhoto; o burro distingue-se pela fortaleza sem-par. A nossa raça é essencialmente filosófica. Ao homem que anda sôbre dous pés, e provàvelmente à águia, que voa alto, cabe a ciência da astronomia. Nós nunca seremos astrônomos; mas a filosofia é nossa. Tôdas as tentativas humanas a êste respeito são perfeitas quimeras. Cada século... (Assis 1959, vol. III: 579).
Nesse momento, o cocheiro encurtou as rédeas. Tinham chegado ao fim da linha. Há, portanto, homens que entendem a linguagem dos burros, homens filósofos de meias-verdades, como os burros, homens descrentes dos grandes dogmas do século que ia chegando ao fim: Igualdade, Liberdade, Fraternidade. Mas não só estes: ciência e civilização, razão, fé e verdade. Machado se contrapõe à tradição filosófica ocidental, negando este lugar da verdade a qualquer sistema de pensamento totalizante. E com isso, já não fez pouco. Vejamos o comentário que Machado faz, em crônica de 23/10/1892, quando o bonde elétrico atropela e mata dois velhos: Tôdas as cousas têm sua filosofia. Se os dous anciãos que o bond elétrico atirou para a eternidade esta semana, houvessem já feito por si mesmos o que lhes fêz o bond, não teriam entestado com o progresso que os eliminou. É duro de dizer; duro e ingênuo, um pouco à La Palisse; mas é verdade. Quando um grande poeta dêste século perdeu a filha, confessou, em versos doloridos, que a criação era uma roda que não podia andar sem esmagar alguém. Por que negaremos a mesma fatalidade aos nossos pobres veículos? (Assis 1959, Vol. III: 579).
Machado entende muito bem que não há civilização sem barbárie, que a dita civilização é na verdade um investimento de determinados homens em determinados objetos. Estes homens ocupam um lugar, que lhes é outorgado pelo poder, mas que também lhes outorga poder, como, por exemplo, o de usar a propaganda para impor estes objetos e associá-los a um modo de gozo. Trata-se de uma imposição que visa padronizar o gozo e encobrir a falta que nele se inscreve. Portanto, não há progresso, no sentido que certo iluminismo o fixou. Toda sociedade tem forças que se organizam privilegiando um gozo para todos, um gozo que, além
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de anular as singularidades do sujeito, hipoteticamente supriria o que de falho se inscreve nele mesmo. Logo, até para usufruir desse gozo, é preciso haver renúncia. E não me venham dizer que este é um pensamento conservador. O progresso também tem preço. É por isso que, na semana em que se inauguram os bondes elétricos, Machado deixa de falar deles, para se ocupar da morte de Renan1. A crônica é de 9/10/1892: Eis aí uma semana cheia. Projetos e projetos, bancários, debates e debates financeiros, prisão de diretores de companhias, denúncia de outros, dous mil comerciantes marchando para o palácio Itamarati, a pé, debaixo d’água, processo Maria Antônia, fusão de bancos, alça rápida de câmbio, tudo isso grave, soturno, trágico ou simplesmente enfadonho. Uma só nota idílica, entre tanta cousa grave, soturna, trágica ou simplesmente enfadonha; foi a morte de Renan (Assis 1959, vol. III: 575-576).
Ao deixar de lado o que o senso comum considera importante, ao fazer de tema de sua crônica a morte de um filósofo, Machado faz algo que parece ter se firmado como uma das marcas dos grandes cronistas: questionar as meias verdades estabelecidas, o curso dos acontecimentos, as notícias a que o jornal dá destaque, o discurso em que essas notícias são contadas e a posição que aqueles que escrevem têm ao escrever. Machado aqui também quer dar um piparote no leitor, e descompromissar-se com as opiniões correntes, com as crenças dominantes de seu tempo, sejam estas os sistemas filosóficos, sejam estas as leis do capitalismo, que não quer saber de filosofia, mas de impor a necessidade de comprar. Não faço análises que me não competem, nem cito obras, nem componho biografia. O jornalismo desta capital mostrou já o que valia o autor de tantos e tão adoráveis livros, falou daquele estilo incomparável, puro e sólido, feito de cristal e melodia. Nada disso me cabe. A rigor, nem me cabe cuidar da morte. Cuidei desta por ser a única nota idílica, entre tanta cousa grave, soturna, trágica ou simplesmente enfadonha. Em verdade, que posso eu dizer das cousas pesadas e duras de uma semana, remendada de códigos e praxistas, a ponto de algarismo e citações? Prisões, que tenho eu com elas? Processos, que tenho eu com êles? Não dirijo companhia alguma, nem anônima, nem pseudônima; não fundei bancos, nem me disponho a fundá-los; e, de tôdas as cousas dêste mundo e do outro, a que menos entendo, é o câmbio. Não é que lhe negue o direito de subir; mas tantas lástimas ouvi pela queda, quantas ouço agora pela ascensão, - não sei se às mesmas pessoas, mas com êstes mesmos ouvidos.
1 Ver Matos 1988: 836: “Renan, Ernesto: (1823-1892): historiador e hebraísta francês, professor no Colégio de França”. No artigo publicado postumamente O francesismo, Eça considera Renan “a mais alta figura literária da França, e a mais francesa (...)”. E completa: “Este Mestre ensina-nos simplesmente que nada na terra vale, ou tem importância, senão os gozos que dá o amor, ou o esquecimento que dá a morte. Certamente, em boa filosofia, as duas coisas correlacionam-se: a morte e o amor; e há aqui uma grande lógica. Mas nem por isso deixa de ser o mais forte sintoma da decadência intelectual da França que este Mestre, este sábio, não abra os lábios, não tome a pena, senão para nos apontar alternadamente - ou para a alcova ou para o cemitério” (Queirós s./d.: Últimas páginas, p. 404). Ver também “Os grandes homens da França”, de 1892 (ano da morte de Renan), mas apenas publicado em livro postumamente (Queirós s./d.: Notas contemporâneas, p. 227-235). Machado de Assis, além da crônica supracitada, publicou, em Páginas recolhidas (1899), texto sobre a correspondência entre Ernesto Renan e sua irmã, que vivia na Polônia, Henriqueta Renan. Ver “Henriqueta Renan” (Assis 1959, vol. II: 604-613).
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Finanças das finanças, são tudo finanças. Para onde quer que me volte, dou com a incandescente questão do dia. Conheço já o vocabulário, mas não sei ainda tôdas as idéias a que as palavras correspondem, e, quanto aos fenômenos, basta dizer que cada um dêles tem três explicações verdadeiras e uma falsa. Melhor é crer tudo. A dúvida não é aqui sabedoria, porque traz debate ríspido, debate traz balança de comércio, por um lado, e excesso de demissões por outro, e, afinal, um fastio que nunca mais acaba (Assis 1959, vol. III: 576-7).
A morte de Renan, com o significado que passa a ter para o cronista, o faz intervir na matéria do jornal, na contramão dos acontecimentos, e questionar as ilusões do capitalismo. Machado lembra um dos prefácios do filófoso: “J’ai tout critiqué, et, quoi qu’on en dise, y j’ai tout maintenu”. As ressalvas feitas por Machado de Assis ao progresso, as críticas severas que faz aos homens, considerados, tantas vezes - mas não todas - fracos diante do poder do dinheiro, toda esta maré ácida de desilusão tem posto os leitores de Machado, mesmo os seus mais fervorosos admiradores, também desconfiados. Vale então a provocação: o que resta ao homem então, já que o progresso não é o que se pensava, já que a civilização exige sempre muito de nós2, e pagamos sempre caro pelo pouco que ela nos dá? Machado responde a isso? A resposta a isso só pode estar, a meu ver, naquilo que Freud nos aponta em Mal-estar na civilização: que “a felicidade é, para nós, o que deve ser proposto como termo a toda busca, por mais ética que seja”, “que, para essa felicidade não há absolutamente nada preparado”3, no entanto todo homem pode encontrá-la a seu modo (Freud 1988: 91). À primeira vista, pode-se dizer que a busca de uma via, de uma verdade não está ausente de nossa experiência. Pois, que outra coisa procuramos na análise senão uma verdade libertadora? Mas cuidado, há motivos para não se confiar nas palavras e nas etiquetas. Essa verdade que procuramos numa experiência concreta não é a de uma lei superior. Se a verdade que procuramos é uma verdade libertadora, trata-se de uma verdade que vamos procurar num ponto de sonegação de nosso sujeito. É uma verdade particular (Lacan 1991: 35).
Não haver uma regra de ouro, um universal para todos é o que a psicanálise nos ensina. O ser falante se humaniza pela sua inscrição no simbólico e a partir daí a sua estrutura subjetiva é recoberta por vários níveis de falta: não há a verdade toda e não há o gozo pleno. Nesse não haver se institui o desejo. Desejamos o que não há, o que, se existisse, traria a plenitude. Muito embora pela via da fantasia permaneça a crença de que tivemos este objeto e o
2 Lacan 1991: 47. Cito especificamente: “Qual é a figura nova que nos é fornecida por Freud na oposição princípio de realidade / princípio de prazer? É seguramente uma figura problemática. Freud não pensa nem um instante em identificar a adequação à realidade a um bem qualquer. No Mal-estar na civilização, diz-nos - seguramente a civilização, a cultura pede demais ao sujeito. Se há algo que se chama seu bem e sua felicidade, não há nada para isso ser esperado nem do microcosmo, isto é, dele mesmo, nem do macrocosmo.” 3 Lacan 1991: 23. O ponto principal do capítulo intitulado “Nosso programa” é a importância que Lacan dá ao texto de Freud, o Mal-estar, considerado em relação à tradição filosófica ocidental.
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perdemos. Logo, trata-se de reencontrar o que, sem nunca o termos tido, perdemos. E isto já não é pouco. Portanto, ética, no estrito sentido que a psicanálise a considera, só há a do desejo, entre outros motivos porque ninguém pode decifrar o desejo do Outro, ninguém pode impor o seu bem para o outro. Isto só poderia ser possível se o outro fosse igual a mim, e, como nunca é, tomá-lo por igual é negar a diferença do outro, reduzindo-o a objeto do meu gozo. Freud nos mostra que o mandamento “Amai ao próximo como a si mesmo” é uma das provas do quanto a civilização precisa controlar a inclinação constitutiva dos seres humanos para a agressividade mútua. E, ao fazê-lo, produz também violência. É impossível cumprir esse mandamento, porque “todo aquele que, na civilização atual, cumprir tal preceito, só se coloca em desvantagem frente à pessoa que despreza esse preceito” (Freud 1988: 145). E mais: não posso amar ao próximo como a mim mesmo, porque este próximo é diferente de mim. Se o meu amor se pauta numa demanda de igualdade, só poderá, na medida em que a diferença não cessa de se inscrever, esbarrar num muro de ódio, porque o outro não é o que eu dele espero. Tal mandamento é um verdadeiro escândalo. Volto aqui à pergunta: qual parece ser a posição de Machado diante das grandes narrativas de seu tempo? Já que desconfia da retórica romântica, da disciplina médica higienista, do progresso, da ciência, nos moldes como o senso comum de seu tempo os fixaram, que posição subjetiva Machado reserva aos seus personagens? Neste caso, não há uma posição única. Há aqueles, por exemplo, que são de outro tempo, mas que, por tédio à controvérsia, instalaram-se na aposentadoria, no ceticismo indulgente4. É o caso do Conselheiro Aires. Há outros que agem como Bentinho, o “queridinho da mamãe”, que não suporta ser colocado como objeto-causa do desejo de uma mulher (Capitu), portanto só lhe restando transformá-la em puta, em traidora, só lhe restando ver o rosto de Escobar no de Ezequiel. É impossível atar as duas pontas da vida. Mas esta certeza, este saber sob a forma de certeza coloca o personagem imobilizado, acorrentado, atormentado por inquietas sombras. O drama final de Bentinho, depois Dom Casmurro, é uma extensão da própria vida que levou. Bentinho escreve. Gasta o tempo em “hortar, jardinar e ler”, come bem e não dorme mal. Está o tempo todo tentando tampar a falta, empenhado em reconstruir, explicar, convencer, argumentar, relacionar (a casa de Matacavalos / a casa do Engenho Novo; a Capitu adulta / a Capitu menina; Ezequiel / Escobar). Refugiado no gozo, Bentinho escreve, mas o que escreve só sai da banalidade porque há ali em seu relato um narrador-outro que expõe sua dor guardada. Citei os exemplos de Aires e de Bentinho. Lembro também de Rubião. Kátia Muricy faz cuidadosa leitura de Quincas Borba, em A razão cética: Quincas Borba permite aprofundar melhor o que se chamou de construção cética de Machado diante do otimismo liberal em relação à nova moral burguesa.
4 “Livrou-se assim dos conflitos, do drama de Rubião. Aires computa alegremente ou, ao menos, serenamente, o tempo que perdeu. Nesse sentido, escreve seu Memorial, contra a pressa da sua época, contra o gosto de sua época. Sutil discordância de um ‘entediado’ do século” (Muricy 1988: 91).
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O legado de Quincas Borba faz de Rubião, um acanhado professor, o adulado capitalista de criado espanhol e cozinheiro francês. O humanitismo justifica a transformação: a evolução - neste caso, o testamento de Quincas Borba - abriu espaço para uma nova razão, a do capital. É diante dessa nova razão que Rubião se perde - ele perde a razão. Incapaz de entrar na nova racionalidade, estranho a uma época para a qual sua razão é pré-moderna, só resta a Rubião o delírio. E, é bem significativo que, nesse delírio, Rubião se identifique a Napoleão ou a Luís Napoleão, os arautos da modernidade. Mais do que incorporar à sua vida doméstica os requintes da burguesia, criados europeus ou chinelas tunisianas, Rubião habita, em seu delírio, as Tulherias. Mais do que descansar à sombra das conquistas da civilização, ele é o conquistador, Napoleão. Excluído da nova ordem por errar nos limites de códigos sociais anacrônicos, Rubião aponta na loucura para a invenção recente dessa razão. E é porque ele não compreende as novas normas sociais que não se dá conta da superficialidade dos jogos de sedução de Sofia, da falsidade da amizade de Palha ou de Camacho. Rubião é um tolo, mas só na medida em que é um deslocado, um anacrônico (Muricy 1988: 88).
O interessante a se notar é que a posição desses personagens não é determinada pelo mundo, pela lógica do capitalismo. Eles estão onde estão, mas não sem alguma implicação subjetiva. O ritmo cada vez mais febril da cidade, as ilusões do passado, que ainda têm um lugar no mundo que surgia, as ilusões do presente, às quais tantos, os mais aptos, os mais cínicos, mas também os tolos, vão se agarrando - tudo isso dita regras, porque para o capitalismo desejar não é preciso, o que é preciso é gozar dos benefícios da ciência e do dinheiro. Colocar-se na posição desejante é o que fazem, por exemplo, aqueles que não são boizinhos de presépio: a Marocas, de “Singular ocorrência”; ou ainda Porfírio, de “Terpsícore”. Observemos o conto “Singular ocorrência”5 Dois homens conversam à porta da igreja da Cruz enquanto observam uma mulher que vai entrando. Um deles então conta ao outro que ela devia chamar-se Maria de tal, mas que, em 1860, “florescia com o nome familiar de Marocas”. E completa: - (...) Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará. Morava na rua do Sacramento. (...) Na rua, com o vestido afogado, escorrido, sem espavento, arrastava a muitos, ainda assim. - Por exemplo, ao senhor. - Não, mas ao Andrade, um amigo meu, de vinte e seis anos, meio advogado, meio político, nascido nas Alagoas, e casado na Bahia, donde viera em 1859. Era bonita a mulher dele, afetuosa, meiga e resignada; quando os conheci, tinham uma filhinha de dois anos (Assis 1959, vol. II: 386-387).
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Este conto é de Histórias sem data, cuja primeira edição é de 1884.
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A narração prossegue: como Marocas e o Andrade se conheceram à porta da loja Paula Brito, no Rocio; como se encontraram casualmente à noite no Ginásio onde “dava-se a Dama das Camélias” (Assis 1959: vol. II, p. 387). No último ato Marocas chorou como uma criança. A conclusão é rápida: - Não lhe digo nada; no fim de quinze dias amavam-se loucamente. Marocas despediu todos os seus namorados, e creio que não perdeu pouco; tinha alguns capitalistas bem bons. Ficou só, sozinha, vivendo para o Andrade, não querendo outra afeição, não cogitando de nenhum outro interesse. - Como a Dama das Camélias (Assis 1959: 387).
A princípio Marocas parece deixar o lugar da cortesã, para trilhar o caminho da regeneração através do amor: o verdadeiro amor, fora do casamento, fora das convenções sociais, longe dos salões da corte e da rua, espaços que os “capitalistas bem bons” tinham para dedicar-se, respectivamente, às mulheres que o mundo respeita e às que o mundo despreza. O dinheiro governava e movia os homens nos dois espaços, como se não lhes restasse escolha. Mas disse “a princípio”. Vejamos então o que vai se passar. O narrador segue contando ao amigo, à porta da igreja, como Marocas aprendeu a ler, e como ele, o próprio narrador, adquirira a confiança de ambos, de Marocas e de Andrade. O romance extraconjugal segue sendo narrado por um personagem, notem, alguém que desfrutou da intimidade do casal. A narração ensaia passos dentro da previsibilidade do discurso romântico. Tudo parece se encaminhar para uma dita regeneração moral em nome do amor. Certo dia, então, Andrade, no escritório, pouco depois do meio-dia, encontra um tal Leandro: - (...) Era um sujeito reles e vadio. Vivia a explorar os amigos do antigo patrão. Andrade deu-lhe três mil-réis, e, como o visse excepcionalmente risonho, perguntou-lhe se tinha visto passarinho verde. O Leandro piscou os olhos e lambeu os beiços: o Andrade, que dava o cavaco por anedotas eróticas, perguntou-lhe se eram amores. Ele mastigou um pouco , e confessou que sim (Assis 1959, vol. II: 388).
E então vem a estória que o tal Leandro contou ao Andrade, e que, volto a repetir, énos narrada através de diálogo entre dois amigos na porta da igreja, um dois quais coadjuvante e confidente dos protagonistas à época. O Leandro tivera na véspera uma fortuna rara. Conhecera certa dama... Parece claro já que tal dama era a Marocas. O Leandro fala da casa dela à rua do Sacramento, e o Andrade... - (...) não soube o que fez nem o que disse durante os primeiros minutos, nem o que pensou nem o que sentiu (Assis 1959, vol. II: 388).
Curiosamente, aqui o amor não tem nada a ver com o dinheiro. O dinheiro não arrasta as pessoas para onde elas não querem ir. Marocas vai com o Leandro porque quer. Bem assim fora para os braços do Andrade largando alguns “bons capitalistas” pra trás. Juntos, o Andrade e a Marocas, não se ergue entre eles nenhum abismo moral. Quando fica sabendo da
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história, o Andrade propõe pagar vinte mil-réis ao Leandro, se este o levasse à casa da moça e dissesse, em presença dela, que era ela mesma a tal: - (...) Não defendo o Andrade; a cousa não era bonita; mas a paixão, nesse caso, cega os melhores homens. Andrade era digno, generoso, sincero; mas o golpe fora tão profundo, e ele amava-a tanto, que não recuou diante de tal vingança (Assis 1959: 389).
O Leandro aceitou. Ambos vão à casa de Marocas. Leandro confirma que é ela mesma, recebe o dinheiro e sai. Andrade diz a Marocas palavras as mais duras do mundo e atira-se em direção à porta, deixando Marocas no chão, lacrimosa, desesperada. O comentário de quem ouve a estória detém-se no Leandro. Quem ouve quer compreender, explicar, talvez insinuando um certo hábito de Marocas, que também talvez mostrasse de modo naturalista que a regeneração completa seria impossível, pois ela trazia na alma a mancha de sua condição passada. Mas o diálogo desmente esta hipótese. Vejamos: - (...) ficou atirada ao chão, no patamar da escada; ele desceu vertiginosamente e saiu. - Na verdade, um sujeito reles, apanhado na rua; provavelmente eram hábitos dela?
- Não (Assis 1959, vol. II: 389). O que temos aqui é o ato inexplicável para o senso comum, para a moral vigente à época. Não foi por dinheiro, porque o Leandro era um sujeito reles e vadio. Não foi por inclinações morais inapagáveis, porque não eram hábitos dela. Não foi porque a Marocas no fundo de sua alma não amasse verdadeiramente o Andrade, porque depois da aventura com o Leandro viera o desinteresse. O próprio Leandro contara isto ao Andrade. O que temos aqui é o rompimento com o discurso da moral, portador de uma verdade com valor de dogma. Algo aconteceu que fugiu ao domínio dos protagonistas da cena, que foge aos domínios dos dois homens que conversam anos depois na porta da igreja, mas que nós leitores podemos tibiamente acolher. Algo momentâneo que não poderemos saber de todo. O que aquele encontro furtivo - que aparentemente não se fazia em nome do “verdadeiro amor” e obviamente nem muito menos em nome das leis cristãs do casamento ou as do dinheiro - promoveu de verdade para Marocas? É em torno desse ato distante, deste ponto vazio, desta interrogação que move montanhas que esta “singular ocorrência” se inscreve: - Meu conselho foi que a deixasse; que, afinal, vivesse para a mulher e a filha, a mulher tão boa, tão meiga... Ele concordava, mas tornava ao furor. Do furor passou à dúvida; chegou a imaginar que a Marocas, com o fim de o experimentar, inventara o artifício e pagara ao Leandro para vir dizer-lhe aquilo; e a prova é que o Leandro, não querendo ele saber quem era, teimou e lhe disse a casa e o número. E agarrado a esta inverossimilhança, tentava fugir à realidade; mas a realidade vinha, - a palidez de Marocas, a alegria sincera do Leandro, tudo o que lhe dizia que a aventura era certa. Creio até que ele arrependia-se de ter ido tão longe. Quanto a mim, cogitava na aventura, sem atinar com a explicação. Tão modesta! maneiras tão acanhadas! - Há uma frase do teatro que pode explicar a aventura, uma frase de Augier, creio eu: “a nostalgia da lama”. - Acho que não; mas vá ouvindo (Assis 1959, vol. II: 390).
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A expectativa romântica arma-se em torno do discurso da moral vigente, enquanto Verdade Absoluta. Alguém, porque viveu os fatos que vai narrar, traz para si a narração e a explicação dos fatos. A previsibilidade é a nota certa da falta de transversalidade das narrativas da época, com as quais Machado dialoga. No entanto, no conto de Machado as coisas já começam mal quando a narração é construída como um falso teatro. Se não temos a verdade dos fatos ocorridos à época dos amores de Marocas com o Andrade narrados por um certo alguém que sabe o que diz, temos em contrapartida o ponto vazio do narrador que outorga o seu lugar a um outro. O que teremos não será a vida como ela foi, não será o drama da vida real, não será o poeta conduzindo seu espelho como um reformador, a apontar à sociedade seus vícios e suas virtudes para corrigi-la. Aqui, em “Singular ocorrência”, o drama dos homens parece ser - viver sem garantias. E o vivido, e depois narrado (por um outro a uma terceira pessoa antes de nós, leitores), ao contrário do que pensávamos, não é uma engenhosa teia de pressupostos, seguida de resultados, conseqüências, repetições, revelações sem senões àqueles que quiserem fazer igual. Marocas sumiu no mundo. Mas não se matou. Andrade prometeu matar-se. Mas não se matou. Ela acabou sendo encontrada numa hospedaria, no Jardim Botânico. Andrade e o amigo, agora narrador dos fatos, rumam para lá. O dono da hospedaria confirma tudo e levaos até o quarto. - (...) Encaminhamo-nos para o quarto; o dono da hospedaria bateu à porta; ela respondeu com voz fraca, e abriu. O Andrade nem me deu tempo de preparar nada; empurrou-me, e caíram nos braços um do outro. Marocas chorou muito e perdeu os sentidos. - Tudo se explicou? - Cousa nenhuma. Nenhum deles tornou ao assunto; livres de um naufrágio, não quiseram saber nada da tempestade que os meteu a pique (Assis 1959, vol. II: 390).
Marocas dá-lhe um filho, que morre com dois anos. Andrade faz viagem para a província e morre por lá. Marocas põe luto, considera-se viúva, ouve missa nos três primeiros anos. - Há dez anos perdi-a de vista. Que lhe parece tudo isto? - Realmente, há ocorrências bem singulares, se o senhor não abusou da minha ingenuidade para imaginar um romance... - Não inventei nada; é a realidade pura. - Pois, senhor, é curioso. No meio de uma paixão ardente, tão sincera... Eu ainda estou na minha; acho que foi a nostalgia da lama. - Não: nunca a Marocas desceu até os Leandros. - Então por que desceria naquela noite? - Era um homem que ela supunha separado, por um abismo, de todas as suas relações pessoais; daí a confiança. Mas o acaso, que é um deus e um diabo ao mesmo tempo... Enfim, cousas! (Assis 1959, vol. II: 391).
Se houve a tal nostalgia da lama, aqui não está em jogo nenhuma conotação moral. Marocas não reafirmou uma suposta verdadeira natureza. Também não retorna ao que, talvez
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supusessem alguns, nunca tivesse deixado de ser. Nada disso. A lama não é a descida ao mundo ignaro que a corrompera no passado. Se os interlocutores consideram este sentido surrado pela ficção romântica, então talvez mais uma vez não saibam o alcance do que dizem. E lama enquanto escória social, que é o sentido que o capitalismo dá ao termo, isto também não é o que a moveu em direção ao Leandro. Afinal ela deixara alguns bons capitalistas pelo Andrade. Repito: ela nunca descera aos Leandros. Estamos, mais uma vez, diante de uma versão do homem sobre a mulher. Ela não fala. É falada. E é este moralismo da versão masculina sobre a mulher que sutura o enigma que é a mulher para o homem. Machado deixa vazio o lugar do narrador, mas não deixa de relativizar o discurso masculino que coloca a aventura feminina como algo que só poderia se dar em nome do dinheiro (o que ofereceria um álibi à pobre mulher corrompida pelo mundo) ou em nome de um amor acima de todas as coisas. A terceira hipótese é a lama. Se está relativizado também este terceiro lugar, é porque há um narrador fictício que lança uma sombra de dúvida sobre o relato. É a ironia deste narrador fictício que transforma o significado moral de lama. Para este narrador fictício, lama é sinônimo de enigma. Portanto, enquanto tal não está associada a retorno a uma vida indigna, à prostituição. Não é aspiração de retorno à sociedade primitiva, na suposição ilusória de que, sem os abismos da sociedade de classes, então sim o amor encontrará o espaço que o mundo hostil lhe nega. Lama é metáfora que é colocada no lugar daquilo que os personagens, enquanto representantes da moral da época, não conseguem dar conta. Uma coisa é não haver a inscrição da diferença sexual. Outra coisa é não aceitar este não haver. Lama é uma metáfora cristalizada que se assenta numa moral. Que moral? A moral do cristianismo e do saber médico. Machado revira estes sentidos cristalizados. Diante da própria perplexidade diante do Outro-sexo, os personagens masculinos de Machado contrapõem uma moral. Isso porque para esta moral vigente as mulheres não podem se posicionar diante do desejo. Não podem fazêlo, nem como sujeito desejante nem como objeto-causa do desejo, restando-lhes portanto o lugar de mãe e de submissão aos homens. É através deste significante lama que fica marcada a perplexidade dos homens daquela sociedade diante da pergunta “o que quer uma mulher?”. Embora insistamos tantas vezes em acreditar em suas juras, e nos entreguemos a elas com apetite tão antigo, como se fosse possível saciá-lo, o amor nos impõe a sua mais dura verdade: é impossível de dois fazer Um, é impossível saber tudo sobre ele. Ao contrário do que supúnhamos, estamos fadados à incompletude. Marocas, embora amasse o Andrade, foi com o Leandro porque quis, o que, convenhamos, a coloca bem distante das prostitutas e das “respeitáveis senhôras” de seu tempo. Dentro daquela cidade que já se transforma bastante, capital do Brasil do Segundo Império, e que ainda se transformaria mais, a singularidade de amar ensaiará passos às vezes transversos para que o desejo possa abrir seus sulcos e deslizar, sem que com isso se espere a salvação ou a perdição. A ética do desejo é uma verdadeira terceira margem do rio. Governado pelo Leandro, Andrade quer saber toda a verdade, quer desmascarar Marocas - e depois é por isso que tem que pagar vinte mil-réis. Não é à toa que seus atos são descritos neste momento como que ganhando certo feitio teatral. Algo de seu estava sendo perdido ali. O movimento seguinte de Andrade é para esquecer (recalcar). Ao reencontrarem-se, Marocas e o Andrade “caíram nos braços um do outro” e depois “nenhum deles tornou ao assunto”.
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Vamos agora ao Porfírio, de “Terpsícore” 6. O conto inicia-se com Porfírio sentado na cama, de manhã, olhando para a parede. E com Glória, sua mulher, “dizendo-lhe carinhosamente que não se amofinasse, que Deus arranjaria as coisas” (Assis 1996: 26). O casal deve seis meses de aluguel e está sob a ameaça do senhorio. Diz-lhe Glória: - Tudo há de acabar bem, Porfírio. Você mesmo acredita que o senhorio bote os nossos trastes no Depósito? Não acredite; eu não acredito. Diz aquilo para ver se a gente arranja o dinheiro. - Sim, mas é que eu não arranjo, nem sei onde hei de buscar seis meses de aluguel (Assis 1996: 26).
Glória pensa em mais uma vez recorrer ao padrinho. E em levar sua mãe, para ajudar no pedido. Porfírio desabafa: - Diabo! Tanta despesa! Conta em toda a parte! é a venda! é a padaria! é o diabo que os carregue. Não posso mais. Gasto todo o santo dia manejando a ferramenta, e o dinheiro nunca chega. Não posso, Glória, não posso mais... (Assis 1996: 26-7).
Quando Porfírio senta-se à mesa de pinho, para comer um pão e tomar café, preparados por Glória, “risonha de esperança para animá-lo” (Assis 1996: 27), inicia-se um flashback que abarcará o período que vai desde o dia em que Porfírio e Glória se conheceram até as dívidas posteriores à lua-de-mel, que o retiram da vida de duque, e dos prestígios do amor, arremeçando-o novamente numa rotina de sete, oito horas de trabalho numa loja como marceneiro. Neste parêntese, Machado nos dá, com pinceladas rápidas, a dimensão do drama do jovem casal. E também a singularidade destes dois neste mundo que caminha cada vez mais rapidamente para as normas médicas e cristãs, para a exclusão da subjetividade, para as soluções, que são de classe, mas que são vendidas como um Bem para todos. O narrador volta ao momento em que Porfírio conhece Glória. Ela está dançando polca. Porfírio vem passando. E pára, “defronte da janela aberta” (Assis 1996: 27). Os momentos finais da dança são assim narrados: A sala, que era pequena, estava cheia de pares, mas pouco a pouco foram-se todos cansando ou cedendo o passo à Glória. - Bravos à rainha! exclamou um entusiasta. Da rua, Porfírio cravou nela uns olhos de sátiro, acompanhou-a em seus movimentos lépidos, graciosos, sensuais, mistura de cisne e de cabrita. (...) No dia seguinte [Porfírio] acordou resoluto a namorá-la e desposá-la. Cumpriu a resolução em pouco tempo, parece que um semestre (Assis 1996: 27-8). 6 Conto publicado originalmente no suplemento literário do jornal Gazeta de Notícias, em 25/3/1886. Recuperado por Haroldo Maranhão, foi publicado em pequeno volume, com nota introdutória de Davi Arrigucci Jr., pela Boitempo Editorial (Assis 1996). Não está incluído no volume II, o dos contos, da Obra completa, de Machado de Assis, pela Aguilar.
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A dança, e não qualquer dança, mas sim uma dança popular, a polca, desperta em Porfírio o desejo. Ali há algo relacionado à singularidade do seu gozo. E a partir daí ele passa a agir. Namorou, aprendeu a dançar... (...) tirou dez mil réis mensais à féria do ofício, entrou para um curso de dança, onde aprendeu a valsa, a mazurca, a polca e a quadrilha francesa. Dia sim, dia não, gastava ali duas horas por noite, ao som de um oficlide e de uma flauta, em companhia de alguns rapazes e de meia dúzia de costureiras magras e cansadas. Em pouco tempo estava mestre (Assis 1996: 28).
Feito isso, Porfírio tratou de procurar casa. Quando encontrou a casa em que acabou indo morar, não a achou grande, antes pequena, mas os arabescos que adornavam a frontaria da casa “lhe levaram os olhos” (Assis 1996: 30). Porfírio não gostou do preço. Regateou. Mas, “vendo que o dono não cedia nada, cedeu tudo” (Assis 1996: 30). Depois era cuidar do casamento. E aqui também Porfírio não pagou pouco pelo que queria. Que poupar despesas? Mas e num dia grande como esse não se gastava alguma coisa, quando é que se havia de gastar? Nada; era moço, era forte, trabalho não lhe metia medo. Contasse ele com um bonito coupé, cavalos brancos, cocheiros de farda até abaixo e galão no chapéu. E assim se cumpriu tudo; foram bodas de estrondo, muitos carros, baile até de manhã. Nenhum convidado queria acabar de sair; todos forcejavam por fixar esse raio de ouro, como um hiato esplêndido na velha noite do trabalho sem tréguas (Assis 1996: 31).
O padrinho de casamento emprestou dinheiro para tudo isso. E nunca cobrou, diz-nos o narrador. Mas o importante em tudo isso é que os gastos e mais gastos não são feitos como ornamento para galgar um lugar naquela sociedade, nem para cumprir uma norma social. Os próprios convidados são gente do bairro mesmo, e que tinha ali “um hiato na velha noite de trabalho”. Nada aponta para o consumismo e para o luxo, mas sim para o gozo. Nem muito menos podemos dizer que estamos diante de um “perdulário”. A não ser que estejamos, agora sim, do lado das leis do capitalismo, que incentiva a poupança e que acredita que tudo se reduz a dinheiro. Porfírio inverte esta lógica, até porque para ele há muitos modos de se conseguir o que se quer: pedindo ao padrinho, regateando, trabalhando, ganhando na loteria. O flash-back termina com Porfírio untando o pão com a manteiga, que já “tem o ranço da miséria que se aproxima” (Assis 1996: 32). E logo sai pra trabalhar. Os contrastes entre os apertos de um homem pobre e o luxo das elites imperiais são marcados também, mais uma vez, através do olhar de Porfírio: De caminho, [Porfírio] vai olhando para as casas grandes, sem ódio - ainda não tem ódio às riquezas -, mas com saudade, uma saudade de coisas que não conhece, de uma vida lustrosa e fácil, toda alagada de gozos infinitos... (Assis 1996: 33).
De volta à casa, Porfírio encontra Glória abatida. O padrinho negara-lhes ajuda, respondendo-lhe que “eles tinham as mãos rotas, e não dava nada enquanto fossem um par de malucos” (Assis 1996: 33). A resposta de Porfírio a Glória é: “- Maluco é ele!” (Assis 1996: 33)
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No sábado, voltando para casa, Porfírio compra um bilhete de loteria. Em casa pergunta à mulher o que ela lhe daria se ele lhe trouxesse naquela semana um vestido de seda. Glória levantou os ombros. Seda não era para eles. E por que é que não havia de ser? Em que é que as outras moças eram melhores que ela? Não fosse ele pobre, e ela andaria de carro... - Mas é justamente isso, Porfírio; nós não podemos. Sim, mas Deus às vezes também se lembra da gente (...) E mirando a mulher, com olhos derretidos; despia-lhe o vestido de chita, surrado e desbotado, e substituía-o por outro de seda azul - havia de ser azul -, com fofos ou rendas, mas coisa que mostrasse bem a beleza do corpo da mulher... (Assis 1996: 36).
Pouco importa que a loteria seja o acaso. O importante é a posição de Porfírio diante daquela sociedade, diante de seu desejo e do seu gozo. Não se coloca na posição de vítima e nem na do excluído. Afinal: “Deus às vezes também se lembra deles”, e Glória não é diferente das outras moças. Porfírio age. Compra o bilhete, vai pra casa sonhando com a beleza do corpo da mulher, “corpo como não há de haver muitos no mundo” (Assis 1996: 36). Diz isso a ela, que começa então a rir. Eles lembram-se de como tinham se conhecido, ela “toda dengosa”, dançando... E, falando, [Porfírio] pegou dela pela cintura e começou a dançar com ela, cantarolando uma polca; Glória, arrastada por ele, entrou também a dançar a sério, na sala estreita, sem orquestra nem espectadores. Contas, aluguéis atrasados, nada veio ali dançar com eles (Assis 1996: 37).
A lembrança do passado e a dança, sem orquestra nem espectadores, são o modo de acesso à posição desejante, uma trilha aberta mesmo com um cotidiano adverso. Dias depois, um dos bilhetes de Porfírio sai premiado: 500 mil-réis! Pagas as dívidas, sobraram perto de duzentos réis. Glória quis botar este dinheiro na Caixa. Mas Porfírio compra o vestido de seda. E ainda por cima resolve dar um pagode. Glória opõe-se, mas Porfírio tinha argumentos para sustentar sua vontade: Era até um modo de agradecer ao Nosso Senhor. Que é que se leva da vida? Todos se divertiam; os mais reles sujeitos achavam um dia de festa; eles é que iam gastar os anos como se fossem escravos? (Assis 1996: 42).
Glória ainda insiste, tentando dissuadi-lo do propósito do pagode. Propõe estrear o vestido de seda na festa da Glória. - Uma coisa não impede a outra, disse ele. Não convido muita gente, não; patuscada de família; convido o Firmino e a mulher, as filhas do defunto Ramalho, a comadre Purificação, o Borges... (Assis 1996: 42).
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Os convidados são de família. Em nenhum momento é sugerida a ostentação. Mas a febre e o delírio da festa vai tomando conta de Porfírio. No final das contas, ele “queria festa de estrondo, coisa que desse o que falar” (Assis 1996: 44). E os convidados chegavam a trinta... Os pedidos de convites choviam, e, diante das perguntas sobre o valor do prêmio, dois, três contos... Porfírio sorria, “cheio de mistérios” (Assis 1996: 44). Chegou o dia. Glória, iscada da febre do marido, vaidosa com o vestido de seda, estava no mesmo grau de entusiasmo. Às vezes, pensava no dinheiro, e recomendava ao marido que se contivesse, que salvasse alguma coisa para pôr na Caixa; ele dizia que sim, mas contava mal, e o dinheiro ia ardendo... Depois de um jantar simples e alegre, começou o baile, que foi de estrondo, tão concorrido que não se podia andar. Glória era a rainha da noite. O marido, apesar de preocupado com os sapatos - novos e de verniz -, olhava para ela com olhos de autor (Assis 1996: 44).
Porfírio comandava tudo, para que a festa não esfriasse. Batia palmas, bradava “que um dia não eram dias, que havia tempo de dormir em casa” (Assis 1996: 45). E o conto se encerra: Então o oficlide roncava alguma coisa, enquanto as últimas velas expiravam dentro das mangas de vidro e nas arandelas (Assis 1996: 45).
Porfírio sai da posição de refém daquele mundo. A febre, o delírio do casal arrasta os convidados. É um ato que rompe a previsibilidade daquela sociedade imobilista e a própria lógica do capitalismo: Porfírio e Glória, isto já vimos, não são escravos da falta de dinheiro, pois são capazes de dançar sem música, sem convidados e sem platéia, são capazes de recordar o passado, quando ele, Porfírio, passando por uma janela na rua da Imperatriz, foi iscado pelo corpo dengoso de Glória polcando. Mas também não são escravos do dinheiro, nem das convenções sociais. O conto não termina nem com a catástrofe do esbanjador contumaz, nem com uma suposta quebra de um mundo ilusório, nem muito menos com a felicidade eterna do casal. A imagem final do conto é um verdadeiro espelho de muitas faces. Evoca os sons da noite, a aventura em aberto e sem transcendência da vida humana. Porfírio e Glória respondem à sujeição com a invenção. Alguém lembrará que para isso foi preciso o acaso. Eu lembrarei, com Machado, que o acaso é um Deus e um Diabo ao mesmo tempo. Ou seja: fizeram o que fizeram, mas para isso foi preciso algo mais do que o dinheiro. Glória pôde ser desejada e amada por Porfírio. Talvez exatamente porque não precisou optar entre a santidade e a pureza. Lembro aqui dos olhos de sátiro de Porfírio, ao vê-la pela primeira vez, “mistura de cisne e de cabrita” (Assis 1996: 27). Lembro também do exílio de Conceição, dentro da própria casa e da noite de Natal, sem lugar, sem conseguir alcançar uma terceira margem, fora das imagens que aquele mundo cunhava: a de santa e a de puta7.
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“Missa do galo” foi publicado em Páginas recolhidas (1899) (Ver Assis 1959, vol. II: 584-589).
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Chamo a atenção para o quanto Machado apontará para a implicação subjetiva de cada um em seus atos. É difícil, sempre, escolher. E isto porque não escolher também é tomar uma posição. Os capitalistas, os conselheiros, a burguesia carioca do fim do Império e início da República, estes normalmente são reféns do mundo com o qual colaboram, com diferentes parcelas de anuência. E a dimensão do desejo talvez se abra justamente para aqueles que estão nas margens: as prostitutas, os pobres marceneiros, as caboclinhas de vinte anos8, as crianças9... Os outros são reféns das convenções sociais, tomadas como leis absolutas: como D. Paula, por exemplo, que reconduz a sobrinha à moral cristã dos laços indissolúveis do casamento10, enquanto recorda docemente e secretamente um amor do passado vivido fora do casamento; ou ainda o Garcia, de “A causa secreta”11, que se vê condenado a renunciar ao amor por Maria Luísa. Vejamos ainda este conto de Machado de Assis, protagonizado por este personagem tão raro que é Fortunato. Fortuna, na religião romana, é “a deusa que traz” (Brandão 1993:152), “representada com uma cornucópia (o corno da abundância, símbolo da prosperidade) e um remo (como se fora o piloto da vida)” (Brandão 1993: 152). Seu nome não era utilizado na acepção atual de boa sorte, mas no de destino. Fortunato: aquele que se destina ao gozo perverso. Vejam os três primeiros encontros de Garcia com Fortunato: o primeiro, na porta da Santa Casa; o segundo, no teatro de São Januário, num dramalhão “cosido a facadas” (Assis 1959, vol. II: 498), que ele “[ouvia] com singular interesse” (Assis 1959, vol. II: 498), recobrando a atenção “nos lances dolorosos” (Assis 1959, vol. II: 498); e o terceiro, quando Fortunato socorre o empregado do arsenal de guerra, vizinho de Garcia, o Gouveia, esfaqueado por um capoeira. Fortunato não o conhecia, mas toma a frente de todos nos cuidados que a saúde de Gouveia inspira. Quando todos se retiram, ficam só ele e o Garcia. Garcia estava atônito. Olhou para [Fortunato], viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, côr de chumbo, moviam-se devagar, e tinham as expressão dura, sêca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma cousa acêrca do ferido, mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios (Assis 1959, vol. II: 499).
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“Noite de almirante” foi publicado em Histórias sem data (1884). Ver Assis 1959, vol. II: 438-442.
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“Conto de escola” foi publicado em Várias histórias (1896). Assis 1959, vol. II: 532-537.
10
“Dona Paula” foi publicado em Várias histórias (1896). Ver Assis 1959, vol. II: 539-544.
11
“A causa secreta” é de Várias histórias (1896) também. Ver Assis 1959, vol. II: 498-504.
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Fortunato volta nos dias seguintes. Mas desaparece antes de concluída a cura. Gouveia acaba descobrindo onde Fortunato mora. Vai agradecer-lhe. Fortunato o recebe mal, constrangido, impaciente, enfastiado. Sem saber o que dizer, Gouveia pede licença e sai depois de dez minutos. À saída, Fortunato diz-lhe, rindo: “Cuidado com os capoeiras!” Gouveia, completa o narrador, saiu de lá “mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo (...), mas o esforça era vão” (Assis 1959, vol. II: 500). Tempos depois, morando na rua de Mata-Cavalos e já formado em medicina, Garcia encontra novamente Fortunato, que está casado e o convida para jantar. Garcia vai, conhece Maria Luísa, mulher de Fortunato. Ficam amigos. Um dia, estando os três juntos, Garcia insiste em contar a Maria Luísa as circunstâncias em que se conheceram. Fortunato pondera que “não vale a pena” (Assis 1959, vol. II: 501). A esposa ouve a história do Gouveia, “risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração” (Assis 1959, vol. II: 501). Mas a visita que, à época, o enfastiara, o próprio Fortunato a quis contar “com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio.” (Assis 1959, vol. II: 501). E completa o narrador: “E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dêle era jovial e franco” (Assis 1959, vol. II: 501). Fortunato acaba fundando uma casa de saúde e convidando Garcia para trabalhar com ele. Fortunato dedica-se inteiramente: administrador e chefe dos enfermeiros, “estudava, acompanhava as operações e nenhum outro curava os cáusticos” (Assis 1959, vol. II: 501). Garcia torna-se familiar na casa e apaixona-se por Maria Luísa. Mas o narrador é claro quando afirma que Garcia, em relação ao seu amor, só pôde “trancá-lo” (Assis 1959, vol. II: 501). Já Maria Luísa “compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada” (Assis 1959, vol. II: 502). Fortunato mete-se a estudar anatomia e fisiologia, “[ocupa-se] nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães” (Assis 1959, vol. II: 502). Os guinchos dos animais incomodam os doentes. Então ele muda o laboratório para casa. Depois, por um pedido de Maria Luísa a Garcia, este intervém e Fortunato interrompe seus experimentos: “se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube” (Assis 1959, vol. II: 502). Um dia Garcia ouve Fortunato queixar-se de um papel importante que um rato lhe levara. No dia seguinte, quando Garcia chega para visitá-los, Maria Luísa aflita leva-o ao gabinete, onde Fortunato segurava com a mão esquerda um barbante “de cuja ponta pendia o rato pendurado pela cauda” (Assis 1959: vol. II, 502), “sobre um prato com espírito de vinho” (Assis 1959: vol. II, 502), que “flamejava” (Assis 1959: vol. II, 502), e na mão direita tinha uma tesoura. No momento em que Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.
- Mate-o logo, disse-lhe. - Já vai. E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma cousa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fêz pela terceira vez o movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado,
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e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com tôda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e êle ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida. (...) A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue (Assis 1959, vol. II: 502-3).
Fortunato, terminada a cena, ao dar com o médico, mostra-se enraivecido com o animal. O narrador comenta: “mas a cólera era fingida” (Assis 1959, vol. II: 503). O médico concluiu para si mesmo que Fortunato “castiga sem raiva, pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem” (Assis 1959, vol. II: 503). E o narrador completa de modo fulminante com a expressão que parece-me a chave do conto. Garcia relembra, recompõe a história de Fortunato desde que o conhecera, e encontra sempre a mesma explicação: “Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula” (Assis 1959, vol. II: 503). Pouco tempo depois, Maria Luísa adoece: “era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos” (Assis 1959, vol. II: 503). Fortunato, aqui, mais uma vez, “faminto de sensações”, contabiliza para seu bom prazer todos os minutos que conduzirão à agonia, sem pagá-los sequer “com uma só lágrima, pública ou íntima” (Assis 1959, vol. II: 503). Durante a noite em que se velou o corpo, ficaram na sala sozinhos Garcia e Fortunato. Fortunato vai repousar um pouco numa saleta contígua. Vinte minutos depois acordou, tentou dormir de novo, não conseguiu. Levanta-se e vai até a sala. Lá encontra Garcia debruçado sobre o cadáver. Mais especificamente, encontra Garcia inclinando-se e beijando o cadáver na testa. Vejam agora o final do conto: Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que não lhe deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços. Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver, mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram aos borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo esse explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa (Assis 1959, vol. II: 504).
Maria Luísa morre de tísica. Este não pode ser “o epílogo de um livro adúltero” porque para Fortunato o amor pouco conta: talvez pensasse que é coisa de para os fracos. Ele “[amava-a] a seu modo” (Assis 1959, vol. II: 504), diz o narrador, e este seu modo é o quê?
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Resposta: “estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la” (Assis 1959, vol. II: 504). Não tinha ciúmes nem inveja, mas tinha a vaidade. Fortunato parece nunca tocado pela falta. Mas é nesse momento, apenas nesse momento - após acordar e deter-se à porta da sala e antes da “explosão de dor moral” de Garcia - que algo de si mesmo se arranha. Enquanto Garcia estava debruçado sobre o cadáver, algo, com valor de enigma, desestabiliza Fortunato. Mas imediatamente vêm as lágrimas de Garcia, aos borbotões. E então mais uma vez Fortunato se recompõe e pode saborear isso com a superioridade de um Calígula. Fortunato está alienado de seu desejo na obrigatoriedade do gozo, retirado da dor dos que o cercam e daqueles em cujas vidas ele entra sem cerimônia. Forçar o acesso ao gozo através da dor (Fortunato), ou aceitar a dor moral como se fosse o destino humano, mesmo a renúncia ao desejo e ao amor em nome das convenções sociais (Garcia) - eis o quanto a literatura de Rousseau e de Sade se avizinham, eis o quanto o masoquismo moral do século XIX, no que ele tem de pastoral e de determinista, será revirado por Machado. Em suma, Kant tem a mesma opinião de Sade. Pois, para atingir absolutamente das Ding, para abrir todas as comportas do desejo, o que Sade nos mostra no horizonte? Essencialmente a dor. A dor de outrem e, igualmente, a dor própria do sujeito, pois são, no caso, uma só e mesma coisa. O extremo do prazer, na medida em que consiste em forçar o acesso à Coisa, nós não podemos suportá-lo. É o que constitui o lado derrisório, o lado para empregar um termo popular - maníaco que salta a nossos olhos nas construções romanceadas de Sade - a cada instante se manifesta o mal-estar da construção viva, exatamente isso que torna tão difícil, para nossos neuróticos, a confissão de algumas de suas fantasias. As fantasias, com efeito, num certo grau, num certo limite, não suportam a revelação da fala (Lacan 1991: 102).
Rousseau será a grande matriz do romantismo francês12. Onde Lacan escreve Kant proponho, não sem alguma margem de risco, que seja lido Rousseau. Kant foi um apaixonado pela obra do mestre de Genebra. A obra de Rousseau irá marcar sobretudo as narrativas dos autores das literaturas brasileira e portuguesa, em múltiplos aspectos, que vão desde a concepção da educação à do amor, passando pela de linguagem, tendo como ponto de destaque a inserção do homem na vida social (Starobinski 1991). Ao relacioná-lo com o que venho discutindo aqui, não trilho os caminhos da velha estilística baseada em temas recorrentes, nem muito menos os do estudo de fontes e de influências. Interessa-me apontar que Machado de Assis é conhecedor desta tradição, bem assim das correntes científicas e estéticas de seu tempo. Muita tinta já foi gasta para ressaltar o quanto Machado soube negar tais correntes. Pouco se disse até agora a respeito de uma posição subjetiva que se traduz ficcionalmente.
12 Darton 1986: 277-328. Refiro-me especificamente ao capítulo: “Os leitores respondem a Rousseau: a fabricação da sensibilidade romântica”.
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Machado tem sido repetidas vezes considerado um escritor amargo, impossível de ser amado13, de muita secura de alma14. Antonio Candido chega a dizer que, segundo Machado de Assis, “não conseguimos agir se não mutilando o nosso eu”, que “o que há de mais profundo em nós é no fim de contas a opinião dos outros”, e que “estamos condenados a não atingir o que nos parece valioso”. E completa: “qual diferença entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o certo e o errado?” (Cândido 1977: 27). De fato, o bem e mal, o justo e o injusto, o certo e o errado não estão escritos definitivamente nem nas leis cristãs, nem nas leis médicas, nem muito menos em quaisquer páginas de doutrina estética. Abrir mão do desejo tem conseqüências - e os poderosos também pagam por isso. Isto não significa que os que apostam no que desejam serão felizes para sempre. Não. Pois todo ato tem sua conta de risco, mesmo os dos mais covardes. Portanto, agora que me encaminho para o término deste capítulo, quero marcar aqui a importância da obra de Machado, por abrir uma dimensão nova na mentalidade de sua época, por não submeter seus personagens a nenhuma tese, a nenhuma visão totalizante. Machado não nega tudo. Até porque isto é impossível. Ele nega, sim, algumas verdades coladas à moral do século XIX. Nega a possibilidade de que alguma idéia possa se aplicar a todos com valor universal. Haverá sempre então a dimensão subjetiva. Se o mundo é o que é, isto não é sem a maior ou menor participação de cada um. E esta participação, seja ela qual for, tem um preço. Mostrar este mundo fora das leis de Deus e da ciência não é amargura. E além do mais, pouco espaço mesmo havia para o desejo naquela sociedade. O olhar desconfiado dos narradores de Machado de Assis parece repetir subliminarmente que, neste particular, o rio é estreito e a correnteza é contra.
13 Ver Andrade 1974: 89. No capítulo intitulado “Machado de Assis”, Mário afirma: “Talvez eu não devesse escrever sobre Machado de Assis nestas celebrações de centenário... Tenho pelo gênio dele uma enorme admiração, pela obra dele um fervoroso culto, mas eu pergunto, leitor, pra que respondas ao segredo da tua consciência; amas Machado de Assis?... E esta inquietação me melancoliza. Acontece isso da gente ter às vezes por um grande homem a maior admiração, o maior culto, e não o poder amar.” 14 Barreto 1998: 284. Ver carta de Lima a Austregésilo de Ahayde, datada de 19/1/1921: “Gostei que o senhor me separasse de Machado de Assis. Não lhe negando os méritos de grande escritor, sempre achei no Machado muita secura de alma, muita falta de simpatia, falta de entusiasmos generosos, uma porção de sestros pueris. Jamais o imitei e jamais me inspirou.”
MACHADO DE ASSIS: ESCRITOR PESSIMISTA?
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Referências bibliográficas
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O INFERNO DO HOMEM SÃO OS AFETOS QUE SE ENTERRAM NA ALMA Nadiá Paulo Ferreira
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Sexo: revelações & reações Apesar do tempo e das particularidades (ciência e arte) que separam as obras de Sigmund Freud, de Gregório de Matos e Guerra e de Nelson Rodrigues, elas provocaram polêmicas, reações e resistências ao saber produzido sobre o sexo. A descoberta da sexualidade infantil levou Freud à ruptura com o mito de que a sexualidade humana se reduz aos órgãos genitais e está a serviço da reprodução da espécie. Em 1920, no prefácio da quarta edição de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, cuja primeira edição é de 1905, Freud faz questão de assinalar as resistências às suas teses sobre a sexualidade: Dissipadas as correntes da guerra, pode-se verificar com satisfação que o interesse pela psicanálise permanece ileso no mundo em geral. Mas nem todas as partes da doutrina tiveram o mesmo destino. As colocações e constatações puramente psicológicas da psicanálise sobre o inconsciente, o recalcamento, o conflito que leva à doença, o lucro extraído da doença, os mecanismos da formação de sintomas etc., gozam de crescente reconhecimento e são consideradas até mesmo por aqueles que em princípio as contestam. Mas a parte da doutrina que faz fronteira com a biologia, cujas bases são fornecidas neste pequeno escrito, continua a enfrentar um dissenso indiminuto, e as próprias pessoas que por algum tempo se ocuparam intensamente da psicanálise foram movidas a abandoná-la para abraçar novas concepções, destinadas a restringir mais uma vez o papel do fator sexual na vida anímica normal e patológica (Freud s.d.: v.VII).
Em Um estudo autobiográfico, 1925 [1924]), confessa inclusive que sua teoria sobre a sexualidade infantil desmistificou um dos maiores preconceitos da humanidade: a crença de que a infância é a idade da inocência porque é desprovida de sexualidade. Justamente por isto, ele diz que "Poucos dos achados da psicanálise tiveram tanta contestação universal ou despertaram tamanha explosão de indignação como a afirmativa de que a função sexual se inicia no começo da vida e revela sua presença por importantes indícios mesmo na infância".
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A obra de Gregório ficou no ostracismo por quase trezentos anos. James Amado chega inclusive a dizer que esse ineditismo é insuportável, já que sua obra inaugura "em dia de sol, a poesia brasileira" (Guerra 1999: 17). O esquecimento não é o caso de Nelson. Todas as suas peças foram encenadas e algumas foram adaptadas para o cinema: Boca de Ouro, 1959 (dirigida por Nelson Pereira dos Santos em 1962 e por Walter Avancini em 1990); Bonitinha, mas ordinária, 1962 (dirigida por J. P. de Carvalho em 1963 e por Braz Chediak em 1980); A falecida, 1953 (dirigida por Leon Hirsman em 1965); Toda nudez será castigada, 1965 (dirigida por Arnaldo Jabor em 1973); Os sete gatinhos, 1958 (dirigida por Neville d'Almeida em 1980); Beijo no Asfalto, 1960 (dirigida por Bruno Barreto em 1980); Álbum de Família, 1946 (dirigida por Braz Chediak em 1981); Perdoa-me por me traíres, 1957 (dirigida por Braz Chediak em 1983). Vestido de Noiva, 1943, sua segunda peça, foi representada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro no mesmo ano em que foi escrita, sob a direção de Ziembinski, obtendo sucesso da crítica e do público. O mesmo aconteceu com as novelas Meu destino é pecar, 1944, Escravas do amor, 1944, e Minha vida, 1946, que foram assinadas com o pseudônimo de Suzana Flag. Os episódios desses folhetins, publicados diariamente em O Jornal, foram reunidos em livro pelas Edições O Cruzeiro, repetindo o mesmo sucesso. Mas a partir de sua terceira peça, Álbum de Família, de 1946, interditada pela censura por dezenove anos, começaram as acusações que deram origem aos estigmas de imoral e de doentio, que acompanharam e acompanham ainda hoje o nome de Nelson Rodrigues. Gregório recebeu o apelido de "Boca do Inferno"e foi considerado por Araripe Júnior "pessimista objetivo, alma maligna, caráter rancoroso, relaxado por temperamento e por costumes" (Guerra 1999: 16), enfim, "um notabilíssimo canalha" (Guerra 1999: 16). Nelson foi considerado um tarado que tinha obsessão por sexo, crimes, adultérios, incestos, estupros e infanticídios. Freud foi acusado de "agressão à dignidade da raça humana" e de pansexualista (Freud 1925 [1924]: As resistências à psicanálise, v. XIX). Apesar dos detratores e da reação de indignação, a sagacidade (no sentido de agudeza de espírito) de Freud e de Nelson permitiu o reconhecimento social de suas obras. Gregório de Matos e Guerra e Nelson Rodrigues sabem o que a psicanálise descobriu e teorizou sobre os afetos e a sexualidade. Para Freud a psicanálise é "a ciência do inconsciente" e "um procedimento terapêutico" (Freud 1926: Psicanálise, v.XX). A psicanálise como ciência visa o estudo da vida mental a partir de três pontos de vista: dinâmico, econômico e topológico. Do ponto de vista dinâmico, (…) a psicanálise extrai todos os processos mentais (independentes da recepção de estímulos externos) da ação mútua de forças, que ajudam ou inibem umas às outras, se combinam, entram em conciliações umas com as outras etc. Todas essas forças são originalmente da natureza de pulsões; assim, possuem uma origem orgânica. São caracterizadas por possuírem uma reserva de energia (somática) imensa ('a compulsão à repetição'); e são representadas mentalmente como imagens ou idéias com uma carga afetiva (Freud 1926: Psicanálise, v. XX).
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Do ponto de vista econômico, (…) a psicanálise supõe que os representantes mentais das pulsões têm uma carga (catexia) de quantidades definidas de energia, sendo finalidade do aparelho mental impedir qualquer represamento dessas energias e manter o mais baixo possível o volume total das excitações com que ele se acha carregado. O curso dos processos mentais é automaticamente regulado pelo 'princípio do prazer-desprazer'; o desprazer está assim de certa forma relacionado com um aumento de excitação, e o prazer com uma redução (Freud 1926: Psicanálise, v. XX).
Do ponto de vista topológico, (…) a psicanálise considera o aparelho mental como um instrumento composto, esforçando-se por determinar em quais pontos dele ocorrem os vários processos mentais. De acordo com os pontos de vista psicanalíticos mais recentes, o aparelho mental compõe-se de um 'id', que é o repositório dos impulsos pulsionais, de um 'ego', que é a parte mais superficial do id e aquela que foi modificada pela influência do mundo externo, e de um 'superego', que se desenvolve do id, domina-o e representa as inibições das pulsões que são características do homem. A qualidade da consciência, também, conta com uma referência topográfica, pois os processos no id são inteiramente inconscientes, ao passo que a consciência é a função da camada mais externa do ego, que se interessa pela percepção do mundo externo (Freud 1926: Psicanálise, v. XX).
O conceito freudiano de pulsão (trieb) aparece pela primeira vez em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, 1905. Em As pulsões e suas vicissitudes, 1915, Freud situa a pulsão no limiar entre o psíquico e o somático, definindo-a como o representante psíquico das excitações que se originam no interior do corpo e que tendem à descarga. Essas excitações vêm a se localizar em três regiões do corpo: a boca, o ânus e os genitais. Jacques Lacan acrescenta os olhos e os ouvidos. Marco Antonio Coutinho Jorge (Jorge 2000), resgata as narinas a partir dos textos freudianos que se referem à noção de recalque orgânico. Cada zona erógena do corpo se liga respectivamente aos seguintes objetos: o seio, as fezes, os órgãos sexuais, o olhar, a voz e os odores. Temos então respectivamente as seguintes pulsões: oral, anal, genital, escópica, invocante e olfativa. Essas pulsões são constituídas por quatro elementos: 1- Força constante: Uma pulsão (…) jamais atua como uma força que imprime um impacto momentâneo, mas sempre como um impacto constante (Freud 1915: As pulsões e suas vicissitudes, v. XII). Por pressão [Drang] de uma pulsão compreendemos seu fator motor, a quantidade de força ou a medida da exigência de trabalho que ela representa. A característica de exercer pressão é comum a todas as pulsões; é, de fato, sua própria essência. Toda pulsão é uma parcela de atividade (Freud 1915: As pulsões e suas vicissitudes, v. XII).
2- Fonte: Por fonte [Quelle] de uma pulsão entendemos o processo somático que ocorre num órgão
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ou parte do corpo, e cujo estímulo é representado na vida mental por uma pulsão Freud (Freud 1915: As pulsões e suas vicissitudes, v. XII). 3- Objeto parcial: O objeto [Objekt] de uma pulsão é a coisa em relação à qual ou através da qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade. É o que há de mais variável numa pulsão e, originalmente, não está ligado a ela, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação (Freud 1915: As pulsões e suas vicissitudes, v. XII). 4- Finalidade: A finalidade [Ziel] de uma pulsão é sempre satisfação, que só pode ser obtida eliminandose o estado de estimulação na fonte da pulsão (Freud 1915: As pulsões e suas vicissitudes, v. XII).
Se a força de uma pulsão se caracteriza pela constância, isto significa que, mesmo que seu alvo - a satisfação (gozo) - seja atingido, resta sempre uma quantidade de energia que nunca é zerada. Toda satisfação pulsional, por melhor que seja, nunca é total, completa. Assim o circuito das pulsões nunca se fecha. É nesse sentido que Lacan afirma que a pulsão "não tem dia nem noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida" (Lacan 1988: 157). Além de uma satisfação parcial, Freud insiste em que não existe o objeto que seria por sua própria natureza pulsional. Se qualquer objeto pode ser colocado a serviço da satisfação das pulsões, logo eles também são parciais. As propriedades dos elementos que constituem a natureza da sexualidade humana determinam então o caráter parcial das pulsões. Do nascimento à morte do homem, essas pulsões sexuais sofrem processos de transformações que são definidos por Freud como modalidades de defesa. Essas vicissitudes também são quatro: reversão a seu oposto, retorno em direção ao próprio eu, recalque e sublimação. A reversão a seu oposto apresenta dois processos distintos: 1º) a mudança de atividade para passividade em relação à finalidade da pulsão (sadismo-masoquismo e escopofiliaexibicionismo); 2º) a reversão de conteúdo que se encontra "no exemplo isolado da transformação do amor em ódio" (Freud 1915: As pulsões e suas vicissitudes, v. XII). Em relação ao retorno em direção ao próprio eu, diz Freud: O retorno de uma pulsão em direção ao próprio eu (self) do indivíduo se torna plausível pela reflexão de que o masoquismo é, na realidade, o sadismo que retorna em direção ao próprio ego do indivíduo, e de que o exibicionismo abrange o olhar para o seu próprio corpo (Freud 1915: As pulsões e suas vicissitudes, v. XII).
O recalque e a sublimação não são abordados no texto de 1915. No mesmo ano, ele dedica um artigo ao recalque. A sublimação é um conceito que se apresenta disperso em sua obra. Inicialmente vamos encontrar esse conceito ligado às fantasias histéricas com a função de proteger fragmentos de lembranças recalcadas e à identificação1 decorrente das transferências. 1 “A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (Freud, 1921: Psicologia de grupo e a análise do ego, capítulo VII, “Identificação”).
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Em primeiro lugar, adquiri uma noção segura da estrutura da histeria. Tudo remonta à reprodução de cenas [do passado]. A algumas se pode chegar diretamente, e a outras, por meio de fantasias que se erguem à frente delas. As fantasias provêm de coisas que foram ouvidas, mas só posteriormente entendidas, e todo o material delas, é claro, é verdadeiro. São estruturas protetoras, sublimações dos fatos, embelezamento deles e, ao mesmo tempo, servem para o alívio pessoal (Freud 1986: 240. Carta de 28. de abril de 1897). O que são as transferências? São reedições, reproduções das moções e fantasias que, durante o avanço da análise, soem despertar-se e tornar-se conscientes, mas com a característica (própria do gênero) de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico. Dito de outra maneira: toda uma série de experiências psíquicas prévia é revivida, não como algo passado, mas como um vínculo atual com a pessoa do médico. Algumas dessas transferências em nada se diferenciam de seu modelo, no tocante ao conteúdo, senão por essa substituição. São, portanto, para prosseguir na metáfora, simples reimpressões, reedições inalteradas. Outras se fazem com mais arte: passam por uma moderação de seu conteúdo, uma sublimação, como costumo dizer, podendo até tornar-se conscientes ao se apoiarem em alguma particularidade real habilmente aproveitada da pessoa ou das circunstâncias do médico. São, portanto, edições revistas, e não mais reimpressões (Freud 1905 [1901]: Fragmento da análise de um caso de histeria, v.VII).
No processo de elaboração de sua teoria, a noção de fantasia passa a se articular diretamente com as vicissitudes das pulsões. Em relação à sublimação, Lacan privilegia a definição dada no capítulo "A sexualidade infantil", que se encontra em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: desvio da finalidade da pulsão sem ação do recalque. Ou seja: a realização de uma satisfação não sexual sem a produção de inibições ou formações reativas (sintomas), porque não houve repúdio do sexual, mas sim redirecionamento da finalidade para "objetivos assexuais mais elevados", "destinando, assim, uma parte da energia libidinal para as realizações culturais (Freud 1905 [1901]: Fragmento da análise de um caso de histeria, v. VII). Lacan, ao retornar o conceito freudiano de pulsão, se descarta da referência ao biológico, porque privilegia a ordem do símbolo em tudo que diz respeito ao ser humano: "tudo surge da estrutura do significante" (Lacan 1988: 196), e o significante "está primeiro no campo do Outro" (Lacan 1888: 195). Esse campo remete para um lugar, uma estrutura e um suporte: o lugar é o do código, da palavra e do significante; a estrutura é a mesma da linguagem; e o suporte é o significante Nome-do-Pai, que tem como função a inscrição da Lei, inaugurando desse modo o desejo e sua estrutura de falta de objeto. As pulsões sexuais e parciais, como marca da sexualidade humana, não só estão sujeitas à dimensão simbólica, mas também são instaladas "pela intervenção de algo que não é do campo da pulsão" (Lacan 1988: 171). A inauguração de uma pulsão e sua passagem para outra pulsão, como por exemplo da oral à anal, não se efetua por causa de um processo de maturação biológico do corpo, mas sim pela mudança de intervenção da demanda do Outro e seus representantes.
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Em A significação do falo2, Lacan afirma que o conceito de pulsão freudiana é marcado de ponta a ponta por uma estrutura de falta de objeto: Na doutrina freudiana, o falo não é uma fantasia, caso se deva entender por isso um efeito imaginário. Tampouco é, como tal, um objeto (parcial, interno, bom, mau etc.), na medida em que esse termo tende a prezar a realidade implicada numa relação. E é menos ainda o órgão, pênis ou clitóris, que ele simboliza. E não foi sem razão que Freud extraiu-lhe a referência do simulacro que ele era para os antigos (Lacan 1988: 696).
Ele recorre a letra a minúscula para designar os objetos parciais das pulsões sexuais: objetos a, cuja função é substituir não o falo, mas sua ausência. É preciso então marcar a distinção entre o falo como objeto, como significante e como símbolo. O falo como objeto (Φ) só pode se apresentar sob a forma de privação: falta-a-ter. O falo como significante (ϑ) do desejo do desejo do Outro inaugura o advento de um sujeito dividido entre sua marca fálica (Significante mestre, S1) e todos os outros significantes (S2), que têm a função de representar essa marca (S1). É na articulação desse significante primordial (S1) com outros significantes (S2) que se produz a significação que vela o significado indecifrável da marca fálica do sujeito (S1). O falo como símbolo é signo3 do dom e introduz o amor em uma dialética que gira em torno da falta de objeto. Diz Lacan: "No extremo amor, no amor mais idealizado, o que é buscado na mulher é o que falta a ela. O que é buscado, para além dela, é o objeto central de toda a economia libidinal: o falo" (Lacan 1995: 111). O simbolismo do dom situa o eixo do amor exatamente naquilo que o objeto não tem4. O amor, e não o objeto amado, é elevado à categoria de sublime. Quando se ama o amor, como é o caso do amor cortês, o gozo sexual é interditado pela via da inacessibilidade do objeto. Isto se chama sublimação. Em O seminário 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan chama atenção para o fato de que se o alvo da pulsão é a satisfação, é lógico que ele é obtido na sublimação. Só que não se trata mais de uma satisfação sexual, mas de outra satisfação que, sem ação do recalque, adquire o mesmo valor que a satisfação sexual. Exemplificando essa equivalência, ele diz: "por enquanto, eu não estou trepando, eu lhes falo, muito bem!, eu posso ter a mesma satisfação que teria se eu estivesse trepando (Lacan 1988: 159-160). "Essa oposição ("eu não estou trepando" X "eu estou falando") indica em relação à pulsão: 1º) a importância da satisfação; 2º) a distinção entre satisfação sexual e outra satisfação; 3º) o caráter paradoxal de toda satisfação pulsional. A razão do sofrimento, apesar do sujeito se queixar dele, está na satisfação. É claro que o sexual, por ter sido recalcado nessa satisfação, retorna sob a forma
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Texto que se encontra em Escritos, 1998.
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Signo é empregado com o seguinte sentido: aquilo que representa alguma coisa para alguém. O falo como signo do dom (_), portanto simbólico, significa então alguma coisa que o sujeito recebe do Outro com valor de dádiva, de presente. 4 O simbolismo do dom se opõe ao imaginário do dom, reino das paixões, onde o objeto amado é imaginado como se fosse a outra metade, ou seja, como aquele que teria justamente o que falta ao amante.
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de sintomas. Qualquer satisfação é sempre paradoxal, porque coloca em cena alguma coisa da ordem do impossível. Este não é o contrário do possível, mas simplesmente o modo pelo qual real se apresenta para o ser falante. No regime da sublimação, ao contrário da idealização, a visada do amor é a não satisfação, porque não há o recalque do real como impossível. O imaginário do dom situa o eixo do amor na suposição de que o objeto tem exatamente o que falta ao amante. A supervalorização do objeto faz com que ele seja apreendido, ao nível imaginário, como se fosse o falo (-ϑ). Isto se chama idealização. Na idealização, o comparecimento do real, como falta estruturante que sustenta o desejo do homem, é recalcado. Um dos caminhos para o recalque dessa falta nos foi dado pelo Cristianismo, que colocou o amor no lugar do desejo. Essa substituição veio acompanhada da condenação ao sexo, transformando a falta com sentido de privação em falta com sentido de pecado. O amor é transcendente e o desejo sexual é abjeto. A via da purificação do impuro é o amor. Mas para isto é preciso recalcar as exigências das pulsões. O retorno do recalcado é o inferno do homem. "Nenhuma mulher - escreve Nelson Rodrigues - trai por amor ou desamor. O que há é o apelo milenar, a nostalgia da prostituta, que existe ainda na mais pura" (Rodrigues 1997: 10) Assim, para ele, "o desejo, como tal, se frustra com a posse" e "a única coisa que dura para além da vida e da morte é o amor" (Rodrigues 1997: 10). Nos poemas líricos de Gregório, o amor acossado pelo desejo sexual se transfigura em mal, tornando-se a fonte de sofrimentos: Em mim não são as lágrimas bastantes Contra incêndios, que ardentes me maltratam, Nem estes contra aqueles são possantes. Contrários contra mim em paz se tratam, E estão em ódio meu tão conspirantes, Que só por me matarem não se matam. (Guerra 1976: 212)
Para Freud, os afetos de forma genérica designam estados emotivos agradáveis ou penosos. Do ponto de vista econômico, eles são a descarga de uma quantidade de energia sexual (libido5) ligada às pulsões. Toda pulsão se manifesta em dois registros: do afeto (quantum de afeto) e da representação. Lacan, lendo Freud, assinala que "a pulsão libidinal está centrada na função do imaginário" (Lacan 1979: 144) Qual é o móvel concreto que determina o funcionamento da enorme mecânica sexual? (…) Não é a realidade do parceiro sexual, a particularidade de um indivíduo, mas algo que tem a maior relação com o que acabo de chamar o tipo, a saber, uma imagem (Lacan 1979: 144).
O repúdio de uma satisfação pulsional (gozo), transformando-a em experiência traumática, promove a separação entre o afeto e a representação pulsional que lhe deu origem.
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“Dei o nome de libido à energia das pulsões sexuais” (Freud 1925 [1924]: Um estudo autobiográfico, v. xx).
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A representação recusada sofre a ação do recalque: mecanismo psíquico que tem como função retirar de cena o repudiado e mantê-lo afastado da consciência. A lei do recalque ditada pelo regime do inconsciente é o retorno do recalcado. Do embate de forças antagônicas (consciente X inconsciente) resulta a camuflagem do retorno do recalcado sob a forma de sintomas. A satisfação (ganho secundário para Freud e gozo para Lacan) com os sintomas (formações substitutivas) se articula com os afetos que, ao contrário das representações ligadas às pulsões, permanecem inalteradas. É nesse sentido que Freud afirma que os afetos se desligam das representações pulsionais e se conectam com outras representações. Nesse processo, os afetos apresentam três destinos: a conversão (histeria de conversão), o deslocamento (obsessões), e a transformação (angústia, melancolia e fobia). Depois de 1920, quando Freud elabora a segunda tópica do aparelho psíquico (Eu, Superego e Isso), o eu se apresenta como agente do recalque. Na conferência XXXI, "A Dissecação da Personalidade Psíquica" (que se encontra em Novas Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise, 1933 [1932]: v. XXII.), Freud inclusive se refere ao recalcado como sendo um "território estrangeiro para o eu". Enfim, os afetos, como manifestações das pulsões, se apresentam sempre deslocados, invertidos, metabolizados e, às vezes, enlouquecidos. Eles estão sempre à deriva do sujeito, como as pulsões, e, ao oposto delas, são sempre conscientes. Lacan, no Seminário X, A Angústia (Lacan 1962-63: Lição de 14 de Novembro de 1962) afirma que o que é recalcado são os significantes que amarram os afetos às representações pulsionais. Ele articula a concepção freudiana dos afetos com sua teoria sobre a constituição do sujeito como desejante. Ou seja: a origem dos afetos está na relação do sujeito e de seu desejo com o desejo do Outro (lugar dos significantes) e na posição do sujeito como objeto causa do desejo (objeto a). Tanto em Gregório quanto em Nelson as pulsões sexuais são o inferno do ser humano, a causa da prostituição das mulheres e da degradação do homem. Em suas obras, o retorno do recalcado comparece sob a forma do inconfessado, do ignóbil e do obsceno. O sujeito sendo devorado pelas próprias pulsões repudiadas pelo eu, porque foram julgadas e condenadas pelo superego, confirma a célebre frase de Plauto, citada por Freud em O Mal-estar na civilização: "O homem é o lobo do homem" (Freud 1930: v. XXI). Lacan, ao ler os textos de Freud guiado pelas novas ciências da linguagem - antropologia estrutural (Lévy-Strauss) e lingüística (Ferdinand Saussure) -, apresenta o sintoma estruturado como uma linguagem. Esta com sua estrutura "preexiste à entrada de cada sujeito num momento de seu desenvolvimento mental" (Lacan 1998: 498). Mas além da estrutura do significante (linguagem), outra sujeição se impõe ao homem: "Também o sujeito, se pode parecer servo da linguagem, o é ainda mais de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito em seu nascimento, nem que seja sob a forma de seu nome próprio" (Lacan 1998: 498). É nesse sentido que podemos afirmar não só a existência de sintomas, familiar e social, mas também a transmissão desses sintomas através da palavra. Em Nelson Rodrigues, na peça Dorotéia (Farsa Irresponsável em Três Atos), 1949 6,
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Essa peça foi encena no teatro Phoenis, sob a direção de Ziembinski, em 7 de março de 1950.
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o discurso que precede à inscrição de cada um na estrutura familiar foi constituído na terceira geração: todas as mulheres devem sentir náusea na noite de núpcias e estão proibidas de ver o homem: DOROTÉIA - eu sabia o que aconteceu com a nossa bisavó... Sabia que ela amou um homem e se casou com outro... No dia do casamento... D. FLÁVIA - Noite. DOROTÉIA - Desculpe - noite... Na noite do casamento, nossa bisavó teve a náusea... (desesperada) do amor, do homem! D. FLÁVIA (num grito) - Do homem! DOROTÉIA (baixo) - Desde então há uma fatalidade na família: a náusea de uma mulher passa a outra mulher, assim como o som passa de um grito a outro grito... Todas nós - eu também! a recebemos na noite do casamento. (...) D. FLÁVIA - (...) As mulheres de nossa família têm um defeito visual que as impede de ver homem... (frenética) E aquela que não tiver esse defeito será para sempre maldita... e terá todas as insônias... (novo tom) Nós nos casamos com um marido invisível... (violenta) Invisível ele, invisível o pijama, os pés, os chinelos... (Apenas informativa) É assim desde que nossa bisavó teve a sua indisposição na noite de núpcias 7 (Rodrigues 1981: 200-201).
Gregório de Matos e Guerra é afetado por uma Bahia corrompida pelas "formas de domínio e controle da Metrópole" (Wisnik 1976: 14-15) e dilacerada entre o dizer e o fazer. De um lado, as práticas política, econômica e administrativa dos governantes, regidas pelo imperativo do enriquecimento a qualquer custo e apoiadas pelos sacerdotes e juristas. De outro lado, um discurso oficial que se sustenta nos preceitos cristãos com os quais o poeta se identifica e uma literatura acadêmica recheada por palavras vazias, que giram em torno de temas laudatórios, apregoando valores de uma moral contra-reformista ao gosto do estilo barroco. O poeta se revolta contra um mundo desconcertado, onde a verdade do discurso oficial é a mentira sabida e calada por todos: "Ninguém vê, ninguém fala, nem impugna" (Guerra 1976: 44). Brancos, pretos, mestiços e mulatos: fidalgos ou plebeus, ricos ou pobres, governantes ou governados não importam, todos se degeneram. A Lei do enriquecimento ou da sobrevivência é a subversão das leis: "Neste mundo é mais rico o que mais rapa" / "Quem dinheiro tiver, pode ser Papa" (Guerra 1976: 42). A Bahia como metonímia do desconcerto do mundo é o lugar da mentira, dos vícios, da ambição, da usura, da injustiça e da corrupção: Tristes sucessos, casos lastimosos,
Desgraças nunca vistas, nem faladas, São, ó Bahia! Vésperas choradas De outros que estão por vir mais estranhosos (Guerra 1976: 44).
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O grifo é meu.
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Justamente por isto, é preciso denunciar os desmandos dos representantes do Rei, da Igreja e da Lei, que desvastam o poder público: Valha-nos Deus, o que custa O que El-Rei nos dá de graça, Que anda a justiça na praça Bastarda, vendida, injusta (Guerra 1976:38). Sazonada caramunha 8 Enfim, que na Santa Sé O que mais se pratica é Simonia, inveja, unha (Guerra 1976: 38).. Quem haverá que tal pense, Que uma Câmara tão nobre, Por ver-se mísera e pobre, Não pode, não quer, não vence (Guerra 1976: 39).
Nesse cenário, o público invade o privado, interferindo nos costumes e nos valores morais: a sensualidade se expande sem freio moral, convocando ao gozo, que é sempre da ordem do excesso. Nos poemas eróticos, o amor humano se reduz ao desejo sexual, ou seja, a "uma borracheira, / que se acaba co'o dormir, / e co'o dormir começa" (Guerra 1976: 294); o amor divino é profanado pelas freiras, que, interessadas no deus fálico, o protetor dos jardins e da fecundidade, "mandaram perguntar ao poeta por ociosidade a definição do Priapo" (Guerra 1976: 277). O recato e os "bons costumes", que deveriam ser virtudes das mulheres, são profanados quase sempre pelas mestiças, como bem o demonstra o soneto dedicado à mulata Vicência que é "cuidadosa" e "amorosa" (Guerra 1976: 268) com seus três amantes. As palavras chulas para se referir à sensualidade das mulheres, retratando como promíscuas as que se colocam como objeto causa do desejo do homem (objeto a), fazem com que o erotismo descambe para o pornográfico. Lavar para me sujar isso é sujar-me em verdade, lavar para a sujidade fora melhor não lavar; de que serve pois andar lavando antes que mo deis? Lavai-vos, quando o sujeis, e porque vos fique o ensaio, depois de foder lavai-o, mas antes o laveis. (Guerra 1976: 286).
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sazonada caramunha: experimentada lamentação.
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A passagem do erotismo ao pornográfico - da fina ironia ao grotesco - aponta para uma gama de afetos ambivalentes, que ora exaltam, ora recriminam o desejo e o gozo. Como a alma poderia resistir à pressão constante das forças pulsionais gravadas no corpo em uma cidade tão "infame" como "Sodoma e Gomorra"(Guerra 1976: 55)? Do sintoma social ao sintoma do poeta, amor e ódio clamam por vingança. É preciso denunciar a "nobre e opulenta cidade", que tem como doutrina "exaltar os que aqui vêm, e abater os que aqui nascem" (Guerra 1976: 49). E quem tem a moral afetada, no sentido de derrubada, debilitada, enfraquecida, ao ponto de não resistir aos prazeres da carne senão o próprio Gregório? Vítima dos próprios impulsos sexuais, desloca o sentimento de culpa, tema de seus poemas religiosos, para o compromisso de proclamar ao mundo as chagas sociais, tornando-se então vítima da própria obsessão: "antes falar, e morrer, / Que padecer, e calar" (Guerra 1999: 1180). O sintoma lhe deu a alcunha de Boca do Inferno e o levou a abandonar "casa, cargos e encargos, e sair pelo Reconcâvo 'povoado de pessoas generosas' como cantador itinerante, convivendo com todas as camadas da população, metendo-se no meio das festas populares, banqueteando-se sempre que convidado" (Guerra 1976: 13). É lógico que esse sintoma fez com que fosse deportado para Angola, que nos é descrita como o "inferno em vida": terra "de pretos", "de gente oprimida", do "furto", da "malignidade", da "mentira", da "falsidade", de "multidão de mosquitos", "maldita", "triste", "horrorosa" e "escura" 9. Do exílio só pôde voltar ao Brasil desde que não fosse para a Bahia. Desterrado de sua terra natal, instala-se em Pernambuco, cujo ambiente não parece diferir do da Bahia: As Damas cortesãs, e por rasgadas Olhas podridas, são, e pestilências, Elas com purgações, nunca purgadas. Mas a culpa têm vossas reverências, Pois as trazem rompidas, e escaladas Com cordões, com bentinhos, e indulgências (Guerra 1999: 1191).
Segundo James Amado, Gregório chega a Pernambuco "tão maltrapilho que o governador local, 'lastimado do estado a que chegara um homem tão mimoso de natureza', deu-lhe uma bolsa de moedas e recomendou 'cuidasse muito em cortar os bicos à pena". Em 1909, quando Freud descobre a culpa na neurose obsessiva (Freud 1909: Notas sobre um caso de neurose obsessiva, v. X), relaciona esse afeto a um intenso sofrimento que se manifesta de várias formas: dívida impagável, remorso e autorecriminações. Na referida peça de Nelson Rodrigues, Dorotéia se atormenta desde menina com o desabrochar de sua sexualidade, ficando dividida entre o destino que lhe é reservado e as pulsões que ardem em seu corpo. As leis do discurso familiar, interiorizadas, não se restringem apenas aos atos: estendem-se ao pensamento. Dessa forma, o proibido adquire o valor de sentença inquestionável: "É pecado duvidar da náusea" (Rodrigues 1981: 226). E justamente por isto a personagem se consome com idéias obsedantes que a fazem sentir-se culpada:
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Ver códice de James Amado poemas dedicados a Angola.
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DOROTÉIA - Comecei, então, a pensar: "Se me caso não vou ter a náusea"... fiquei com essa idéia na cabeça, me atormentando... Não dormia direito e estava emagrecendo (Rodrigues 1981: 203).
Gregório de Matos e Guerra, em sua poesia religiosa, se apresenta como uma "ovelha desgarrada", que trilhou "os caminhos do engano", não fazendo outra coisa senão delinqüir, ofender e mentir em atos e palavras, porque foi vencido pelo vício da vaidade e da luxúria. Arrependido, o poeta implora perdão, clamando pelo amor divino, cuja infinitude levou Cristo a derramar seu sangue na cruz, cumprindo o desejo do Pai em Nome-do-Amor, que é a salvação dos homens. Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, Cobrai; e não queirais, pastor divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória (Guerra 1976: 297). Arrependido estou de coração, De coração vos busco, dai-me os braços, Abraços, que me redem vossa luz. Luz, que claro me mostra a salvação, A salvação pretendo em tais abraços, Misericórdia, amor, Jesus, Jesus! (Guerra 1976: 299).
Se o amor tem como marca estrutural a ambivalência, ele não só inclui o ódio, mas também se alimenta da fantasia que desata os limites entre sujeito e objeto. Sem dúvida, Gregório vocifera contra a Bahia, porque lhe devota amor extremo. É preciso denunciar as causas que degradam a cidade amada e seu amante. Gregório, além de ser perseguido pelos governantes e seus asseclas (Outro) atacados em suas sátiras -"Que me quer o Brasil, que me persegue"/ Que me querem pasguates, que me invejam (Guerra 1976: 43)?" -, cede à libertinagem (atribuição de julgamento). Assim, a força interior das exigências das pulsões sexuais não só lhe causa estranhamento, mas também é atribuída ao exterior (Outro: Bahia, Brasil, Portugal). Se a carne é fraca, é preciso um freio que fortaleça a consciência moral (superego). Mas isto não é possível em uma cidade, cuja representação é sintetizada pelos verbos furtar e fuder (Guerra 1976: 95). Em Nome-do-Amor, a queda das fronteiras entre sujeito e objeto levam, simultaneamente, ao não reconhecimento do seu desejo pressionado pelas pulsões, ao sentimento de culpa e ao ódio de si mesmo e do mundo (Outro). Sem dúvida, as considerações de Ronaldo Lima Lins sobre o teatro de Nelson também se aplicam a obra de Gregório: a "irreverência", a "paixão pelo grotesco", a "compulsão pela vulgaridade", a "impossibilidade de evitar certos excessos" (Lins 1979: 72), o moralismo do autor e uma "irresistível inclinação para chocar e escandalizar" (Lins 1979: 73). Nos poemas eróticos e satíricos de Gregório, essas características se expressam através de uma linguagem obscena, fazendo com que o erotismo descambe para a pornografia e a crítica social se torne sinônimo de ofensa. Ou seja: a agressividade não é lapidada pelo humor e pela ironia. Já em Nelson Rodrigues, como observa Ronaldo Lima Lins, em primeiro lugar, essas mesmas características se expressam através de um "excesso de naturalismo" (Lins, 1979:
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91), fazendo com que haja "uma profusão de referências a caspa. a suor, a maus cheiros, dedo no nariz, etc (Lins 1979: 91). Em segundo lugar, o sexo em vez de se associar a palavras chulas e obscenas sempre aparece ligado a "profundos complexos de culpa e tremendos conflitos morais" (Lins 1979: 92), o que faz com que a relação entre sexo e vulgaridade não se manifeste através da fala dos personagens, mas sim através de outros recursos cênicos. Diz Ronaldo Lima Lins: De fato, é interessante observar que, enquanto parece revelar certo prazer em descer a detalhes íntimos ou fazer referência a suor, caspa etc., mostra ao mesmo tempo, extrema reserva na escolha do vocabulário utilizado. Um personagem de Nelson Rodrigues, inclusive o mais cafajeste, pode ter um fraseado rico de gíria e de expressões populares (o que em geral acontece), É incapaz, entretanto, de extravasar com uma obscenidade um instante de irritação ou de revelar a pobreza de sua origem social por intermédio de palavreado grosseiro (Lins 1979: 92).
Nelson Rodrigues: o sexo é a maldição e o ódio é o amor. Estes aforismos do subtítulo tecem as tramas do teatro rodrigueano, cujo universo é composto por personagens que se apresentam divididos entre o dever moral (Bem) e o desejo sexual (Mal). De um lado, temos os homens que se agrupam ao conjunto dos crápulas e das vítimas. De outro lado, as mulheres que se bipartem entre as vigilantes da moral e as prostitutas. Em Bonitinha, mas ordinária, 1962, Edgard e Peixoto, dois personagens sem nenhum caráter, tramam um casamento em que Edgar "entra com o sexo e a pequena com o dinheiro" (Rodrigues 1990: 251). Em O beijo no asfalto, 1961, no início do primeiro ato, o diálogo, no Distrito Policial entre o repórter Amado Ribeiro ("um cafajeste dionisíaco") (Rodrigues 1990: 91) e o delegado Cunha ("exuberante e sórdida cordialidade de cafajeste" (Rodrigues 1990: 130), revela sem ambigüidade a perversão e o cinismo desses personagens: Cunha (sem ouvi-lo) - De mais a mais, você sabe, Amado. O Aruba também sabe. Aquilo que você escreveu é mentira! Amado - Ó Cunha, sossega! O que é que há? Cunha (num crescendo) - Mentira, sim, senhor! Mentira! Eu não dei um chute na barriga da mulher! Mentira sua! É mentira! Dei um tabefe! Assim. O Arruba viu. Não foi um tapa? Aruba (gravemente) - Um tapa! Cunha (triunfante) - Um tapa. Ela abortou, não sei por quê. Azar. Agora o que eu não admito. Não admito, fica sabendo. Que eu seja esculachado, que receba um esculacho por causa de um moleque, de um patife como você! Patife! Amado (com triunfal descaro) - Eu não me ofendo! Cunha (desesperado com o cinismo) - Pois se ofenda!
Amado - Acabou? Cunha (num derradeiro espasmo) - Amado Ribeiro, escuta. Eu tenho uma filha. Noiva. Uma filha noiva. Agradeça à minha filha, eu não te dar um tiro na cara (Rodrigues 1990: 92-93).
Nessa mesma peça, Arandir, marido de Selminha, se torna vítima do postulado cristão do amor ao próximo e da paixão de seu sogro:
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Arandir (numa alucinação) - (…) Pela primeira vez. Dália, escuta! Pela primeira vez, na vida! Por um momento, eu me senti bom! (…) Lá, eu fui bom. É lindo! É lindo, eles não entendem. Lindo beijar quem está morrendo! (Grita) Eu não me arrependo! Eu não me arrependo (Rodrigues 1990: 149)!
O não arrependimento de Arandir se refere ao ato de atender ao pedido de um homem desconhecido, que acabou de ser atropelado, e, "morrendo junto ao meio-fio" (Rodrigues 1990: 110), lhe pede um beijo. O jornalista Amado fica eufórico com os proveitos que podem ser tirados dessa cena: aumentar a vendagem do seu jornal e aplacar a ira de Amado por causa da reportagem que fez sobre ele. Amado! - Não interrompe! Ou você não percebe? Escuta, rapaz! Esse caso pode ser a tua reabilitação e olha! - eu vou vender jornal pra burro! Cunha - Mas como reabilitação? Amado - Manja. Quando eu vi o rapaz dar o beijo. Homem beijando homem (Descritivo) No asfalto. Praça da Bandeira. Gente assim. Me deu um troço, uma idéia genial. De repente. Cunha, vamos sacudir essa cidade! Eu e você, nós dois! Cunha. (Rodrigues 1990: 94).
Amado e Cunha, depois do acordo firmado "com a fusão de duas gargalhadas" (Rodrigues 1990: 95), transformam a vida de Arandir em um verdadeiro inferno, fazendo com que ele se torne objeto de escárnio social, afetando dessa forma seu casamento com Selminha. Esses conflitos familiares são o estopim para o retorno do ódio recalcado e do amor inconfesso que leva ao seu assassinato pelo sogro Aprígio: Arandir (atônito e quase sem voz) - O Senhor me odeia porque, deseja a própria filha. É paixão. Carne. Tem ciúmes de Selminha. Aprígio (num berro) - De você! (Estrangulando a voz) Não de minha filha. Ciúmes de você. Tenho. Sempre. (…) Quero que você morra sabendo. O meu ódio é amor. Por que beijaste um homem na boca? (…) (Aprígio atira, a primeira vez. Arandir cai de joelhos. Na queda, puxa uma folha de jornal, que estava na cama. Torcendo-se, abre o jornal, como uma espécie de escudo ou de bandeira. Aprígio atira, novamente, voando o papel impresso. Num espasmo de dor, Arandir rasga a folha. E tomba, enrolando-se no jornal. Assim morre (Rodrigues 1990: 152-153).
Em Dorotéia, as três viúvas, D. Flávia, Carmelita e Maura, que nunca dormem porque estão sempre velando "Para que a alma e a carne não sonhem" (Rodrigues 1981: 206), moram em uma casa em que "não entra homem há vinte anos" (Rodrigues 1981: 206), que só tem salas, "porque é no quarto que a carne e a alma se perdem" (Rodrigues 1981: 206). Para Freud, a origem da lei, desde os tempos mais remotos da história da humanidade, se articula com a proibição, com o parricídio e com o incesto. Mas a existência da lei nunca eliminou sua violação. Muito pelo contrário, a proibição fortalece o desejo e o gozo de transgressão. O não reconhecimento do desejo e o repúdio do gozo promovem a ação do recalque, fazendo com que estes, pela via de deslocamentos constantes (retorno do recalcado), sejam procurados pelo homem em atos e objetos substitutos.
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Em Totem e Tabu, 1913-1914, Freud nos ensina que, quando a lei é interiorizada, o medo se torna mais forte do que o desejo. Nesse texto, ele recorre ao totemismo para demonstrar que o assassinato do pai e a expiação marcam a origem do homem e da cultura. Lacan, no texto "Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia", publicado em Escritos, afirma que, nesse texto, Freud não só reconheceu que a origem da Lei universal está no crime primordial, mas também que "com a Lei e o Crime começava o homem" (Lacan 1998: 132). Dorotéia, ao mesmo tempo, almeja agir conforme seu desejo e se submeter ao desejo do Outro, livrando-se da praga do sexo. Essa ambivalência alimenta o medo do desejo de transgressão, fazendo com que o sentimento de culpa determine a interpretação de acontecimentos imprevistos como aviso dos castigos que estão por vir, se ela persistir em se desviar do destino das mulheres na família: DOROTÉIA - (...) Eu mesmo acho que a família tem o direito de exigir! (mais positiva) E de humilhar... (humilde) Não pensem que estou contra a minha humilhação... Nunca! Até quero ser humilhada... Me desfeiteiem se quiserem (misteriosa) estou desconfiada que a morte de meu filho já foi um aviso (Rodrigues 1981: 213).
Essa ambivalência também reduz a escolha de Dorotéia, que só vislumbra dois caminhos: a virtude (Bem) ou o vício (Mal). A virtude é identificada com a renúncia das pulsões, do amor e do desejo. E o vício só pode ser sinônimo de prostituição. Mas Dorotéia não reconhece sua escolha induzida pela prostituição. A beleza é seu álibi. Ela não herdou a feiúra, como marca das mulheres de sua família. Logo já podemos supor que uma das saídas, encontrada pela personagem para ser aceita de volta ao seio da família, será a destruição do culpado, ou seja, de sua beleza. D. FLÁVIA (num crescendo) - Renegarias tua beleza? Serias feia como eu, como todas as mulheres da família? DOROTÉIA (ARDENTE) - Sim, seria... Feia como tu, ou até mais... DOROTÉIA - Só lhe digo que desejaria ser - horrível! juro... Ser bonita é pecado... Por causa do meu físico tenho tudo quanto é pensamento mau ... sonho ruim... (...) D. FLÁVIA (cariciosa) - E nunca pensaste numa doença?...Numa doença que consumisse tua beleza?... (...) DOROTÉIA (passando a mão pelo próprio rosto) - Este não... (num crescendo) Quer dizer que eu tenho que mudar de rosto? De boca, de olhos... Talvez de cabelos?... D. FLÁVIA - Sim... E de corpo também... então, nós te aceitaremos na família... Serás igual a nós... (Rodrigues 1981: 212-213)
Em 1915, no artigo Luto e Melancolia, publicado em 1917, Freud elabora a seguinte tese sobre a melancolia: quando a perda do objeto amado é experimentada como perda de uma parte do próprio eu, o esfacelamento do limite entre o eu e o objeto desencadeia um intenso sofrimento, que se expressa de diversos modos: desânimo, prostração, desinteresse por tudo que não se relaciona com o objeto amado, incapacidade de amar de novo, diminuição da autoestima, auto-acusação, auto-aviltamento e espera de punição. A identificação do eu com o
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objeto produz uma clivagem no eu por "motivos de ordem moral", fazendo com que as recriminações contra o objeto retornem ao próprio eu, sob a forma de auto-recriminações. Nesse caso, a quantidade de libido investida no objeto retorna ao próprio ao eu. Não deixa de ser surpreendente Freud afirmar que a melancolia como um processo de regressão da libido ao eu é um recurso para impedir a morte do amor. Dorotéia - "a ruim", "a que se desviou" e que se prostitui - vivia em conflito com uma dupla recusa: não aceitar o lugar dado às mulheres no discurso familiar e não renunciar ao gozo sexual. É certo que o repúdio ao gozo sexual só permitia sua fruição no cenário da prostituição. Mas a força do ódio contra si mesma só aparece com a morte de seu filho. É só a partir daí que o desejo inconsciente de punição se desloca para o próprio corpo, já que é nele que se inscreve o gozo. Quem melhor do que um filho para representar o objeto amado como parte de si mesma? A recusa de enterrar o corpo do filho morto, velando-o noite e dia, é o modo pelo qual a personagem tenta manter a unidade do seu eu. DOROTÉIA (feroz) - Nunca!... (crispando as mãos na altura do peito) Eu não enterraria um filho meu... Um filho nascido de mim... (doce) Enterrar, só porque morreu?... Não, isso não... (muda de tom) Vesti nele uma camisolinha de seda, toda bordada a mão, comprei três maços de vela... Quando acabava uma vela, acendia outra... antes, tinha fechado tudo... Fiquei velando, não sei quantos dias, não sei quantas noites... Até que bateram na porta... tinham feito reclamação, porque não se podia suportar o cheiro que havia na casa... (feroz) Mas eu juro, dou minha palavra de mãe, que o cheiro vinha de outro quarto, não sei. De lá, não... (muda de tom) E sabe quem foi fazer a denúncia? Uma vizinha, que não se dava comigo... (doce) levaram o anjinho, (agressiva) mas tiveram que me amarrar, senão eu não deixava... (Rodrigues 1981: 215).
Quando esse filho morto é arrancado de seus braços, Dorotéia toma para si a proibição imposta pela família às mulheres. Assim, em vez de se matar como a outra Dorotéia, "a que se afogou de ódio e de dor", escolhe o caminho da expiação e aceita o castigo imposto pelas três viúvas: D. Flávia, Carmelita e Maura. Para essas mulheres - que são primas e permanecem o tempo todo em cena com máscaras que cobrem seu rosto - a vergonha eterna é "saber que temos um corpo nu debaixo da roupa" (Rodrigues 1981: 207). Justamente por isto, elas vivem em "obstinada vigília, através dos anos. Elas não dormem para não sonhar, porque elas sabem que "no sonho, rompem volúpias secretas e abomináveis" (Rodrigues 1981: 197). O reconhecimento da morte do filho se torna então sinônimo de sua própria morte como sujeito desejante: DOROTÉIA - Então eu pensei na minha família... Em vós.. Jurei que havia de ser uma senhora de bom conceito... E aqui estou... (As viúvas unem-se em grupo. Estão na defensiva contra a intrusa). D. FLÁVIA - Esta casa não te interessa... Aqui não entra homem há vinte anos... DOROTÉIA - Sempre sonhei com um lugar assim... Quantas vezes em meu quarto... D. FLÁVIA (num crescendo) - Só falas em quarto! Em sala nunca! (aproxima-se de Dorotéia que recua) Aqui não temos quartos!
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(A palavra quarto obriga as viúvas a cobrirem-se com o leque, em defesa do próprio pudor.) D. FLÁVIA (dogmática) (sinistra e ameaçadora) Porque é no quarto que a carne e alma se perdem!... Essa casa só tem salas e nenhum quarto, nenhum leito... Só nos deitamos no chão frio do assoalho... (Rodrigues 1981: 206)
Freud, no texto "Criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa", 1916, que faz farte de três artigos reunidos com o título de Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho analítico, se refere aos crimes ou delitos motivados pelo sentimento de culpa: (...) tais ações eram praticadas principalmente por serem proibidas e por sua execução acarretar, para seu autor, um alívio mental. Este sofria de um opressivo sentimento de culpa, cuja origem não conhecia, e, após praticar uma ação má, essa opressão se atenuava. Seu sentimento de culpa estava pelo menos ligado a algo. Por mais paradoxal que isso possa parecer, devo sustentar que o sentimento de culpa se encontrava presente antes da ação má, não tendo surgido a partir dela, mas, inversamente - a iniqüidade decorreu do sentimento de culpa (Freud s.d.: v. XIV).
Esses atos criminosos, nomeados por Lacan de "crimes ou delitos provenientes do superego" ou de "casos que decorrem claramente do edipianismo" (Lacan 1998: 137) levaram Freud à descoberta de que a origem da ação criminosa está no sentimento de culpa. É claro que nem todos os crimes têm o sentimento de culpa como causa. Mas aqueles que são motivados por ele têm origem nos únicos crimes que são considerados abomináveis por todas as culturas: o parricídio e o incesto. Dessa forma, o ato criminoso teria como finalidade atenuar o sentimento de culpa, que se constitui no conflito edipiano, fazendo com que seja deslocado para outro crime, a fim de que a culpa permaneça deslocada da causa que lhe deu origem. É nesse sentido que Freud afirma que o ato criminoso traz alívio ao sujeito atormentado. Ismael, a personagem da peça Anjo Negro (Tragédia em três atos), 1946, comete duplo assassinato para apaziguar o ódio, que tinha por seu pai branco de origem italiana, e o desejo incestuoso, que tinha por sua mãe, uma mulher negra. Ismael mata Elias, seu irmão por parte de pai, com um tiro no rosto. E mata Ana Maria, que ele adota como filha, mesmo sabendo que é fruto do adultério de sua mulher (Virgínia) com seu irmão branco (Elias). A rivalidade com o pai é sustentada pela fantasia infantil de que o objeto do desejo de sua mãe é o pai, porque ele não é preto. Essa mesma fantasia o leva a suposição de que o irmão, filho do primeiro casamento de seu pai, mesmo não sendo filho de sua mãe, é o seu preferido porque não é preto. A cor da pele se torna então símbolo de uma dádiva, que não pode ser outra, senão o falo. Ismael, por não renunciar à posição de objeto do desejo da mãe (falo da mãe), odeia todos os negros, e se coloca nessa posição fálica em relação à filha adotiva, que ele cegou com as próprias mãos, a fim de que ela não saiba que ele é preto. Virgínia e Ana Maria, mãe e filha, se odeiam porque se vêem como rivais, lutando pelo amor do mesmo homem (Ismael): ANA MARIA - Eu sabia! VIRGÍNIA - Você foi sempre minha inimiga. ANA MARIA - sempre.
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VIRGÍNIA (para si mesma) - Oh, quando ele me disse que era menina e não menino! Eu vi que não teria nunca - nesta casa - o amor de dois homens. Há 16 anos que não faço outra coisa senão ter ódio de ti! (...) (Rodrigues 1981: 186)
O coro, encenado por mulheres negras com pés descalços, anuncia, desde o terceiro ato, que é preciso matar Ana Maria, "antes que seja tarde!", "Antes que o desejo desperte na sua carne (Rodrigues 1981: 186)!" Virgínia (escarnecendo) - E pensa que você é branco, louro! (triunfante) Se ela soubesse que és preto!... (muda de tom) Ela te ama porque acha que és o único branco... Ama um homem que não é você, que nunca existiu... Se ela visse você como eu vejo - se soubesse que o preto é você (ri ferozmente) e os outros não; se visse teus beiços, assim como são, ela te trocaria, até, por esse homem de seis dedos. (Agarra-se mais ao marido, envolve-o.) Virginia - Agora, eu não!... Eu te quero preto, e se soubesses como te acho belo, assim como os carregadores de piano! De pés descalços, cantando (Rodrigues 1981: 189-190)!
Os deslocamentos do objeto do desejo e do ódio implicam, respectivamente, as substituições da mãe (preta) pela filha (branca) e do pai (branco) por sua mulher (branca). Assim, Virgínia, a esposa, tem para Ismael a mesma função que o pai real tem na castração: interditar o objeto do desejo. Ismael, persuadido pela esposa (Virgínia), mata Ana Maria. Este ato extremo não só apazigua o sentimento de culpa, ligado ao desejo incestuoso de sua infância, mas também impede a satisfação de um gozo incestuoso com a filha. Virgínia, por sua vez, trama a morte da filha, para aliviar o ódio e o sentimento de culpa que a persegue desde a adolescência, quando estava apaixonada pelo noivo de sua prima. O homem que satisfaz a singularidade do seu gozo, além de ser preto, é quem a estuprou, quando ela tinha 15 anos, com o consentimento de sua tia. É por causa desse gozo abjeto, ou como diria Nelson, do sexo sem amor, que Virgínia mata todos os filhos pretos que saem do seu ventre. Agora é a vez de Ismael sujar suas mãos com o crime. Tanto para Ismael quanto para Virgínia, o crime não só tem valor de redenção, mas também é a via pela qual se realiza o desejo inconsciente de castigo. Justamente por isto, Freud nos ensina que, quando o objeto amado é colocado no lugar do ideal do eu, "a consciência não se aplica a nada que seja feito por amor do objeto; na cegueira do amor, a falta de piedade é levada até o diapasão do crime.(Freud 1921: Análise de grupo e psicologia do ego, capítulo VIII, "Estar amando e hipnose", v. XVIII). Desde a criação da segunda tópica, a necessidade de punição se articula à hipótese freudiana de que se desenvolve uma instância crítica no eu que entra em conflito com ele. Em Psicologia de grupo e análise do eu, 1921, no capítulo "Identificação", Freud nomeia essa instância crítica de ideal do eu, atribuindo-lhe as funções de: auto-observação, consciência moral, censura dos sonhos e principal agente do recalque. Dois anos depois, em O ego e o Id, 1923, o ideal do eu, como equivalente do superego, é definido como sendo a instância do eu "que se manifesta de forma impositiva", constituindo "a expressão dos mais poderosos impulsos e das mais importantes vicissitudes
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libidinais do id". Essa descoberta permitiu-lhe conceber uma parte inconsciente do eu que insiste em retirar satisfação do sofrimento. A primeira hipótese estabelecida é que a origem dessa insistência do superego estaria em um "sentimento inconsciente de culpa". Freud não ignora que essa conjectura coloca, como ele mesmo diz, "novos problemas", já que até esse momento ele sustentava que todos os afetos eram conscientes. No ano seguinte, quando se dedica ao estudo do masoquismo (Freud 1924: O problema econômico do masoquismo), depois de apresentar os três tipos de masoquismos (erógeno, feminino e moral), afirma que o masoquismo moral é a descoberta mais recente da psicanálise. Ele o define como necessidade inconsciente de satisfação com o sofrimento. Em seguida, acrescenta que esse masoquismo é o único que não tem como precondição o amor. Não importa a causa, "o verdadeiro masoquista sempre oferece a face onde quer que tenha oportunidade de receber um golpe". Reformula então a hipótese inicial para afirmar que a causa do masoquismo moral está no desejo inconsciente de punição. Estabelecida a diferença entre a necessidade de punição, que é inconsciente, e o sentimento de culpa que, como todos os afetos, é consciente, a origem do desejo de punição remete para o drama do complexo edípico. Freud inclusive utiliza o conceito kantiano de imperativo categórico para sublinhar o caráter duro, cruel e inexorável do superego que, como "herdeiro direto do complexo de Édipo", entra em ação, exigindo a punição através do sofrimento. Lacan, desde o Seminário 1: Os escritos técnicos de Freud, insiste na distinção entre o ideal do eu e o superego: "O supereu se situa essencialmente no plano simbólico na palavra, à diferença do ideal-do-eu" (Lacan 1979: 123). Isto não significa que a dimensão simbólica esteja excluída do ideal do eu. Muito pelo contrário, o ideal do eu se constitui na ligação do sujeito com o outro como semelhante mediada pela palavra. Trata-se então do modo pelo qual o simbólico se articula com o imaginário. Se a imagem do outro como falante (semelhante) adquire para o sujeito um valor cativante, a inflação do imaginário produz a superestimação do outro, realizando "uma verdadeira subdução do simbólico, uma espécie de anulação, de perturbação da função do ideal do eu" (Lacan 1979: 166). Essa obliteração do simbólico pelo imaginário é provocada por uma captação narcísica que se chama amor. Diz Lacan: A estreita equivalência do objeto e do ideal do eu na relação amorosa é uma das noções mais fundamentais na obra de Freud, e a reencontramos a cada passo. O objeto amado é, no investimento amoroso, pela captação que ele opera do sujeito, estritamente equivalente ao ideal do eu (Lacan 1979: 49).
Eis algumas passagens de Psicologia de grupo e a análise do ego (Freud s.d. v. VIII), 1921, onde o ideal do eu, ligado ao processo de identificação pela via da idealização, referenda a leitura de Lacan: Em muitas formas de escolha amorosa, é fato evidente que o objeto serve de sucedâneo para algum inatingido ideal do ego de nós mesmos. Nós o amamos por causa das perfeições que nos esforçamos por conseguir para nosso próprio ego e que agora gostaríamos de adquirir, dessa maneira indireta, como meio de satisfazer nosso narcisismo (Freud 1921: Psicologia de grupo e análise do ego, capítulo VIII, v. XVIII).
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Há sempre uma sensação de triunfo quando algo no ego coincide com o ideal do ego (Freud 1921: Psicologia de grupo e análise do ego, Capítulo XI, "Uma gradação diferenciadora no ego, v. XVIII).
Ao contrário do exaltante ideal do eu, o superego é constrangedor, imperativo e se articula com "o registro e com a noção de lei, quer dizer, com o conjunto do sistema da linguagem, na medida em que define a situação do homem enquanto tal, quer dizer, enquanto não é somente indivíduo biológico (Lacan 1979: 123). A relação do superego com a lei se marca pelo seu caráter "insensato, cego, de puro imperativo, de simples tirania" (Lacan 1979: 123). Essa relação do superego com a lei não deixa de ser paradoxal na medida em que "chega até a ser o desconhecimento da lei" (Lacan 1979: 123). Em O seminário 20, Mais, ainda, Lacan acrescenta: "Nada força ninguém a gozar, senão o superego: O superego é o imperativo do gozo - Goza!" (Lacan 1982; 11). Esse superego feroz e impositivo aparece de várias formas para Dorotéia. Destaco apenas as alucinações auditivas e visuais: as vozes, que ela escuta lhe "chamando para a perdição" (Lacan 1981: 204) e a visão do jarro. Não deixa de ser grotesco e, talvez, por isto Nelson coloque, como subtítulo dessa peça, a expressão Farsa irresponsável em três atos, a escolha de um objeto decorativo - um jarro de louça "com flores desenhadas em relevo" (Rodrigues 1981: 209) - com a função de representar o superego. Na tradição mítica do ciclo bretão, precisamente nas lendas em torno do Rei Artur, vamos também encontrar um objeto de uso, o cálice, com uma função simbólica. Só que não se traça de um cálice qualquer. Trata-se de um objeto que adquiriu valor sacro: José de Arimatéia, o soldado romano convertido, recolhe com seu cálice as gotas do sangue de Cristo crucificado, nas horas finais de sua agonia. A partir desse ato, esse cálice recebe um nome Graal -, adquire uma aura e se torna emblema de uma dádiva divina: um gozo para além do falo, gozo da beatitude, que permanece sem decifração em todos os textos. O jarro no texto rodrigueano não tem o mesmo valor do da lenda arturiana. Daí o caráter grotesco desse objeto que aparece toda vez em que o desejo e as pulsões entram em cena. DOROTÉIA - Depois que meu filho morreu, não tenho tido mais sossego... O jarro me persegue... anda atrás de mim... (...) Quando um homem qualquer vai entrar na minha vida, eu o vejo... direitinho... (baixa a voz) Sei, então, que não adiantará resistir... Que não terei remédio senão agir levianamente... (com terror) É isso que eu não quero (feroz) Depois que meu filho morreu, não! (suplicante) Porém, se me expulsares, ou se demorardes numa solução (terror) o jarro aparecerá... (Rodrigues 1981: 209)
O primeiro ato de Dorotéia termina com a personagem implorando punição: DOROTÉIA - (...) Peço maldição para mim mesma... Maldição para o meu corpo... E para os meus olhos... E para os meus cabelos... (num último grito estrangulado) Maldição ainda para a minha pele (Rodrigues 1981: 216)!
Dorotéia sofre, tortura-se, sente-se culpada e clama por castigo por ter se prostituído e pela morte do filho. Todos esses afetos estão no registro do consciente. O que ela não sabe e não quer saber é que o desejo de punição inconsciente é que a leva à prostituição: fazer sexo e gozar só como prostituta.
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Desde há muitos séculos, o social condena as profissionais do sexo: elas não servem nem para amar, nem para casar, só para gozar. E, como se isto não bastasse, o destino reservado para as mulheres virtuosas é gozar com o sofrimento. Na peça, além de casar e sofrer, é preciso sentir a náusea na noite de núpcias e ter um defeito visual que impeça as mulheres "de ver homem" (Rodrigues 1981: 201). Diz D. Flávia: "E aquela que não tiver esse defeito será para sempre maldita… e terá todas as insônias (…) Nós nos casamos com um marido invisível… (…) É assim desde que nossa bisavó teve a sua indisposição na noite de núpcias…" (Rodrigues 1981: 201). Freud, ao retomar a questão do masoquismo moral, em O Mal-estar na Civilização, 1930 [1929], afirma que a submissão do eu ao superego e o conflito que se estabelece entre eles, desencadeando a necessidade de punição, têm sua origem no medo de autoridade. Este medo remete à ameaça de castração, ponto nodal do drama vivido no complexo de Édipo, quando o pai entra em cena para exigir a renúncia às satisfações pulsionais (proibição do incesto articulada com a descoberta dos genitais como zonas erógenas). Para Lacan, a castração corresponde ao segundo tempo do Édipo10, quando entra em cena o pai real, sob a forma de pai terrível: aquele que interdita a mãe. A leitura de Lacan nos coloca diante de duas questões: o pai real como agente da castração e a palavra da mãe. Em O Seminário 17, O Avesso da Psicanálise, ele afirma que "só há um pai real", que é "o espermatozóide" (Lacan 1992: 120). E acrescenta: "até segunda ordem, ninguém jamais pensou em dizer que é filho do espermatozóide" (Lacan 1992: 120). Sei que se poderia argumentar que as técnicas de fertilização artificial deram origem à nomeação, bastante divulgada pelos meios de comunicação, de "pai biológico". Mas é preciso deixar bem claro que para a psicanálise o pai como função não se relaciona nem com o coito, nem com o parto. O pai como símbolo é agente da criação e instaurador da Lei e não pode ser encarnado por ninguém. Trata-se portanto de pura função significante. E, justamente por isto, ele pode ser representado, dependendo da cultura, por uma pedra, uma fonte, um espírito, um deus, um lugar secreto, etc. No mito da criação judaico-cristão, a função simbólica do pai é representada por Deus. Aquele que, como um dos nomes do pai, criou o universo, a terra, o homem, a mulher, o verbo e a primeira proibição. É nesse sentido que se pode estabelecer relações entre a função simbólica do pai e o que Lacan chama de Nome-do-Pai. O Nome-do-Pai é o significante que tem a função de ser o representante do campo do Outro sob a forma da Lei. A Lei com ele maiúsculo não se confunde com as proibições regulamentadas pelas leis. Todas as múltiplas faces da Lei conduzem à impossibilidade do Tudo: não há gozo pleno; não há o objeto do desejo (falo:Φ); não há relação sexual, o que não significa que não haja cópula; não há Α mulher, o que também não significa que as mulheres não existam; não há gozo pleno, não há realização do desejo, a mãe jamais reintegrará o seu produto, etc. Essa impossibilidade aponta para o haver do real e para sua inclusão na estrutura subjetiva como furo (ausência de um saber sobre a espécie: instinto) e como falta (falta de Um signficante). O impossível é o real. Mas se o real é sempre da ordem do impossível, como se
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Ver Seminário 5: As formações do inconsciente.
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pode falar de pai real? É óbvio, nos ensina Lacan, no Seminário 17, que o pai real só pode ser concebido imaginariamente como o pai que interdita o gozo: "a posição do pai real tal como Freud a articula, ou seja, como um impossível, é o que faz com que o pai seja imaginado necessariamente como privador" (Lacan 1992: 121). É nesse sentido que Lacan se refere ao pai real como um "operador estrutural" (Lacan 1992: 116) aquele que, na castração (segundo tempo do Édipo), coloca em cena o impossível sob a forma de proibição. O mesmo é dizer que a proibição, ao nível do enunciado, mascara o que está no cerne da enunciação: o real como impossível. Diz Lacan: "O pai, o pai real, nada mais é que o agente da castração - e é isto que a afirmação do pai real como impossível está destinada a mascarar" (Lacan 1992: 116). Esse pai real, imaginado como pai privador, exerce uma função precisa na castração: afirmar, confirmar, reforçar a função simbólica do pai (Nome-do-Pai) inscrita no primeiro tempo de Édipo: a frustração. Esse tempo remete para as relações mais primitivas da criança com a mãe. Estamos diante de um tempo que poderíamos chamar de decisivo, na medida em que o que acontece na chegada de um ser vivo, extremamente incompetente para sobreviver sem a função materna, irá estruturar, modelar e organizar as experiências de um sujeito diante dos conflitos imaginários vividos no segundo tempo de Édipo (a castração). Aqui, o papel da mãe é fundamental, ou seja é estruturante. Quem exerce a função materna se apresenta como primeiro representante do Outro, tanto como lugar dos significantes, quanto como Lei (Nome-do-Pai). É nesse sentido que Lacan afirma que a inscrição de um corpo vivo na ordem simbólica é exercida pelo desejo da mãe, o qual deve ser compreendido como vetor de transmissão do Nome-do-Pai (Lei). Na alternância de presença e de ausência, a mãe falta por faltar, entalhando desse modo a Lei (Nome-do-Pai). Mas é claro que essas alternâncias são moldadas pelo lugar que o filho ocupa no desejo da mãe: esperado-não esperado, amadoodiado. Assim, a função do papel materno é mediada pelo desejo da mãe: Ou seja: tudo depende da relação da mãe com o falo. Mas o leitor poderia perguntar: se Lacan sustenta que o falo como objeto do desejo não existe, como um filho recém-nascido pode ocupar esse lugar? Só ao nível imaginário. As fantasias ligadas ao desejo de ter um filho incluem as fantasias ligadas ao pai da criança. Justamente por isto, diz Lacan: "Pode-se muito bem fazer um filho para o marido que seja filho de um outro - mesmo se não se transou com ele -, daquele justamente que se queria que fosse o pai. De todo modo, foi por causa disso que se teve um filho" (Lacan 1992: 120). Nelson Rodrigues demonstra que se pode fazer um filho com um homem invisível. Só que o destino desse filho é, antes mesmo de nascer, o de ter um pai destituído, da forma mais radical, de todas as insígnias fálicas. Assim, o lugar reservado para esse filho não poderia ser outro senão o de brilhar como falo materno. Lacan, em O Seminário 5, As Formações do Inconsciente, faz questão de ressaltar a importância da mediação da palavra da mãe, no segundo tempo de Édipo (castração). Aqui, a mãe, como primeiro objeto do amor, é interditada pela entrada em cena do pai real, o que implica a interiorização dessa interdição, sob a forma de proibição. A função do pai real é a de afirmar e de confirmar a Lei do Nome-do-Pai. Mas para isto é preciso que essa Lei tenha sido inscrita. O agente dessa inscrição é o desejo da mãe, representado na peça pelas três tias viúvas. Só que este desejo é justamente a destituição do pai real, abolindo, assim, a função simbólica do pai.
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O papel desse pai real como privador depende da inscrição do Nome-do-Pai na frustração. Se este foi inscrito, é preciso que sua função seja atualizada e reforçada pela função do pai real na castração. A atualização do Nome-do-Pai pelo pai real depende da palavra da mãe na castração. Essa função de mediação só se realiza se a mãe colocar o pai como aquele que faz a lei. O importante é o modo pelo qual a mãe se coloca diante da castração. É a relação da mãe com a palavra do pai - autorizando-a, enfraquecendo-a ou tornando-a sem efeito - que irá determinar a função do pai real. O pai real só pode ser imaginado como falo - isto é, como pai onipotente - se for tomado como privador da mãe e não do filho. O pai real, diz Lacan com todas as letras no Seminário 5, é aquele que castra. E quem é castrado não é o sujeito infantil no lugar de filho, mas a mãe. Logo, é da posição da mãe diante da castração que depende o êxito ou o fracasso da função do pai real. Então estamos diante da castração da mãe. O que isto significa? Significa, diz Lacan, no referido seminário, que a mãe não tem o falo, que está submetida a uma lei que não é sua e que seu desejo se dirige para um outro, que não é a criança. Recapitulando, então, os dois tempos do Édipo: 1º) A frustração é um ato imaginário, que tem como agente o pai simbólico (Nomedo-Pai) e como objeto real a mãe, aquela que a criança precisa para se manter viva. Ato imaginário deve ser compreendido como a constituição da primeira imagem fálica: ser o falo, isto é, ser o objeto do desejo da mãe. O pai se apresenta aqui de forma velada, ou seja, através da posição da mãe em relação ao falo. Então, fica a seguinte questão para a leitura da peça Dorotéia: o ato da bisavó, tornando sem efeito o Nome-do-Pai com sua função de inscrição da Lei, retira de cena o desejo e a diferença entre os sexos para colocar em seu lugar um gozo com valor mortal? A dívida com esse gozo estaria ligada ao superego materno? 2º) A castração é um ato simbólico, que tem como agente o pai real e como objeto imaginário o falo. Aqui o pai se apresenta como uma personagem, cuja função de proibição será homologada ou não pelo discurso materno. Ter ou não ter o falo - eis a questão! O pai real, reafirmando e confirmando a função simbólica do pai, não existe na peça. A transmissão da foraclusão do Nome-do-Pai é feita pela palavra da bisavô. A invisibilidade dos homens, a quem caberia representar essa função do pai real, é a metáfora mais contundente que conheço para representar o lugar reservado do falo aos filhos. Da função privadora do pai real depende o terceiro tempo do Édipo, nomeado por Lacan de privação, correspondendo ao que Freud chama de solução do complexo de Édipo. A privação é um ato real, que tem como agente o pai imaginário e como objeto simbólico o falo. O que significa isto? Significa que a privação aponta para o real que, como impossível, só pode se presentificar como pura falta na estrutura subjetiva. A privação como presentificação do real precisa ser simbolizada: o falo como objeto real é substituído por alguma coisa com valor de dom. Ingressamos no reino das metáforas. Mas para isto, grifa Lacan, no referido Seminário 5, é preciso que o sujeito infantil aceite a privação não só da mãe, mas também a do pai. Se na castração o pai real era imaginado como aquele que tinha o falo, na privação ele se apresenta como um pai imaginário que, apesar de não ter o falo, tem alguma coisa com valor de símbolo - dom - que a mãe não tem.
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A única referência que temos à função paterna, na peça de Nelson, é que, quando tudo começou, havia um bisavô, que, além de não ser o homem que a bisavô amava, era um homem abjeto, um homem que lhe provocava náuseas. E mais, um homem que teve toda a sua virilidade anulada, porque se tornou um homem invisível. Homens invisíveis, tal qual os anjos, não têm sexo. Lacan considera que o ponto nodal da privação é a castração da mãe. É preciso produzir uma significação (simbolização) para a privação da mãe efetuada pelo pai. Como isto poderia ter sido possível se, antes mesmo de entrar em cena a função do pai real, havia a Grande-Mãe, a bisavó, que não era castrada? A não ultrapassagem desse ponto nodal, na privação, produz as neuroses (histérica e obsessiva), as perversões e as fobias, na medida em que permanecerá por parte da criança uma certa identificação com o objeto do desejo da mãe (objeto rival). Na castração, a fantasia do pai real, como aquele que tem o falo, é o que viabiliza a re-introdução do falo como objeto desejado pela mãe, fazendo com que, na privação, o pai imaginário não seja mais aquele que priva a mãe do objeto do seu desejo, mas aquele para o qual o desejo da mãe se dirige. O pai onipotente (pai real) na castração se transforma em pai potente (pai imaginário) na privação, passando a ser aquele que tem o dom. E, justamente por isto, ele se apresenta como objeto causa do desejo da mãe. Em nossa peça, no princípio de tudo, o bisavô se torna invisível para a bisavó. Essa é a herança transmitida pelo desejo da mãe. Logo, todos os filhos - todas mulheres -não têm outro destino senão, desde o nascimento, permanecerem identificados com o objeto do desejo da Grande-Mãe. A imagem do pai como portador do dom é interiorizada sob a forma do ideal do eu, o que leva, segundo Lacan, à instituição de alguma coisa na ordem do significante. No caso do menino, as insígnias do dom ficam guardadas no bolso para serem significadas mais tarde: Eu sou homem, porque guardei as insígnias que me dão o direito de posse da virilidade. No caso da menina, é na medida em que o pai, como homem, se torna o seu ideal do eu que se produz o reconhecimento de que ela, como a mãe, uma mulher, não tem o falo. Só assim, mais tarde, ela poderá ir buscar o dom, que ela sabe que está do lado do pai. Mas para isto é preciso que esse pai seja substituído por aqueles que como ele têm não o falo, mas o dom que ela não tem. Se a simbolização da ausência do falo fracassa, permanece sob forma de superego a figura de um pai terrível e onipotente, exigindo uma renúncia, que o sujeito, afiançado pela palavra da mãe, se recusa a fazer. Dessa recusa nasce o medo de uma proibição interiorizada, dando origem a uma lei desprovida de sentido, que se apresenta como imperativo: - Tu deves.... A família na obra rodrigueana é regida por um imperativo que agencia a destruição. Ronaldo Lima Lins chega inclusive a destacar "o estado de decomposição interior em que se acha a família" (Lins 1979: 154), transformando-se em um "quisto, um tumor envenenado por dentro" (Lins 1979: 155). Nesse sentido, a família adquire a mesma função que o Destino tinha na tragédia grega. Na peça Dorotéia: essa imposição se organiza em torno de um superego materno. Todas as mulheres devem renunciar à posição de objeto causa de desejo dos
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homens e devem abdicar do gozo sexual para gozar com o sofrimento. Todas as mulheres devem ser homens com ereção eterna. Não havendo lugar para o feminino nessa estrutura familiar, o Outro-sexo, identificado com a beleza, só pode ser amaldiçoado. Todas as mulheres da família, com exceção de Dorotéia, são feias. Justamente por isto, D. Flávia impõe a destruição da beleza de Dorotéia: D. FLÁVIA -E nunca pensaste numa doença?... Numa doença que consumisse tua beleza?...(Rodrigues 1981: 212). (...) Precisas de chagas... (...) Tua beleza precisa ser destruída! Pensas que Deus aprova tua beleza? (furiosa) Não, Nunca!...(Rodrigues 1981: 212).
Diz o superego, martelando os ouvidos de Dorotéia: -"Precisas de chagas!" É claro que o agente das chagas só pode ser um homem: Nepomuceno. Ingressamos no reino da lei e sua destruição: -Tu deves. Tu não deves. Um dos melhores exemplo da imposição da lei sustentada pela anulação da lei é dada por Freud, em O Mal Estar na Civilização, quando afirma que o mandamento "Ama teu próximo como a ti mesmo" é impossível de ser cumprido. O sujeito recebe essa ordem na posição de objeto, ou seja, como outro. E a recebe em nome do amor do Outro. É por isso que Lacan estabelece uma conexão de continuidade entre a demanda do Outro e a estrutura do superego. Se essa demanda for interiorizada, é óbvio que ela se apresenta como se fosse do próprio sujeito. No fim da peça, as chagas tomam conta do corpo de Dorotéia. Aqui seu desejo se encontra como o desejo do Outro (bisavó). Justamente por isto a personagem diz que o seu único desejo é não ser mais leviana. É nesse sentido que Lacan afirma que o sujeito recebe sua própria mensagem de forma invertida. A transmissão do superego constrangedor e terrífico é feita pelas três primas viúvas, que se colocam na posição de guardiãs do desejo ancestral, que teve origem com a bisavó. O ideal do eu exultante e jubiloso é representado pelo estado de exaltação, quando as chagas tomam conta do corpo de Dorotéia e seu rosto fica com cara de bicho. Agora ela é igual a todas as mulheres da família. Alienada na imagem do outro, Dorotéia ri e não reconhece o seu riso, cujo som, diz nos o autor entre parênteses, é apavorante. Se o superego se articula com a palavra do outro, o ideal do eu se relaciona com a apreensão da imagem do outro mediada e ordenada pela palavra, cujo registro é o simbólico. Recordemos o estádio do espelho, momento em que se realiza a primeira apreensão da imagem unificada do próprio corpo. Isto acontece em uma fase da vida em que a criança, apesar de não ter domínio motor sobre seu corpo, se comporta como se o tivesse. E assim o faz porque toma emprestada a imagem de outro como semelhante para si mesmo. A discordância entre um corpo real e um corpo imaginário inaugura a matriz imaginária do eu. Diz Lacan: "É a aventura original através da qual, pela primeira vez, o homem passa pela experiência de que se vê, se reflete e se concebe como outro que não ele mesmo -dimensão essencial do humano, que estrutura toda a sua vida de fantasia" (Lacan 1979: 96). O outro não pára de dizer e de repetir que Dorotéia deve ser feia, recatada e virtuosa. O resto da história já se sabe: Dorotéia não se vê assim, mas deseja ser assim, porque essa é
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a via para ser amada. É a intervenção do outro, como representante do Outro, pela via da palavra que situa a posição de um sujeito em relação a si mesmo e aos outros. Ou seja: é o simbólico que estrutura o imaginário. É neste sentido que Lacan sustenta a precedência simbólica e define a estrutura do desejo como sendo desejo do desejo do Outro. Dorotéia deseja o desejo de suas primas, o que por sua vez foi transmitido pelo desejo da bisavó. O drama de Dorotéia é a defasagem que se estabelece entre o eu ideal e o ideal do eu. É nessa discrepância que intervém o superego, decretando a unificação entre essas duas instâncias do eu. O superego e o ideal do eu são herdeiros do complexo do Édipo, mas não são sinónimos. Na privação (terceiro tempo do Édipo), as insígnias, ou seja, os significantes do pai são interiorizados sob a forma de ideal do eu. E não nos esqueçamos de que, desde Freud, tudo que diz respeito ao ideal intensifica as exigências do eu, promovendo o recalque de tudo o que arranha uma imagem. O que mais mancharia uma imagem do que as exigências das pulsões? Dorotéia se prostituiu e foi rejeitada pela família. Os imperativos do superego levaram Dorotéia a renegar sua beleza. Quando as chagas, finalmente, se espalham por todo seu corpo, realiza-se a fusão do eu ideal com o ideal do eu. Chegamos assim ao ponto extremo da alienação do sujeito ao desejo do Outro, o que só pode ter valor mortal. Das Dores, a filha de D. Flávia, espera o noivo Eusébio da Abadia, um homem de corpo invisível, reduzido a um par de botas desabotoadas. Ou seja: um par de botas com um buraco. Esse buraco não representaria a foraclusão do Nome-do-Pai? Enquanto as mulheres esperam pela chegada do noivo para a noite de núpcias, Maura, uma das três primas viúvas, duvida que Maria das Dores irá sentir a náusea e, finalmente, confessa que não pensa e não vê outra coisa senão as botinas desabotoadas em toda parte: MAURA (SOLUÇANDO) - uro que queria odiá-las e não consigo... ou esquecê-las... mas não posso... queria estrangulá-las, assim... com as minhas próprias mãos... porém sinto o que nunca senti... ensina-me um meio de esquecê-las e para sempre... de não pensar nelas... (lenta) E se, ao menos, eu não as visse desabotoadas... (num lamento) como poderei viver depois que as vi desabotoadas? (Rodrigues 1981: 228).
D. Flávia diz que Maura deve morrer. E Maura admite que deseja morrer, porque não agüenta mais ser perseguida pelas botas. D. Flávia estrangula com gestos a prima, que morre sem ser tocada. Carmelita, a outra prima, em estado de exaltação, diz que a náusea irá morrer "atravessada por uma lança, como na gravura de S. Jorge" (Rodrigues 1981: 230). D. Flávia reage: "Blasfemaste contra a náusea... nenhuma outra mulher da família ousou tanto... E por isso deves expiar tua culpa" (Rodrigues 1981: 230). Carmelita aceita morrer desde que na eternidade exista um par de botas e diz: "Tudo que não tem testemunha deixa de ser pecado" (Rodrigues 1981: 231). D. Flávia mata Carmelita do mesmo modo que matou D. Flávia. Das Dores diz para a mãe que recebeu um aviso: não sentirá a náusea. E acrescenta que não sentiu a náusea, que ama o noivo e quer ficar junto dele. D. Flávia quer matar a filha adolescente, mas ela não existe, porque nasceu morta de cinco meses. Mas mesmo assim, ela continua viva dentro daquela casa, dentro das entranhas de D. Flávia, para nascer de novo, para se tornar mulher, para, mais uma vez, renegar a náusea. D. Flávia em desespero pede para Dorotéia matar das Dores, ou seja, para lhe matar. Dorotéia, agora, assume o lugar de
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D. Flávia. Ela não tem mais medo das botas desabotoadas, porque não só incorporou o dever de sentir náusea, mas também a certeza delirante de que está livre do pecado. Mas o desejo, personificado na filha das Dores, tomou conta do corpo e da alma de D. Flávia. Ela confessa que está possuída pelos maus pensamentos e sonhos. O jarro reaparece empurrando as botinas e depois desaparece. Ficam as botas. D. Assunta, a mãe do noivo, vem pegá-lo, ou seja, vem pegar o par de botas desabotoadas. Dorotéia e D. Flávia estão sozinhas para cumprir seus destinos. Mais uma vez se realizará o anátema do desejo do Outro pela via do masoquismo moral. Estamos diante do que Lacan, em O Seminário 8: A Transferência, aponta como o cerne da tragédia contemporânea: a degradação imaginária do Outro. Dorotéia, ao contrário de Antígona, não age de acordo com seu desejo, mas de acordo com seu dever. O amor em disjunção com o desejo, exigindo a renúncia do que é mais próprio do humano, desenterra as pulsões sexuais para serem abjuradas e reduz a ambivalência do amor ao ódio. No final da peça, as mulheres, heroínas dessa tragédia contemporânea, assumem um gozo imposto pelo superego desconcertante, que lhes causa horror: "Vamos apodrecer juntas".
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1 - O palco greco-romano eternamente novo. O teatro brasileiro contemporâneo, consoante o que se observa na produção dramatúrgica internacional, também encontrou na reatualização de mitos greco-latinos um veio temático absolutamente rico e recorrentemente freqüentado por seus mais expressivos representantes. Se o mito comparece como tema constante no teatro latino-americano em geral, uma peculiaridade sobressai, no repertório das peças teatrais brasileiras: enquanto se pode confirmar uma predileção dos dramaturgos hispanófonos das Américas por determinados temas/mitos (e Antígona seria a campeã do protagonismo nos palcos latino-americanos), bem como uma maior recorrência ao trágico, o teatro brasileiro vem explorando uma ampla variedade de heróis e heroínas míticas e tem privilegiado explorações do trágico, que ultrapassam os limites poetológcos (e aristotélicos) da tragédia clássica, nas suas adaptações cênicas dos enredos de extração greco-latina. Na busca de motivos que justificam tais peculiaridades, merecem destaque: a) a interferência de teorias poéticas (mormente da carnavalização literária e do teatro épico), no acionamento de diferentes mitos; b) o agenciamento da questão da originalidade, constantemente reativado, quando se trata de lidar com materiais tradicionais, na montagem de propostas dramatúrgico-literárias inovadoras; c) a particular ressemantização de determinados mitos gregos, ligados a aspectos da cultura brasileira e a uma herança romântica de construção nacional, em consonância com as tradições.locais, autóctones, e exógenas. Essas últimas - de procedência européia, greco-romana, mais mítica do que filosófica ou retórica, e sobretudo impregnada da fantasia utopista renascente (e seiscentista) - prevaleceram sobre as primeiras, razão pela qual a presença da cultura clássica, nas letras e artes brasílicas, constitui um substrato indefectível, desde os primórdios da colonização cabralina até o modernismo e as novas linguagens que surgem, na virada modernizante do século XX. Como o fenômeno de “retorno às fontes” é universal e se tornou uma recorrência tão antiga quanto a própria poesia1, vai-nos interessar, especialmente, apresentar as produções da
1 Os próprios gregos, inventores dos paradigmas poéticos e do acervo temático mais freqüentado pelos artistas de todos os tempos, iniciaram esse processo de citação, adaptação temática, tradução filosófica, enfim, de crítica poética, responsável pela fixação de uma tradição de repetidores, à margem da cultivada (e seletiva) mímesis aristotélica (cf. Núñez: 1996).
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dramaturgia brasileira do século XX, em que a memória teatral se reabre e encontra, na reexperimentação de sua própria arkhé (origem), os meios mais eficazes de expressão artística, inserção política e sintonização com o mundo “além fronteiras”. Esse trabalho pretende, pois, fornecer uma visão da produção dramatúrgica brasileira tributária à poética do mito, ressaltando as conexões entre o trabalho convencional da mímesis teatral e o astucioso aproveitamento de elementos do imaginário e da cultura brasileira, que oportunizam mais do que a reatualização do repertório dos mitos greco-latinos: levam à dilatação dos seus semantismos tradicionais. 2 - Máscaras neotrágicas ou Don’ t cry for me, Melpômene. Um dos fenômenos artísticos mais relevantes do século XX é a retomada da tragédia grega e a convocação de seus personagens como matéria, principalmente, do teatro. Antígona é uma dessas figuras que, ao longo dos séculos, se ofereceram a múltiplas releituras poéticas, tanto pelo inusitado de seu heroísmo, quanto pela mestria com que Sófocles converteu o solene dever de dar sepultura aos corpos, em fato estruturante do discurso trágico. A melhor dramaturgia contemporânea não desconheceu o protagonismo desta singular heroína. Peças assinadas por Hasenclever (1917), Cocteau (1920), Anouilh (1942), Brecht (1948), entre outros teatrólogos de renome, são tributárias do patrimônio mitológico grego e deste tema, relativo ao sacrifício salvífico espontaneamente buscado. George Steiner as elencou, em sua grande maioria, tendo, todavia, excluído de seu importante trabalho (Steiner: 1991) toda a produção dramatúrigco-poética não-européia dedicada ao tema. Tal lapso torna mais interessante ainda observar que o tema de Antígona surge, na primeira metade do século XX, quase que exclusivamente através de autores europeus. Na segunda metade deste século, parece haver um deslocamento do palco trágico de Antígona, da Europa para a América Latina, tanto quanto uma variação no substrato temático que o sustenta (não mais as circunstâncias de conflitos mundiais, mas o estado de convulsão política de que não se consegue emancipar a parte luso-hispânica do continente americano). Surgem, em 1951, do argentino Leopoldo Marechal, a peça intitulada Antígona Vélez; em 1958, no Brasil, Pedreira das almas, de Jorge Andrade, e, em Porto Rico, La Pasión según Antígona Pérez, que Luís Raphael Sánchez leva a público, em 1961. Mais recentemente ainda, a argentina Griselda Gambaro encena a sua Antígona furiosa, de 1986. A profusão de textos latino-americanos protagonizados pela desditosa filha de Édipo não se fez presente em importantes estudos como os de George Steiner, já citado, Gilbert Highet (1986) ou Díez del Corral (1957), interditados que estão de romper com certo cânon literário que predetermina os temas clássicos para palcos ou textos críticos europeus. Em cada qual destas versões luso-hispanófonas, o que se verifica é uma recriação da obra clássica, com motivos e enfoques próprios, desde sempre apoiados nas realidades multivariadas da América Latina e no simbolismo que se organiza em torno de um “outro” feminino, capaz de levar à cena o grito libertário e os semantismos de uma população ancestralmente desatendida. Esse enquadramento inicial do teatro latinoamericano, no conjunto da dramaturgia contemporânea mundial, serve de parâmetro para a compreensão da situação que se especializa ainda mais, no tocante à exceção lusófona do teatro brasileiro, em face do congênere teatro de expressão hispânica, nas Américas. Repete-se, no campo teatral, o que os estudos sobre
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a cultura latinoamericana já demonstraram: unidade na diversidade (Coutinho: 1985) e/ou um continente de diferenças afins. A localização da questão, na esfera brasileira, traz consigo algumas particularidades, que merecem ser consideradas. Em primeiro lugar, ela se coloca, de forma apropriada e aguda, no entroncamento do mais honorável dos gêneros literários 2 (o dramático) e das espécies dramáticas (a tragédia) com tratamentos críticos audaciosos, recentes, que retomam a atualização problemática do trágico (Lourenço: 1964; Steiner: 1991; Rosenfield: 2001, Finazzi-Agrò e Vechhi: 2004), na literatura contemporâanea, pela perspectiva de Peter Szondi. Segundo o teórico alemão desaparecido em 1971, “Desde Aristóteles há uma poética da tragédia; apenas desde Schelling, uma filosofia do trágico” (1991). Assim o renomado teórico abre o seu Ensaio sobre o Trágico, que estabelece a separação terminológica a partir da qual a tragédia fica confinada à experiência classíca, enquanto a literatura pós-clássica, desconstruída e midiacultural, é determinada pelo pós-tudo 3, a partir do século XX. Dois conceitos, o poetológico da tragédia e o filosófico do trágico, passam a balizar a reflexão contemporânea sobre a experiência universal da dor, do conflito extremo, da aporia extrema, que deixam de ser só representáveis, como na tragédia clássica, e se tornem não apenas pensamento, mas até uma nova morfologia de pensamento, na impossibilidadede alcançar seu núcleo profundo (Finazzi-Agrò e Vecchio: 2004, 6. Grifos nossos).
De fato, as transformações do trágico decorrentes da ótica brasileira, combinam com a consciência crítica (planetária) de que o tema do trágico continua em aberto, a despeito da monumental produção teórica sobre o assunto e talvez em razão de uma bibliografia proporcionalmente heterogênea. Em face disso, cabe aos artistas criar, independentemente do decoro pranteado pelos rigores poetológicos antigos, ou da impossibilidade de gerar uma conceituação normativa do trágico moderno. Por outro lado (e aqui referimo-nos a uma visão particular, derivada da auto-imagem que a cultura brasileira produziu), a dramaturgia brasileira ligada ao trágico ratifica a persistente rebeldia e insubmissão da literatura e da arte, no Brasil, em relação aos paradigmas transplantados da cultura européia. Uma resistência à imitação, bem como a negação à dependência imposta durante um período excessivamente longo de colonização, engendrou, por um lado, as soluções criativas da malandragem (estatuto de trickster verde-amarelo 4) e da antropofagia (que receberá inúmeros nomes, tais como hibridismo cultural [Burke: 2004], tradução intercultural, troca ou osmose cultural), mas por outro também desenvolveu uma consciência perversa, de que
2 Assim nos referimos pela precedência que lhe confere Aristóteles, bem como toda a tradição de estudos críticos, que tomam a tragédia como paradigma para o fenômeno poético. Tal supremacia (de ordem conceitual e qualitativa) é muito diferente da que se verifica a partir do romance, a mais versátil e quantitativamente produtiva das espécies literárias. 3 Aproveitamo-nos do termo cunhado por Augusto de Campos, em um de seus videopoemas (visualizável em www.uol.com.br/augustodecmpos/
) de 1984, para designaro aproveitamento quea arte sabe dar àsucaya e ao caos do mundo pós-moderno 4
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certas questões metafísicas e estéticas, que estão no cerne da cultura ocidental, tornam-se artificiais e deslocadas quando desembarcam nos trópicos. País periférico, filho bastardo da civilização européia, o Brasil estaria fadado ao trabalho sem fim de discutir sua problemática identidade nacional, antes de se dar ao luxo de entrar no debate dos grandes temas filosóficos, ou gerar uma produção artística para além da cor local (Pinto. In: Finazzi-Agrò e Vicchi: 2004, orelha).
A peculiar liberdade formal (também conhecida como “informalidde brasileira”), a adapatabilidade a (e das) convenções, bem como a tendência ao hibridismo (de que a miscigenação e o sincretismo religioso dão testemunho), fazem germinar, no campo da arte, os melhores subprodutos dessas marcas antropológicas da terra brasilis. As aporias não páram aí: se uma conceituação normativa do trágico moderno é tão impossível quanto a pretender uma teorização unívoca, uma definição da cena contemporânea, excludente dessa categoria, se mostra igualmente impertinente. Dentre os numerosos trânsitos que o trágico moderno concebe5 , o maior deles talvez se ligue à estetização - levada a cabo na modernidade pós-kantiana - da experiência extrema que o origina. Nesse sentido, a racionalidade clássica, apaziguadora, não mais aplaca as catástrofes de dimensões mundiais (o holocausto, o genocídio das nações indígenas das Américas, no passado, e do Brasil, ainda hoje; a exploração das rivalidades étnicas, no leste europeu e no Oriente Médio; a intolerância religiosa; os embargos econômicos decididos por comissões interncionais etc...). No Brasil, a passagem traumática da colônia para nação implantou os genes de uma tragicidade que se manifesta nos dramas irresolvíveis da dependência econômica, nos projetos irracionais e sociopáticos, na atávica tendência à corrupção política, na experiência histórica da ditadura, no analfabetismo, na subnuitrição, na desqualificação social, na violência urbana e miséria rural, no desrespeito às minorias, às mulheres, aos velhos e às crianças, no pessimismo conformista com que já se considera perdido, para os brasileiros pobres, o século XXI. A cultura brasileira coloca a representação da negatividade conjuntural da vida brasileira, a problematização de seus conflitos, entre a poética da tragédia e a filosofia do trágico. No âmbito desta última, encontram-se as narrativas trágicas, numerosas e várias, bem como os testemunhos, que deslocam o sentido do trágico para a forma romancesca. Na linha de preservação adaptada do modelo dramático, acham-se as peças do teatro mítico, interrogando, através da forma dramática, a falsa idéia de uma cultura brasileira antitrágica e festiva em que se gestou a imagem de exportação da alegria brasileira.
5 A idéia do trágico preserva, seja no contexto clássico ou contemporâneo, a condição de estado transitório, suspensivo, entre o tempo cíclico e o projetual; o equilíbrio instável entre as indeterminações do destino e da responsabilidade individual; dilatação do cosmo finito ao infinito; da razão do mito às da história. A diferi-los, a explicação mais recorrente é a do desaparecimento da consciência trágica, no horizonte moderno. Já o esvaziamento da fórmula aristotélica da tragédia decorre da conquista da prosa romanesca, catalisando o gosto literário, a partir do XVIII. Mas é inegável que a consciência trágica da modernidade encontrou novas formas de representação fora da tragédia. Mulinacci, lançando mão de metáforas da área da biologia (“metabolização estética do trágico”; “fagocitação romanesca da forma trágica” (In: Finazzi-Agrò e Vecchio: 2004, 161-174), analisa a herança trágica, no romance. O crítico assinala cinco fatos que determinaram a metamorfose formal do cânon trágico: 1 - o efeito de distanciamento do olhar moderno; 2 - a diápora dos códigos ético e cultural; 3 - anarquia axiológica; 4 - fragmentação caótica do ponto de vista; 5 - aburguesamento do herói.
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Passemos aos melhores momentos dessa dramaturgia que se vale do mito antigo para abordar o Brasil presente. 2.1 - Pedreira das almas de Jorge Andrade Optando por encenar o drama Pedreira das almas, nos idos do século XIX, Jorge Andrade (1922-1984) ocupa o espaço privilegiado para melhor analisar tanto o modelo colonial brasileiro, quanto a própria época em que o texto foi produzido, saturada do ufanismo/ desenvolvimentismo em que se gestou o governo brasileiro entre os anos 50 e 55. Ao mesmo tempo, a peça coloca em foco o poder da Coroa portuguesa, esmagando os movimentos de sublevação que espocavam, principalmente, na primeira metade do século XIX em todo o país, em consonância com o poder da personagem ficcional, a matriarca Urbana, que impede a busca de novos meios de sobrevivência econômica por seus conterrâneos, os habitantes de uma cidadezinha mineira denominada Pedreira das Almas (de onde a peça retira seu título). Urbana não admite mudanças, tanto quanto não as quer a Coroa. Ambas, por motivos diferentes, apegam-se ao já exaurido modelo da economia aurífera, sem se aperceberem de que o Brasil descobria, àquela altura, a cafeicultura. Esta mãe traz no nome a antítese de suas atitudes, pois a última coisa que Urbana quer é renunciar às tradições, mesmo que ao preço da perpetuação do provincianismo. Jorge Andrade alcança grande efeito poético, no encetamento de seu argumento histórico, exatamente por compaginar o esgotamento dos veios auríferos da Minas Gerais do século XVIII com o esvaziamento do modelo colonial português, escravocrata, exploratório e autoritário. Ao mesmo tempo, sua peça dialoga com as mais recentes proposições artísticas e dramatúrgicas de seu tempo, o expressionismo e o teatro épico (que chegam ao teatro brasileiro exatamente através da dramaturgia jorgeandradina). Quanto a este último aspecto, de ordem estilística, é importante ressaltar a eficiência da fórmula poético-artística adotada por este dramaturgo, na composição de toda a sua obra: Jorge Andrade sempre soube aliar temas colhidos à história do Brasil e fórmulas de modernização da expressão teatral e do palco brasileiro. Assim é que, na organização estrutural de Pedreira das almas (Nuñez: 1986), percebe-se nitidamente a distribuição da massa ficcional e dramática em dois grandes blocos, correspondentes aos dois atos em que se divide a peça. O Ato I corresponde à parte informativa e documental do espetáculo, integrada por duas subpartes, propostas pelo dramaturgo como Quadros I e II. No Quadro I, vem apresentada a contradição entre Urbana e seus opositores no interior da cidade mesma, assinalando a questão do apego aos mortos que conduzirá tematicamente o espetáculo. O Quadro II, remetendo a fatos que ocorrem após uma semana, em relação à deflagração da ação, tematiza o confronto entre o poder de Urbana e o poder do Estado: sublinha-se aí a questão da valorização dos sepultamentos e das sepulturas, que já não constitui uma obviedade entre os habitantes. Novos ideais recebem adeptos, que anseiam por novos horizontes e perspectivas de vida. O Ato II corresponde à parte expressionista e propriamente espetacular da encenação, abrangendo, igualmente, dois quadros. Nesta segunda parte, o Quadro I transcorre três dias após a ação anterior; focaliza a disputa entre Mariana e Vasconcelos, o representante da Coroa. Sobrevém a questão do poder impotente. O último quadro, mantendo como regra para a mudança de quadros o salto temporal de três dias, é ocupado pela cena de despedida entre Mariana e Gabriel, o chefe revolucionário e
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noivo de Mariana. O espetáculo se fecha sob o pesado clima da frustração amorosa de Mariana, em função de um ideal perverso de manutenção de valores arcaicos, mas também de Gabriel, que é obrigado a renunciar ao amor, pois precisa sobreviver, para que os sonhos libertários da nação tenham alguma sobrevida. A cidade está sitiada, e todas as estruturas internas entram em colapso. O povo de Pedreira das Almas tem em quatro mulheres, Clara, Elisaura, Graciana e Genoveva, os corifeus dos dois grupos em que se divide a população: os que se querem evadir e os que ali pretendem permanecer. A filha de Urbana sabe, tanto quanto Antígona o sabia, que destino a aguardava. Mas se Mariana domina este conhecimento instintivo, que lhe permite farejar a morte, é com Gabriel que sua capacidade criativa encontra condições favoráveis de expressão. A morte do irmão, Martiniano, acaba frustrando todo um programa de felicidade que a levaria para longe da cidade e lhe oportunizaria a realização como mulher. O Ato II inicia sob um clima de medo e ansiedade. O ar é irrespirável, os fortes ventos emolduram soturnamente a paixão de Urbana, coincidente com a época da Quaresma. O foco problemático da peça se desloca: agora já não interessa mais prender os revoltosos contra o poder português, mas defender o cadáver de Martiniano, que tem de ser enterrado em Pedreira. A mater dolorissima se faz sarcófago do corpo do filho, que se vai putrefazendo e espantando as forças militares despreparadas e tão frágeis quanto tudo e todos, na colônia. O filho mártir se torna par metonimico de uma terra que já não tem nada mais a oferecer. Pode, no máximo, recolher cadáveres. Urbana morre de paixão, como sarcófago vivo de seu filho morto, deixando Mariana como guardiã da terra onde juntos estão enterrados seus mortos e seus sonhos. O vento que começa a soprar, ao final do espetáculo, é sinal das preocupantes chuvas anunciadas desde o início da peça, mas - fundamentalmente - consuma a marcha irreversível e cíclica que os remanescentes de Pedreira das Almas elegeram para si. A Antígona brasileira, denominando-se Mariana, aparece camuflada pelo mesmo antropônimo com que se anuncia a perfeita aclimatação da cultura religiosa judaico-cristã aos trópicos, porém insuficientemente capaz de atuar como fonte de promoção individual ou social. Ao contrário disso, o forte sentimento religioso dos moradores de Pedreira das Almas é instrumento para a manutenção da situação vigente, o imobilismo e a perpetuação da sociedade em níveis primitivos de adoração a túmulos, culto a territórios. A peça aborda um poder tirânico que, para sobreviver, desbarata as forças construtivas da nação, faz-se acompanhar da denúncia a respeito de um confuso projeto de emancipação político-social, inspirado na retórica do absurdo e sustentado por uma militarização ostensiva e indesejável. A complacência para com o estatuto da minoridade, a tolerância em relação às práticas arcaicas de controle social e político, a “creontização” do poder, tanto quanto a adoção das mais perversas realidades como ideal de sobrevivência, engendram o discurso fortemente engajado destas duas peças. Apesar de circunstanciado por acontecimentos históricos a princípio imaginários, o textos em questão guarda a sua atualidade, se compaginado com problemas irresolvíveis da vida latino-americana: a repressão ideológica, a censura, os modelos econômicos alienígenas, a omissão das instituições, a manipulação política, o capitalismo sociopático, a deserção da vida democrática, enfim, o desapreço à liberdade.
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O retorno de Antígona, no contexto latino-americano contemporâneo, reedita, pois, menos o desprezo pelos temas oriundos do rico imaginário local, que o reclamo por programas soteriológicos tão urgentes quanto a denúncia nele contida. Do mesmo autor6 pode ser apontada a peça Vereda da salvação, como texto dramático em que o dramaturgo genialmente reedita o drama de Édipo e toda uma mítica da visão, associando-os ao destino insólito das populações campesinas e interioranas, que se vêem abandonas aos ciclos naturais e à própria sorte. A peça alcançou enorme sucesso à época da estréia, mas exige platéias preparadas para a contemplação de uma humanidade que constrói verdades milenaristas como último recurso para a sobrevivência, tanto individual quanto coletiva. 2.2 - Orfeu da Conceição de Vinícius de Moraes Vinicius de Moraes (1913-1980) também contribuiu para o teatro brasileiro de tema mítico. Na tragédia Orfeu da Conceição, cuja primeira montagem se realizou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1956, o poeta situa Orfeu numa favela carioca e faz da música um elemento de suma importância para o espetáculo. Dessa forma, todo o universo de Orfeu gira em torno do morro e do samba, sendo enfatizada pelo autor a preferência por atores negros para a interpretação das personagens. Guardadas as bases míticas e a essência de um amor que sobrevive à morte, a peça é reatualizada no âmbito da realidade da favela: as personagens moram em barracos, o pai de Orfeu, Apolo, é um malandro, e sua mãe, Clio, uma lavadeira. Orfeu é músico que consegue grandes benefícios para a comunidade através de sua arte. Ele canta e compõe para os céus: sua música tem caráter divino, é um prodígio na terra. Por intermédio do divino compositor, a peça reconstrói miticamente os espaços convencionais: no plano mais alto, encontra-se Orfeu, com sua inspiração; no plano médio, do morro, encontra-se a favela, representando a Trácia - espaço das ações humanas e de vilezas; no plano mais baixo, a cidade, representando o Hades, o lugar aonde Orfeu é obrigado a se dirigir, para reconhecer o corpo de Eurídice morta, no Instituto Médico Legal. O tempo também é um dos elementos mais poeticamente elaborados, na peça. O tempo mítico se mistura com o tempo “real”. A catábase de Orfeu se organiza por dois códigos, o das ações e o da música. Desta forma, há como que uma anulação dos marcadores cronológicos e a sua substituição pela marcação rítmica, que confere consistência poética à trama. A morte na tragédia se faz presente com o surgimento da Dama Negra, quando Eurídice é apunhalada por Aristeu, que lhe inveja o amor por Orfeu. Depois disso, o herói tem de enfrentar o Inferno, representado por um baile de carnaval, para recuperar seu amor. Orfeu da Conceição, apesar de lidar com a dura realidade da pobreza e da precária vida no morro, é uma peça extremamente lírica (escrita em versos), com riqueza de detalhes, e traz novamente à cena a importância da música na tragédia.
6 Mais informações a respeito do dramaturgo e de sua dramaturgia se encontram em “O Brasil passado a limpo - revisão histórica e ficcionalidade na dramaturgia de Jorge Andrade”. In: MALEVAL e SALINAS PORTUGAL: 2003: 473-500.
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A peça mereceu dois tratamentos cinematográficos. Em 1959, Marcel Camus filmou a peça com o título de Orfeu do Carnaval, e com ele obteve o 1º. Prêmio no Festival de Cannes. Em 2000, o cineasta brasileiro Cacá Diegues reformula a trama da peça, no filme Orfeu, enquandrando a maldição do cantor e compositor negro no contexto da complexa rede do narcotráfico instalado nas favelas do Rio de Janeiro. A catábase deste novo Orfeu é adaptada à crueldade dos traficantes, que matam arbitrariamente seus desafetos e fazem desaparecer-lhes os corpos. Orfeu é levado a escalar uma escarpa da favela, a fim de resgatar um cadáver. A versão filmográfica brasileira mereceu uma indicação para o Oscar de melhor filme estrangeiro, mas não chegou a ganhar o prêmio. 2.3 - Gota d’Água de Paulo Pontes e Chico Buarque de Holanda Outra figura que se destaca no conjunto dos temas preferenciais com que o teatro latino-americano revisita a tradição clássica é Medéia, representada através da peça homônima do argentino Héctor Schujmann, nas versões de outro argentino, David Cureses, La Frontera, de 1960, e dos brasileiros Paulo Pontes (1940-1976) e Chico Buarque de Holanda (nascido em 1944), Gota d’ Água, de 1975. A peça é marcada por forte engajamento político e sentimento de brasilidade, produzida como um libelo de rebeldia contra o período da ditadura militar, iniciado em 1964 e concluído em 1983. Os autores, à época, declararam os três propósitos que os nortearam, na composição da versão brasileira de Medéia: refletir sobre o modelo capitalista que se implantava no Brasil; trazer de volta ao palco o povo, não como elemento folclórico, mas como principal protagonista de sua história. E tornar a palavra o epicentro do acontecimento dramático (por isso a peça foi escrita em versos, intensificando poeticamente os diálogos). Neste projeto de recuperação de uma linguagem teatral, surgiu a estratégia de recriar o mito de Medéia, figura cujos atributos coincidiam com o perfil dos brasileiros, naquele momento histórico: herói oprimido, escorraçado, mas com capacidade de reação. Na recuperação das forças comunicativas do roteiro mítico de Eurípides, os dramaturgos entretecem o roteiro antigo com materiais da cultura brasileira contemporânea: sexo, samba, futebol, cachaça e macumba. A Medéia brasileira se chama Joana e já se encontra instalada com o sambista Jasão, na Vila do Meio Dia, um conjunto habitacional vendido a longo prazo por Creonte à comunidade de baixa renda, com todas as implicações de correção monetária e desvantagens do sistema imobiliário. Os moradores se encontram endividados, sofrendo as pressões de um sistema contraditório. Creonte tem uma filha solteira, Alma, cuja felicidade depende do casamento com o Jasão, por quem se apaixonara, desde o sucesso de sua composição Gota d’água. Apesar de unido há 14 anos com a macumbeira Joana, com quem tivera dois filhos, Jasão rompe o compromisso com a família. O noivado com Alma se transforma em notícia de jornal e ofensa para os moradores do conjunto habitacional. Estes de dividem em dois grupos: o grupo feminino se solidariza com Joana, que entra em depressão; o grupo masculino se identifica com o sucesso de Jasão. Os únicos homens a se solidarizarem com Joana são Egeu, compadre e mestre de Jasão na oficina de conserto de aparelhos elétricos, e Cacetão, gigolô e apaixonado pela mulher abandonada.
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Mestre Egeu, na tentativa de promover a união solidária da comunidade, dividida pela discórdia na casa de Jasão, concebe um movimento de boicote de pagamento a Creonte: unidos, na ação política, se reatariam os laços fraternos então abalados. Mas o plano é denunciado. Creonte envia Jasão para negociar com Egeu, mas não consegue convencê-lo da legitimidade do financiamento escorchante. Joana, saindo do abatimento em que se encontrava, mostra-se revoltada contra Creonte, a quem acusa de lhe ter comprado o amante. Sai de si: resolve usar seus poderes de macumbeira. Para aplacar o descontentamento dos moradores da Vila, Creonte promete perdoar as dívidas, fazer melhoramentos no condomínio, mas não negocia a expulsão de Joana. Abandonada por todos, Joana obtém apenas mais um dia de tolerância do prazo que tem para abandonar a Vila. Fingindo-se conformada com a sorte, consegue de Jasão a permissão para que os filhos assistam ao casamento do pai. Joana envia bolos de carne envenenados como presente à noiva. Mas Creonte não permite que Alma receba a oferta e expulsa as crianças da festa. Invocando os deuses da macumba, Joana revida à humilhação sofrida partilhando com os filhos os bolinhos fatais. Os três corpos são levados por Egeu e Corina, a vizinha mais próxima a Joana, ao local onde transcorre a festa de casamento. O silêncio se instala. Lentamente recomeçam a cantar Gota d’ água. No fundo do palco, é projetado um slide que noticia a tragédia, como manchete de um suicídio passional, na primeira página do jornal “Luta Democrática”. Dois elementos fundamentais do roteiro dramático proposto por Eurípides são capitalizados, na versão brasileira do mito: a manipulação humana pelas instâncias de poder e a hemeropatia da protagonista. Esse dois focos problemáticos, que coincidem com índices marcantes da cultura brasileira (o tráfico de poder e o sincretismo religioso) se sobrepõem à terceira força temática da peça: o recalque da mulher mais velha, em desvantagem, quando se forma o triângulo amoroso. Sobressaem como elementos peculiares à recriação da peça brasileira a presença de dois coros, um masculino e outro feminino; a negativa de Egeu em assumir uma atitude paternalista em relação a Joana; a ineficácia do feitiço de Joana contra Creonte e Alma; o suicídio de Joana; a divisão da população cênica em dois partidos: o dos fortes e o dos fracos; a utilização mais freqüente da linguagem musical, não apenas pelo coro, mas também pelas personagens, a caracterização do papel contraditório dos meios de comunicação de massa (afinal, num jornal que expressa compromisso ideológico em seu título, não podia escapar a dimensão política do suicídio de Joana). 2.4 - Senhora dos afogados de Nelson Rodrigues Nelson Rodrigues (1912-1980) associa-se aos recriadores de Electra no teatro contemporâneo, instilando na problemática universal e atemporal do mito aspectos de uma brasilidade não-folclórica, representada pelo mar imenso que determina a configuração geográfica do Brasil e se infiltra no roteiro dramático, na caracterização das personagens, na ambientação da trama e até mesmo na concepção de Senhora dos afogados como espetáculo. Na urdidura desta peça, o mar funciona como signo poético através do qual um aspecto privilegiado da paisagem brasileira se encontra com simbólicas arcaicas e possibilita talvez a mais ambiciosa realização do programa artístico deste escritor.
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É envolvendo Electra em águas misteriosas, turbulentas e primordiais que o autor brasileiro concebe Moema, personagem cujo nome dá mais do que o testemunho etimológico de pertença a uma etnia distante da península balcânica: traz a marca de uma identidade gestada nos trópicos e tributária da reaclimatação do mito à inventividade latino-americana. Esta peça se destaca no conjunto de obras míticas do autor, tanto por ensejar a cadeia deformante que leva a O’Neill (Mourning becomes Electra) e deste a Ésquilo (Oréstia), quanto por permitir-se a reformulação de ambos os textos de referência 7. Os carismas da vilegiatura marítima experimentados pelas personagens de O’Neill constituem o elemento provocador da concepção rodriguiana do mito. Enquanto as ilhas do sul funcionam como espaço geográfico necessário para o encaminhamento dos fatos, na trilogia norte-americana, para Senhora dos afogados a ilha é uma espaço imaginário. À ilha desta peça ninguém aporta. Ela é emissária de mortos que visitam os vivos e que estão sempre a relembrar a pertença das personagens a um mundo determinado pela simbólica das águas. Há todo um movimento contrário àquele descrito pela trilogia de O’ Neill, a partir mesmo da idéia de que, neste, personagens se locomovem e têm, nas ilhas, um ponto intermediário do périplo que se inicia e termina na mansão dos Mannon. Em vez, disto, as personagens de Nelson Rodrigues são estáticas. Como rochedos abandonados à beira-mar, não se deslocam do seu porto-seguro. A casa vive guardada pelos retratos dos antepassados, reduplicada pelo espelho gigantesco da última cena e ancorada na cama hereditária, com todos os seus tabus. A ação dramática é deflagrada, aliás, pela coincidência entre a morte de uma personagem (Clarinha) e o retorno, como alma ou fantasma, de outra (uma prostituta há dezenove anos assassinada). A superposição dos acontecimentos condiciona a estrutura dúplice de todo o desenvolvimento dramático, que tem no Noivo o seu representante mais claro. Esta personagem reúne os papéis do Orestes e do Egisto gregos. Relaciona-se com o último, por valer-se do noivado com Moema para alcançar o objetivo de vingar-se não da mãe, como reza o mito tradicional, mas do pai que a assassinara. Como meio-irmão de Moema, vive o drama da fixação na imagem materna e, assim, associa-se a Orestes. O Noivo é concebido a partir do Adam Brant de O’Neill, cujo nome atua sugestivamente, na construção de uma personagem em torno da qual paira uma aura primal, edênica, adâmica. De fato, o Noivo utiliza como arma para a sua vingança a sexualidade de todos os integrantes da família Drummond. A estratégia de camuflar a personagem sob um anonimato que apaga-lhe as pistas de uma genealogia próxima remete-a à identificação com o homem original e à falta que a constitui. A mesma anterioridade simbólica se encontra na reatualização de Electra, na Moema de Nelson Rodrigues. Não faltou inspiração a Nelson Rodrigues, ao buscar no repertório das tradições indígenas a imagem da mulher que leva aos limites da própria morte a dor de sentir-se rejeitada8. 7 8
Mais elementos se encontram no capítulo intitulado “Crepúsculo à beira-mar”, In: Núñez. 2000: 215-279.
A personagem rodriguiana se constrói, efetivamente, pela superposição de quatro imagens femininas absolutamente impactantes: a deusa marinha Yára, dos mitos indígenas; Moema, rival de Paraguaçu e heroína do poema Caramuru de Santa Rita Durão; a Lavínia vergiliana dos amores de Enéias e sua preposta, no teatro o’neilliano, todas associadas à figura subliminar a elas, a Electra da mítica grega.
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Num enredo onde prevalece a simbólica das águas, Moema constitui mais que a reencarnação de Electra à beira-mar: é um achado poético que subsidia a organização dúplice de Senhora dos afogados e mantém a peça rigorosamente nos limites do imaginário do mar anunciado pelo título. São principalmente dois os espaços a que Moema se associa: o mar e o espelho, na verdade, figurações congêneres de uma mesma superfície onde se concentram a vida e a morte; a identidade e a diferença, o dentro e o fora, o aquém e o além, sempre reportando a idéia de profundidade. De fato, a regra de concepção dramática adotada em Senhora dos afogados é a da reduplicação. Não arbitrariamente, a tragédia reduplicada nos infortúnios protagonizados por Moema e pelo Noivo, pela prostituta e por Eduarda (a Clitemnestra brasileira) ou pelos irmãos que sucessivamente se afogam, reproduz, estruturalmente, o fatídico espelhismo que os caracteriza: Moema tem as mesmas mãos da mãe e, por esta via, obtém-se a mais arrojada operação simbólica do discurso, qual seja, a sexualização do mais feminino e domesticado dos órgãos, as mãos; o Noivo guarda uma indesejada semelhança com o pai; os Drummond integram uma tradição de trezentos anos de fidelidade e frustração, pois, quando amam, não desejam; quando desejam, não podem amar. Mesmo desconsiderando o grau de intencionalidade consignado na escolha da nova identidade para a Electra brasileira, já não se pode desprezar o campo de evocações aberto por Moema. Este nome - Moema - reporta a uma humanidade esquecida, à dos primórdios da civilização brasileira, da qual a mulher indígena participou como agente espontâneo de conciliação com o colonizador branco. Na construção da personagem rodriguiana, aspectos do mito indígena de Yára se superpõem à imagem plangente que peculiariza a Moema, personagem romântica da tradição indianista. A possibilidade de diferenciação da Moema rodriguiana em relação a Electra, a Yara ou à Lavínia do teatro de O’Neill decorre do jogo de suplência que abre rastros de todos os “fantasmas” contidos na mesma personagem. A imagem do oceano terrível, vestígio caótico de catástrofes mergulhadas, imensidão movente e sujeita a convulsões coléricas, depósito de excrementos e destroços de toda sorte contém as prerrogativas de um saber anterior e universal, com que Moema se identifica. A Moema rodriguiana rememora, pois, a amante lendária do colonizador português Caramuru por realizar no mar a vingança amorosa. Se nele não morre, ao contrário, mata. Ao induzir a mãe ao adultério, o papel tradicionalmente delegado a Clitemnestra é assumido pela personagem. A imagem da serpente esquiliana retorna, inclusive, no texto de Nelson Rodrigues, através da observação contida na didascália de que a personagem fala ciciando (p.330). Confrontada primeiramente com as irmãs, Moema se investe do simbolismo das águas; no confronto com a mãe, recobra-se o fascínio dos reflexos, na dimensão do brilho estelar contido no mito de Electra. Estes dois códigos simbólicos, associados no protagonismo de Senhora dos afogados, ratificam-lhe a vacuidade da vida, irresolvida pelo afogamento das irmãs ou pela morte da mãe. Pelas propriedades contidas na personagem, Moema pode ser vista como o produto mais representativo de uma mímesis radical, da qual o espelho que integra a última cena se
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faz signo. Não por outra razão, a imagem que o espelho reflete não é a de Moema, mas a da mãe de mãos amputadas, como a sintetizar o destino do próprio texto: este nunca é totalmente outro, mas o outro do mesmo, representado em sua cárie e destinado a sempre se repetir. Se assim não fosse, não se encaminharia o drama para o embricamento do mundo dos vivos e dos mortos, do passado com o presente, da realidade e do mito, estratégia com que as heroínas do teatro grego se têm legitimado nos palcos latino-americanos e se reedita a proeminência das mulheres trágicas. 2.5 - A dramaturgia mítica de Carlos Henrique Escobar Carlos Henrique Escobar, filósofo e dramaturgo brasileiro (nascido em 1933), escreveu pelo menos quatro peças de tema mítico: Ana Clitemnestra, Medéia Masculina, Antígone América e Ramon, o Filoteto americano. Sua dramaturgia corresponde a uma profusa produção filosófica associada principalmente ao pensamento de Nietzsche, donde saem trabalhos como Zaratustra e O corpo e os povos da tragédia9. Antígone América se insere na temática da Revolta Camponesa, a qual envolve o conflito dos dois filhos de Édipo e do enterro de Polinice. Contudo, o maior interesse do autor se deveu à luta de classes, utilizada para caracterizar uma realidade de humilhação e exploração do camponês brasileiro. A peça Ana Clitemnestra foi situada na Guerra de Canudos, e a personagem principal é Ana de Assis, mulher de Euclides da Cunha. Medéia Masculina é uma tragédia que traz a personagem principal, Medéia, representada por um homem, um professor humilde, no interior da Bahia, também na época de Canudos. Este se vê obrigado a sacrificar os filhos devido à traição da esposa. Filoctetes é contextualizado no alto Peru, quando ainda havia a dominação espanhola. Sua morada é o fundo de uma mina, e os que trabalham lá tirando ouro fizeram para ele duas lanças. Há nessa peça um metateatro que, junto com a figura marcante do anão, marca um questionamento não apenas no que tange a luta de classes ou povos, mas a função da arte no contexto social. No lugar de lamentos e gemidos, Ramon utiliza as duas lanças para tecer tapetes, porque ele não deseja mais participar de guerras. A peça coincide com a tragédia grega no momento em que os soldados tentam convencer Ramon a juntar-se às tropas espanholas10. 3 - Máscaras neocômicas ou O difícil riso de Talia As primeiras manifestações do teatro, no Brasil, se ligam ao gênero cômico, mas não privilegiam o repertório clássico. Ainda que tenham aparecido bons comediógrafos, no século XIX, o gênero ligeiro - revistas, burletas, vaudevilles, traduções e adaptações - sobrepujou o drama e a comédia, na passagem para o século XX. É exatamente neste nicho que se vai encontrar a mais expressiva presença do teatro de diversão, Artur de Azevedo (1855-1908), autor igualmente do único experimento dramatúrgico de inspiração clássica, no período. 9
Escobar (2000).
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O dramaturgo foi tema da monografia de Ana Tereza Andrade, “O Imaginário grotesco na dramaturgia de Carlos Henrique Escobar”, um dos produtos da bolsa de Iniciação Científica a que a pesquisadora teve direito, no ano de 2000, ligada ao projeto Vinhos novos em odres velhos: o teatro latinoamericano de tema mítico, desenvolvido sob minha responsabilidade com mais quatro bolsistas, entre os anos 1999-2001, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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Trata-se da peça Abel, Helena, uma estilização11 da ópera cômica francesa La Belle Hélène, de Henri Meilhac e Ludovic Halévy, por sua vez uma paródia da trama mitológica do rapto de Helena de Tróia. Na peça francesa, a ação se passa em Esparta, onde Páris chega, disfarçado de pastor, para cumprir o que já havia sido previsto: buscar Helena. Calcas, como oráculo, reconhece no pastor com quem Hélène se encontra o favorito de Vênus. Num concurso realizado em casa de Menelau, Páris sai vitorioso, o que o encoraja a se revelar. Calcas finge receber uma mensagem dos deuses, exigindo que Menelau fizesse uma viagem. Conquanto Hélène hesitasse, algum tempo é pedido. Quando Páris e Hélène estão prestes a fugir, Menelau retorna. No último ato, a ação se passa numa praia de Creta. Pairava uma maldição sobre mundo grego: os casamentos se desfaziam. Segundo Calcas, só Hélène poderia acabar com aquilo. Ela deveria ir a Cítera, onde, acompanhada de um sacerdote de Vênus, faria um sacrifício à deusa. Este é o embuste através do qual os dois amantes se reúnem, uma vez que sacerdote é ninguém menos que o próprio Páris, que se encontra disfarçado. Os chefes gregos, atônitos e furiosos, nada podem fazer perante a farsa. A versão de Artur Azevedo, ambientada no Rio de Janeiro de 1877, repete o enredo embusteiro: Helena, afilhada de Nicolau, rico latifundiário da região, pede ajuda ao padre Cascais para casar-se com Abel, quando se conheceram no Rio. O jovem é esperado na freguesia, onde se realiza um concurso literário do qual sai vitorioso. Este é o pretexto para ser convidado a jantar na casa de Nicolau que, sendo solicitado para controlar uma fuga de escravos, é obrigado a se ausentar. Esta é a oportunidade para que os apaixonados fujam, o que não ocorre, porque Helena também hesita. A punição de Helena é ser mandada para um convento, onde deveria expiar por cinco anos, ao final dos quais, desposaria o padrinho. Nada disso acontece, pois Cascais providencia que um frade, na verdade Abel sob disfarce, se incumba de acompanhar a moça. Ao saber da verdade, Nicolau tem um ataque de apoplexia, o que libera o jovem casal para a sua feliz união. Em ambas as versões, há elementos livremente adaptados da tradição mitológica (concursos, disfarces, trapaças, fuga e traição), bem como a introdução de novos elementos. Ambas as reedições da Helena mítica optam pelo novo companheiro. Em ambas as peças, há um triunfo sobre o martirológico e a reconotarão da vida de sacrifícios a que o casamento tradicionalmente se liga (nas peças, sacrifícar-se pelo casamento traz alegria e a sabotagem dos casamentos contratuais, sem amor). Ainda que teatro de diversão, cuja jocosidade se declara na concepção do título, Abel, Helena não se furta a enunciar sua leitura crítica do contexto social e político onde é encenada. As três classes dominantes entram em cena através de Nicolau (o latifundiário), Cascais (o padre) e o atrapalhado Alferes Andrade (o militar). Este último corresponderia ao Aquiles de La Belle Hélène, No concurso literário em que se confrontam as várias camadas da sociedade, o Alferes Andrade é um completo fracasso.
11 Segundo Tynianov, “a estilização está próxima da paródia. Uma e outra vivem de uma vida dupla. Além da obra há um segundo plano estilizado ou parodiado., Mas, na paródia, os dois planos devem ser necessariamente discordantes, deslocados (...), quando há a estilização não há mais discordância”. Ao contrário, ocorre a “concordância dos dois planos: o do estilizando e o do estilizado, que aparece através deste” (Apud Sant’Anna: 1985, 13).
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A integridade moral também não é exemplar, o que é demonstrado no fógo de víspora. Para compensar suas debilidades intelectuais e éticas, o Alferes exibe suas espada sempre que necessário. Os três poderes são submetidos igualmente à estilização, através da incultura (do latifundiário), do latim (do religioso) e da espada (do militar). Artur Azevedo, valendo-se do expediente de adaptação de um tema clássico, veicula a sua crítica, ao modo sábio e saboroso da mímesis cômica. Abel, Helena, sob a aparente submissão à cultura francesa, satisfaz a uma sociedade que tinha, àquela altura, a França como ideal de vida e de realização, uma sociedade em evidente crise de “torcicolo cultural”12. Essa euforia eurocêntrica é a fonte primária da comicidade, na peça, que leva ao argumento grego e servirá como referência para um processo criativo de retorno às fontes clássicas, no século XX, marcado pelo tratamento crítico dos enredos e pela manipulação carnavalizante das versões de referência. Na razão inversamente proporcional à fomentação do trágico, o cômico, a comédia, o risível e os gêneros hilariantes não interessam diretamente ao público brasileiro. A educação informal, a subcultura, a capacidade de sobreviver às adversidades tomaram à comicidade, à pilhéria bem-humorada, à ironia leve, ingredientes imprescindíveis à vida cotidiana. A presença corriqueira das práticas jocosas e de certa licenciosidade carnavalesca também subsidia esse trabalho quase contínuo de solapação da seriedade e desmoralização das práticas pretensa e falsamente rígidas, no “país do carnaval”. Esta é a razão pela qual o critério de sancionamento de entradas no terreno da hilaridade será muito rígido, e o aparecimento de comediógrafos talentosos, proporcionalmente muito mais raro que o de autores que lidam com as formas sombrias de páthos. Tecnicamente mais difíceis, o páthos do prazer (presente, aliás, nas melhores tragédias) e a particular lógica do riso (também altamente rentável, nos jogos irônicos que cimentam a tragicidade) continuam sendo os grandes desafios para dramaturgos, encenadores e atores. A mecânica da comédia (Nuñez: 1999, 105-106), que a tragédia toma de empréstimo para engendrar a trágico, torna-se, assim, indispensável, para uma visão teórica do dramático. Adotando mais uma vez a dicotomia proposta por Szondi, acima referida, pode-se pensar que, da mesma forma que a tragédia é uma das expressões do trágico (na verdade, o lugar original de manifestação do sentimento grave do mundo e, por conseguinte, do trágico), a comédia se articula produtivamente com o cômico, depois de ter fornecido os princípios organizativos da tragédia. De fato, as duas espécies do dramático propõem uma correspondência simetricamente inversa de suas engrenagens comuns. A mímesis de uma ação, que na tragédia deve ser “importante e completa” e se desenvolver a partir de uma perspectiva grave, na comédia é uma ação tida como irrelevante, aparentemente inconclusa, devendo gerar um tratamento leviano e inconseqüente.
12 Devo o emprego da expressão a Gilza Martins Saldanha da Gama, autora da monografia “Leitura crítica de Abel, Helena e suas implicações teórico-sociais”, apresentada à Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, em Niterói/Rio de Janeiro, em 1986.
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Ao constituir-se um discurso transgresor, comprometido tão-somente com seus métodos particulares de construção da ação, a comédia incorpora o conceito de hybris (termo ´ ausente do vocabulário aristotélico, mas atuante na harmatía, culpa, que determina o herói) numa direção oposta à da tragédia. Nesta, é desmedida a ultrapassagem do métron (medida), a ação deliberada do herói, que se opõe à ordem. Na comédia, a própria atitutde poético-discursiva assume a transgressão: o coprológico, a liberdade na seleção temática, os gestos, a indumentária ridícula, os espaços disparatados, as personagens de baixo valor social e mora´ lizante, o espetáculo descontraído compõem o perfil da hybris na comédia. Como o diz Hayman (1980: 29-52): repugnância, medo, riso, escândalo e desmedida fornecem um distanciamento necessariamente negativo, limitam a participação dos espectadores, criam tensões, lembrando regularmente ao espectador que o caos não é realmente o ambiente de sua vida habitual,
Terror e compaixão, presentes na definição aristotélica de tragédia, também integram a concepção cômica. Prestam-se, todavia, à anestesia da consciência (em vez da identificação trágica). Em ambas as modalidades do dramático, existe um míaron, uma impureza, uma falta, que precisa ser expiada. Ela se consubstancia a partir da hybris, que, no seu modo excessivo, ´ escandaliza e presentifica os aspectos negativos da existência, o que é ratificado por Olson (1975, 37): the comic character (...) is unlike us, insofar as he is comic, and the misfortunes insofar as they are comic, either are not grave or are deserved. The comic action, thus, neutralizaes the emotions of pity and fear to produce the contrary - again I must insist, not the negative or contradictory - of the serious.
Em lugar da catarse trágica (traduzível como eliminação das afecções morais dos espectadores), a comédia lida com a catástase, a retenção ou manutenção da perspectiva crítica, perante os absurdos dramatizados. Da mesma forma, ao êxtase pela liberação do sofrimento (na tragédia), corresponderá, na fenomênica do cômico, a estase, sustentação da atenção e da consciência reflexiva, efeitos que somente o riso e a alegria podem assegurar. Dito por outras palavras: se a catarse é o resultado de convulsão afetiva provocada, na tragédia, pelas emoções paradoxais de compaixão e terror, essas mesmas emoções são responsáveis pela inversamente correspondente catástase cômica. Poderíamos mesmo dizer que a catarse, na comédia, melhor se define como catástase, porque a especificia. Como se vê, efeitos díspares decorrem de procedimentos afins. Esses breves comentários teóricos sobre o funcionamento da comédia explicam, na verdade, a razão pela qual pouco muda na comédia moderna, em relação às suas matrizes clássicas. Os temas podem ser simplesmente transplantados e encenados de acordo com as referências espaço-temporais de origem, pois o que importa é a capacidade de correlacionamento intelectual operado pela platéia, na conexão entre mundo encenado e atualidade a que ele se vincula. Merecerão destaque três nomes que exerce(ra)m o métier da dramaturgia cômica, especializando-se na manufatura dos temas clássicos.
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3.1 - Um deus dormiu lá em casa de Guilherme Figueiredo Não há dramaturgo brasileiro mais aficcionado à temática clássica que Guilherme Figueiredo (1915-1997), um homem da cultura em múltiplos aspectos (foi jornalista, redator de publicidade, poeta, romancista, dramaturgo encenado em lugares tão distantes como China, Japão e ex-União Soviética, além de contista, crítico literário, advogado, tradutor, adido cultural em Paris no período 1964-68 e reitor da Universidade do Rio de Janeiro na década 1978-88). Como dramaturgo, especializou-se em retomar a Antigüidade clássica, com os sucessos Greve Geral (retomando o argumento de Lisístrata), A Raposa e as Uvas (1952), Os Fantasmas (sobre os últimos momentos de Sócrates), A Muito curiosa história da virtuosa matrona de Éfeso, O Princípio de Arquimedes e Um Deus Dormiu lá em Casa (1949), apenas para citar alguns títulos. Sobretudo esta última fez a notoriedade do homem de teatro, que se inseriu na linhagem dos recriadores do Anfitrião de Plauto, quase a confirmar a adaptabilidade do tema às platéias de língua portuguesa. Dentre as versões lusófonas conhecidas (de Camões, o Auto dos Anfitriões [1524-80]; o Anfitrião de António José da Silva [1736]; Augusto Abelaira escreveu um Anfitrião outra vez [1980] e Norberto Ávila retoma a cena romana em Uma nuvem sobre a cama [1997] - todas de autores portugueses), somente Um deus dormiu lá em casa é brasileira. A peça consegue recriar a comicidade dos desejos adulterinos de Júpiter por Alcmena, mantendo a mesma situação de ausência providencial do marido que vai para a guerra, mas colocando em questão as lutas morais dos participantes do delito, bem como seus conflitos anteriores. Neste sentido, a peça reatualiza a temática da traição conjugal, projetando nela os novos padrões de consciência e honestidade interpessoal de que o novo humanismo se pode rejubilar. O Anfitrião brasileiro é um livre pensador, que vive tentando negar a existência dos deuses. O domínio do gênero por Figueiredo vem enriquecido pela adoção de procedimentos de carnavalização literária, no tratamento do mito, na construção das personagens, no recurso ao sincretismo religioso, e pelo livre intercâmbio entre elementos do passado e do presente, do mundo grego antigo e da história pós-clássica. A lide com situações disparatadas tão favorável aos efeitos cômicos é a chave da comicidade, na peça. O dramaturgo brasileiro altera a versão de referência. Creonte confia a Anfitrião a missão de combater os tebanos. Instigado por seu criado Sósia, que não quer participar dos perigos da guerra e, já desconfiado de intenções de Creonte em relação a Alcmena, urde um plano para se infiltrar à noite, em sua casa. Sob um manto e munido de uma taça de ouro que ele diz ter recebido de Dioniso, Anfitrião se apresenta em sua casa como se fora de Júpiter, enquanto Sósia o acompanha disfarçado de Mercúrio. A escrava Tessala recebe o par divino com grande entusiasmo, enquanto os sentimentos de Alcmena, perante o visitante ilustre, são de pura vaidade. No dia seguinte, o Pseudo-Júpiter retorna ao campo de batalha, mas retorna vitorioso. Os tebanos se revoltam contra Alcmena, que hospedara um homem, enquanto o herói tebano se esforçava na guerra. Anfitrião se adianta a contar ao povo a visita de Júpiter.
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Nas palavras de Zélia Cardoso13, “é a total dessacralização do mito e, em conseqüência, a carnavalização dos valores religiosos”. Outra importante modificação dramático-dramatúrgica aí presente é a redução da ação às quatro figuras principais (os casais de senhores e de servos), enquanto que o fio dramático se deixa também movimentar pela intervenção de vozes que vêm de fora, reconstruindo, por vezes, a participação do coro (o povo tebano, o Demagogo, as sentinelas e os soldados). O regime dessolenizante se infiltra, no discurso, por intermédio das associações disparatadas entre heróis e heroínas míticos e figuras da história antiga (Sócrates, Píndaro, os sofistas); entre a ambientação principal, no mundo greco-romano, e as incongruentes referências a épocas posteriores; entre a intertextualidade previsível a que o tema se vincula e as associações esdrúxulas, como a alusão à ária da Aida de Verdi, “Ritorna vincitor”, quando Alcmena se despede do marido, ao partir para a guerra. Também se desconvencionaliza a unidade de tom, que admite inserções (ainda que breves) de caráter lírico, patético ou ideológico. A tudo se isso se misturam trocadilhos, rupturas e retomadas deslocadas de citações, enfim, um número expressivo de recursos lingüísticos, alguns populares e ingênuos, que marcam a estilística polimórfica de Guilherme Figueiredo. Neste sentido, é pertinente apontar como força renovadora do patrimônio clássico com que o dramaturgo se acostumou a lidar, além da carnavalização literária, a absorção de uma das formas mais populares de comicidade desenvolvida no Brasil entre 1940 e 1960, a chanchada14. Através deste ingrediente adicional, o teatro de tema mítico de Guilherme Figueiredo pode ser apontado como um lugar onde se efetiva uma mímesis tipicamente brasileira. 3.2 - Lisístrata de Augusto Boal O inventor do “teatro do oprimido”, metodologia cênico-pedagógica teatral que se destaca, no cenário das artes nacionais e insere o teatro latinoamericano no painel de novas formulações do ato cênico do século XX, inspirou-se nas formas e temas originais do teatro para conceber seus textos. O primeiro deles, Revolução na América do Sul (1960), protagonizada por um homem comum, é lido pela crítica especializada como uma comédia aristofanesca15, por que a denúncia de exploração do homem comum José da Silva surge “do próprio esquema da fatura teatral, que procede por hipérbole e por abstração.” A indignação recoberta de humor recobra as habilidades e artimanhas da comicidade aristofânica, ainda que a peça não faça qualquer alusão ao mundo mitológico, e a reminiscência da comédia grega seja apenas evocada através da farsa deslavada e do riso quase circense.
13
Cardoso (In: Moreau: 1996, 189).
14
A chanchada, nas palavras de Zélia de A. Cardoso, “é um gênero onde, sob a aparência de diversões comuns e sem intenção artística, se encontra uma crítica sutil de questões sociais, políticas e culturais, feitas com muita inteligência, acuidade e humor.” (Op. cit. p. 193). 15
Magaldi (Op. cit. p. 251).
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O conhecimento sólido da história do teatro universal deu ao dramaturgo subsídios bastantes para criar uma dramaturgia cheia de referências à memória do próprio teatro. Recorrentemente Boal experimenta a quebra de convenções teatrais, imprimindo interpretação e visão contemporâneas a textos com rígidas rubricas temporais. Em Mulheres de Atenas (1976), o dramaturgo propõe uma adaptação da Lisístrata e da Assembléia de mulheres de Aristófanes, com músicas de Chico Buarque. A temática feminina funciona como um catalisador de muitas outras demandas por direitos primários a que algumas sociedades, como a latinoamericana, ainda não tem acesso imediato. Pela voz de Lisa, uma das atenienses insurrectas, se expressa claramente o tom reinvidicatório da peça: LISA - Queremos que todos tenham direito ao trabalho, e eu as mulheres sejamos donas dos seus corpos; queremos que as roupas se lavem nas tinturarias do Estado, que a comida se faça nas cozinhas do Estado, que as roupas sejam feitas nos teares do Estado. (Estimula as espectadoras para que falem). Vamos, irmãs, coragem! Digam o que querem. Digam o que pensam! Vamos, irmãs. JUIZ - Isso vocês não terão nunca! LISA - E então sim, homens e mulheres poderão amar-se! (Ferozes, os homens e as mulheres debaixo apontam as suas armas contra os que estão em cima. Lisa e os seus amigos gritam o seu grito de guerra) Agora sim está muito claro quem está brigando e de que lado está. É a guerra! Preparem-se! (De repente todos se imobilizam). Senhores espectadores, este espetáculo termina aqui. Não lhe podemos dar nenhum final, porque a luta acaba de começar. Boa noite.
Boal (nascido em 1931) tem uma obra de dramaturgo expressiva, além de ininterrupta participação como diretor e teórico do teatro. O peso ideológico de sua produção artística tem contribuído significativamente para a democratização da sociedade brasileira. 3.3 - O Santo e a porca de Ariano Suassuna O nordeste brasileiro é o reduto do mais genuíno imaginário mítico e das mais veementes formas de religiosidade popular. Os nordestinos convivem com os temas e personagens do folclore. Em sua memória cultural encontra-se depositado grande número de lendas e crenças importadas e autóctones, razão pela qual inúmeros enredos transcendentais e históricos da fabulística antiga e medieval ali se conservaram e continuam a nutrir a verve de escritores e dramaturgos locais. A literatura oral, o repentismo, a tradição do cordel e a recitação de poesia sãi ainda uma prática ativa, na região. A conexão da dramaturgia de Ariano Suassuna (nascido em 1927) com o imaginário antigo, medieval e renascentista apenas diversifica o apreço aos valores mítico-religiosos, trazidos de suas origens. A cultura clássica se faz representar, neste repertório, pela comédia O Santo e a porca, que associa o tema do avarento plautino da Aulularia a outro, de alto valor para a mentalidade religiosa do homem nordestino: o mais humano dos impasses, aquele que coloca o cristão entre os bens materiais e os bens eternos. A dúvida se materializa claramente a Euricão Engole-Cobra, quando este tem de optar entre preservar seu cofre em forma de porca e seguir o exemplo de caridade e pobreza dado por Santo Antônio. O avarento brasileiro acaba reconhecendo que a perda da fortuna
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acumulada sob pecado determina o desígnio divino de recuperação de sua alma. Afinal, ter acumulado o dinheiro por tanto tempo, implicou a sua desvalorização. E mais: com a troca de moeda, seu tesouro se reduzia a relíquia. Da matriz antiga, Suassuna adapta a presença do deus Lar romano, na importante presença do Santo Antônio na trama. Da matriz francesa e renascentista, a disputa entre pai e filho (Eudoro Vicente e Dodó) pela mesma namorada (Margarida), filha do avarento, é aproveitada: trata-se da tríade Anselmo, Valério e Elisa d’O Misantropo de Molière reciclada. Mas há ainda outros aproveitamentos: tanto Valério como Dodó insinuam-se nas casas respectivas de Harpagão e Euricão para ficarem próximas de suas amadas, e tanto Anselmo quanto Eudoro recuperam a situação de casados, este último através da irmã de Euricão, Benona, que o amara em tempos juvenis. Na versão brasileira, entretanto, os amores furtivos do jovem casal seguem as normas conservadoras da moral cristã, sem que sobrevenha a gravidez em que terminam os envolvimentos amorosos da comédia latina. Mas a melhor adaptação do texto de Suassuna fica por conta do criado Pinhão (correspondente ao Estróbilo latino e ao La Flèche de Molière). Ele tem a esperteza do malandro, que trapaceia com graça o patrão, a namorada (Caroba) e até os respeitáveis santos (a quem surrupia a retribuição pecuniária por realizar, em lugar da intercessão divina, o milagre de se encontrar o tesouro desaparecido). A trama organizada por personagens que atuam aos pares garante o sucesso nos equívocos, qüiprocós e cenas de embaralhamento de identidade16. Pinhão e Caroba sustentam o regime de hilaridade do espetáculo. Ela está à altura do papel do parceiro, atuando como “femme d’ intrigue” ágil, retorcendo a composição dos casais e se beneficiando de todas as trapalhadas. Até Santo Antônio é tributário de sua presença na trama, pois tem garantida a fama de santo casamenteiro. 4 - Cai o pano Depois de apresentados os dramaturgos e o trabalho que, por intermédio de sua arte, se identifica com a poética do próprio mito, muito pouco merece ser dito. Talvez valha a pena apenas lembrar o comentário de Angel Rama (apud Miranda: 1984,19) a respeito do papel hegemônico que a escritura dos letrados sempre desempenhou, na América Latina. A vocação retórica e o gosto da palavra ornamental das culturas ibéricas se deixam complementar com a incorporação inconteste da teatralidade e predileção popular pelas artes cênicas, no processo de formação cultural brasileiro. O teatro de tema mítico traz para as platéias brasileiras mais do que um acervo de inexcedível qualidade e variedade imagística. Pela vertente trágica, coloca-nos criticamente frente à nossa história. Pela vertente cômica e do riso, oferece-nos o mais generoso meio de lembrar-nos que, afinal, não estamos sozinhos.
16 Além disso, todas as personagens se relacionam entre si e, individualmente, com o santo (através de uma graça alcançada) e com a porca (através de um bem pecuniário obtido).
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SERTÃO, MENTIRA E DESATINO: EMERGÊNCIA LITERÁRIA EM GUIMARÃES ROSA, ANTÔNIO VIEIRA E MACHADO DE ASSIS. Marcus Alexandre Motta
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No intervalo de tempo que separa esta escrita de outra1* (fruto da cooperação internacional UDC e UERJ), ficou-me a compulsão de dar conta de duas obras citadas naquele texto; no qual tomava para diálogo o Livro Anteprimeiro da História do Futuro de Antônio Vieira. São elas: Grande Sertão: Veredas e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Tal comprometimento se refere à idéia manifesta, naquele texto, de que o Livro do jesuíta se posicionava como um Prefácio à cultura literária brasileira, propagando a vontade de intérprete na escrita desta terra nova. O que expressa haver a presença sucessiva de uma alegoria da leitura em cada caso literário em destaque; ao qual denomino de história do futuro. E esta possibilidade me leva, aqui nessa escrita, a refletir a forma de tal ocorrência anunciar-se em Guimarães Rosa, prioritariamente, e Machado de Assis. Essa expectativa (ou, posso dizer, essa alegoria teórica), portanto, veio-me a requerer um certo gênero de prioridade na composição. Decidi, primeiramente, descumprir o título do texto. Não estarei a dar a mesma medida textual aos autores considerados; pois, se assim fizesse, deixaria de lado a idéia que me trouxe à escrita. De algum jeito, a inadimplência cometida é resultado do andamento do meu raciocínio em curso; motivado pelas três palavras que no título estão em realce, funcionando em maior intensidade no Grande Sertão: Veredas. Neste espírito, não pretendo propor argumentação definitiva para as deferências que faço. Antes, tomo o contar em Grande Sertão: Veredas supondo-o apto de nos ensinar alguma coisa sobre o ato de contar numa terra nova; nas vizinhanças de uma inadequada filosofia. E, a partir disso, aceito de imediato que os dilemas literários de Guimarães Rosa absorvem algo que parece estar na obra de Machado de Assis. Ou seja: coisas de romance.
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* O texto ao qual me refiro - “Recolecionar Opostos - O Livro Anteprimeiro da História do Futuro de Antônio Vieira” - resulta do I Seminário Internacional de Estudos Galego-Brasileiro em julho de 2003, Na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e publicado em Estudos Galego-Brasileiros (org. Maria do Amparo Tavares Maleval & Francisco Salinas Portugal), Rio de Janeiro; H.P. Comunicação Editora, 2003.
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Logo, esse texto comunga disparidades entre autores distintos, e obras especiais, cujo raciocínio procura mantê-los ímpar sem dar a eles qualquer paridade cordata. O que significa, também, que nem a noção de emergência literária estará a serviço das identidades históricas; pois a mais forte presença daquela noção é a situação crítica que as obras em evidências colocam para o estado crítico no qual nos achamos - que posso anunciar através da seguinte passagem do Grande Sertão: Veredas: Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba. Tutela Mesmo que eu possa partir do princípio de que Guimarães Rosa, Antônio Vieira e Machado de Assis sejam aceitos como importantes vozes literárias, com todas as conseqüências que isso acarreta, causa espécie descobrir que a recepção de cada um deles, como teóricos da própria obra e da cultura literária brasileira, é ainda tão insuficiente que o fervor ou a seriedade espiritual de suas escrituras, interna aos seus ensinamentos literários, ainda faculta ser evitada. E que algo, na própria natureza de serem eles escritores, lhes nega a possibilidade de se fazerem “filósofos” de uma terra nova - descoberta, poderia dizer. Levanto essa questão de forma a trazer à luz a patologia estrutural dessa cautela; sobretudo, para indicar que não estou interessado em atribuir culpas por tal situação, mas insistir no fenômeno que cada um deles, como “filósofos”, expressam nas obras aqui consideradas - Grande Sertão: Veredas, Livro Anteprimeiro da História do Futuro e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Se considero, como se pode ver em artigo anterior, que o Livro Anteprimeiro da História do Futuro de Antônio Vieira é um tipo de prefácio à cultura literária brasileira, e que nesse livro há o que posso denominar de teoria das escrituras de arte numa terra nova, careço aceitar que as outras obras em destaque assinalam alguma coisa de fundamental para as reflexões sobre o estado crítico de nosso conhecimento. Isto significa que algumas passagens literárias, das obras escolhidas, são coisas a mais do que um onde demarcador na narrativa. Logo, podem ser vistas como “perversões filosóficas”, sobre as quais qualquer leitor adivinha o que se fala de nós, mas que, por desatenção habitual ao sentido de ler uma narrativa, pouco reflete sobre as passagens que deixam nefando silêncio na nossa forma de conhecimento - já que é negado aos literatos o naipe de “filósofos” de uma terra ainda nova; tão indomável como doméstica (uma pequena lembrança de Gilberto Freire). Se de tal modo acredito, é porque as palavras sertão, mentira e desatino me parecem reiterar a inconveniência que seus sentidos comuns almejam, alargando a “descortesia” que aquelas obras provocam naquilo que posso denominar de experiência literária brasileira. É como se eu pedisse às palavras a demonstração do poder de ler esta terra nova (a partir daqueles livros) quando se aproximam por seus intervalos de tempo futuro; já que é delas balançarem na primeira ponta do devir. Nesta tensão de beira, admito que elas anunciam o contar que conta o que se conta nas obras e em nós como “filosofia da terra”. Alguma coisa que, aqui, é a maneira de narrar junto, gerando a cumplicidade que historia, por aquelas palavras, o processo no qual a idéia de contar de cada autor de fato é uma história futura que se conta quando se narra nesse chão - pensando numa conivência pressagiada pelo título Livro Anteprimeiro da História do Futuro de Antônio Vieira. Se há o contar junto, é porque o saber das palavras sertão, mentira e desatino numa terra nova improvisa (aceito) a verdade prefaciada que só se sustenta na longa fugacidade
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anunciada por elas, história do futuro. É como se cada um dos autores pudesse insistir numa coisa a mais na literatura e em nós igualmente pervertida, cuja infecção ordinária das palavras consome uma experiência e um pensamento à altura de ser filosófico (ou inadequada filosofia), fazendo acontecer um tipo de emergência literária que mais parece a dor na sabedoria de todos os falantes do mesmo continente da língua portuguesa, sem prover de sentido o que é testemunhado. Devo admitir que esse posicionamento é tão aberto que corroborá-lo, ou não, é ainda história do futuro. Tal questionamento de imprópria filosofia - forma de interrogar a literatura por palavras que a negam de algum jeito - é especialmente um dizer sobre até onde se pode ler, sem parar; quer movido por raiva, quer por simpatias (embora ambas só invertam os mesmos princípios). Atravessadas Em certo momento de Grande Sertão: Veredas, o personagem Riobaldo declara: eu atravesso as coisas - e no meio da travessia não vejo! - só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Inclino-me a dizer que a frase expressa a condição pouco afeita a se deter numa fala de personagem. Falo da qualidade que ela tem de provocação, como se conquistasse a voz da humanidade nessa terra nova. E o que quero dizer com isso? Pronuncio sobre a probidade de ver a frase do personagem nas adjacências da encenação que nos é dada: um quase benefício inviolável e natural de atravessar as coisas deste chão moço; distinguindo nossa linguagem como transversa. Sendo a nossa linguagem, possivelmente, desse modo, admito ser ela a forma de vida que enfeitiça o nosso intelecto de sentidos de que estamos sempre a atravessar as coisas. O que me leva a pensar que qualquer um vive o nosso solo ingênuo porque o atravessa em palavras, num contar capaz de voltar-se para si próprio - como se fosse evidente a certeza de que ao falarmos sobre esta terra, a atravessamos sem sequer de fato medir suas resistências. Melhor: nos pomos a abordá-la, facilmente, através do percurso que as palavras fazem. Penso: arruma-se aquela frase do personagem de Guimarães Rosa pela intrépida atitude do eu que, nas cercanias do contar, promove-se através do imperativo de que é ele, prontamente, capaz. Isso o associa à estima do fato: eu atravesso as coisas. De acordo com tal aspecto, a única forma que me vem à mente é se intuo que o eu atravesso as coisas seria uma espécie de ensinamento de Guimarães Rosa sobre o desatino da linguagem - termo que se pode entender como unidade das causas dispensáveis; já que é dele não precisar das necessidades, graças à força de sua envergadura imaginativa e, para quem a vive, a sua “razão” é tão precisa quanto atuante. O desatino que a expressão sugere, e que digo nos pertencer, seria ter a natureza do sertão como esquema para constituir um eu contemporâneo à nossa terra? Creio ser possível, pois se leio aquela frase é porque ela me sugere que o eu, aquele que Guimarães nos autoriza, encontra-se numa circunstância na qual a sua ou mesmo a nossa figuração deveria contar o incondicionado, o sertão. Ora, um eu que conta o incondicionado - o sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca - não pode traduzir a si por sensibilidade repousante. Antes, o desatino da linguagem impõe ao eu a ênfase na rasura de qualquer conforto, o sertão. Eis, por conseguinte, um tipo de sensibilidade que Guimarães Rosa nos reserva:
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eu atravesso as coisas. E isto pode ser visto como o simplesmente literário agindo como inadequada filosofia; girando o ilógico ato do eu como se ele fosse um escape para o freqüente reconhecimento do que nos falta ou, em nós, falha em vida. É profícuo, portanto, imaginar que o eu atravesso as coisas esteja beirando o modo de agir comum dos homens nessa terra nova, confeccionando a história natural fictícia desta nação; que, anterior a qualquer mistério futuro, é forma de vida natural aos que aqui atravessam as coisas com suas palavras - segundo os critérios de aceitação daquele dado: eu... Isso, porém, está empenhado quando, na travessia, o eu abandona tudo como está: no meio da travessia não vejo! Exclamar, com tudo o que pronuncia, tem o gênio submetido ao comum da dor, da admiração e correlatos que a vida nos impõe. Abandonar tudo como está por não ver, especulo, deve ser uma prática comum a nós, disposta na frase para dar conta, justamente, dessa cena de sertão que o desatino do eu corrobora: no meio da travessia não vejo! Inclino-me a refletir que o não vejo apresenta-se reconhecendo um vazio que se atravessa, as coisas. São, então, as próprias coisas vazias nessa terra nova? Sim; pois se assim não fosse, o eu não atravessaria as coisas. Tal situação me consente cogitar que a transversalidade da linguagem precisa ter os obstáculos feitos de vazios, sem os quais não há como atravessá-los. Mas atravessá-lo é saber, conjuntamente, que o vazio, ou vida, é a forma maior de sua resistência - cuja metáfora máxima é a idéia de sertão. Mas o personagem-narrador ainda mais diz: só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. E isso conta o quê? Cuido que Guimarães Rosa está a apelar para um acontecimento tão permeado de ilusões, de transes e artifícios (o entretenimento, que é matriz arcaica do ato de contar) que, dar cálculo a ele, é mirar a cadeia de negação de cada dia - matéria ordinária do contar. Ou seja: a expressão idéia dos lugares é referência abstrata da travessia das coisas, que permite saída e chegada; como se fosse um tipo de volume espacial, o sertão, que na obscura etimologia pronuncia um ser aí da morte como não vejo - algo bastante comum à cadeia de negação que cada dia carrega e, contando, se alonga em vida. De que maneira; posso argüir? Ora, a idéia dos lugares é o que denomino de indiferença à própria noção de lugar. Um tipo de sutura sem angústia a me recomendar o pensamento sobre a premissa do ordinário que antecipa o desatino futuro de um ontem a ser contado. Não é à-toa, portanto, que o lugar mais preciso e ordinário do ontem no Grande Sertão: Veredas seja aquele que está sendo preparado em tudo antes dito - o encontro de Riobaldo e Hermógenes. E ali, naquelas páginas, a idéia dos lugares de saída e de chegada conforma a jogada prometida por cada dia, ou folha, ao professar aquele embate. Sendo isto, a idéia dos lugares de saída e de chagada é rebate às coisas atravessadas depois da travessia, gerando o contar que conta o que se conta nele, em nós, como filosofia da terra - ato da graça primária, do ontem, metamorfoseado em filosofia nesse solo ingênuo. Um modo de armar narração num contar que conta a travessia que a linguagem faz nas coisas; mimetizada continuamente através das folhas de uma vida. O que significa que as palavras são desatinos ordinários que se vive para demonstrar que a categoria verdade é impotente como razão das coisas (ou páginas) nesse chão imaturo. Mas nem tudo é tão lógico (ou ilógico). Algumas páginas após aquela do eu atravesso, o personagem Riobaldo pronuncia aos ouvidos do autor: digo: o real não está na saída
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nem na chegada: ele se dispõe para gente é no meio da travessia. Bem, no meio da travessia era o que na anterior frase o não vejo se apalavra. Parece-me que o personagem está nos dando uma pista de que o real se compreende no apronto indistinguível que resta quando a imagem de cada página assume seu fim; como se este fosse o momento no qual se atravessa. Bem, se o real só se dispõe para gente no meio da travessia, é porque esta enunciação faz com que dele nada se obtenha. Então, o real nesse solo moço é um ter imaginado alguma coisa sem contar com os nascimentos das imagens (ou tê-las em excesso) - significando dizer que o que se descobre, sempre, ao ler, é a travessia do contar, expresso na pergunta que o personagem não cansa de recuperar ao contar a vida: onde estou ao acontecer? Isto me leva a supor que a linguagem faculta ser entendida, nessa terra nova, tal qual a adequada situação obsessiva em atravessar qualquer coisa; dado que as vê no conto entretido de saída e de chegada que qualquer página abusa para se fazer lida e a vida demonstra como tarefa. É como se a linguagem estivesse tentando responder à pergunta “onde estou ao acontecer?”, num além dos olhos da vida nessa terra nova e, portanto, processasse o que difere, as coisas (ou páginas), em uma falta de conflito com uma alteridade sem apelação mire veja. Em outro momento o personagem-narrador aclimata: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Basta pensar? Evidentemente, caso se veja que a linguagem - esteja ela na linguagem do autor ou no silêncio da mente do leitor - evita acordar com a visualidade iterada. De alguma maneira (e aqui a palavra tem máxima envergadura), cada página do livro parece impor uma proximidade radical que não se adequa a qualquer estrutura de um limiar (o que é o mesmo que dizer que no limite, o horizonte da vida é a sua trapaça em ser contada). Logo, não há para o personagem-narrador nada que comprove a trama singular que o lugar opera; bastando ler a passagem onde se dá a suspeita venda da alma de Riobaldo ao Diabo, aquele que não existe, portanto insiste na interrogação de um comentário ingênuo à segunda potência. Isto quer dizer que a linguagem nesse solo descoberto precipita-se sobre si, como se contasse o que se conta nela em nós como página contada, o real, para expressar que o suporte visual, o lugar da vida, não traduz o espaço diretamente na mente. Ou seja: se o lugar é o elemento com poder que é menos que o pensamento, é porque este desconfigura tanto a categoria do entendimento - à maneira de Kant - quanto as premissas filosóficas e poéticas das experiências sensoriais ou fantasmáticas que a vida do livro apresenta. Dessa forma, quando em outro momento o personagem-narrador fala, logo nos primeiros parágrafos, que o sertão está em toda parte é porque ele se faz surgir; sem capturar o lugar de sua sombra. O que expressa ser o sertão o desatino da própria imagem; ou seja: suas coordenadas espaciais são as mesmas do pensamento; parindo-se para incorporar qualquer coisa e lugar, atravessado em cada página sem nunca saber, por fim, se ele acaba em vida por ser real. Já que o sertão é o sozinho, como diz Riobaldo, é em razão de ser a moldura suavizada em torno de todos os vazios, ou vidas, nessa terra nova. Melhor: o homem portador da linguagem transversa, num solo moço, está diante do seu próprio pensamento na mesma medida em que a ênfase extenuada de sua metáfora, o sertão, esvazia o lugar das coisas a partir da pergunta recuperada pelo personagem a todo o momento do contar: onde estou ao acontecer?
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Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que tem certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. (...) Quem sabe nem pensei sério em Diadorim, ou, pensei algum, foi em vezo de desculpa. Desculpa para o meu preceito, mesmo. Quanto pior mais baixo se caiu, maismente um carece próprio de se respeitar. De mim, toda mentira aceito. O senhor não é igual? Nós todos. Mas eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão de fuga.
Eis, devo confessar, um andamento primoroso que desestabiliza (ou estabiliza), o contar. Páginas se passaram; e no imediato anterior a uma narração repleta de duplicidade sentimental, destemperada por curtos e estrondosos fragmentos imagéticos - batalha com e julgamento de Zé Bebelo -, o personagem-narrador afiança o falso na sua dificuldade de contar. Mas o que isso tem a dizer? E se é importante falar alguma coisa, não posso nem me deter na astúcia das coisas passadas e nem na dificuldade do contar; pois isso é facilmente averiguável. Fica manifesto que a palavra fingidor deveria estar contida na penúltima frase; porém, a que desponta é fugidor. De algum jeito, a linguagem transversa, nesse solo ingênuo, não faculta receber de bom grado a noção de fingidor - como se nada ainda residisse nessa terra nova que pudesse prover simulações. Após essa passagem, cada ponto da narrativa acha-se entrelaçada com o sentimento de desagregação e reprodução da forma em que tudo se permeia, se toca e se aproxima, tanto na dor como na alegria, na luta e na paz, quanto no movimento da batalha e no repouso do julgamento. Repito; mas o que isso tem a dizer? Diz que a mentira é o infinitamente presente em qualquer finito passado, o que leva o cantar às beiras de uma desagregação ideal da verdade; oposta, digo, à sua desagregação real. E aquela desagregação ideal, só se efetua quando a inquietação angustiada da verdade, no contar, encontra curso livre no falso fato de uma página - como se a mentira atravessasse a verdade da escrita dando a esta um caminho infinito para a sua finitude. Guimarães Rosa está, então, a sugerir que a subsistência da verdade na mentira é seu estado trágico nas páginas de solo ingênuo, sendo isto o sinal da transição que a verdade faz no tempo? Creio que posso pensar dessa maneira, pois o tempo tem como seu patrimônio o valor da verdade; portanto, a mentira configura aquela nos ares incondicionais do sertão. Assim, quando Riobaldo confessa seu falo falso é porque o momento da escrita cessa a freqüência de probabilidade; requerendo um contar que conta o que se conta nele e em nós, cobrindo de folhas o que nos conta sobre a nossa incapacidade de ler essa terra sem o desatino do eu atravesso? Não consigo deixar de tabular que a pergunta margeia a ascendência da mentira sobre a verdade, seja ela a sua queda ou a sua redenção para além do tempo. E isso provocaria um contar que conta o sentimento da vida - Mas teria sido? -, gerando um comportamento qual objeto do próprio contar. O que é o mesmo que dar à vida nessa terra nova o Agora, acho que nem não do personagem, que é também nosso. Forma (admito) de expor a verdade na mentira através da dor comum que reúne desagregação ideal daquela para uma fuga sem a determinação por onde se foge. Logo, a máxima da passagem de Riobaldo não afiança o fácil da mentira e nem as carrancas da verdade naquelas páginas; pois se ele se considera um fugidor que foge da
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precisão da fuga, em vez de se denominar fingidor, é porque a travessia de uma a outra não é apenas necessária, mas imperativo de abertura mútua e contínua que a metáfora do sertão exige e a vida confirma nessa terra nova. E é isto que faz com que o contar ganhe sobrevida na escrita - como se houvesse na travessia da verdade à mentira, e desta àquela, um tipo de espacialidade que só se sustenta na idiossincrasia do pensamento que conta o que se conta nele e em nós como filosofia da terra: onde estou ao acontecer? Três palavras na travessia. A equação do contar numa terra nova nunca é simples - embora também possa dizer que não é complexa. Se o desconhecido é, como em Guimarães Rosa, a escolha de valores impregnados de falta de exaustão narrativa, o sertão; devo aceitar que o contar que gera o que se conta nele em nós como filosofia da terra é o desatino lançado pelo monocórdico detalhe do próprio contar? Inclino-me a admitir que Guimarães apresenta uma consciência literária correspondente a um tipo de resposta à pergunta - sendo ele, hipoteticamente, cônscio de que a antiga situação do contar, retirar a brutalidade do tempo e do espaço (em razão disso, constituir limitações para a aventura em convencionar atos literários), perece, de alguma forma, sobre esse solo ingênuo. Não é à toa que o personagem-narrador tenha em Grande Sertão: Veredas o assíduo reconhecimento do tom único da narração - como se o tempo e o espaço do contar se fizessem através da repetição predominante de quem conta. Isso me leva a pensar ser a linguagem transversa, aquela que atravessa as coisas (ou páginas) tendo-as como vazias, uma forma de dimensionar as horas e os dias num amanhã do ontem. O que conota que as fugas temporais da narrativa exercitam suas irrelevâncias (um amanhã que atravessa o ontem, cumpre o tempo como se fosse ele natureza da linguagem), cunhando a idéia de que as coisas (ou páginas) não têm realidade precisa e nem certo significado, dado que o que se conta naturaliza o contar em centenas de folhas contadas. Quando isso se faz - um contar que se traduz no que conta -, penso na existência de uma espécie de evocação primária do eu contador em Grande Sertão: Veredas; denominado (aqui recebo todos os riscos) de aspiração de vida perante a magnitude dos espaços e tempos necessários para contar os detalhes do mesmo. Seria como se a ação do personagem-narrador estivesse obrigada a ser preenchida pelo que ele mesmo conta e se conta, sem ter muita matéria para tanto; a não ser a demora (ou a ambigüidade do sertão) que o espaço exige e as páginas da escrita confirmam. Mas esses engenhos de pontuações temporais, que na ansiedade do espaço é limitado contando, resulta no artifício do personagem-narrador em prestar contas ao contar: Senhor não repare. Demore, que eu conto. Prestando contas, o contar aviva-se na própria épica, tratando de explorar não somente os seus aspectos de gênero literário, mas a relação mesma com o pensamento - já que este absorve a amplitude espacial reconhecendo-a na sua obsessão de contar. Acontecimento que apreende o que se faz aparecer, o sertão, a partir de um sentido comparável ao seu desatino; ou seja: não há em Grande Sertão: Veredas nenhum jogo de antecena e plano-de-fundo jogada formada pelo contraste entre pretérito imperfeito e pretérito perfeito. Tudo se encontra em primeiro plano do acontecimento contar, forma de distensão entre o presente do indicativo e os tipos de pretérito; o que dá a ele a sua manifesta força de superfície épica da página escrita.
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Superfície esta que atualiza o hábito de contar, tornando a linguagem transversa à especulação sucessiva de se fazer de memória. O que informa que, numa terra nova, o arrebatamento mnemônico está totalmente à mercê do eu contador, para que esse não sofra a falência completa da disponibilidade em contar que uma terra nova exercita no pensamento. Assim, o contar amplia o seu hábito de contar para que conte o que conta, habitualmente, como se fosse memória. Melhor: ali onde o contar parece beber, o ontem, é que se desfaz o recurso mnemônico; um tipo de desatino que o sertão, com as mesmas coordenadas do pensamento, prioriza. Isso mostra que Guimarães Rosa entrelaça no desatino do eu atravesso às seqüências que parecem mnemônicas, mas que são, no final das contas, o desacordo ordinário entre o portar o que se conta e a ação de contar. Ou seja: vivas páginas de uma terra nova. Tal fato fica mais bem manifesto, quando me ponho relendo, nessa escrita, outro adágio de Riobaldo, após a morte de Diadorim: E aquela hora era a hora mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi. Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba.
A situação da passagem é de fato o todo de tudo que a estória sempre é: acabou, acabada, acaba. De algum jeito, o personagem-narrador apresenta a totalidade do “romance” numa terra nova: aquela hora era a hora mais tarde. Como assim? Na permanência viva do contar, fim que foi, que conta nele e em nós, predomina a explícita probidade da transição da escrita para uma terra nova: aqui. E isto gera no contar uma hipertrofia, esculpindo a vida do eu contador no julgamento do ouvinte, o pseudo-autor Guimarães Rosa: Narrei ao senhor No que narrei, o senhor ache mais do que eu, a minha verdade. De fato, Riobaldo pede, suponho, ao pseudocolecionador, Guimarães Rosa, um desempenho de ouvinte que apreenda a vida num contar que conta o contar, pois este tem a autoria sem ser ele o autor do que se conta; alienado como está em ouvir o personagem-narrador. Nesse sentido, a passagem cria uma identidade entre arte de contar e a sua natureza, a vida no ontem; o que é o mesmo que dizer que ao contar o que se conta há de soçobrar na sua perda, ou morte, uma expiação a ser julgada pelo ouvinte. Então, as três curtas frases - Aqui a estória se acabou.Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba. - parecem conter um fisga que permite ao ouvinte colecionador de estórias atribuir uma finalidade sem fim ao contar, na qual se dá a aurora do pensamento e a respiração do começo de uma viva especulação de inadequada filosofia nessa terra nova; que nunca encontra história que lhe desse conta. Explico: a atenção no pensamento nascente - marca originária que o contar manifesta - é justamente aquilo em que se exige a escuta. Relato e pouso do contar? Acredito que sim; pois a fortuna do contar que se atravessa - que conta o que se conta nele e em nós como filosofia da terra - não está em alguma parte mais violentamente presente do que nesse vazio, ou vida, em que se estabelece a narração do Ocidente, o sertão; exaltada nos desatinos de um eu que atravessa as coisas (ou páginas) sem sofrer os impactos e efeitos de premissas reflexivas que a filosofia lhe impôs. É como se o livro Grande Sertão:
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Veredas cumprisse, com boa dose de bazofia, devo dizer, a cativante tentativa do Ocidente de se aproximar, retrospectivamente, do verbo da aurora do pensamento que se pratica no amanhã do ontem: Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras. No parágrafo abaixo: Cerro. O senhor vê. Contei tudo. E nisso, o entorpecimento do contar daquele personagem-narrador recebe a nítida vibração da linha divisória, quase indistinta, digo, entre pensar e contar - algo há muito esquecido na Filosofia; que nessa terra nova se exibe como vida. Dessa maneira, a obra de Guimarães Rosa, que nos faz ler na medida em que ele ouve o que Riobaldo conta, torna exata a viva membrana daquela linha divisória, a partir de uma mínima diferença entre eu atravesso e eu conto? Devo validar a pergunta, dizendo que as páginas atravessadas são espaços que se atravessa com as palavras fundamentais do pensamento; que é o mesmo que ter os nomes fundamentais em seus espaços contados, páginas. Sabe-se, ou se devia saber, que a força dos nomes, Riobaldo, Diadorim, Hermógenes, Deus e o Diabo são esboços das linhas oscilantes que não cessam de ligar as margens imprecisas do sertão e aquelas do pensamento do personagem-narrador, que conta o que se conta nele ao contar; tendendo a colocar a significação das palavras num estado igual a zero. E tal força dos nomes está, continuamente, num eu conto, eu atravesso, eu disse, eu fui, sempre sei. O que me permite pensar que Riobaldo se manifesta, como um pensamento vivo, no “solo” da pergunta: onde estou ao acontecer? Se o estado do personagem-narrador, o “contante”, é aquela pergunta, seria porque ele, Riobaldo, porta a energia da aurora do verbo contar, realizando o sertão no fato simples de dirigir o que conta ao ouvidos do pseudocolecionador de suas estórias? Sendo, portanto, possível dizer que ele acrescenta ao sertão um mundo contado, quando faz escutar o seu pensamento, contando o que se esgarça ao contar? Reflito que as perguntas recrudescem aquela básica questão - onde estou ao acontecer? -, ao me permitirem supor que a encenação do acréscimo máximo do contar no sertão (ou ele ser contado) está em Grande Sertão: Veredas segundo a transformação daquele vazio, ou vida, num mundo de pensamentos em terra nova. O que introduz, ainda conjeturo, a questão do saber se há uma estória antes daquela pergunta fundamental. Isso me leva a dizer que essa questão é uma interrogação que devora a si mesma; pois enuncia uma estória que existe anteriormente (ou muito depois) da noção de sujeito cognoscente - cuja importância é frisar que o sertão é contado por alguém que se conta ao contar o desatino do eu: O senhor tolere minhas más devassas no contar. Esquecer isso, em se tratando desse livro, é se ausentar do momento de pensar que, sem dúvida, não há estória antes do “contante”; mas este se encontra sobre-encarregado de contar no e no vazio, sertão, atravessando-o; cuja referência, no entanto, ele vai mudar; pois conta. E se o personagem-narrador se desatina contando (ou atravessando) um vazio, ou a própria vida, seus deslocamentos produzem um outro: o contar é em vão. Por ele e nele, o que se enuncia não mede a carga incondicional que o contar tem numa terra nova. Assim, o vazio, ou vida, mostra que aqueles nomes dos personagens citados são fraturas niilistas do verbo da aurora: contar. Dessa maneira, Guimarães Rosa está a agenciar em Grande Sertão: Veredas um tipo de gesto niilista que o contar em vão arremessa? Afianço que o livro me parece querer dar conta, contando, deste gesto niilista que o contar em vão subtrai do próprio aceno. E o faz?
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Digo que ele o atravessa, tomando o arcaico maniqueísmo cristão, Deus e o Diabo, por um acorde que o encerra na marca fundamental de qualquer acontecimento: a triunfal aceitação de que contar a luta entre o bem e o mal é em vão numa terra nova; pois nenhum tipo de superação moral o evita em vida. Bem, isto é bastante perigoso, dado que o contar que conta o que se conta nele e em nós assume os riscos de não se precaver do verbo que simula a aurora do pensamento - é só pensar na tentativa germânica feita décadas antes. Guimarães Rosa tem consciência disso? Aceito que esta precaução é maior das tarefas do seu livro, pois a pergunta - onde estou ao acontecer? - suspende o vazio, o sertão, no desatino do eu que atravessa, ou vive, o pensamento do contar, contando o que se conta nele e em nós como inadequada filosofia. Mas isto fala de algo? Fala do proposital alongamento do contar; considerado como o indistinguível limite entre o pensamento e o contar. Ou seja: o duplo contar em torno daquele corpo fonte, Riobaldo; alvo e emissivo corpo que ouvimos a se fazer de estórias que conta. Cujo efeito de seu contar, posso admitir, é a dramatização alegórica de ser atravessado pelas palavras que usa para contar. O que é o mesmo que expor o levar em conta o pensamento do contante e nele desaparecer em vida. Ora, o Grande Sertão: Veredas é o contar, tornado balanço do que se conta na aflição do vazio, ou vida, que sagra o sangue e a travessia do pensamento. Algo como trabalhar as potências do contar em vão; ali onde repousa a aurora do pensamento e que, nela, o incondicionado, o sertão, ganha um infinito geral da mentira: a linguagem transversa - autêntica expressão do desatino do pensamento numa terra nova. Mas este momento que nos é dado por Guimarães Rosa, na medida em que ali começa a travessia do campo de eficiência do contar, desembocando, talvez, numa série de acontecimentos contados que se exasperam o contar, não estaria a sugerir que a pergunta fundamental - onde estou ao acontecer? - é a insistência em indicar que precisamos considerar todo o contar pelo lado de sua forma? Admito que a pergunta nos faça valer uma reflexão. Qual seja, há de se ter o contar “contante”, como se fosse a linha da vida que se divide contada como veredas que somos. Melhor: Grande Sertão: Veredas que conta o que se conta contanto o contar, conta então o outro. Qual? Aquele do outro lado? Sim, nós; dizendo que o tecido de uma série de acontecimentos devem ser contados em nós. Como? E tal possível resposta tem uma outra estória, aquela que aqui se acabou; que aqui está acabada; que aqui acaba. Falo de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Aqui a estória acaba. Eis um romance, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Este que é a prova mais alarmante da incapacidade de sermos realistas nos moldes convencionais do termo - ou de uma época. Nos moldes, porque aquele que nos coloca o problema, Machado de Assis, dizendonos haver falta de elementos romanceáveis numa terra nova, também nos convida, devo dizer, a tomar consciência do evidente vazio, ou vida, que nos cerca - o que seria uma forma de incorruptível realismo. Se há em Memórias Póstumas paródias e citações, de diferentes maneiras, isto sugere um adensamento de várias idéias. Primeira, o romance é legado europeu. Se assim é, vindo como vem, atravessando, vem perdendo identidade: a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual.
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Segunda, a questão de ser a obra de Machado de Assis um “romance”, contando o contar a partir da idéia de um personagem que é defunto autor, significa, admito, o reconhecimento de que a travessia do romance pressupõe certo grau de decadência de sua forma. Que é o mesmo que dizer que aquela decadência deve ser declinada a partir de um posicionamento do escritor, que deslumbra, pelo ato da travessia, que a vigência do realismo oitocentista é começo de seu declínio. Terceira, o contar que conta e se conta em Memórias Póstumas - cujo açaimo é a morte do defunto autor-personagem por uma idéia fixa, o sublime emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade, criado por vaidade e lucro, sem nem ser usufruído pelo desejoso inventor - é expressão da ênfase de dizer “eu” escrevo algo como um “romance”, aqui, onde a estória acaba. E a conseqüência dessa afirmação, de que a estória é assunto que acaba aqui (digo coragem) é a maneira como se chega à herança do “romance”. Sugiro que a reivindicação, ou não, das expectativas existenciais da travessia do “romance” auxilia a pensar que há em Memórias Póstumas um aceite de história do futuro que clama a linguagem do romance para que se veja atravessando a sua forma literária aqui. Acredito que este pensamento dê ares ao contar, ajeitando-se numa indeterminação formal, que do declínio do “romance” europeu retira a sua declinação numa terra nova - como se nela, incapaz de produzir elementos romanceáveis, houvesse precocidade em assistir o impasse que o realismo oitocentista coloca ao próprio desenho literário; já que ao se fazer de positividade do real cumpre-o e, assim, desagrega. Então, Machado de Assis dedica sua escrita ao poder de dizer “eu” escrevo declinando o declínio do romance realista, porque aqui a estória acaba? Creio que isto se consolida na atitude do defunto autor-personagem em deixar aos usuários da língua portuguesa uma escrita que nos ensina testar, como nossa inadequada filosofia, toda a forma que se declina; inventariando a herança do romance nos cento e sessenta capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas. De que maneira, pergunto? Respondo: apresentando uma teoria da leitura do declínio do romance, como se nos sacudisse para fora do ato de ler esta forma literária, medindo a rendição dos capítulos ao vazio, ou vida, que lhe dá moldura aqui. Como assim? Criando múltiplas partes, cujas curtas extensões promovem interrupções anti-rítmicas na narração, a fim de contar a alternância apta a arrancar representações para conversar com o leitor; sendo, portanto, esvaziamento das solicitudes de um romance. O que é o mesmo que calcular o sentido vivo da declinação; ou seja: tornar o vazio, ou vida, do aceno mnemônico do personagem (não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento...) algo desprendido de sua eficiência póstuma. Melhor: integrar o pequeno saldo, do outro lado do mistério, de não transmitir a nenhuma criatura o legado de nossa miséria, num incorruptível realismo que só pode se deter num cálculo de pessimismo de que qualquer estória, ou mesmo história, nos possa ensinar algo. Jeito de buscar no desatino da consciência literária os gestos investigativos do momento inteiro em que o romance é o seu declínio - como se tivéssemos a obrigação de declinar qualquer declínio das formas européias de gerar mundos.
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E para onde isso aponta? Para a mentira, no sentido de infinito da vida mediante a declinação da verdade de um romance. Quero dizer: um aprendizado para responder, burlescamente, o que diz um “romance” quando nos importamos de alguma maneira com ele sem termos elementos cabíveis para fazê-lo nessa terra nova; falando para nós mesmos que aquele texto, Memórias Póstumas de Brás Cubas, sabe alguma coisa sobre. Saber algo, por um texto, é ler - obrigatoriamente. Mas esse imperativo não cessa a ação de ler; pois, a leitura tende a se comportar como um tipo de atração pelos outros. E se assim é, Machado de Assis encerra a idéia de que não podemos, literalmente, sofrer as experiências de outras leituras, ainda que nos sentíssemos atraídos por elas. E este preceito, creio ser um pensamento que declara que a vida contada em terra nova é um antagonismo estupendo ao romance. Ou seja: que ninguém se lê, aqui, naquela forma literária; o que expressa que chega o tempo precoce de dizer que a estória acaba. Isso me permite pensar que a ciência - aqui a estória acaba - leva a discussão familiar sobre as citações e as paródias em Memórias Póstumas de Brás Cubas para um ambiente paradoxal. Neste, uma pequena frase de Antônio Vieira sobre o poder da escrita no Livro Anteprimeiro da História do Futuro - parece antes dos originais retratar as cópias - ganha estatuto de reconhecimento sobre aquela noção. Como? Reflito: se a constelação de circunstâncias de um romance é promover cópias imaginativas, seja na mão de outros escritores, na feitura de mais romances, seja na gana dos leitores por mais alguns experimentos sérios para a sua fantasia, a obra de Machado de Assis as declina. De que maneira? Declinando a leitura de um romance na alegoria lida de sua escrita. Como assim? Radicalizando a escrita no ato de contar; ou seja: pressupor uma defesa contra ser lido, escrevendo. Mas isso de algum jeito prova que a atitude de Machado de Assis cumpre a frase de Antônio Vieira? Em aspecto nenhum. Então, porque digo que ele cumpre a frase do jesuíta? Porque Memórias Póstumas de Brás Cubas move-se pela mesma contradição que gera o título História do Futuro. Contradição que advém da seguinte sentença: se sempre admitimos que a morte é um adeus ao mundo; é possível imaginar, literariamente é claro, que há uma morte viva, a paciência da separação. Paciência da separação, eis o que aquela frase de Vieira anuncia em Memórias Póstumas. Algo que gera o seu original, o leitor, através de sugerir, na escrita, retratar cópias de leitores de romance antes de suscitar o seu. O que é o mesmo que dizer que a memória de Brás Cubas jamais conta a sua estória, pois difunde o simples, impotente e perseverante leitor de romances. É como se Machado de Assis estivesse a nos ensinar, por inadequada filosofia, que a memória do personagem é um laço de abandono do contar em vão numa terra nova (a mesma que Guimarães Rosa toma para contar que conta o que se conta no contar), ao qual estamos submetidos; sendo, portanto, a nossa tarefa declinar o declínio das formas européias para criar aparentes cópias antes dos seus originais. Dado que, numa terra nova, o que é passível de ser transformado em estória, ou histórias, pouco difere do vazio, ou vida, que se encontra no presente; logo: o que é do presente contar prescreve-se numa história do futuro. Isto é: compreender a presença literária, ou imprópria filosofia, de Memórias Póstumas de Brás Cubas é dizer que é aqui o lugar onde a estória acaba; para podermos falar que o romance adquiriu um desatino na travessia, tanto em sua história quanto no seu futuro.
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Melhor: ele, o romance, está aqui entre nós com restos assassinados e mudos, num declínio que faz do ato de declinação uma ação para o considerar a sua ausência em original correspondente. De fato, só aqui, nesse sertão, a estória acaba, porque nesta ocasião se descobre que a epígrafe do romance sempre foi uma história do futuro; ou seja, leitura. E se essa descoberta é feita, digo que se dá na medida em que Guimarães Rosa, Antônio Vieira e Machado de Assis constituíram uma alegoria da leitura em suas escritas. O que é mesmo que dizer: numa terra nova, a maior da mentiras é que haja verdade que nos conte e, portanto, aqui, a estória se acabou; aqui, a estória acabada.
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Referências Bibliográficas
ASSIS, Machado de (1997): Memórias Póstumas de Brás Cubas, em Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. GUIMARÃES ROSA, João (1995): Grande Sertão: Veredas, em Ficção Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. CAVELL, Stanley (1997): Esta América Nova, Ainda Inabordável. Rio de Janeiro: Editora 34. (1994): In Quest of The Ordinary. Chicago and London: University of Chicago Press. FAYE, Jean-Pirre (1996): A Razão Narrativa. Rio de Janeiro: Editora 34.
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É POSSÍVEL RELER TEIXEIRA E SOUSA? NOVAS PERSPECTIVAS DO ROMANCE EM PAÍSES “PERIFÉRICOS”* João Cezar de Castro Rocha
* Gostaria de agradecer a Cristiane Joaquim, cuja Dissertação de Mestrado, Teixeira e Sousa e a ascensão do romance no Brasil (UERJ: 2005), forneceu importantes subsídios para este ensaio.
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Literaturas emergentes e a ascensão do romance No meu atual projeto de pesquisa, pretendo estudar a história do romance na América do Sul no século XIX, mais precisamente, na Argentina, Brasil e Uruguai, comparando-a com a história do romance inglês no século XVIII. Trata-se de relacionar a configuração da moderna forma do romance, tal como ocorrida na Inglaterra setecentista, com sua recriação na América do Sul oitocentista, destacando-se o caso brasileiro. A partir da leitura dos textos fundadores do romance moderno, almejo estudar comparativamente a definição, dada em cada contexto, de noções fundamentais, tais como a própria definição do gênero romance e a idealização do público leitor. Tal abordagem comparativa com a literatura inglesa não é o caminho mais usual, porém creio que possa abrir novos caminhos para a compreensão das formas do romance na literatura sul-americana. Para tanto, no cenário brasileiro, privilegiarei a leitura da obra romanesca de Teixeira e Sousa e de Joaquim Manuel de Macedo, além da pesquisa de ensaios críticos em jornais e revistas literários publicados entre os anos de 1836 e 1856. No cenário do Rio da Prata, o desenvolvimento do romance foi mais lento que no Brasil. No entanto, há obras fundamentais, como o romance urbano e político Amalia, do argentino José Mármol, publicado em 1851. Destacarei também Caramurú, do uruguaio Alejandro Magariños Cervantes, lançado em 1850.1 Acredito que o estudo dos primórdios do gênero romance na América do Sul tem muito a ganhar se prestarmos atenção às inúmeras instâncias em que os autores discutem o gênero do texto que produzem, almejando um público leitor determinado e que se encontrava em constituição. É por isso que o século XVIII inglês fornece uma excelente base comparativa para o século XIX sul-americano, pois, em ambos os casos, tratava-se de criar o romance moderno como forma de ampliar o público leitor, e, no caso sul-americano, constituir a própria nação.
1 Em relação às literaturas argentina e uruguaia, contei com valiosas observações críticas e sobretudo esclarecimentos indispensáveis do professor Pablo Rocca. De sua autoria, recomendo Poesía y política en el siglo XIX (Una cuestión de fronteras). Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2003.
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JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA
Este trabalho de investigação pretende engajar-se numa nova área de estudos, dedicada à reconstrução da emergência de gêneros e de sistemas literários. Em ensaio pioneiro, “Emergent Literature and the Field of Comparative Literature”, Wlad Godzich estudou a obra do escritor angolano Manuel Rui, a fim de identificar seus processos de composição e, especialmente, compreender como, após a guerra de libertação, ocorreu a emergência da literatura e do sistema literário angolanos. Tal emergência permitiria rever a própria tradição da literatura ocidental: It is my claim that it is precisely this hegemonic and monumentalizing view of literature which is challenged by emergent literature. ‘Emergent literatures’ are not to be understood then as literatures that are in a state of development that is somehow inferior to that of fully developed, or ‘emerged’ literatures (…) but rather as those literatures that cannot be readily comprehended within the hegemonic view of literature that has been dominant in our discipline (Godzich, W.: 1994, 291).
Aliás, em sua aguda análise de Memórias póstumas de Brás Cubas, Susan Sontag já havia intuído o efeito crítico do estudo de literaturas emergentes no tocante à revisão de paradigamas até então compreendidos como “naturais”: Our standards of modernity are a system of flattering illusions, which permit us selectively to colonize the past, as are our ideas of what is provincial, which permit some parts of the world to condescend to all the rest. Being dead may stand for a point of view that cannot be accused of being provincial. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas is one of the most entertainingly unprovincial books ever written. And to love this book is to become less provincial about literature, about literature’s possibilities, oneself. (Sontag, S.: 39-40).
Literaturas emergentes, em princípio, articulam-se após períodos de dominação colonial. Podemos portanto considerar a literatura sul-americana do século XIX como emergente, na acepção em que Wlad Godzich entende a literatura angolana do século XX. Em ambos os casos, era precisco constituir uma nação efetiva e simbolicamente e, nesse contexto, a difusão de matrizes narrativas desempenhou um papel preponderante. Ao mesmo tempo, a própria possibilidade de fazer com que tais matrizes narrativas pudessem circular exigiu o desenvolvimento de um sistema literário. Abre-se, assim, um importante campo de estudos comparativos de processos de emergência de gêneros e sistemas literários. Trata-se, na verdade, de um campo que já foi proposto, embora não com os termos empregados hoje em dia, por Antonio Candido em 1959, no clássico Formação da literatura brasileira (Momentos decisivos). Posteriormente, num diálogo com Candido, Ángel Rama em diversos estudos desenvolveu esse projeto - ver, a esse respeito, La novela en América Latina (1987). Em ambos os autores, a investigação das características definidoras do sistema literário brasileiro e latinoamericano constitui um estímulo que levarei em conta no presente projeto. Nos últimos anos, inclusive, tal campo de estudos renovou-se a partir da análise dos escritores de países africanos de expressão portuguesa, criando condições muito favoráveis para o florescimento de estudos comparativos e de cooperações internacionais.
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No que se refere, por exemplo, à questão do público leitor e da constituição de sua imagem idealizada pelos autores como passo indispensável na formação do sistema literário, destaco a proposta de Francisco Salinas Portugal: “O problema do leitor modelo é, ao que nos parece, fulcral à hora de inserirmos o romance no início de um (novo) sistema literário em língua portuguesa, ou, pelo contrário, ao colocar-mo-lo nas margens da literatura portuguesa” (Portugal, F. S.: 2003, 55). Esclareço que, neste projeto, como almejo reconstruir as bases de um novo diálogo crítico com determinados autores sul-americanos oitocentistas, privilegiarei a comparação dos processos de emergência do moderno romance tanto na Inglaterra do século XVIII quanto na América do Sul do século XIX. Sem dúvida, estudos sobre o diálogo com a tradição francesa são numerosos, ao passo que com a literatura inglesa setecentista são escassos; daí minha opção. Franco Moretti oferece outra razão que reforça minha escolha e que se refere diretamente ao complexo problema da emergência do gênero romance associada à formação do sistema literário: (...) em culturas pertencentes à periferia do sistema literário (o que significa quase todas as culturas, dentro e fora da Europa) o romance moderno não surge como um desenvolvimento autônomo, mas como um compromisso entre a influência formal do Ocidente (geralmente francesa ou inglesa) e materiais locais (Moretti, F.: 2001, 50).
Destaque-se ainda que o desenvolvimento moderno do gênero romance na Europa supôs um processo de criação multissecular, realizado simultaneamente à difusão da tecnologia dos tipos móveis, ou seja, à invenção da imprensa. Entre tal acontecimento e a emergência “definitiva” do assim denominado romance moderno, no século XVIII inglês, transcorreram nada menos do que três séculos. Nesse longo período, a literatura produzida na Europa era basicamente “auditiva”, na definição de Luiz Costa Lima (Lima, L. C.: 1981, 1617), ou seja, o texto impresso convivia com uma estrutura discursiva que apresentava fortes traços de oralidade. Ora, ao contrário do que se costuma afirmar, a presença de traços da oralidade no texto impresso não pode ser considerada uma marca distintiva da literatura produzida na América Latina. Provavelmente, trata-se de elemento recorrente, qual seja, no momento da introdução de um novo meio de comunicação deve haver um longo intervalo de tempo, no qual o código “antigo” permanece atuante, enquanto o novo código encontra-se ainda em processo de cristalização. Recorde-se que, no caso brasileiro, a imprensa oficialmente “chegou” com a transplantação da corte portuguesa, em 1808, e, em apenas três décadas, ocorreu o início (tímido) da transição de um circuito comunicativo dominado pela oralidade para um circuito comunicativo (idealmente) dominado pelo texto impresso - é claro que, para efeito de economia expositiva, aceito o marco de 1836 como o “princípio” do Romantismo no Brasil. Na Argentina, o triunfo do movimento emancipador, em maio de 1810, intensificou a atividade da imprensa, como demonstra o clássico estudo de José Torre Revello, El libro, la imprenta y el periodismo en América (1946). No território que, depois de 1825, chamou-se República Oriental do Uruguai, e principalmente na sua capital, Montevidéu, a situação foi semelhante; a esse respeito, consulte-se o ensaio de Guillermo Furlong, Historia y bibliografía de las imprentas rioplatenses (1953).
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Tal circunstância teria dado origem a um relevante problema teórico, que pode ser assim formulado: uma história literária renovada deve levar em conta o que denominaria a compressão dos tempos históricos: o que ocorreu na cultura européia em três séculos, no contexto sul-americano em geral processou-se aproximadamente em três ou quatro décadas.2 No plano propriamente artístico, tal fenômeno cria potencialmente uma superposição muito fecunda. Deste modo, desde os primórdios da emergência da literatura nacional, o escritor sul-americano foi sincrônico em relação à diacronia da tradição literária, especialmente a ocidental. Afinal, teve à sua disposição a totalidade desse repertório, visto não como um linear continuum histórico, mas como um eixo de simultaneidade a ser criativamente apropriado. Pretendo explorar as conseqüências dessa hipótese a partir da comparação da emergênca do gênero romance na Inglaterra e na América do Sul. Tal comparação criará condições para uma futura história comparativa dos processos de emergência do moderno romance, tanto na Inglaterra do século XVIII quanto na América do Sul do século XIX. As hipóteses principais deste projeto podem ser sintetizadas num conjunto de perguntas: • De que forma a complexidade do relacionamento cultural entre as assim denominadas nações “centrais” e nações “periféricas”, derivada da condição histórica do passado colonial, afetou (ainda afeta?) o relacionamento intertextual entre autores desses países? • Como redimensionar as implicações do relacionamento de culturas “periféricas” - no caso, o contexto sul-americano - com centros hegemônicos - no caso, os modelos inglês e francês? A “condição periférica”, hoje em dia, ainda constitui uma categoria analítica relevante? • Neste contexto, como reescrever a história do relacionamento do romance sulamericano com a tradição do romance na literatura ocidental? Como seus autores lêem (reescrevem), sobretudo, as literaturas inglesa e francesa? Por fim, como os autores brasileiros relacionam-se com seus pares sul-americanos e vice-versa? Um gênero e sua autodefinição Os primórdios da prosa de ficção no contexto sul-americano foram marcados por uma grande indefinição acerca do gênero dos textos. Portanto, pretendo realizar um levantamento minucioso dos diversos sentidos atribuídos pelos próprios autores aos termos romance, história, novela, conto. Para realizar tal levantamento, concentrarei meu foco em duas direções. Em primeiro lugar, trata-se de reler as obras iniciais da ficção de prosa sul-americana, objetivando responder a duas perguntas centrais: 1) Quais as definições que se encontram nos próprios textos dos termos romance, história, novela, conto? 2) Qual a imagem do público leitor que os autores constroem em suas obras? Em ambos os casos, adotarei a baliza cronológica de 1836 a 1856 pelas seguintes razões.
2 Propus uma formulação inicial do problema em “Os primórdios do romance no Brasil (1836-1856): um estudo comparativo.” MALEVAL, Maria do Amparo Tavares; PORTUGAL, Francisco Salinas (Eds.). Estudos galego-brasileiros. Rio de Janeiro: H. P. Comunicação, 2003, pp. 403-424. Neste e nos próximos parágrafos, aproveito formulações desse ensaio.
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No contexto brasileiro: 1) Os ensaios programáticos da revista Niterói devem ser relidos à luz do interesse deste projeto, constituindo portanto um ponto de partida conveniente; 2) 1856 é ano da publicação do romance de Teixeira e Sousa, As fatalidades de dois jovens. No ano seguinte, com a publicação de O guarani, de José de Alencar, o romance brasileiro já possui uma definição mais precisa, assim como um público leitor mais claramente delimitado. Com as necessárias ressalvas, as mesmas premissas são pertinentes nos contextos argentino e uruguaio; porém, respeitando-se duas especificidades: 1) o problema das correntes estéticas e os conflitos entre a definição do “americano” em conflito com o “hispânico”; 2) a onipresença do modelo “civilização” versus “barbárie”, proposta por Sarmiento, e que se transformou em autêntica ferramenta epistemológica e crítica, tanto para refletir sobre a questão americana, quanto para elaborar o gênero romance nesse cruzamento de caminhos.3 Deste modo, as duas décadas transcorridas de 1836 a 1856 parecem cruciais para a definição dos gêneros que terminarão confluindo na constituição do romance sul-americano. Um gênero (não) é um gênero (não) é um gênero Como uma amostra inicial, destacarei algumas passagens em que Teixeira e Sousa apresenta clara dificuldade na definição do gênero de sua obra. Em determinados trechos, o autor define sua narrativa como romance: A leitura da vossa última carta me fez plenamente ver que muito produziu em vossa imaginação a leitura do meu poema ou romance - Os três dias de um noivado. Estou contente. Agora exigis de mim um romance em prosa (...) (Sousa, T.:1977, 29).
Percebe-se que o autor mantém a definição de “romance” como narrativa em versos, numa inesperada reminiscência do gênero medieval. Entretanto, não se trata, por assim dizer, de uma referência “pura”, pois, ao mesmo tempo, refere-se a “romance” com a clara intenção de inscrever-se na tradição inglesa da novel. No tocante à narrativa em versos, leia-se a seguinte passagem: Era um jovem e lindo caçador, que, deitado na estrada, meio recostado sobre o tronco de uma árvore, e descansando talvez da fadiga de seu longo caminhar, cantava docemente este romance, cujo assunto é assaz conhecido em nossa história (Idem, p. 89).
Como a continuação do texto demonstra4, o autor emprega o termo romance referindo-se ao gênero, típico dos séculos XII e XIII, composto por poema em língua românica, em oposição ao poema composto em latim. Mais uma vez, porém, não se pense que se trate de uma opção exclusiva.
3 Mais uma vez, devo tais informações e correção do meu projeto original à generosa leitura do professor Pablo Rocca. 4 Eis os versos iniciais: “ - Oh! Que amor meu peito encerra,/Amor, que por ti se seva! / Ou não te vás desta terra, / Ou se te fores me leva...” Idem, pp. 89-92
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Afinal, um pouco antes, o leitor encontrou outra definição para o mesmo termo: “A maior parte dos meus leitores tendo acabado a leitura deste capítulo, dirá: “Certo que era bem escusado este episódio; eliminando ele deste romance nenhuma falta pode causar” (Idem, p. 51). É relevante observar outras passagens, caracterizadas pela indefinição do gênero. Por vezes, a narrativa é considerada história: “Desde que comecei esta história até este ponto, não curei de mover pró ou contra algum dos meus personagens, ou antes personagens dela, a amizade ou o ódio” (Idem, p. 72). Em outras palavras, o narrador deveria ser imparcial, como deve ser o texto do historiador. E qual a razão da equivalência? Ora, romancista e historiador potencialmente “retratam” a totalidade dos comportamentos humanos, tanto os nobres quanto os mais mesquinhos, mesmo condenáveis: Bem sei que achareis horrível o ouvir que uma mulher, há pouco tempo viúva, receba as visitas de um amante; também eu não acho isso muito bonito: mas como negar-vo-lo? Sabeis vós a terrível tarefa de um historiador? Sabeis: então tende paciência em ouvir-me, que também a tenho em narrar-vos (Idem, p. 72).
Com esse breve levantamento, revela-se que, assim como no cenário europeu, os precursores do romance no Brasil (e, em sentido amplo, na América do Sul) também tiveram dificuldade em conceituá-lo. A dificuldade de definição é, portanto, comum a todo novo gênero em seu processo de estabelecimento. Machado de Assis: como definir um gênero? À guisa de conclusão deste breve levantamento inicial do problema, destaco que mesmo em um autor consagrado como Machado de Assis a questão da definição do gênero revelou-se complexa. Recordem-se os prefácios de seus primeiros romances, publicados respectivamente em 1872, 1874 e 1876: Não sei o que deva pensar deste livro; ignoro sobretudo o que pensará dele o leitor. A benevolência com que foi recebido um volante de contos e novelas, que há dous anos, me animou a escrevê-lo. É um ensaio. Vai despretensiosamente às mãos da crítica e do público, que o tratarão com a justiça que merecer. (...) Venho apresentar-lhe um ensaio em gênero novo para mim, e desejo saber se alguma qualidade me chama para ele, ou se todas me faltam, em cujo caso, como em outro campo já tenho trabalhado. (...) Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres (Assis, M.: 2001, 16). Esta novela, sujeita às urgências da publicação diária, saiu as mãos do autor capítulo a capítulo, sendo natural que a narração e o estilo padecessem com esse método de composição, um pouco fora dos hábitos do autor. Se a escrevera em outras condições, dera-lhe desenvolvimento maior, e algum colorido mais os caracteres, que aí ficam esboçados (Assis, M.: 1999, 6).
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Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua (Assis, M.: 2000, 7).
Portanto, nada mais natural do que a perplexidade de um Capistrano de Abreu. Em carta ao próprio Machado, reconhecia sem hesitação a dificuldade que encontrara leitura de determinado romance: “Em São Paulo, por diversas vezes, eu e Valentim Magalhães nos ocupamos com ou interessante e esfíngico X. Ainda há poucos dias ele me escreveu: ‘O que é Brás Cubas em última análise? Romance? Dissertação moral? Desfastio humorístico’ - Ainda o sei menos eu” (Abreu, C.: 1977, 373). Romance, novela, estilo romanesco, conto. Afinal, se mesmo um autor tão consciente de seu próprio ofício como Machado de Assis hesitou na hora de definir o gênero de seus textos, já não terá chegado a hora de reler a obra dos autores que iniciaram o gênero romance no Brasil (e, em sentido amplo, na América do Sul)?
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Dando continuidade à pesquisa sobre a existência de resquícios medievais galego-portugueses nas letras da moderna música popular brasileira, passando pelas cantigas de amor e as cantigas de amigo do imaginário ibérico, colocam-se agora, dentro da mesma perspectiva, as cantigas satíricas, especialmente conhecidas como cantigas de escárnio e de maldizer, não obstante se incluam nestas outros gêneros satíricos que serão especificados no momento oportuno. Tais textos, como se sabe, constituem cerca de um quarto das cantigas reunidas nos cancioneiros, embora haja muitas vezes flutuações na classificação dos gêneros das cantigas, muitas delas sendo consideradas como pertencentes a mais de um gênero, de acordo com o ponto de vista dos mais conceituados estudiosos. Poucos são os estudos que se ocupam exclusivamente do gênero satírico do trovar medieval, uma vez que em geral as cantigas de escárnio e de maldizer são incluídas em pesquisas que privilegiam sobremaneira as cantigas de amor e as de amigo. A edição critica elaborada por Rodrigues Lapa1 constitui um estudo importante que serve de base para elucidar várias pesquisas ciosas de se ocupar da tradição satírica que remonta ao período clássico da literatura, com raízes tanto na cultura grega como na latina. Já Aristóteles na Arte Poética menciona os “cantos fálicos” na raiz da comédia, que teriam se originado em obras de Homero, “nas quais o metro iâmbico se adapta a esta espécie de assuntos. Pelo que, ainda hoje o chamam iambo, visto como se servem desse metro para se insultarem uns aos outros”. (Aristóteles s/d: 301). Continuando, diz ainda o filósofo: “Entre os antigos, houve, pois, poetas heróicos e poetas satíricos” (Aristóteles s/d: 301). A sátira acompanhou, portanto, o percurso da literatura de todos os tempos, e os cantares de escárnio e de maldizer esmeraram-se nos insultos que, ora de maneira mais sutil (escárnio) ora sem meias medidas (maldizer), povoaram o imaginário ibérico na produção compilada nos cancioneiros, e muitas vezes ainda provocam o riso pela maneira corrosiva com que insuflam o cômico em situações caricaturais e pelo palavreado chulo de que se utilizam.
1 Cantigas d’escarnho e de maldizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses, edição crítica de Rodrigues Lapa (Vigo, Ed. Galaxia, 1970).
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Segundo a definição da “Arte de Trovar” exposta no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, as “cantigas d’scarneo som aquelas que os trobadores fazen querendo dizer mal d’alguem en elas, ...” e as “cantigas de mal dizer (...) en elas entrã palavras a que queren dizer mal”. Há nas cantigas de escárnio a presença das palavras “cubertas”, ou “aequivocatio”, que dão um sentido ambíguo, sugerem, mas não deixam claramente expresso o veneno com o qual intentam atingir o destinatário do escárnio, ao contrário das cantigas de maldizer que “descubertamente”, sem eufemismos, atingem suas vítimas, nomeando-as sem equívocos. Segundo Graça Videira Lopes, “Genericamente, as cantigas satíricas constróem o equivocatio de duas maneiras distintas: através de um jogo com a sintaxe e o ritmo de toda a cantiga (e provavelmente com a música)” ou “transfere o jogo para o plano mais sutil das relações sintáticas entre as palavras da frase” (Lopes 1994: 97-99). Observe-se, porém, que grande parte das cantigas de escárnio fazem uso do primeiro recurso. De toda maneira, tanto na cantiga de escárnio como na de maldizer, os recursos satíricos estão ligados ao vocabulário chulo, obsceno, que produz o efeito cômico desejado, aproximando as expressões poéticas do popular. A paródia, a caricatura, as imagens do corpo humano, as funções fisiológicas engendram o chiste que subverte as situações sociais, redundando no desenlace cômico. Em seu tratado sobre “Formas simples”, André Jolles afirma que “não existe época nem lugar, provavelmente, onde o chiste (Witz) não se encontre na existência e na consciência, na vida e na literatura” (Jolles 1976: 205). Como disposição mental, o chiste, onde quer que se encontre, “é a forma que desata coisas, que desfaz nós”(Jolles 1976: 206). Essa conceituação é pertinente na medida em que se percebe que na raiz das cantigas satíricas há essa mesma disposição mental, ou seja, o duplo sentido gerado por aequivocatio faz com que seja abolida a intenção da comunicação lingüística, a inteligibilidade da linguagem se desenlaça através do jogo de palavras, tal qual na disposição do chiste configurada por Jolles. Acompanhando ainda esse pensamento, o chiste teria o seu efeito a partir de uma insuficiência do objeto que se quer desenlaçar. Seria essa a condição necessária para se desfazer pelo cômico o objeto repreensível. Desse ato de desenlace de algo repreensível nasce a zombaria que pode ser de duas formas, a sátira ou a ironia. O autor define a sátira como “uma zombaria dirigida ao objeto que se repreende ou se reprova e que nos é estranho. Recusamonos a ter algo em comum com o objeto dessa reprovação; opomo-nos a ele rudemente e, por conseguinte, desfazemo-lo sem simpatia nem compaixão”(Jolles 1976: 211). Por outro lado, a ironia “troça do que repreende, mas sem opor-se-lhe, manifestando antes simpatia, compreensão e espírito de participação” (Jolles 1976: 211). A ironia se caracteriza pelo espírito de solidariedade, tornando-se pedagógico o seu sentido, pelo fato de o trocista ser afetado pelo objeto do qual zomba. Segundo essa perspectiva, “a sátira destrói, a ironia ensina”. É importante, no entanto, deixar claro que o estudo de André Jolles parte das ‘formas simples’ de comunicação, ligadas ao popular, sem nenhuma intenção de estender esses conceitos às ‘formas artísticas’. Por outro lado, como o objeto do presente trabalho são as cantigas satíricas e a música popular brasileira que, a despeito de serem formas artísticas, revelam inegáveis raízes populares e oralizantes, julga-se pertinente a adoção de tais conceitos ligados ao chiste: a sátira e a ironia, na acepção que lhes dá Jolles. Outras categorias de cantigas galego-portuguesas, que se incluem dentro do espírito satírico, estariam também muitas vezes relacionadas às cantigas de escárnio e de maldizer,
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como as tenções e as cantigas de seguir. As tenções são feitas por dois trovadores ao mesmo tempo, que tecem uma espécie de desafio, alternando-se nas cobras. A rigor, nesta alternância estaria um jogo de oposições, de maneira que um trovador diz em sua cobra o contrário do que disse o outro na anterior a respeito de um mesmo referente, estabelecendo uma disputa. Outra condição importante nesse desafio é que as estrofes devem revelar a mestria na arte de trovar. Embora o maior número de ocorrências das tenções aconteça nas cantigas satíricas, elas podem ocorrer também nas cantigas de amor ou de amigo. Esse tipo de cantiga com certeza originou um gênero bem popular de desafio que até hoje fazem os repentistas nordestinos brasileiros, cuja literatura se conhece como Cordel. São textos divulgados de maneira informal, sem um reconhecimento oficial, a não ser os de alguns poucos cordelistas já incluídos em teses e monografias que têm essa literatura oralizante como objeto de estudo. Das ‘cantigas de seguir’ sabe-se que teriam como origem outras cantigas preexistentes, procedimento também da paródia tão conhecida na literatura moderna. Consiste numa apropriação de palavras, de rimas e, especialmente, do refrão da cantiga primitiva, geralmente com a intenção de sátira. As alusões que se têm a partir da “Arte de trovar” presente no Cancioneiro são de que o trovador segue a música e as rimas de uma cantiga primitiva acrescentando-lhes um novo sentido. Outros recursos satíricos das cantigas galego-portuguesas seriam o ‘sirventês’ e o ‘descordo’. O ‘sirventês’, designação de origem provençal, visto ser pouco utilizado esse termo nas cantigas ibéricas, resulta de uma intenção moralizante que se aplica de maneira mais geral, sem caráter pessoal, mas eminentemente satírico. Já o ‘descordo’, bem conhecido na arte trovadoresca galaico-portuguesa, caracteriza-se pela irregularidade no esquema métrico e estrófico, portanto sua designação se atém à forma poética antes que ao conteúdo, não consistindo numa exclusividade do gênero satírico. Um bom exemplo de ‘sirventês’ é a cantiga de D.Afonso X de Castela e de Leão, o Sábio, cujas conhecidas cantigas em louvor à Virgem Maria já revelam a arte de trovar presente nas cortes como manifestação valorizada por esse rei, que legou ao neto D. Dinis essa aptidão. A cantiga, a seguir transcrita, realça a sensibilidade poética do autor na forma e no tratamento do tema. Aqui, um rico-homem é considerado covarde por não ter cumprido seus deveres de cavaleiro na guerra, sendo por essa razão amaldiçoado, como reza o refrão: O que foi passar a serra e non quis servir a terra, é ora, entrant’ a guerra, que faroneja? Pois el agora tan muito erra, maldito seja! O que levou os dinheiros e non troux’ os cavaleiros, é por non ir nos primeiros que faroneja? Pois que vem cõnos postumeiros, maldito seja!
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O que filhou gran soldada e nunca fez cavalgada, é por non ir a Graada que faroneja? Se é ric’omen ou à mesnada, maldito seja! O que meteu na taleiga pouc’aver e muita meiga, é por non entrar na Veiga que faroneja? Pois chus mol(e) é que manteiga, maldito seja! (Correia 1998: 178) Todas essas manifestações poéticas teriam certamente suas raízes numa tradição satírica que remonta aos clássicos, como se afirmou anteriormente. A maledicência, o insulto, a reprimenda de ordem moral, o escárnio, o desprezo sempre estiveram ligados ao cômico, ao risível, ao humor. Se na Antigüidade os gêneros se distanciavam entre si pelo mesmo rigor com que Aristóteles tão bem delimitara e conceituara a Comédia, a Tragédia, o Lírico, o Épico, essas fronteiras nem sempre são claras ao longo dos tempos, e mesmo na Idade Média as flutuações entre os gêneros e suas subdvisões, como ocorre no Trovadorismo, resultam de limites flexíveis que tornam a literatura permeável às mais variadas influências. Uma mistura salutar muitas vezes produz textos que, se escapam a uma rígida classificação, redundam na surpresa e na novidade que tanto acrescentam à inventividade literária. O que interessa basicamente a esse trabalho não é a exatidão na classificação das cantigas por gêneros, mas os recursos utilizados nos textos que permitem a sobrevivência do humor, da sátira, do chiste, como parâmetros para o desvelamento desses mesmos efeitos nas letras de música do moderno cancioneiro popular brasileiro. Em relação ao corpus satírico galego-português, sabe-se que é bastante variado, não só nos motivos que dão origem às zombarias, como também em relação às personagens a quem se dirigem. O comportamento sexual das pessoas é comprovadamente o tema mais comum e recorrente nas cantigas de escárnio e de maldizer, seja referindo-se às relações em geral, ou às situações mais específicas: homossexualidade, adultério, traição, covardia. Outro motivo recorrente nessa manifestação literária é o aspecto físico das pessoas, especialmente das mulheres, alvos constantes dos chistes dos trovadores que se comprazem em salientar caricaturalmente os defeitos e a feiúra de quem zombam ou insultam. Como é o caso dessa famosa cantiga de João Garcia de Guilhade, classificada como cantiga de maldizer: Ai, dona fea, fostes-vos queixar que vos nunca louv’en(o) meu cantar; mais ora quero fazer un cantar en que vos loarei toda via; e vedes como vos quero loar: dona fea, velha e sandia!
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Dona fea, se Deus mi pardon, pois avedes (a)tan gran coraçon que vos eu loe, en esta razon vos quero já loar toda via; e vedes qual será a loaçon: dona fea, velha e sandia! Dona fea, nunca vos eu loer en meu trobar, pero muito trobei; mais ora já un bom cantar farei, en que vos loarei toda via; e direi-vos como vos loarei: dona fea, velha e sandia! (Correia 1998: 124) Ao lado destes, muitos outros motivos se revelam nas cantigas, como incompetência, mau caráter, estupidez, realçando o universo quotidiano satirizado, que inclui especialmente as soldadeiras, as religiosas, as mulheres em geral, ao lado da alta nobreza, de funcionários graduados, de homens ricos, de cavaleiros da pequena nobreza, entre muitos outros personagens, inclusive os próprios trovadores e jograis. O universo retratado nessas cantigas satíricas é, em sua essência, o meio social a que pertence o próprio trovador (Lopes 1994: 207-221). A cantiga de que se transcreve o fragmento a seguir é de Pero da Ponte, que satiriza outro trovador ou segrel, como diz o texto, pelo envolvimento com uma mulher sem moral: Don Bernardo, pois tragedes com vosc’ua tal molher, a peior que vós sabedes, se o alguazil souber, açoitar-vo-la querrá, e a puta queixar-s’á, e vós assanhar-vos-edes. Mais vós, que tod’ entendedes quant’ entende bom segrel, pera que demo queredes puta que non á mester? Ca vedes que vos fará: en logar vos meterá u vergonha prenderedes. (Correia 1998: 88) Uma cantiga de escárnio que vale a pena citar é de autoria de D. Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis. Nela, o trovador faz um jogo de palavras com os nomes atribuídos à mulher, o que lhe confere uma gradação de teor erótico-pejorativo, de tal maneira que Dona
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Beringela, que um dia mereceu-lhe o trovar, passa ironicamenta a Dona Maria, depois de casada, como se se tornasse pura como a Virgem. Em seguida, os nomes Ousenda, Gondrode e Gontinha, sugerem respectivamente qualidades como atrevimento, luxúria e insignificância, atribuídas depreciativamente à mulher “louvada” através da sátira: Conhecedes a donzela por que trobei, que avia nome Dona Beringela? Vedes tamanha perfia e cousa tan desguisada: des que ora foi casada, chaman-lhe Dona Maria. D’al and’ ora mais nojado, se Deus me de mal defenda: estand’ora segurado un, que maa morte prenda e o Demo cedo tome quis-la chamar per seu nome e chamou-lhe Dona Ousenda. Pero se tem por fremosa mais que s’ela, por Deus, pode, pola Virgen gloriosa, un ome que fede a bode e cedo seja na forca, estand’a cerrar-lhe a boca, chamou-lhe Dona Gondrode. E par Deus, o poderoso, que fez esta senhor minha, d’al and’ora mais nojoso: do demo dua menina, que aquel omen de Çamora, u lhe quis chamar senhora, chamou-lhe Dona Gontinha. (Correia 1998: 252) A tradição satírica cumpriu ao longo dos séculos um extenso percurso, atualizando-se nas mais diversas formas, poéticas ou não. Dos países de língua latina, o Brasil talvez seja um dos mais conhecidos pelo seu bom humor no que diz respeito às situações sociais e políticas vividas pelo povo, ainda que estas revelem também desmandos políticos, mazelas sociais, desconforto material, como sintomas de uma nação em crescimento, que geograficamente exibe proporções e contrastes que dificultam o controle dos governos e facilitam as
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transgressões e os abusos de ordem social. É conhecida a facilidade com que o povo brasileiro transforma em sátiras os sentimentos e emoções diante de situações calamitosas que poderiam redundar em padecimentos e depressões. Esse bom humor contagia as massas e retira das situações o peso que as transformariam em tragédias pessoais se consideradas em sua gravidade, sem o atenuante advindo dos chistes. Longe de configurar-se como um remédio para sanar os males, essa característica brasileira de tirar proveito bem-humorado das situações certamente se constitui num benéfico artifício de superação, através do achincalhe, da zombaria e até mesmo da ironia. Retomando a acepção do chiste como um recurso para desatar coisas, desfazer nós, observa-se que é das massas populares que emerge espontaneamente esse expediente, quando se refere ao Brasil como herdeiro bem-sucedido do espírito satírico que remonta à tradição medieval galego-portuguesa. Por esse motivo, a música popular brasileira sempre foi depositária de grande capacidade satírica que se exercita desde as marchinhas de carnaval representativas dos anseios populares do início a meados do século vinte, até as canções contemporâneas, representando a voz dos descontentes com a política, com os abusos governamentais, com as injustiças sociais, ou os infortúnios pessoais solidariamente compartilhados. Muitos foram os compositores populares que deixaram sua marca jocosa na tradição da música brasileira, nem sempre de maneira literária, mas musical o suficiente para sobreviver na memória coletiva da população, por sua capacidade de desatar as mais intrincadas situações através do humor. Como representante dessa herança satírica sob o veio literário, cita-se Noel Rosa como um compositor dos mais letrados que, tendo atuado durante as décadas de vinte e trinta, se sobressaiu pelas composições que veiculavam o bom humor como marca essencial do caráter brasileiro. São suas muitas das composições que se ouvem ainda nas rádios, reinterpretadas por cantores mais jovens, revelando a atualidade de um repertório há muito preterido no gosto popular por modismos ou outros estilos de fácil comunicação, fadados ao rápido desaparecimento pela ausência de qualidade artística. Noel Rosa (1910-1937) é referência musical como sambista, que, embora pertencente a família de classe média e tendo estudado em colégios caros do Rio de Janeiro, foi extremamente sensível aos anseios das camadas mais pobres da população, com as quais se identificava, exercitando-se na boêmia dos becos e dos bares populares, compondo sambas cujo teor aproximava-se essencialmente das vicissitudes dos habitantes de barracos e vilas populares. Desde cedo, a vida de Noel Rosa é marcada pela rebeldia à ordem estabelecida e pela subversão aos valores convencionados nas camadas mais altas da população carioca. O humor satírico assinala grande parte de suas composições, muitas vezes representado por um vocabulário chulo e irreverente, direcionado ora a pessoas de suas relações, ora a políticos e autoridades governamentais, ora a mulheres infiéis, alvos constantes de suas zombarias. A canção intitulada Gago Apaixonado, da qual se transcreve um fragmento, torna-se uma forma de chiste, na medida em que reproduz nos versos a fala de um gago e obriga ao intérprete o exercício do gaguejo, sem desafinar:
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Mu...mu...mulher Em mim fi...fizeste um estrago Eu de nervoso Esto...tou fi...ficando gago Não po...posso Com a cru...crueldade Da saudade Que ...mal...maldade Vi...vivo sem afago Tem...tem pe...pena Deste mo...mo...moribundo Que...que já virou Va...va...ga...gabundo Só...só...só...só...só... Por ter so...so...fri...frido Tu...tu...tu...tu...tu...tu...tu...tu... Tu tens um co...co...coração fingido! (Máximo/Didier 1990: 166) Outra canção que dirigida à mulher prima pela zombaria, maldizendo a parceira de maneira jocosa e irreverente, intitula-se Mulher indigesta: Mas que mulher indigesta! (Indigesta) Merece um tijolo na testa Essa mulher não namora Também não deixa mais ninguém namorar É um bom center-half pra marcar Pois não deixa a lina chutar E quando se manifesta O que merece é entrar no açoite Ela é mais indigesta do que prato De salada de pepino à meia-noite Essa mulher é ladina Toma dinheiro, é até chantagista Arrancou-me três dentes de platina E foi logo vender no dentista (Máximo/Didier 1990: 392)
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A canção Conversa de botequim, que ficou célebre, parceria de Noel Rosa com o músico Vadico, é uma das melhores produções musicais brasileiras de todos os tempos. Conhecendo-lhe o acompanhamento musical, percebe-se a integração perfeita entre letra e música, o que justifica o fato de ser considerada um dos mais antológicos sambas do repertório brasileiro. Inclui-se aqui essa canção pelo seu teor bem-humorado, assinalando o tom popular e cotidiano do tema, que revela a característica marcadamente folgazã, galhofeira, que é dada ao eu-poético do texto, como malandro, velho freqüentador de botequim: Seu garçom, faça o favor De me trazer depressa Uma boa média que não seja requentada Um pão bem quente com manteiga à beça Um guardanapo E um copo d’água bem gelada Fecha a porta da direita Com muito cuidado... Que não estou disposto A ficar exposto ao sol Vá perguntar ao seu freguês do lado Qual foi o resultado do futebol Se você ficar limpando a mesa Não me levanto nem pago a despesa Vá pedir ao seu patrão Uma caneta, um tinteiro, Um envelope e um cartão Não se esqueça de me dar palitos E um cigarro para espantar mosquitos Vá dizer ao charuteiro Que me empreste uma revista Um isqueiro e um cinzeiro Telefone ao menos uma vez Para 34-43333 E ordene ao seu Osório Que me mande um guarda-chuva Aqui pro nosso escritório Seu garçom me empreste algum dinheiro Que eu deixei o meu com o bicheiro Vá dizer ao seu gerente Que pendure essa despesa No cabide ali em frente (Máximo/Didier 1990: 398-9)
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Indiscutivelmente, tendo sido produzidas durante as primeiras décadas do século vinte, estas composições constituem fontes de informação sobre a cultura da época, no que se refere aos costumes e ao vocabulário representativo de uma camada da população, sobremaneira o mundo da malandragem carioca, revelando características que, se se aproximam da realidade atual por sua modernidade, dela se distinguem pelos jargões e pelos costumes próprios de uma era inaugural na história e no progresso do Brasil. Observe-se que Noel Rosa, sendo contemporâneo dos intelectuais que fizeram a Semana de Arte Moderna de 1922, embora ainda muito jovem, acompanhou a consolidação do movimento modernista, atuando à margem desse contexto elitizante e restrito a um mundo literário e artístico mais fechado, ainda que intencionalmente embebido nos aspectos populares. Herança dessa sátira à Noel Rosa é revelada na música popular brasileira contemporânea, através do humor do compositor Chico Buarque de Holanda, cuja obra já foi analisada no artigo Tonalidades ibéricas na moderna música popular brasileira que compôs a primeira seqüência desse projeto, bem como em O trovador medieval e o poeta do moderno cancioneiro popular, apresentado no III Encontro Internacional de Estudos Medievais da ABREM (Maleval 2001: 363-373). Chico Buarque, entre os mais expressivos e consagrados compositores brasileiros, com vasta produção artística, se sobressai também pela expressão satírica de suas canções, o que se observa especialmente nas obras relacionadas ao período político em que foi perseguido pela censura da ditadura militar, tendo que se manifestar usando subterfúgios, ora através de recursos estilísticos, em que se observa o amplo uso de metáforas, ora pela via do humor, onde não só a ironia e a sátira são valorizadas, mas o uso de pseudônimo constitui um ardil a mais para driblar o olhar dos censores e brincar com a falta de capacidade destes na percepção desse logro. Em 1974, Chico Buarque lança Acorda amor sob o pseudônimo de Julinho de Adelaide, personagem fictício para o qual inventa até uma biografia pessoal, dando vida ao compositor imaginário, com o intuito bem sucedido de enganar os censores. Portanto, não só a canção se reveste do teor cômico, também a ficção criada em torno do pseudo-compositor ganha, por seu ardil, as sutilezas da comicidade, levando-se em conta o pequeno número de pessoas coniventes com o fato, que mantiveram segredo em torno do assunto, enquanto se divertiam e zombavam dos censores. Foi forjada e publicada uma entrevista dada pelo falso músico, de origem pobre, a cuja mãe, favelada, se atribuíam várias relações amorosas, inclusive teria tido um outro filho de nome Leonel, com um marido alemão, portanto, meio-irmão de Julinho e seu parceiro nesta canção. A vida engendrada de Julinho de Adelaide foi bruscamente interrompida com a descoberta do fato pelos responsáveis pela censura durante a ditadura militar, mas teve duração suficiente para poder liberar três canções de Chico Buarque que não viriam a público caso este utilizasse seu próprio nome. O fato insólito e bem-humorado, além de ter contado com a solidariedade e simpatia do público nada afeito à repressão de qualquer natureza, reitera essa capacidade brasileira de superar as adversidades, através do cômico. Observe-se na canção citada, que ora se transcreve, como o humor se instaura a partir da inversão de valores. Aludindo à brusca atuação da polícia militar que tinha por costume invadir residências e prender de maneira violenta os suspeitos de subversão política, o
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sujeito-poético prefere a presença do ladrão convencional, que poderia protegê-lo, a ficar exposto à truculência dos ditadores, como pode ser observado pelo refrão “Chame o ladrão, chame o ladrão”: Acorda amor Eu tive um pesadelo agora Sonhei que tinha gente lá fora Batendo no portão, que aflição Era a dura, numa muito escura viatura Minha nossa santa criatura Chame, chame, chame lá Chame, chame o ladrão, chame o ladrão Acorda amor Não é mais pesadelo nada Tem gente já no vão da escada Fazendo confusão, que aflição São os homens E eu aqui parado de pijama Eu não gosto de passar vexame Chame, chame, chame lá Chame, chame o ladrão, chame o ladrão Se eu demorar uns meses Convém, às vezes, você sofrer Mas depois de um ano eu não vindo Ponha a roupa de Domingo E pode me esquecer Acorda amor Que o bicho é bravo e não sossega Se você corre o bicho pega Se fica não sei não Atenção Não demora Dia desses chega a sua hora Não discuta à toa não reclame Chame, chame lá, clame, chame Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão (não esqueça a escova, o sabonete e o violão) (Buarque 1989: 110) Outra composição atribuída à hilariante figura ficcional de Julinho de Adelaide, desta vez sem a parceria do irmão inventado, é “Jorge Maravilha”, feita em 1974. O título da canção
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que se refere ao compositor Jorge Benjor, autor da música “Fio Maravilha”, homenageando um jogador de futebol, com certeza é mais um recurso para driblar a censura, desviando-a da verdadeira conotação da canção. Curiosamente, essa canção deu origem a uma lenda de que o compositor se dirigia ao então presidente da República, General Geisel. Chico Buarque desmentiu isso, de acordo com o texto de Humberto Werneck que se transcreve a seguir. Mas, evidentemente, ainda paira quase a certeza de que realmente houve essa intenção por parte do autor: A segunda música de Julinho, Jorge Maravilha, deu origem a uma lenda. Dois de seus versos - Você não gosta de mim/ mas sua filha gosta - permitiram supor que o destinatário da canção fosse o general Geisel, cuja filha, Amália Lucy, se havia declarado fã de Chico Buarque. “Nunca me passou pela cabeça fazer música para a filha do Geisel”, vem desde então desmentindo o compositor. Ele conta que fez esses versos pensando nos policiais que iam apanhá-lo em casa para prestar depoimento e no elevador pediam um autógrafo para a filha (Buarque 1989: 137-8).
Transcreve-se aqui um fragmento da canção. Como se pode observar, um dos recursos cômicos consiste na subversão do ditado popular “Mais vale um pássaro na mão do que dois voando”: Há nada como um tempo Após um contratempo Pro meu coração E não vale a pena ficar Apenas ficar chorando, resmungando Até quando, não, não, não E como já dizia Jorge Maravilha Prenhe de razão Mais vale uma filha na mão Do que dois pais voando Você não gosta de mim Mas sua filha gosta Você não gosta de mim Mas sua filha gosta Ela gosta do tango, do dengo Do mengo, Domingo e de cócega Ela pega e me pisca, belisca Petisca, me arrisca e me enrosca Você não gosta de mim Mas sua filha gosta (Buarque 1989: 110)
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Essa conotação política atribuída às canções, cujo recurso cômico garante a ambigüidade das informações nelas contidas, está também presente em “Apesar de você”, de 1970, canção com que Chico, de maneira irônica, ameaça a ditadura militar com o ri-melhor-quemri-por-último: Hoje você é quem manda Falou, tá falado Não tem discussão A minha gente hoje anda Falando de lado E olhando pro chão, viu Você que inventou esse estado E inventou de inventar Toda a escuridão Você que inventou o pecado Esqueceu-se de inventar O perdão (...) Quando chegar o momento Esse meu sofrimento Vou cobrar com juros, juro Todo esse amor reprimido Esse grito contido Esse samba no escuro Você que inventou a tristeza Ora tenha a fineza De desinventar Você vai pagar e é dobrado Cada lágrima rolada Nesse meu penar (...) (Buarque 1989: 92) Essa composição, inicialmente liberada sem restrições pela censura, já contava com cerca de cem mil cópias vendidas, quando o Exército mandou proibi-la. De acordo com Humberto Werneck, “o súbito veto, há quem afirme, veio depois de uma notinha de jornal dizendo que Apesar de você era ‘uma homenagem ao presidente Médici’. ‘Quem é esse você?’, quiseram saber de Chico num interrogatório. ‘É uma mulher muito mandona, muito autoritária’, respondeu”. Em verdade, os versos “ A minha gente hoje anda/ falando de lado/ e olhando pro chão, viu” desmentem essa afirmação e reiteram a conotação do protesto pela repressão política (Buarque 1989: 130). A canção Não sonho mais, de 1979, constitui o reflexo de um fazer poético muitas vezes marcado pelo emissor feminino, freqüente nas composições mais líricas, em que Chico
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Buarque assume a voz da mulher, tal qual nas cantigas de amigo do cancioneiro medieval, para apontar queixas femininas, expondo-lhes os anseios e desejos. A diferença é que nesta canção o eu-feminino funciona como um pretexto para o surgimento da ambigüidade. O sonho feminino, exposto por meio de uma linguagem chula e vulgar, sugere um interlocutor que está longe de ser um amante ou um parceiro com o qual a mulher tenha um relacionamento amoroso. A linguagem engendra uma suposta relação de opressão por parte do interlocutor, subvertida através do sonho. Ou seja, mediante o recurso onírico, o emissor se compraz com o sofrimento do outro. Todos os desmandos de ordem social praticados pelo interlocutor são aqui cobrados pelo povo que tinha “um bom motivo” para a vingança. O sonho é a catarse do emissor que vivencia fantasiosamente as situações que gostaria de viver de fato, a subversão de uma situação de opressão. Observe-se a linguagem coloquial inculta, representativa da camada populacional mais explorada, sofrida e oprimida, no fragmento: Hoje eu sonhei contigo Tanta desdita, amor Nem te digo Tanto castigo Que eu tava aflita de te contar Foi um sonho medonho Desses que às vezes a gente sonha E baba na fronha E se urina toda E quer sufocar Meu amor Vi chegando um trem de candango Formando um bando Mas que era um bando de orangotango Pra te pegar Vinha nego humilhado Vinha morto-vivo Vinha flagelado De tudo que é lado Vinha um bom motivo Pra te esfolar Quanto mais tu corria Mais tu ficava Mais atolava Mais te sujava Amor, tu fedia
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Empestava o ar Tu, que foi tão valente Chorou pra gente Pediu piedade E olha que maldade Me deu vontade De gargalhar (...) (Buarque 1989: 178) “Injuriado”, composta recentemente, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, também não escapa à maledicência de que teria sido feita para o presidente, devido ao desconforto deste diante do posicionamento anti-neoliberal de Chico Buarque, de quem teria feito declarações pouco elogiosas. Verdade, ou mais uma lenda? Nada comprovado, mas a música em questão garante o efeito cômico a partir da “filosofia” bem humorada: Se eu só lhe fizesse o bem Talvez fosse um vício a mais Você me teria desprezo por fim Porém não fui tão imprudente E agora não há francamente Motivo para você me injuriar assim Dinheiro não lhe emprestei Favores nunca lhe fiz Não alimentei o seu gênio ruim Você nada está me devendo Por isso, meu bem, não entendo Por que anda agora falando de mim.2 Entretanto, não apenas as canções de teor político revelam a veia cômica de Chico Buarque, não é raro que isso se perceba em várias canções, cujo referente ou destinatário é uma mulher, que, à maneira das cantigas satíricas do cancioneiro medieval, é configurada por seus dotes sensuais ou comportamento pouco convencional, incluindo-se também nesse painel de personagens satirizados o malandro, o homem traído ou o homem injuriado por ser preterido pela mulher que lhe “pertencia”. Enfim, o chiste buarquiano é também implacável, mas por vezes sutil, tal a elaboração artística das composições que, valorizando sobremaneira a figura feminina, encontra no humor a via pela qual essa atitude é reforçada em canções desvinculadas de qualquer valor moralizante ou preconceituoso.
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“Injuriado”. In: As cidades CD, 1998, BMG.
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É de 1980 a canção “Deixe a menina”, cujo tratamento bem-humorado concilia a famosa preocupação do autor em relação à mulher, defendendo-lhe até mesmo as infidelidades, com a crítica ao homem, parceiro que geralmente não a merece, como se percebe por estas estrofes: Não é por estar na sua presença Meu prezado rapaz Mas você vai mal Mas vai mal demais São dez horas, o samba tá quente Deixe a menina contente Deixe a menina sambar em paz Eu não queria jogar confete Mas tenho que dizer Cê tá de lascar Cê tá de doer E se vai continuar enrustido Com essa cara de marido A moça é capaz de se aborrecer Por trás de um homem triste Há sempre uma mulher feliz E atrás dessa mulher Mil homens sempre tão gentis Por isso, para o seu bem Ou tire ela da cabeça Ou mereça a moça que você tem (Buarque 1989: 182) O fato de a letra ser parte de um samba alegre e descontraído acentua a comicidade do texto, cuja linguagem popular revela a identificação do compositor com o povo de classe social mais simples. A crítica ao homem “com cara de marido” reflete a consciência dos condicionamentos impostos pelo casamento, que não permite a liberdade e a felicidade advinda da espontaneidade dos gestos e das atitudes sem malícia. A sátira caminha da simples zombaria para a advertência, através da subversão do conhecido ditado “por trás de um grande homem, há sempre uma grande mulher”, que no texto passa a “por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz”. Esse discernimento de Chico Buarque, que inúmeras vezes acentua seu zelo em defender a supremacia feminina, será responsável pelas bem-sucedidas composições em que a crítica social desconstrói, pela via do inconformismo, os modelos impostos, seja pelo conflito e pela dor que se espelham no descontentamento com os desconcertos sociais, seja no efeito intencionalmente cômico que constitui a tônica de muitas das canções elaboradas com o propósito de denúncia.
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A canção “O casamento dos pequenos burgueses” (1978) é uma das criações buarquianas que aliam a crítica ao humor, de maneira que o drama de uma relação conjugal esteriotipada, reflexo de valores culturais, levante o questionamento sobre a acomodação dos casais da classe média pequeno-burguesa diante das perdas existenciais, geradas pelo convívio corroído pelo cotidiano do casamento. Note-se que o paralelismo estrutural conduz à evolução semântica de maneira a confirmar, a cada estrofe, o passar dos anos e o desgaste consumado na relação a dois: Ele faz o noivo correto E ela faz que quase desmaia Vão viver sob o mesmo teto Até que a casa caia Até que a casa caia Ele é o empregado discreto Ela engoma o seu colarinho Vão viver sob o mesmo teto Até explodir o ninho Até explodir o ninho Ele faz o macho irrequieto E ela faz crianças de monte Vão viver sob o mesmo teto Até secar a fonte Até secar a fonte Ele é o funcionário completo E ela aprende a fazer suspiros Vão viver sob o mesmo teto Até trocarem tiros Até trocarem tiros Ele tem um caso secreto Ela diz que não sai dos trilhos Vão viver sob o mesmo teto Até casarem os filhos Até casarem os filhos Ele fala de cianureto E ela sonha com formicida Vão viver sob o mesmo teto Até que alguém decida Até que alguém decida (Buarque 1989: 158)
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Sob o viés cômico, poderíamos analisar ainda muitas composições de Chico Buarque de Holanda, cujo talento para a sátira percorre grande parte da obra, ainda que aliado à dor e ao desconforto diante de situações sociais e políticas nada propícias ao humor. “Partido alto”, 1972, título que sugere um gênero de samba ligado às minorias negras, capazes do talento para as improvisações, revela o humor vinculado à triste constatação da miséria inerente a parte da população brasileira: (...) Deus é um cara gozador, adora brincadeira Pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro Mas achou muito engraçado me botar cabreiro Na barriga da miséria, eu nasci brasileiro Eu sou do Rio de Janeiro Jesus Cristo inda me paga, um dia inda me explica Como é que pôs no mundo essa pouca titica Vou correr o mundo afora, dar uma canjica Que é pra ver se alguém se embala ao ronco da cuíca E aquele abraço pra quem fica Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio Pele e osso simplesmente, quase sem recheio Mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio Dou pernada a três por quatro e nem me despenteio Que eu já tô de saco cheio Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia Deus me deu muitas saudades e muita preguiça Deus me deu pernas compridas e muita malícia Pra correr atrás de bola e fugir da polícia Um dia ainda sou notícia (Buarque 1989: 101) Como se observa, vários elementos culturais se assinalam através dessa sátira, que reproduz um Brasil injusto, onde o indivíduo “mal-nascido”, sem condições de uma vida digna, é jogado à sua sorte, tendo que “dar pernada” para sobreviver. O recurso humorístico reside no aproveitamento da linguagem própria das camadas sociais menos favorecidas, além de caracterizar, através de elementos culturais um perfil brasileiro: a sensualidade (“mão de veludo pra fazer carícia”), a presença do futebol (“pra correr atrás de bola”), a esperteza (“muita malícia”) e a determinação (“um dia ainda sou notícia”). O questionamento engendrado pela linguagem intenta tocar na questão da injustiça e da desigualdade da maneira mais ferina: “Jesus Cristo inda me paga, um dia inda me explica”. Sob esse mesmo teor caricatural, a canção “Até o fim,” 1978, é sensível à desigualdade social, na medida em que traça do brasileiro um perfil marginalizado pela sorte e pela
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sociedade. Assim como no texto anterior, este caracteriza a determinação e a capacidade brasileira de superar as agruras e os empecilhos desde o título. Essa canção revela um traço já conhecido em outras composições do autor, que é a paródia a textos da literatura brasileira. “Até o fim” constrói-se a partir da obra de Carlos Drummond de Andrade, “Poema de sete faces” especialmente a primeira estrofe deste: Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida. (Andrade 1983: 70) Transcreve-se a seguir apenas duas estrofes da canção “Até o fim”: Quando nasci veio um anjo safado O chato dum querubim E decretou que eu tava predestinado A ser errado assim Já de saída a minha estrada entortou Mas vou até o fim Inda garoto deixei de ir à escola Cassaram meu boletim Não sou ladrão, eu não sou bom de bola Nem posso ouvir clarim Um bom futuro é o que jamais me esperou Mas vou até o fim (Buarque 1989: 169) O refrão é o responsável pela determinação, a força de vontade, que caracteriza o elemento socialmente excluído, apesar da evidente denúncia das injustiças através das quais sofre perseguições e preconceitos, que o transformam no “gauche”, por questões sociais e não existenciais como no poema drummondiano. A sátira buarquiana se populariza durante muitos momentos de sua tão diversificada e extensa obra, através da crítica ao poder oficial a que contrapõe o malandro tradicional. Este, inserido na camada socialmente inferiorizada da sociedade, conhecido pela malícia e capacidade de viver bem por meio de pequenos golpes e da vagabundagem, especialmente a vida boêmia, ganha a simpatia do eu-poético que se compraz em fazer-lhe o elogio na mesma proporção em que denuncia o “malandro oficial”, na figura do político, dos governantes, de quem, enfim, detém o poder. A inversão de posições é o que torna cômica essa composição de 1978, “Homenagem ao malandro”: Eu fui fazer um samba em homenagem À nata da malandragem Que conheço de outros carnavais
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Eu fui à Lapa e perdi a viagem Que aquela tal malandragem Não existe mais Agora já não é normal O que dá de malandro regular, profissional Malandro com aparato de malandro oficial Malandro candidato a malandro federal Malandro com retrato na coluna social Malandro com contrato com gravata e capital Que nunca se dá mal Mas o malandro pra valer - não espalha Aposentou a navalha Tem mulher e filho e tralha e tal Dizem as más línguas que ele até trabalha Mora lá longe e chacoalha Num trem da Central (Buarque 1989: 162) Cumpre ressaltar que consideradas as diferenças entre as cantigas galego-portuguesas e as canções brasileiras contemporâneas, no que tange não apenas ao aspecto cronológico, mas sobretudo à distância cultural que as separa, observa-se que o tratamento dado aos personagens, tidos como emissores, referentes ou destinatários dos textos modernos, reflete necessariamente uma visão de mundo consciente politicamente e sensível aos problemas que afetam as minorias oprimidas, culturalmente, e socialmente fragilizadas pelos preconceitos de que são vítimas. Essa preocupação com elementos socialmente marginalizados é uma tônica na obra de Chico Buarque, já amplamente apontada e analisada (Fontes 2003). Também no artigo de que já se fez referência, retoma-se essa problemática que constitui uma marca peculiar no cancioneiro do autor, bem como no de outros compositores de sua geração: Se no contexto da música popular mais recente houve uma série de transformações provenientes de diferentes momentos criadores e questionadores da estética musical, a consciência político-social inclui em suas mudanças a influência do crescimento de movimentos visando às minorias injustiçadas, que não possuem a dimensão real do seu valor na sociedade. O movimento feminista, sem dúvida, contribuiu para a ascensão da mulher e para gerar o desconforto nas consciências mais sensíveis. Talvez isso justifique o desaparecimento de canções em que se imprimem na mulher adjetivações desqualificadoras, que as colocavam como culpadas, adúlteras e traidoras indefensáveis de seus algozes cantores (Fontes 2001: 366).
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Essa citação, que se refere ao contexto da música popular brasileira num passado recente em oposição às canções das primeiras décadas do século vinte, poderia remontar também às cantigas satíricas da Idade Média, especialmente no que tange ao conteúdo das últimas linhas, uma vez que tais cantigas, como vimos, quando têm por objeto a mulher, se comprazem em desqualificá-la a partir de um eu-poético eminentemente cruel, como um algoz-trovador. A diferença se situa especialmente no humor, atenuando o tratamento desumano, sem excluir o preconceito que perpassa os versos maliciosos que compõem as sátiras. A sobrevivência do cômico na moderna canção brasileira, mediante, não raras vezes, os mesmos recursos utilizados nas cantigas satíricas da Idade Média, comprova a antiga necessidade do ser humano de atenuar o sofrimento gerado por situações desgastantes a partir do comportamento social ou individual ou do contexto político-cultural, bem como das questões existenciais, através de manifestações populares. Assim, a equivocatio das cantigas de escárnio atualiza-se pela ambigüidade e pelo jogo de palavras, que se limitam a sugerir sutilmente, bem como pela metáfora que encobre o que anseia pelo desvelamento. A paródia cumpre o papel antes atribuído às ‘cantigas de seguir’, enquanto outros recursos hábeis e menos discretos denunciam hipocrisias sociais, deslizes morais e desencontros amorosos, remetendo ao sirventês ou mesmo às cantigas de maldizer. Evidentemente, essas aproximações - sem a pretensão do rigor comparatista que efetivamente comprove a influência das manifestações medievais sobre as obras contemporâneas citadas - reforçam sobremaneira a necessidade ancestral do homem de desatar nós, através do humor, da piada, do chiste.
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Referências bibliográficas
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É bastante óbvia a preocupação do teatro do Nordeste do Brasil com a questão regional. A cultura popular nele sobressai, colocando em cena personagens que, principalmente através de um discurso coloquial, repleto de termos locais, provérbios, frases feitas, etc., satirizam o contexto, a ordem social vigente, os valores. E, o que nos interessa particularmente, atualizam muitas características do teatro medieval. Tendo por base Morte e vida severina: Auto de Natal pernambucano, de João Cabral de Melo Neto, e Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, ambos do século XX, pretendemos observar aspectos formais, temáticos e contextuais que os relacionam com os Autos ancestrais, notadamente com as moralidades e as farsas, perpetuadas em língua portuguesa por Gil Vicente, considerado o ‘criador’ do teatro português no primeiro terço do século XVI, mesma época em que à nossa Terra de Santa Cruz chegavam as primeiras caravelas. 1. Um Auto de Natal pernambucano Ao esclarecer, através de subtítulo, que a obra-prima intitulada Morte e vida e severina é um Auto de Natal, embora regionalista (Auto de Natal pernambucano), o seu autor, João Cabral de Melo Neto1, o inscreve, de saída, na tradição do teatro medieval. Isto porque o Auto, em suas origens, se relacionava com os ciclos do Natal e da Paixão, principais norteadores da vida quotidiana na teocêntrica Idade Média. Ambos apontam para a vida eterna, para as benesses de um Reino que “não é deste mundo”: o Natal é a esperança do seu alcance, através do nascimento do Messias; e a Paixão é a consumação dessa esperança, uma vez que, imolando-se pela humanidade, o Cristo fornece aos virtuosos ou contritos a Graça redentora, sendo a sua Ressurreição a prova evidente da vitória sobre a Morte.
1 João Cabral de Melo Neto é um dos mais importantes e premiados poetas brasileiros, tornando-se membro da Academia Brasileira de Letras em 1968. Nascido em 09/01/1920 no Recife, capital do Estado de Pernambuco, e falecido em 09/10 de 1999, viveu muitos anos fora de sua terra - no Rio de Janeiro e, posteriormente, no exterior, através de fecunda carreira diplomática, que o tornou residente em várias cidades européias e hispano-americanas, além de Brasília. Esteve na Península Ibérica por diversas vezes em missão diplomática, destacando-se Sevilha como a sua confessada paixão, musa inspiradora dos poemas de Sevilha andando (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990) (www.releituras.com/joaocabral_bio.asp.).
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1.1. Desconstruindo mitos da tradição Mas o Auto de Natal Pernambucano tem um título já por si desconstrutor desse dogma: Morte e vida severina2. Se na época dos Autos ancestrais imperava a idéia de que “o que é bom para a carne é ruim para o espírito”, levando à conformação os trabalhadores que agüentavam uma sofrida existência, olhos voltados para o galardão a que teriam direito após a morte, nesse Auto pernambucano morte e vida se apresentam como sinônimos, ambas são severinas. Pois é sobejamente reiterada a preocupação do autor: criticar os latifúndios, a desigualdade social, a injusta ordem econômica que atinge aos moradores do Agreste, da Caatinga, da Mata... A miséria não decorre apenas da pobreza do solo; mesmo em terras férteis ela campeia, produto do capitalismo selvagem: Entre o Agreste e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui a Mata a diferença é a mais mínima. Está apenas em que a terra é por aqui mais macia; está apenas no pavio, ou melhor, na lamparina: pois é igual o querosene que em toda parte ilumina, e quer nesta terra gorda quer na serra, de caliça, a vida arde sempre com a mesma chama mortiça (Melo Neto 2000: 63). Portanto, o que se intenta é denunciar a vida/morte severina ... que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida) (Melo Neto 2000: 46).
2 Morte e vida severina (auto de Natal pernambucano) é possivelmente a mais famosa obra de João Cabral de Melo Neto. Foi encenado em 1965, com música de Chico Buarque de Holanda, o que também concorreu para o sucesso do Auto. Foi também levado para as telas, em versão para o cinema de Zelito Viana, em 1976, e em versão para a TV Globo dirigida por Walter Avancini, em 1981. Considerada “uma espécie de bandeira de protesto social” pela ditadura militar, a versão cinematográfica de Zelito Viana foi proibida de concorrer em concursos internacionais (Woensel 1998: 115, Larrousse 1988: 544).
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Se o tema já se enuncia desde o título, subvertendo o sentido da boa nova evangélica, também o argumento através do qual se realiza é uma paródia de um outro importante aspecto da religiosidade medieval: a peregrinação. Na Idade Média, embora não sendo dela exclusiva, adquiriu enorme importância a prática da peregrinação como prova espiritual, na qual a ênfase “residia - muito mais do que no lugar ao qual se pretendia chegar - nos percalços e no esforço físico da rota, no distanciamento de um cotidiano confortável e no tempo necessário para a conclusão da peregrinação” (Le Goff, Schmitt 2002: II, 353 ). Assim, depois de um longo tempo de dura caminhada, os peregrinos pouco se detinham nos lugares santos, como por exemplo Santiago de Compostela. Intentava-se, com esse sacrifício, principalmente a ascese espiritual, a expiação de culpas, objetivando a purgação do pecado original; mas também a cura do corpo, o afastamento dos malefícios, o pagamento de favores recebidos de Deus etc.. Também o Auto de Natal Pernambucano vai re(a)presentar uma peregrinatio: a dos retirantes, sertanejos nordestinos que, sozinhos ou em grupo, emigram para outras regiões do Brasil, ou mesmo para o litoral do seu próprio Estado, fugindo à seca das regiões áridas. Como os peregrinos, saem de sua terra natal. Mas o fazem estritamente por motivos de sobrevivência material, para a salvação da vida ao invés da alma, diferindo do que acontecia na Idade Média, quando se temia mais o inferno que a morte. Como diz o protagonista do Auto, Severino: O que me fez retirar não foi a grande cobiça; o que apenas busquei foi defender minha vida da tal velhice que chega antes de se inteirar os trinta; se na serra vivi vinte, se alcancei lá tal medida, o que pensei, retirando, foi estendê-la um pouco ainda (Melo Neto 2000: 62-63). Portanto, com o objetivo de livrar-se da miséria, enganosamente creditada apenas à seca, o sertanejo parte em direção ao mar, rumo a Recife, capital de Pernambuco. A insistência na comparação entre a sua árdua caminhada e um rosário, a ser rezado “até o mar onde termina” (Melo Neto 2000: 50), apresenta-se como outro elemento de aproximação da atitude do peregrino medieval. No entanto, novamente o caráter de religiosidade é afastado, uma vez que as contas desse rosário não remetem para o mundo espiritual, mas para a matéria: são as vilas pelas quais o retirante terá de passar, os espaços que tem de vencer para alcançar a sua meta. Nesse cenário de desolação, os cânticos com que se depara nada têm de festivos, embora assim os imaginasse Severino ao ouvir uma cantoria ao longe: “Será novena de santo, / será algum mês-de-Maria; / quem sabe até uma festa / ou uma dança não seria?” (Melo Neto 2000: 51). Esses cânticos ouvidos pelo retirante são excelências, isto é, cantigas fúnebres, orações rituais de velório que costumam ser entoadas em uníssono, sem acompanhamento musical. Mas também estas são parodiadas, como avisa a rubrica, por uma personagem que
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se encontra do lado de fora do recinto em que ocorre o velório, a qual substitui os elementos costumeiros, invocados para a proteção do morto na sua caminhada após a morte (“cera, capuz e cordão / mais a Virgem da Conceição”), por aspectos da precária vida que se finara, levando consigo apenas “coisas de não: fome, sede, privação...” (Melo Neto 2000: 52). Outro fator de desconstrução é que no mistério natalino os peregrinos são os Reis Magos, ao passo que o retirante nordestino nada apresenta de especial, é igual, até no nome, a outros tantos miseráveis da sua região, na fealdade, na doença, na falta de fidalguia: Somos muitos severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta (Melo Neto 2000:46). Nem o nome pode identificá-lo, mesmo sendo nome de “santo de romaria”; nem sequer o parentesco e a procedência o individualizam, uma vez que outros de mesmo nome e ascendência havia “vivendo na mesma serra / magra e ossuda ...” (Melo Neto 2000: 46)3. A sua magia é de outra ordem, resumida através de imagens que lembram os adynata, as impossibilia4 da tradição, mostrando o milagre da sobrevivência dos sertanejos na aridez desoladora, sua luta contra a natureza adversa: Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza (Melo Neto 2000: 46).
3 O significado etimológico de tais nomes, tão comuns no Nordeste brasileiro, soa como uma ironia: Maria , do hebraico Maryam, foi a escolhida para conceber o Messias, a Virgem, a “cheia de graças”, a “bendita entre as mulheres”; Zacarias, do hebraico Zekariah, significando “Deus lembrou-se”, é um dos Profetas (séc. VI) da Bíblia, que anuncia a chegada de um Messias humilde; mas foi também o pai de João Batista. Já Severino provém do latim Severinus, derivado de Severus, tendo havido um santo do século V com este nome (São Severino de Nórico, província do Império Romano) com poderes sobre a natureza (terremoto contra os hunos, descongelamento de rios, etc.). Cf, a propósito o Dicionário dos nomes galegos (Ruibal [1992]: 482). Com relação a este último, valeria aventar a hipótese de que os primeiros pais a colocarem tal nome em seus filhos o faziam para que o santo os protegesse na luta contra a natureza árida, sem vida, dando-lhes poderes para transformá-la. 4 Impossibilidades que nada ficam a dever às enumeradas por Curcius em seu exemplar capítulo sobre o assunto, “El mundo ao revés” (Curcius 1989: I, 144-145).
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Também não tem a guiá-lo a luminosidade da estrela, que conduziu os Reis Magos vindos do Oriente para o encontro com o Salvador. Antes, ansiando pelas luzes artificiais, enganosas, da cidade do Recife, movimenta-se em espaços marcados pela morte: três enterros; o rio Capibaribe, que seria o seu guia até o mar, seco pelo verão em alguns trechos; uma carpideira (única profissão rentável nesse lúgubre cenário); e, já no Recife, os coveiros. Estes conversam, sem saber que estão sendo ouvidos, sobre a desigualdade existente entre as várias classes sociais mesmo após a morte, marcada pelos diferentes enterros, jazigos e/ou covas. E terminam por desvelar o pathos que envolve o retirante: E esse povo lá de riba de Pernambuco, da Paraíba, que vem buscar no Recife poder morrer de velhice, encontra só, aqui chegando, cemitérios esperando. - Não é viagem o que fazem, vindo por essas caatingas, vargens; aí está o seu erro: vêm é seguindo o seu próprio enterro (Melo Neto, 2000: 68). O humor negro dos coveiros se manifesta também na sua sarcástica lógica: a da inutilidade do enterro em terra seca desses indigentes que vivem nos mocambos, no meio da lama: - Na verdade, seria mais rápido e também muito mais barato que os sacudissem de qualquer ponte dentro do rio e da morte (Melo Neto 2000: 68). Revelado ao retirante o triste fim que o aguarda, só lhe resta o lamento desesperado e a inclinação para o suicídio. Mas estando só, junto a um dos cais do Capibaribe, dele se aproxima José, “mestre carpina”, “de Nazaré da Mata”, que trava com ele um diálogo, no qual incita à luta, em oposição ao desânimo que envolve o retirante: “muita diferença faz / entre lutar com as mãos e abandoná-las para trás” (Melo Neto 2000: 70). Penetramos então em um novo movimento de esperança, que culmina com o nascimento do filho desse José, também carpinteiro e procedente de localidade denominada Nazaré, como o pai de Jesus. Desvela-se-nos, desse modo, a estratégia do autor: a união de um Auto da Paixão, em que o Cordeiro do sacrifício é o desiludido retirante, já desejoso de saltar “fora da ponte e da vida” (Melo Neto 2000: 72), ao Auto de Natal, onde o milagre é o nascimento da criança, que “saltou para dentro da vida / ao dar seu primeiro grito” (Melo Neto 2000: 73). Esse novo Cristo “é tão belo como um sim / numa sala negativa” (Melo Neto 2000:78); “infecciona a
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miséria / com vida nova e sadia” (Melo Neto 2000:79); é, enfim, uma explosão de vida no espaço da morte. É a possibilidade, mesmo que precária, da redenção, através dessa explosão de vida, mesmo que uma explosão “franzina” de “uma vida severina” (Melo Neto 2000: 80). Subverte o autor, dessa forma, a lição dos paradigmas bíblicos numa condenação da metafísica; e coloca a Paixão como Advento, para o aperfeiçoamento do reino deste mundo. Nem tudo está perdido, existe a possibilidade da luta, existe a solidariedade, expressa nos presentes que os vizinhos miseráveis levam ao recém-nado. Não são ouro, incenso e mirra, como a tradição apregoa. São produtos da terra. O “mocambo modelar” substitui o presépio. Os Anjos, que entoam glórias ao Senhor na tradição natalina, são substituídos pelos vizinhos que elogiam o recém-nascido. Fazendo-lhes um contraponto, as ciganas pessimistas tomam o lugar de Simeão e da profetisa Ana, que predisseram a Maria o destino de Jesus. A presença dessas ciganas e a localização desse novo Natal - em um mocambo, isto é, uma cabana numa favela construída sobre o manguezal -, subvertem a glória e esplendor comuns nas encenações natalinas. Elas profetizam o determinismo nefasto que limitará essa nova existência: “aprenderá a engatinhar / por aí, com aratus, / aprenderá a caminhar / na lama, com goiamuns, e a correr o ensinarão / os anfíbios caranguejos, / pelo que será anfíbio / como a gente daqui mesmo” (Melo Neto 2000: 76). De miséria é o legado do recém-nascido que, quando muito, conseguirá ser um proletário: “Não o vejo dentro dos mangues, / vejoo dentro de uma fábrica: / se está negro não é de lama, / é graxa de sua máquina...” (Melo Neto 2000: 77). Enfim, polifonicamente se apresentam dois discursos: o do determinismo, da imobilidade social, da acomodação dos que a aceitam, e o da esperança em sobrepujá-la, sendo esta a última voz do Auto, que enfatiza o “espetáculo da vida”, vista “a brotar como há pouco / em nova vida explodida” ... “mesmo quando é a explosão / de uma vida severina” (Melo Neto 2000: 80). Conclui-se, dessa forma, a dialética do Auto. 1.2. Revitalizando formas arcaicas Já o próprio João Cabral de Melo Neto, em entrevista publicada em 1985, confessava a sua dívida à tradição literária e folclórica ibérica, que passara a admirar a partir de 1947, ano de sua primeira função diplomática na Espanha (Barcelona)5. Esta herança cultural se associaria à nordestina, aprendida desde a infância. Dizia, então, dentre outras coisas, com relação ao Auto, que A cena do nascimento, com outras palavras, está em Pereira da Costa. “Compadre que na relva está deitado” é transposição desse folclorista, pois no Capibaribe há lama, e não grama. “Todo o céu e a terra lhe cantam louvor” também é literal do antigo pastoril pernambucano. O louvor das belezas do recém-nascido e os presentes que ganha existem no pastoril. As duas ciganas estão em Pereira da Costa, mas uma era otimista e a outra pessimista. Eu só alterei as belezas e os presentes, e pus as duas ciganas pessimistas. Com Morte
5 João Cabral de Melo Neto permaneceu três anos na Catalunha, e posteriormente mais sete anos na Catalunha e na Andaluzia, sempre em missões diplomáticas. Conheceu então o romanceiro ibérico.
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e vida severina quis prestar uma homenagem a todas as literaturas ibéricas. Os monólogos do retirante provêm do romance castelhano. A cena do enterro na rede é do folclore catalão. O encontro com os cantores de incelenças é típico do Nordeste. Não me lembro se a mulher da janela é de origem galega ou se está em Pereira da Costa. A conversa com Severino antes de o menino nascer obedece ao modelo da tenção galega (Melo Neto in Secchin 1985: 303-304).
Dessa forma, o próprio autor confessa ter atualizado em seu Auto elementos da tradição folclórica do Nordeste, que, diga-se de passagem, se enraízam na Idade Média: o auto pastoril, as ciganas e as excelências ou incelenças. Da tradição ibérica, aponta o romance castelhano, o folclore catalão e a tenção galega. Marly de Oliveira, poetisa e esposa do poeta, ao preparar com a ajuda deste a edição completa da sua obra, esclarece que a cena da mulher na janela teria por fonte “poema narrativo em português arcaico incorporado ao folclore pernambucano”. E destaca a preferência do autor pela rima assonante e pelos versos heptassílabos, heranças do romanceiro hispânico. Presta, além destes, outros esclarecimentos importantes, no prefácio da citada edição: Os monólogos do Retirante têm em comum com o romanceiro ibérico o uso do heptassílabo e a assonância; a cena do Irmão das Almas homenageia o romance catalão do Conde Arnaut; a cena do velório é pernambucana; a da mulher na janela é um poema narrativo em português arcaico incorporado ao folclore pernambucano. A cena dos coveiros é, curiosamente, escrita em verso livre, quem sabe com a intenção de continuar, de levar adiante uma conquista modernista. O diálogo do Retirante com o Mestre Carpina segue os processos da tenção galega; o resto é “romance” castelhano. O nascimento de Cristo se tornou um fato realista; a cena dos presentes, como outras, tem relação com os autos pernambucanos do século passado. As ciganas estão nos autos antigos, prevendo o futuro nascimento da criança. Estão em Pereira da Costa, na obra sobre o folclore pernambucano (Oliveira, in Melo Neto 1994: 18).
Portanto, através dos esclarecimentos do poeta e de sua esposa e editora, fica fácil depreender que, além da tradição nordestina e do Auto medieval, bem como dos versos livres do modernismo (na cena dos coveiros), outras formas ibéricas intencionalmente concorrem na elaboração de Morte e vida severina: o romance e a tenção; e, acrescentamos com Maurice van Woensel (1998: 131-135), o pranto. Lembramos que também Gil Vicente, ao revitalizar com seu Autos a tradição medieval, lançava mão dessa mistura de gêneros e/ou espécies literárias da tradição. A isto voltaremos mais adiante. Por agora, destacaríamos que do Auto medieval o autor manteve, a par do tema, embora parodiado, a forma de apresentação, em versos, e a estrutura costumeira: um prólogo (em que o retirante se apresenta, inserido num contexto sócio-econômico dos mais problemáticos), um epílogo (através das palavras de José, que aponta para o recém-nascido como resposta de esperança à pergunta suicida de Severino) e rubricas esclarecedoras das outras 16 cenas (excluídos o prólogo e o epílogo), desobedientes à lei das três unidades do teatro clássico (tempo, espaço e ação).
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Como na Idade Média, já o vimos, o seu texto apresenta um imbricamento de gêneros os mais diversos, como o pranto, a tenção e o romance. Mas procede diferentemente na mistura do sério com o cômico. A ironia e o sarcasmo são os recursos utilizados para o riso ou sorriso, não já ambivalente, mas destruidor. Relaciona-se ao humor-negro, decorrente das caricaturas que faz do tipo físico do nordestino, da sua miséria, da sua (pre)destinação para a vida/morte miserável. Recordemos que o pranto medieval em sua versão religiosa, apresentava-se em duas modalidades: o planctus litúrgico, associado à ritualística da Semana Santa, acentuando as dores da Virgem diante dos terríveis sofrimentos do Filho na Cruz; e o planctus eclesiástico, feito por ocasião da morte de algum dignitário da Igreja. Já na sua versão profana, tornada exemplar pelos trovadores occitanos (que o denominavam planh ou planch) e parcamente desenvolvida pelos trovadores galego-portugueses6, era feito o elogio de um morto ilustre, que poderia ter sido mecenas do autor, a par do lamento pelo seu desaparecimento. No Auto de João Cabral de Melo Neto, encontra-se uma versão atualizada do pranto medieval na oitava cena, cujas seis quadras Chico Buarque musicou para a encenação do Auto e gravou posteriormente em disco, intitulando o cântico de “Funeral de um lavrador”. Nele é colocada com ironia a questão da terra, finalmente dada ao lavrador: “Essa cova em que estás, / com palmos medida, / ... / é a parte que te cabe / deste latifúndio...” (Melo Neto 2000: 59). Mas as incelenças do nosso folclore também podem ser consideradas uma variante do pranto. Essas, como vimos, são cânticos rituais entoados junto ao moribundo ou ao morto no cerimonial do velório, acompanhando-lhe cada fase: ajudar a morrer, vestir o defunto, seguir o caixão, etc. (César 1988: 64-72). Na quarta cena do Auto é reproduzida e parodiada uma excelência, acentuando-se ironicamente a vida de privação do morto, que mesmo assim serve de adubo para a terra (Melo Neto 2000: 52), lucro para o latifundiário. Nessa paródia, apresenta-se outra dívida à Idade Média, ao sermão burlesco, que retoma elementos do culto religioso para desconstruir-lhes os valores, através de debochada paródia. A tenção ou discussão de teses contrárias praticada em poesia pelos trovadores, poema de forma fixa apresentando mesmo número de versos e modelo estrófico nas perguntas e respostas, teve fecunda repercussão no cordel nordestino através do desafio ou peleja, uma sua variante. E no Auto em foco, como já observara Marly de Oliveira em referência transcrita acima, é retomada no diálogo de Severino retirante com José, mestre carpina. Esse diálogo é composto de 16 estrofes em redondilha-maior com rimas nos versos pares e assonantes, as mesmas dos Romanceiros ibéricos, preferidas pelo poeta, como vimos. Nessa nova tenção, Maurice van Woensel (1998: 136) percebera um debate “sobre a eterna questão metafísica: ‘vale a pena viver a vida?’”. Em que pese o tributo que devemos à sua cuidadosa análise do Auto, consideramos no entanto que o mesmo se coloca contra qualquer metafísica, materializando a questão acerca da existência: vale a pena viver a vida nas condições do retirante? A resposta fica em suspenso, para ser dada apenas na estrofe final, como vimos um hino à esperança, embora dialético.
6 Do Trovadorismo galaico-português são documentados apenas cinco prantos, quatro da autoria de Pero da Ponte e um de Johan de León.
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Finalmente chegamos ao romance, que como Marly de Oliveira destacara, é a forma tradicional predominante no Auto. Recordemos que os romances eram “poemas épico-líricos breves que se cantan al son de un instrumento, sea en danzas corales, sea en reuniones tenidas para recreo simplemente o para el trabajo en común” (Menéndez-Pidal 1941:7). Possuíam estrofes de tamanho irregular, sem refrão, com versos geralmente heptassílabos agrupados semantica e sintaticamente aos pares e rimas assoantes nos versos pares. Constituídos a partir de fragmentos de canções de gesta, ou de crônicas, ou de serranilhas, etc., também se prestavam à divulgação dos acontecimentos histórico-políticos (e outros) da época, caracterizando-se pelo corte brusco, incitador da imaginação do leitor. Também o Auto em foco participa dessas características formais, e mesmo temáticas (não deixa de ser uma gesta que focaliza a luta pela sobrevivência do nordestino, uma crônica da sua situação, um veículo de divulgação desse lamentável fato sócio-político do Brasil). Quanto à forma, revitaliza-a em seus aspectos típicos, com ligeiros afastamentos, já demonstrados por Maurice van Woensel (1998: 126), no campo da métrica: a redondilha-maior, embora predominante, não é exclusiva; muitas vezes alterna com versos de quatro ou cinco sílabas (principalmente se destinados ao canto); ou, na décima cena, que apresenta “uma conversa prosaica de dois coveiros, uma espécie de entremez um tanto cômico”(Wooensel 1998: 126) - espécie teatral típica da Idade Média -, insere versos de oito a doze sílabas entre os heptassílabos. Além de caracterizar-lhe predominantemente a estrutura, o Romanceiro Ibérico tem muitos exemplos reproduzidos no interior do Auto, como vimos acima, fazendo-se, dessa forma, o paradigma por excelência de João Cabral de Melo Neto. 2. O Auto da Compadecida Já o Auto da Compadecida, desde o título aponta para a herança medieval, seja pelo termo Auto, que como sabemos denominava genericamente as peças medievas, seja pela devoção mariana que re(a)presenta, seja pela união do sagrado com o profano, do milagre e da moralidade com a farsa que, a modo de Gil Vicente, seu autor atualiza. As diferenças que desde logo se notam dizem respeito ao modo como o texto se apresenta, deixando de lado a forma versificada, e à apresentação dos personagens da esfera do sagrado, como veremos. Ariano Suassuna7 desde o título do Auto em foco já nos remete para a tradição do culto mariano, nascida na Idade Média. Insere-o nas moralidades, isto é, nos autos alegóricos com
7 Ariano Vilar Suassuna nasceu em Nossa Senhora das Neves, cidade que posteriormente passaria a chamarse João Pessoa, capital do Estado da Paraíba, em 16 de junho de 1927. É membro da Academia Paraibana de Letras; da Academia Brasileira de Letras desde 1990, para a qual foi eleito um ano antes, e Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2000). Ainda criança, em Taperoá, familiarizava-se com o teatro de mamulengos e os desafios de viola, típicos da cultura “popular” do Nordeste. Morou no Recife a partir de 1945, com pequenos intervalos para tratamento de saúde. Nessa cidade cursou a Faculdade de Direito, fundou, com Hermílio Borba Filho, o Teatro do Estudante de Pernambuco (1946) e, mais tarde, o Teatro Popular do Nordeste (1959). Após exercer a advocacia por alguns anos, tornou-se professor de Estética da Universidade Federal de Pernambuco, aposentando-se em 1994. A par da sua ininterrupta construção e montagem de peças teatrais, escreveu uma tese de livre-docência intitulada A onça castanha e a Ilha Brasil: uma reflexão sobre a cultura brasileira. (UFPe, 1976.) e fundou em 1970, no Recife, o “Movimento Armorial”, que incentiva o desenvolvimento e o conhecimento das formas de expressão populares tradicionais. Foi Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco (1994-1998), no governo de Miguel Arraes. Entre 1958 e 1979 escreveu obras em prosa, como o Romance da Pedra do Reino e outros, por ele chamado de “romance armorialpopular brasileiro (www.academia.org.br/cades/32/ariano.htm.).
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intuito pedagógico; mas de mistura com os milagres de Santa Maria, que, no caso, como advogada, consegue do Filho a Graça da ressurreição de um morto. Como de resto era comum acontecer na Idade Média e no teatro vicentino, a essa modalidade religiosa fará anteceder uma verdadeira sottie, modalidade de auto profano protagonizada por parvos, enriquecida com outros elementos procedentes do teatro cômico medieval, que analisaremos ao seu tempo. 2.1. Uma moralidade declarada Que a peça é uma moralidade, desde o Prólogo do Auto como tal se apresenta, reiteradas vezes, pela boca do Palhaço, porta-voz do autor 8. O seu enredo gira em torno do “julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão, um padre e um bispo”; e a sua finalidade, desvelada pelo autor, é o “combate (a)o mundanismo, praga de sua igreja” (Suassuna 1990: p. 23). Diz que ousa fazê-lo, mesmo que podendo ser acusado de desrespeito para com o sagrado, porque “esse povo (nordestino) sofre, é um povo salvo e tem direito a certas intimidades” (Suassuna 1990: p. 24). Como Gil Vicente outrora, a sua intenção é denunciar os maus religiosos, fundamentalmente a sua venalidade, por um lado; mas exaltando, por outro, o valor da fé, da intermediação de Maria, da sua misericórdia comovedora do Filho - enfim, da religião. Fica claro, desde já, a diferença entre Suassuna e João Cabral, cujo Auto se reveste de um contundente materialismo, como vimos. Suassuna, sempre buscando demonstrar que a sua intenção não é desrespeitar a Igreja, inclusive põe em cena, no Prólogo, a atriz-personagem, para enfatizar o topos da humildade, imprescindível à representação das coisas sagradas: “A mulher que vai desempenhar o papel desta excelsa Senhora declara-se indigna de tão alto mister” (Suassuna 1990: p. 23). Também o Palhaço recorre a essa tópica, certamente muito comum desde a Idade Média nas representações religiosas: “O ator que vai representar Manuel, isto é, Nosso Senhor Jesus Cristo, declara-se também indigno de tão alto papel, mas não vem agora, porque sua aparição constituirá um grande efeito teatral e o público seria privado desse elemento de surpresa” (Suassuna 1990: p. 24). Em seguida ao Palhaço, entra em cena João Grilo, complementando a sua fala: o Auto representa um “apelo à misericórdia” porque “se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada” (Suassuna 1990: p. 24). Dessa forma, vemos que os personagens são tipos sociais, representativos não apenas de uma região, mas de toda uma nação, ou de toda a humanidade pecadora. A tipificação primeira de João Grilo é representar o nordestino, que consegue sobreviver pela sua teimosia e argúcia. Outro personagem típico é o imaginativo Chicó, que, a modo da Mofina Mendes vicentina, enuncia um discurso pontilhado por impossibilia ou adynata. Dentre os seus disparates, está deslocar-se para distâncias impossíveis, num cavalo bento, relatar mirabilia como a da mulher que pariu um cavalo, etc... Esse apelo ao imaginário é outro dos recursos de sobrevivência nas condições sub-humanas a que são relegados tantos brasileiros, não apenas nordestinos. 8 “... o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo...”, etc. (Suassuna 1990: 23).
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Representando os maus religiosos, um sacristão, um padre e um bispo caracterizamse pela arrogância para com os humildes, pela covardia diante dos perigos, e pela lisonja interesseira, movidos pela cupiditia que, como na Idade Média se frisava, em exemplos inseridos em obras como os Contos de Cantuária de Chaucer, ou na anônima Orto do Esposo, é “a raiz de todos os males” 9. Os outros personagens são: um padeiro e a sua mulher adúltera, pecadora em conseqüência das traições que no início do casamento o marido lhe proporcionara; ambos possuíam um pecado em comum: a exploração da mais-valia e o tratamento desumano dispensado aos serviçais, no caso o próprio João Grilo, que deseja vingança. Juntam-se a estes, no clímax do enredo, os cangaceiros Severino do Aracaju e um seu “cabra” (comparsa). Após várias situações hilárias, onde as invenções desmesuradas do parvo Chicó e os embustes de João Grilo dão ensejo à instauração do cômico, inclusive através de quiproquós em torno do enterro cristão de um cachorro, esses personagens são assassinados pelos cangaceiros; estes, por sua vez, também morrem, pelas iniciativas de João Grilo; só permanecem vivos Chicó e um Frade, este, aliás, o único membro da Igreja respeitado no Auto. Segue-se, então, o julgamento dos defuntos, dele participando a Compadecida, seu Filho Manuel, o Demônio e o Encourado, que é o Diabo do folclore nordestino - “um homem muito moreno, que se veste como vaqueiro” (Suassuna 1990: 140), a quem o Demônio serve pressuroso 10. O Cristo, Manuel 11, apresenta-se como “um preto retinto, com uma bondade simples e digna nos gestos e nos modos” (Suassuna 1990: 146). Desvela a crítica ao racismo, notadamente norte-americano: “Vim hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar comentários. (...) Eu, Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. (...) Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?” (Suassuna 1990: 149). A moralidade torna clara a sua preocupação: combater os pecados, a começar pelo preconceito racial. Em seguida, os demais pecados são aventados, através da acusação do Encourado ao Cristo. O primeiro a ser acusado é o Bispo: simonia, falso testemunho, velhacaria, politicagem, arrogância para com os humildes, subserviência aos ricos e poderosos; esses defeitos se estendem ao Padre, acrescentando-se-lhes a preguiça; o Sacristão é acusado de hipocrisia, auto-suficiência e roubo; o padeiro e a mulher, de serem maus patrões, particularmente avaro ele, adúltera ela; João Grilo é livrado pelo Cristo da acusação de desrespeito ao livre arbítrio, bem como dos embustes e assassinatos dos cangaceiros; inocenta-o desses
9 O escritor inglês Geoffrey Chaucer (1340-1400), na sua obra The Canterbury tales, desenvolve essa máxima no conto do vendedor de indulgências (Chaucer 1968: 243). Aparece também na obra Orto do Esposo (1956: 240241), escrita em Portugal entre fins do século XIV e inícios do XV por autor desconhecido, através de uma historeta muito antiga, sobre o achamento de um tesouro, que no século XIX seria retomada por Eça de Queirós (Queirós 1970: 1193-1197). 10 O Demônio (do grego daimónios, que significa provindo da divindade, enviado por um deus, maravilhoso, extraordinário) seria um espírito do mal, servo do Diabo (do grego diábolos, significando o que desune, que inspira ódio, inveja, maledicência, mentira, luxúria...), atualizando-se, desta forma, o sentido etimológico dos termos (Cf. Machado 1989: II - 299, 300, 332), comumente usados como sinônimos. 11
Manuel é uma vulgarização do nome Emanuel, que significa “Deus conosco”.
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pecados a sua condição de homem simples, agindo “em legítima defesa” para sobreviver (Suassuna 1990: 163), mas não é isentado do pecado da vingança que desejava realizar sobre os patrões. No final das contas, após a invocação da Compadecida, todos os pecados expostos são desculpados, porque, defende ela: “é preciso levar em conta a pobre e triste condição do homem. A carne implica todas essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo o que eles faziam era por medo” (Suassuna 1990: 175). Medo da morte, do sofrimento, da fome, da solidão ... complementam os acusados que vão para o Purgatório, por sugestão de João Grilo. Já os cangaceiros, vão para o Céu, uma vez que a loucura os tornara irresponsáveis pelos seus crimes, segundo o próprio Cristo: “Enlouqueceram ambos, depois que a polícia matou a família deles e não eram responsáveis por seus atos” (Suassuna 1990: 180). Vítimas mais que vilões, portanto. Quanto a João Grilo, após muita argumentação, ajudado pela Compadecida, volta à vida material. Enfim, nessa moralidade nordestina, ao mesmo tempo em que se apontam os pecados condenados pela Igreja, que levam ao Purgatório, promove-se o culto mariano, o franciscanismo e a alegria relacionada ao sagrado. O ensinamento bíblico que se destaca é, sem dúvida, o do Cristo no Sermão da montanha: “Bem aventurados os pobres de espírito, pois deles é o reino dos céus”. Das crianças, dos loucos, dos parvos é, pois, o Reino dos Céus. Paralelamente a esses ensinamentos religiosos, corre a crítica social: à exploração da maisvalia, à desumanidade do tratamento que os patrões dispensam ao trabalhador, à falta de seriedade da Justiça que se pratica no Brasil, à inoperância do funcionalismo público, etc... 2.2. A cultura popular e o riso carnavalizado Declara Suassuna, em nota introdutória ao texto, que “O Auto da Compadecida foi escrito com base em romances e histórias populares do Nordeste” (Suassuna 1990: 21). Apresenta, como epígrafe inicial, trechos de um auto popular em versos, anônimo, do romanceiro nordestino, O castigo da Soberba. Nele, Maria intercede ao Filho por uma alma, para desagrado do Diabo (“Lá vem a compadecida! / Mulher em tudo se mete!”....). Mais duas epígrafes se acrescentam, também em versos, retirados de romances do folclore nordestino: O enterro do cachorro e História do cavalo que defecava dinheiro. Estão, dessa forma, indicadas as fontes para o argumento do Auto, sendo substituído, nesse último romance, o cavalo pelo gato em uma das suas cenas. A maior e mais óbvia diferença entre o Auto da Compadecida e as suas confessadas fontes reside na forma: o texto é escrito em prosa, ao invés dos versos da tradição, tanto nordestina quanto medieval. Com relação às semelhanças com o auto medieval, a primeira delas se apresenta no próprio cenário indicado por Suassuna para a sua peça: uma igreja e seus arredores. Mas merece destaque sobretudo um elemento medieval que imprime forte marca na cultura popular nordestina atualizada pelo autor: a percepção carnavalesca do mundo, onde todas as barreiras são transpostas e o riso ambivalente, demolidor e construtor ao mesmo tempo, se instaura. Na Idade Média, o sabemos, algumas festas populares, permitidas pela Igreja enquanto válvula de escape necessária para a manutenção da ordem, eram o momento de transgressão das regras, quando as pessoas se igualavam e eram subvertidos os valores, entronizando-se o grotesco, rebaixando-se o sublime, dando-se vasão aos instintos mais elementares, e tudo num clima de alegria e alvoroço. Mas, como nos avisa Bakhtin, “o riso acompanhava também as
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cerimônias e os ritos civis da vida cotidiana; assim os bufões e os “bobos” assistiam sempre às funções do cerimonial sério, parodiando seus atos” (Bakhtin 2002: 4). No Auto da Compadecida grande destaque é dado à figura do bufão, que, inicialmente encarnado pelo Palhaço, através da sua irreverência gestual-discursiva típica, pode provocar sem coerção os poderosos que se deseja criticar. Os personagens lunáticos e menosprezados, assim considerados pelos bem-sucedidos econômica e profissionalmente, são Chicó e o frade, que sequer são tocados pela morte. E João Grilo, como estes, pela sua existência sofrida alcançará as boas graças do plano divino, sendo elevado no julgamento, quando todas as fronteiras são demolidas, e ressurge para uma nova vida. Dessa forma, a dessacralização operada pelo realismo grotesco que aí se observa leva à transformação, ao recomeço. Já Bakhtin observara, no seu antológico estudo sobre A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, que “há elementos cômicos mesmo na imagem da morte” (Bakhtin 2002: 44) nessa visão carnavalizada do mundo, impregnada pelo realismo grotesco. Este, ultrapassa as fronteiras da Meia Idade para se atualizar na cultura popular brasileira, particularmente a nordestina, levada à cena por Ariano Suassuna. O riso, imiscuindo-se no espaço do sagrado, não apenas garante a distensão aos espectadores, mas é apresentado como do Céu fazendo parte, enquanto relacionado com a alegria, com a felicidade. Dentre as técnicas de humor se encontram o cômico de situação e de palavras: os duplos sentidos, os quiproquós, os rebaixamentos das autoridades, as incoerências discursivas, como por exemplo as palavras elevadas colocadas em dado momento na boca do parvo Chicó, que são uma profunda reflexão metafísica sobre a condição humana. Essa perecepção carnavalizada do mundo é a que se percebe como hegemônica também no teatro de Gil Vicente, que se preocupara sobremaneira com a moralização dos costumes, notadamente através do combate ao farisaísmo dos maus cristãos. É o que veremos a seguir. 3. Gil Vicente e os Autos nordestinos Suassuna, da mesma forma que João Cabral de Melo Neto, não menciona Gil Vicente como fonte 12, indicando serem elas alguns romances, como vimos. Mas, a todos que conhecemos o teatro desse genial dramaturgo 13 quinhentista, uma primeira evocação se insinua: a da moralidade das barcas do Céu, Inferno e Purgatório. Nessas moralidades, a sátira social se relaciona de forma evidente ao objetivo de edificação espiritual, colocando-se a questão da salvação post mortem. A alegoria das Barcas - a que conduz ao Céu com Anjos no comando e a que leva ao Inferno com seus arrais diabólicos, aportadas num “profundo braço de mar”serve de ponto de referência para todo um desfile processional de representantes das várias profissões e categorias sociais, caricaturados pelo relevo posto em seus vícios mais típicos.
12 Mas reconhece aproximação do sem teatro ao de Gil Vicente que coñece ben, em A Compadecida e o Romanceiro Nordestino. In SUASSUNEA, Ariano et alui (1973). Literatura popular em verso. Estudos Tomo I. Río de Janeiro; MEC/FCRB, p. 158. 13 Utilizaremos a seguir conclusões que publicamos, sobre o teatro de Gil Vicente, em A literatura portuguesa em perpectiva, no primeiro volume da série assim intitulada, coordenada por Massaud Moisés (Maleval 1982: 178179).
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3.1. Inferno, Purgatório ou Céu? A primeira moralidade da trilogia, Auto da barca do Inferno, foi representado à Rainha D. Maria em sua câmara, “estando enferma do mal (de) que faleceu” (Vicente 1983: 201). Nela vemos desfilar os representantes de classes predominantemente medianas, tais sejam: um fidalgo, um onzeneiro, um sapateiro, um frade com sua dama, uma alcoviteira, um judeu, um corregedor, um procurador, além de um enforcado, de um parvo e de quatro cavaleiros cruzados. Estes últimos são os únicos a merecerem a Barca da Glória - o parvo, pela sua irresponsabilidade assente na pobreza de espírito; e os cruzados, pelo ideal de cristianização que os conduziria ao martírio. Os demais são condenados por cobiça, avareza, licenciosidade e hipocrisia. Critica-se inclusive a superficialidade das práticas religiosas, como a do sapateiro, que roubava nos preços mas que se julgava merecedor do Céu por se confessar, ir à missa e comungar. E a nota cômica, além das caricaturas apresentadas dos tipos sociais, instauradoras do grotesco, é assegurada pelo parvo que, mesmo depois de ser aceito na Barca da Glória, continua a zombar de diabos e condenados, corroborando a idéia de que o riso não é incompatível com o sagrado. Aqui, uma aproximação evidente entre os dois autores: como Gil Vicente, Suassuna põe na boca do próprio Manuel, o Cristo tornado negro, a defesa do ousado João Grilo contra o Diabo ou Encourado, que o acusa de brincar durante o julgamento. Diz Manuel contra este: “Calma, rapaz, você não está no inferno. Lá, sim, é um lugar sério. Aqui pode-se brincar...” (Suassuna 1990: 155). Também como o parvo vicentino, João Grilo escapa da condenação por ser ignorante, acusado que fora pelo Encourado de negar o livre arbítrio, já que atribuía as invencionices de Chicó ao forte calor do sol sertanejo. Aliás, também como no teatro vicentino, no episódio de Todo Mundo e Ninguém, o diabo aparece anotando conclusões e/ou sentenças (Suassuna 1990: 157-158). Já a salvação dos cangaceiros corre por conta da irresponsabilidade da loucura e da injustiça social, da violência que os lançara no banditismo social. A segunda moralidade da trilogia, impropriamente conhecida como Barca do Purgatório (na verdade este não é um lugar para onde se vai embarcado, corresponde ao rio em que se encontram os defuntos), foi representada a D. Leonor no Hospital de Todos os Santos, em Lisboa. Nela desfilam um lavrador, uma regateira, um pastor e uma pastora, além de um taful e uma criança. Esta é a única a embarcar para a Glória, também pelo seu grau de irresponsabilidade. O taful segue para o Inferno ao qual o habilitaram as suas jogatinas e blasfêmias. E os campônios, pela sua sofrida condição, mas por não estarem isentos de pecados, advindos da revolta, da ignorância e da esperteza, são deixados pelo Anjo no Purgatório: “purgando nessa ribeira / até que o Senhor Deus queira” (Vicente 1983: 178). Ressalte-se que a figura do lavrador-colono se caracteriza pela gravidade das suas acusações: a Deus, por não interferir na Ordem da Natureza, por não impedir as intempéries que lhe destróem a plantação; e aos homens, que pela Ordem Social injusta lhe exploram o trabalho à exaustão, com tributos e prestações pesados por demais. Daí desabafar nos antológicos versos: “Nós somos vida das gentes, / e morte de nossas vidas” (Vicente 1983: 235). Aproxima-se, então, muito mais do “Severino retirante” de João Cabral de Melo Neto, ao se conscientizar de que a sua “vida severina” não decorre apenas da seca, mas do injusto sistema sócio-político-econômico. Embora também o João Grilo de Suassuna tenha consciência da exploração a que os patrões o submetem (p. 103, 163, 167), no entanto se defende com a sua esperteza.
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A terceira e última moralidade da série, a da Barca da Glória, escrita em espanhol e representada para o “Venturoso” D. Manuel em Almeirim, faz desfilar “dignidades altas”: Papa, Cardeal, Arcebispo, Bispo, Imperador, Rei, Duque e Conde. A “dança da morte” aí se completa: ninguém escapa à sua inexorabilidade. E aos poderosos em contritos lamentos só é facultada a Glória eterna por terem as suas culpas redimidas pela Paixão de Cristo, quando o Anjo já deles se afastava com a sua embarcação. Neste Auto não há a presença da comicidade, tão recorrente em Gil Vicente mesmo nas obras “de devoção”, o que levou Laurence Keats (1988: 104) a situá-lo a meio caminho entre a liturgia e o drama. 3.2. A Alma peregrina Tal acontece igualmente no Auto da Alma, a mais gótica realização do artista, representado à Rainha Velha, Dona Leonor, e ao Rei seu irmão, D. Manuel, nos paços da Ribeira, em Lisboa, na Noite de Endoenças 14 de 1508 15. Aí, pautando-se na temática medieva tradicional do peregrino, tão comum nas obras místicas de então, como o Boosco deleitoso (1950), encontra-se a Alma, “formada de nenhuma cousa” (Vicente 1983: 177), portanto essencialmente diáfana, caminhando entre a orientação do Anjo Custódio e as tentações do Diabo. Estas levam-na à materialidade do pecado da vaidade, que a torna pesada e opaca, uma vez que carregada de bens materiais. Mas, graças ao refrigério que a “santa estalajadeira, Igreja Madre” (Vicente 1983: 176) proporciona, através do sacrifício do Redentor, torna-se ela novamente forte para trilhar o caminho da Vida, verdadeira e eterna. Se o tema da existência espiritual, do prêmio da Vida Eterna aos justos, aos fiéis, aos contritos aproxima o Auto da Compadecida do Auto da Alma, este, pelo tema da peregrinatio existencial que principalmente desenvolve, evoca mais ainda Morte e vida severina. Mas as ideologias em que se pautam são diversas, colocando-se Gil Vicente a serviço da Igreja, que acena com o Céu aos que sofrem na terra, aos contritos, aos que abandonam os prazeres, as vaidades materiais em prol do espírito; ao passo que João Cabral de Melo Neto, inscrito na oposição à ditadura militar de direita que no Brasil fortaleceu os latifúndios, denuncia a exploração dos que trabalham na terra (e não só), insinuando a solução na reforma agrária, propondo um não ao conformismo, à acomodação. Alegóricos são ambos os textos, sendo emblemáticos os seus protagonistas: do mesmo modo que a Alma pode ser qualquer alma em trânsito para a vida celestial, Severino pode ser qualquer retirante em busca de uma vida material menos sofrida. De igual forma são tentados por oponentes ligados ao mundo da morte: a Alma pelo Diabo, Severino pelos coveiros, que colocam um ponto final às suas já enfraquecidas esperanças, indicando-lhe o suicídio como meio de atenuação do sofrimento. Ambos se relacionam com a Paixão: o Auto vicentino, representado na Semana Santa, põe em cena a redenção humana pelo martírio crístico; o Auto cabralino tematiza a paixão de um novo Cristo, mártir do capitalismo desumano. Mesmo a forma os aproxima, uma vez que as falas dos personagens são expressas em versos de arte-menor; outra semelhança é a utilização de cânticos ligados ao sofrimento e à morte, enfim, ao martírio - dos Severinos, as excelências e/ou prantos; do Cristo, os hinos da liturgia, como Ave flagellum, Ave corona espinearum, etc, indicados por Gil Vicente nas rubricas do seu Auto (Vicente 1983: 198). 14
Noite de Quinta para Sexta-feira Santa.
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Ou 1518, para alguns especialistas.
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3.3. Mistérios da Virgem Lembraríamos, nesse rápido cotejo a que procedemos, um último auto vicentino: o dos Mistérios da Virgem, assim denominado pelo autor, mas que ficou conhecido como Auto da Mofina Mendes, representado para D. João III nas matinas do Natal de 153416. Compõe-se de quatro partes claramente distintas: 1) Um Prólogo, que se assemelha a um sermão burlesco, enunciado por um frade. Iniciase desconexo e satírico, entremeado de citações em latim macarrônico, como se fora amalucado o seu locutor, mas no final se torna lógico, apresentando as linhas gerais da obra: título (Mistérios da Virgem), personagens principais (a Virgem e as Virtudes), assunto (a Anunciação e o Nascimento de Jesus), etc..
2) Um primeiro ato, em torno da Anunciação a Maria, em que ao mistério, isto é, ao auto que encena passagens bíblicas, relacionadas fundamentalmente aos ciclos do Natal e da Páscoa, se acrescenta o caráter didático-alegórico da moralidade, através da personificação de hinos e das Virtudes. Estas são a Pobreza, a Humildade, a Fé e a Prudência, que aparecem como Damas que acompanham Maria desde a infância, orientando-a também diante da nova do anjo Gabriel, que enche de espanto o coração da Virgem.
3) Um Intermezzo, na verdade uma pequena farsa campesina, correspondente à cena pastoril da Mofina Mendes, revitalizada da tradição européia, que remontaria a um apólogo indiano. Não indicada no discurso introdutório do frade, serviria como elemento de distensão entre a Anunciação e o Nascimento, colocando em cena a amalucada e grotesca figura da pastora que presta uma verdadeira “conta de negregura” ao seu amo, recebendo em troca do rebanho dizimado um pote de azeite (aportuguesamento da tradição, que fala em um pote de leite) sobre o qual tece, a bailar e a cantar, sonhos de riqueza e felicidade; mas o pote se quebra e a Mofina, diante da zombaria dos pastores, conclui: “todo o humano deleite, / como o meu pote d’azeite, / há-de dar consigo em terra” (Vicente 1983: 116). Dessa forma, dá “um pulo do cômico ao excelso”, como diria Guimarâes Rosa, na sua reflexão sobre os tênues limites entre o ridículo ou o grotesco e o sublime (Rosa 1969: 11).
4) O último ato, do Nascimento, ao mesmo tempo sagrado (mistério natalino) e profano (farsa campesina), senão pelo próprio significado redentor, pelo discurso, ações e reações dos pastores, que com o Anjo gracejam e só depois de muito argumentarem o seguem. Os outros personagens, além de Maria, são as Virtudes e José, que tem o discurso mais crítico com relação aos valores da humanidade que a Virgem tenta em vão arrebanhar.
16 Publicamos sobre ele um estudo, aliás uma das nossas primeiras publicações acadêmicas, intitulado “A propósito de um título vicentino”, em periódico da USP (Tavares 1983: 31-40).
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Denuncia ele que “as gentes d’agora / são de mui perversa veia” (Vicente 1983: 119) -, bem como a sua insanidade interesseira, expressa através de adynatha (por dinheiro os homens são capazes de “semear milho nos rios”), e a sua indiferença em relação ao grande acontecimento:
Senhora, não monta mais semear milho nos rios, que queremos por sinais meter cousas divinais nas cabeças dos bugios. Mandai-lhes acender candeias, Que chamem ouro e fazenda, e vereis bailar baleias; porque irão tirar das veias o lume com que s’acenda. E à gente religiosa Manda-lhe velas bispais; A cera, de renda grossa; Os pavios, de casais; E logo não porão grosa (Vicente 1983: 121). O modo como a representação do Auto termina, indicado pela rubrica final, confirma o seu caráter carnavalesco, onde as fronteiras entre os gêneros dramáticos, entre o sério e o não-sério, o concreto e o abstrato, o sagrado e o profano são abolidas: “Tocam os Anjos seus instrumentos, e as Virtudes cantando, e os pastores bailando, se vão” (Vicente 1983: 124). Insere-se na tradição das festas natalinas, pois, como nos ensina Mário Martins, Na quadra de Natal, pelas festas do próto-mártir Sto. Estêvão, a 26 de dezembro, e nos dias seguintes, quer dizer, nas festas do apóstolo São João e dos Santos Inocentes, esbracejava um verdadeiro carnaval litúrgico, talvez adaptação cristã da velha libertas decembrica dos romanos (Martins 1978:100).
Essa presença insistente do cômico popular em obras “de devoção”, e não apenas nos autos pastoris, compatibiliza o riso, a alegria, a naturalidade com a fé. Dessa forma, Gil Vicente se inscreve nos grandes debates teologais que agitaram a Cristandade nos fins da Idade Média. Neles se colocavam, dentre outras, a questão da pobreza de Jesus e seus Apóstolos, defendida e imitada pelos franciscanos de vida pobre, chocando-se com o poderio econômico e político do Papado e com a suntuosidade das autoridades eclesiásticas. Outra polêmica se relacionava com a condescendência franciscana para com o riso, em oposição à sua condenação pelas alas mais severas da Igreja.
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O riso, prerrogativa do ser humano, se nos apresenta como elemento de coesão do universo dramático vicentino. Através dele objetivaria a redenção dos vícios maiores da sociedade do seu tempo, e/ou a abolição da vaidade, do medo e do orgulho, facultando ao público das suas peças uma melhor apreensão do contraste entre a imperfeição do mundo sensível e a perfeição do mundo inteligível. Aproximando-se de São Francisco de Assis e seus discípulos, Gil Vicente se fez “jogral do Senhor”. E não apenas com propugnar a purificação do culto pautada nas origens do Cristianismo, mas também com desvelar a sua ternura pela natureza, pelos simples e pela mulher, através inclusive do culto mariano. Os humildes formadores da pirâmide social, quantas vezes parvos, são elevados à companhia do Senhor, entronizados com base nas bem-aventuranças evangélicas que enaltecem os simples e os pobres de espírito. Este auto vicentino, se comparado ao de João Cabral de Melo Neto, suscita-nos as seguintes aproximações: Primeiramente, a mais óbvia, decorre de se inscreverem ambos na medieval tradição do ciclo natalino, já que Gil Vicente explica a destinação da sua peça - “endereçada às matinas de Natal de 1534” (Vicente 1983: 102) -, como vimos, na didascália da mesma; e João Cabral de Melo Neto caracteriza o seu auto como tal desde o (sub)título - Auto de Natal Pernambucano. Já demonstramos que, no entanto, ele faz anteceder à cena natalina de uma verdadeira via-crucis do protagonista, o retirante Severino, à busca de sobrevivência na terra; ao passo que no auto vicentino tenta-se, em vão, trazer adoradores para o Cristo, propugnando-se o abandono dos interesses materiais e colocando-se como virtude a Pobreza (ao lado da Humildade, da Prudência e da Fé). Além do mais, Gil Vicente destaca, colocando-se em sintonia com o culto mariano, a mãe de Jesus, desde o título que atribuiu ao auto (Auto dos mistérios da Virgem); ao passo que em João Cabral de Melo Neto a parturiente sequer é nomeada, dando-se maior destaque a José. Outras aproximações, inserindo o auto pernambucano na tradição medieval muito mais que descontruindo-a, seriam concernentes à forma, já que ambos os autores dão preferência ao verso de arte-menor, predominantemente heptassílabo; ou, na cena do Nascimento (de Jesus Cristo ou de um novo Severino), tanto um quanto outro autor desenvolvem o salmo da tradição, Laudate Dominum..., em que o céu e a terra se conjugam na louvação do acontecimento. Mas, ao passo que Maria e as Virtudes no auto vicentino convocam para louvá-lo “todalas gentes, / e toda a cousa diversa / que no mundo sois presente” (Vicente 1983: 119), João Cabral de Melo Neto apresenta o apaziguamento, pela natureza adjuvante, das condições sub-humanas em que vivem tantos nordestinos: - Todo o céu e a terra lhe cantam louvor. Foi por ele que a maré esta noite não baixou. - Foi por ele que a maré fez parar o seu motor: a lama ficou coberta e o mau-cheiro não voou. - E a alfazema do sargaço, ácida, desinfetante, veio varrer nossas ruas enviada do mar distante.
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- E a língua seca de esponja que tem o vento terreal veio enxugar a umidade do encharcado lamaçal. - Todo o céu e a terra lhe cantam louvor e cada casa se torna num mocambo sedutor. - Cada casebre se torna no mocambo modelar que tanto celebram os sociólogos do lugar. - E a banda dos maruins que toda noite se ouvia por causa dela, esta noite, creio que não irradia. - E este rio de água cega, ou baça, de comer terra, que jamais espelha o céu, hoje enfeitou-se de estrelas (Melo Neto 2000: 73-74). Então, essas moradias miseráveis, esses mocambos recifenses, entre o cais e a água do rio, se tornam “modelares”, como os apresentam os “sociólogos do lugar”. Com essa alusão, a sua acirrada crítica atinge mais uma vez ao farisaismo do sistema, e também da religião que a ele não se contrapõe, uma vez que a imagem final aponta para a impossibilidade de o céu poder se espelhar no lodaçal dessas precárias existências. O milagre almejado pelo poeta é, justamente, o da condição de vida digna para todos. Finalmente, o auto vicentino deixa de apresentar os Reis Magos com os seus presentes, colocando em cena apenas pastores, convocados pelo Anjo para a adoração, sendo que só após muita argumentação, divergências entre eles, e até zombaria, o seguem. No auto pernambucano, ciganas tomam o papel das sibilas e profetas, da tradição judaico-cristã, mencionados no de Gil Vicente (Ciméria, Erutéia, Cassandra, Isaías); e pessoas pobres da comunidade fazem de Reis Magos, trazendo presentes para o recém-nascido e sua mãe, retirados do que têm para (sobre)viver: leite materno, papel de jornal que serve de cobertor, água potável, canário da terra, bolacha d’água, boneco de barro, pitu, ostras, peixe, abacaxi e outras frutas da terra, carnes, etc.17. Evoca-se-nos, através desse exemplo de solidariedade, o Milagre
17 Ao arrolar frutas e carnes oferecidas ao recém-nascido, o autor procede a um jogo de palavras, que aponta para a impropriedade dos topônimos: “Eis tamarindos da Jaqueira / e jaca da Tamarineira. / Mangabas do Cajueiro / e cajus da Mangabeira. // Peixe pescado no Passarinho, / carne de boi dos Peixinhos” (Melo Neto 2000: 75). Trata-se de um recurso de humor, mas um humor que se mostra mais uma vez intelectualizado, instaurando a ironia e/ou o sarcasmo, característicos do autor em sua sátira ferina.
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de São Martinho, outro auto de Gil Vicente representado à franciscana Rainha-Velha, Dona Leonor, na procissão de Corpus Christi, em 1504 (Vicente 1983: 349-352), que ensina ser a caridade ideal a divisão do essencial, não do supérfluo, uma vez que o Santo divide com um pobre a sua própria capa, na falta de outra esmola para lhe dar. Enfim, as aproximações entre Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto coincidem justamente na preferência pelo uso da redondilha-maior e na simpatia pelos pobres, evidentemente que decorrente de posições ideológicas diversas - espiritualidade franciscana de um lado, materialismo histórico, de outro. Quanto a Ariano Suassuna, tem a aproximá-lo de Gil Vicente a percepção carnavalesca do mundo, que mistura o sagrado ao profano, o sério ao não-sério, a moralidade à farsa. Além, evidentemente, do culto mariano. Mas a Maria de Suassuna é sobretudo a da tradição dos milagres medievais. Por exemplo, nos milagres apresentados nas Cantigas de Santa Maria, coletânea que teve como (co)autor e/ou diretor Afonso X de Leão e Castela, no século XIII18, vemos que a sua representação é muito humanizada, sujeita a preferências, ciúmes e vinganças (por exemplo na cantiga 19 e em tantas outras); mas é, sobretudo, a protetora infalível dos que a invocam, mesmo que pecadores (por exemplo, freiras grávidas, como nas cantigas 7 e 94). Inimiga maior do demo, que tenta levar as almas à condenação eterna, na cantiga 26 faz retornar à vida (da mesma forma que acontece com o personagem de Suassuna) um romeiro que, enganado pelo diabo, cometera o suicídio. Advogada dos aflitos, por vezes os salva com o próprio leite (cantiga 54) ou com as pernas e joelho (cantiga 57) ou braço (cantiga 136), etc., justificando, desde a Idade Média, o motivo que João Grilo apresenta para invocá-la: “alguém que está mais perto de nós”, “gente que é gente mesmo” (Suassuna 1990: 165) ... “só que gente muito boa, enquanto que eu não valho nada” (Suassuna 1990: 174). Se a Virgem vicentina lamenta a perdição da humanidade, a Compadecida a desculpa, levando em conta “a triste condição do homem”, sujeito ao grilhão da carne, da existência material que implica em “coisas turvas e mesquinhas”, em medo (Suassuna 1990: 175)19. Mas como o franciscano Gil Vicente compatibiliza o riso com o sagrado: defendendo João Grilo do Encourado, que o acusa de falta de respeito por recitar versinhos profanos para ela, sentencia, como seu Filho já o fizera: “Quem gosta de tristeza é o diabo” (Suassuna 1990: 171). Além da alegria, é franciscana também na sua opção pelos pobres: é a pobreza que qualifica o seu protegido a escapar da condenação eterna: “João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa” (Suassuna 1990: 184). Colocam-se, pois, num mesmo plano os personagens santos e pecadores. A igualdade entre eles vai ao ponto de Manuel (Jesus Cristo) propor a João Grilo apresentar-lhe uma pergunta que, se não pudesse ser respondida, o habilitaria a voltar à vida na terra (Suassuna 1990: 186). Saindo-se vitorioso, João Grilo ressuscita.
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A Walter Mettman devemos uma cuidada edição crítica das 427 cantigas marianas (Cf. Afonso X [1981[).
O bispo confessa o seu medo da morte, o padre do sofrimento, João Grilo da fome, o padeiro da solidão (Vicente 1990: 175-176).
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4. Conclusão Fácil é perceber que os textos brasileiros indicados, além de atualizarem técnicas do teatro e outros gêneros medievais, presentes nas peças de Gil Vicente, desenvolvem temas muito correntes na Idade Média, igualmente aproveitados pelo teatro vicentino, como a peregrinatio e o julgamento após a morte, com suas recompensas e punições. O Auto de João Cabral de Melo Neto, embora se apresentando apenas como natalino, na verdade antecede o Natal pela Paixão, numa desconstrução da história do Cristianismo e dos autos sacramentais que ajudaram a divulgar a sua doutrina. Nessa nova Via-Sacra, o retirante sertanejo ocupa o lugar de Jesus Cristo no martírio, provocado não apenas pela seca, mas pela estrutura capitalista dos latifúndios, pela injusta ordem sócio-econômica que relega à miséria tantos milhões de brasileiros, principalmente nordestinos, que saem de sua terra para os grandes centros, onde, na maior parte das vezes, engrossam o submundo das favelas e enriquecem, através da mais-valia, os cada vez mais ricos empresários, principalmente como operários nas construções. Temos, pois que esse escritor, de forma admirável, une em seu Auto os dois ciclos principais em que, na Idade Média e depois, se incluíam as representações: o natalino e o pascoalino. Mas não o faz apresentando a comicidade como elemento de distensão. O riso, que em determinadas cenas aflora, parece-nos um riso amargo - como o da cena dos coveiros, que nos leva a refletir sobre a injustiça social, sobre as desigualdades que num sistema cruel são percebidas até nos cemitérios. Não é o riso ambivalente da cultura popular o que percebemos brotar desta e de outras cenas, mas o sarcasmo demolidor, que ferinamente denuncia a exploração do homem pelo homem, sendo que a religião não é em nenhum momento invocada para a resolução desse problema: a felicidade que se busca é deste mundo. Muito embora seja evidente, como vimos, que várias formas literárias tradicionais são utilizadas pelo autor, nesse Auto em versos, como eram os da Idade Média: o pranto e o sermão burlesco, a tenção e, principalmente, o romance. Evidentemente que atualizadas e regionalizadas. Já Ariano Suassuna não utilizará essas formas versificadas. O seu Auto é feito em prosa, embora retomando características medievais, como a figura do bufão e a mistura de elementos díspares, como o sagrado e o profano, o sério e o não-sério, o grotesco e o sublime... Mais medieval que o de João Cabral é o riso que Suassuna nos propicia: ambivalente, demolidor e construtor ao mesmo tempo. Se a marca de brasilidade se faz presente nos dois autores, através do aproveitamento da cultura popular e regional, vemos que em João Cabral a solidariedade é a principal marca do sertanejo realçada, através de acompanhamentos de velórios e visitas ao recém-nascido, com presentes extraídos da sua precária condição. Ao passo que em Suassuna outras facetas do nordestino se destacam: a fé, a invencionice, o humor e a esperteza, com que ludibria a própria morte. Em ambos, de forma mais ou menos contudente, a crítica a um dos nossos brasis - o mais sofrido -, em que a injustiça social, o abuso de poder, a violência e a impunidade faz com que sejamos um país rico de brasileiros pobres e/ou miseráveis. Com relação à aproximação ao teatro de Gil Vicente, vimos que reduplicações e afastamentos se verificam, pois diversos são os contextos e valores em questão - Brasil, século XX / Portugal, século XVI. Apesar de diferentes perspectivas ideológicas, a preocupação com
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os humildes, a crítica social e a revitalização da cultura popular são os traços de união mais significativos entre os três. Por outro lado, além dos elementos identificadores e dos elementos comuns entre esses textos e contextos, certamente que existem aqueles de cunho universal. A “brasilidade” do teatro e dos autores nordestinos em foco residiria fundamentalmente no resgate que operacionalizam da cultura popular e, através desta, da Idade Média. Dentre as explicações para essa perpetuação de tradições ancestrais, introduzidas pelos colonizadores, costuma-se considerar que o interior nordestino as manteve por haver permanecido durante muito tempo à margem da “globalização”. As marcas da cultura popular européia aqui encontraram solo fértil para o seu desenvolvimento, até porque o brasileiro, principalmente o nordestino, é muito afeito à paródia e ao elemento jocoso, mesmo diante das maiores dificuldades; como também ao fanatismo religioso, que os leva ao conformismo. Isto sem falar da semelhança entre as relações sociais, já que os trabalhadores e os latifundiários não se distanciam muito dos servos da gleba e dos senhores feudais de outrora.
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TENDÊNCIAS DA NARRATIVA CURTA DE MURILO RUBIÃO E MÉNDEZ FERRÍN PERCURSOS ESTÉTICOS APROXIMATIVOS Flávio García
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I. A produção literária de Murilo Rubião (1916 - 1991), iniciada em 1947, data da publicação de seu primeiro livro, O ex-mágico, consagrou-o como contista, filiado, equivocadamente, às estratégias estéticas do Fantástico e o pôs em destaque como sendo um dos raros escritores brasileiros que se teriam aventurado por tal gênero da ficção. A produção literária de Méndez Ferrín (1938 - ...), iniciada em 1957 com a publicação de seu livro de poemas, Voce na néboa, ainda que bastante diversificada, com incursões pela poesia, narrativa curta - Percival e outras historias, seu primeiro livro de narrativas, viria a ser publicado no ano seguinte, 1958 -, novela de longa extensão, dramaturgia e pelo romance, tem predominância quantitativa e qualitativa na narrativa curta, vista, em grande parte, também equivocadamente, como representante do gênero Fantástico, conforme querem ainda hoje certas correntes da tradição crítica galega. As cidades e seu entorno; o mar e sua paisagem emoldurada; as selvas, os bosques e seus habitantes; as ruas, suas casas, seu comércio e sua gente; os bares, as tabernas e seus freqüentadores; as estradas, os caminhos e seus percursos são objeto da narrativa desses dois escritores. Murilo Rubião e Méndez Ferrín, narradores do mundo contemporâneo, convivem com e fazem conviver entre si os elementos aparentemente inexplicáveis e, por vezes antagônicos, do mundo pós-moderno, esfacelado e esfacelador. Na maioria das vezes, as narrativas de Murilo Rubião e Méndez Ferrín desconstroem o mundo exterior como ele se apresenta, instituído pelo quotidiano apaziguador, e reapresentam-no relativizado e, às vezes, negado por si mesmo. As expectativas veiculadas pelas vozes da narrativa, coincidentes, no geral, com as expectativas do senso comum, enraizadas na experiência individual e coletiva dos leitores virtuais, nem sempre se concretizam no plano da representação textual. O universo diegético acaba configurando uma realidade outra ou, até mesmo, uma irrealidade, em contraposição às expectativas expressas no seio da narrativa e às experiências vivenciadas pelos leitores. Desse modo, Murilo Rubião e Méndez Ferrín se alinham com as tendências estéticas da pós-modernidade, mantendo-se na esteira dos gêneros de representação não-referencial da realidade exterior ao texto, com origem no Maravilhoso e passagem pelo Fantástico e, mais proximamente, pelo Realismo-Maravilhoso. Méndez Ferrín ainda excursiona pelas estratégias narratológicas do Realismo-Maravilhoso, sem, contudo e em hipótese alguma, filiar-se à estética do Fantástico. Murilo Rubião, nem isso.
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Os percursos da produção narrativa de Murilo Rubião e Méndez Ferrín podem-se aproximar tanto pelas temáticas abordadas quanto pelos tratamentos estéticos empregados. Vem sendo uma constante na crítica literária, por exemplo, sugerir influências kafkianas ou identificar a presença de um subestrato mitológico na obra desses dois escritores. O próprio Murilo Rubião, a respeito do conto “Teleco, o coelhinho”, admitindo a influência da mitologia, mas negando a de Kafka, assim se expressou: foi fruto de leituras demoradas da mitologia e do mito de Proteu que, por detestar predizer o futuro, transformava-se em animais. A metamorfose, de Kafka, é exatamente a mesma coisa. Então, nem Kafka, nem muito menos eu inventamos a metamorfose. Eu só fui ler o Kafka completo quando trabalhei na embaixada brasileira na Espanha, entre 1956 e 60. (Apud Andrade 1999: 276)
Em Méndez Ferrín, poder-se-iam apontar aspectos da influência kafkiana em “Grieih” ou “Mantis religiosa” e a presença da mitologia em “Percival”, “Lorelai”, “Philoctetes”, “Amor de Artur”, “Fría Hortensia”, “Sibila”, Retorno a Tagen Ata ou Arnoia, Arnoia. II. A filiação de Murilo Rubião ou Méndez Ferrín ao gênero Fantástico, ainda que largamente difundida pelas tradições críticas brasileira e galega, não tem fundamento. Para fugir a ou driblar o cientificismo necessário aos estudos literários e, assim, simplificar a abordagem do texto, apropriando-se, indevidamente, de instrumentais impróprios, certa parcela de estudiosos tenta construir um falso arcabouço teórico. É comum esses autores aludirem ao “Fantástico contemporâneo”, ao “NeoFantástico”, ao “Fantástico em sentido lato”, ao “Fantástico no plural”, aos “Fantásticos”. Tal tendência analítica abre mão do rigor metodológico necessário à ciência literária e prescinde da conceituação básica e já clássica de gênero. Cada gênero corresponde a um conjunto mais ou menos uniforme e delimitável de estratégias de elaboração que lhe dão singularidade. A construção do narrador, do narratário, do destinatário textual, do leitor virtual são elementos importantes na estruturação de um gênero literário. O desenvolvimento do enredo, da trama e a evolução da narrativa também influem fundamentalmente. A correlação entre o plano diegético e o plano exterior à obra, entre o real textual e a realidade exterior, correspondendo ao imaginário representado no texto, também tem relevância. Pensar, por exemplo, a tragédia ática enquanto gênero implica identificar a presença do herói clássico, construído enquanto ser superior e admirável, vivendo sob a influência de uma maldição, em sentido lato, e dividido entre a justiça humana e a divina; implica, ainda, a presença do coro, porta-voz da consciência coletiva. A configuração do gênero obriga a representação mimética da realidade exterior no universo dramático, apresentando um herói dividido entre duas atitudes irreconciliáveis, uma comprometida com a justiça dos homens; outra, com a dos Deuses. É necessário, também, que o espectador seja levado à auto-identificação com o herói, modelo de virtude desejado, mas inatingível, sendo assim conduzido, obrigatoriamente, à catarse final. Pensar o Fantástico obriga a que se repense a seqüência em que ele se situa, correlacionando-o com o Maravilhoso, com o Estranho e com Realismo-Maravilhoso. A verdade, apreendida na realidade exterior, é problematizada de uma maneira diversa no universo
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textual de cada um desses gêneros, correspondendo a uma maneira distinta de representar a imagem que o homem tem ou constrói de si e do mundo ao seu redor. Em A canção de Rolando, o herói, com sua espada durendana, mata, sozinho, de um só golpe, setecentos inimigos. Último sobrevivente, mortalmente ferido e definhando, Rolando ainda encontra forças para, cumprindo um ritual cavaleiresco, cravar sua espada no chão em forma de cruz, tirar as luvas e oferecê-las ao Senhor em gesto de vassalagem. Finalmente, toca o olifonte tão forte que, antes de lhe romperem as têmporas e cair morto, o alto som emitido por seu sopro ultrapassa os Pirineus e encontra eco nas tropas de Carlos Magno, que vem tardiamente em seu socorro. A estratégia narrativa adotada não deixa margens para que o leitor questione a verdade representada no universo textual. O narrado é tido como verdade absoluta desde o nível da enunciação. Durendana é apresentada referencialmente como um instrumento bélico de metal cortante, sem qualquer outra conotação para além de espada, ressaltando-se seus poderes, e, como tal, é acolhida pelo leitor sem hesitação. Rolando é o cavaleiro perfeito, dotado de valor e força, que é capaz de atos para além da normalidade própria à realidade exterior à narrativa, sem, contudo, estar em outro universo que não o humano. Rolando é, em sentido pleno, um homem medieval. O leitor dessa epopéia não se espanta diante dos poderes maravilhosos de durendana nem da força e perseverança além do normal que Rolando tem. Ele aceita, pacificamente, esses aspectos dissonantes da sua experiência vivenciada, mas que fazem parte de seu imaginário. O leitor também não encontra no texto outros significados diferentes daquele que apreende na sua estrutura superficial. A narrativa não embute intenções ou estratégias desviantes que estimulem, favoreçam ou obriguem outras leituras. Ela é exatamente aquilo que se apresenta, e a verdade nela representada é aceita sem qualquer problematização, não inquietando nem o narrador, nem os personagens e, muito menos, o leitor. Em “O Horla”, de Guy de Maupassant, o narrador-personagem relata, aos demais personagens, sua versão acerca de certos fatos com ele ocorridos, em sua própria opinião considerados estranhos, a fim de provar sua sanidade frente a uma junta médica, uma vez que estava internado suspeito de estar louco. Ele questiona, testando a lógica racional, quem teria bebido a água e o leite deixados à noite em seus aposentos trancados, se ele mesmo bebera, driblando seus próprios ardis, ou se algum ser diferente, habitante de outro universo que não o nosso quotidiano apreensível. E seus vizinhos não estariam sendo vítimas, como ele, de uma intervenção do extraordinário, do sobrenatural? Estaria louco? Dúvidas que ele assume, passa a seus interlocutores e repassa aos leitores virtuais. A estratégia narrativa adotada por Maupassant incorpora elementos textuais que favorecem e estimulam o questionamento, pondo sob suspeição a versão dada aos fatos. Veiculada em primeira pessoa, a narrativa está comprometida pelo discurso subjetivo do narrador-personagem. O enunciado apresenta-se marcado por sucessivas interrogações, questionando a percepção, a compreensão e a aceitação dos eventos ocorridos, o que leva o destinatário textual a também questionar. Em efeito cascata, a dúvida atinge os leitores. O narrador-personagem questiona a explicação que ele próprio dá para os acontecimentos, e a elucidação proposta por ele tende para a aceitação do estranho, do sobrenatural intervindo na realidade vivenciada. A verdade lógica é posta em cheque.
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Ainda que estranhas, inexplicáveis, inverossímeis, fantásticas, medonhas, alucinantes, sobrenaturais, ilusórias... as explicações alheias ao mundo apreensível e referenciável da realidade exterior ao texto parecem dar conta dos eventos ocorridos, fragilizando assim as explicações de ordem lógica, que não têmn sustenção no nível narrativo. Assim, a razão fica prisioneira do embate entre o racional e o irracional. A permanência, até o final da narrativa, da dúvida entre qual verdade deve ser aceita como a que dê conta da elucidação dos sentidos textuais é a marca de existência do Fantástico enquanto gênero. A elucidação, tenda para onde tender, põe fim ao gênero, pois como bem observou Todorov, deve-se considerar o fantástico precisamente como um gênero sempre evanescente (Todorov 1992 :48).
Diferentemente do que acontece no Maravilhoso, onde a verdade não é problematizada e os fatos aparentemente estranhos não causam qualquer estranhamento nos personagens, no narrador e, conseqüentemente, no leitor; no Fantástico, é exatamente a problematização insolúvel da verdade, perpetuando um embate entre o racional e o sobrenatural, que dá vida ao gênero. Solucionar a dúvida apresentada no texto, findar o embate, é afastá-lo do gênero. Em “A queda da casa de Usher”, de Edgar Allan Poe, o narrador-personagem conta sua estranha experiência. Passava dias na casa de um amigo quando a irmã deste, bastante doente, morre. Ao invés de enterrá-la, os dois preferem, estranhamente, guardar seu corpo em um compartimento embaixo da casa. Passam-se dias e, em uma noite macabra, de forte tempestade, enquanto o narrador-personagem lê para o amigo uma história de cavalaria, ouvemse ruídos que parecem soar como eco do próprio texto que está sendo lido. Repentinamente, correlacionado os sons ouvidos, sem explicações prévias, em um impulso inexplicado, o dono da casa irrompe afirmando que eles enterraram sua irmã viva. No exato instante, a porta do cômodo se abre, e a moça aparece. Os irmãos se abraçam em caem ao chão mortos. O narrador-personagem foge e, ao sair, presencia o desabamento da casa com os dois defuntos dentro. A própria narrativa elucida os acontecimentos aparentemente estranhos, dando-lhes explicações lógicas, baseadas na realidade exterior à obra e sustentadas em experiências vivenciáveis por qualquer leitor. A moça sofria de um mal semelhante à catalepsia, tendo crises freqüentes. Naquele momento, teria passado por uma dessas crises, com duração um tanto prolongada, além do convencional e costumeiro. A casa, velha e maltratada, estava com rachaduras quase imperceptíveis que vinham desde seu ponto mais alto até os alicerces. Por alguma razão não apresentada no texto, coincidentemente, a casa ruiu no exato instante em que o narrador-personagem fugia, após a morte repentina do amigo, assustado com descoberta de que sua irmã não havia morrido anteriormente. A estratégia narrativa adotada por Poe não estimula as dúvidas ao longo do texto nem perpetua a indecisão final sobre a aceitação ou não de intervenções sobrenaturais nas experiências vividas pelos personagens. Um rápido questionamento lampeja no final da história, logo resolvido, atribuindo ao estranho a coincidência de fatores intervenientes, nem sempre perceptíveis em um primeiro momento. Assim, nada é maravilhoso ou fantástico, apenas estranho, porém explicável. Aqui reside a principal distinção entre o Fantástico e o Estranho.
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Todorov assim resume a correlação entre o Fantástico, o Estranho e o Maravilhoso: O fantástico (...) dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se o que percebem depende ou não da “realidade”, tal qual existe na opinião comum. No fim da história, o leitor, quando não a personagem, toma contudo uma decisão, opta por uma ou outra solução, saindo desse modo do fantástico. Se ele decide que as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a um outro gênero: o estranho. Se, ao contrário, decide que se devem admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso. Todorov 1992: 47-48.
Em “Do Deus memória e notícia”, de Mário de Carvalho, o narrador-personagem conta a história de uma cidade, Ghard, depois Ghard-a-Velha e Ghard-a-Nova, e suas relações com um Deus. Nitidamente a narrativa refaz percursos autorizados pela tradição historiográfica, tecendo um diálogo entre situações e tempos distintos. A memória de Ghard pode ser a memória de qualquer cidade portuguesa e, por metonímia, de Portugal. O Deus pode ser o católico-cristão. O narrador informa dos povos que sucessivamente chegaram à região e como foram se sucedendo na ocupação e colonização. Fala das implicações que esse percurso causou na produção, no comércio e nos serviços. Conta das religiões e rituais que o povo adotou. Enfim, dá conta de um Deus que chegou aprazivelmente, instalou-se e foi adorado, e de como se tornou mal e odiado, até ser esquecido e banido. Fatos sobrenaturais ou fantásticos povoam a narrativa, sempre explicados como maravilha do Deus, tanto em seu aspecto positivo como negativo. A ocorrência dos fatos, sua veracidade, não é questionada, senão que aceita pacificamente. Contudo, a história contada, com base na tradição autorizada, representa-se imersa no mundo maravilhoso, causando uma estranheza que leva a repensar a verdade histórica e suas implicações. Desse modo, a verdade deixa de ser uma, deixa de estar prisioneira da razão lógica, deixa de ser explicada pelas coincidências estranhas, para aparecer pluralizada, permitindo leituras múltiplas de um mesmo fato. A verdade não é mais aceita como tal, não fica prisioneira da razão, nem precisa de soluções naturais que lhe explicam o caráter estranho. A verdade é muitas. A história narrada permite entreler variadas versões, todas verossímeis e possíveis, configurando um leque de interpretações para um mesmo fato. A estratégia narrativa adotada por Mário de Carvalho não nega a verdade histórica de que se serve nem põe os eventos estranhos sob dúvida. A narrativa desentroniza a verdade histórica sob o manto do sobrenatural. Aquela e essas verdades são verdadeiras. Trata-se, agora, do Realismo-Maravilhoso, que se nutre da realidade referencial exterior, travestindo-a de maravilhoso e fazendo com que sua leitura seja aquela primeira geradora e as muitas outras geradas no universo textual. O Realismo-Maravilhoso é, pois, a união de elementos aparentemente díspares - do real (realia) e do maravilhoso (mirabilia) - configurando uma nova realidade, uma nova maneira de se ver o real, um como que “ver através”. No Realismo-Maravilhoso, o prodígio não substitui o real; ao contrário, o verossímil romanesco “legitima” o discurso “como sobrenatural”, e, reciprocamente, a mirabilia é lida como naturalia, e esta como mirabilia.
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Em síntese, recorrendo às palavras de Irlemar Chiampi, pode-se assim definir a função histórica e social do gênero: (...) o Realismo-Maravilhoso propõe um “reconhecimento inquientante”, pois o papel da mitologia, das crenças religiosas, da magia e tradições populares consiste em trazer de volta o “Heimliche”, o familiar coletivo, oculto e dissimulado pela repressão da racionalidade. Neste sentido, supera a estrita função estético-lúdica que a leitura individualizante da ficção fantástica privilegia. (...) o Realismo-Maravilhoso visa tocar a sensibilidade do leitor como ser da coletividade, como membro de uma (desejável) comunidade sem valores unitários e hierarquizados. O efeito de encantamento restitui a função comunitária da leitura, ampliando a esfera de contato social e os horizontes culturais do leitor. A capacidade do Realismo-Maravilhoso de dizer a nossa atualidade pode ser medida por esse projeto de comunhão social e cultural, em que o racional e o irracional são recolocados igualitariamente (Chiampi 1980: 69).
O discurso realista-maravilhoso constrói um novo referente para que se possa reconstruir a história deixada de lado ou encoberta. Permite recuperar marcas perdidas ou esquecidas. É lícito afirmar que a forma como cada um desses gêneros trata a verdade apreendida na realidade referencial exterior ao texto é o que mais os difere entre si, fazendo-os distintos e singulares, ainda que contíguos e semelhantes. São representações diversas do imaginário humano, correspondendo a diferentes momentos da sociedade e da cultura. III. Méndez Ferrín incursionou pelo Realismo-Maravilhoso, sendo “Fría Hotensia” um bom exemplo dessa incursão. A história que Fría narra a seus ouvintes se refere a um tempo mítico-histórico, quando os celtas ainda viviam entre a Península Ibérica e a Bretanha, e tem fundamento na tradição mitológica bretã. Mas, para além de uma primeira leitura ingênua, percebe-se que os topônimos utilizados pelo autor apontam para a história da Galiza, tanto na sua relação com o restante da Espanha quanto nas suas correlações internas, entre as forças nacionalistas e as forças estadistas. Tagen Ata é uma alegoria completa da Galiza; Nosa Terra, uma alegoria da região marginal ao rio Arnoia, uma parcela da terra galega. Assim, ao contar a história da ocupação da Península Ibérica pelos povos da Bretanha e se referir ao celticismo presente na tradição mítica galega, Méndez Ferrín está, na verdade, falando das disputas vividas pelo galeguismo com o poder central espanhol e com as forças a ele contrárias no seu próprio território nacional. Fría narra duas histórias, que devem ser lidas em diálogo, perfazendo tantas outras. A verdade, como aparece contada na tradição, não precisa ser única. Aliás, não o é, aparecendo múltipla e diversa em Méndez Ferrín. Méndez Ferrín faz do seu texto primeiro - Fría Hortensia - uma moldura para um texto segundo - o mito celta. O diálogo entre os dois planos de ação, entre as duas enunciações uma do narrador autodiegético e outra de Fría - gera um terceiro texto: o da nova visão da história. Valendo-se do mito celta - a tradição vê os galegos como descendentes diretos da civilização celta na Península, herdeiros da Deusa-Nai - Méndez Ferrín tematiza a problematica interna da Galiza - as oposições e cisões no seio do movimento nacionalista galego -, as tensões entre a Galiza e Castela - a opressão centralizadora do governo madrilenho, que sufoca a nação galega - e, ao final, permite que se veja uma crítica à fé cristã, como possível
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geradora de um novo Enmek Tofen, podendo voltar para pôr em risco tanto os ideários nacionalistas dentro da Galiza como as pretensões da Galiza frente a Castela. Isso está na memória histórica. Com esse recurso, Méndez Ferrín iluminou traços despercebidos da identidade galega, procurando explicar sua existência atual. Arnóia, Arnóia e Retorno a Tagen Ata também são exemplos da incursão de Méndez Ferrín pelo Realismo-Maravilhoso, mas suas narrativas curtas, na maioria, não se filiam ao Realismo-Maravilhoso, havendo outras manifestação estéticas distintas. Pelo percurso estético adotado, algumas narrativas ferrinianas permitem comparação com parte das narrativas de Murilo Rubião, alinhando-os em outro gênero, próprio às tendências da Pós-Modernidade. IV. Conforme destacou Fredric Jameson, Os últimos anos têm sido marcados por um milenarismo invertido segundo o qual os prognósticos, catastróficos ou redencionistas, a respeito do futuro foram substituídos por decretos sobre o fim disto ou daquilo (o fim da ideologia, da arte, ou das classes sociais; a crise do leninismo, da social-democracia, ou do Estado do bem-estar etc.); em conjunto, é possível que tudo isso configure o que se denomina, cada vez mais freqüentemente, pósmodernismo. O argumento em favor de sua existência apóia-se na hipótese de uma questão radical, ou coupure, cujas origens geralmente remontam ao fim dos anos 50 ou começo dos anos 60 (Jameson 2002: 27).
Nas observações preliminares de Jameson tem-se uma datação provável para as origens do pós-modernismo, coincidindo com o início da produção literária tanto de Murilo Rubião quanto de Méndez Ferrín. Vê-se, nelas, ainda, que a negação é uma tendência do movimento, decretando “o fim disto ou daquilo”. Ao decretar o fim de tudo, decreta também o fim da verdade, negando sua existência. Adiante, Jameson aponta que Os pós-modernismos têm revelado um enorme fascínio justamente por essa paisagem “degradada” do brega e do kitsch, dos seriados de TV e da cultura dos Reader's Digest, dos anúncios e dos motéis, dos late shows e dos filmes B hollywoodianos, da assim chamada paraliteratura - com seus bolsilivros de aeroporto e suas subcategorias do romanesco e do gótico, da biografia popular, das histórias de mistério e assassinatos, ficção científica e romances de fantasia: todos esses materiais não são mais apenas “citados”, como o poderiam fazer um Joyce ou um Mahler, mas são incorporados à sua própria substância. (Jameson 2002: 28.
A referência aos pós-modernismos no plural aponta para a multifacetação do movimento, podendo abarcar em seu bojo diferentes manifestações, que se ligam por aspectos comuns mais gerais, como foi, por exemplo, nos modernismos mundo à fora. Jameson também dá conta da assimilação, pelo movimento, de tendências estéticas ligadas às categorias gerais da representação não referencial da realidade exterior ao texto, como tende a ser o caso das histórias de mistério, da ficção científica, dos romances de fantasia, do gótico. Em “O ex-mágico da Taberna Minhota”, de Murilo Rubião, o narrador-personagem se apresenta ingressando na vida in media res:
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Todo homem, ao atingir certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a meninice acostumou-se às vicissitudes, através de um processo lento e gradativo de dissabores. Tal não aconteceu comigo. Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude. Um dia dei com meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. (Rubião 1999: 7). Seu surgimento, sem fecundação, gestação, nascimento, história pregressa, configura o primeiro aspecto sobrenatural do texto, que não é questionado no nível textual, sendo aceito perfeitamente como verdade. O ex-mágico era uma pessoa que não encontrava a menor explicação para sua presença no mundo (Rubião 1999: 7).
Vida à fora, sem querer, distraído, o ex-mágico vai cumprindo o ofício não escolhido: Às vezes, sentado em algum café, a olhar cismativamente o povo desfilando na calçada, arrancava do bolso pombos, gaivotas, maritacas. As pessoas que se encontravam nas imediações, julgando intencional o meu gesto, rompiam em estridentes gargalhadas. Eu olhava melancólico para o chão e resmungava contra o mundo e os pássaros. (Rubião 1999: 9)
A impossibilidade de decidir sobre suas ações, não conseguindo controlar seus dotes mágicos, que se manifestam a despeito de sua vontade, representa um segundo aspecto sobrenatural no texto. O ex-mágico, em suas próprias palavras, vivia uma situação cruciante e estava enfastiado do ofício. Mas nada podia fazer, e concluiu que somente a morte poria termo ao seu desconsolo. O narrador-personagem tentou matar-se de todo jeito. Criou leões que o comessem, mas os leões não lhe devoraram e, por fim, imploraram para que o ex-mágico os fizesse desaparecer: - Este mundo é tremendamente tedioso (Rubião 1999: 10). Jogou-se de um ponto alto da serra, mas, ao cair no ar, viu-se amparado por um pára-quedas (Rubião 1999: 11). Levou uma arma ao ouvido, mas, ao puxar o gatilho, não veio o disparo nem a morte: a máuser se transformara num lápis (Rubião 1999: 11). O ex-mágico não tinha controle sobre suas vontades, sobre seus atos. Sua existência era uma constante negativa. A verdade do que se espera, representada como expectativa, é negada durante todo o texto, e nada lhe é posto no lugar, senão que seu contrário, como se pode concluir pelo desabafo do ex-mágico: Rolei até o chão soluçando. Eu, que podia criar outros seres, não encontrava meios de libertar-me da existência (Rubião 1999: 11). Optando por um lento suicídio metafórico, ao empregar-se numa Secretaria de Estado e transformar-se em funcionário público - Ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos poucos (Rubião 1999:11) -, o ex-mágico viu, novamente, negarem-se suas esperanças: Não morri, conforme esperava. Maiores foram as minhas aflições, maior o meu desconsolo (Rubião 1999: 12). Insatisfeito com sua existência, o narrador-personagem sofria: O pior é que, sendo diminuto meu serviço, via-me na contingência de permanecer à toa horas a fio. E o ócio levou-me a revolta contra a falta de um passado. Por que somente eu, entre todos os que viviam sob os meus olhos, não tinha alguma coisa para recordar? Os
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meus dias flutuavam confusos, mesclados com pobres recordações, pequeno saldo de três anos de vida (Rubião 1999: 12).
O ócio, por ele apontado, representação da ausência de ter o que fazer, corresponde à negativa de suas intenções. Desocupado, ele se apaixona por uma colega de Secretaria, e isso também acaba por o afligir: Como me declarar à minha colega? Se nunca fizera uma declaração de amor e não tivera sequer uma experiência sentimental! (Rubião 1999: 12). Tudo nele e para ele sob o signo da negativa, da impossibilidade. Ameaçado de demissão e sem a correspondência da amada, desespera-se: 1931 entrou triste, com ameaças de demissões coletivas na Secretaria e a recusa da datilógrafa em me aceitar. Ante o risco de ser demitido, procurei acautelar meus interesses. (Não me importava o emprego. Somente temia ficar longe da mulher que me rejeitara, mas cuja presença me era agora indispensável.) (Rubião 1999: 12).
Decide, então, recorrer aos seus antigos dotes de mágico. Vai ao chefe, questiona sua demissão alegando ter estabilidade por ter mais de dez anos de serviço e tenta sacar dos bolsos da calça um papel que comprove sua alegação: Para lhe provar não ser leviana a minha atitude, procurei nos bolsos os documentos que comprovariam a lisura do meu procedimento (Rubião 1999:13). Mais uma vez a negativa se lhe interpôs no caminho: Estupefato, deles [dos bolsos] retirei apenas um papel amarrotado - fragmento de um poema inspirado nos seios da datilógrafa (Rubião 1999: 13). E só coube ao ex-mágico admitir e lastimar: Tive que confessar minha derrota. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia (Rubião 1999: 13). Daí em diante, o narrador-personagem, insatisfeito ainda e novamente, procura reencontrar seus antigos dotes, mas não os recupera. Às vezes se ilude, acreditando estar, distraidamente, como nos tempos anteriores, executando uma mágica sem querer. Mas não passam de ilusões que se lhe pregam as negativas de suas vontades: Não me conforta a ilusão. Serve somente para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico (Rubião 1999: 13). O mágico, o estranho, o sobrenatural, o maravilhoso, o inexplicável povoam a narrativa, sem, contudo, estarem sob a égide da dúvida, dos questionamentos. Aceitos e incorporados, aqueles aspectos não promovem ou sugerem leituras desviantes, ainda que se admita um humor causticante, com intenções paralelas à significação primeira do texto. A verdade não aparece aceita, questionada ou pluralizada, mas negada sempre, pondo-se em seu lugar a marca do contrário ou da ausência significativa. Uma melancolia, um mal-estar no mundo, um desejo mórbido frente à vida sem razão e explicação, uma frustrante angústia pela existência desancorada inundam a narrativa, inebriada por um leve ar gótico de terror e medo, um certo lugar comum de leitura fácil, porém enganadora. Em “Um chinche durme no teito”, de Méndez Ferrín, o narrador-personagem relata suas inquietações vivendo em uma pensão para estudantes em Compostela.
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O mal-estar no mundo, percebido como não aprazível para a existência do personagem, aparece representado ao longo do texto e marca logo seu início: A pensión Miguez é escura e sórdida. Unha ducia de estudantes pasamos o dia deitados en camas notablemente estreitas. Polo regular cheira a suor. Santiago está cheo de pensións desta especie. O teléfono está moi preto da porta do meu carto. Podo ouvir todo o que cospen os hóspedes no micro. Poucas veces é algo de interes. Moi poucas veces os 5 ou 6 milleiros de estudantes mollados, aballoados e malditos, que enchen as ruas de Compostela, teñen algo interesante que decir (Méndez Ferrín1991: 74).
A melancolia diante da vida, incômoda e incomodativa, ecoa na incessante chuva que cai, às vezes em dueto harmônico com o sino da catedral: Leva un mes chovendo. Leva un mes marcando, a campa da catedral, un tempo submarinho, lento e baleiro (Méndez Ferrín 1991: 73). A morbidez se faz presente tanto nas referências aos já esperados suicídios de estudantes: Todo Santiago comenta a tardanza do suicidio. (...) Os habitantes da cidade das negras pedras saben que non hai ano en que o estudante de turno, amolecidos e devecido-los nervos, non faga elegante lazada no pescozo ou diseñe, no ar gris, descontrolados pés e brazos, a figura do triste boneco de trapo, segundos antes de bater nas lousas xeadas da rua (Méndez Ferrín 1991: 73).
quanto nas alusões à morte não chorada da mãe do narrador-personagem: O outro día, eu, que son individuo de excepción, recebin a noticia de que tina morto a miña nai. Por de pronto fiquei solprendido. Erguín vivamente de cachola, coma un galo. “Agora - dixen eu pra min - vou sentir unha door profunda”. Agardei un pouco. Nada. Non sentía nada. Asustei-me e repetinme que eu amaba fondamente á miña nai. Pero nadiña, non sentía nin res. Eu son un fulano que non sinte a morte da súa única nai. Hai tres días que recebín a noticia da morte da miña nai (Méndez Ferrín 1991: 74).
A negação das expectativas representa-se nitidamente na reação, ou na ausência delas, que o narrador-personagem tem quando sabe da morte da sua mãe. Ainda que esperasse sofrer, chorar, botar-se de luto, conforme também esperam os leitores virtuais, ancorados no senso comum, ele não consegue corresponder ao esperado e incomoda-se com isso: Onte mesmo. Entrei no Fanny's, un bar de moda. Pedín viño na barra. Sentáronse ao meu carón ises tipos de lentes e traxe escuro que sempre xorden ao dobrar um anco, na Facultade, e que levan na face a marca imborrábel do antigo seminarista. Comenzaron a falar das natillas. Dixo que a súa nai as preparaba moi bem. Recollín a indireita. Eles ian de traxe escuro, cáseque negro. Eu com grande lazo rubio, con pintiñas brancas.
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E a eles non lles norrera a nai (Méndez Ferrín 1991: 74).
O sobrenatural, também aceito e não questionado no nível textual, tem seu ponto de culminância no final da narrativa: “É formidábel. Leva chovendo unha chea de meses e a iauga xá chega ao terceiro piso. (...) A iauga chega ao terceiro piso e non para de chover. (...) Dinme conta de que a iauga chegaba cáseque até o balcón. (...) Como a iauga chega até o terceiro piso, é decir, até o meu balcón, pódome botar tranquilamente, que sei nadar ben. (...) Non sei como non se me tem ocurrido endenantes botarme a rua pólo balcón. Chegando como chega a iauga ate enriba de todo” (Méndez Ferrín 1991: 78).
A estratégia narrativa adotada por Méndez Ferrín não leva o narrador-personagem nem os leitores a questionarem o estatuto de verdade dos fatos narrados. Também não sugere outras leituras para além da primeira e superficial. Nesse sentido, o texto ferriniano aqui apresentado é menos complexo que o rubiniano. Nele se vêem marcas semelhantes aquelas apontadas na narrativa de Murilo Rubião, sendo a negação sua marca mais destacável. V. As narrativas de Murilo Rubião e Méndez Ferrín aqui apresentadas guardam traços estéticos comuns entre si, estando, ambas, no universo das representações não referenciais da realidade exterior ao texto, com a incorporação de intervenções sobrenaturais ou estranhas aceitas pacificamente. São, todavia, modelos estéticos não filiados ao Maravilhoso, ao Fantástico, ao Estranho nem ao Realismo-Maravilhoso. Esses textos não referenciam uma verdade aceita e incorporada por fazer parte do imaginário da época, como acontece no Maravilhoso; não apresentam a verdade prisioneira do embate entre a razão lógico e o sobrenatural, como se dá no Fantástico; não revitalizam a verdade lógica, dando explicações racionais para acontecimentos aparentemente sobrenaturais, como é o caso do Estranho; nem desentronizam a verdade única, apresentando-a como plural e multifacetada, conforme acontece no Realismo-Maravilhoso. Eles incorporam o mal-estar da humanidade, o sentimento melancólico frente a um mundo inexplicável, a inquietação mórbida do homem contemporâneo, o caráter esfacelador e esfacelado da pós-modernidade. Representam a negativa frente ao estatuído e a busca de outros sentidos que não estão, não se encontram e talvez nem existam. Problematizam o fim dos tempos, dos valores, das verdades. São modelos paradigmáticos que possibilitam circunscrever um outro gênero literário no conjunto das expressões pós-modernas, seguindo na esteira do Maravilhoso, do Fantástico, do Estranho e do Realismo-Maravilhoso, mas deles distinto.
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As crônicas de Carlos Drummond de Andrade - que somam milhares - constituem-se num corpus dos mais significativos para o conhecimento da pluralidade de usos do português do Brasil. Diferentemente de um Mário de Andrade, Drummond não teorizou sobre a linguagem literária nem se aplicou à criação de um dialeto literário; diversamente de um Guimarães Rosa, também não subverteu a sintaxe nem se emaranhou no território da inventividade lexical, a não ser esporadicamente. De fato, assumindo uma atitude que antes o aproxima de Manuel Bandeira, investiu fecundamente na experimentação dos gêneros de composição, e, valendo-se da elasticidade conceitual do gênero que chamamos de crônica, adotou o autorecomendado viés gauche1 (Andrade 1979: 70) para, com timbre não raro machadiano, captar e exprimir o desconcerto da existência. Justamente em um poema dedicado a Machado de Assis, com quem partilhava inquietações relativamente à realidade e à linguagem que a traduz, escreveu Drummond: Todos os cemitérios se parecem, e não pousas, em nenhum deles, mas onde a dúvida apalpa o mármore da verdade, a descobrir a fenda necessária; onde o diabo joga dama com o destino, estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro, que revolves em mim tantos enigmas. (Andrade 1979: 348-350)2
Voltarei mais adiante a comentar um aspecto deste poema. Por ora, quero abrir um parêntese para juntar algumas idéias sobre o lugar da palavra na conceituação do que costumar chamar de 'natureza humana'.
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Poema de sete faces
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A um bruxo, com amor
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JOSÉ CARLOS DE AZEREDO
Para a maioria das pessoas, falar é uma experiência tão natural e óbvia quanto ver, ouvir e respirar. Poucos se dão conta da especificidade desse meio de relacionamento social no conjunto dos seres 'que de alguma forma se comunicam com os de sua espécie'. Salvo alguma descoberta extraordinária que a ciência pode estar-nos reservando para qualquer momento, a verdade é que a finalidade das formas de comunicação praticadas no universo não-humano se esgota na satisfação dos imperativos de autopreservação biológica. No caso dos homens, a comunicação transcende a dimensão biológica, pois pertence ao domínio da história e da cultura. A literatura, no seu sentido mais amplo de criação de mundos através da palavra, é, com certeza, o mais contundente testemunho dessa transcendência. Mas, se na aventura da busca de autoconhecimento, manifesta na ciência, tanto quanto nas artes e nas religiões, o homem já respondeu cabalmente a um grande número de indagações sobre sua natureza, sua aptidão para o uso da palavra, porém, permanece, sob muitos aspectos, um mistério. O filósofo Jean-Jacques Rousseau, que viveu na França durante o século XVIII, escreveu certa vez que é necessária muita filosofia para alguém observar com atenção aquelas coisas que vê todos os dias. Curiosidade, paciência, sensibilidade são, com certeza, aptidões humanas que nos ajudam a descobrir a singularidade de cada uma de nossas experiências quotidianas. Mas esses atributos encontram um poderoso adversário na agenda de deveres e no ritualismo dos gestos que o contrato social nos impõe. Este tende a padronizar nossas relações com os outros e com as coisas, tornando uniformes nossos atos, previsíveis nossas respostas e superficiais as percepções que compartilhamos. Os padrões de conduta a que nos submetemos como condição da vida social e de nossa inescapável herança histórica acabam por invadir nossa cabeça e por influir em nosso modo de ver, de conhecer, de agir e de ser. Assim, o “mundo” em que vivemos tende a ser percebido e assimilado como “coisa natural” - e não como criação histórica -, tende a ser aceito como produto de leis da natureza -, e não como resultado de decisões políticas e ações sociais tomadas e praticadas pelo próprio homem. Entre essas experiências que, não obstante culturais e históricas, modelam o ser humano, está a sua linguagem. Inocentemente, como vimos anteriormente, quase sempre acreditamos que ela não passa de um 'mero meio de comunicação', um instrumento útil, uma ferramenta maleável e prática. Mas a linguagem desempenha uma variedade de tarefas que transcende o perfil utilitário das ferramentas. Vivenciar a linguagem apenas em sua dimensão instrumental condena-nos à atitude ingênua de confundi-la com a própria realidade, de identificar palavras e coisas, na medida em que se passa a confiar cegamente na serventia instrumental das palavras. Com um pouquinho de filosofia, como preconizou Rousseau, pode-se perceber que a aparência de simples serventia da linguagem é apenas uma de suas astúcias, e seguramente seu disfarce mais falacioso. E quem pode negar que essa descoberta, essa certeza é, justamente, a chave da compreensão do fenômeno que chamamos POESIA? Com efeito, a relação do homem com a cultura pode se dar de dois modos fundamentais: em um deles, a palavra é mero instrumento que substitui as coisas e idéias, confunde-se com a realidade e inspira ao homem absoluta confiança; no outro, o homem passa a suspeitar que a palavra é, antes de tudo, uma máscara versátil em feições colada na face das coisas.
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Estes modos não dizem respeito apenas à evolução da humanidade, mas estão presentes na história pessoal dos indivíduos, constituindo modos de estar no mundo em qualquer época, em qualquer sociedade. Diríamos que, no primeiro modo, o homem se representa como peça de uma engrenagem movimentada por leis próprias e imutáveis; os enigmas do mundo lhe são apresentados como manifestações do sagrado, em textos cuja legitimidade se sustenta no mistério da autoria e na aura da tradição: lendas e mensagens do além, mandamentos e parábolas vocalizados por profetas, enigmas segredados por aparições, etc. O segundo modo corresponde ao ingresso do homem na dimensão da Filosofia. Ele desconfia da palavra e perde a inocência. Suspeita que sob as feições se esconde um rosto, mas sabe que é impossível surpreendê-lo livre das artimanhas da máscara. A suspeita da separação entre verdade e linguagem arma o homem com o mais fértil e arrasador instrumento de transformação da realidade: a dúvida. A fonte de sua orientação no mundo deixa de ser a divindade, o rei, o oráculo, para ser ele mesmo; potencializa-se sua imaginação, ele deixa de copiar os objetos do mundo; cria-os e os recria. O testemunho dessa diversidade de papéis da palavra percorre, portanto, toda a história cultural do homem desde que ele provou o fruto da sabedoria. O reconhecimento de que ela não é um simples veículo de significados - já que ela também cria significados - é a razão da existência dos artistas da palavra (poetas, filósofos, oradores, romancistas, publicitários). A Filosofia e as Artes não poderiam deixar de compartilhar o território em que esse fato se ilustra em toda a sua extensão e fecundidade. Cito a esse respeito trecho de um ensaio de Edward Lopes: O discurso artístico tem uma função claramente conscientizadora. A arte, de fato, lida não com o imaginário, mas, sim, com a realidade, através do imaginário; pois a imaginação não nasce das nuvens - ela é, ao contrário, o modo pelo qual nos apropriamos do real, da experiência nossa ou alheia, reconstruindo-a como um saber pessoal. O discurso artístico tem sempre essa função conscientizadora. Seu objetivo é pôr o homem na realidade, colocá-lo de frente para o seu mundo, diante de si mesmo e dos outros homens, no seu aqui e agora. (Lopes 1993: 31)3.
Na Literatura, a palavra, mais que um meio de dizer, torna-se com freqüência o próprio tema (Paz 1991:136)4 : Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. (Andrade 1979: 147-8)5
3
Cf. o ensaio O texto literário e o texto de massa e o ensino da língua portuguesa.
4
Este é o traço característico da modernidade nas Artes, segundo Otávio Paz: “O olhar maravilhado do artista se desdobra no olhar inquisitivo e introspectivo. Essa atitude crítica se bifurca em duas direções: crítica da sociedade e crítica da linguagem.” 5
O Lutador.
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Ainda que 'vã', porque desigual, a luta é tragicamente inevitável, um imperativo da condição humana: a palavra está entranhada em nós. Expressão ambígua da presumida natureza social do homem, a palavra o revela mesmo quando ele a utiliza para dissimular o que pensa ou esconder o que sente. Instrumento impuro que passa de boca em boca, de mão em mão, moeda desgastada de instável valor, a palavra usa a rotatividade e fluidez como armas da luta: Luto corpo a corpo, luto todo o tempo, sem maior proveito que o da caça ao vento. Não encontro vestes, não seguro formas, é fluido inimigo que me dobra os músculos e ri-se das normas da boa peleja. (Andrade 1979: 147-8)6.
É certo que a confissão de impotência do poeta é um fingimento, como diria seu companheiro de oficio, Fernando Pessoa. Mas não é menos certo que ela resume um estado de consciência crítica que todos os que lidam profissionalmente com a palavra deveriam cultivar. A denúncia dessa dúbia natureza da palavra, aliada e adversária, resume a tensão que moverá o poeta pelos meandros da língua, a buscar, no 'reino das palavras', a resposta à pergunta “Mas que coisa é (o) homem” (Andrade 1979: 338)7 .
No poema A um bruxo com amor, de que citei um trecho, Drummond aplica a Machado, justamente - e como se estivesse falando de si próprio -, os adjetivos alusivo e zombeteiro, que dão conta de um certo estilo desconfiado e escorregadio de lidar com o mundo. A realidade expressa na literatura não é um reflexo das coisas do mundo; antes, ela é fruto de uma transfiguração operada pela palavra. Se a palavra não é uma ponte que põe o homem em contato com o mundo, mas um espaço em que o mundo se converte em sentido para os homens, a solução para um projeto de 'conhecer o mundo' é ir ao encontro da palavra, resistindo à comodidade de se deixar instrumentalizar por ela; travar com ela um corpo-acorpo, olhar nos seus olhos, fazer-se íntimo e cúmplice dela para desentranhar de seu seio os sentidos que a 'arte da palavra' pode produzir.
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O Lutador.
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Especulações em torno da palavra homem.
LUGARES DA LÍNGUA NA CRÔNICA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE.
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A trajetória do poeta O itinerário poético de Drummond - posto em prática na poesia como na prosa literária - ilustra exemplarmente na literatura brasileira a certeza de que é preciso pesquisar e experimentar múltiplos meios de verbalizar nossa experiência do mundo, ou, dizendo melhor: é preciso multiplicar as experiências de mundo mercê da multiplicidade de fontes da palavra. Essa obsessão reflete o temperamento de um artista antenado com a vertiginosa dinâmica das relações entre a palavra e a fugidia e complexa variedade de situações e necessidades comunicativas e expressivas da sociedade. O seguinte comentário de Mário Chamie, embora relativo à produção poética de Drummond, sintetiza essa percepção da crítica, que se aplica também à crônica: O seu mundo é a ambigüidade direta das coisas e dos acontecimentos. A sua linguagem desenvolve a lição desses acontecimentos e dessas coisas. Por isso, Drummond é participante de livro a livro, segundo a situação a que cada livro corresponde. (...). Na ordem, porém, de toda a sua perspectiva, a presença daquela ambigüidade direta das coisas e dos acontecimentos é a sua constante. E essa ambigüidade se perfaz no contraponto e no jogo dúplice permanente de sua poderosa sintaxe, no seu afirmar-negando (Brayner 1977: 256)8. Esse perfil filia Drummond à mesma linhagem de Machado de Assis, que, mesmo sem se afastar do código gramatical padrão de sua época, mas negaceando a seu modo diante da ordem estética vigente, rompeu com a tradição literária e fundou um estilo de lidar com o discurso literário que antecipa a modernidade. É machadiana a irônica constatação do funcionário público que tenta, em vão, trabalhar no dia em que o ponto na repartição era 'facultativo': “o verdadeiro sentido das palavras não está no dicionário; está na vida, no uso que delas fazemos” (Andrade 1979: 1088-9)9.
Enquanto vários poetas, contistas e romancistas buscaram nos usos regionais e caracteristicamente populares o traço de brasilidade de suas linguagens, incorporando-os numa dicção accessível a um público mais amplo, Drummond textualizou, sobretudo nas crônicas, a versatilidade, a mobilidade e a diversidade do universo linguageiro do país. Nada lhe escapou: o coloquial ou o solene, o dialógico ou o monológico, o usual e o técnico, o passageiro e o permanente, o antigo e o contemporâneo, o regional e o nacional. Seu percurso literário é marcado pela diversidade temática e pelo pluralismo de expressão. Ele é um típico herdeiro das formas cultas tradicionais da escrita literária, tendo-as praticado sempre que lhe pareceu oportuno e pertinente, sem prejuízo, entretanto, do proveitoso e fecundo acolhimento das formas coloquiais da língua, tanto urbanas quanto regionais. Obviamente, é nesta abertura para o coloquial que sua escrita incorpora e registra a fraseologia, a sintaxe e o léxico brasileiros. Se sua produção inicial - exemplarmente expressa em Alguma Poesia, seu livro de estréia surgido em 1930 - inscreve-o nas fileiras modernistas:
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PTYX, o Poeta e o Mundo.
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Facultativo.
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A família mineira / está quentando sol / sentada no chão / calada e feliz. / O filho mais moço / olha para o céu, / para o sol não, / para o cacho de bananas. / Corta ele, pai. / O pai corta o cacho / e distribui pra todos. (Andrade 1979: 95)10.
Os livros publicados no transcurso dos anos 50 - Claro enigma, 1951; Fazendeiro do ar, 1954 e A vida passada a limpo, 1959 -, após a experiência da temática social dos anos 40, reúnem poemas em que sobressaem os temas existenciais: o espaço social do encontro e do conflito dos homens (Sentimento do mundo, 1940, e A rosa do povo, 1945) dá lugar ao convívio com conflitos interiores, numa atitude reflexiva, ensimesmada Ganhei (perdi) meu dia. / E baixa a coisa fria / também chamada noite, e o frio ao frio / em bruma se entrelaça, num suspiro. // E me pergunto e me respiro / na fuga deste dia que era mil / para mim que esperava / os grandes sóis violentos, me sentia / tão rico deste dia / e lá se foi secreto, ao serro frio (Andrade 1979: 321)11.
Temos então uma escrita em tom ordinariamente solene, talhada para os temas universais e atemporais, que, por sua vez, encontram o justo figurino em formas de composição vazadas em sintaxe clássica e vocabulário não raro precioso, como a elegia e o soneto: Sombra mantuana, o poeta se encaminha ao inframundo deserto, onde a corola noturna desenrola seu mistério fatal mas transcendente: àqueles paços tecidos de pavor e argila cândida, onde o amor se completa, despojado da cinza dos contatos. Desta margem, diviso, que se esfuma, a esquiva barca, e aceno-lhe: Gentil, gentil espírito sereno quanto forte, que me ensinas a arte de bem morrer, fonte de vida, uniste o raro ao raro, e compuseste de humano desacorde, isento, puro, teu cântico sensual, flauta e celeste (Andrade 1979: 313)12.
Trata-se do poeta amadurecido no processo de incorporação e superação do ideário modernista, ora cortejando a tradição lírica, ora repelindo-a, ora renovando-a.
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Sesta.
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Elegia.
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Viagem de Américo Facó.
LUGARES DA LÍNGUA NA CRÔNICA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE.
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A crônica - um gênero singular Referi-me anteriormente à natureza da crônica. Tendo surgido na transição da Idade Média para o Renascimento como registro da história e da vida dos reis, e tendo-se tornado, a partir do século XIX, o gênero preferido dos autores literários integrados à atividade jornalística que então se expandia, a crônica se transformou no gênero elástico propício à aliança entre a temporalidade da notícia e a imprevisibilidade do fazer literário. “O cronista está sujeito ao burburinho da informação cotidiana, trazida pelo próprio jornal para o qual devolverá matéria que lhe serviu de suporte ou de pretexto”, segundo o justo comentário de Antônio Dimas (Bilac 1996: 17)13. Prefaciando a coletânea intitulada Boca de Luar, Fausto Cunha assim caracterizou a recepção da crônica na comunidade leitora: Gênero supostamente menor, a crônica é lida por um público infinitamente maior que o do romance ou da poesia, um público que se renova sem cessar. Gênero dito efêmero, atravessa galhardamente os anos, e até os séculos, assumindo funções que se sucedem, como as de distrair, informar, testemunhar, documentar, fixar a evolução do escritor e da língua, o espírito da época (Andrade 1988: 3)14.
E o próprio Drummond, respondendo certa vez à acusação de frivolidade, resumiu o espírito da página que escrevia para o jornal: ...tenho certa prática em frivoleiras matutinas, a serem consumidas com o primeiro café. Este café costuma ser amargo, pois sobre ele desabam todas as aflições do mundo, em 54 páginas ou mais. É preciso que no meio dessa catadupa de desastres venha de roldão alguma coisa insignificante em si, mas que adquira significado pelo contraste com a monstruosidade dos desastres. Pode ser um pé de chinelo, uma pétala de flor, duas conchinhas da praia, o salto de um gafanhoto, uma caricatura, o rebolado da corista, o assobio do rapaz da lavanderia (Andrade 1988: 199-201)15.
O espaço do jornal requer do cronista um compromisso com o tempo presente sem, contudo, lhe impor o dever de dar notícias. O cronista é um cidadão de seu tempo num sentido mais elástico, que lhe dá liberdade de converter fatos em matéria de reflexão e comentário, de se valer das experiências pessoais e de toda sorte de conhecimentos para discorrer sobre o que lhe pareça oportuno, e de se propor, perante seu leitor, a uma gama variada de atos comunicativos, de preferência em tom de conversa. Referindo-se à prática do gênero a partir do Modernismo na literatura brasileira, Arrigucci Jr. viu nela “um meio de mapear e descobrir um país heterogêneo e complexo, largamente desconhecido de seus próprios habitantes...” (Arrigucci Jr. 1987: 63)16. Esmiuçando esta avaliação, acrescenta: 13
Introdução ao livro Vossa Insolência.
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Prefácio ao livro Boca de Luar.
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O frívolo cronista.
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Fragmentos sobre a crônica.
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É assim que uma consciência mais abrangente do país passa a reger o espírito da crônica modernista. Por isso, muitas vezes ela se volta para o passado colonial, retomando sua antiga forma histórica para recuperar retalhos da memória da nação. Por isso ainda, outras vezes lembra a voz do narrador oral, já fugidia no meio urbano, contando histórias de outros tempos, tentando resgatar uma experiência a caminho de se perder para sempre. E, ao mesmo tempo, é ela o registro dos instantâneos da vida moderna, das novidades avassaladoras, dos rápidos acontecimentos, dos encontros casuais, dos estímulos sempre chocantes do cotidiano das grandes cidades, frutos da aceleração do processo de urbanização e industrialização da década de 30 (Arrigucci Jr. 1987: 63)17.
Que lugares a linguagem ocupa nas crônicas de Carlos Drummond de Andrade? A proposta que faço é bastante simplificadora, mas pode ser um ponto de partida para uma reflexão. Entendo que Drummond lhe confere três status principais: o de instrumento, o de etiqueta e o de objeto. É claro que esta distinção não se aplica privativamente a Drummond, mas nele tem uma pertinência exemplar. A função instrumental está no uso da palavra como meio de expressão da matéria relatada, seja ela uma estória, uma reflexão ou análise, uma cena construída como diálogo. Digamos que este é o caso da escrita em que Drummond assume a autoria do discurso e responde pela linguagem - sintaxe, vocabulário e estilo - que adota. A língua aí utilizada reúne os traços da variedade culta padrão, ordinariamente exposta nas chamadas gramáticas normativas, sendo, ela própria, fonte de abonações do padrão culto. Enquadram -se amplamente nesta categoria as crônicas de Fala, amendoeira e Cadeira de balanço. Testemunham-se nesta classe textos em tom elevado, de linguagem formal e cerimoniosa, e textos em tom coloquial, variação que é ditada pelo ponto de vista do enunciador e pela imagem que ele faz do assunto. Crônica exemplar nesta categoria é “O viajante”. Um dos mistérios do Natal é caberem nele tantas festas: a religiosa, a familial, a infantil, a popular e mesmo a agnóstica, dos que não apreendem o divino e entretanto o celebram. E todas essas comemorações se fazem em dois planos: o Natal exterior e o interior se interpenetram, mas não se confundem. Assistimos à festa nas ruas, nas casas, nas igrejas, participamos dela, mas promovemos em nós outra festa, ou tentamos promovê-la, calados, até melancólicos. Será o Natal solidão em busca de companhia? (Andrade 1979: 1192)18.
Outro exemplo interessante pela mistura de níveis de linguagem é “Os olhos”, crônica incluída no livro Caminhos de João Brandão. Trata-se do registro de uma paixão platônica, possivelmente inspirada pelos olhos de alguma atriz de cinema. Este texto é construído inicialmente em tom elevado, numa costura de clichês medievais:
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Fragmentos sobre a crônica. O viajante.
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Em tempos que se esgarçam na neblina dos tempos, conheci uma bela moça, a quem dediquei meus afetos. Servi-a como servem cavaleiros: sem ambição de paga espiritual, que da material jamais o impuro pensamento ousaria visitar-me (Andrade 1985: 76-77)19,
e no compasso da idealização de um mito. Passados os anos, e tendo mudado os sentimentos do cronista: Olhava menos para suas imagens; ou olhava e não via o que vira antes. Não era o tempo que passara no rosto, era eu mesmo que não me via no meu passado, (Idem ibidem)20.
O esvaziamento da imagem mitificada é registrado numa linguagem prosaicamente coloquial: Aí ela sentiu que a coisa tinha mudado, e em 1960 apareceu por aqui com ar de quem não queria nada. Segundo me confidenciou um seu íntimo, era para bulir comigo (Idem ibidem)21.
O que, por outro lado, chamo função de etiqueta é a propriedade que tem o discurso de permitir a apropriação de uma outra voz por parte do narrador-autor, a fim de conferir máscaras seja a um outro narrador que o assume temporariamente, seja a um personagem que fala no texto, seja a um enunciador-tipo, geralmente identificado por um perfil institucional. Neste caso, a responsabilidade dos traços de linguagem é desse narrador, personagem ou enunciador-tipo. É exemplar dessa transferência, para um segundo narrador, o seguinte relato de um pescador: Como estava lhe dizendo. De tanto viver assuntando o rio para ver se tem jacaré, a gente acaba tendo parte com a água, conhece o que ela esconde, sabe o que ela quer dizer. Rio não engana, mesmo se toma cautela de esconder no barro o que é de esconder. Mas pros outros é que esconde, não pra quem nasceu junto dele e carece viver dele (Andrade 1977: 49)22.
O caso de transferência para um enunciador-tipo é exemplificado pela crônica “O que você deve fazer”: Consuma aveia, como experiência, durante 30 dias. Emagreça um quilo por semana sem regime e sem dieta. Livre-se do complexo de magreza, usando Koxkoax hoje mesmo. Procure hoje mesmo nosso revendedor autorizado. Economize servindo a garrafa-monstro de Lero-Lero.
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Os olhos. Os olhos. Os olhos. 22 Jacaré de papo azul. 20 21
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Ganhe a miniatura da garrafa de Lisolete. Tenha sempre à mão um comprimido de leite de magnólia. (Andrade 1979: 1181-2)23.
Por fim, o papel de objeto é assumido pela linguagem nas crônicas cujo assunto é a própria palavra. Esta categoria reúne um expressivo número de textos, via de regra intermezzos metalingüísticos construídos como enumeração ou listagem de casos, de exemplos, de situações. Neles Drummond exercita com certa volúpia o gosto pelo repasse lúdico do que lhe parece excentricidades ou gratuidades da linguagem, verdadeiros desafios à crença de que a palavra é um instrumento de comunicação e de compreensão entre as pessoas. Estes exercícios metalingüísticos não são comuns até Cadeira de balanço e Fala, amendoeira. Neste último, encontram-se duas crônicas - “Facultativo”, já aqui mencionada, e “Anúncio de João Alves” - que prenunciam os trabalhos que comporão mais tarde o grupo a que nos referimos a seguir. A primeira aborda o descompasso entre o significado dicionarizado de certas palavras e o valor consagrado no uso; a segunda, a muitos títulos primorosa (ver apêndice), é testemunho do próprio autor sobre as qualidades do estilo. É, no entanto, só a partir de Caminhos de João Brandão que as crônicas dessa categoria vão proliferar (“Para um dicionário”, “O outro nome do verde”, “A eterna imprecisão de linguagem”, “Antigamente”, “Exercícios de/sem (?) estilo”). Em O poder ultrajovem, “O que se diz” e “Nhemonguetá”. Em De notícias & não notícias faz-se a crônica, “Entre palavras”, “Excelências”, “Modos de xingar”, “O outro”, “O verbo matar”. Em Os dias lindos, nada menos que catorze crônicas se acham agrupadas em subseção que se intitula O homem e a linguagem: “O homem, animal exclamativo”, “O homem, animal que pergunta”, “O homem no condicional”, “O homem e suas negativas”, “Dizer e suas conseqüências”, “As palavras que ninguém diz”, “Conversa na fila”, “Prazer em conhecê-lo”, “Olá, mestre”, “Caso de seqüestro”, “O clube da ilusão em Felisburgo”, “A flor e seu nome”; “Zarandalha” e “Despedida de cordel”. Em Boca de luar, “A estranha (e eficiente) linguagem dos namorados”, “Ilhas de Minas, no vôo das palavras”, “Bob e o dicionário”, “A moça disse: alto lá!”, “Em ida, em ada”. Em Moça deitada na grama, “A boca, no papel”, “O que dizem as camisetas”, “Do beijo verbal”, “Em forma de orelha”, “Os animais e a linguagem dos homens”, “Indígete, que é?”, “Os etcéteras da vida”, “Tem a palavra o nobre deputado”. A atividade de Carlos Drummond de Andrade como cronista dialoga todo o tempo com seu ofício de poeta maior no espaço literário brasileiro do século XX. Como nenhum outro, captou o desconcerto da existência nos flagrantes do quotidiano, e o exprimiu com a graça que apaga as fronteiras entre o lúdico e o lírico. Fez do embate com a palavra, mais que um ofício, um modo de ser e de estar no mundo. Poeta ou cronista, testemunhou e registrou seu tempo convertido em palavra, e como palavra o oferece ao futuro.
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O que você deve fazer.
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Apêndice ANÚNCIO DE JOÃO ALVES Figura o anúncio no jornal que o amigo me mandou, e está assim redigido: À PROCURA DE UMA BESTA A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas seções em conseqüência de um golpe, cuja extensão pode alcançar de 4 a 6 centímetros, produzido por jumento. Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio, é muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas todas as indagações. Quem, pois, apreendê-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notícia exata ministrar, será razoavelmente remunerado. Itambé de Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. (a) JOÃO ALVES JÚNIOR
55 anos depois, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitério do Itambé. Mas teu anúncio continua modelo no gênero, senão para ser imitado, ao menos como objeto de admiração literária. Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. Não escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condição rural. Pressa, não a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e só a 19 de novembro recorreste à Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagações. Falharam. Formulaste depois o raciocínio: houve roubo. Só então pegaste da pena, e traçaste um belo e nítido retrato da besta. Não disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste dizê-lo “de todos os seus membros locomotores”. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa divisão da crina em duas seções, que teu zelo naturalista e histórico atribuiu com segurança a um jumento. Por ser “muito domiciliada nas cercanias deste comércio”, isto é, do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que não teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, não o afirmas em tom peremptório: “tudo me induz a esse cálculo”. Revelas a prudência mineira, que não avança (ou não avançava) aquilo que não seja a evidência mesma. É cálculo, raciocínio, operação mental e desapaixonada como qualquer outra, e não denúncia formal. Finalmente - deixando de lado outras excelências de tua prosa útil - a declaração positiva: quem a apreender ou pelo menos “notícia exata ministrar”, será “razoavelmente remunerado”. Não prometes recompensa tentadora; não fazes praça de generosidade ou largueza; acenas com o razoável, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues. Já é muito tarde para sairmos à procura de tua besta, meu caro João Alves do Itambé; entretanto essa criação volta a existir porque soubeste descrevê-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e alguém hoje a descobre, e muitos outros são informados da ocorrência. Se lesses os anúncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. Já não há essa precisão de termos e essa graça no dizer, nem essa moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo, esse amor à tarefa bem-feita, que se pode manifestar até mesmo num anúncio de besta sumida (Andrade 1979: 1115-6).
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Referências bibliográficas
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A MANEIRA DE PRESENTACIÓN: LINGUA E LITERATURA COMO SIGNOS DUN PROCESO Francisco Salinas Portugal
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A MANEIRA DE PRESENTACIÓN: LINGUA E LITERATURA COMO SIGNOS DUN PROCESO.
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A História da Galiza entre os séculos XIX e XX é a historia da construción do discurso identitario nacional, é o tempo de elaborar os referentes que permitiron visualizar a nación como un construto cultural cos procesos de identificación dunha realidade que se elabora a partir dunha vontade de ser. A Galiza como nación-en-construción (para utilizarmos unha expresión asente para se referir a contextos pós-coloniais, mais que ao apresentar a nación como proceso é, do meu ponto de vista, perfeitamenta válida e esclarecedora para o caso galego), esa construción, dicía, centrouse, de maneira notábel, na reivindicación da lingua e na constitución dun discurso literario; lingua e literatura eríxense asi nas balizas da nación, no espazo onde a nación se constrúe e se proxecta, os signos dun proceso con vocación de universalismo e desexo de pervivencia. Os traballos galegos reunidos neste volume 2 de Estudos responden na súa variedade de obxectivos e de metodoloxías, a esa intencionalidade ao tempo que pretenden estabelecer un elo coerente cos xa publicados no primeiro volume (Estudos Galego-Brasileiros, Rio de Janeiro, H.P. Comunicação, 2003). Na súa variedade creo que presentan ao estudioso, un friso do campo literario galego nos séculos XIX e XX; un período en que ese campo se viu submetido a diferentes tensión que se resumirían en dúas: autonomía do campo galego a respeito do español, autonomía do literario a respeito do campo do poder. Na complexidade destes procesos reside a vontade de procurar unha identidade (ou mellor diríamos, de construíla). Con efeito, inclúense aqui reflexións de carácter teórico como a miña propia (A literatura galega e os contornos da identidade), centrada en temas da constitución do grupo letrado e das estratexias que ese grupo debe activar para conseguir a autonomía do grupo ao que pertence, nun “proceso lento e cheo de dificultades en que os intelectuais deben comezar primeiro por se tornaren “visíbeis” para ter acesso á “simples existência literaria e para lutar contra a invisibilidade que os ameaça de imediato, criando as condições do seu ‘surgimento’, isto é, de sua visibilidade literária”. Mas tamén se reflite sobre a necesidade de difinir a nación que sinten os intelectuais ou da lingua como capital simbólico porque “desprovista dun peso económico evidente, carente dun capital político en que poder alicerzar as súas reivindicacións, a Galiza do século XIX e primeiras décadas do XX só posuía un
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capital simbólico que soubo utilizar sabiamente para autonomizar o seu campo literario a respecto do campo literario español, así como para facer xirar en boa medida á volta da lingua o proceso de autonomización do campo literario (no sentido que lle dá Bourdieu)”.
A identidade como tema de reflexión e de investigación, como horizonte para explicar moitos discursos políticos, literarios, culturais en definitiva, tense erixido nas últimas décadas en motivo recorrente que non pode quedar fóra do discurso politicamente correcto do suxeito público sexa el escritor, político ou comunicador en xeral. Ora ben, o discurso da identidade leva ao espazo da literatura como lugar privilexiado onde aquela se manifesta, onde as varias identidades que constitúen o individuo se constrúen, sexan elas as identidades de xénero, raza, etnia ou a máis abranxente, identidade cultural, todas elas colocadas na tensión das respectivas polaridades: Para algunos nuestra heterogénea constitución cultural sólo puede conciliarse en la literatura, la concertadora por antonomasia de las identidades antinómicas (Yorkievich 1986)
Como consecuencia do principio enunciado, o que nos interesa é marcar como o discurso da identidade se revela, por tanto, nas literaturas, nomeadamente nas chamadas emerxentes, porque “la literatura es, al mismo tiempo, causa y efecto de la identidad nacional” (Ainsa 1986: 40). Tamén teórico é o traballo de Carme Fernández Pérez-Sanjulián (A literatura de viaxes nos contextos de emerxencia literaria: o caso galego) onde a autora se centra nun tema que ten levantado grandes reflexións teóricas e que nos contextos de emerxencia se reveste de pariculares problemas na definición nacionalitaria e na instrumentalización do discurso literario, para alén das cuestions especificamente xenérica, pois como indica a autora, “Na nosa opinión, unha grande parte do problema radica, para alén da habitual confusión entre a viaxe como tema literario e a literatura de viaxes, no feito de que nos atopamos ante un xénero de problemática delimitación. En primeiro lugar, polo seu carácter fronteirizo, a medio camiño entre a consideración como xénero narrativo ou como xénero ensaístico, en parte creación (nestes textos componse un discurso claramente literario a partir dos lugares, persoas ou institucións coñecidos ao longo do percurso viaxeiro) e, en parte, ensaio, en moitos casos moi condicionado polo seu carácter didáctico e/ou informativo. Pódese afirmar, pois, o carácter compósito destes textos, mestura de información e reflexión, relato pormenorizado e concesión aos excursos confesionais, descrición e, á vez, expresión da subxectividade”.
Efectivamente, a viaxe como tema institúese como a grande metáfora da nación que se desloca (emerxe) de un simbólico non-ser para a existencia onde será recoñecida: Mais tamén a literatura de viaxes non fai mais do que pór de manifesto a existencia dun individuo que se desloca no espazo e no tempo á procura dunha identidade que vai construindo nesa deambulación e no descobremento que toda viaxe implica. O artigo de X.R. Freixeiro (A emerxencia da conciencia lingüística (galego-portuguesa-brasileira) en Murguía e Castelao) reflexiona sobre dúas figuras sobrenceiras da his-
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toria galega, “ambos (…) fundamentaron a emerxencia da conciencia lingüística na proxección do galego non só en Portugal senón tamén no Brasil, argumento de que se serviron para o tentaren prestixiar”; o traballo de Murguía e a súa aportación tentan ratificar a existencia dunha personalidade diferenciada. Para o autor, Murguía é o ponto central (e non só en termos temporais) dunha liña de pensamento que no que di respecto ao idioma arrincaría en Sarmiento no séulo XVIII e continuaría na primedira metade do século XX en Castelao. A ese respecto é curioso verificarmos, tal e como indica o profesor Freixeiro, a mesma evolución que no discurso de Murguía ten a consideración do galego, primeiro como dialectro e logo como idioma “A respecto de Castelao, en primeiro lugar - di o autor- cómpre subliñarmos que para el a lingua non é un simple medio de comunicación entre as persoas, senón a principal institución social e o compoñente básico da nación (…), organicamente unido a unha cultura (…) e fonte inesgotábel de obras de arte”.
O traballo de Xosé Manuel Sánchez Rei (A emerxencia da lingüística galega no século XIX) enlaza e complementa o anterior, sistematizando os traballos que ao longo do século XIX foron feitos no proceso de construíren unha lingua culta e capaz para calquera ámbito de comunicación, como indica o autor, “Aínda que desde o século XVIII se viñan sentindo algunhas voces, como a do Padre Sarmiento, que subliñaban a necesidade de que se estudase a lingua galega, vai ser desde mediados do XIX cando esas reivindicacións se fagan máis habituais, a exporen argumentos distintos (e ás veces contraditorios) entre si, mais, en todo o caso, ponderando a necesidade de que se realizasen traballos con tales finalidades. Así as cousas, como produto desa sensibilidade cara ao país e aos seus sinais de identidade, de que a lingua é un deles, na segunda metade do século XIX van aparecer as primeiras gramáticas e dicionarios, que, aínda a teren unhas finalidades ben distintas entre si e unha moi desigual valía científica, constitúen a cerna da reflexión sobre o idioma propio da Galiza”. Sánchez Rei coloca de forma sistemática os contributos que no ambito das gramáticas e dos dicionarios e outros estudos lexicográficos foron construindo o discurso gramatical galego no século XIX, facendo propias as palabras finais deste ensaio: “abundantes ou escasos, diglósicos ou non, de maior ou menor rigor filolóxico, acertados nas súas impresións ou totalmente inacaídos, todos os traballos […] constitúen o nacemento do noso discurso gramatical e da nosa lexicografía. Sabéndomolos superados con moito polos títulos modernos, o que é produto dunha preparación por parte dos autores e autoras que non se puidera dar antes, coidamos que se non debe renunciar a ese legado, por escaso ou irrelevante que pareza, pois sen eses iniciais traballos dificilmente existirían na actualidade as gramáticas e os dicionarios modernos”.
O traballo de Pilar Garcia Negro (Ensino e realidade: de Sarmiento a Castelao. A importancia do ensino como peza fundamental da institucionalización galega na contemporaneidade) sitúase nunha reflexión que ten moito que ver coa fixación do campo literario, así como na construción e alargamento / difusión das ideas nacionalitarias. Efectivamente, todo grupo letrado autoinstituído como núcleo simbólico da nación, precisa alargar a súa área de
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influencia, ocupar todo o espazo da nación previamente deseñada e nada como a escola para poder difundir e asentar esa nova idea de nación e, en consecuencia da nova sociedade, dita nacional. A autora repasa as ideas pedagóxicas do Pde. Sarmiento, que no que se refere ao ensino, como a tantas outras cousas foi un pioneiro no período da Ilustración, e o seu facho en defensa dun ensino galeo será retomado pola xeración Nós, particularmente por Viqueira, o primerio pedagogo galego do século XX para podermos concluir, como di García Negro, que, en referencia a Ensino e realidade, “Antano, o primeiro elemento do binomio existía mesmamente para negar e lexitimar a subordinación do segundo. Hoxe, o binomio cambiou, en boa medida, mais aínda non se acadou a mudanza de sistema, por moito que teña cambiado o rexime”. Laura Tato adéntrase no seu texcto (Unha novela de formación: Intres, de Luis Manteiga.) nunha figura case descoñecida na historiografía literaria galega, mais que significou no seu momento unha vontade de renovación, nomeadamenter no seu teatro, nada neglixenciábel. O artigo de Laura Tato continúa o publicado no volume I destes Estudos, e fala-nos dunha case decoñecida obra narrativa que para a autora pode apresentar diferentes lecturas: “nunha segunda lectura, Intres é unha novela de formación, a novela da autobiografía afectiva e ideolóxica dun dos integrantes da xeración das Vangardas. Aceptándomos que a narrativa é a creación dun outro mundo e que se caracteriza por representar unha secuencia de eventos, Intres constitúe a secuencia de eventos que constrúen o home Luís Manteiga, mais non na súa biografía física e vital, senón na súa configuración espiritual e emocional; de aí os contidos evanescentes e ondeantes, en que, ás veces, a narración acaba disolvida en reflexión filosófica e metafísica”.
Por último, o traballo de Carlos Paulo Martínez Pereiro (Da palabra á (cali)grafia en Uxío Novoneyra: Influencias interculturais e afluencias plástico-escriturais) continúa na preocupación do autor, que xa ven de antigo, por relacionar comunicación verbal e visual, texto plástico e texto escrito; para iso céntrase nun escritor galego na segunda metade do século XX, neste período que eu propio denominei do 3º momento emerxente. Martínez Pereiro recorre para o seu estudo á reflexión sobre a obra dun poeta como Novoneyra dificilmente clasificábel na historia literaria moderna da Galiza e que para o estudioso é paradigmático desa síntese do plástico e do visual: “A impronta da visualidade e da plasticidade asociadas á creación lírica trespasan a poesía de Novoneyra case desde os seus comezos nos anos ’50. A produción desa década viu a luz no courelán e excepcional poemario Os eidos (Vigo, 1955) e na edición bilingüe galegocastelán de Elegías del Caurel y otros poemas (Madrid, 1966). Ora ben, vai ser coa aparición do volume Os eidos 2 (1974), axeitadamente presidido coa epígrafe de Libro de olladas que o subtitula, e, noutro sentido complementar, cos Poemas caligráficos (Madrid, 1979), que a omnipresenza do gráfico e a importancia do ollar comecen a adquirir unha máis do que relevante entidade”.
A MANEIRA DE PRESENTACIÓN: LINGUA E LITERATURA COMO SIGNOS DUN PROCESO.
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Como conclusión, gostaría de subliñar a importancia que estes estudos podan ter para unha mellor comprensión do fenómeno literario galego desde o período emerxente situado no século XIX e a actualidade en que moitos dos principios que nortearon a produción dos séculos XIX e XX se manteñen ainda operativos e convidannos a confrontar a cultura galega e a súa literatura desde a perspectiva dunha emerxencia literario-cultural que é correlato da difícil emerxencia política.
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1. Introdución Aínda que desde o século XVIII se viñan sentindo algunhas voces, como a do Padre Sarmiento, que subliñaban a necesidade de que se estudase a lingua galega, vai ser desde mediados do XIX cando esas reivindicacións se fagan máis habituais, a exporen argumentos diferentes (e ás veces contraditorios), mais, en todo o caso, ponderando a necesidade de que se realizasen traballos con tales finalidades. Así as cousas, como produto desa sensibilidade cara ao país e cara aos seus sinais de identidade, de que a lingua é un deles, na segunda metade do século XIX van aparecer as primeiras gramáticas e dicionarios, que, aínda a teren unhas finalidades ben distintas e unha moito desigual valía científica, constitúen a cerna da reflexión sobre o idioma propio da Galiza. Ao longo destas páxinas, pois, imos expor algúns dos trazos máis representativos desas obras, redixidas nun dos momentos históricos máis relevantes para a rexeneración cultural, política, social e lingüística do país, como é o Rexurdimento. Mais, antes de nos centrarmos nas gramáticas e dicionarios do século XIX, quereriamos salientar que aos seus autores ben lles acae a expresión de García Negro (2001: 94) “solitarios solidarios”, que a profesora da Universidade da Coruña aplica ás escritoras e aos escritores decimonónicos e en especial a Valentín Lamas Carvajal: trátase duns autores solitarios, porque detras dos gramáticos e lexicógrafos decimonónicos non houbo organismos públicos, institucións, facultades universitarias, academias etc., que, mercé a un determinado tipo de orzamentos, posibilitasen que saísen do prelo todos eses contributos; e son, igualmente, autores solidarios, porque, quitando algunha excepción, o que os moveu para levaren a cabo eses labores foi, precisamente, o seu amor polo país e pola súa lingua, sempre en distintos graos e sempre matizábel, mais querenza en todo o caso. 2. As gramáticas É punto asente afirmarmos que os estudos lingüísticos galegos que “conforman a nosa tradición gramatical son historicamente escasos e en xeral pouco relevantes”, como sinala Freixeiro Mato (1998: 32). A causa principal, a colonización española da Galiza, fixo que as nosas gramáticas fosen serodias e diglósicas, e non só por estar redixida en español boa parte delas, como a totalidade das do século XIX, mais porque en case todas, incluídas as escritas
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en galego no primeiro terzo da centuria seguinte, o castelán está sempre presente como lingua con que se faceren as comparacións. Así se pon de manifesto a teor das seguintes citacións extraídas dalgunhas das obras que conforman a nosa tradición gramatical no século XIX: El alfabeto gallego consta de las mismas 28 letras del castellano, cuya pronunciación alfabética es enteramente igual á la de este idioma [sic], con la sola diferencia de que los gallegos las hacen indistintamente masculinas o femeninas, vr. Gr. Un a unha a, etc. (Cuveiro Piñol 1868: 1). AZO, OTE, ON. -Aumento de la significación del primitivo. Son, como en castellano, las terminaciones de los aumentativos; pero con la diferencia de que aquí los sustantivos de terminación femenina, toman al hacerse aumentativos, la desinencia feminia ona, en vez de la masculina on que en el castellano, menos lógico, atribuye a muchos de ellos (Saco Arce 1868: 45).
Máis un elemento característico da tradición gramatica galega, en harmonía co exposto máis arriba, é a súa demora ao comparala con outras nacións e idiomas: as linguas veciñas teñen as súas primeiras gramáticas arredor do século XVI, mais a nosa debe agardar até á segunda parte do XIX. Por orde cronolóxica, aparecen neste século os traballos de Mirás (1864), Saco Arce (1868), Cuveiro Piñol (1868) e Valladares (escrito en 1892 mais só editado en 1970). Para alén destas obras, tamén foron publicándose opúsculos en traballos doutras finalidades, como certa sorte de apéndices ou prólogos a determinados textos literarios; deste modo, aínda que estritamente non fan parte da tradición filolóxica galega, non podemos deixar de citar os contributos de Fernández Morales (1861) ou Martínez González (1883), así como certos artigos que saían do prelo grazas ás revistas rexionalistas da altura dedicadas a cuestións máis xerais. Outrosí, debemos ponderar os proxectos dunha gramática e dun vocabulario que pretendía desenvolver J. Rodríguez Seoane, que nunca se puideron materializar, como indica Hermida (1992a: 239), “por unha morte prematura”. Noutra orde de cousas, o retraso no aparecemento das primeiras gramáticas se confrontadas coa situación doutras linguas é o que explica, aliás, a súa descontextualización a respecto do que se viña facendo nalgúns países da Europa. Como indica Henríquez Salido (1986: 447), cando Mirás publica o seu Compendio, en 1864, había xa moitos anos que Grimm ou Humboldt levaban traballando en diversos ámbitos de estudo lingüístico cunha metodoloxía superior á adoptada polo autor galego, sen nos esquecermos de que na segunda metade do XIX tamén son editados algúns dos contributos de Schleicher ou Hermann Paul. Mais a Galiza non podía dedicarse ao estudo do sánscrito, ás variacións lingüísticas históricas ou mesmo a comparar as linguas indoxermánicas cando o seu idioma comezaba a ser obxecto de reflexión con catro séculos de retraso. Saco Arce, no entanto, amosa coñecer en certa medida o que se estaba a facer no continente, baixo as orientacións do comparativismo e do historicismo, e así o parece insinuar, conforme sinala Henríquez Salido (1986: 453), cando o presbítero indica a conveniencia de poder confrontar varias linguas: “No es mi ánimo con esto excitar al abandono ó descuido del majestuoso idioma castellano, el cual lejos de perder, ganaria mucho con el estudio y comparación de los dialectos afines”. (Saco Arce 1868: VII).
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Máis un trazo relevante é o feito de presentaren, segundo Freixeiro Mato (1998: 33), un notábel “carácter normativo, explicábel pola necesidade de fixación dun modelo lingüístico” común perante o abandono xeral en que a lingua se achaba na época en que saíron do prelo; e explicábel tamén “pola ausencia de institucións académicas encargadas de velaren pola pureza lingüística, ou pola ineficacia destas -Real Academia Galega (1906)- cando foron creadas”. Porén, á parte desa vontade normativa, o certo é que os coñecementos existentes sobre o galego non foron quen de marcaren fronteiras precisas entre algúns eixos elementares da especulación científica dedicada á lingua, como é o caso dos conceptos variedade común / variedade dialectal, ou estilo coidado / estilo informal ou mesmo correcto / incorrecto etc. Tales parámetros, hoxe fundamentais para unha análise gramatical rigorosa, son con frecuencia obviados nas obras do século de que estamos a falar e, non raro, aparecen casuísticas morfolóxicas de certa transcendencia xeográfica a carón doutras minoritarias ou laterais (adverbios deícticos tipo aquí / eiquí en Saco Arce), fenómenos da lingua popular xunto a trazos da lingua coidada (frases feitas ou proverbios recorrentes na oralidade espontánea), españolismos ocorrendo ao lado de formas autóctones (tempos compostos con haber en Cuveiro Piñol, por exemplo) etc. Doutro lado, unha das cousas que máis chama a atención á persoa que consulta hoxe en día a tradición gramatical galega decimonónica, e mesmo a dunha parte do século XX, é a inclusión de determinados aditamentos ou acrecentamentos, tales como os nomes dos meses do ano, escolmas literarias, vocabularios de diversa índole etc. Máis unha vez, este carácter miscelánico é explicábel polas circunstancias históricas que determinaron a redacción e a preparación lingüística dos autores, e todos eles parecen pretender proporcionar, segundo o noso punto de vista, unha perspectiva do galego máis ampla alén da estritamente lingüística, tal vez coa vontade de ilustraren, exemplificaren ou dignificaren aquilo que tencionaban describir. No caso do Compendio de Mirás o seu título fala xa de si propio: Compendio de gramática gallega-castellana, con un vocabulario de nombres y versos gallegos y su correspondencia castellana, precedido de unos diálogos sobre diferentes temas. Un grandioso poema de 100 octavas titulado “La creación y la redención”. Un extracto de Fábulas de los mejores fabulistas así como algunas del autor. Pouco de compendio gramatical ten este traballo a repararmos en que o contido estritamente lingüístico ocupa ben poucas páxinas, pois logo figura o antedito e minúsculo vocabulario (pp. 39-50), seguido dunha listaxe de verbos traducidos ao español (pp. 51-56) e concluído cunha sorte de diálogos, alén doutras composicións literarias de escasa valía artística. Outro exemplo ao respecto é o de Saco Arce, que non foi alleo á incorporación de aditamentos á súa gramática, aínda que esta sexa, en rigor, a primeira obra realizada con seriedade sobre a lingua. Deste modo, no apartado dos “Apéndices” (Saco Arce 1868: 261-313) figura unha selección de refráns galegos e unha serie de textos literarios dos autores da altura, tales como Rosalía de Castro, Eduardo Pondal, Alberto Camino, Xoán Manuel Pintos, Marcial Valladares etc. Unha das diferenzas que presenta en relación a Francisco Mirás é a maior cualidade literaria dos textos que se publican, o que é coherente coas dimensións científicas de cada traballo respectivo; a este respecto, non se pode deixar de ponderar que certos textos que figuran escolmados na obra de Saco constitúen as únicas reproducións que se deles conservaron, o que contribúe a subliñarmos esta circunstancia.
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Por outro lado, as gramáticas galegas do XIX presentan unha xeral ausencia de contido epistemolóxico, o que resulta fácil de entender tamén a termos en conta, en primeiro lugar, o feito da precaria preparación filolóxica da maior parte dos seus autores; neste sentido Saco Arce é a feliz excepción, pola súa preparación académica e polo rigor de que pretendeu dotar a súa obra, base das gramáticas posteriores, mais Francisco Mirás, Cuveiro Piñol e Marcial Valladares son, en xeral, exemplos do contrario. E en segundo lugar, as gramáticas decimonónicas, como consecuencia da concepción diglósica que encerran, prescinden das cuestións teóricas máis elementares, dando por asente que é desde o español desde onde se deben explicar e procurando subliñaren o diferencial con relación a aquel. Así, a única definición de gramática que achamos no século XIX é a de Valladares (1970: 11), quen incide no clásico concepto de arte de falar e de escribir correctamente: “Gramática gallega es el arte de hablar y escribir correctamente en gallego por medio de letras, cuyas diferentes combinaciones forman las sílabas de que se componen las palabras”. Unha outra característica das obras dadas a lume no século XIX vénnos dada pola súa escasa socialización, feito que está determinado pola ausencia da lingua en ámbitos como a igrexa, a administración, a xustiza, a escola etc. Non existindo o galego neses contextos, é perfectamente lóxico presupormos que a implantación e o coñecemento de tales textos ficase restrito a uns poucos eruditos, escritores ou cenáculos ilustrados, sen que desen chegado ao pobo, que vivía en xeral á marxe de toda a especulación lingüística sobre o único idioma que falaba. Subsecuentemente, só uns poucos estaban ao tanto das publicacións que ían saíndo do prelo sobre a lingua, cal Antonio de la Iglesia, quen en 1886 indicaba o que segue: Publicáronse Diccionarios gallego-castellanos, primero el de Francisco Javier Rodríguez, editado por nosotros con la Galicia, año de 1863; en 1864 publicó Francisco Mirás su Gramática, uniendo a ella su Vocabulario […]. En 1876 Juan Cuveiro Piñol, y en 1885 Marcial Valladares imprimieron sus Diccionarios respectivos. Dióse á luz la Gramática gallega de Juan Saco y Arce en 1868, y en el mismo año El Habla gallega, observaciones y datos sobre su origen y vicisitudes, por Juan Cuveiro Piñol” (Iglesia 1977: 259).
O pobo que conservou a lingua (labregos, mariñeiros e artesáns) continuaba a ser educado, cando tiña a rara ocasión de estudar, nun novo idioma que non era o seu e que axía tamén como factor de alienación. É unha situación paralela á que se producía cos escritores e escritoras da (re)ermerxente literatura galega, pois eran conscientes de que o mundo camponés e mariñeiro non sería capaz de ler as súas composicións, como moi ben expuña Rosalía no seu prólogo a Follas Novas; nese texto preludial, a poeta amósase sabedora de que os receptores da súa obra non eran os nosos labregos e pescadores, mais outra caste de colectivos sociais: Creerán algús, que, porque, como digo, tentey falar d’as cousas que se poden chamar homildes, é por que m’esprico n’a nosa lengoa. N’é por eso. As multitudes d’os nosos campos tardarán en lêr estos versos, escritos á causa d’eles, pero sô en certo modo pra eles” (Castro 1982: XXVII-XXVIII).
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Mais se o pobo non puido ter acceso aos estudos gramaticais, nos reducidos sectores en que si se podía acceder a eles tamén non transparecen as súas influencias. Un seguimento dos textos dos nosos escritores clásicos evidencia que, en xeral, non tiveron en conta as indicacións que os diferentes autores de gramáticas ían proporcionando a través dos seus traballos. En consecuencia, continuaron a escribir como xulgaban máis oportuno ou máis acorde co que sentían por ‘lingua galega’, aínda que cara ao final do século XIX comeza a se detectar o influxo duns autores noutros, ou certas tendencias hiperenxebristas para afastaren o galego do español ou mesmo a recorrencia ao portugués como fonte de acrecentamento lexical interno á lingua etc. Por outro lado, cando máis arriba nos referiamos a que os precursores do estudo do galego poderían ser chamados “solitarios solidarios”, estabamos a pór de relevo o difícil que tivo de resultar para eles abriren un camiño até entón inexistente. Mais é posíbel que tamén lles deba ter sido moito complexo encetaren un labor que foi albo de críticas por parte dalgúns sectores, o que sen dúbida contribúe, se perspectivados desde hoxe, a notarmos e a valorizarmos o seu traballo aínda que poida ser cientificamente pouco rigoroso. Na nómina de detractores do movemento de rexeneración política, cultural, social e lingüística do país coñecido como Rexurdimento, houbo algúns que negaron a posibilidade de se elaborar unha gramática, incidindo propositadamente nunha certa diversidade dialectal do galego e subliñando ese variacionismo xeográfico como forte impedimento ao respecto. É o caso de Joaquín de Arévalo, autor dun artigo publicado en Galicia. Revista Regional, nº. 7, no ano 1888, de que extraemos a seguinte citación: De aquí toman pie algunos publicistas para exigir una gramática oficial, única y suprema [...]. Quieren que se legisle lo ilegislable; que se reglamente el vicio; planchar lo desgarrado para darle visualidad. Pensando, con razón, que los regionalistas de las otras provincias deseen lo mismo, vamos á llenar el mundo de gramáticas, cuando una para cada nación es lo suficiente, después de bien escrita y de bien sabida. Escuelas, es lo que hace falta que no gramáticas sensibles de una lengua que solo es un adorno [...]. ¡Ah!... respeto que se conserve el gallego como un monumento de cariño; como se coserva el latín, por conveniencia, y el griego, que nadie habla, como un manantial etimológico; pero no le alcemos gramáticas; dejémosle que viva descuidado y abandonado á si mismo, que así será más bello. No le sujetemos al compás del arte y de las pretensiones, no le pongamos ligaduras pedagógicas, y dejémosle que brote espontáneo y puro, tosco y selvático, lleno de ignorancia, de buena fe y de mimo (tirado de Hermida 1992b: 347-348).
Noutra orde de cousas, prestándomos atención agora a cada traballo respectivo, o galego reflectido no traballo de Mirás corresponde ao da comarca de Santiago de Compostela. Iso é o que explica a presenza de seseo, da gheada e doutros fenómenos dialectais característicos da zona. No referente a esta cuestión, Henríquez Salido (1986: 451) salienta o feito de que na rexión compostelá debían de ter vixencia formas hoxe pouco ou nada usuais na mesma área pola abatanaxe do español, tales como vermello, dor, cuarta feira, quinta feira e o sufixo -són. Mais, na realidade, pouco se lle pode pedir a este contributo, ora polo seu escuálido rigor, ora polas finalidades que persegue, as cales, conforme declara o autor, non son outras do que facilitar a comprensión entre o mundo tradicional, galegofalante, e os sectores que empregaban a nova lingua, en canto o idioma propio do país non desaparecese como sintoma de progreso cultural e político:
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muchos al oir hablar á un labriego no le pueden entender, segun lo que haremos ver palpablemente en los diferentes diálogos que sobre varios asuntos se pondrán en el presente Compendio, nos hemos determinado darlo á luz á fin de que pueda comprenderse este idioma, que así como el Vascuence, Catalan, Asturiano y otros tiene sus peculiariares locuciones, mientras no llegue un tiempo en que la civilación que allana las mayores dificultades, nos haga así como formamos una sola nacion, también de un mismo lenguaje. A la verdad es cosa rara que en un mismo reino se observen diferentes dialectos tales que los mismos nacionales no pueden entender (Mirás 1864: [6]).
A gramática de Saco Arce, a primeira verdadeiramente merecente de tal nome pola súa estrutura, conforme Freixeiro Mato (1998: 34), comprende todas aquelas partes dunha forma ou doutra presentes nas gramáticas. Tales partes son desenvolvidas amplamente de acordo cunha estrutura lóxica a través das 245 páxinas que compoñen a parte gramatical, á marxe dos apéndices. Contén o vocalismo e consonantismo, lexioloxía ou tratado das palabras, sintaxe, prosodia e ortografía. A obra do presbítero ourensán foi durante moito tempo a fonte por que foi coñecido o galego en ámbitos e circuítos especializados do país e para moitas persoas interesadas na lingua foi a referencia máis preclara das poucas que había sobre a nosa realidade lingüística. Un ilustrativo expoñente desa predicación témolo no compilador do Cancionero popular gallego, José Pérez Ballesteros, antigo mestre e amigo persoal de Saco Arce, quen segue fielmente as indicacións que aparecen na Gramática; o colector, que coñecía bastante ben a realidade da lingua dada a súa dedicación e interese pola literatura tradicional, apunta a rodapé comentarios, explicacións, particularidades gramaticais etc., moitas delas inspiradas directamente no texto de Saco Arce. Por exemplo, é coñecida a clásica distinción dialectal por parte do relixioso de Toén dun galego setentrional e dun meridional, que é, aínda que imprecisa, a primeira de todas cantas houbo aplicadas ao galego; pois ben, o maxisterio de Saco é evidente na súa total asunción por parte de Pérez Ballesteros cando dedica unhas palabras ao variacionismo xeográfico do idioma no Cancionero, publicado entre os anos 1885 e 1886: Una de las diferencias que separan los sub-dialectos gallegos es la n en lugar de la u. El sub-dialecto septentrional dice hirmán, man, chan, y los plurales en uns, cans; mientras que el meridional prefiere decir hirmau, mau, chau ó chao, us, cas (Pérez Ballesteros 1979, I: 38, n. 1).
Un segundo e último exemplo da preitesía científica do folclorista compostelán en relación coa obra de Saco é o que se pode expor a respecto do dígrafo
para a representación da nasal velar, xa que di o autor da Gramática gallega: La h de unha y sus compuestos algunha, ningunha, representa la pequeña aspiración ó esfuerzo que es preciso hacer para impedir que la n forme sílaba con la a. Tiene el mismo oficio que el espíritu suave de los griegos, que impedía que la vocal inicial de una palabra se juntase en la pronunciación con la letra final de la palabra anterior (Saco Arce 1868: 26, n. a).
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E repárese no que Pérez Ballesteros, case con idénticas palabras, comenta sobre o antedito dígrafo, en que se fica ben explícita a súa fundamentación en Saco Arce: La h de unha, algunha, ningunha, representa la pequeña aspiración que es preciso hacer para impedir que la n forme sílaba con la a. Hace el oficio del llamado espíritu de los griegos, que impedía que la vocal inicial de una palabra se juntase, en la pronunciación, con la letra final de la palabra precedente (Pérez Ballesteros 1979, I: 57, n. 2).
Mais a obra mesmo ultrapasou as propias fronteiras do país, xa que serviu de base a unha considerábel parte da romanística para o seu achegamento ao galego ou mesmo como información básica en relación a este. Neste sentido, son dignas de nota as informacións que achega Vasconcellos (1928, 1985, 1987) referidas á nosa lingua, alicerzadas nas indicacións do relixioso de Toén, cando estuda a linguaxe rexional e popular lusitana, e tamen é significativo que o apéndice de J. Cornu á súa obra Grammatik der Portugiesieschen Sprache, dedicado ao galego e que foi publicado en varios números do Boletín de la Real Academia Gallega ao longo de 1906, se basease precisamente na Gramática gallega de Saco Arce; así o declara o investigador alemán, mercé á tradución que fixo da súa obra Fernando Martínez Morás: “he tenido en cuenta la excelente Gramática Gallega de Juan A. Saco Arce, publicada en Lugo en 1868” (Cornu 1906: 7). Porén, a valía e a consideración que despertou o estudo de Saco Arce non se limita á circunstancia de ser utilizada por investigadores doutros países europeos, xa que o texto enforma un precioso documento sobre a situación gramatical do galego na altura, en especial o da rexión de Ourense, zona en que naceu o seu autor. Aínda que en toda a lingua non coincide con exactitude a prescricion / descrición do sistema coa oralidade común, a proximidade entre a fala e o que aparece reflectido ou comentado ao longo das páxinas da Gramática é notábel. Tal característica non se trata dun acaso, mais dunha propositada fundamentación en que se baseou Saco Arce; adiantándose aos seus presumíbeis detractores, indica que a súa principal fonte de información provén do galego oral: Los últimos [os seus eventuais críticos], finalmente, extrañarán tal cual palabra, alguna locución, algún giro sintáxico que sonarán á sus oídos como enteramente exóticos. A estos contestaré que ninguna locución, ningún giro he consignado aquí que no haya repetidas veces escuchado de labios de nuestros aldeanos [...]. Por la escasez de escritos, me fué preciso apoyarme casi solamente en la escrupulosa observación del lenguaje hablado (Saco Arce 1868: X).
Canto á obra de Cuveiro Piñol, presenta dúas partes ben diferenciadas: unha primeira referida á orixe e formación da lingua galega e unha segunda (“Analogía”) que contén un pequeno compendio gramatical de 38 páxinas (incluíndo o alfabeto, as vogais, as consoantes, os ditongos, analoxía, declinación do artigo, o nome, numerais, pronomes, verbos, adverbio, preposición, conxunción, interxección e unha páxina dedicada á sintaxe). En xeral, a fortuna histórica do traballo de Cuveiro Piñol ficaría apenumbrada pola obra de Saco Arce, moito mellor estruturada e dun maior nivel científico. Aínda así, non faltaron comentarios ou recensións en rotativos da época en que se parabeniza ese traballo; é o caso do pontevedrés El
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Buscapié, nº. 93 (8.2.1868), publicación en que un artigo anónimo lle dedica unhas liñas a subliñar o acerto do antedito estudo: Para Galicia, pues, la obra del Sr. Cuveiro tiene una importancia de primer orden, porque mientras tanto carezca nuestro país de una historia y de una gramática escritas, con razón nos tendrán en menos Cataluña, Vizcaya y Asturias que tanto cultivan su lengua y literatura provinciales [...]. No dude, pues, el Sr. Cuveiro, que á los ojos de todas las personas que en algo aprecian las letras de España tendrán mérito sus trabajos, y de su afición á estos estudios nos prometemos que en esta ocasión tendrá El habla gallega un hábil apreciador de su estructura, sus reglas y vicisitudes por que ha pasado (tirado de Hermida 1992b: 95-96).
Finalmente, o traballo de Marcial Valladares, datado en 1892 mais inédito até 1970, comeza coa fonética e ortografía (alfabeto, ditongo, sílabas, monosílabos, apóstrofo), continúa coa morfoloxía (a parte máis desenvolvida, a incluír o xénero, número, casos, artigo, nome substantivo, adxectivo, pronome, verbo, adverbio, preposición, conxunción e interxección), prosegue cunhas páxinas dedicadas á sintaxe e termina, como a de Saco Arce ou a de Mirás, cuns aditamentos de diversa natureza (días da semana, meses, nomes de persoas, textos literarios etc.). A estrutura da obra é, se comparada coa de Saco Arce, irregular, e por ese motivo se ten dito dela, tendo tamén presentes as irregularidades sintácticas que se detectan no texto, que máis do que unha gramática propiamente dita son uns apuntamentos, aínda non prontos para se publicaren (Santamarina 1974: 194). Doutra parte, o que percibe Marcial Valladares como xenuinamente galego confronta co que entendía Saco Arce, que puxo atento ouvido á oralidade dos camponeses do seculo XIX. Talvez sexa o autor da Estrada o que máis ten en conta o español como modelo sobre o cal ten de se basear o galego, circunstancia que se manifesta cando critica trazos característicos da lingua por non existiren no idioma imposto. Citaremos como ilustración só dous exemplos: en primeiro lugar, cando se refire ao infinitivo flexionado, trazo típico do sistema lingüístico galego-portugués, Valladares (1970: 53) maniféstase coas seguintes palabras, en que deosta esta particularidade gramatical por a considerar redundante: Esta conjugación, especie de futuro imperfecto de subjuntivo, creémos que ni es precisa, ni debe aconsejarse [...]. Quitemos á los infinitivos de estos verbos su terminación en y los ejemplos aducidos dirán, significarán lo mismo, pero de una manera más pura, más correcta.
E en segundo lugar, ao comentar as construcións transitivas direccionais formadas co verbo ir + prep. en (Vai na vila; Van na casa dos avós; etc.), decláraas como incorreccións sempre condenábeis; o seguinte fragmento, para alén de ser ben explícito a respecto desa particularidade lingüística, revela tamén a areoenta preparación do autor: Los gallegos, si no todos, muchos decimos: vai á Santiago; vai à vila; vai à feira; vai à romaría; vai ò muíño [...]. Y también vai en Santiago; vai n’a vila; vai n’a feira; vai n’a romaría; vai n’o muíño. Lo primero, supone que la persona, de quien se hable, piensa ir, salir, ó camina á uno de los puntos indicados; pero que no há llegado todavía: lo segundo,
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supone que há llegado ya, que está allí. En el primer caso, no hay defecto del lenguaje; en el segundo si lo hay y consiste en tomar un tiempo por otro y una preposición por otra; pues si la persona, de quien se hable, há llegado á uno de dichos sitios, si está allí ¿como hemos de poder decir que vá, cuando este vá, ó vai es tiempo presente? El pretérito, ó pasado, es el tiempo que debe usarse y decir há ido, no en, sino á, preposición que en este caso rige el verbo ir. Mas, como el gallego, por carecer de tiempos compuestos, no tiene equivalente para há ido y, de emplear el pasado perfecto foi = fue, dá á entender que la persona há regresado, lo que no es su ánimo significar; de ahí que lo mejor, en casos tales, es valerse de otros verbos, decir, por ejemplo, marchóu á...; saèu pra... (Valladares 1970: 111).
3. Os dicionarios A segunda metade do século XIX vai coñecer tamén a publicación dos primeiros dicionarios galegos, que presentan, conxuntamente coas gramáticas, certas características derivadas do percurso histórico do país e dos factores que condicionaron ese percurso. Unha delas é o seu aparecemento tardío en relación ás linguas do noso contorno, demora tamén explicábel pola situación lingüística en que se sobreviviu o galego. Xa desde a época da Ilustración se viña notando a necesidade de o idioma contar con este tipo de traballos lexicográficos, como demandaba o Padre Sarmiento (Pensado 1974: 27-30). Neste sentido, pois, acudíndomos ao caso do portugués, do inglés, do francés ou do alemán, constrasta como até antigas colonias europeas contaban xa desde moito atrás con dicionarios: Santamarina (2001: 8) cita o caso dos Estados Unidos da América e do aparecemento en 1826 do emblemático American Dictionarity of the English Language, obra de Noah Webster. En confronto, os únicos dicionarios dados a lume no Rexurdimento galego foron, cronoloxicamente, o de Rodríguez (1863), Cuveiro Piñol (1876) e Valladares (1884); ao paso, a obra de Francisco Porto Rey coñeceu a publicación parcial en fascículos no semanario Villagarcía-Carril. Periódico Semanal-Satírico-Cómico no ano 1900, mais a maior parte do dicionario ficaría inédito até á edición de Bugarín López / González Rei (2000). Para alén destes traballos, habería tamén que citar outras obras de menores dimensións, como por exemplo o Vocabulario Gallego-Castellano de Xoán Manuel Pintos, datado por volta de 1865 e publicado en 1992 (Neira / Riveiro 1992) ou o Nuevo Suplemento al diccionario gallego-castellano publicado en 1884, feito por Marcial Valladares e só editado en 1992 (García Ares 1992); igualmente, de modo paralelo a como certas obras literarias incluían algunhas notas ou apuntamentos de gramática, determinados textos van acrecentar no final listaxes de palabras traducidas ao español, de que expomos, a modo de exemplo, o “Catálogo y significación de las voces del sub-dialecto berciano, usadas en este libro”, opúsculo con que se encerran os Ensayos poéticos en dialecto berciano de Antonio Fernández Morales (1861: 371-379), ou aínda o “Vocabulario que facilita la traducción de las palabras contenidas en este libro”, apéndice das Cousas das mulleres de Xesús Rodríguez López (1895: 199-209). Outrosí, merecen tamén citarse máis dous títulos, rodeados de certa problemática canto á súa autoría: a comezos do século XX Vasconcellos (1902) edita, na Revista Lusitana, un manuscrito anónimo intitulado Vozes Gallegas e datado por Pensado (1985: 51) a mediados do XIX; doutro lado, este mesmo investigador refire a existencia dunha Traducción de algunas voces, frases i locuciones gallegas, especialmente de Agricultura, al castellano, que data “entre 1840 y 1860, es decir, antes de que se publique el de Francisco Javier Rodríguez” (Pensado 1985: 65), e que vén sendo atribuída a “un tal E. R. [Eugenio Reguera y Pardiñas] que foi gobernador civil en Lugo” (Santamarina 2001: 16).
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En xeral, tales obras, e nomeadamente os tres dicionarios publicados no Rexurdimento, son produto do coñecemento que existe sobre a lingua na altura e carecen da necesaria fundamentación científica se comparadas con contributos posteriores, e inclusivemente anteriores: mesmo hai quen diga que todo o labor dicionarístico do século XIX supón un retroceso a respecto dos eruditos dezaoitescos, como Sarmiento ou Sobreira; dito recuamento afectaría sobre todo a fiabilidade e a exactitude, xa que, en xeral, o estudioso decimonónico do noso léxico se hace dogmático, desata las palabras de su medio natural y desaparece su localización, que aun dura hasta mediados del XIX en algunos inéditos. Así las palabras que son de todos y lo que es de todos no es de ninguno, el desarraigo léxico en favor de una coiné abstracta comienza a producirse y la obsesión de romper todo parecido con el castellano comienza a dar sus frutos (Pensado 1988: 56).
Máis un evidente trazo que contribúe á singularización da tradición lexicográfica galega decimonónica é o seu marcado carácter compilativo antes do que selectivo, isto é, concédeselle máis importancia á cantidade de entradas incluídas do que a unha escolma de todas as posíbeis. Este feito, que tamén se manifesta no século XX ao se herdar dos estudiosos anteriores, evidénciase ben ás claras con só repararmos nos títulos das obras, auténticos expoñentes das preocupacións compilativas dos respectivos autores; deixándomos de lado o traballo de Rodríguez e de Valladares, que “só” se chaman Dicionario Gallego-Castellano, chama a atención como Cuveiro Piñol non hesitou en intitular o seu dicionario do seguinte modo: Diccionario gallego, el más completo en términos y acepciones de todo lo publicado hasta el día, con las voces antiguas que figuran en códices, escrituras y documentos antiguos, términos familiares y vulgares, y su pronunciación. Para la escuela de Diplomática, anticuarios, jueces, abogados, escribanos, párrocos y otras personas á quienes es indispensable su frecuente uso.
E, de maneira similar, Francisco Porto Rey decidiu baptizar o seu respectivo traballo cun extenso título, onde se tamén poñen de manifesto os traballos especializados anteriores que manexou: Diccionario gallego-castellano. El más completo en su clase, de los publicados hasta la fecha y redactado en vista de los de Don Francisco Javier Rodríguez, Don Juan Cuveiro Piñol y de Don Marcial Valladares Núñez y de gran número de obras de los más acreditados escritores antiguos y modernos. Por Francisco Porto Rey. Contiene infinidad de voces desusadas, tomadas de un sinnúmero de documentos antiguos, gran cantidad de etimologías, modismos, refranes, historiografías, nombres de plantas, animales y el de casi todas las feligresías y aldeas de la región
O carácter compilativo que presentan os dicionarios decimonónicos, podendo ser unha circunstancia tanto louvábel canto discutíbel, incide, porén, na transmisión de erros, de definicións inacaídas ou de irregularidades nas entradas incluídas. Pensado (1988: 55), a analizar
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o dicionario de Marcial Valladares, postula que, aínda tendo este autor un contacto e un coñecemento da lingua viva certamente notábel, continúa con algúns fallos de Rodríguez e de Cuveiro, reiterando as definicións que estes dan e as ‘palabras fantasma’ ás cales “incluso llega a poner cantidad vocálica”. O profesor da Universidade de Salamanca sitúa nesa transmisión eivada moitos dos problemas que tiveron os lexicógrafos posteriores, pois, nas súas propias palabras, estando certos vocábulos atestados nos tres dicionarios, “¿como iban a atreverse a desmentirlas?”. Por outro lado, a lingua en que aparecen todas as definicións dos vocábulos rexistrados é o español. Non hai ningún dicionario, pois, pensado como galego-galego, mais como galego-castelán, e deberemos agardar até á segunda metade da centuria seguinte para podermos contar con traballos elaborados desde e para a nosa lingua. É unha situación paralela á das gramáticas decimonónicas, xa que, segundo se viu máis arriba, todas as do XIX están redixidas en español e contrastadas con este idioma; prima, subsecuentemente, o coñecemento da lingua desde fóra antes que desde si propia. Indirectamente, o castelán está presente na escolma dos vocábulos, xa que é costume evitar todo aquilo que coincida con aquel; fala por si mesmo o seguinte fragmento de Rodríguez (1863: X), tamén citado en Bugarín López / González Rei (2001: 56): “Es de saber que no incluyo en este diccionario las voces comunes á gallegos y castellanos, sino las puramente gallegas”. Ás veces, esa orientación galego-español con que son elaborados os dicionarios do Rexurdimento é xustificada mediante fins utilitarios. Así as cousas, Antonio de la Iglesia non hesita en destacar a importancia de que certos sectores sociais, adoito español-falantes, coñezan a lingua galega para unha mellor consecución dos seus labores profesionais: Escaso fruto los alumnos podrian lograr de tales obras [os libros de texto] y explicaciones, si no conociesen los maestros y no hiciesen conocer á sus discípulos la correspondencia del castellano que oyen al profesor, ó leen en las aulas, con el lenguage casi exclusivo que usan fuera tanto los niños como sus padres, allegados y confeligreses [...]. Sin algun conocimento del idioma gallego, ¿cuántas dificultades no se presentarán á un extraño párroco en su santa misión de orador, consejero, pacificador, y de confesor sobre todo? No facilitará su santo y civilizador cultivo, el estudio de un idioma que en la mayor parte de Galicia ha de escuchar precisamente y ha de verse obligado también por precisión á manejar en muchas ocasiones? (Rodríguez 1863: VI).
Unha outra característica ten que ver directamente coa ortografía, xa que, non existindo un único modelo gráfico, as palabras compiladas van documentarse con grafías distintas, feito que en ocasións se traduce na inclusión de varios lemas. Aliás, o léxico que se compila tanto pode ser antigo como contemporáneo dos autores, o que quebra o eixo fundamental da análise lingüística diacronía / sincronía. Así, por exemplo, o traballo de Cuveiro Piñol dálles entrada a voces presumibelmente tiradas da época medieval, a cuxa beira apunta entre parénteses a indicación “(ant.)”. Aliás, a inclusión de vocábulos arcaicos lexitima tamén que se conte con entradas dialectais e popularismos, pois, de acordo con Bugarín López / González Rei (2001: 50), non existe unha vontade de elaboración de norma común lexical nin de “formación dun estándar”, o que “explica a multiplicación de solucións dialectais tanto fonéticas como morfolóxicas”
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(Bugarín López / González Rei 2001: 52). Aquí é observábel un distinto camiño seguido a respecto dunha das características da tradición gramatical galega, en que, conforme diciamos máis arriba, un dos principais trazos é a ansia, cuns resultados desiguais, de procurar unha gramática normativa; neste sentido, evidéncianse unhas estratexias distintas en relación á nosa época: Santamarina (2001: 15) expón como a lexicografía moderna á medida “que o idioma mesmo vai gañando en funcións os diccionarios van abandonando o predominio do vello fondo dialectal e idiolectal en beneficio do fondo patrimonial común”. Mais Cuveiro Piñol, con todo, tal como apunta Sánchez Palomino (1999: 944), proscribe trazos dialectais como a gheada e o seseo, como tamén fará Marcial Valladares. Certo é que ao longo dos dous dicionarios van aparecer fenómenos locais, mais ambos os autores sancionan as anteditas casuísticas xeográficas aínda hoxe atestábeis nalgunhas falas galegas; velaí a condena de Cuveiro a tales fenómenos: En las ciudades y poblaciones de importancia [...] allí se oyen constantemente las geadas, la s por la z [...]. Lo cierto es que ni los más rústicos patanes de las aldeas más remotas, se espresan en tan incivil lenguaje, y sobre esto debieran fijar su atención las autoridades locales, pues creemos que la instrucción primaria obligatoria seria bastante á corregir tales faltas (Cuveiro Piñol 1876: [III]).
E non menos firme é o comentario que lles dedica Marcial Valladares, quen, por súa vez, se expresaría coas seguintes palabras: Las geadas son un defecto de la gente idiota; consisten en hacer fuerte la g suave, como en gaita, guerra, guinda, gozo, gusto; y, siendo un defecto, un abuso de simple pronunciación, lo mismo que el decir berse, Visente, senteo, siudá etc., por berce, Vicente, centeo, ciudá; y nabisa, sapato, sarrapicar, soco, etc., por nabiza, zapato, zarrapicar, zoco, etc., en ninguna gramática, en ningún vocabulario pueden hallar cabida (Valladares 1884: VI).
Por outra banda, agora nos centrando en cada obra respectiva, na simbólica data para a Galiza de 1863 é que sae do prelo o primeiro dicionario, elaborado por Francisco Javier Rodríguez, mais só publicado postumamente por Antonio de la Iglesia, quen explica a oportunidade de se converter en editor “si una prematura muerte no nos lo hubiese arrebatado en sus mejores dias” (Rodríguez 1863: VIII). Na realidade, non tería nada de particular que o óbito do presbítero lle impedise ver editado o seu traballo e que unha outra persoa desenvolvese ese labor, a non ser que entre o manuscrito e o resultado final se poidan atestar algunhas diferenzas. Esta circunstancia é a que leva Pensado (1976: 9) a cualificar de “enorme” a distancia entre as dúas versións, e sinala, ao mesmo tempo, que o labor de Antonio de la Iglesia ha sido la de uniformizar todos estos materiales [manuscritos], organizarlos alfabéticamente, definir las voces que quedaban simplemente enumeradas, agregar otras, suprimir algunas, y añadir todo lo que le pareció oportuno con tal de seguir el plan que llevaba en su mente el bibliotecario compostelano (Pensado 1976: 10).
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Un exemplo do que fixo o editor no manuscrito de Rodríguez é o do verbo enquillotar. No español existiu un análogo quillotrar que hoxe está marxinalizado e que só subsiste na linguaxe camponesa ou como dialectalismo. Durante o século XVIII, en consonancia con Pensado (1976: 182), este verbo coñecía a variante aínda máis coloquial, enquillotar, que foi incorporada por Antonido de la Iglesia ao primeiro dicionario galego: a partir de aquí, Pensado (1976: 181) sinala como Cuveiro Piñol o transforma en enquilloutar porque a forma orixinal tiña “pocos aires de gallego”, ao paso que certas obras posteriores ao traballo do eclesiástico aínda o modifican máis até o converteren en enquilloutrar. A este respecto, indica o mesmo investigador (Pensado 1976: 181-182) a existencia de dúas posibilidades de inventariar a forma española nos dicionarios galegos: Podemos observar dos tendencias en los diccs. una a modificar la palabra, acercándola más al gall., y que es la seguida por Cuveiro y el VPGC [Vocabulario Popular Galego-Castelán de Filgueira Valverde, Tobío Fernández, Magariños Negreira e Cordal Carús]: enquillotar > enquilloutar > enquilloutrar. Otra que se limita a conservar la palabra según ha nacido. Valladares, el VCGIF [Vocabulario Castellano Gallego das Irmandades da Fala], el DEGC [Diccionario Enciclopédico Gallego Castellano de Eladio Rodríguez González, Franco Grande y Crespo Pozo. Ninguno de los dos [sic] encontró sospechoso el enquill- de sus sílabas iniciales.
En relación, finalmente, ao modo en que chegou á Galiza e aos seus traballos lexicográficos, apunta Pensado (1976: 182) que penetrou introducido polos español-falantes “vulgarizantes”, a quen llela ouviu Antonio de la Iglesia. Mais o uso que se lle deu á palabra de orixe mesetaria, segundo se nos indica, non foi o que tiña na España, onde significaba “amancebar”, senón que no noso país pasou a significar ‘enredar os negocios’. Tería de pasar algo máis dunha ducia de anos para que se publicase unha outra obra destas características, cal é o traballo de Cuveiro Piñol (1876). O autor parte en boa medida do precedente, aínda que, como el propio declara ao comezo do dicionario (1876: [V]), tamén tivo en conta as obras de autores galegos e estranxeiros, predominando, porén, os naturais do país: Sarmiento, Martínez Padín, Murguía, Pintos, Ramón Otero, López Seoane, Planellas Giralt, Masdeu, Seguino, Alfonso X, Sobreira, cura de Fruíme, Cornide, Verea Aguiar, Cervantes, Comeiro, Palau, Gil, Rosales, Bretón de los Herreros, Cames, Silva, Barcelos, Fredol, Saulcy, Lange, Boutelón, Bluteau, Rosalía, Alberto Camino, José Benito Amado, Macías de Padrón, Turnes “y otros autores”. Para alén desta nómina de escritores que achega o propio autor, o dicionario presenta, outravolta, un trazo singular se perspectivado desde hoxe mais bastante habitual nos lexicógrafos da época, cal é a circunstancia de conscientemente evitar todas as entradas coincidentes co español. Nas liñas liminares, intituladas “A nuestros paisanos”, o autor dá conta das dificultades que encontrou na elaboración da obra, que se poden resumir na diversidade dialectal, no variacionismo semántico que pode presentar unha mesma palabra en diferentes rexións, no imposíbel que resulta compilar un dicionario completo, na omisión de determinadas voces etc., para o cal pide a “indulgencia” para desculpar tales “defectos”. Porén, a pesar desta “captatio benevolentiae”, o Diccionario tivo unha moito aceda e longa recensión en El Heraldo gallego, que apareceu publicada en varios números do rotativo ourensán no ano 1877. O autor, J.
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Soto Campos, non fai senón criticar definicións, españolismos, popularismos etc., os cales, dado o coñecemento existente sobre a lingua na altura, son explicábeis precisamante por ese precario desenvolvemento. Eis un exemplo dos comentarios que lle dedica Soto Campos: Xentar-jantar ó comer al medio dia. En buen gallego no está admitido xentar sino xantar; y la voz jantar no solo no puede admitirse en buen castellano, sinó que ni siquiera en malo, pues no es usada por nadie: pertenece al castellano antiguo y no creemos que pueda pronunciarse jantar sino yantar (tirado de Hermida 1992b: 172).
O último dos dicionarios publicados é o de Valladares, en 1884, do cal os estudiosos actuais din ser o mellor dos editados no século XIX, xa que, con efecto, as referencias lingüísticas fundamentais do Rexurdimento van ser a Gramática gallega de Saco Arce e o traballo lexicográfico de Marcial Valladares. Carballo Calero, no xa clásico contributo que a Facultade de Filoloxía da Universidade de Santiago de Compostela elabora por causa da celebración do Día das Letras, dicía en 1970, ano en que se lle dedicou a Marcial Valladares, que “supera ampliamente aos seus predecesores, dos que, naturalmente, se aproveita”, pois é o primeiro dicionario “verdadeiramente maduro”. Esa madurez pode, se callar, ser ilustrada co cómputo das entradas que refire, que se aproxima á invulgar cifra de 11.000. Entre as primeiras tarefas de cara á elaboración da obra e a súa publicación median trinta anos longos, segundo el propio sinala (Valladares 1884: VI), e é lóxico presupormos que nesas tres décadas o proxecto pasase por distintas fases. Así, sábese tamén da súa pluma que por volta de 1869 (concretamente a día 30 de xuño) xa estaba pronta unha versión do dicionario, o que marcaría o final da primeira fase; mais, con independencia de se isto é ou non é certo, Sánchez Palomino (1999: 6) apunta a posibilidade de que facer recuar tanto tempo a concepción do proxecto pode ser explicado “para poñerse dalgunha maneira en pé de igualdade con Rodríguez”, que estaba enorgullecido de ter sido o primeiro lexicógrafo galego. A respecto dos dicionarios anteriores, Sánchez Palomino (1999: 17) sinala tres principios básicos que condicionaron todo o proceso de elaboración: en primeiro lugar, eliminar as formas que evidenciaban fenómenos da fala popular, que o autor xulgaba seren groseiros, como os xa comentados da gheada e o seseo; como segundo punto, Valladares decide non incluír os topónimos (aínda que si os antropónimos), como fixera Rodríguez, o cal é sentido por Bugarín López / González Rei (2001: 54), comparando o primeiro lexicógrafo con Francisco Porto Rey, cal máis unha característica da tradición lexicográfica galega que eles denominan “enciclopedismo”; e como terceiro aspecto, o autor da Estrada dispón de promocionar as palabras máis usuais, decisión que explica que o léxico antigo non estea tan representado como nos traballos dos seus contemporáneos. A recepción do dicionario foi, en xeral, boa, e proba desa cálida acollida entre as minorías comprometidas co país é a seguinte citación, tirada dunha mínima biografía que fai Andrés Martínez Salazar sobre o autor, publicada no rotativo coruñés El Telegrama no día 30 de decembro de 1889: Al Sr. Valladares debe su país no solamente los trabajos encaminados al fomento de sus intereses materiales, sino el mejor léxico que hasta ahora posee el idioma gallego, Diccionario que es lástima grande no se decida su autor a reimprimirlo, aumentando con más de 300 voces que ha coleccionado de nuevo (Martínez Salazar 1981: 445).
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Con todo, tamén se publicaron recensións e comentarios en que se atacaba a oportunidade da súa saída do prelo: no mesmo ano de 1884, J. Soto Campos, que xa tivera, como vimos, unhas adustas palabras co Diccionario de Cuveiro Piñol, critica, entre outras cousas, que Marcial Valladares empregase unha ortografía etimoloxista: Pues bien, el autor apoyado á caso en motivos respetables pero que no están á nuestro alcance, pasa, con toda la serenidad que nuestros ilustrados lectores puedan imaginarse, por encima del uso común y constante de nuestros buenos hablistas que vienen escribiendo x desde el P. Sarmiento, el sonido que los franceses representan con la letra ch. Tres son los caractéres que el Sr. Valladares ha necesitado para representar el sonido en cuestión: la g, la j y la x. El bien que semejante innovación pueda reportarnos, nos es completamente desconocido; en cambio no se le ocultará seguramente á nuestros inteligentes lectores, la perturbación que ha de causar en la Ortografía y hasta en la misma Prosodia una reforma tan sin necesidad traida á cuenta como poco fundada (tirado de Hermida 1992b: 253).
Finalmente, para alén do valor estritamente lingüístico que a obra de Valladares ten, tórnase necesario subliñarmos que ao longo do dicionario se rexistran estrofes anónimas que serven como exemplificación das voces compiladas: e que veñen cantares vén ilustrar as entradas do seu dicionario (Blanco 1992: 55); a voz escrouchiña, por exemplo, de que se di ser “Diminut. de escroucha”, é exemplificada coa seguinte cuadra: As escrouchiñas d’o millo / non fan porveito á ninguèn. / Mandei a mullèr á èlas / adormeceu e non vèn (Valladares 1884: 245, s.v.). 4. Cabo Estas son, grosso modo, as características xerais da nosa tradición filolóxica e lexicográfica nos seus inicios, no século XIX, e son trazos explicábeis polo momento en que se publican a obras e polas circunstancias sociais, políticas, culturais e lingüísticas que determinan a época en que saen do prelo. Mais, para rematarmos esta achega, abundantes ou escasos, diglósicos ou non, de maior ou menor rigor filolóxico, acertados nas súas impresións ou totalmente inacaídos, todos os traballos que vimos de comentar para o galego constitúen o nacemento do noso discurso gramatical e da nosa lexicografía. Sabéndomolos superados con moito polos títulos modernos, o que é produto dunha preparación por parte dos autores e das autoras que non se puidera dar antes, coidamos que se non debe renunciar a ese legado, por escaso ou irrelevante que pareza, pois sen eses iniciais traballos dificilmente existirían na actualidade as gramáticas e os dicionarios modernos.
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A EMERXENCIA DA CONCIENCIA LINGÜÍSTICA (GALEGO-PORTUGUESA-BRASILEIRA) EN MURGUÍA E CASTELAO Xosé Ramón Freixeiro Mato
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Contando co importante labor dos precursores ilustrados do século XVIII, será na seguinte centuria, baixo o patrocinio de Murguía, cando se produza a emerxencia da conciencia lingüística na Galiza, que se verá reforzada co contributo posterior de Castelao na primeira metade do século XX. Manuel Murguía (Arteixo, 1833 - A Coruña, 1923) será o elo de unión entre o Padre Sarmiento e Castelao canto á reivindicación do idioma galego e o ideólogo que vai fundamentar a identidade nacional da Galiza. No transcurso do seu dilatado e fecundo traballo intelectual como escritor e xornalista, vainos ir deixando, espalladas en libros e artigos en xornais ou revistas, unha serie de reflexións sobre a lingua galega que han servir de base e fundamento teórico para o labor de defensa e dignificación da lingua que o movemento galeguista e nacionalista terá como obxectivo primordial do seu traballo cultural e político. Por súa parte, Afonso Daniel Rodríguez Castelao (Rianxo, 1886 - Buenos Aires, 1950) foi, sen dúblida, a figura máis relevante da Galiza do século XX, tanto pola transcendencia social do seu pensamento e do seu exemplo vital de comportamento ético, como polo seu labor político e pola súa obra literaria e artística. O compromiso persoal coa lingua galega como escritor monolingüe e a relevancia que na análise da personalidade histórica da Galiza lle concedeu ao idioma propio convérteno nunha figura clave para hoxe comprendermos a evolución do pensamento lingüístico e nun dos máis importantes e clarividentes teorizadores a respecto do papel que a lingua galega ten de desempeñar na Galiza do presente e do porvir. Ambos os autores fundamentaron a emerxencia da conciencia lingüística na proxección do galego non só en Portugal senón tamén no Brasil, argumento de que se serviron para o tentaren prestixiar. 1. A importancia da lingua na conformación nacional da Galiza Para Murguía o feito de a Galiza posuír unha lingua de seu convértese en argumento suficiente para ratificar a existencia dunha personalidade diferenciada e para podermos confirmar que o noso país constitúe unha comunidade nacional, pois, segundo reiteradamente ten manifestado nos seus escritos, “Léngoa distinta [...] acusa distinta nacionalidade” (Murguía 1996: 159). A lingua, por tanto, ocupa un papel central na definición do ser nacional da Galiza
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por ser unha creación do pobo (T. López 1998: 53), idea subliñada por outros estudiosos1. Ora ben, antes da lingua, Murguía apela á raza como primeiro elemento definidor da nación, sendo a lingua o "segundo elemento en importancia", moi vinculado ao primeiro (Beramendi 1981: 52). Velasco Souto (1998: 23) tamén afirma que, após a raza, "e intimamente vencelhada a ela, vén a língua” entre os “elementos definitórios do constructo nacional murguián”. Tendo talvez tamén en conta a debilidade do sistema literario galego naquela altura, o autor subordina a existencia dunha literatura de noso ao feito mesmo de posuírmos unha lingua propia: “Afortunadamente el hecho de la posesión de una lengua nacional será siempre superior al número é importancia de los escritores que de ella se valen, sobre todo si esa lengua se ha creado en el seno mismo del pueblo que la habla” (en T. López 1988: 53). E inclusive chega a afirmar, facendo da necesidade virtude, que “la lengua que no se fija literariamente es lengua en constante formación y por lo tanto más rica” (en Risco 1976: 181). Nun discurso de 1886 afirmaba Murguía que as linguas “son las verdaderas banderas nacionales", sendo unha obriga dos galegos conservarmos a nosa, pois "refleja nuestra vida intelectual y efectiva: se ha criado en nuestras entrañas, es á un tiempo nuestra madre y nuestra hija: diez siglos pusieron en ella cuanto nos pertenece” (en Hermida 1992: 268). E no discurso de 1906 lido na Academia, após constatar o abandono do galego por parte das clases altas, nega a posibilidade da súa desaparición porque "el idioma de cada pueblo es el característico más puro y más poderoso de la nacionalidad. Gentes que hablan la lengua que no les es propia, es un pueblo que no se pertenece” (en Risco 1976: 130-131). A defensa e dignificación da lingua galega tamén foi entendida por Murguía como unha reivindicación da dignidade dos galegofalantes, a maioría da poboación da Galiza da altura, que posúe o dereito de se expresar, sen vergoña e con orgullo, no idioma que lle transmitiron os seus antepasados. Así, en La primera luz (1859), perante as burlas de que é obxecto un neno aldeán na escola por parte dos seus compañeiros por se non expresar con corrección en castelán, o mestre fai unha defensa apaixonada do idioma galego, "que nosotros no debemos, no digo ya olvidarlo, sino amarlo, venerarlo, como a preciosa herencia que nos han legado nuestros antepasados", pois "el pueblo que olvida y escarnece su idioma, este pueblo dice al resto del mundo que ha perdido su dignidad!” (en Hermida 1992: 51-52). Aínda que por veces o autor se refire ao galego como dialecto, convén termos en conta que Murguía é totalmente consciente da dialéctica entre o que chama 'lingua nacional', como lingua do estado, e os dialectos ou as 'linguas naturais' e históricas, que, como no caso do galego, perderon usos e prestixio, sendo preciso rehabilitalas (Rabuñal 1999: 46). Ora ben, isto acontece nos textos da súa primeira época, pois, por exemplo, se na primeira edición do volume inaugural da Historia de Galicia utilizaba a palabra ‘dialecto’, nas edicións posteriores, "feitas xa na fase rexionalista", Murguía corrixirá coidadosamente a cualificación de galego como ‘dialecto’ e substituiraa por ‘idioma’ (Beramendi & Núñez 1995: 315, nota 36). Ao contrario que Emilia Pardo Bazán, Murguía non quixo admitir como irreversíbel a situación subalterna do
1 Véxase Beramendi & Núñez (1995: 37): “[...] o idioma proprio, que Murguía sitúa no centro da afirmación e definición nacionais”; ou Beramendi (1998: 8): “[...] a importancia que dá ó idioma como elemento central da afirmación nacional".
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galego e a súa consideración como lingua ‘proscrita’ e inferior (ou dialecto no sentido en que o usaba a condesa) e rebelouse contra o intento desta por afastar o noso idioma de ámbitos e xéneros considerados cultos, pretendendo de paso reducir os escritores en galego a unha categoría secundaria simplemente pola lingua utilizada e polos asuntos tratados: Pero como se necesitaba rebajar a la que escribía en una lengua proscrita, no hubo inconveniente en condenar su empleo en asuntos que se suponen superiores y dar a entender que la lengua y los asuntos que únicamente le cuadran, son como su poeta de orden inferior. Sin duda para quien sostiene semejante absurdo, allí donde la gente campesina habla la lengua nacional, allí sus sentimientos y afectos tanto como su adecuada expresión, se ennoblecen de por sí. Allí se puede hablar de ella, en el lenguaje de los dioses. En cambio esos mismos sentimientos expresados en una lengua no oficial, se empequeñecen y pierden de su fuerza (Murguía 2000: 114-115).
Se fica claro o compromiso do autor coa dignficación do idioma, pode causar, no entanto, certa estrañeza a case sistemática utilización do castelán na súa obra escrita, tanto de creación literaria, onde apenas nos deixou un poema en galego, como ensaística, con só tres textos na nosa lingua2, e inclusive na oratoria pública alí onde o contexto favorecía o emprego do galego, como no discurso escrito para a súa lectura no acto de inauguración da Academia Galega, incoherencia entre a teoría e a praxe lingüística de Murguía subliñada e contextualizada por Alonso Montero (1991: 15-16). Sorprende especialmente a non utilización do galego para a obra lírica, dada a súa firme defensa do idioma como principal elemento diferenciador da cultura galega, a súa asunción do “carácter social da arte como reflexo da natureza” (Barreiro & Axeitos 2000: 71) e tamén o camiño xa percorrido polo galego naquela altura como lingua poética. Non é suficiente, pois, neste caso o motivo de que a obra de Murguía é científica e didáctica, en tanto que o galego decimonónico é fundamentalmente lingua lírica, como aducen os editores da obra de Risco sobre o autor nado en Arteixo (Risco 1976: 73). Xa en 1888, nun artigo na revista Galicia, Aurelio Ribalta parece facer unha acertada aproximación a este tema: Nunca he visto un gallego tan gallego, a pesar de que siempre escribió en castellano, aun amando nuestro idioma regional, como ama todas las cosas de la Región. Pero su misión era hablar a los fariseos y a los gentiles. Su palabra, más que para nosotros, era para los ajenos, y le fue necesario hablar de modo que todos le entendiesen. Esto por lo que toca a los últimos años, que en los primeros de su vida, nadie pensaba ni en idioma regional, ni en zarandajas. Lo primero que Murguía procuró fue que tuviésemos patria. Luego tendríamos idioma e Historia (citado por Barreiro & Axeitos 2000: 71).
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Véxase a súa produción en galego en Murguía (1996: 153-196).
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En consonancia con isto, Fortes (1998: 25-26) fala de que Murguía ten unha visión do proceso de construción da literatura galega por etapas, na primeira das cales “non precisa estar escrita en galego”, senón que o carácter galego se debería fundamentar nos temas propios do noso ámbito cultural e “en certas cualidades inherentes á obra literaria”, como o predominio do sentimento; para as seguintes etapas Murguía xa defende que a literatura galega “ten que ser unha literatura escrita en galego”. A partir desta consideración, o autor incluiríase a si propio nesa primeira etapa, onde o importante era resaltar a singularidade e a personalidade peculiar do país. A súa obra científica e ensaística vén a confirmar isto (La primeira luz, Diccionario de escritores gallegos, Historia de Galicia, Los precursores, Galicia), mais tamén as obras de creación, as novelas escritas na década dos cincuenta (Desde el cielo, El ángel de la muerte, Mientras duerme, D. Diego Gelmírez, La mujer de fuego), teñen en común a presenza da xeografía galega que serve de espazo mítico ao desenvolvemento da acción, estando a paisaxe en que todas elas se localizan, como verdadeiro locus amoenus, situada arredor do río Ulla e do Sar, até a súa desembocadura na ría de Arousa (Barreiro & Axeitos 2000: 75-76). Murguía consideraríase, pois, a si propio un precursor, o encargado nesa primeira fase de dar a coñecer cara a dentro e tamén ao exterior a existencia da Galiza como nación diferenciada con lingua, costumes e tradición de seu, con historia propia; terían de ser os membros das seguintes xeracións os que desen o paso a unha literatura galega en lingua galega, esencial para a construción nacional. Consecuentemente, Murguía anima os nosos autores a escribiren en galego, pois na tarefa urxente de formar unha patria os poetas e escritores en xeral teñen para el un papel fundamental que cumpriren. É, por tanto, moi consciente da necesidade de incorporar a lingua á tarefa da construción do país (Barreiro & Axeitos 2000: 55), aínda que el non dea exemplo na súa obra escrita. Mais exerceu influencia para que outros o fixesen, tanto entre os seus contemporáneos e achegados -os casos de Rosalía e Pondal son un exemplo- como nas xeracións de escritores que o ían suceder. A importancia concedida por Murguía ao idioma e a preocupación polo seu futuro levárono a pensar na creación dunha Academia encargada de velar pola súa unificación e saúde. Así, xa no ano 1894 escribe unha carta a Curros como membro da “Comisión gestora para crear la Academia Gallega” e en 1904 o mesmo Murguía publica na revista La Temporada de Mondariz un artigo intitulado “Necesidad de la formación y publicación de un Diccionario de la lengua gallega”, que, sen aludir á creación da Academia, se convertería no “motivador e desencadeante da idea inicial sobre a creación definitiva” dela (López Varela 1998: 66; véxase tamén Alonso Montero 1988: 16). Esta institución non se dará conformado até 1906 como Real Academia Gallega, con Murguía como o seu primeiro presidente até a súa morte en 1923. Mais non por iso se deron resolvido os problemas de estandarización ou fixación da norma culta do galego nin a Academia deu realizado un dicionario e unha gramática; as polémicas ortográficas xurdidas sobre todo a fins do XIX sen a participación directa de Murguía nelas (Hermida 1987) continuarán durante os anos do XX en que este exerceu a presidencia académica e van ir xerando o conflito normativo. A batalla librada por Murguía xa antes de acceder á presidencia da Academia estivera encamiñada a resaltar a transcendencia do idioma na conformación da nacionalidade galega e a loitar pola súa dignificación, fornecendo os argumentos necesarios para que a lingua galega chegase a ser “tan oficial como la del Estado”, segundo deixou escrito en El Regionalismo
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Gallego en 1889. Xa en 1858, após recoñecer a ausencia de libros de consulta en que se apoiar, tentaba destruír os graves preconceptos que obstaculizaban a consideración do galego como lingua digna e autónoma nun artigo publicado en El Museo Universal de Madrid: Escusado es detenerse en probar que el gallego es un dialecto cuya estructura difiere notablemente de la del idioma castellano, y que por lo mismo mal puede ser como cree de consumo el vulgo ignorante, el castellano corrompido, así como tampoco es el antiguo castellano que se conserva todavía en aquellas montañas, en toda su primitiva rudeza (en Hermida 1992: 33).
E nos artigos publicados en La Ilustración Gallega y Asturiana non se cansa “de alentar o uso e dignificación -tamén pola via literária- do idioma, a investigación e o amor que o país debe profesar á sua língua” (Fernández & Rabuñal 1998: 46). A respecto de Castelao, en primeiro lugar cómpre subliñarmos que para el a lingua non é un simple medio de comunicación entre as persoas, senón a principal institución social e a compoñente básica da nación (Garcia Negro 1989: 8-9), organicamente unida a unha cultura (Monteagudo 2000: 148) e fonte inesgotábel de obras de arte: Un idioma non é somente un xeito de eispresión. Se así fose habería que matar o galego, e dispóis, polas mesmas razós, teríamos que matar o castelán hastra que atopásemos co idioma que tivese o mais outo creto centífico. Non; un idioma non é somentes un xeito de eispresión, é tamén unha fonte de arte. ¡Quén fose poeta pra decirvos o que é un idioma! Eu, artista, por non ver cegada unha fonte de arte, teño que defender a fala de nosos abós (Castelao 1974: 62).
O propio idioma é a máis grande obra de arte que un pobo pode crear, para alén de símbolo da súa identidade e permanencia; por iso calquera atentado contra a vida dun idioma convértese nun acto bárbaro por si mesmo, como bárbaro será tamén o pobo que deixar morrer a súa lingua: Ningún idioma alleo -por ilustre que sexa- poderá eispresar en nome do noso os íntimos sentimentos, as fondas doores e as perdurables espranzas do pobo galego [...] ¿Cómo chamaríamos a un home que consentise o derrumbamento do Pórtico da Gloria? Pois é certamente máis bárbaro quen deixa morrer un idioma: obra de arte insuperable, feita con amor, con door e con ledicia polos nosos antergos, que recibimos en herdo e que temos a obriga de enriquecer co esprito do noso tempo (Castelao 1934: 10)3.
Se Murguía situaba a lingua en segundo lugar, despois da raza, entre os elementos conformadores da nación, Castelao vaina colocar na primeira posición. Esta primacía da lingua, explicitada ao situar en primeiro termo o idioma propio entre os factores definidores da nación
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En Sempre en Galiza vai incidir o autor nesta mesma argumentación (véxase Castelao 1961: 105).
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(Castelao 1961: 41), a súa potencialidade como atributo fundamental desta, "radica na posibilidade de exteriorizar simbolicamente unha singularidade cultural, na posibilidade de existirmos como pobo diferenciado" (Rei Romeu 1996: 61), pois "se ainda somos diferentes e capaces de eisistir, non é máis que por obra e gracia do idioma" (Castelao 1934: 10). Para Castelao un idioma non aparece por vontade expresa das persoas, senón que é consecuencia da xeración dunha nova cultura por parte dun pobo que en determinadas circunstancias acha as condicións favorábeis que o permiten. Esa cultura expresarase a través do idioma propio. Lingua e cultura están, así, intimamente unidas: "O problema do idioma en Galiza é, pois, un problema de diñidade e de liberdade; pero máis que nada é un problema de cultura" (Castelao 1961: 43). Para Castelao a Galiza é unha nación porque ten un idioma propio, un territorio diferente, unha vida económica peculiar e "hábitos psicolóxicos reflexados n-unha cultura autóctona" (Castelao 1961: 40). Mais foxe de calquera definición racista de nación, pois a "raza non é tansiquera un siño diferencial da nacionalidade" e non se pode fundar ningunha reivindicación nacional "invocando caraiterísticas de raza", sendo para os galegos o nacionalismo racista "un delito e tamén un pecado"; é aquí onde Castelao se distingue de Murguía, como se acaba de ver. Mais isto non implica para el que os galegos non nos sintamos celtas, no sentido de posuírmos unhas "afinidades étnicas que nos asemellan a outros povos atlánticos, que viven nos Fisterres", trazos diferenciais que o autor atribúe "ao poder creador da Terra-Nai" (Castelao 1961: 41). En conclusión, tanto para Murguía como para Castelao lingua e nación están intimamente unidas, a constituír a primeira un atributo esencial da segunda. De aí o compromiso de ambos na súa defensa e dignificación. 2. A xénese e evolución histórica do galego Tanto un autor como outro teñen feito consideracións a respecto da procedencia do galego e da súa evolución histórica, especialmente destacábeis en Castelao con relación a isto último. Manuel Murguía recoñece a orixe neolatina do galego, mais non lle concede a exclusividade na súa formación, pois tamén lle outorga importancia á influencia das falas celtas (García Pereiro 1978: 363). Así, no seu libro La primera luz, de 1859, escribe que “el dialecto gallego es uno de los que en España conserva más puro su origen latino, y en el cual se advierte a cada paso las huellas poderosas de los antiguos idiomas célticos, que se hablaban en Galicia antes y durante la dominación romana”; tamén fai notar que “sus voces, en la mayor parte, son débil corrupción del latín”, sen as “ásperas palabras” que o castelán tomou do árabe; e á pregunta sobre a orixe do galego responde que este é o "latín, modificado según el genio de las lenguas célticas que se hablaron en Galicia” (en Hermida 1992: 52). No discurso pronunciado en galego nos Xogos Florais de Tui de 1891 di que o celta lle deu "a súa dozura e a maior parte do seu vocabulario; o romano afirmóuno, tén do suevo as inflexións, do noso corazón o acento afalagador, e os brandos sonos, e os sentimentos das razas célticas” (Murguía 1996: 159). Proxecta, pois, o autor na lingua o celtismo que está na base do seu pensamento político a respecto da Galiza como nación (Máiz 1999: 25-66), exaxerando un tanto a importancia da innegábel presenza do elemento celta na configuración do galego4. A súa
4 Véxase ao respecto Mariño Paz (1998: 27-37). Sobre a preparación filolóxica de Murguía e o seu celtismo lingüístico pode verse Risco (1976: 41-42).
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teoría, exposta nas “Consideraciones generales” da Historia de Galicia e traducida por Risco (1976: 43), di sintetizadamente que é no latín onde se debe procurar a orixe do galego e tamén conxuntamente nos idiomas célticos falados aquí, que non só non se perderon senón que a xente do campo os continuou a falar durante os catro séculos de dominación romana, deixándonos moitas palabras e modificando as latinas de acordo cos seus hábitos lingüísticos, de maneira que o pobo continuaría a falar a súa antiga lingua celta, aínda que romanizada. Por outra parte, Castelao, a pesar do recoñecemento desa etnicidade celta e superando a importancia que Murguía lle concedía ao contributo celtista na formación do galego, afirma con rotundidade a latinidade do noso idioma, en consonancia tamén co avanzo dos coñecementos científicos: "Estamos fartos de saber que o povo galego fala un idioma de seu, fillo do latín, irmán do castelán e pai do portugués" (Castelao 1961: 41). O recoñecemento da latinidade da lingua, por unha parte, e a celticidade dos elementos configuradores da personalidade do pobo galego (a súa Volgeist), que ten no idioma o atributo máis esencial, por outra, poden pór en cuestión a continuidade histórica da relación orgánica entre nación, cultura e lingua, posíbel contradición que Castelao pretende resolver, segundo Monteagudo (2000: 149150), mediante "a consideración das linguas históricas como seres vivos en permanente cambio e evolución" e mediante a distinción na linguaxe humana entre un compoñente étnico invariábel ou perenne, constituído polas súas características fónicas e rítmicas, e un compoñente caduco identificado co léxico: Da mesma maneira que un home adulto xa non pode mudar a fonética do seu idioma materno, ainda que deixe de falalo para adoptar unha língoa estranxeira, así un povo adulto conservará o mecanismo sonoro do seu antigo lingoaxe ainda que mude totalmente de léisico; e no ton e no son das novas verbas perdurarán as caraiterísticas musicaes do vello falar [...]. A este respeito podemos decir que a romanización de Galiza non pode tomarse como siño de inconsistencia, pois se perdeu o seu léisico primitivo non perdeu os elementos sonoros da súa orixinalidade, que se transparentan no idioma actual e nas superiores manifestacións do xenio lírico (Castelao 1961: 344).
Así pois, a latinización da Galiza e a aparición do romance galego non suporán a conformación dunha nova cultura galega, senón un renacemento da súa personalidade nacional xa previamente existente: Galiza sofreu o influxo da civilización domiñante, e o seu 'fondo primitivo' absorbeu esencias estranas; pero non hai dúvida de que a raza asentada nos campos é a mesma que baixou das citáneas, e que o abrollar do romance galego, diferente aos demáis romances hispanos, siñifica unha renascencia da rara e intransferible persoalidade de Galiza (Castelao 1961: 262).
Tal como veñen confirmando hoxe os estudos e investigacións máis desprexuizosos e actualizados ao respecto, Castelao tiña totalmente claro o que para moitos aínda agora supón unha novidade coñeceren: o peso político da Gallaecia na Idade Media como reino hexemónico na Hispania cristiá durante séculos e a importancia do galego non só como lingua lírica peninsular, senón tamén como lingua cortesá mesmo nos reinos de León e Castela, "lengua
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del único rey español que se llamó Sabio", como dirá nun discurso parlamentar (en X. L. García 1978: 20). Ao mesmo tempo, Castelao foi moi consciente de que Portugal naceu dentro do territorio galego e que, por tanto, é galego en orixe: "Así naceu Portugal: n-un anaco de terra galega, antre o Miño e o Douro, separado de Castela pol-o inespuñable macizo de Traz-os-Montes" (Castelao 1961: 335). Unha vez consumada a independencia portuguesa, a Galiza ficaría dividida en dúas, a de aquén e a de alén Miño, mais a súa lingua continuaría a ser a mesma, o galego (e non o portugués): Imos supor que houbo dúas Galizas -a que se foi e a que se quedou, a que se axuntou con Castela e a que enxendrou a Portugal-; pero é induvidable que ambas a dúas tiñan un mesmo mecanismo sonoro, un mesmo xeito tonal e rítmico, unha mesma língoa, unha mesma arte e unha mesma cultura; en fin, unha mesma alma patria; e, pol-o tanto, a división de Galiza en dous Condados, que dispóis se converteron en Reinos diferentes, non autoriza a distinguir dúas modalidades creacionistas, según éstas se produxesen n-unha ou n-outra veira do rio Miño, pois a nación galega chegaba até o Douro, e todo canto se veu chamando 'galaico-portugués' é realmente e únicamente 'galego' (Castelao 1961: 346).
Castelao rexeita, pois, a denominación de 'portugués' ou mesmo 'galego-portugués', aínda que esporadicamente teña utilizado esta última para se referir ao conxunto do romance occidental da península (Monteagudo 2000: 161), e non só para o galego senón para calquera variante do sistema lingüístico galego-portugués: "Logo arribamos âs costas do Brasil, onde os seus habitantes falan un idioma nascido e criado en Galiza, anque todos se empeñen en chamarlle portugués" (Castelao 1961: 447). Con frecuencia fai alusións, con ánimo corrector, a esta cuestión: "E así chamaremos 'galego' ao que decote se chama 'galaico-portugués'" (Castelao 1961: 265); "recurriremos a Menéndez Pidal, tan pouco amigo de Galiza que a miúdo lle chama 'portugués' â língoa galega, ainda que se refira a períodos anteriores â eisistencia do Portugal de hoxe" (Castelao 1961: 282); etc. Tal insistencia na denominación cremos que debe ser entendida, para alén da constatación dun feito histórico, como unha forma de prestixiar a lingua entre os galegos e de elevar a súa autoestima como tales. En coherencia coa defensa da marca de orixe 'galego' inclusive para a variedade falada en Portugal ou no Brasil, e dada a súa identificación entre 'Hespaña' (así escrita) e a Península Ibérica ou 'Iberia' (Castelao 1961: 330), defende tamén a denominación de 'castelán' para a lingua de Castela e rexeita enerxicamente para esta o termo de 'hespañol': Tamén se intentou chamarlle 'idioma hespañol' â lingoa de Castela. E eso sí que non, tampouco. O castelán pode ser o idioma oficial do Estado; pero non é máis hespañol que o catalán, o galego e o vasco. Todal-as língoas que se falan na Hespaña son igoalmente hespañolas. E proclamamos esta verdade en nome do noso ideal hispánico (Castelao 1961: 101).
Para Castelao, pois, o galego é unha lingua neolatina, irmá do castelán, que se fala na Galiza, en Portugal e en territorios de ultramar. Seguindo a tónica marcada polo Padre Feijoo e por Murguía, rebate con firmeza a aseveración de o galego ser unha derivación rústica e vulgar ou unha forma corrompida do castelán, idea que ao longo dos séculos precedentes fora arraigando na sociedade:
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Pero hai máis desvergoña nos que fan 'chistes' a costa da natural semellanza dos romances, coma se o galego fose, por esa semellanza, unha imitación ridícula do castelán e o castelán non poidera ser unha imitación do galego. Nós non decimos que o castelán sexa o galego moderno, como acabo de leer n-un periódico; pero menos podemos ademitir que o galego sexa unha corrupción do castelán, pois se filolóxicamente ningún romance procede d-outro, e todos eles son fillos do sermo vulgaris, non hai dúvida de que, literariamente, o castelán débelle moito ao galego antramentras que o galego non lle debe nada ao castelán (Castelao 1961: 287).
A lingua galega na Idade Media conseguiu un extraordinario desenvolvemento literario, que Castelao aproveita para reforzar a idea de o galego ocupar unha posición privilexiada entre as linguas peninsulares como primeira lingua da lírica culta, feito que debe ser fonte de prestixio para un idioma necesitado da autoestima dos falantes. Levado por ese afán e influído pola concepción romántica da literatura medieval, hoxe en fase de revisión, aínda acertando na primacía do galego como lingua da lírica e no maior peso do elemento galego fronte ao portugués dentro da escola trobadoresca, recoñecido por autores como Rodrigues Lapa, Castelao exaxera o carácter tradicional, popular e exclusivamente galego da nosa lírica, só aplicábel en todo o caso ao xénero de amigo, e usa desacertadamente para ela os cualificativos de 'rural' e 'democrática' (Monteagudo 2000: 154). As argumentacións de Castelao a respecto da literatura medieval, debedoras do estado da investigación filolóxica na altura e das fontes por el empregadas, conteñen, pois, algunhas apreciacións hoxe superadas (Monteagudo 2000: 152-156), mais a idea fundamental a respecto da lingua non só permanece válida senón que se ve reforzada a cada paso (Nogueira 1996 e 1997): o galego gozou de grande prestixio durante a época medieval como lingua cortesá dos reinos cristiáns noroccidentais e como lingua lírica peninsular. Será tal prestixio o que lle vai permitir afirmar que ningún galego culto debe consentir que "a fala do seu povo -unha fala de príncipes, que aínda é señora en Portugal e Brasil- sexa escrava no patrio lar, sen dereito a ir â escola nin a presentarse como igoal do castelán" (Castelao 1961: 285). Analiza Castelao con acerto a evolución da situación lingüística da Galiza após a etapa medieval e as súas explicacións, por resultaren agudas e convincentes, foron xeralmente seguidas con posterioridade. Parte o autor de que existe unha imposición lingüística do castelán como consecuencia do dominio e colonización política e cultural, denunciando a "doma e castración" da Galiza por Castela, sobre todo a partir do reinado dos Reis Católicos, que aldraxaron dona Xoana a Beltranexa "como dispóis os casteláns nos aldraxaron a nós. A pauliña dos Reis Católicos contra Galiza foi unha consiña de Estado, que perdurou até os nosos días" (Castelao 1961: 240). Esas aldraxes trasladáronse tamén á literatura: Todol-os escritores casteláns do século XVII e XVIII adicáronse a luxar o nome e o creto dos galegos, creando un ambente emponzoñado contra Galiza e negándonos, inclusive, a calidade de hespañoes. Para eles Galiza era un país de salvaxes colonizados, e ningún escritor castelán foi capaz de sair â nosa defensa, cando incluso se defendía aos indios que non se deixaban asimilar (Castelao 1961: 239).
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A "violencia asimilista de Castela", a "intención imperialista da meseta", levou consigo a imposición da súa lingua na Galiza sen necesidade dunha lei expresa que prohibise o uso do galego (Castelao 1961: 240): non se achou un documento deste tipo, mais si disposicións que obrigaban os notarios a se examinaren en Castela e en castelán. Castelao detecta con clareza os axentes da castelanización, allea á vontade dos galegos, durante os tres séculos do galego medio e, en contra dunha falsa idea hoxe estendida, remarca o uso xeneralizado do galego como lingua oral a pesar do silencio literario: Os eclesiásticos e os notarios lograron que o galego deixara de escrebirse; pero non lograron que se falase o castelán, pois durante os tres séculos de silenzo literario non se falou en Galiza máis que un idioma: o galego. Dispóis xurden novos axentes desgaleguizadores: as Escolas públicas e a Universidade de Sant-Iago (Castelao 1961: 105).
A case desaparición da literatura galega neste período non ten nada que ver coa capacidade intrínseca dos galegos ou da súa lingua para a creación artística, senón que obedece para el a razóns exóxenas: "Atribuímoslle â imposición oficial e cultural do castelán o silenzo literario de Galiza" (Castelao 1961: 104). Ora ben, perante este silencio literario acaecido na Galiza durante os chamados séculos escuros, Castelao ten tamén, en consonancia co apuntado hoxe por algún estudioso (Nogueira 1997, 1998), plena consciencia de que tal eiva afecta só o territorio galego e non a lingua galega no seu conxunto, pois esta continúa a ser vehículo dunha literatura que nese período alcanza grande esplendor en Portugal: aínda que o galego literario "decaiu na rexión integrante de Hespaña, mantívose en todo auxe como língoa culta de Portugal, cuio berce orixinario foi Galiza comprendida antre o Miño e o Douro" (Castelao 1961: 454). Isto é, o galego practicamente desaparece como lingua literaria neses séculos na Galiza, mais a literatura en lingua galega florece en Portugal con figuras como Gil Vicente, Camões e outros moitos escritores importantes. Mais Castelao era ben coñecedor doutra verdade histórica de que hoxe moitos galegos aínda non son conscientes: que Portugal naceu dentro da Galiza e que a súa lingua é o galego, así denominado orixinariamente, aínda que logo se acabase por lle chamar portugués. E tamén, en consecuencia, o galego é a lingua do Brasil, a pesar de que se lle negue interesadamente o carácter hispano: Pero velahí que os hespañoleiros, tanto de dereita como de esquerda, afincan a hispanidade no distintivo idiomático, negando a procedencia 'hispana' do Brasil pol-o feito de non falar a língoa de Castela. Para eles Brasil é tan estrano como Norteamérica. Diríase por esto que acatan a diferencia de língoas como diferencia de nacións; pero dentro de Hespaña impoñen o dogma da 'nación única e indivisible' anque vexan que alí se falan catro idiomas diferentes. E podendo reivindicar para si a groria que a Galiza lle cabe por ser a nai dunha língoa de rango superior, non sóio tratan de regalarlle a Portugal esa groria, senón que, ao cabo de tantos séculos de inútil asimilismo, ainda manteñen a espranza de borraren o ronsel do noso xenio lingoístico e cultural para non darlle nin patria sepultura (Castelao 1961: 455).
E en contra así mesmo dunha falsa asociación, tamén moi estendida, entre Rexurdimento literario no século XIX e mellora da situación social da lingua, o noso autor é
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moi consciente de que esta recúa por causas en boa parte coincidentes coas expostas por Pintos en 1853 n'A Gaita Gallega e coas hoxe indicadas polos especialistas (véxase, por exemplo, Mariño 1998: 343), que van traer como consecuencia o primeiro grande avanzo do castelán como lingua oral na Galiza: A guerra ao galego agravouse no século XIX, pol-a inflación burocrática do réxime de provincias e por certas supersticións do progreso... O idioma oficial da Adeministración, da Eirexa, do Exército, do Enseño e de toda situación pública, logra infiltrarse nas camadas burguesas da cibdade provinciana debido â influencia dos funcionarios, dos militares e tamén dos comerciantes e tendeiros, alleos ao país. O castelán conquire no século XIX o seu primeiro trunfo. Xeneralízase no lingoaxe corrente dos elementos burgueses; pero nin chega até os artesáns nin traspón os lindeiros da cibdade (Castelao 1961: 105).
Valora Castelao moi positivamente o renacemento literario decimonónico como "un acontecimento feliz", destacando a importancia de Rosalía de Castro, sen deixar de sinalar os límites (case exclusividade da poesía) e o feito de o labor científico ou erudito, así como a actividade política, tamén dos rexionalistas, se desenvolver "decote en castelán". Mais lamenta que, a pesar de as letras galegas contaren "a fins do século pasado con obras de verdadeiro mérito", en ningún nivel do ensino "se lle concede atención â nosa língoa e â nosa literatura" (Castelao 1961: 106). Xulga así mesmo moi positivamente o avanzo da lingua galega no primeiro terzo do século XX canto ao cultivo literario de todos os xéneros e o pulo que recibe do movemento nacionalista; cita expresamente o labor das Irmandades da Fala, da revista Nós e A Nosa Terra, das coleccións Céltiga e Lar, do Seminario de Estudos Galegos, a faceren da "língoa viva do povo o idioma culto e familiar dos intelectuaes" e producíndose en consecuencia "a máis completa eclosión da cultura galega", o que non resultou suficiente para que o goberno da República lle concedese á Galiza "a cooficialidade dos idiomas e o bilingoismo escolar" que lle outorgou a Cataluña, nun acto de discriminación cara á nosa lingua, porque "a solución do problema pedagóxico era tan inaplazable en Cataluña como en Galiza" e "aínda pode calquera empregado público decirlle a un galego: Hábleme usted en cristiano" (Castelao 1961: 107-108). En resumo, ambos os autores recoñecen a orixe latina do galego, aínda que Murguía resalta en exceso a importancia da influencia celta, e os dous combaten o tópico de o galego ser unha forma corrupta do castelán, situándoo adecuadamente no ámbito lingüístico galaicoportugués-brasileiro. Castelao, de modo especial, ofrécenos unha axustada visión do percorrido histórico da lingua galega, desfacendo moitos tópicos prexudiciais para a valoración social do idioma. 3. A relación entre galego e portugués Aínda que xa nas liñas precedentes se fixo algunha referencia a esta cuestión, merece unha especial atención o tema sempre polémico da relación entre o galego e o portugués, que foi obxecto de reiteradas consideracións dos dous autores. Con eles, para alén de emerxer a conciencia do valor do idioma propio, emerxe tamén con forza a defensa da identidade lingüística galego-portuguesa-brasileira. Para Murguía a lingua formada no territorio galego vén a ser a mesma que a de Portugal, como afirma na introdución da súa obra Galicia: “Su
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lengua es tan nuestra como sus mares” (Murguía 1982: 6). Na resposta a Juan Valera incide na orixe celta do galego e na identidade co portugués, a subliñar a influencia sueva e a ausencia de influencia árabe, aínda consciente de que a literatura galega pasou por un longo período de silencio por que non pasou a de alén Miño e consciente tamén das diferenzas lingüísticas entre o portugués do norte e do sul: Así y todo se da el caso, que la lengua gallega, una con la portuguesa, fue tan cultivada literariamente como cualquiera otra de las de Europa, hasta mediados del siglo XVI, y después hablada por una población culta, cultísima, que ya que no le diese la fijeza de una lengua literaria, en cambio la mantuvo en su pureza y la enriqueció con innumerables voces sirviendo perfectamente a las necesidades materiales e intelectuales de una población numerosa y civilizada [...]. Al Sr. Valera que vivió algún tiempo en Lisboa debe constar que los mismos portugueses, llaman gallegos a los de su nación conmorantes en tierra de entre Duero y Miño, así como gallego a la lengua que hablan. Es más, señalan diferencias esenciales entre el portugués de alén y aquén del Duero. Pues bien, no lo hacen a humo de pajas. La verdadera lengua gallega o portuguesa -para el caso es igual-, la lengua que nos es propia, hija del celta, modificada por el latín, sobre todo el eclesiástico, enriquecida por el habla y sentimientos suevos, y ajena a toda influencia árabe, es la corriente de Galicia y gran parte de Portugal, la misma que hablaron Camoens y Sáa de Miranda; idioma y no patué, como con visible desconocimiento del asunto, le denominó alguno pretendiendo que en su calidad de lengua inferior, sólo debe usarse en la poesía idílica y rústica. Ella sabrá por qué (en Risco 1976: 181-182).
Como se pode observar, a preocupación e interese de Murguía polo galego vai máis alá da simple reivindicación como lingua poética e por iso discrepa abertamente das opinións pexorativas de Emilia Pardo Bazán (1984: 291-292) a respecto do presente e do futuro do galego, que cualifica de dialecto ou patois. Murguía está a pensar nun galego con futuro a través da súa proxección no portugués. Mesmo nun artigo de mocidade, de 1858, sobre a poesía galega da súa época, onde demostra o coñecemento dos instrumentos medievais, vai afirmar algo non moi distante do dito pola escritora coruñesa, ao comparar o esplendor da lírica medieval e da literatura portuguesa coa situación por que pasaba a lingua e a literatura galegas do momento: Para convencerse de esto [superioridade do galego face ao castelán na época medieval] basta leer las escrituras de donaciones, las carta-pueblas, escritas en dialecto gallego y compararlas luego con las obras que nos quedan del castellano antiguo, cuando aquel no solo era un verdadero idioma, con toda la riqueza y la armonía de una lengua literaria, sino que conservándose y mejorándose en Portugal, llegó mas tarde á un alto grado de perfección, perfección á que llegaría en Galicia si esta como la nacion hermana, hubiese conquistado con su independencia una nacionalidad que protegiera el desarrollo de lo que es hoy un dialecto solamente (en Hermida 1992:35)5.
5 A propósito desta cita, convén incidirmos en que cando Murguía utiliza a palabra ‘dialecto’ se está a referir a lingua non oficial, face a ‘lingua nacional’ ou oficial (o castelán).
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No discurso de Tui de 1891 fala do “noso idioma” que alí preto, ao outro lado do río Miño, é lingua oficial “que serve a máis de vinte millóns de homes” (Murguía 1996: 159). No discurso de 1906 na Academia tamén reincide na proxección internacional do galego, agora como argumento para contrarrestar o tópico da próxima desaparición do idioma: lengua que habló este pueblo durante más de diez siglos, que es la que hablan y entienden cerca de tres millones de gallegos, dieciocho millones de habitantes en Portugal y sus dominios, doce en el Brasil. No puede perecer un lenguaje que tiene una literatura gloriosa, y nombres que son orgullo de la inteligencia humana (en Risco 1976: 131).
Xa desde os seus primeiros textos Murguía, dándose conta da importancia do idioma na construción da identidade nacional da Galiza e consciente do seu desprestixio social, intenta, por unha parte, remarcar esa identificación co portugués, seguindo unha liña argumental presente no século XIX noutros moitos autores, na procura do necesario prestixio para a lingua (Hermida 1996); e, por outra parte, tenta desfacer o tópico estendido na sociedade galega (e tan prexudicial para os intentos de revitalización da lingua) de que o galego é unha forma corrupta do castelán ou mesmo o castelán antigo conservado na súa primitiva rudeza; os seus coñecementos sobre os documentos notariais da época medieval en galego vanlle permitir distinguir con clareza este do castelán antigo e manter a reiterada afirmación de galego e portugués seren en orixe a mesma lingua, que en Portugal alcanzou un máis alto nivel de perfeccionamento por gozar da independencia nacional que posibilitou a súa protección e cultivo. Por ser pai do portugués, que á súa vez tamén se fala no Brasil, o galego ten maiores posibilidades de supervivencia do que outras linguas, se ben que precisa dun esforzo ‘patriótico’ por crear obras inmortais que lle devolvan o prestixio que tivo e o lugar que lle corresponde. No artigo “¿Desaparecerán los dialectos?”, publicado en 1879 en La Ilustración Gallega y Asturiana, afirma: Perezcan ó no los dialectos, el deber de los gallegos es salvar el suyo, tratando de conocerle bien y de que dure. Tenemos la seguridad de que entre los que se hablan en Europa es de los que tienen asegurada más larga vida. No desaparecerá tan aprisa ni tan por completo como se espera. Si no se opusiese á ello la cosa misma, con esa fuerza eterna con que se opone á la muerte todo lo que vive, nos hallariamos con que el gallego es padre y orígen del portugués, y éste tiene vida propia y tan lozana como el castellano, una vez que si puede perderse y olvidarse en la porcion de territorio en el cual ondea la bandera lusitana, todavía le queda un refugio en el vasto imperio del Brasil. Padre dichoso, el gallego revive en sus hijos. No morirá, pues, nuestro dialecto. Estudiémosle y conozcámosle y así lo amaremos; usémosle como lengua literaria y así sabremos cuánto vale y de cuánto es capaz. Es obra patriótica. Desgraciadamente no basta el patriotismo para escribir obras inmortales, y éstas son las que ahora necesitamos, para que la lengua de nuestros padres recobre en el mundo el puesto y la importancia á que es acreedora (en Hermida 1992: 205).
No primeiro volume da Historia de Galicia, publicado en 1865, tamén afirma que o galego alcanzara o seu completo desenvolvemento no portugués e que este non era outra cousa que o galego literario (Hermida 1996: 112), tese defendida un século despois por Rodrigues Lapa e que desencadeará a polémica con Ramón Piñeiro.
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Castelao, en liñas xerais, bebe no pensamento político e lingüístico de Murguía, asumindo en consecuencia os postulados relativos ao tema. Non só se adhire a este pensamento galeguista dominante que propugna unha identidade esencial entre galego e portugués, tamén defendida pola “ciéncia romanística” (Carvalho 1983: 112), senón que é unha das personalidades que máis ten insistido nesta cuestión e que ten achegado argumentos máis sólidos, sobre todo desde a perspectiva histórica, con pronunciamentos moito numerosos ao respecto, difíceis de resumirmos6. Talvez a cita máis explícita, e ao mesmo tempo máis polémica, é a tirada da carta a Sánchez Albornoz, onde, após expresar o desexo de que na Galiza se fale tan ben o galego como o castelán, e viceversa, acrecenta o degoiro de que o galego "se acerque y confunda con el portugués, de modo que tuviésemos así dos idiomas extensos y útiles” (en Carvalho 1989: 91). Porén, debemos situar estas afirmacións no seu contexto. Castelao está a rebater nesa carta o argumento do isolacionismo lingüístico da Galiza sen o castelán, aducido por quen sería presidente do goberno español no exilio; está a utilizar, pois, armas dialécticas nunha conxuntura concreta e en correspondencia privada. Aínda así, está claro que Castelao desexa “a restauraçom da unidade lingüística galego-portuguesa” (Carvalho 1989: 105). Mais non a subordinación do galego ao portugués, ou a disolución do galego no portugués. En Sempre en Galiza dinos que “o povo galego fala un idioma de seu, fillo do latín, irmán do castelán e pai do portugués” (Castelao 1961: 41), dando continuidade ao pensamento de Feijoo, Sarmiento e Murguía; e a reforzar a primacía histórica do galego sobre o que el considera, segundo xa vimos, mal chamado portugués, porque “o portugués non é outra cousa que o galego, pois da Galiza pasou a Portugal” (Castelao 1961: 161). Sen as explicitar con precisión, Castelao era consciente de certas diferenzas entre galego e portugués, sobre todo fonéticas, e tamén ortográficas, derivadas do predominio da norma do sur como consecuencia do peso político de Lisboa7, observando "cómo dende o Meiodía lusitano se irradia unha especie de andalucismo, que desvirtúa a orixinalidade galaico-portuguesa”. Mais, a pesar de soaren de forma diferente, as palabras portuguesas continúan a ser galegas: "ainda que os ouvidos galegos estranen as voces portuguesas non por eso deixan de ser voces nosas, voces galegas” (Castelao 1961: 346-347). Porén, aínda admitindo esa identidade fundamental entre galego e portugués, semella que Castelao non consideraba adecuada a ortografía portuguesa para o galego. Neste sentido, afirma Monteagudo (2000: 163-164) que Castelao "sempre empregou a grafía tradicional do galego moderno”, cualificando a lusa como “excesivamente ornamental, o cal, na súa mentalidade, era un síntoma de artificialismo e decadencia” e a suxerir que “a identificación do portugués co galego non se pode interpretar como un principio do que Castelao se sirva para propugnar a lusitanización do galego, senón máis probablemente para propoñer a galeguización do portugués”; tamén entende que a "aparente" contradición entre a teoría e a práctica
6 Véxase, por exemplo, Cambeiro (1978), Fontenla (1989), Fernández Velho (1989), Gil Hernández (1989), Carvalho Calero (1984: 261-267 e 1989) ou Monteagudo (2000). 7 Para Castelao a división da Galiza coa separación política de Portugal vai supor o fortalecemento de Castela; e o deslocamento do centro do poder portugués para Lisboa afasta Portugal da Galiza: “pero a Portugal faltoulle Galiza e nunca chegou a ser unha nación tan forte como Castela. E dende Lisboa non se vé nin se sinte a necesidade de Galiza” (Castelao 1961: 335-336).
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lingüística de Castelao "é un relativo espellismo, unha consecuencia dun enfoque erróneo da realidade histórica”, non lle parecendo defendíbel a hipótese de que foron as dificultades de aprendizaxe do portugués as que disuadiron Castelao de escribir nesa lingua "se el tivese decidido que iso era o correcto e coherente”. Castelao non participa en polémicas ortográficas, ben vivas na prensa galeguista na época das Irmandades (Tato 1997), o que nos impide coñecermos con clareza o seu posicionamento ao respecto. Mais é ben sabido que a súa praxe lingüístico-ortográfica non é lusista e nin sequera “utiliza a grafia erudita ou etimológica empregada por Pintos, António de la Iglesia, Viqueira, Correa Calderón, Bouza Brey, Victoriano Taibo, J. Canedo, Risco (en Nós, a partir de 1930) e tantos outros” (Fernández Velho 1989: 36), producíndose unha desconexión “entre umhas teorias lingüísticas profundamente reintegracionistas e umha prática só parcial e nom totalmente reintegracionista”, segundo afirma Rábade (1989: 65), que aventura como causas disto non ser Castelao un lingüista, a inercia cultural maioritaria ou un criterio pedagóxico-populista: "Castelao adopta a grafia mais usual na Galiza, porque em primeira instáncia escreve para ser lido polos galegos, polos sectores mais amplos possíveis”. Este último argumento é tamén utilizado por Carvalho (1989: 103), ao soster que o "uso da ortografia castelhana para escrever em galego figera-se avondo geral, porque dava facilidades aos emissores e receptores da literatura galega, educados na língua oficial”. Dada a prioridade que Castelao concedía á dignificación e normalización da lingua, exixencia básica para dotar de prestixio a fala popular, e téndomos en conta as urxencias e necesidades do momento, que o seu instinto político tan ben sabía captar, semella moito probábel que esta razón práctica tivese un peso importante na súa opción ortográfica, mais sen desbotarmos tampouco a súa concepción apriorística sobre a especificidade do galego e a primacía histórica deste sobre o portugués. Castelao tiña como desideratum o achegamento e mesmo a fusión co portugués, mais sempre desde o galego e seguindo un proceso de elaboración dun modelo propio de lingua culta. Neste mesmo sentido, convén tamén termos en conta a opinión de Monteagudo cando suxire, aínda coa limitación de se basear só nunha única afirmación do autor a respecto da ortografía portuguesa, que a posición de Castelao sobre a ortografía “non era tan espontánea e inxenua como adoito se pretende”, resumindo así a súa visión do lusismo de Castelao: coido que a identificación teórica do galego co portugués, lugar practicamente común nas elites galeguistas, ten unha funcionalidade específica no contexto do desprestixio social e cultural do galego fronte ó castelán e de vindicación da prioridade lingüístico-cultural do galego sobre os romances peninsulares, e ademais reflexa unha auténtica simpatía por Portugal e a súa cultura. Pero este filo-lusismo non tiña unha funcionalidade tan relevante cando se trataba de solucionar os problemas relacionados coa elaboración da lingua. A razón probable disto é que na creación do estándar galego entraron en funcionamento motivacións máis poderosas, como o desexo de auto-identificación e a procura do enxebrismo. Vista a cuestión deste xeito, non consideramos historicamente incoherente a teoría ‘reintegracionista’ coa práctica ‘autonomista’ daquelas elites, e concretamente a de Castelao (Monteagudo 2000: 164-165).
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Por outra parte, resulta cando menos discutíbel a tese de Fontenla (1989: 13) de que “Castelão hoje seria o que chamam alguns pejorativamente e infundadamente ‘um lusista’ e que desde a existencia do Acordo da Ortografia Simplificada do Rio de Janeiro seria ‘um unionista’ ou unificador”. Fernández Velho (1989: 31-34) recoñece que o lusitanismo de Castelao era “umha clara arma política contra o centralismo” e sinala “a ironia e paradoxo de o atlantista rianjeiro nom alinhar-se na luta por esta alternativa, que tam dignamente sustinham homens tam significados da sua geraçom como Viqueira”. En síntese, o que combate Castelao, e tamén Murguía, é o isolacionismo do galego e a renuncia da Galiza ao patrimonio que supón o ter xerado unha das linguas máis faladas no mundo, factor potencial que debe ser utilizado para combater o desprestixio do idioma. Por iso Murguía e Castelao defenden a aproximación ao portugués, que vén sendo o afastamento do castelán. Mais sen entreguismos, sen o galego renunciar a nada de seu, e como argumento decisivo para a dignificación da lingua perante os propios falantes e para aumentar a súa autoestima, ao tempo que como obriga moral de preservarmos o noso legado histórico. Segundo afirmaba o profesor Carvalho (1989: 107), Castelao "nom nos hipotecou o porvir. Limitou-se a indicar um caminho para o futuro imediato”. Moita xente coida tamén que ese continúa a ser aínda o futuro do galego, pois se Castelao, e con el o movemento nacionalista galego, achou na identificación co portugués un argumento eficaz, para alén de histórica e cientificamente verosímil, a prol da dignificación e da normalización do galego no seu tempo, tal eficacia dificilmente pode diminuír, senón necesariamente aumentar, no momento en que a globalización e o pragmatismo se nos impoñen como novos deuses do tempo presente. 4. O modelo lingüístico e a cuestión da norma Coinciden Murguía e Castelao no marco teórico xeral a respecto da relación entre galego e portugués, mais van manter praxes lingüísticas diferentes, posibelmente tamén en función do tempo que lle tocou vivir a cada un: en tanto que Castelao é un escritor monolingüe en galego (Garcia Negro 1999), Murguía éo practicamente en castelán; porén, ambos coinciden en non ensaiaren fórmulas reintegracionsistas na escrita cando é o caso. A comezarmos por Murguía, é obvio que non ten unha actuación coherente cos postulados teóricos nos seus escasísimos textos en galego, canto ao modelo xeral de lingua por el utilizada e en concreto no plano ortográfico. Como sinala Hermida (1996: 112-115), en tanto que autores como Balbín de Unquera, López de la Vega ou Juan Valera defendían a identificación e fusión entre galego e portugués, Martínez Padín, Antonio de la Iglesia e Murguía eran partidarios dunha identificación sen fusión, por non realizaren ningunha manifestación a favor do lusismo ortográfico; no caso concreto de Murguía, para a mesma estudiosa “o idioma que el utilizaba era con moito o máis castelanizado do século pasado”, expresión talvez un tanto exaxerada, aínda que é certo que os castelanismos son numerosos. Se neste aspecto é posíbel acharmos contradición no autor, tamén a pode haber entre tanta insistencia na identidade de galego e portugués e a defensa dunha literatura galega, coa súa propia lingua literaria, diferenciada da portuguesa, como xa se puxo de manifesto: Murguía non se cansa de repetir que son o mesmo o galego e o portugués; que se o galego é dialecto, éo do portugués. Endebén, en medio da escuridade dunha esposición abalada pola indignación, que vai remitindo conforme avanza o discurso, e conforme fica atrás a
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espresión da súa enemistade coa Condesa, o Patriarca, na súa réplica a Valera, semella reivindicar o diferencialismo galego cara o portugués. Aceptándomos esta interpretación, teríamos que Valera propugna o reintegracionismo do galego ao torgo común, mentras Murguía, ao defender a língua literaria galega non xa perante o castelán, senón perante o portugués, adoptaría unha posición aislacionista [...]. Se Murguía fora consecuente, non adoptaría unha actitude tan negativa perante as teses de Valera. Cando Castelao falaba de aprosimarmos o galego ao portugués ata confundírense as dúas línguas, desenrolaba unha idea que se pode xustificar en Murguía. É curioso que tamén se ache no Patriarca, como vimos de ver, base suficiente para xustificar de algún xeito a teoría separatista do galego e o portugués. A resistencia á concordia galego-portuguesa en nome dos mesmos sentimentos que se invocan para rexeitar unha concordia galego-castelá –sempre falando en termos de lingua literaria–, é un exempro máis da tensión á que un azar histórico ten sometida a alma de Galicia e a dos galegos (Carballo 1977: 105)8.
É certo que hai contradicións e que Murguía utilizou para o galego o sistema demótico na respresentación gráfica da lingua, en contra do etimolóxico que nos aproximaba do portugués. Isto leva Hermida (1996: 113) a considerar que Murguía, igual que outros autores, “defendía a identidade das dúas linguas baixo un punto de vista fundamentalmente retórico”. Porén, talvez debamos considerar esta cuestión desde outra perspectiva. Por unha parte, do punto de vista estritamente patriótico, Murguía, Castelao e tantos outros, aínda a defenderen a identidade lingüística galego-portuguesa, non queren (nin teñen por que) rebaixar en nada a consideración do galego como lingua propia da Galiza, coa súa peculiar literatura, tendo en conta que o portugués é unha derivación histórica do galego e que socialmente sería moi prexudicial para este a súa subalternización ao portugués. Por outra parte, Murguía, como Castelao, carecían de preparación filolóxica e de material bibliográfico necesario para levaren a cabo unha praxe ortográfica (e lingüística en xeral) galego-portuguesa. Así como Murguía defendeu con paixón o uso do galego e el utilizou o castelán por considerar que a súa misión naquela altura era outra ou que el non era a persoa chamada a iniciar ese labor, neste caso defende así mesmo a identidade galego-portuguesa sen a practicar. Murguía foi fundamentalmente un animador ou incitador ao uso escrito do galego, aínda que el persoalmente apenas o utilizase. Os restauradores do galego no século XIX iniciaron, nunha situación tremendamente precaria, un lento mais moi meritorio labor de elaboración dun modelo lingüístico propio que fose o máis apto posíbel para a expresión artístico-literaria. Mais será Viqueira, xa no século XX, quen con máis clareza e mesmo paixón vai defender a utilización da grafía etimolóxica e a aproximación do galego ao portugués, idea que desde un plano teórico vai manter tamén boa parte do galeguismo de preguerra, como xa mantiveran no XIX Pondal e Murguía, entre outros. Rafael Dieste, por exemplo, veciño e amigo de Castelao, participa polos anos vinte na polémica da ortografía na prensa diaria, propugnando avanzar cara á consecución dunha “lingua franca galego-portuguesa”
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Véxase tamén a este respecto García Pereiro (1978: 364-365).
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(Dieste 1981: 34). Como afirma Rodríguez (1999: 77-78), a Castelao tocoulle vivir nunha etapa en que ninguén preocupado polo galego era quen de negar "a sua comun estrutura básica co portugués e mesmo que Galiza era orixe e berce deste idioma", aspecto en que o pensamento de Castelao "coincidia mesmo con toda a lingüística españolista e coa escola histórica española que tanto axudou a cimentar a idea da españolidade opresiva en que todos fomos educados". Castelao fala de que o galego se debe aproximar do portugués até se confundir con el, mais el non dá tampouco pasos significativos nese sentido, ben por se non considerar capacitado, ben por ser consciente de que iso non pode ser un acto voluntarista de carácter individual, senón unha tarefa colectiva derivada dun consenso social e que exixe un proceso gradual de posta en práctica. No mesmo sentido, cando Carvalho Calero está a criticar que Murguía defenda face a Valera unha lingua literaria galega diferente da portuguesa, faino nun modelo lingüístico ‘separatista’ ou ‘isolacionista’ que el mesmo censura, e que máis adiante mudará cando se considerou capacitado e cando se deron elaborado e asumido propostas máis ou menos coherentes de unificación gráfica galego-portuguesa (Rodrigues Lapa, Montero Santalha, Agal etc.). O parelelismo, con praxes progresivamente máis coherentes, entre Murguía, Castelao e Carvalho Calero seméllanos a cada paso máis evidente: Murguía defendeu o uso do galego e a identidade galego-portuguesa, mais escribiu en castelán, cuns poucos textos en galego moi castelanizado; Castelao defendeu tamén o noso idioma e o reintegracionismo, sendo xa escritor monolingüe en galego e practicando un modelo de lingua moi depurado de castelanismos a respecto do modelo dominante noutros escritores, con escolla de solucións coincidentes co portugués (-bel, até, proprio, povo, Galiza etc.) dentro dunha norma gráfica xeral dependente da española; Carvalho Calero mantén os mesmos postulados teóricos a respecto do idioma que os dous anteriores, é basicamente fiel ao uso do galego na creación literaria, como Castelao, e acaba por practicar coherentemente o reintegracionismo lingüístico na última fase da súa vida, após sucesivas etapas de achegamento á que consideraba mellor solución para o problema ortográfico do galego. O xuízo sobre a coherencia lingüística de cada un destes autores non debe realizarse sen termos en conta a época e as circunstancias en que cada un viviu. Non deixa de resultar un tanto sorprendente, por outra parte, o feito de que nin Murguía nin Castelao teñan participado directamente na polémica ortográfica, como fixo Carvalho Calero, cando esta estivo viva tamén en vida dos dous primeiros; e resulta especialmente sorprendente en Murguía, que se viu envolto en moitas ao longo da súa vida. Tanto este como Castelao dedicaron os seus esforzos a debateren cos inimigos internos e externos a respecto da nosa identidade política e lingüística, talvez sen tempo nin ganas de o faceren con aqueles con quen partillaban en xeral a preocupación polo futuro do país e do seu idioma. O tempo de Carvalho Calero xa era outro, aínda que o tema da definitiva fixación do modelo lingüístico pervivía e aínda hoxe pervive. Murguía participaría da polémica sobre a identidade lingüística da Galiza por se tratar da cuestión verdadeiramente relevante naquela altura9;
9 Unha mostra témola na súa discusión con Juan Sieiro (González Seoane 1991: 282-283), cuxos textos recompilou Hermida (1992b: 199-211), ou nos duros artigos contra Emilia Pardo Bazán en La Voz de Galicia (Murguía 2000).
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debater sobre a norma en que se debía escribir o galego nunha época en que estaba totalmente afastado de calquera uso administrativo ou do ensino e en que posuía un moi reducido cultivo literario non semellaba certamente o máis relevante nin o máis necesario na tarefa de loitar pola súa recuperación escrita e pola dignificación do seu uso, sobre todo cando tamén era posta en cuestión a súa propia existencia como lingua diferenciada con dereito a ser empregada en todos os contextos. Murguía, e despois Castelao, souberon, pois, moi ben concentraren as súas enerxías na defensa do primordial para a lingua na época que lles tocou vivir, sen por iso deixaren de expresar con clareza a súa concepción xeral sobre o idioma. 5. Conclusión O pensamento de Murguía a respecto da lingua galega fica sintetizado por el mesmo no discurso de 1906 na Real Academia Galega; nel (Murguía 1996: 158-159) áchanse expostas, dunha forma ou doutra, as súas ideas básicas sobre o noso idioma: símbolo e emblema da identidade nacional, demostración innegábel da personalidade diferenciada da Galiza, medio de comunicación universal mercé á súa expansión polo mundo a través de Portugal, vehículo de importantes creacións literarias do espírito humano, lingua de esplendoroso pasado que, a pesar das dificultades do presente, o pobo galego debe amar, usar e defender con proxección de futuro se é que quere continuar a existir como tal con dignidade, pois o último que un pobo debe perder é o seu idioma, como dixo noutra ocasión etc.; isto é, a lingua como bandeira e escudo da nosa personalidade e da nosa singularidade no mundo. Estas mesmas ideas son compartilladas por Castelao, que ten en Murguía un dos seus referentes históricos e unha das fontes máis importantes para a súa tomada de conciencia lingüística, podendo considerarse tamén mestre e inspirador das ideas lingüísticas que o rianxeiro desenvolvería ao longo da súa vida, tanto no traballo político como na escrita. Mais a principal diferenza co home de Rosalía radica fundamentalmente na práctica lingüística, pois Castelao é un autor monolingüe en galego, o primeiro entre os máis significados escritores do país. E isto non é algo casual, pois para el o idioma era o elemento esencial da nosa identidade e a el lle gardou sempre fidelidade, converténdose tamén nun dos seus máximos valedores. Está claro que para Castelao o termos un idioma propio é unha característica que nos singulariza e nos identifica no mundo, a constituír ao mesmo tempo un patrimonio cultural e espiritual de extraordinaria importancia a que nunca debemos renunciar se é que queremos continuar a existir como pobo con voz propia no concerto da humanidade. Tamén soubo ver Castelao, como Murguía, a verdadeira significación e transcendencia do galego como idioma universal, non limitado ás catro provincias en que administrativamente se divide a Galiza actual. Ben nos explica a importancia histórica da Gallaecia e que do seu seo naceu Portugal, que co transcurso do tempo ía proxectar o noso idioma polos diferentes continentes, converténdoo nunha das linguas máis faladas no mundo, feito que tenta aproveitar, como así mesmo fixo o patriarca decimonónico, para o dotar de prestixio entre os propios falantes. En síntese, o contributo de ambos os autores foi fundamental e básico para a emerxencia dun pensamento político que situou o galego no centro do debate político na Galiza e que foi capaz de manter viva até á actualidade a conciencia da súa importancia como elemento de identificación nacional. Así mesmo, ambos os autores contribuíron decisivamente á emerxencia da conciencia de identidade lingüística non só entre a Galiza e Portugal, senón tamén co Brasil.
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A CONTRIBUCIÓN DO DISCURSO XORNALÍSTICO DE RAMÓN VILAR PONTE AO PROCESO DE EMERXENCIA DO SEGUNDO RENACEMENTO1 Goretti Sanmartín Rei
1 Este artigo realizouse no marco do proxecto de investigación A filosofía política de Ramón Vilar Ponte, subsidiado pola Secretaría Xeral de Investigación e Desenvolvemento da Xunta de Galicia [PGIDIT04PXIA26301PR].
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A CONTRIBUCIÓN DO DISCURSO XORNALÍSTICO DE RAMÓN VILAR PONTE AO PROCESO DE EMERXENCIA DO SEGUNDO RENACEMENTO.
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1. Ramón Vilar Ponte e o proxecto de reconstrución nacional da xeración do 16 No primeiro dos volumes editados como resultado do proxecto de colaboración entre unha parte do profesorado da Área de Filoloxías Galega e Portuguesa da Universidade da Coruña e a Universidade do Estado de Rio de Janeiro, a profesora Tato Fontaíña (2003: 193194) lembraba unhas palabras do discurso que Ramón Vilar Ponte le o 16 de xuño de 1951 na súa recepción como académico, onde manifesta, máis unha vez, a consciencia con que as Irmandades da Fala desenvolveran o seu proxecto de emerxencia lingüística e literaria para o noso país. A Xeración do 16 (Villar Ponte, R. 1977) constitúe, tal e como subliñou Rodríguez Jordi na súa laudatio do académico a que substitúe ao ocupar a cadeira vacante tras o falecemento de Ramón “un fragmento palpitante de la vida gallega” que, polo momento en que se produce, supón unha ousadía por parte do seu autor ao tempo que posibilita un coñecemento e unha valoración de primeira man do legado cultural e político do Segundo Renacemento. Porén, como en tantas outras ocasións, a sociedade galega terá que agardar 26 anos e aínda así, tras a iniciativa dos seus familiares para financiaren a súa publicación, para coñecer o contido dun texto revelador que recupera e aproxima (en plena ditadura) a historia do activismo do nacionalismo anterior á guerra civil española; a virtude principal deste discurso reside en focar a perspectiva nos seus principais protagonistas, que recuperan así as súas voces particulares e ofrecen un discurso coherente e, ao mesmo tempo, heteroxéneo sobre as múltiplas facetas a que se dedicaron. A vontade de intervención consciente sobre a realidade lingüística do país levou os integrantes desta etapa a se dotaren dun importante corpus teórico que sustentase unha práctica que tiña como obxectivo fundamental ampliar o campo de uso social e público do noso idioma, e insistía en que este debía cubrir todos os ámbitos de expresión. Noutro momento do discurso que citamos Ramón Vilar Ponte volve sobre esta cuestión para, na liña de defensa da verdade e da xustiza que guiaban a súa conduta2, dar “a cada un o seu”, título este dun dos artigos vilarpontianos escritos no xornal ourensán La Zarpa: 2 Segundo Rodríguez Jordi, Ramón Vilar Ponte era “de sanas intenciones, de incorruptible dignidad, de nobilísimos pensamientos; erudito sin pedantería, sencillo sin desaliño, afable sin afectación”. O propio Ramón deixou varias referencias sobre as habituais referencias ao seu carácter entusiasta (Villar Ponte, R. 1977: 9) e sobre a defensa dos seus valores e principios, aínda que iso o levase a ser en ocasións “todo o inaxeitado, imprudente e incorrecto que se queira” (Villar Ponte, R. 1933b: 1).
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[...] nós non pretendemos deixar sentado que o cultivo abondoso do galego, dende qu’él se inicia, témero e balbucinte até que xa se manifesta seguro e borreante, non foi derivación e froito eiscrusivo do xurdimento das «Irmandades». O que si termamos de probare é que un cultivo sistemático, premeditado, abarcando todol-os campos d’eispresión individual e colectiva, incruido, craro está, o da adoitada conversa entre persoas de categoría intelectual e profesional, se non realizara nunca tan compreta e totalmente até o intre en que as «Irmandades» aparecen e s’espallan pol-a terra (Villar Ponte, R. 1977: 12).
A valoración do menor dos Vilar Ponte sobre o que tivo de “reconstrución artificiosa” (Villar Ponte 1977:13) a consolidación do sistema literario galego foi feita xa con anterioridade polo mesmo autor en diferentes textos, ao aproveitar calquera ocasión para insistir na vontade de modificar as condutas e as actitudes lingüísticas da poboación. Así, no artigo con que Ramón celebra o 16 aniversario das Irmandades (Villar Ponte, R. 1932b: 5) insiste en que só coa formación desta organización se fixo posíbel a rectificación do erro do galeguismo anterior que non situaba en primeiro lugar a reivindicación idiomática. Convén subliñarmos, para contextualizar estas afirmacións, que para parte dos galeguistas do XIX e tamén de comezos do XX a defensa do idioma ía dirixida, fundamentalmente, á súa promoción literaria. Mais entre a renovación que os novos tempos esixen está a aposta por unha coherencia entre teoría e praxe no referido aos usos lingüísticos, ao constituír a lingua o núcleo central sobre o que se sustenta a doutrina da Xeración do 16. Entre as imaxes máis ilustrativas da revolución que supuxo situar o idioma no centro deste proceso están as palabras que Ramón utiliza para ilustrar unha foto do seu fillo maior, Xaime Vilar Chao, cando contaba só con seis meses de idade3: Vera efigie d’un infante galego nazonalista, cicais do único infante que xa no berce, pertenescendo a unha familia non labrega nin artesán, ven sendo aloumiñado por seus pais, d’un xeito conscente e ateigado de intenzón, coás verbas da língua doce e groriosa da Patria, língua â que hoxe están facendo rexurdire as beneméritas Irmandades da Fala. En Viveiro a 19 de Santiago do Ano Santo de 1920 Xaime Villar Chao ¡Patria libre!
O contido deste texto concreta extremadamente o feito de asistirmos a un proceso consciente que procuraba converter en galegofalantes aquelas clases que desertaran do emprego da lingua propia había anos. Ramón Vilar Ponte comprométese persoalmente e fai pública a súa intención, e con ela a das Irmandades, de mudar esta situación co obxectivo de conseguir que o galego volvese a ser a lingua inicial das clases altas, pouco máis dunha década despois de se produciren as coñecidas palabras en que Murguía se laiaba dos cambios producidos nos 50 anos que transcorreran desde que el era novo a respecto do emprego do galego polas clases altas (Murguía 1906: 128).
3 Agradecemos o coñecemento deste importante documento a Teresa Vilar Chao, transmisora entusiasta do legado do seu pai.
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Mais cómpre tamén lembrarmos que o contido do texto que Ramón Vilar Ponte repartiu entre os seus familiares coa foto de seu fillo pretende combater o que se desprendía dunha afirmación anterior do Patriarca, en que insistía en que foran os labregos e os artesáns que representaban as dúas terceiras partes da poboación os depositarios do idioma (Murguía 1864: 47). Faltaba o outro terzo, un sector fundamental pois a súa conduta lingüística era habitualmente imitada polas clases inferiores, e a súa (re)integración era o obxectivo prioritario para construír unha sociedade homoxénea lingüisticamente, que ultrapasase a equiparación do emprego do galego coa pertenza ás clases baixas, e, por tanto, que contribuíse a frear a fragmentación social no terreo lingüístico, por ser contraria aos intereses da patria, tal e como xa anunciara García Blanco (1912: 9) nas súas Consideraciones sobre la decadencia y la rehabilitación de la lengua gallega4. Neste sentido, a tarefa das Irmandades, aínda que se concretaba moi especialmente no aumento do cultivo literario do noso idioma, incluía tamén o potenciamento do emprego do galego na conversa entre xentes instruídas, no comercio epistolar, na oratoria sagrada e profana e nos instrumentos públicos, todo aquilo que Emilia Pardo Bazán enunciara na velada en homenaxe a Rosalía de Castro celebrada en 1885 para xustificar a imposibilidade e os perigos de se converter o galego nunha lingua de prestixio (Pardo Bazán 1984: 17-20) e que Ramón Vilar Ponte recolle no seu discurso de entrada na Real Academia Galega, para, nunha novidosa interpretación das palabras da autora de Los Pazos de Ulloa, proclamar que ese foi o camiño percorrido pola Xeración do 16, un camiño que deixaba atrás a consideración do galego como un dialecto e como unha variedade incapaz de servir ás necesidades dunha cultura elaborada. Coa intención de defender os intereses da lingua e da cultura galegas, o artífice das Irmandades5 declara que as accións que emprende a Xeración do 16 foron a necesaria resposta ao proceso de substitución lingüística que sinalara Emilia Pardo Bazán (Villar Ponte, R. 1977: 14-15). Por outra parte, os autores das Irmandades e do grupo Nós foron, fundamentalmente, xornalistas, e potenciaron esta liña de actuación como un relevante factor de intervención social. En palabras do propio Ramón: Falamos máis atrás dun renovárese da prensa galega que o xurdimento das Irmandades motivóu. Daquela foron varios os xornalistas noveles ou pouco coñecidos deica estonces, que se revelan como realidades integradoras dun xornalismo feito en galego, y-en galego sentido rexamente que ven, para ledicia e benfizo da Terra, a compretar o cadro de actividades compoñentes daquel xurdio despertar galego semellante a unha alborada de groria (Villar Ponte, R. 1977: 43).
4 Un texto que, como demostrou Fernández Salgado (2000: 290-297), responde en gran parte á doutrina que logo desenvolverán e concretarán as Irmandades, a pesar de estas superaren a incoherencia en que cae o mesmo autor ao empregar o castelán na defensa dos seus postulados. 5
Para o papel de Ramón e Antón Vilar Ponte na xestación das Irmandades, véxase Ínsua 2002: 591 e Ínsua 2005.
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E se outros escritores foron valorados desde esa faceta (pénsese en Roberto Blanco Torres que Ramón Vilar Ponte pon a continuación como principal exemplo ou no propio Antón Vilar Ponte quen, sen o desexar, contribuíu á secundarización da figura de seu irmán) pouca pescuda se realizou até o momento sobre a obra xornalística do menor dos de Viveiro, a pesar das palabras que lle dedica Cabanillas na súa resposta ao discurso de entrada na Academia: Poucos serán, en verdá, os que poidan presentar no seu haber unha labor xornalista e literaria tan considerabre e tan copiosa, avalorada no externo pol-a claridade expositiva e pol-o casticismo do seu léxico, e no interno pol-o exame concienzudo das materias, pol-a serenidade da crítica e pol-a devoción fervorosa do autor ó país galego que se reflexa en todal-as páxinas dos seus libros e dos seus artigos e ensaios (en Villar Ponte, R. 1977: 56-57).
Especialmente significativa foi a importante actividade que Ramón desenvolveu nos primeiros anos de vida das Irmandades e moi concretamente, aínda que non só, a través das páxinas do xornal A Nosa Terra. O que agora nos interesa subliñar é que nos primeiros anos da existencia do órgano de difusión da doutrina da Xeración do 16, ademais de seren da autoría de Ramón e de Antón, polo estilo e os contidos, moitos dos artigos sen asinar (véxase Beramendi 1991: 11) e outros asinados con iniciais ou con pseudónimo, son especialmente relevantes, polo seu carácter didáctico e o seu afán proselitista, os artigos doutrinais escritos por Ramón Vilar Ponte ao pretenderen afianzar as bases do nacionalismo galego e pór os alicerces na cuestión lingüística e atacar aquelas persoas que aínda pensaban na posibilidade de seren integrantes do movemento galeguista empregando o español. A rotundidade dos seus contidos e a denuncia dos falsos apóstolos da causa anuncia textos posteriores que, na mesma liña, procurarán un verdadeiro compromiso lingüístico da base nacionalista. A súa proposta máis radical é a que suporía a creación dunha Subirmandade con aquelas persoas dispostas a seren verdadeiramente consecuentes co ideario nacionalista, algo que implica obrigatoriamente o emprego da lingua propia en calquera situación e con calquera receptor que nacese no noso país e rematar coa habitual transixencia no emprego do español (Villar Ponte, R. 1920b: 1). A reflexión ten grande interese xa que se produce só catro anos despois do nacemento das Irmandades e supón a constatación das contradicións en que caían algúns compañeiros na causa que non empregaban a nosa lingua na maioría das interaccións lingüísticas da súa vida cotiá, ao teren o galego por idioma da tribuna e da vida pública mais continuaren utilizando o castelán como lingua familiar. Porén, aínda que se recoñeceza a relevancia destes textos, Ramón Vilar Ponte é unha figura case descoñecida na súa faceta de xornalista para gran parte do público galego, mesmo especializado. Decidimos, pois, abordar a análise das liñas fundamentais do discurso xornalístico de Ramón Vilar Ponte na época das Irmandades, un percorrido que nos ofrecerá unha imaxe bastante completa das motivacións da escrita dun autor recorrente nos seus contidos e cuxa obra constitúe un todo unitario dominado pola presenza de Galiza e a procura do ideal da súa redención. Non é a nosa pretensión realizarmos aquí unha análise do catálogo completo das colaboracións xornalísticas diseminadas ao longo da súa traxectoria por moi diferentes publicacións, entre as que cómpre salientar A Nosa Terra, El Pueblo Gallego, La Zarpa, Galicia.
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Diario de Vigo, A Fouce, Alento, Erte, El Heraldo de Galicia, Rexurdimento, Lar e Galicia de Buenos Aires etc., senón que, unicamente, pretendemos sintetizar as ideas que vertebran o seu discurso de construción nacional e ofrecer unha aproximación ao papel que lle correspondeu dentro da xeración das Irmandades. 2. A heteroxeneidade dos textos vilarpontianos Incluímos no noso estudo os artigos que Ramón Vilar Ponte asinou co seu nome completo ou coas iniciais RVP6, aqueles que asinou unicamente coa inicial do seu nome (R.)7 que son claramente da súa autoría, algúns non asinados mais que presentan certas características que non fan dubidar da súa autoría ou sobre os que existen referencias que a certifican8 e outros que foron publicados baixo pseudónimos que xulgamos poden ser atribuídos ao noso autor, unha serie de decisións que xustificamos a continuación. O constante intervencionismo do menor dos Vilar Ponte, ao que hai que engadir a consagración de Antón como o grande guía do movemento e a necesidade de ofrecer a imaxe de seren os nacionalistas máis dos que realmente eran, acaba por restrinxir o número de artigos que o autor asina co seu nome completo. Mais o seu estilo, os temas habituais que son obxecto do seu interese e a maneira de os transmitir, aparecen inequivocamente noutros textos que nos xornais A Nosa Terra e en El Correo Gallego, na etapa en que o dirixiu, adoitan acompañar ora outro(s) artigo de si propio, ora outro(s) de seu irmán. A maioría destes artigos pertencen a determinadas series de colaboracións cun título identificativo, polo que é habitual que se correspondan con números sucesivos dalgunhas épocas moi concretas de diferentes xornais. As concomitancias temáticas, lingüísticas e estilísticas con outros escritos facilitan a atribución dalgúns textos a Ramón Vilar Ponte, ao tempo que se observa como foi un referente fundamental no deseño da política para a lingua defendida polas Irmandades. En ocasións, a autoría do artigo é moi clara, ao coincidir, case literalmente ou con algunhas modificacións, con textos que logo viron a luz noutra publicación con asinatura do autor. Podemos exemplificar esta cuestión no artigo que publicou o xornal El Correo Gallego de Ferrol o 7-IX-1921 baixo o título “Luz y obscuridad” dentro da sección “Una cuartilla”, que coidamos que non pertence, como propón Ínsua (2002: 1096) ao maior dos Vilar Ponte, senón a Ramón, que volve usar o mesmo texto anos máis tarde, e xa en galego (“Liñas incidentaes. Luz i-escuridade”), no xornal vigués El Pueblo Gallego (Villar Ponte, R. 1927a: 1). Pódense tamén atribuír ao noso autor unha serie de tres artigos publicados en números correlativos do xornal A Nosa Terra entre setembro e outubro de 1918 ([Villar Ponte], R. 1918b, [Villar Ponte], R. 1918c e [Villar Ponte], R. 1918d) que asinou unicamente coa primeira letra do seu nome, R., inicial que, ora xunto ás dos seus apelidos, ora a carón da referencia á súa vila natal tamén ten sido utilizada polo de Viveiro. Canto a outras características
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Iniciais que continuou utilizando tamén na posguerra (véxase V[illar] P[onte], R. 1953: 5).
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Xa fóra desta primeira vizosa etapa do de Viveiro, diferentes textos levan o seu indiscutíbel selo (véxase, por exemplo, o artigo “A cuarta plana” -[Villar Ponte], R. 1930d: 6-, publicado nun número do xornal A Nosa Terra que xa inclúe outro artigo asinado polo autor co nome completo). 8 Véxase, por exemplo, a información que dá o número154 do xornal A Nosa Terra (31-12-1921) sobre o Boletín da Irmandade da Fala do Ferrol, cuxo texto foi redixido por Ramón Vilar Ponte ([Vilar Ponte, R.] 1921d).
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importantes destes textos, alén de partillaren un título xenérico en común, os seus contidos correspóndense con motivacións habituais no noso autor (confusión Estado / nacionalidade; capacidade de rexeneración dun pobo se mantén vivo o idioma propio...), mesmo con oposicións dicotómicas moi do gosto dun Ramón Vilar Ponte que, por razóns didácticas, reduce sempre as cuestións máis transcendentes a un esquema binario, onde non existen termos intermedios: “A patria síntese ou non se sinte. Pertender qu’en tal sentimento haxa termos meios é totalmente inadmisibre” ([Villar Ponte], R. 1918c: 1). No ano 1919 aparecen tres novos artigos coa mesma inicial dentro da sección “Verbas acesas”. Novamente estes textos van estar situados ao carón doutros artigos asinados co pseudónimo de Clodio Espasende sobre o que volveremos máis abaixo, ou de escritos de Antón Vilar Ponte, un feito que, evidentemente, influía na utilización da inicial do nome para asinar. Nestas tres columnas de pequenos fragmentos sobre aspectos básicos da teoría e práctica nacionalista, o denominador común é o tratamento do idioma como a cuestión principal. O primeiro destes textos ([Villar Ponte], R. 1919a) responde a aqueles que consideran que o galego xa non é o idioma das clases altas e que só pode pertencer ao vulgo iletrado. A radicalidade das posicións vilarpontianas leva a situar o problema no seu xusto termo, reivindicando o valor de posuírmos aínda o idioma mercé á súa conservación entre as clases populares. Por outra parte, e para mellor comprendermos a intencionalidade que se agocha baixo algún dos pseudónimos utilizados polo noso autor, xulgamos que tamén a través destes textos xornalísticos –algúns deles de carácter literario– se procura vertebrar un proceso de construción nacional moi semellante ao que xa foi estudado para o discurso literario, e moi concretamente no caso galego, para as novelas oterianas (véxase Fernández Pérez-Sanjulián 2003). Xustamente escolle Ramón Vilar Ponte a publicación d’Os señores da terra para facer explícito que con obras como esta se cumpren as expectativas e os obxectivos programados polas Irmandades: Eu findei agora a lectura de “Os señores da terra”, pirmeira parte de unha triloxía novelística que a pruma xúrdia de Ramón Otero Pedrayo ven arranxando. Hai en min, dimpois da lectura de ista ademirabel novela do esgrevio polígrafo ourensán, unha tola ledicia cuia eispricación termo de abranguere e coido xa tere abranguido. Dimpois de lere a obra do gran Ramón galego por antonomasia, xa non cabe dubidare que o movimento reivindicador da patria, qu’en boa hora iniciaran as beneméritas Irmandades, escomeza a ofrecere os froitos xúrdios, os froitos belidos de plea maturidade, que dende o escomezo da acción vimos agardando os que d’ela fumos verdadeiros brazos executores. […] Todo isto pensaba eu xa, cada vegada que â miña conescenza chegaba unha nova obra das moitas que de algún tempo a ista parte se veñen pubricando, e que son como unha consecoenza ou millor como o froito das nosas campañas galeguizadoras e de retorno a nós mesmos (Villar Ponte, R. 1928a: 2).
Velaquí, pois, de maneira explícita, a utilidade da literatura no proceso de reconstrución nacional da Galiza que vertebrou a Xeración do 16. Talvez por esta serie de lúcidas reflexións onde Ramón Vilar Ponte comparte co público lector a fusión entre o proxecto
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político do nacionalismo e a consolidación do sistema literario galego9 agardariamos unha maior dedicación á literatura por parte do noso autor. Porén, ese non era o campo onde mellor se movía, tal e como afirmou Carballo Calero (1981: 613) ao indicar que Ramón Vilar Ponte era realmente un escritor didáctico, un orador por escrito. Os poucos contributos literarios de Ramón Vilar Ponte durante a preguerra xustifican a avaliación carballiana, por residir o valor dos seus textos na transmisión dun discurso simbólico de que sempre tiramos un aproveitamento ideolóxico; neste sentido, practicamente todos os textos literarios que escribe o de Viveiro na preguerra civil española procuran paralelismos metafóricos e alegorías que poidan ser doadamente interpretados polo público lector. Así sucede cando se mestura a paixón amorosa co fervor patriótico nun texto dedicado á memoria do “nazonalista exemprar Ignacio Rodríguez” (Villar Ponte, R. 1922c: 1), en que a amada que provoca a morte do amado pola dor da súa ausencia é a Patria, que finalmente recolle o corpo doente do loitador. O tema do fracaso da emigración está presente no conto “O derrotado” (Villar Ponte, R. 1924a: 3) e en “Peirao romántico” (Villar Ponte, R. 1930c) e, finalmente, Galiza aparece personificada nunha protagonista-vítima que sofre da escravitude e das aldraxes (Villar Ponte, R. 1924d: 1). Noutros casos saúdase a primavera como exemplo da fecundidade patriótica que ha de vir (Villar Ponte 1921a: 2-3) ou coa intencionalidade de converter as cantigas dedicadas a esta estación en cantos de loita e de reivindicación (Villar Ponte, R. 1922b: 1). En definitiva, quer a través dos galegos e das galegas e das súas vicisitudes, quer a través da humanización da patria, o cometido fundamental é procurar unha identificación persoal cos protagonistas dos relatos e acrecentar así a consciencia sobre o país e as súas necesidades. A utilización da literatura como principal instrumento de reconstrución nacional é un feito especialmente visíbel nas dúas décadas anteriores a 1936, sobre todo a través das páxinas da revista Nós, organismo de difusión dun discurso literario que relaciona a literatura galega cun proxecto nacional. Xustamente por iso as grandes obras literarias, e de maneira moi especial a literatura histórica, van fornecer o noso autor de elementos simbólicos para proxectar o seu discurso de reconstrución da nación. Se a influencia de Vicetto é explícita na obra de Cabanillas e de Antón Vilar Ponte, que pretenden contribuír co Mariscal a transformar a historia, ao concordaren coa idea de que aqueles pobos que están a emerxer precisan máis de mitos que da Historia obxectiva e rigorosa, non menos certo é que a admiración de Murguía por esta novela histórica tamén había influír na escolla dalgún pseudónimo vilarpontiano, pois unha revelación semellante á murguiana tras a lectura da novela de Vicetto (contada polo Patriarca en Los precursores10) era a que as Irmandades agardaban do público receptor dos seus textos xornalísticos e literarios.
9 Véxase, a este respecto, un dos fragmentos dun texto publicado no xornal La Zarpa onde responde a un artigo publicado en El Sol onde se afirma que na Galiza non existe conciencia nacional como en Cataluña: “o Gómez aludido descoñecerá, da esistenza de unha intelectualidade galega, somentes galega, feita de costas a Castela ou millor, si cadra, a Hespaña cuios órgaos repersentativos son as escelentes pubricacións Nós e Céltiga, honra da Galiza que sabe sentírese a si mesma” (Villar Ponte, R. 1923a:1). 10
Véxase Murguía 1976: 233-236 e 250-257.
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Tras o proceso de laboriosa pescuda do inventario das publicacións de Antón Vilar Ponte, o profesor Ínsua López sinalou que algúns dos textos do xornal A Nosa Terra que presentan a sinatura de Clodio Espasende poderían ser, atendendo a criterios estilísticos, lingüísticos e temáticos, do maior dos de Viveiro, observándose tamén que algún deles parece “máis propio de Ramón que de Antón Villar Ponte” (Ínsua 2002: 955). Ademais duns contidos que moitas veces comparten os dous irmáns, a presenza de certos vocábulos moi habituais en Ramón Vilar Ponte, a súa rotundidade e a súa intransixencia na defensa do emprego da fala e algúns trazos de carácter lingüístico (cuxa exposición ultrapasa os obxectivos deste artigo) inclinan a balanza ao seu favor. Alén disto, varios destes artigos (entre eles o que Ínsua considera máis ramoniano) pertencen a unha mesma serie encabezada polo título “Pequenas consideirazóns”. Mais, sobre todo, o feito de ter utilizado Ramón Vilar Ponte con posterioridade o mesmo pseudónimo indica claramente que estes textos son da súa autoría. Referímonos, concretamente, a varias follas manuscritas depositadas na Biblioteca do Parlamento galego, con letra do máis novo dos de Viveiro e cun contido que revela que algunha delas foi escrita tras se ter producido a morte de Castelao, por tanto, como mínimo, catorce anos máis tarde que o falecemento de Antón. Clodio Espasende é un dos protagonistas da novela de Vicetto Los hidalgos de Monforte, romance histórico sobre o que Ramón Vilar Ponte realizou un traballo que foi premiado en 1951 no Centro Gallego de Madrid. A obra recrea a historia de Pardo de Cela, personaxe que, de xeito anagnórico había recibir, durante grande parte da novela, o nome de Clodio Espasende. A idea que se pretende transmitir no primeiro destes textos vilarpontianos (Espasende 1918a) reforza a interpretación de se basear no romance vicettino, pois neste escrito alértase sobre a apatía do pobo galego ante a Asemblea de Lugo, centrándose nesta provincia e salvando unicamente deste desleixo as vilas de Monforte e Vilalba. O significado deste pseudónimo é claro. A través del podemos escoitar a voz do libertador da Galiza, da verdade da lenda que é a que a nós nos interesa, como diría Murguía11, o seu irmán Antón no prólogo da peza dramática O Mariscal e o propio Ramón nun artigo publicado en 1924 titulado “Apariencias paradógicas”, onde sinala que os mitos poden trocarse en realidade: Hay, pues, la verdad que no obra, la verdad inerte y fría incapaz de sugerir el más tenue dinamismo. Como hay también la verdad fecunda y trascendente siempre propicio al germen de saludables y efectivas derivaciones. Pero como al lado de ellas, sin estorbarlas ni depreciarlas en lo más mínimo se nos muestra otra verdad, la de la leyenda, y muy principalmente la de la leyenda histórica, que confusa y desorientadora en su gestación
11 “Aún cuando la historia niegue con razón al mariscal Pardo de Cela el carácter de Libertador que se le asigna en la fábula, siempre quedará en pié, simpática, llena de interés, la figura del soñado Jefe de los Hirmandiños; de aquel que, según el poeta, combatió por la causa del pueblo y por la causa de Galicia, sacrificadas ambas por la doble cuchilla de los Reyes Católicos y de los próceres gallegos. ¡No se hable de faltas históricas!... todo está compensado con el interés dramático de la narración, con lo perfecto y aún pudiera decirse patriótico de los caracteres, con el fin práctico soñado y perseguido en la novela. Ante tan noble intento, todo desaparece, y el libro adquiere, á nuestros ojos, el valor necesario para ser á un tiempo la revelación del estado de los espíritus y de los deseos y esperanzas de nuestro pueblo, por aquel tiempo” (Murguía 1976: 252-253).
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truécase luego en claridad deslumbrante y vivificadora cuyos mejores testimonios probatorios e incontrovertibles hállanse en los hechos, en las realidades vivas que origina, hechos y realidades a cuya fuerza de convicción ni aún el más incrédulo puede sustraerse (Villar Ponte, R. 1924c: 3).
De entre os outros traballos asinados baixo este pseudónimo, posúe especial importancia o titulado “Pequenas consideirazóns. Importancia da lingua” (Espasende 1919d), en que ataca aquelas persoas que non unen a reivindicación idiomática á defensa do país e subliña que toda a política que se realice sen ter en conta a lingua como factor principal para o desenvolvemento nacional está chamada ao fracaso máis rotundo. As referencias a Cataluña e o remate exemplificador da recuperación da lingua en Polonia son outras mostras dunha temática recorrente no noso autor12. E nada mellor que completar ese círculo da utilización simbólica do personaxe de Pardo de Cela escribindo sobre Castelao. Neste sentido, o Mariscal encarnaría uns principios moi semellantes aos da fidalguía ideal de Otero ou da elite galeguista de Risco, esa minoría de escollidos que levarán o pobo á salvación13. Este texto de que falamos asinado por C. Espasende que está depositado na Biblioteca do Parlamento –e cuxa letra pertence inequivocamente a Ramón Vilar Ponte– comenta as liñas de dedicatoria para os verdadeiros patriotas e compañeiros da causa que na obra As cruces de pedra na Galiza aparecen baixo a palabra “Envío”, rematando por agoirar un futuro digno para o país o día en que Castelao sexa soterrado na súa patria para se trocar en semente: Nas primeiras follas de ise xúrdio eisponente do faguer e do saber do mestre Castelao, que se tidúa “As cruces de pedra na Galiza”, hai unhas liñas a cuia testa figura a verba “Envío”. Elas son, sen dubida ningunha, a xeito de verbas testamentarias que o autor quixo faguer constar nas pirmeiras llanas da sua obra póstuma, para que como taes as consideiraran todol-os que d’elas tiveran coñecimento ou fixesen lectura. Son verbas que refrexan nidiamente o pensamento do seu autor e que amosan, con craridade, os degaros que dentro d’él latexaban cando se resolveu a escribila. Chóese n-elas, pirmeiramente, unha rotunda afirmación de fe galeguista. Tal afirmación parce opórese como un balado infranqueábel aos achegadizos e aproveitados, aos eternos adoitados a pescaren n-augas revoltas. Coidándose os taes donos do momento, con prêsa se arriscaran xa a otorgaren patentes de galeguismo, e a pôr fora da realidade vivente a aqueles que, pol-o seu actuar, puro e sen lixos, foron, son e seguirán sendo os únicos e lexítimos gardadores das eternas esenzas que a terra choe en si e que mantidas por elas como sagro fogo oculto algún día frolescerán en vizosos froitos de resurreición e recobro. Encontra dos taes van aquelas verbas do mestre nas que calquer esprito fino, compenetrado cô seu pensar e cô seu querer, doadamente percibirá un deixo de rachadora acedade, de
12 Examínense, por citarmos algún exemplo, os contidos de dous artigos publicados polo viveirense nos primeiros números do xornal A Nosa Terra -Villar Ponte, R. 1917a e 1917b. 13
Véxanse, a este respecto Fernández Pérez-Sanjulián (2003: 232) e Millán Otero 2000.
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magoante sorpresa que dín: “eu non son un artista desgraciadamente perdido para Galicia”. De fronte â voz falsa, impiedosa, embaucadora, a voz do mestre s’ergue para decir somentes iso que fica transcripto. Y-en verdade que se non percisaba mais. Fala Castelao e as súas verbas, corroboradas por unha vida de sagrefizo, de loita, d’exempraridade cuotidiana até nas mais cativeiras aicións, adiquiriron para os que nos honoramos chamándonos compañeiros e irmans seus, e agora seguidores, as características de preceptos indiscutíbeis, de apotegmas creadores. A través de todal-as liñas que forman o “Envío”, o auscultador atento coida percibir, e defeito percibe, os latexos de un corazón ferido, de un esprito magoado, mais pol-os enganos e traicións dos propios que pol-os feitos dos alleos. E non é eistrano. Castelao soupo das defeicións, das vergoñosas claudicacións, do incumprimento das obrigas, de tantas e tantas cousas que aínda hoxe nos abraian e semellan inconcebíbeis. E por iso quixo él que o seu libro fose adicado somentes aos poucos que -¡Fachenda da decilo!- soupemos sere dignos de seguir chamándonos seguidores e irmáns do gran sementador, que algún día será acochado na terra galega pra que todo él se troque en semente. C. Espasende
Sen entrarmos a discutir agora a controvertida figura do Mariscal, si queremos salientar a evidencia de ter deixado a súa morte “expedito o camiño para que os Reis Católicos puideran implantar en Galicia a súa política centralizadora e proceder á pacificación do territorio”, como afirmou o historiador Ramón Villares (1984: 96). Será este elemento o que determine que, fronte a outras interpretacións, Ramón Vilar Ponte, seguindo Vicetto, enxalce esta figura histórica e reivindique o seu anticastelanismo, situándoo como o caudillo dun movemento de emancipación galega (Villar Ponte 1932c: 146-154). Continuándomos a viaxe por outro pseudónimo do noso autor, temos que nos referir ás notas que introduciu o profesor Monteagudo na súa tese de doutoramento (Monteagudo 1995a: 655, n.27), que sinalaban que un artigo asinado baixo o pseudónimo de Millobre Pinto (1928a) no xornal A Nosa Terra podería ser da autoría do de Viveiro. O confronto dos diferentes textos asinados nesta época baixo este pseudónimo (anunciados no número 253 1-X1928 pola redacción como obra dunha “alma acesa pol-o santo ideal da galeguidade” que “demostra poseer un espírito requintado e un entendimento craro, cheio de recendo cultural”), inclinounos a acreditar na autoría ramoniana. Tivemos para iso en consideración tanto a importancia da lingua como cerne destes traballos, a súa radicalidade e o seu estilo simbólico-literario como uns contidos moi habituais noutros escritos do autor. Para alén destas cuestións, non deixa de ser significativo, igual que ocorría coa aparición da asinatura de Clodio Espasende, que varios destes artigos aparezan á beira doutros asinados como Ramón Vilar Ponte, como sucede no número editado polo xornal A Nosa Terra o Día da Patria de 1929 (véxase Villar Ponte, R. 1929f; Villar Ponte, R. 1929g; Millobre Pinto 1929c). No primeiro dos textos que aparecen baixo este pseudónimo explica o autor o título xeral en que os enmarca (aínda que non todos os artigos o han levar), “Escallos lingüísticos”, sempre baixo esa constante aplicación pedagóxica con que pretende facer proselitismo entre a mocidade:
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Así como en monte bravo, no meio da roca estéril, o divino escallo d’unha pinga d’auga fai nascer un piñeiro, así quixera eu que estes «Escallos lingüísticos» prenderan n’esa parte da nosa mocedade, que aínda háchase arredada das nosas arelas (Millobre Pinto 1928a: 2).
E no número seguinte, correspondente ao mes de novembro de 1928, V. Casas reclama a continuidade destes escritos ao afirmar que Millobre Pinto “ten a obriga de nos seguir falando así, n’ese lenguaxe maravilloso que cingue os espritos dos «bos e xenerosos»” (Casas 1928: 8). Evidentemente, da absoluta entrega á causa de Ramón non se podía agardar máis que unha resposta afirmativa, pois nos números seguintes van ver o lume varios artigos asinados baixo este pseudónimo. Tamén neste caso asistimos á utilización simbólica dos textos literarios, pois o segundo dos traballos que asina como Millobre Pinto recolle un relato histórico en que, entre outras cuestións, se denuncia como os netos dos heroes da Frouseira e Mondoñedo agora teñen casa en Madrid e falan castelán (Millobre Pinto 1928b). Outro destes artigos (neste caso sob o rótulo de “Comentarios”) ataca os académicos por permitiren o emprego do español no Boletín da Academia: Consta o Boletín da Academia (pol-o menos os que teño â vista), de trinta e duas páxinas. Arredando algún que outro documento histórico escrito en galego e algún artigo tamén galego (sempre há de haber quen dé a nota exótica), todal-as demais estano en castelán, o que nos dí que no órgao da Academia «galega» a prosa «galega» é insinificante, ¡fermoso simbolismo!, pois si nas follas do Boletín as únicas páxinas nas que podemos darnos o regalo de lêr unha prosa enxebre son as dos «Documentos históricos» podemos facer a dedución de qu’o galego é considerado como unha curiosidade, algo así como unha d’esas pedras con inscripzóns de que nos fala o arqueólogo Don Anxel del Castillo, e agora exprícome a maneira como foron levados â Academia certos señores (Millobre Pinto 1929b: 7).
Nalgún destes textos batemos co posicionamento sobre a estandarización que mantiña Ramón Vilar Ponte, que estaría, segundo Monteagudo (1995b: 90), máis próximo a Vicente Risco que a seu irmán Antón. Aínda sendo evidente a súa defensa da anarquía lingüística na liña máis risquiana no primeiro destes textos (“Falan da unidade ortográfica, falan da sua utilidade; queren desbotar â anarquía que hoxe ainda hai nas letras galegas. Parezme ben. Mais tamén penso que todal-as anarquías levan en si un fondo de beleza innata” Millobre Pinto 1928a: 2), pensamos que cómpre contextualizar os seus contidos. En primeiro lugar, o estilo deste primeiro texto concorda co habitual en de pequenas glosas sobre cuestións de relevancia sen grande afondamento, pois estes aspectos, por seren focados desde unha perspectiva que prima o didactismo e o chamamento á acción, aparecen analizados desde un esqueleto básico que á forza ha ser reducionista. Como é sabido, o 17 de febreiro de 1928 El Pueblo Gallego abre, máis unha vez, o debate sobre a necesidade de unificar o idioma, un debate en que participan, entre outros, Johán Carballeira, Carré, Taibo, Augusto Mª Casas, Antón Vilar Ponte e Couceiro Freijomil14. Ramón decide intervir e fai explícita a idea de que “os bos e 14 Os dous últimos teñen un forte enfrontamento nas páxinas do xornal durante o cal Antón recrimina a Couceiro o feito de utilizar o español para expor as súas opinións filolóxicas. A diferenza de opinións entre os dous autores foi estudada recentemente por Ínsua (2002: 1746-1748).
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xenerosos” deben agardar outros tempos para veren realizadas as súas arelas de unificación, movido, segundo consideramos, por un interese maior a defensa do cultivo da lingua e polo medo a varios perigos: a desunión dos galeguistas, a posibilidade de recibiren estes aínda máis ataques por parte dos inimigos da causa, o desánimo e a imaxe negativa que podería causar unha unificación que non fose aceptada pola maioría das persoas comprometidas co uso do idioma galego,… Non deixa de ser unha evidencia a desorientación que existía neses momentos entre os escritores, algo que Ramón xustifica na imposibilidade de comezar o cultivo dun idioma e este se achar nun estado de perfección e nas vicisitudes que este tivo que padecer, o que provocou a súa corrupción. Cumpría, pois, desde a súa perspectiva, ter paciencia, mais a unificación había de se producir, igual que sucedeu no caso catalán. Tamén Antón Vilar Ponte ten exemplificado con Cataluña para rebater aqueles que poñían por diante a unificación ortográfica cando o prioritario era o maior cultivo do idioma como paso previo15. As mesmas ideas son defendidas, meses máis tarde, nun artigo sen sinatura –que xulgamos pode tamén ser atribuído a Ramón Vilar Ponte–, onde novamente fica en evidencia a incomodidade do noso autor con estas polémicas entre irmáns e, onde, como novidade, o noso autor afirma a necesidade da unificación: Volta novamente El Pueblo Gallego a insistir encol do tema. Francamente temos de decir que non nos expricamos esa impacencia. Non haberá ninguén que poida tacharnos a nós de enemigos da unificación pois ben se nos alcanzan as ventaxas que tería para o idioma galego cuia defensa, divulgación e milloramento é o noso credo. A razón da nosa existencia […] Nós pensamos que hoxe por hoxe o necesario é escribir moito en galego e ademais estabrecer un sólido contaito entre os escritores e o púbrico. Facer unha maioría de leitores e amantes da nosa lengua en Galicia cousa que aínda non hai […] De todos xeitos e despois de expostas estas razóns que ao noso xuizo determiñan a non perentoria necesidade da unificación, si o Pueblo conquire chegar a ela contará dende logo co noso acatamento e seremos os primeiros en someternos âs normas que se dicten sempre que así o acorde a maioría da opinión que traballa e pensa na formación do idioma galego ([Villar Ponte, R.] 1929e: 12).
Pensamos que Ramón Vilar Ponte redixe estes artigos (e o máis coñecido na actualidade sobre o tema, o que escribiu para a revista Nós en 1935) máis guiado polo seu carácter optimista e o seu desexo de non caer no discurso derrotista e para el fundamentalmente paralizante que encheu as páxinas dos xornais de polémicas que daban azos ao inimigo, que para mostrar a súa oposición a unha unificación que ten por motivación principal nos seus defensores, segundo el mesmo recoñece, un afán “nobilísimo e louvábel de que a nosa groriosa lingua abranga aquela co[n]sistenza e aquela perfeición que terá de lle acarretar o meirande creto, e con él o meirande i-espallado cultivo” (Villar Ponte, R. 1935b: 204).
15 Véxase Ínsua (2002: 1351-1352), onde recolle varios parágrafos da conferencia “Os nazonalismos ibéricos” que Antón Vilar Ponte impartiu o 6 de xaneiro de 1917 e cuxo manuscrito se acha na Fundación Penzol.
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3. Principais liñas vertebradoras do discurso xornalístico de Ramón Vilar Ponte A análise dos textos vilarpontianos que se publicaron na época da preguerra civil española condúcenos aos seguintes fíos condutores como eixes básicos reiterados até se faceren consubstanciais a toda a súa obra do seu pensamento: O chamamento á acción Unha das liñas vertebradoras de todo o discurso de Ramón Vilar Ponte é a súa reiterada reivindicación da acción como única maneira de combater o estado en que se atopa a Galiza. As referencias filosóficas que sustentan esta idea podémola achar en autores como Nietzsche, Le Bon ou Ortega, constantes nos seus escritos, moitas veces nun mesmo texto: Un psicólogo de pueblos, el francés Le Bon, dice: «Vivir es luchar y pueblo donde no hay lucha, esto es, pueblo donde reine un pacifismo adormecedor no tardará en desaparecer rápidamente de la Historia». Con referencia al valor trascendente del dinamismo, a la importancia de la acción en las colectividades humanas, el genial profesor Ortega Gasset se expresa de este modo: «Poder vital quiere decir capacidad de ensayos. Y en un pueblo, sobre todo, más grave que el mucho fracasar es el poco ensayar». Nada, por consiguiente, como la acción enérgica e intensa, como la acción robusta y continuada para alcanzar un vitalidad patente y, por o mismo, propincua a rendir el más apreciable caudal de valores. Quédese, pues, la pura contemplación, la anuladora pasividad y el abandono para los resignados a soportar beatificamente lo que pueda venir. Entre tanto a aquellos que aspiren a ser hombres útiles y viviente-, a ser, en una palabra, «nosotros», con Nietzsche les decimos: «¡Que vuestro trabajo sea una lucha! ¡Que vuestra paz sea una victoria! » (Villar Ponte, R. 1924b: 1).
É evidente que estas ideas (mesmo de chamamentos á acción directa e á exaltación do egoísmo16 –Villar Ponte 1917c: 3-4– para loitar contra o déficit de autoestima do pobo galego) deben ser contextualizadas nun panorama en que as forzas eran escasas e os labores por facer moitos, outra das constantes repeticións dun escritor que, loxicamente baixo esta perspectiva, considera que “A inautividade é verba qu’o nazonalista ten que desconocere”17 (Villar Ponte, R. 1920c). Xustamente é nesta liña onde debemos enmarcar un artigo anterior asinado como Clodio Espasende (1919a:1) e titulado “Algo sóbor de nós”, que critica duramente a inactividade das Irmandades e defende o traballo constante, ao pór por riba de calquera outra consideración o entusiasmo como motor do movemento. As críticas pola falta
16 Un egoísmo diferente do egoísmo exclusivista castelán que se disfraza de patriotismo, pois mentres o que uns pretenden é a defensa do dereito a existir dos pobos asoballados, outros pretenden afianzar a súa dominación (Villar Ponte, R. 1931a: 1). 17 Anos máis tarde, en plena posguerra, Ramón Vilar Ponte continúa pensando o mesmo, pois unha e outra vez na súa correspondencia lamenta a escasa actividade de certas institucións, como a Real Academia Galega, un aspecto que comenta coa ironía tráxica de quen se ve afastado da oficialidade do interior e imposibilitado para actuar como el quixera: “Supoño que chegaría âs tuas mans o boletín da ‘Real Academia Gallega’. Si non-o recibiches dimo, pra indicar que o remitan sin perda de tempo. Eu me supoño, e coido que non eisaxero ren, que a saída do novo número será dentro de dous ou tres anos. E pra iso si as cousas marchan como deben” (carta de Ramón Vilar Ponte a Ramón Otero Pedrayo datada o 23 de novembro de 1949 e depositada na Biblioteca da Fundación Penzol, CA-627 / 5).
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de actividade diríxense, anos máis tarde, aos mozos galegos, por procuraren fóra e desculparen o necesario contributo á causa (Villar Ponte, R. 1930a). Existe, pois, un deber ineludíbel de que ninguén pode fuxir: Erguerse, pois, é forza. Erguerse e actuare. Onde sexa e como sexa. N-iste campo ou no outro. Cada cal asegún a sua ideoloxía e as suas preferenzas e simpatías por avanzadas i estravagantes qu’elas resulten. Percísase mais que nunca a actuación, o esforzo, a loita (Villar Ponte 1930b: 1).
Varios dos títulos dos seus textos anuncian este contido, quer de maneira directa (“A necesidade da aución”, Villar Ponte, R. 1918a: 4, “Verbas non, feitos”, Villar Ponte, R. 1919d: 4-5, “Vitalidade d’un movimento”, Villar Ponte, R. 1920a: 8-9, “Vida y Acción”, Villar Ponte, R. 1924b: 1) quer indirecta (“¡Nazonalistas, a xuntarnos! Unha ideya”, Villar Ponte, R. 1917a: 6, “Vai sendo hora”, Villar Ponte, R. 1920b: 1-2, “Verva qu’obriga a moito”, Villar Ponte, R. 1920c: 8-9). A reivindicación de símbolos e figuras da tradición galeguista O noso incansábel entusiasta non falta nunca ás citas obrigadas, quer para difundir a necesidade de festexar datas como o 2 de abril de 1846, o 25 de xullo ou o 17 de decembro18, quer para honrar os devanceiros (literatos, intelectuais ou políticos) que tanto fixeron pola causa19. Mais Ramón Vilar Ponte non vincula a denuncia e o combate unicamente á celebración de certas efemérides nin utiliza estas datas de maneira ritual ou folclórica, senón que aproveita ese momento de especial sensibilidade, ou simplemente de maior fortuna para a publicación de escritos con estes contidos, para “inocular todo o seu virus nazonalista galaico”, como el mesmo definiría a súa etapa de director do xornal ferrolán El Correo Gallego, ou, con outras palabras, para crear conciencia nacional. A recuperación da memoria dos predecesores directos do nacionalismo era, como para todos os seus compañeiros de xeración, a mellor maneira para a cultura galega se reinxertar en si mesma novamente. Desta maneira, a súa obsesión proselitista mantense os 365 días do ano e aproveita o inicio de cada estación, época ou anualidade para insistir no compromiso co país, quer, como xa vimos, escribindo un relato sobre a primavera en que o florecer da Terra se equipara ao
18 Ou mesmo xuntando os referentes destas dúas últimas datas, como sucede no artigo “Un verdadeiro ‘Día de Galiza” (Villar Ponte, R. 1928c: 4) que contén a simbólica dedicatoria de “Para os irmáns”. 19 Esta reivindicación da nosa historia continuará sendo fundamental tamén na posguerra, pois, para alén da valente cita dos seus compañeiros represaliados e asasinados após a guerra civil española (Villar Ponte, R. 1977), sempre vai procurar dotar os seus textos dunha actualización que poida ser recibida como algo presente, do que temos que tirar proveito. Así, referíndose a Murguía di o seguinte uns meses antes de falecer: “Hombre en todo momento actual, el Patriarca que ayer hizo treinta años que pasó a mejor vida, vive y seguirá viviendo entre nosotros, especialmente entre todos aquellos que nos creemos sus seguidores. Y las enseñanzas palpitantes en su obra imperecedera nos aleccionan y orientan en todo momento” (V[illar] P[onte], R. 1953: 5). Igualmente, tal e como nos fixo ver a profesora García Negro no Simposio “Ramón Vilar Ponte (1890-1953). 50 anos despois” (García Negro, no prelo), cunha forma verbal en presente, o noso autor xoga coa actualización dos desexos das Irmandades en plena ditadura ao afirmar o seguinte: “Os da Xeración do 16 queren unha Galiza enteira que descoñeza o axionllamento e que non seipa de concesións e renuncios vergoñosos cando asístalle o dereito e a razón se ache a carón d’ela” (Villar Ponte, R. 1977: 28).
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agromar da aletargada conciencia nacional (Villar Ponte, R. 1922b), quer utilizando diferentes símbolos que coadxuven na reivindicación do noso orgullo como galegos e galegas. O idioma, principal signo de identidade nacional A defensa da lingua de Ramón Vilar Ponte está fundamentada na doutrina murguiana, e, moi concretamente, na idea de que aquel pobo que fala unha lingua que non lle propia é un pobo que non se pertence. Igualmente, como non podía ser doutra maneira e xa foi explicitado (Millán Ibañez 2000: 42-44), o seu pensamento é debedor do protagonismo que Herder concede á lingua como elemento que expresa a identidade de cada pobo. Téndomos en conta estas consideracións, toda a doutrina vilarpontiana, estudada fundamentalmente desde a perspectiva histórica e política, está focada desde a centralidade da lingua como factor definitorio da nacionalidade e da capacidade de posuírmos unha vida autónoma e non dependente, e a súa reflexión sobre a lingua constitúe, sen ningunha dúbida, unha das elaboracións máis sólidas, sistemáticas e recorrentes da nosa Historia contemporánea, sen desmerecer para nada os contributos dun Castelao ou dun Antón Vilar Ponte. No texto “As duas Galizas” (Villar Ponte, R. 1922f), para alén do recoñecemento da vontade de tomar como exemplo para a reconstrución das esencias da patria o mundo rural, indícase que o xermolo necesario para a total liberación da Galiza residen (por esta orde) na fala, no dereito e nos costumes. Da importancia da coherencia lingüística da elite galeguista dan conta tamén outros dous artigos publicados no ano 1923, que presentan os mesmos contidos con lixeiras modificacións (Villar Ponte, R. 1923b; Villar Ponte, R. 1923c). Recoñécese aquí a imposición do castelán como lingua pública en todas as capas sociais da Galiza agás na labrega, ao reservárena os artesáns unicamente para os usos domésticos nun proceso de suplantación que cada vez cobra máis forza nas cidades e nas vilas: En todal-as capas sociales da Galiza escepto na labrega -ben haxa ila pol-a sua enxebreza salvadora!- foise impondo o castelán como língua pra erguel-a voz na via púbrica, por fortúa solamentes, xa que no íntimo do fogare a lingua autóctona, a nosa língua -óllese o caso típico de horteiras e modistiñas das vilas galegas- sigue impóndose e usándose como única pese á contrariedade que isto supón prá os probes imbéciles que ollan no castelán como lingua superior. Non todos poden bulraren, inda que se contrarien e sofran, as leis biolóxicas. O feito natural, actuando compasiva e prudenzalmente, fai imposibre a prena imbecilización da maoría dos nosos compatriotas (Villar Ponte, R. 1923b: 1).
Contra esa asimilación lingüística, que algúns ven como irremediábel, loita a aristocracia galeguista, as persoas escollidas para guiaren o pobo que constitúe a auténtica Galiza, a integrada polo mundo labrego, pois a formada polos vilegos leva camiño de ser asimilada totalmente polas influencias alleas. A denuncia do proceso de substitución do galego tamén se observa na continua posta en causa do “caricaturesco castelán” que moitos empregan. Para Ramón Vilar Ponte a defensa do idioma era a mellor maneira de se comprometer coa patria e a súa constante exhortación ao aristocratismo e á minoría de elixidos que poden salvar o país, ademais de se encardinar perfectamente no pensamento e na ideoloxía defendida por un sector das Irmandades e de Nós, está xustificada no obxectivo de procurar unha
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modificación da conduta das clases altas, pois só así poderían recuperar ou afianzar os usos lingüísticos das clases medias, subordinadas ás máis das veces a aquelas que consideran superiores: O afán de imitare aos siñoritos, a istes señoritos da nosa terra parvos, valeiros, totalmente risíbeis é, en gran parte, a causa da suprantación forzada do meio natural d’espresión polo caricaturesco castelán empregado hoxe en día a eito por cibdades e vilas [...] Por iso hoxe cando unha avalancha de ordinarez e de falla d’espritualidade esteriorizadas pol-o emprego de un castelán revelador de rubida cursilería, parece invadire a nosa terra, a soia utilización do noso grorios idioma, sen outra cousa, xa é de abondo pra amostrare nos que tal fan certo aristocratismo, certo matiz de selección, d’escolma que impide a posibilidá de unha doorosa incrusión no fato dos sen persoalidade difrenzabel onde toda cursilería, ordinariez e groseiría teñen o seu afincamento axeitado (Villar Ponte, R. 1923b: 1).
Para conseguir os obxectivos que deseña a Xeración do 16 é preciso que os seus membros teñan unha actitude modélica nos seus comportamentos lingüísticos, pois só coa total coherencia nos seus usos poderán atraer á causa aquelas persoas que as consideren un exemplo para seguir. Nesta mesma liña, e como comentamos anteriormente, Ramón Vilar Ponte é contundente nas súas críticas ao denunciar que a falta de compromiso real co idioma é un sinal que reflicte que algúns non son “verdadeiros galeguistas”: Tal é o caso concreto do seudogaleguista que, ocupando un posto de representación, prescinde do emprego da língua galega, sen motivo ningún para elo e a pesar de non descoñecere a conducta oposta dos que se atopan no seu caso. Usando, en troques, do castelán, faguendo eisí caso omiso da obriga pirmeira e ineludibel, que todo galeguista ten, de usare a cotío a língua vernácula, non xa nas conversas privadas sinón tamén en todal-as súas actuacións púbricas [...] Ser ou non ser, poderíamos decirlle con verbas hamletianas ao que se atope no caso aludido. Ser galeguista ou non selo. Si o derradeiro, sobre todo canto se diga. Cada un é moi dono de proceder como lle pete. Mais si o pirmeiro, de aquela hai que actuar como se debe. E iste como se debe non é outro, que o de empregar o idioma galego en todol-os intres de actuación púbrica. Xa que non faguelo equival a unha negación implícita da patria que se di sentir e da que a pirmeira afirmación, a máis categórica e trascendente, é a que se fai cultivando a língua na que a i-alma nacional se manifesta rexamente e sen coutamentos, na agardanza da súa total recuperación (Villar Ponte, R. 1936: 4).
Aínda que moitos dos textos de Ramón Vilar Ponte falan da lingua é de xustiza lembrar –polo que tería suposto de se ver realizado integramente– o seu proxecto de realizar unha historia da lingua, un proxecto que xa fora anunciado no Breviario da Autonomia (Villar Ponte, R. 1933c) como “libro de proselitismo (en preparación)”, do que só se conserva (e do que moi probabelmente só foi redixido) o primeiro capítulo (véxase Sanmartín Rei 2004). O universalismo desde a diferenza Ramón Vilar Ponte sente a necesidade de explicar, como lóxica reacción a moitos dos
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ataques que se realizaban contra a causa galeguista, a comuñón do sentimento internacionalista coa defensa da identidade nacional sempre dende a defensa da unión do nacionalismo e o antiimperialismo, un aspecto a que o noso autor dedicou o ensaio presentado en 1927 para o ingreso no Seminario de Estudos Galegos titulado “O sentimento nazonalista e o internazonalismo” (Villar Ponte, R. 1929a; Villar Ponte, R. 1929b; Villar Ponte, R. 1929c; Villar Ponte, R. 1929d). Tamén en moitos dos seus artigos intenta facer chegar á poboación esta idea a través dunha explicación o máis didáctica posíbel: Mais pra sere un perciso é deixare de sere facilmente confundíbel cos demais [...] mais isto, emporiso, non quer decire que haxa necesidá de crebare aquiles vencellos esprituaes que fan da Humanidade unha rexa i-enorme familia (Villar Ponte, R. 1922g).
Estas ideas tamén están presentes en textos que asina con pseudónimo (Millobre Pinto 1929c), ultrapasan a súa obra anterior á guerra e chegan até os seus últimos artigos xornalísticos: Gallego de cuerpo entero, gallego representativo, Murguía es un valor universal. Y es al mismo tiempo la representación plena, irrefutable, concluyente, de que siendo uno integramente de su país, viviendo, trabajando para su país es como de verdad se llega al mundo entero (V[illar] P[onte], R. 1953: 5).
A visibilidade da asimilación Na mesma liña do apartado anterior, Ramón Vilar Ponte busca dotar as persoas próximas ao nacionalismo dos recursos necesarios para combateren as teses contrarias naqueles ámbitos menos favorábeis aos posicionamentos do galeguismo organizado. Unha das maneiras que xulga máis efectiva para levar a cabo este propósito é denunciando as aldraxes cometidas contra os galegos e os preconceptos que existen sobre eles en todo o Estado español. Velaquí outro dos tópicos da obra vilarpontiana, que ve na súa divulgación unha das mellores fórmulas para aumentar a nosa autoestima. Cómpre lembrarmos a este respecto as diferentes anotacións que Ramón escribiu para a obra O feito lingüístico galego da que só coñecemos o primeiro capítulo e cuxos índices daban conta destas preocupacións do noso autor (véxase Sanmartín Rei 2004: 87). É neste sentido como hai que entender o ataque aos señoritos das cidades e das vilas do noso país, por non veren que as reivindicacións nacionalistas teñen unha xusta explicación pois, para alén de non sentiren aqueles os males da emigración, só se achegan ao agro desde unha perspectiva folclórica ou electoralista (Villar Ponte, R. 1922d). O combate da interiorización da subordinación explica textos como “A lexítima xenreira”, que pretende fomentar a autoestima e estimular unha reacción forte e contundente nos connacionais: Os séculos de asoballadura e d’escravitude e pestes como laxes de chumbo en col dos galegos, foron o impedimento que fixo marchare en frol os xermolos de lexítima indiñación e do ben xustificado odio (Villar Ponte, R. 1922d).
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Poderían malinterpretarse estas afirmacións se non fosen contextualizadas nunha loita contra o carácter que os galegos foron forxando e cuxa explicación pode explicarse historicamente ao estar vinculada co proceso de autoodio: Como alguén ten dito, e moi acertadamente, a raposería pranta perniciosa que se dá entre nós como se da antre todol-os resiñados e ainda gustosos do sometimento non é, en realidade, mais que unha cbardía [sic] adobiada de listeza. E mais ainda que isto. E a tristeira consecoenza de un longo periodo d’escravitude no que a perda dos azos para recramare violentamente a libertade e o funesto convencimento de que hai unha fatalidade que manda e contra da que non hai remedio, obrigaron aos disgrazados incapaces de se remontaren por encol de sí mesmos a disfrazaren un día e outro o seu pensamento e a ocultaren os seus propósitos cô fin de que a tranquilidade e o contento dos amos se non viñera nunca a turbare por culpa dos esclavos. De tal xeito, o qu’escomenzou sendo artimaña a empregare soio côs alleos, findou a forza de uso por sere empregada tamén côs propios. E, paseniño, a raposería odiosa e noxenta veu a se amostrare para deshonra nosa como incorporada às características raciaes (Villar Ponte, R. 1927b: 1).
Calquera feito puntual serve para denunciar a marxinación da Galiza e facer visíbel a súa secundarización dentro do Estado español. Porén, non sempre se sitúa a responsabilidade da nosa situación fóra das nosas fronteiras ao constituír un dos esteos do pensamento vilarpontiano o suicidio do pobo galego por provocar el mesmo a súa desgaleguización, e, xa que logo, o seu lento camiñar cara á súa desaparición. De aí que títulos como “A cada un o seu” (Villar Ponte, R. 1922a) ou “As duas Galizas” (Villar Ponte, R. 1922f) sinteticen unha das liñas de reflexión constante sobre o noso proceder e o papel que cumprimos ou temos que cumprir na sociedade galega. No primeiro destes textos denúnciase a hipocrisía da universidade galega que en propiedade debería denominarse “centro universitario castelán radicado en Santiago” pola exclusión da lingua galega de todas as súas actividades. No segundo contrapóñense a Galiza aldeá á vilega, insistindo en que só a primeira pode dar esperanza aos poucos que “decatándonos da nosa obriga e da nosa proxenie, vimos decotío atafegados pola tareia rexa de crearmos unha concenza nazonal”. Ademais de pairar sobre toda a obra ramoniana o conflito nación / Estado e a loita contra o imperialismo, estes elementos constitúen, asemade, os principios articuladores de gran parte dos seus escritos xornalísticos, quer por denunciaren as consecuencias para Galiza e as outras nacións do Estado español da política centralista castelá, quer por faceren fincapé na posibilidade de reaxir contra este asimilismo ao centrar os nosos esforzos en recuperarmos a autoestima e a dignidade. Para conseguir tales fins, cómpre, para alén da necesaria autoorganización dotando o movemento do necesario corpo doutrinario, sermos coherentes e fieis cos propios ideais nun compromiso que debe guiar a conduta dos verdadeiros patriotas en cada un dos seus actos. A argumentación que utiliza o autor, aínda sendo sempre de denuncia (pénsese no texto titulado “A mentira unificadora” Villar Ponte, R. 1935a: 4), vai acompañada moitas veces dun forte optimismo con que se quere impregnar a sociedade da época, ao dar por feito que o camiño andado xa frutificou (Villar Ponte, R. 1933a: 1).
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Evidentemente, e aínda que exemplifiquemos co caso galego, diferentes textos toman como referente outras realidades europeas que servirán ao obxectivo de amosar que é posíbel construírmos un outro mundo conformado baixo uns ideais de harmonía e cooperación. Nesta liña, e para alén dos casos de Polonia, Bélxica, Checoeslovaquia, ou Irlanda20 (por citarmos os máis habituais), temos que salientar o omnipresente caso catalán, mostra das importantes relacións que mantiveron os nacionalistas destes países na época da preguerra civil española. Lembremos, neste sentido, que Ramón Vilar Ponte foi unha das persoas que viaxou a Barcelona en 1917 para participar na Semana Gallega que organizou a Lliga Regionalista e que solicitou a Puig I Cadafalch, Presidente da Mancomunitat català, que prologase a súa Doctrina nazonalista. A realidade catalá é un exemplo constante e, igual que na actualidade, a nación irmá é vista como a que pode guiar un outro camiño posíbel no Estado: A Hespaña informe, intanxíbel, ríxida que nos legaron os Reis Católicos e que vive forzadamente sometida ao ritmo único que dende a Porta do Sol se marca, sigue sendo a angueira suprema dos políticos de agora como a foi dos de denantes. A historia continúase. Con repúbrica como con monarquía os centralistas son os amos. ¡E menos mal que hai unha Cataluña que apreta e que se move, que si non…! (Villar Ponte, R. 1932a: 1).
Conclusións O discurso con que Ramón Vilar Ponte, a través dos artigos xornalísticos que publica antes de 1936, pretende contaxiar a sociedade galega do seu entusiasmo pola causa galeguista caracterízase polos seguintes trazos substanciais: - O carácter didáctico e proselitista, algo que consegue cun discurso radical en que é frecuente a interpelación ao pobo galego e a exemplificación de diferentes realidades e episodios da nosa historia para así fomentar a autoestima e a conciencia nacional. - A procura dunha complicidade emocional co público lector, que provoque que este se teña que posicionar a favor ou en contra do que se está a afirmar, sen posibilidade de manter actitudes ambiguas ou de se mostrar indiferente ante os feitos que se relatan. - A utilización da exhortación á acción como única maneira de avanzar no proceso de liberación nacional e de conformación dunha entidade territorial diferenciada. - A oposición total ao imperialismo e a negación de que se vincule o nacionalismo con calquera ideoloxía que non sexa pacifista e internacionalista, pois o carácter universal da nosa contribución á humanidade só poderá partir da valoración da nosa realidade particular. - A súa doutrina centra na lingua a esencia da nacionalidade e a súa obra e a súa vida constitúen exemplos de máxima coherencia entre a teoría que se defende e a praxe que se desenvolve, un feito –recoñecido polos seus compañeiros de xeración– que o acompañou até a súa morte, pois viviu a longa posguerra afastado de renuncias ideolóxicas e empeñado en transmitir, con total veracidade, o legado da súa xeración.
20 Na maior parte dos casos trátase de buscar exemplos aleccionadores na historia dos pobos irmáns, como sucede na súa “Lembranza” subtitulada “Elexía do bon irlandes” (Villar Ponte, R. 1921b: 2).
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- Se a súa obra política pode considerarse central para o nacionalismo posterior, con evidentes concomitancias cos textos de Castelao, os seus artigos supoñen unha demostración da planificación que a Xeración do 16 realizou a respecto da política da lingua que Galiza debía seguir para recuperar a súa lingua e situala no lugar que lle correspondía como idioma propio do país. Neste sentido, Ramón Vilar Ponte é, como xa o definimos noutro lugar (Sanmartín Rei, no grelo), un pioneiro da sociolingüística galega moito antes de que entre nós se falase desta disciplina. - En derradeiro lugar, queremos sinalar que Ramón Vilar Ponte foi un escritor vocacional que, plenamente consciente da importancia da consolidación dun sistema literario galego, introduciu na súa escrita os discursos que lle pareceron máis acaídos para difundir a doutrina nacionalista e influír na sociedade galega da época.
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ENSINO E REALIDADE: DE SARMIENTO A CASTELAO (A IMPORTANCIA DO ENSINO COMO PEZA FUNDAMENTAL DA INSTITUCIONALIZACIÓN GALEGA NA CONTEMPORANEIDADE) María Pilar García Negro
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“No sé cómo toleran los obispos que curas que no son gallegos ni saben la lengua, tengan empleo ad curam animarum y sobre todo la administración del santo sacramento de la penitencia. ¿Qué es el coloquio de un penitente rústico y gallego, y un confesor no gallego, sino un entremés de los sordos? Son innumerables los chistes vergonzosos que se cuentan de esa inicua tolerancia. Habrá quince días que un cura gallego natural me dijo que, confesando a una gallega, le dijo que ya había confesado antes con un castellano, pero que no creía que hubiese sido confesión, porque ni el castellano entendió a la gallega, ni esa al castellano”. FR. MARTÍN SARMIENTO: Elementos etimológicos según el Método de Euclides (1977).
Estas palabras do P. Sarmiento dan conta dun ruidoso conflito lingüístico que, naquela altura, se producía nos termos máis radicais e extremosos: incomunicación total entre galegos do povo e españois das institucións; monolingüismo galego xeneralizado; divorcio absoluto entre oralidades que resultan herméticas; substitución da opacidade do latín pola escuridade do español. O P. Sarmiento escolle un exemplo dun dominio amplamente significativo, cal é o uso eclesiástico, a institución con maiúsculas, por cuxa porta, todos, sen distinción de clases sociais, deberían entrar, nunha “igualación” -a antecipación da “democracia” da morte- que, na Galiza, nen sequer se producía, pola interquinencia invasiva do idioma do Estado e polo papel cúmplice e colaboracionista da Igrexa Católica neste cometido. Dous anos despois de publicadas estas aseveracións, este testemuño tirado da máis crúa e flagrante realidade, publícase a Real Cédula de Aranjuez (25 de Xuño de 1768), asinada polo monarca, Carlos III, que na historiografía española pasa por modelo de reformismo e modernización. Este texto legal virá formalizar a unificación centralizadora nos asuntos xudiciais, na actuación eclesiástica e, polo que toca ao idioma, virá impor o uso do castelán en calquer actuación pública, oficial, e, en concreto, no ensino. A Disposición VII di textualmente: “Finalmente mando que la enseñanza de primeras Letras, Latinidad y Retórica se haga en Lengua Castellana, generalmente, donde quiera que no se practique, cuidando de su cumplimiento las Audiencias y Justicias respectivas, recomendándose también por el mi
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Consejo á los Diocesanos, Universidades y Superiores Regulares para su exacta obsevancia y diligencia en extender el idioma general de la Nación para su mayor armonía y enlace recíproco”.
Esta orde vai precedida dunha outra en que se indica que “cese el estilo de poner en latín las Sentencias”, tanto en tribunais seculares como en tribunais eclesiásticos, porque non eran comprendidas polas partes, e se redixisen en “romance” (en romance español, obviamente, non en romance galego), xa que “con más facilidad se explica el concepto y se hace familiar á los interesados”. Velaquí, de forma elocuente, como asistimos ao nacimento de dúas modernidades contrapostas: a galega nace denunciando e esclarecendo; a española, impondo e unificando. Os entusiastas defensores -de onte ou do presente- dunha reforma do ensino das Humanidades nunha dirección remitificadora e españolizadora sería ben que gastasen algo do seu tempo en examinaren, documentalmente, a realidade da fabricación dunha lingua “común” e dunha cultura “común”, que nacen literalmente por decreto uniformizador. Uniformizador e totalitario, na medida en que se sobrepón -succionándoas e vetándoas- a realidades nacionais, con linguas, tradicións, historia e especificidade proprias. Non se buscou a coabitación, o convivio na diferenza, senón a expulsión e a redución ao patrón español: os antigos “proprietarios” da casa pasan, así, a seren “alugados” na mesma, no seu proprio país, agora con argumentos “civilizadores” e “armónicos”. Non se esqueza, pois, que as medidas modernizadoras da monarquía borbónica que abre o século XVIII (substitución do latín polo español; criación da escola pública; unificación xurídica; ampliación de mercados baixo a moeda única…) van, entre nós, na Galiza, reforzar a desinstitucionalización que de vello padeciamos e aumentar a distancia entre administrados e administradores, entre realidade social e superestrutura xurídico-política. A conexión íntima entre os símbolos do novo Estado non cómpre imaxinala; explicitamente a afirma, por exemplo, o informe que o “Real y Supremo Consejo de Castilla” emite no mes anterior á promulgación da Real Cédula de Aranjuez citada: “… hay algunas [das propostas unificadoras que se realizan] que tienen entre sí precisa trabazón, como las de una Lengua y una Moneda, porque la primera es el signo común con que se explican los actos Nacionales y la segunda es el signo Universal del valor de las cosas en el Reino”. Nesta explicitación, a insistencia en que o ensino e as actuacións eclesiásticas deberían facerse en español xustifícase porque “conviene a la mejor unión de todas las Provincias de la Monarquía, que es un punto esencial sobre que debe trabajar todo gobierno, para que depuesto todo espíritu provincial se subrogue el laudable de la Patria o Nación” (García Negro, 1991:215).
O século XVIII, como o XIX, como o XX, e até os nosos días, está inzado de lexislación imperativa neste sentido, sen obviar as medidas punitivas correspondentes. Lonxe de calquer acracia ou laissez faire, o novo Estado constroise e fortifícase a base de alargar, por todos os territorios da súa xurisdición, o imperio da lei nova e das súas axencias, unha delas, a escola pública, que resulta central na determinación do novo Estado ilustrado e burocrático, con dous procesos en paralelo: a incipiente vindicación do galego, por parte dos ilustrados de
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orixe galega, nomeadamente o P. Feixoo e o P. Sarmiento, e a imposición en firme do español como reforzada arma política. Falámos antes de Ilustración galega, reputándoa -aínda dentro dos limites e das marxes culturais do seu tempo- diverxente da española, por moito que os autores mencionados (e outros que traballan dentro do campo da economía, como Cornide, Labrada, Pedro Antonio Sánchez…) escreban en español e pertenzan ao sistema cultural español. Vexamos de aclarar a contradición, atendéndomos aos antecedentes no tempo. Se seguirmos a suxerente tese docente do profesor Manuel Ferreiro, a propósito da fenomenoloxía dos denominados séculos escuros ou longo silencio da literatura galega, acharemos probabelmente explicación para a caracterización da particular Ilustración galega. A produción escrita e literaria galega, após a Idade Media, non sofrería un corte brusco e radical: ela desaparecería nunha sorte de burato negro que a absorbería, sen permitir nen a súa visibilidade nen a súa transmisión. É así como, no canto de existir un hiato tallante entre a espléndida produción medieval -signo dun país, dun Reino como o da Galiza, autónomo e competitivo- e o Primeiro Renacimento do XIX, habería, en troca, unha continuidade letrada, un fío de vida, iso si, marxinal, dispersa, isolada, sen proxección nen protección institucional nengunha, e, por todo isto, doadamente absorbíbel. Dito doutra maneira, os escasos testemuños escritos deste período hoxe conservados (incrementados, por certo, nunha pesquisa ben traballosa) serían os sobreviventes dun naufraxio, aqueles que conservaron a memoria da travesía interrompida e aínda lembraban a nave en perfeitas condicións. Nesta hipótese, as pezas de que hoxe hai proba documental (poesía tradicional, anónima; poesía relixiosa; poemas de circunstancias; teatro; correspondencia epistolar; xineas nobiliares…) representarían a memoria dun pasado vizoso e fecundo e irían facendo camiño para a reinstitucionalización da literatura galega, que só se produciría no século XIX. Descúlpeseme esta digresión revisitadora, que propón ás claras unha nova epistemoloxía para a análise da historia post-medieval, mais coido que ela é necesaria, aínda a risco de prescindirmos de taxonomías de grande eficacia e comodidade didáctica. Necesaria, tamén, para podermos situar, nos seus limites e na súa clarividencia, figuras, como as mencionadas, do P. Feixoo e o P. Sarmiento. O río da criatividade galega, da potencia interior ao país, non puido secar de súpeto. Unha outra cousa é que se envorcase, ou se refuxiase, en recipientes moito descompensados: a abondosa literaturización da lingua popular, anónima, colectiva (que non cría institución se alguén con meios non a elevar a tal); as artes da arquitectura, da escultura, da pintura, da ourivesaría… e, en troca, menor ou inexistente produción escrita, sen estímulos, sen continuidade, sen o efeito multiplicador da imprensa. Os hábitos crían norma e, con certeza, é neste período onde se xestan as ecuacións negativas para o idioma galego e a constelación de asociacións subordinadoras que só os escritores do XIX serían quen de romperen. Unha literatura microcefálica, en definitiva, non pode, obxectivamente, devolver a saúde a un corpo social enfermo e agredido ( e, dentro del, ao seu signo máis visíbel, a lingua). É esta agonía (no sentido etimolóxico, no sentido unamuniano) a que explica que galegos sensíbeis como Feixoo e o seu discípulo Sarmiento eleven o idioma galego á dignificación, através da única institucionalización existente a aquela altura, a española. A “semente” ou metonimia funcionou eficazmente, porque abriu o paso á emerxencia do XIX, através ou desde unha primeira presenza metalingüística na literatura española.
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Mais a análise do cuadro institucional sería insuficiente se non reparásemos decontado na realidade lingüística da maioría social, do povo, inteiramente monolingüe en galego, completamente oral, masivamente analfabeta. É nela na que reparan espíritos ilustrados e humanistas como Feixoo e Sarmiento. Adérense á corrente ilustrada europea -fundamentalmente, francesa e italiana- no que ela propugna de racionalidade; do valor do coñecimento experimental; da detracción da superstición e do ritual rotineiro; da necesidade de modificación e modernización da escola e os planos de estudo. Escreben en España (onde moran a maior parte das súas vidas) e en español. Afástanse dos ilustrados españois no recoñecimento e apoloxía científica do idioma galego, como se quixesen conxurar, avant la lettre, a imprecación que, un século despois, lanzaría Pintos cando alcuma a Galiza de “madrasta de insensatos”, no seu célebre poema “Galicia, boi de palla”. Eles parecen teimar en seren fillos respeitosos e amantes da terra en que naceron e, con toda a probabilidade, vista a clase social a que pertencen (fidalguía) están tamén a realizar a súa auto-defensa. No sistema cultural español van moito máis aló do que os seus contemporáneos en modernidade, en progresismo, en erudición e en consulta de fontes estranxeiras (xúlguese, só por aducirmos un exemplo, o inusitado valor que poda ter a citación documentada da escritora Lucrezia Marinella -hoxe só encontrábel en historias confisionalmente feministas-, autora dun libro titulado Da nobreza e excelencia das mulleres e dos defeitos e carencias dos homes, resposta apoloxética a un que versaba sobre os defeitos das mulleres, libro que o beneditino aproveita para a confección do “Discurso XVI” do I Tomo do seu Teatro Crítico Universal, titulado significativamente “Defensa de las mujeres”). No contexto galego, van ser os referentes inequívocos dos historiadores e escritores do XIX, sendo o primeiro reapropriado como gloria da ciencia e da filosofía galega e o segundo antecedente directo de figuras como Pintos, Murguía ou Lamas Carvajal. Se Feixoo vai facer coa lingua galega o que Verónica con Cristo no seu camiño ao calvario (limpar a súa imaxe: o galego é irmán do portugués, é dialecto do latín), Sarmiento vai pór en obra científica a teoría hixiénica e reabilitadora. O ilustre bieito verifica o dislate que supón o aprendizado do latín através do español e con prescindencia total do galego do país, lingua máis próxima á matriz e, por isto, utilizábel pedagoxicamente con grande rendibilidade e aproveitamento escolar. Aclara como é o galego a orixe inequívoca do portugués e dedícase tenazmente a certificar as etimoloxías e as evolucións de moitas voces galegas. Insiste, até a saciedade, na avantaxe comparativa dos nenos que mamaron a lingua galega para o seu acceso e dominio do latín e penaliza severamente todo o maxisterio reinante, en mans de mestres estranxeiros ou desprezadores do galego, quer dicer, do que el, mesmamente, xulga como instrumento didáctico máis útil. O P. Sarmiento avoga, pois, claramente pola introdución do nativo e popular no secundario e institucional, quer na escola, quer no uso instrumental eclesiástico, para que a pastoral e a liturxia sexan comprendidas. Ousa cuestionar a, para moitos, incontrovertíbel Arte de Nebrija e pondera a necesidade de os escolares fixaren ben o símbolo lingüístico asociado ao obxecto tanxíbel ou visíbel. Sabedor da inexistencia de gramáticas e dicionarios do galego, suxere a utilización de materiais portugueses, ao tempo que el proprio se aplica á compilación e elaboración de materiais para unha gramática, unha historia e un dicionario da lingua galega.
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No seu pensamento, o triángulo do coñecimento había de ter estes tres lados: 1) nome galego; 2) étimo latino; 3) contemplación e observación do obxecto. É esta última necesidade a que resulta fundamental nunha concepción do ensino vinculada ao coñecimento do contorno, da fauna, da flora… e á valoración do coñecimento empírico face ao metafísico e teolóxico. No campo das analoxías e das metáforas biolóxicas ou orgánicas que tan do gosto serían até ben entrado o século XIX, afirma que destetar os nenos da súa lingua natural é algo tan irracional e inumano como impedir que a nai aleite a criatura, privándoa así da mellor fonte de vida. De por parte, o P. Sarmiento é un defensor do que hoxe denominaríamos unha rendíbel formación profisional: o ensino ha de estar conectado ás necesidades e características da economía produtiva do país en que se vive: imprescindíbeis, portanto, na Galiza, os coñecimentos orientados á mellora da agricultura, da pesca, da industria téxtil. Os métodos de proximidade ao neno, á crianza, que moito máis tarde popularizaría a pedagoga italiana María Montessori, están presentes na obra do noso compatriota: “Es preciso -escrébelle ao seu irmán Xavier sobre a educación de Alonsiño, seu sobriñono aterrar a Alonsiño con castigos; ni espiritarle con la compaña, y otros espantajos. Cariño, premio y emulación han de ser sus atractivos. Y sobre todo ciencia; y claridad y arte, en enseñarle […]. Y quiero que se le enseñe la lengua gallega con especial cuidado, además de lo que debe charlotear con los otros niños. No pienses en que castellanize asta que sepa bien, y con extensión, el gallego. No le enseñes voz alguna gallega, cuyo significado no tope con algún sentido esterior, palpándolo, viéndolo, remirándolo, gustándolo y oliéndolo” (PENSADO 1984:149).
E aínda: “Es una desalmada necedad poner los niños gallegos a la xerga de la Gramática, antes de saber, con mucha extensión, la lengua gallega; y todas las vozes de la Historia Natural, a lo menos de las visibles de su país. Hazte cargo que al portugués se le enseña el latín en portugués. Al francés en francés. Al italiano en italiano. Al inglés en inglés. Al sueco en sueco. Al castellano, solo en castellano. Pues, qué tiranía es que al gallego no se le enseñe en gallego el latín? Qué fatuidad es que al niño gallego se le enseñe una lengua ignota en lengua castellana que no entiende? Avía de quemar todo libro de Gramática que pasase a Galicia, y que no estuviese explicado en lengua gallega. Tengo un Arte de Nebrixa que se estudiaba en Francia; pero está la explicación en solo francés. Tengo evidencia de que un niño gallego, si sabe ya bien su lengua, entrará como por su casa a entender latín; y después a entender el castellano, mejor que los castellanos mismos. Y esto sin estudiar nada de memoria, que es el coco; y el que promueve la ignorancia y la aversión a las letras en España. Acuérdate de Pepiña, que nos refirió todos los objetos de la Procesión del Corpus, sin aver estudiado de memoria ni una palabra. Es doble fatuidad decir que explicada la Gramática en castellano se aprende el castellano de camino. La mayor parte de los gallegos que hablan, y bien, el castellano, jamás han visto el Arte, ni han estudiado seis palabras de memoria. El castellano solo se aprende con las conversaciones, con los libros, y con una jornadita; no con mazear de memoria el Arte de Nebrixa.
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Y el caso es que después de todo ay infinitos gallegos con 4, o 5 años de estudiar de memoria Gramática; que ni saben latín, ni castellano, ni gallego. Asumpto es este que pide muchos pliegos para sacar á luz los crasos errores que se cometen en el asumpto” (PENSADO 1984:150-151).
Sarmiento, en suma, non discute a “fatalidade” da asimilación ao español e da necesariedade do seu coñecimento académico e pragmático, mais escandalízase de como toda a institución escolar poda montarse sobre o desprezo e a negatividade para co galego, primeira e insubstituíbel credencial do rapaz. O incluir o galego como ferramenta básica do ensino primario conduciría a un adecuado coñecimento do latín e mais do español, evitando así o esperpento de non posuir en condicións nengunha das linguas, alicerce, o idiomático, de calquer coñecimento ulterior. Abre as portas, por aquí, para a asunción da lingua galega como signo nacional imprescindíbel (e non só como auxiliar necesario, mais subsidiario) que caracterizará, cordial e intelectualmente, a mellor produción do XIX. * * * * * Unha escritora deste século, de nome Rosalía de Castro, é a que vai inaugurar e protagonizar o que probabelmente sexa o maior salto cualitativo, canto á cultura, que teña rexistado a historia contemporánea da Galiza. Sarmiento clamaba pola elaboración de gramáticas e dicionarios galegos, porque, a aquela altura, a lingua, como institución, era, fundamentalmente, metalingua: escrita, gramática, valorización escolar, presenza no ensino. Rosalía (“sin gramática nin regras de ningunha clas…”, como afirma no prólogo -ensaio maxistral- de Cantares gallegos, 1863) volve á lingua e coloca o uso pragmático á altura da institucionalización literaria. Conxura definitivamente, coa luz da obra monolingüe no idioma proscrito, a escuridade mortal do burato negro e dá sentido complementar á metalingüística que coñecerá a segunda metade da súa centuria, convertida así en reforzo da percepción positiva do galego e non en relicario de filoloxía inútil. O galego xa non vai ser pasarela, ponte, para a mellor adquisición do latín e do español, senón ente autónomo, na escrita multitemática que, por súa volta, abrirá o camiño ás propostas do nacionalismo organizado do século XX, o encargado historicamente de converter en acto (uso académico, investigación científica, literatura omnixenérica, uso político…) a potencia que os Restauradores do XIX alumaron. Mais non adiantemos acontecimentos. Murguía, figura central do Primeiro Renacimento, recolle o facho aceso polos ilustrados e dá pasos decisivos para a criación dun pensamento galego desde dentro do país e ao seu servizo. Será o elo de unión entre o P. Sarmiento e Castelao, mais cun cambio de óptica fundamental: se os ilustrados do XVIII perseguían a exibición do galego como auxiliar indispensábel no edificio escolar español operante na Galiza, Murguía aspira a que esta e as súas producións ocupen a centralidade do pensamento e do labor intelectual galego. Diríamos, en termos gramaticais, que Sarmiento pretende alterar a sintaxe; Murguía, a semántica. A novidade é substancial: non se trata de adaptar; trátase de innovar e de substituir. A subordinación en que se encontra a lingua galega e a súa cultura quer combatela Murguía a partir dos seguintes axiomas: 1) o galego é un idioma ilustre, fillo do latín, pai do portugués, recipiente da mellor literatura medieval; 2) Galiza é un povo con historia propria, que é preciso desenterrar e dar a coñecer; 3) Galiza é
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recuperábel como tal: será a xeración a que el pertence a responsábel de a colocar dignamente no concerto español e europeu; 4) toda canta innovación progresista, moderna, se proxectar, no século que fai da modernidade a súa bandeira, ha de existir, para ser válida, desde a Galiza e para a Galiza. O cambio superador do humanitarismo dezaoitista é fundamental, porque pasamos do terreo da moral ao da política: Murguía aspira, propositadamente, a unha institucionalización galega que informe da vera effigies do país, que sexa espello digno da súa personalidade. ¿Qué era o marcadamente diferencial do país? Lingua, historia, economía, cultura. ¿Onde se achaba a xenuidade destas institucións? No povo. A intelectualidade galega, se quixer producir algo de valor, ten de ollar para o povo e alimentarse do que el construiu. Neste cuadro, La primera luz (subtitulado “Libro de lectura para uso de primeras letras de Galicia”) é a resposta a unha necesidade imperiosa: a de dotar ás escolas galegas dun manual de aprendizado que meta o país nas aulas, que excite a autoestima colectiva e corte os efeitos dunha xenoestima alienante que mestres e libros non facían máis que hipertrofiar. É resposta pontual tamén, netamente política, portanto, á promulgación da “Ley Moyano”, de 1857, que organiza o ensino en tres níveis, o primario, o secundario e mais o universitario, e que tenta extender a escola pública a toda a povoación (a toda a povoación masculina; as escolas para nenas ou mixtas han tardar moito en apareceren…). Dous anos despois de promulgada a lei, en 1859, publica Murguía este manual de primeiras letras, non como contributo intelectual abstracto, senón como libro de uso escolar, de alfabetización primeira no amor á patria e aos seus signos. Nun país dun analfabetismo xeneralizado, con altísimas percentaxes de absentismo escolar -por mor do traballo de nenas e nenos na casa, no campo e no mar-, con escolas de ferrado, que se alongan até ben entrado o século XX (paliativo á deficientísima rede escolar a cargo do Estado), o libro de Murguía resulta pioneiro e dun alto valor pedagóxico, como alternativa oferecida desde dentro e para inducir un cambio de mentalidade en alunos e profesores. A obra contén vinte e sete leccións sobre Xeografía e Historia de Galiza e complétase cun elenco de cinco mini-biografías, de doada fixación didáctica, que van desde Santa Mariña a D. Felipe de Castro. A escolla dos biografados non é nada casual: quer dotar de recursos de lexitimación ao país nativo dos alunos, nos dominios en que os únicos exemplos oferecidos eran españois. Así, a Galiza ten presenza, através de Santa Mariña, na colonización romana e no santoral cristián; ten historia medieval (San Paio e Diego Xelmírez); é berce do máis reputado sabio do XVIII, o P. Feixoo; nela ve a luz un triunfador da arte da escultura, Felipe de Castro, galego galardoado en España, en Italia…: Galiza, portanto, ten historia, ten tradición cultural, ten arte, tivo poder político; ten capacidade científica e intelectual. Os escolares galegos deben coñecelo e aprendelo. O manual que comentamos (que utiliza o formato do catecismo, con perguntas e respostas, moi popular como veículo didáctico no século XIX) dedica dúas leccións, as iniciais, á lingua; dúas, á relixión; seis, á xeografía; doce, á historia, e cinco, como se dixo, ás biografías do novo “santoral” que os nenos galegos deberían coñecer. Murguía altera, así, radicalmente, as bases da única canonicidade admitida : a lingua “común” (a española, por decisión decretal); a historia mítica da España imperial. Revelan as súas leccións coñecimentos das modernas técnicas da pedagoxía (tan celebradas e defendidas por Sarmiento, como xa vimos), que encarecían a necesidade de comezar o ensino polo próximo e familiar ao rapaz, nun
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esforzo de autovaloración que cortase as inxeccións de denigración e de auto-odio que a escola fundamentalista dependente do Estado ou de centros eclesiásticos ou relixiosos impuña. A lección inaugural do libro é definitiva, porque sitúa, de forma exemplar, o conflito lingüístico na súa máis crúa expresión. É a autoridade do mestre a que, agora, se dirixe a elevar á dignidade e á excelencia o signo do abaixado e reprimido. En moi poucas liñas, Murguía quer curar: (a) a autopercepción negativa do idioma; (b) a brutal alienación do auto-desprezo; (c) as feridas inflixidas por práticas funcionariais que xa conseguiran domear integramente o elemento nativo, avergoñalo da súa “negritude”. Repárese en como, moitos anos despois, se seguían editando opúsculos que insistían na necesaria “civilización” dos galegos através da correcta posesión do español: mesmo un profesor e escritor tan vinculado á Galiza como D. Emilio Álvarez Giménez publica, en 1870, Estudio sobre las faltas del lenguaje que se cometen en Galicia, con sucesivas edicións en anos posteriores. Naturalmente, as faltas ou defeitos da linguaxe eran os abundantes galeguismos introducidos na oralidade en español de nativos do país. O ponto de partida de Murguía, como se verá, é o inverso: é o galego o que ten de emerxer, non o que deba ser ocultado; o que cómpre corrixir non é o galego, senón a elefantiase do español. Vexamos o texto desa lección primeira: “DEL DIALECTO. Lección Primera. Un niño entró en la escuela, era un pobre aldeanito, y no sabia hablar el castellano. El maestro le preguntó: -¿No traes tus libros, hijo mío? -Señor -respondió el pobrecillo temblando- esquecéronme; y todos los demás niños se echaron á reir de él, y se mofaron de su ignorancia. Pero el maestro, que era un hombre docto, y mejor que esto todavía, un hombre justo, les impuso silencio y les dijo: “Hijos míos, ¿Cuál es la falta de ese inocente para que os burleis de él? No sabe el castellano, y habla en el dulce lenguaje de su tierra nativa, en el lenguaje en que hablaron sus abuelos! Sabed, niños, que el dialecto gallego, cuyas armoniosas palabras escitan vuestra risa, como si fuerais estraños, es la fuente de donde salió el idioma español; es un dialecto en que pueden espresarse con mas dulzura, con mas suavidad, con mas cariño que en ningun otro, todos los pensamientos y todas las ideas; que en él hablaron nuestros padres, y que nosotros no debemos no digo ya olvidarlo, sinó amarlo, venerarlo, como á preciosa herencia que nos han legado nuestros antepasados. Amad el lenguaje en que hablamos todavía; el pueblo que olvida y escarnece su idioma, ese pueblo dice al resto del mundo que ha perdido su dignidad! El hombre -dice un sabio moderno- lo último que pierde es el acento natal; no os avergonceis, pues, de ser como los hombres, ni os cause risa oir hablar como hablaron vuestros abuelos. Si algo hay aquí que debe escitar vuestra hilaridad no es la santa ignorancia de este aldeanito, sinó la imprudente carcajada del hijo de las ciudades, que no conoce que acaba de reirse de si mismo” (MURGUÍA 2000 (ed. facsímile da orixinal de 1859:11-12).
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Na década en que morre Rosalía de Castro (15 de Xullo de 1885), nacerán figuras fundamentais da intelligentsia galega que dedicarán ao asunto da escola atención privilexiada. Se escollermos como datas de comezo e de cabo as dos nacimentos dos Vilar Ponte (1881, ano en que nace Antón; 1890, Ramón), incluiremos como exemplos significativos os de Risco, 1884; Castelao, 1886; Viqueira, 1886). Semella simbólico que un ano despois de falecida Rosalía, xusto no ano en que Murguía publica o seu Los precursores, naza a xeración que dé forma á representación da Galiza na primeira metade do século XX. Esta xeración toma o relevo á altura dos tempos. Saben que se non trata só de proseguiren coa criación dunha teoría e dunha ideoloxía nacionalitarias, senón de inauguraren unha praxe nova, que xulgaban urxente para criaren de vez conciencia galega e cambio político e social. Aran as leiras que teñen e que poden, quer dicer, as praticábeis fóra e dentro das institucións, con criación directa e orixinal ou con influencia parcial e lateral: exemplo das primeiras, o libro, o artigo xornalístico, a prensa onde podían pulblicar, a investigación científica sobre o terreo, o mitin partidario, as publicacións orgánicas do nacionalismo…; exemplo das segundas, as aulas escolares, a constitución de grupos como o “Seminario de Estudos Galegos” (1923), as exposicións de artes plásticas dentro e fóra da Galiza… Unha novidade fundamental da xeración das Irmandades da Fala (Xeración do 16, na terminoloxía de Ramón Vilar Ponte) e da Xeración Nós pasa por deseñaren un novo espazo simbólico para o galego, através dunha persistente tarefa de reapropriación do nacional e de substitución do español mesmamente nos ámbitos que definían sinaladamente a hexemonía do idioma e da cultura oficiais do Estado. Un deles, como non podía ser menos, é o do ensino e, nomeadamente, a escola primaria, a primeira forxa de aculturación do neno. Inevitabelmente, tamén, a lingua e a oferta do ensino da cultura e da historia da Galiza van ser as recorrencias principais. Cómpre subliñarmos que este empeño pioneiro axiña se traduce en ideas e en obras, e será debido, única e exclusivamente, a un esforzo interno ao país, de natureza, obxectivos e fins patrióticos (resulta, por isto, falso e frívolo cualificar o nacionalismo galego deste período como seguidista e rezagado a respeito do basco e do catalán; xustamente, a proba histórica, a proba documental, abonan o contrario). De 1921, por exemplo, data unha obra fundamental, Doctrina nazonalista, de Ramón Vilar Ponte, verdadeiro sumario de definición ideolóxica, que non só identifica e proclama a nova semántica, senón que esclarece e refuta as obxeccións máis comúns ás arelas das patrias sen liberdade. Admira comprobarmos a clareza e rotundidade do pensamento anti-imperialista aplicado á Galiza e ao mundo e, tamén, a modernidade dos conceitos científicos que se barallan: toda lingua, afirma Ramón Vilar Ponte, polo feito da súa estrutura particular e diferenciada das demais, confere ao pensamento de que ela é exteriorización modalidades e características especiais que van labrando unha cultura inconfundíbel e orixinal, propria do povo a que pertence a lingua; esta é recipiente e veículo da prática cultural, que cómpre restaurar, se foi eliminada e agredida. Lingua e cultura propria serán a mellor defensa contra a asimilación e a regresión. A preocupación pola escola, polo ensino, vai ter axiña reflexo nas páxinas d’ A Nosa Terra renacente. Neste órgao das Irmandades, moi pouco despois da súa refundación, en 1917, publica Xoán Vicente Viqueira artigos monográficos sobre a escola e o galego na escola. Viqueira acaba de obter a praza de Catedrático de Filosofía do Instituto de Santiago de Compostela. No tempo que vai da primavera deste ano 1917 ao verán (30 de Agosto, en que
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aparece publicado o artigo “A nosa escola”, na revista citada), o profesor Viqueira está colocando a súa erudición, a súa sabedoría, ao servizo da criación da idea: cómpre “pór os nosos esforzos na creación d’ unha escola galega”. Os seus fins non se poden limitar a aprender a escreber, ler e contar, pois que debe facer “germolar todo canto hay de bô na nosa raza” (VIQUEIRA 1974: 137). E aínda: “Á escola pedímoslle a raza en toda a sua integridade: mulleres, homes da nosa raza para loitar, para vencer na inmensa loita da vida” (VIQUEIRA 1974: 138). Por certo, supomos que non pasará inadvertida nen será atribuíbel anacronicamente ao politicamente correcto a mención do substantivo mulleres, que se preocupará o proprio autor de repetir cando refira a necesidade da formación e da capacitación profisional nos oficios: costureiras, cociñeiras, canteiros, ferreiros, labregos). A lingua ten de entrar na escola -sustén Viqueira- non só por ser a lingua do país, senón por abrir a porta ao mundo portugués. En segundo lugar, a escola debe ser o centro cultural do rural e das vilas: debe acoller e difundir bibliotecas, conferencias sobre os problemas do momento, agrícolas e económicos. Para isto, precísanse mestres que vexan elevada a súa situación salarial e podan dedicarse vocacionalmente a tan necesaria profisión. Eles deben ser unha “aristocracia do país”, con elevación, tamén da súa formación pedagóxica e cultural. En terceiro lugar, a cuestión da lingua. Viqueira propugna unha especie de pacto de non agresión. Expliquémonos. É vital, como primeira reforma, que non se proíba a expresión na propria fala. A seguir, levantado o veto, débese cultivar escolarmente através da literatura popular, da música e da literatura culta, labores para os que resulta imprescindíbel a criación de cátedras de Lingua e de Literatura nas Escolas Normais e a esixencia destas materias nas oposicións de Maxisterio. Non se trata de suplantar o castelán -afirma o autor-, senón de que “a nosa lingua non fique totalmente relegada”. Engade prudentemente: “O porvir dirá si isto abonda”. Vai ser nunha longa conferencia titulada “Nosos problemas educativos” (proferida no local da Irmandade da Fala da Coruña e publicada despois n’ A Nosa Terra, en 1918), onde Viqueira se espraie acerca do problema do ensino e das súas alternativas. Parte de consideralo moi imperfeito, anácrónico e xerador de fracasos. A reforma por el defendida pasaría polos seguintes extremos: (a) a introdución da lingua, oral e escrita, através das canles mencionadas antes (literatura popular, literatura culta e música); (b) valorización da escola primaria e dos seus docentes, en nada inferiores ao labor dun profesor universitario; (c) inclusión da formación profisional, con atención aos oficios principais das clases traballadoras galegas; (d) organización dun estudo técnico, conectado ás necesidades reais do país, non aos planos de estudos producidos en Madrid; (e) modernización da profisión, con actualización de saberes e dignificación da mesma; (f) organización do Bacharelato como un corpo unitario e integral, que aglutine no mesmo título as vellas divisións de Ciencias e Letras, inclúa o estudo de linguas clásicas e modernas e ofereza un conxunto cultural integrado;
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(g) simbiose, nos estudos da Universidade, das chamadas disciplinas científicas e das humanidades, ao servizo daquela formación integrada e do mellor aproveitamento cultural; (h) o ensino e a educación das mulleres: Viqueira dedica un capítulo íntegro do seu programa a esta necesidade e, lonxe de calquer tentación saudosista ou imobilista, proclama abertamente: “¡C’a historia non valen saudades! Estamos na realidade presente e pensemos que o problema do feminismo, ja pranteado por Platón, é un problema do momento, para o que hay que prepararnos e que a función social da muller váise a ampliar enormemente” (VIQUEIRA 1974: 161). Franco partidario da criación de Institutos Femininos e de residencias femininas, Viqueira pondera a necesidade de oferecer ás mulleres a mellor preparación xeral posíbel e de dar a capacitación para cantas profisións podan desempeñar, incluída a formación universitaria na Universidade común; (i) afinal, salientaremos a teleoloxía desta proposta. A educación debe despertar e cultivar todas as potencialidades do povo galego; concederlle lugar central ao galego, como lingua de oferta de ensino, como lingua escrita ( mesmo, de teses de doutoramento) e como lingua que se ensine, para a súa corrección. Lonxe de libresca e pasiva, ha de ser interactiva, con coñecimento da realidade física, xeográfica, integral e empírica, conectada ao contorno e ás necesidades económicas do país. Tal ambicioso programa só será posíbel mercé á descentralización, quer dicer, á criación de institucións proprias, desde as que se críe e difunda unha epistemoloxía moderna, orixinal e útil para o país. Por todo o dito, ben podemos considerar Viqueira o primeiro dos pedagogos galegos do século XX. Protagoniza, oterianamente, a súa particular viaxe ao centro galego desde a ilustración e a cultura española e europea. Quer aplicar á súa nación a modernidade dos países do capitalismo avanzado: Franza, Alemaña, Reino Unido, U.S.A. Desexa unha Galiza grande nunha Iberia onde ela perviva como nación representativa da “civilización céltica” do sul, próxima ás outras europeas da mesma filiación étnica. Quer conciliar hispanismo e lusismo ou portuguesismo, através da matriz cultura, o galego. Aspira a que o recoñecimento do bilingüismo faga emerxer e respeitar o galego. É un europeísta convencido, se lle darmos a este termo o valor descrito, aplicado ao contexto do remate da Primeira Guerra Mundial, non, obviamente, a conotación actual. Galiza, enfín, debe ser centro, non periferia receptora e marxinada. Referirémonos agora a unha segunda aportación desta xeración, concretada no interese do nacionalismo nacente por tratar monograficamente as cuestións pedagóxicas. A revista Nós, a pouco da súa saída (no nº 6, 20 de Agosto de 1921), inaugura unha chmada “Seición Pedagóxica”, que se orienta a unha constante “propaganda pr’á meirande eficacia educativa e galeguizante das nosas escolas” e que busca informar aos leitores das máis notábeis novidades pedagóxicas do mundo, para as adaptar á Galiza, ao amor e comprensión que a Galiza precisa. Neste número de Nós e máis no seguinte, publicará Vicente Risco un completo “Plan pedagóxico pr’a galeguización das escolas”, que reproducimos en Anexo. Tal programa alternativo, auténtico compendio do que significaría, de ser aplicado, unha revolucionaria mudanza do ensino na Galiza, foi composto por Risco (el proprio profesor da Escola Normal de Ourense), após a encomenda da III Asemblea Nacionalista Galega, celebrada no ano 1921, en Vigo, o que fala ás claras dun propositado intento de rección do ensino interna ao país e de substitución dunha institucionalización allea e imposta por unha orixinal e atenta á
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morfoloxía social e cultural do mesmo. Trátase -se se admitir a grandilocuencia- dunha “tomada do poder” a que se pretende executar, através dun dos dominios ideolóxica e economicamente máis simbólicos e determinantes, o ensino, a educación, o grande alimentador e conformador mental. Se esta empresa tivese sido posíbel -fóra dos empeños individuais e voluntaristas-, se tivese sido posíbel e efectiva institucionalmente, a Galiza hai anos que se encontraría xa (historicamente) no século XXI. Os homes e as mulleres da Xeración Nós querían facer frente a un dos máximos garantes e gardadores do sistema, un dos seus pilares fundamentais, a ideoloxización e españolización através da escola, que toma o relevo da Igrexa Católica neste labor e antecede ao papel que máis tarde (hoxe) absorberán os meios de comunicación masivos, nomeadamente os audiovisuais. Fican fóra deste noso itinerario nomes principais do tempo (e da posguerra), como o de Xosé Ramón e Fernández-Oxea, mestre, pedagogo, inspector de ensino primario e escritor, animador activo da cultura galega no Madrid dos anos cincuenta e décadas seguintes. Cerraremos o noso percurso, tal e como o título indica, co nome e a clarividencia de Castelao. El vai ser quen poña, coa súa autoridade, o ramo a esta viaxe pola emerxencia da conciencia galega no tocante ao ensino. É a súa unha posición ben avanzada, polas seguintes razóns: 1ª) por ser autor dunha obra proteica e simbiótica (artística, literaria, doutrinal e política), de grande eficacia e efeito multiplicador; 2ª) por ser o máis activo e destacado propagandista dentro e fóra da Galiza- da causa nacional e patriótica; 3ª) por ser o máis lúcido e valente da súa xeración na diagnose do ensino imposto e o que vai máis alá na proposta dunha escola galega. Das cincuenta estampas que compoñen o álbum Nós (que representa o baptizo formal de Castelao como artista da nación), varias van reflectir a preocupación do autor por ter conta desta parte da realidade sociolóxica e ideolóxica. A escola (estatal) produce repulsión nos receptores, ou escepticismo ou distancia crítica. O galego está expulso do sistema escolar e calquer “redención” pretensa deberá contar co coñecimento da realidade empírica e histórica do país en que o ensino asenta. Nas páxinas de Sempre en Galiza (1944) -e como corolario de moitas intervencións anteriores-, Castelao referiráse ao papel estrañador e alienante da escola, através de diagnoses absolutamente lúcidas: “Hoxe os máis destacados educadores de Europa propoñen que o enseño se déa sempre na língoa materna dos nenos, deica o desenrolo completo da súa persoalidade, porque así quedarán en condicións de deprenderen a segunda língoa, como asignatura. Este aisioma pedagóxico fúndase na comprobación de que a suma de coñecimentos adequiridos por un neno instruido na súa língoa materna, é doble da que adequiriría n-unha língoa allea. A explicación está dada por moitos pedagogos: Cando non se utiliza nas escolas a língoa materna dos nenos, prodúcese unha atrofia na faculdade do lingoaxe, i esta perturbación déixase sentir faltalmente no aprendizaxe da segunda língoa. Estas conclusións parez que non chegaron ao coñecimento dos nosos estadistas. Eles -tan afeitos a buscaren precedentes fora de Hespaña- non queren, pol-o visto, enterárense da lexislación dos países afeitados pol-o problema das língoas: Suiza, Bélxica, Luxemburgo, Irlanda, Inglaterra, Unión Soviética, Checoeslovaquia, Lituania, Estonia, Yugoeslavia, Rumanía, etc.” (CASTELAO 1977: 108-109).
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A Universidade, “ama de cría do caciquismo”, é xulgada duramente como mentora da alienación e da ignorancia sobre a Galiza: “…un galego pode, sen sair da Galiza, conquerir un tíduo universitario, exercer unha profesión liberal, e iñorar que eisisteu Rosalia de Castro” (CASTELAO 1977: 106). As súas aseveracións sobre Escolas de Agricultura, investigación agropecuaria, necesidade de conectar o ensino coa realidade económica do país e co seu desenvolvimento son exemplares a respeito dun coñecimento moito a pé de obra da mesma e, por aquí, da necesidade de dotar ás ensinanzas de novos contidos e utilidades. Non menor será a súa sensibilidade para coa literatura e as artes plásticas, con particular valorización de toda a arte popular. * * * * * Varias décadas despois de seren formuladas estas denuncias; de se idearen solucións liberadoras e anovadoras como as descritas; de se programaren novos contidos e coñecimentos acordes coa fisonomía do país e ao seu servizo, aínda non podemos falar dun ensino galego, se por tal entendermos o previsto orixinalmente dentro da nación, con atención aos seus signos distintivos, á súa cultura, á súa economía, ao seu mercado de traballo, ás súas avantaxes comparativas. Mais a historia sempre deixa remol. Se Antón de Marcos, en Lugo, hai cincuenta anos, organizaba -e pagaba- cursos agropecuarios e de cultura galega para mestras e mestres do rural (e aínda vive quen o conte e o recorde como experiencia definitiva na súa vida profisional), onde o maxisterio fundamental consistía na lección de amor, de respeito e de cultivo dos costumes, da literatura, da música, da danza e da busca da mellor rendibilidade para os produtos do país…, hoxe, nós somos herdeiras e herdeiros dunha dignísima diacronía da que podemos, moralmente, orgullarnos e, politicamente, tomar exemplo. As políticas educativas actuais, todo o inxente labor sindical, pedagóxico e asociativo dos nosos días, sería inintelixíbel sen estas bases. Ensino e realidade. Antano, o primeiro elemento do binomio existía mesmamente para negar e lexitimar a subordinación do segundo. Hoxe, o binomio cambiou, en boa medida, mais aínda non se acadou a mudanza de sistema, por moito que teña cambiado o rexime. Permítasenos expresar a confianza en que a sofisticación burocrático-funcionarial, con todos os seus espellismos, non nos anuben a necesaria visión realista de todas as necesidades pedagóxico-didácticas que aínda temos por cobrir, nun planeta globalizado onde a única garantía de sermos humanos singulares -e non clónicos do “Amo Universal”- será a particular afirmación do que somos, do que fixemos e do que somos capaces de facer na historia.
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Referencias bibliográficas
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Introdución Estudarmos as (novas) entidades nacionais que surxen na Europa e en América ao calor dos ideais da Revolución francesa, ou reflectirmos sobre as (novas) nacións que se constrúen na secuencia dos procesos descolonizadores é estudar e reflectir sobre a literatura, sobre os sistemas literarios, sobre os contextos de produción e recepción, así como sobre os mecanismos de mercado que permiten a circulación dos bens culturais, entre os cales a literatura, e as flutuacións mercantilistas a que, como productos, están submetidos. Por todo iso, resulta xa un tópico relacionar literatura e política (entendida esta en sentido largo), cando se fala de sociedades emerxentes de procesos descolonizadores ou de sociedades que, tendo vivido situacións moi similares do punto de vista económico e cultural ás do colonialismo, afirman a súa vontade de seren autónomas. Estabelecer unha relación directa entre a formulación das novas entidades nacionais e o discurso literario posto moitas vecces ao servizo daquela, é, pois, un tópico que mal disimula a constatación dunha realidade: identidade nacional e discurso literário son, polo menos nos períodos iniciais en que aquela surxe, indisociábeis, como podemos constatar coa afirmación dun crítico brasileiro referíndose á súa literatura: Não podemos deixar de lembrar que um dos papéis desempenhados pela literatura no Brasil do século XIX foi o de configurar, consolidar e disseminar uma noção de identidade nacional (Jobim 1999: 195).
Nesa relación entre política (ou identidade nacional) e literatura, a primeira función desta sería a de “narrar a nación” para utilizar a expresión de Homi Babha (Narrating the Nation) porque a nación existe desde o momento en que existe o discurso sobre ela, ou o que é o mesmo, desde o momento en que esta é “narrada”. Desta maneira, narrar a nación (seguindo Bhabha) acaba por ser unha maneira de racionalizar e de autorizar as tendencias culturais dispares que a compoñen, en nome dos intereses nacionais ou dos intereses criados dun grupo étnico particular ou dunha clase; porque todo o proxecto nacional surxe dun centro (grupo ou clase) que se autoerixe en núcleo
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simbólico da nación emerxente e que precisa tornarse presente para facer presente tamén a “nova” entidade nacional (presenza que comeza pola súa mesma definición -a do grupo e a da entidade social a que pertencen ou a que aspiran pertencer, quere dicir, a cuestión da “identidade” como liña de forza-). Por iso, sen ser imprescindíbel, é frecuente que a “narración” nacional sexa un acto literario e que clase política e clase letrada sexan, nestes primeiros tempos onde non existe autonomía dos campos, case sinónimos1. Ora ben, constituír unha clase letrada (que a si propia se considera metonimia da nación) onde os seus componentes converxan para obxectivos comúns, é un proceso lento e cheo de dificultades e, nese proceso, os intelectuais deben comezar primeiro por se tornaren “visíbeis”: Para ter acesso à simples existência literária, para lutar contra a invisibilidade que os ameaça de imediato, os escritores têm de criar as condições do seu ‘surgimento’, isto é, de sua visibilidade literária (Casanova 2002: 219);
Para conseguiren ese obxectivo, deben activar estratexias por veces contraditorias tal como explica Irma Lloréns cando se refire ao pacto de colaboración implícito na actitude dos intelectuais e, nomeadamente, á capacidade para alteraren esa relación co campo do poder estabelecido: El proyecto de independencia intelectual de los letrados nacionalistas […] depende, [moitas veces], de su capacidad de asociarse a las instituciones culturales oficiales y, sobre todo, de su habilidad para poner esa asociación al servicio de su propia ideología(Lloréns 1998: 113).
Isto é, tentar rebentar desde o interior do campo do poder (no noso caso, español) ese mesmo campo opóndolle outro alternativo. Nesa loita de forzas, a literatura concíbese como unha práctica cun obxectivo claro que é, como sinala Irma Lloréns, implica la exclusión de otras prácticas paralelas, y que aspira a establecerse en un campo historicamente determinado de fuerzas que compiten por la autoridad intelectual o política (Lloréns 1998: 115).
Definir a nación Asumida a “necesidade” dun grupo simbólico, comeza o proceso de definir a nova realidade (nacional) e para iso iranse pór en valor unha serie de mitoloxemas2 que darán espesor identitario á formulación nacional e que se tornan estratexias discursivas que en boa
1 A título de exemplo, lembremos que as grandes figuras políticas das novas entidades nacionais, son, por via de regra, escritores e iso serve, quer en contextos do século XIX, quer do século XX e o mesmo se pode dicir de diferentes espazos: da Galiza ao Brasil, da Venezuela a Cabo Verde, de Angola a Chile. 2 Utilizamos o termo mitoloxema no sentido en que o fan Jung e Kerényi para se referiren a aqueles relatos que ainda sendo ben coñecidos, son ainda susceptíbeis de reformulación. O termo, así, despraza o vocábulo “mito”, que estes teóricos consideran equívoco, vago e confuso e o mitoloxema pasaría a representar unha serie de funcións mais complexas como corresponde á definición/construción da nación.
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medida definirán e orientarán todo o proxecto literario dito nacional: a reivindicación da lingua e a recuperación da historia serían, do noso punto de vista, as dúas balizas esenciais dese proxecto. Trátase de dous elementos da check-list identitaria que presenta sempre as mesmas características en calquera contexto: Hoje podemos estabelecer a lista dos elementos simbólicos e materiais que uma nação digna desse nome deve apresentar: uma história que estabelece uma continuidade com os ilustres antepassados, uma série de heróis modelos das virtudes nacionais, uma língua, monumentos culturais, um folclore, locais eleitos e uma paisagem típica, uma determinada mentalidade, representações oficiais […] e identificações pitorescas (Thiesse 2000: 18).
É evidente que nin todos os elementos desta lista terán o mesmo peso en todas as construcións nacionais -e a situación galega non ía ser unha excepción3-, mais si todos están presentes, en maior ou menor medida, nesas construcións. Agora ben, se a nación “nace dun postulado e dunha invención”, só se mantén viva coa adhesión colectiva a esa ficción, que é o que representa o concepto de Comunidade imaxinada de B. Anderson4. Centrándonos no proceso de construción nacional galega, este é iniciado, en termos teóricos, por Murguía, tal e como afirma Bernardo Maiz: Fronte ás sólidas formulacións do galeguismo histórico precedente e mesmo coetáneo […], así como da historiografía galega anterior, procedíase por vez primeira [estase a refirir á aparición do volume I da Historia de Galicia, en 1865], á construcción histórico-teórica de Galicia como nación ou nacionalidade. De feito, e a través dunha vastísima produción intelectual, fundamentalmente historiográfica, o ideólogo e lider galeguista ha proceder a afondar sistematicamente […] a fractura infrinxida á ambiguidade e indefinición características do diferencialismo anterior (Maiz 1997: 173-174).
O papel de Murguía no proceso da nation building galega é, pois, esencial, a comezar pola sólida fundamentación histórica da nación galega e, dentro desta, pola creación do mito fundador por excelencia, que é o celtismo: Na cerna da construcción de Murguía agroma de xeito sobranceiro o mithomoteur céltico de procedencia francesa: mito heróico de fundación dunha nación […] devén mito tráxico, así mesmo, de perda da Idade de Ouro no Medulio (Maiz 1977: 1529).
3 A título de exemplo, chamamos a atención para o elemento “paisaxe” na literatura do Rexurdimento ou a este mesmo tema ligado a narrativas de itinerario na Xeración Nós. 4 “Es imaginada porque aún los miembros de la comunidad más pequeña no conocerán jamás a la mayoría de sus compatriotas, no los verán ni oirán siquiera hablar de ellos, pero en la mente de cada uno vive la imagen de su comunión” (Anderson 1993: 23); máis á frente, Anderson define o conceito de comunidade: “se imagina como comunidad porque, independientemente de la desigualdad y la explotación que en efecto pueden prevalecer en cada caso, la nación se concibe siempre como un compañerismo profundo, horizontal” (Ibid.: 25).
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Nin sempre as interpretacións e reintrepretacións da teoría do pai fundador do galeguismo foron as máis exactas e correctas, pois a fundamentación murguiana inclúese “nun proxecto nacional liberal e de progreso na Galicia do momento” (Maiz 1977: 231), o que non sempre foi o caso dos seus continuadores, por máis que o pensamento e a acción de Murguía fosen tamén, en moitos casos, contraditorios. Despois de Murguía deberemos chegar á Xeración Nós para determinarmos, de forma clara, todo o proceso de formulación identitaria que de feito encontramos nese grupo, ideoloxicamente surxido ao amparo das Irmandades da Fala: a ideación da nación, a elaboración das novelas e romances fundacionais, a concreción do campo literario galego, así como as tensións entre este e o campo do poder, a loitas pola modernidade literaria5; en definitiva, todos os elementos que poderiamos estudar nunha literatura emerxente encontrámolos na Xeración Nós de forma sorprendentemente modelar, mesmo nas súas contradicións, simplificacións ou incoherencias. A lingua, capital simbólico No traballo con que introduciamos os textos galegos do primeiro volume de Estudos Galegos e Brasileiros, faciamos a seguinte afirmación respecto da cuestión lingüística: desde os primeiros momentos da recuperación da conciencia galega, a lingua tornouse (a súa reivindicación e a configuración do seu paradigma) no elemento central, case que poderíamos dicir no elemento primeiro (e nalguns casos único) da check list identitaria” (Salinas 2003: 30).
Por tanto, esa cuestión alicerzada no principio herderiano da encarnación da nación na súa língua (quere dicir, a lingua sería a expresión da “alma do pobo”, a mellor manifestación da Volksgeist), está no centro do debate e da reflexión sobre a literatura, en canto que esta foi e aínda continúa a ser, o vehículo directo do ideal nacional; porque non se entende unha literatura sen ver o papel que a lingua en que esa literatura existe desempeña na configuración do seu espazo simbólico. Desprovista dun peso económico evidente, carente dun capital político en que poder alicerzar as súas reivindicacións, a Galiza do século XIX e primeiras décadas do XX só posuía un capital simbólico que soubo utilizar sabiamente para autonomizar o seu campo literario a respecto do campo literario español, así como para facer xirar en boa medida á volta da lingua o proceso de autonomización do campo literario (no sentido que lle dá Bourdieu6), proceso en que aínda está inmersa a literatura galega.
5 O que se entende por modernidade é variábel en cada contexto e tempo. Mais na dinámica autonomizadora está sempre unha aposta pola “modernidade” literaria. 6 Bourdieu escribe: “Muchas prácticas y representaciones de los artistas y de los escritores […] sólo pueden explicarse por referencia al campo del poder, dentro del cual el propio campo literario ocupa una posición dominada. El campo del poder es el espacio de las relaciones de fuerza entre agentes o instituciones que tienen en común el poseer el capital necesario para ocupar posiciones dominantes en los diferentes campos (económico y cultural en especial)” (Bourdieu 1995: 319-320).
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Porén, o dilema co que se encontran os intelectuais proto-nacionalistas e nacionalistas dos séculos XIX e XX (axentes socio-semióticos na acepción de Even-Zohar) á hora de organizaren un campo literario autónomo, deriva dunha escolla necesaria: ou ben adoptan a lingua do Estado a que pertencen, ou ben constrúen un patrimonio lingüístico e literario propio, e esa escolla dependerá non só da “literariedade”7 desa lingua, o galego, como do nivel de desenvolvemento económico. Ao que nos parece, a opción lingüística dun certo compromiso entre español e galego constatábel en todo o Rexurdimento8, obedece (inercias e imposicións á parte) a unha cuestión de opción no interior das loitas no campo literario e, en consecuencia, no campo do poder; unha transacción que a comunidade letrada precisa realizar para o seu recoñecemento institucional (básico para un funcionamento autónomo posterior). Recuperacion ficcional da historia Todas as literaturas coinsideradas emerxentes no século XIX, e a galega non é unha excepción, mostran un interés sorprendente pola ficcionalización da historia converténdose esta nun metarrelato de lexitimación dos movementos nacionalistas. Con efecto, a orixe da novela histórica como xénero sitúase no romantismo e por tanto no período das formulacións nacionalistas, no momento de inventar a nación, e para iso será necesario “inventar” a historia desa nación seleccionando no pasado aqueles momentos “exemplarizantes” para xustificar a posición do autor no campo onde se xogan os seus intereses. Ora ben, discurso ficcional e discurso historiográfico parecen contraditorios, pois en canto que o primeiro pretende mostrar a ”verdade” -é dicir, “reconstruír” e “organizar” a realidade a partir de componentes pre-textuais-, o segundo céntrase na “invención” -é dicir, na “posta en intriga” para utilizar a expresión de P. Ricoeur, deses componentes-. Isto constitúe o paradoxo, que é consubstancial a toda a ficción histórica que ten a ver con dúas clases textuais diferentes, mais que pode ser resolvido razoabelmente se utilizarmos os conceptos operatorios de pacto de ficcionalidade e pacto de veredicción. Quere dicir, o pacto de veridicción é o elemento nuclear en que se basea o discurso histórico, en canto que a comunicación literaria se articula mediante o pacto de ficcionalidade que deixa en suspenso o pacto de veredicción que rexe os discursos referenciais. A tensión entre ambos está no ámago do romance histórico desde a súa constitución como xénero literário e de aí que, para salvar o obxectivo común de “dar a conocer la historia de lo que realmente pasó en un tiempo y en una sociedade determinada”, a ficción
7 Partindo da idea de Jackobson de que o obxecto da ciencia literaria non é a literatura senón a “literariedade”, Pascale Casanova afirma que “uma grande literariedade ligada a uma língua supõe uma longa tradição que refina, modifica, amplia a cada geração a gama das possibilidades formais e estéticas da língua; ela estabelece e garante a evidência do carácter eminentemente literário do que é escrito nessa língua, tornando-se por si só um ‘certificado” literário’” (Casanova 2002: 33). 8 Lembremos o que puido significar para a constitución do campo literario galego obras en español como Los Precursores ou a Historia de Galicia de M. Murguía, ou, a outro nivel, Los Hidalgos de Monforte de Vicetto. Este é un aspecto aínda non estudado e que merece unha reflexión sen preconceptos e criteriosa.
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histórica utilice máis un pacto, o de veridicción (en certa maneira unha prolongación ou actualización do efecto de real barthesiano) que salvagarda a especificidade dunha clase de discurso, o discurso ficcional, diferente do discurso da historia. Como di Celia Fernández Prieto, o romance histórico vén satisfacer uma demanda social, un desexo de coñecer o pasado da nación, que a historiografía non estaba aínda en condicións de cumprir, e iso a pesar, ou tal vez, porque la conexión entre la novela histórica y el discurso historiográfico es tan estrecha que no podría abordarse el análisis del género de la novela histórica al margen de la evolución y de las transformaciones de la narración histórica (Fernández Prieto 1998: 32-33).
Algo similar pode ser aplicado ás literaturas emerxentes dun processo colonial, ou a aquelas sociedades en crise que toman conciencia dunha situación de dominio político e económico: sociedades que sendo suxeitos da historia non tiñan sido suxeitos do discurso sobre a historia. En definitiva, o discurso sobre a historia é outra forma de xustificar o nacionalismo9. Sen entrarmos nun estudo do xénero romance histórico, sobre o cal existe abondosa bibliografía, desde o clásico G. Luckacs de 1937 (aínda que publicado en 1955) até hoxe, interesa chamar a atención para o tratamento do tempo, quérese dicir, “la distancia temporal abierta entre el pasado en el que se desarrollan los sucesos narrados y en que actúan los personajes, y el presente del lector implicito” (Fernández Prieto 1998: 178). No macroxénero romance histórico10, de tanta importancia nos contextos de emerxencia e sobre os cales estamos a reflectir, ten especial interese, do noso punto de vista, esa distancia temporal entre o tempo da enunciación e o tempo representado. Efectivamente, existe unha ficción histórica que recupera/constrúe un pasado afastado, no sentido tradicional do romance histórico romántico de Walter Scott, e aquela que evoca un pasado recente e que para o caso, nomeadamente galego mais non só, é especialmente relevante. Fernández Prieto, a quen seguimos neste punto, subliña as características deste tipo de narracións de evocación de pasado recente. Para esta estudiosa (pp. 190), a cantidade de información que o texto comparte cos lectores é moito maior que na narración de feitos distantes; por outro lado, estes acontecementos, pola súa inmediatez, exercen un maior impacto emocional e, en consecuencia, son susceptíbeis de
9 Para utilizarmos unha explicación de Fernando Ainsa, que daría para comentarios máis demorados, “la ficción no sólo ‘reconstruye’ el pasado, sino que, en muchos casos, lo ‘inventa’, lo ‘funda’, al darle una ‘forma’ y un ‘sentido’.[…] ‘legitiman’ [as novelas] la historia o cristalizan una cierta idea de la identidad nacional” (Ainsa 1997: 112). 10 Os conceptos de Jean Molino de microxénero e macroxénero poñen problemas porque o macroxénero onde Molino (Vid. “Que’est-ce que le roman historique?”, 1975) engloba os romances históricos, ao ser excesivamente amplo, invalida, en certa medida, o seu uso. Ao esquecer, aliás, que o público identifica propiedades textuais diferentes en textos que conteñen unha mistura de historia e de ficción segundo, moi certeiramente, apunta Elizabeth Wesseling (Véxase Writing History as a Prophet- Posmodernist Inovations of the Historical Novel, 1991). Cando o propio Molino fala do romance histórico como “unha forma moderna de actualización desa longuíssima tradición de intercambios entre a historia e o romance”, está a apuntar, precisamente, para o estudo de estratexias narrativas específicas do xénero así como da función que cumpre ao histórico na ficción, quer no plano estrutural e semantico, quer no plano pragmático. Será a partir de aí, desas estratexias e funcións que poderemos diferenciar o romance histórico doutros discursos que teñen tamén unha mistura de historia e de ficción sen porén seren cualificados de romance histórico.
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levantaren polémicas e de seren o espazo do confronto ideolóxico; por último, dáse, por vía de regra, unha ausencia de anacronismos ou, en todo o caso a súa “desfuncionalización” e, por ser unha historia que en boa medida aínda se está a facer, permite ao escritor mostrar en vivo o proceso de construción da historia, a circulación de versións diferentes e a interacción da historia cos códigos ideolóxicos e co poder político11. Este breve esquema que acabamos de transcribir é pertinente para aplicármolo aos contextos que estudamos. Efectivamente, nos primeiros momentos da ficcionalización histórica interesa especialmente a historia recente, porque é aquela onde se forxou o triunfo identitario e onde, por vía de regra, participou o mesmo autor sendo este, por tanto, axente dos acontecementos e pretendendo ser, en consecuencia, o responsábel do seu enunciado. Nun segundo momento da autonomización dos sistemas literarios, será necesario discriminar os acontecementos históricos, seleccionar aqueles elementos da historiam rerum gestarum (quere dicir, os feitos realmente acontecidos) e /ou personaxes do pasado que interesan ao proxecto nacional12, quere dicir, é necesario “inventar” a tradición propia13. Sobre esta preferencia temporal, temos un Otero Pedrayo que tematiza un pasado relativamente recente (o século XIX d’Os Camiños da Vida) ou mesmo rigorosamente contemporáneo (Arredor de Si), porque é aí onde se sitúan os alicerces da nación. Otero fai iso, en oposición a aqueles que tentan “inventar” os mitoloxemas nacionais, sexan estes os de Prisciliano, o da Guerra do Monte Medulio, o de Xelmirez ou do Mariscal Pardo de Cela14. A ficción histórica cobre, en consecuencia, non tanto o baleiro existente no que se refire a un pasado “idealmente” existente, como pretende dotar o “espazo vacío de lexitimidade” en que se encontra o novo grupo de elementos xustificadores da súa acción e iso levará a, na perspectiva posmoderna, unha reorientación e reubicación de discurso histórico e discurso ficcional […] é essa mesma separação entre o literário e o histórico que hoje se contesta na teoria e na arte pós-modernas, se as recentes leituras críticas da história e da ficção têm se concentrado mais naquilo que as duas formas de escrita têm em comum do que em suas diferenças. Considera-se que as duas obtêm suas forças a partir da verosimilhança, mais do que
11 Esta maior proximidade temporal entre o presente da narración e o tempo dos acontecementos narrados pon outros problemas ao tornar máis fraca a liña que separa a vontade obxectiva do historiador que o leva a un discurso unisémico e inequívoco (para se manter na convención da veracidade) da intención do autor de ficcións históricas que se atén á convención de ficcionalidade que supón un “diálogo cerrrado, autorreferencial” cunha linguaxe baseada na “ambigüidad o multívoca connotación contextual” que se converte nun discurso plurisémico e equívoco, aindas que sexa persuasivo e convincente á maneira do historiador (Ainsa 1997: 117-118). 12 Queremos lembrar unha constatación que fai Celia Fernández Prieto (1998: 37) a propósito do carácter ideolóxico destas narrativas: “Georg Luckás […] basó su análisis del género sobre un criterio fundamentalmente ideológico y críticos contemporáneos insisten en tal consideración”. 13 As tradicións inventadas a partir do século XIX, “parecem classificar-se em três categorias superpostas: a) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um grupoo ou de comunidades reais ou artificiais; b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade, e c) aquelas cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de ideias, sistema de valores e padrões de comportamento (Hobsbawm, Eric e Ranger, Terence 2002: 17). 14 Téñanse presentes obras como O Mariscal de A. Villar Ponte e Cabanillas, Ostia de Cotarelo Valledor, A Romeiría de Xelmirez de Otero Pedrayo ou Cavalgadas no Salnés de Fermín Bouza Brei.
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a partir de qualquer verdade objectiva; as duas são identificadas como construtos lingüísticos, altamente convencioinalizadas em suas formas narrativas […] e parecem ser igualmente intertextuais, desenvolvendo os textos do passado com sua própria textualidade complexa (Hutcheon 1991: 141).
Ora ben, se o nacionalismo é segundo Robert Redfield e Milton Singer un fenómeno esencialmente urbano, a escasa urbanización da sociedade galega explicaría a febleza do nacionalismo, así como a febleza do discurso historiográfico (ficcional ou histórico) no século XIX15. A constitución do grupo letrado. O intelectual nacionalista Os escritores galegos do último terzo do século XIX e, sobre todo, da primeira metade do XX, representan o exemplo de emerxencia dunha nova entidade social: o intelectual nacionalista que xoga os seus triunfos nun proxecto de autonomización do campo literario onde actúa. Efectivemaente, a creación dunha nova figura, a do intelectual que vén da tradición europea de fins do século XIX (en especial de Zola nomeadamente a partir da súa intervención no affaire Dreyfus), vese definida por unha nova orientación (ou por unha especificación) a de “nacionalista” (evidente na Galiza das décadas de 20 e 30 do século XX e que ten como figura emblemática, sobre todo pola transcendencia posterior, a Castelao) que ten unha misión de subversión profética, inseparabelmente intelectual e política que se monstra simultaneamente como un propósito estético, ético e político que poda agrupar todos aqueles que os seus adversarios (léase a intelectualidade española) consideraban faltos de dominio técnico, autores de obras que porían ao descoberto unha ausencia de imaxinación, unha imposibilidade e unha carencia que lles impediría entrar na “modernidade”; en definitiva, serían a vulgaridade da “non literatura” (Véxase Bourdieu 1995: 196 e ss.). Como di Antón Figueroa, a literatura galega nace vinculada a unha heterodoxia política e tamén, en certo modo, como unha heterodoxia literaria dentro do campo español. Heterodoxia tamén por sua vez, heterodoxa no sentido seguinte: a doxa que se infrinxía non estaba situada unicamente no campo literario, senón que era unha doxa máis ampla que tiña que ver con todo o campo cultural español, na medida en que todo este campo presupuña unha doxa común, unhas regras do xogo tamén comúns (Figueroa 2001: 114-115). Os escritores galegos que chamariamos fundacionais16 (os clásicos do XIX, mais
15 Non deixa de ser curioso que o auxe da ficción histórica galega comece a darse coa Xeración Nós, a primeira tentativa modernizadora da sociedade galega contemporánea e onde a cultura urbana é suplida por un movemento intelectual pequeno-burgués que terá de botar man de elementos transcendentes, espiritualistas, e por tanto máis fáciles de presentaren o principio de desinterese inherente a todo o grupo simbólico, para xustificar a sua posición no campo do poder. 16 Otero Pedraio é, a un nível diferente de Castelao, outro modelo de intelectual “total”: “Otero debátese entre a necesidade de organización do proxecto nacional colectivo […] e a súa aposta concreta , á hora de procurar os conductores para este proceso, en favor de homes extraídos da elite existente naquel momento e na que el propio se inclúe” (Fernández Pérez-Sanjulián 2003: 232-233). O figura de Otero desde a perspectiva que estamos a analizar foi estudada por Carme Fernández Pérez-Sanjulián, A construción nacional no discurso literario de Ramón Otero Pedrayo. Vigo. Edicións A Nosa terra. 2003.
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tamén, e sobre todo, os da Xeración das Irmandades da Fala-Nós), participan nas loitas políticas do seu tempo no ámbito do rexionalismo-nacionalismo, mais tamén, de forma moi importante, contribúen á constitución e consolidación de estruturas de poder institucional son, en simultáneo, creadores e elementos de planificación cultural, no sentido e co significado que dá Itamar Even-Zohar (Even-Zohar 1999: 71-73) de proporcionaren cohesión socio-semiótica-: La puesta en práctica de la planificación proporciona cohesión socio-semiótica a una entidad real o potencial, al generar un espíritu de solidaridad entre aquellos que se adhieren al repertorio introducido por dicha puesta en práctica (Even-Zohar, 1999: 72).
Como estruturas de poder neste ambito, frisamos a aparición de publicacións como A Nosa Terra ou Nós (por ficarmos só coas máis coñecidas) no período correspondente, dado que as revistas axudan a estruturar o campo literario á falta doutras institucións que o fagan; poderíase dicir que elas configuran um espazo público que lexitima o nacionalismo (mesmo que o termo non apareza así formulado no século XIX, pero si a partir das Irmandades) no seu intuito por se converter en forma hexemónica nacional (González-Millán in Figueroa 2001: 90). Nas revistas participan eses intelectuais nacionalistas en sentido lato, ao tempo que moitos deles colaboran na imprensa periódica ou en institucións da metrópole, por vía de regra elemento de lexitimación institucional do campo literario español; pénsese, por exemplo, na inclusión de autores galegos na RAE durante a Ditadura primorriverista, caso de Cabanillas e Cotarelo; nestes casos trátase de estabelecer unha fenda que pon de relevo as loitas polo poder no interior do campo; o feito de participaren en medios “españois” que forman parte da institución cultural española, é unha das estratexias desa nova intelectualidade que precisa de transaccionar no campo intelectual e en consecuencia no campo do poder -que é o espazo das relacións de forza entre axentes e institucións que teñen en común o posuíren o capital necesario para ocuparen posicións dominantes nos diferentes campos, nomeadamente económico e cultural (Bourdieu 1995: 319-320)-, na perspectiva de organizaren o seu propio campo literario alternativo. Todo iso e a frenética actividade estritamente literaria en que se tenta subverter a antinomia ortodoxia/herexía, lembrando que todo o proceso de autonomización se inscribe nunha oposición ortodoxia/herexía como constitutiva de todos os campos de produción cultural, deseña o marco de desenvolvemento da práctica literaria autónoma que se pretende institucionalizar, tal e como nos indica Bourdieu: El proceso en el cual están inmersas las obras es el producto de la lucha entre quienes, debido a la posición dominante (temporalmente) que ocupan en el campo (en virtud de su capital específico), propenden a la conservación, es decir, a la defensa de la rutina y la rutinización, de lo banal y la banalización, en una palabra del orden simbólico establecido, y de quienes propenden a la ruptura herética, a la crítica de las formas establecidas, a la subversión de los modelos en vigor y al retorno a la pureza de los orígenes (Bourdieu 1995: 308).
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Identidades múltiplas A identidade como tema de reflexión e de investigación, como horizonte para explicar moitos discursos políticos, literarios, culturais en definitiva, tense erixido nas últimas décadas en motivo recorrente17 que non pode quedar fóra do discurso politicamente correcto do suxeito público sexa el escritor, político ou comunicador en xeral. Ora ben, o discurso da identidade leva ao espazo da literatura como lugar privilexiado onde aquela se manifesta, onde as varias identidades que constitúen o individuo se constrúen, sexan elas as identidades de xénero, raza, etnia ou a máis abranxente, identidade cultural, todas elas colocadas na tensión das respectivas polaridades: Para algunos nuestra heterogénea constitución cultural sólo puede conciliarse en la literatura, la concertadora por antonomasia de las identidades antinómicas (Yurkievich 1986: 5)
Como consecuencia do principio enunciado, o que nos interesa é marcar como o discurso da identidade se revela, por tanto, nas literaturas, nomeadamente nas chamadas emerxentes, porque “la literatura es, al mismo tiempo, causa y efecto de la identidad nacional” (Ainsa 1986: 40), quere dicir, que a nova entidade socio-política emerxente precisa dunha literatura para fundar a súa identidade, mais esa literatura só pode existir en función dunha realidade (nacional, rexional, etc.) previamente aceptada como tal. Por iso caben dúas posicións a respecto da cuestión identitaria: ou concebir esta como a manifestación dun algo perdurábel que marcaría a nosa mesmidade ou pensala como un desideratum a construír e por tanto susceptíbel de se ir adaptando ás necesidades do corpo social. No primeiro caso, a identidade é algo estático, só susceptíbel de se adaptar segundo as circunstancias, pero sen se modificar substancialmente, como recoñece Raul Dorra na súa reflexión sobre a identidade iberoamericana: Querámoslo o no, pensar en la posible identidad de una posible cosa que se deja llamar Iberoamérica es implicar la existencia de un espacio donde esa cosa es una consigo misma, una y única, y ese espacio no es otro que el espacio del ser: espacio donde la mesmidad perdura, donde no hay otro acontecer que el de la presencia esencial o el de la semejanza infinita (Dorra 1986: 48).
Se polo contrario, considerarmos a identidade como algo dinámico, como un discurso que se constrúe, e a súa construción é a construción da nación, se asumirmos que o discurso identitario surxe cando existe unha conciencia de ameaza, asumimos a desagarrada conciencia do noso tempo histórico18. Esta perspectiva interésanos máis porque significa aceptar a
17 “[…] el tema de la identidad es relativamente moderno. Sabemos que es posible localizar su origen en el romanticismo pues el romanticismo lo invocó por primera vez al menos de forma explícita, y lo colocó en el centro de su interés” (Dorra, 1986: 49). 18 Ainda que aplicada á reflexión sobre a literatura negra brasileira, a profesora Zilá Bernd advirte dos perigos “duma construção identitária com tendência a imobilizar-se, constituindo-se como um fetichismo identitário” (Bernd 1999: 95).
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inestabilidade que define o suxeito contemporáneo, a asunción da ausencia de referentes idealmente colocados nun fóra-de-si, e a necesidade do cuestionamento permanente que obriga ao distranciamento que caracteriza a posmodernidade19, asumindo o que di Nilda Mª Flawiá Partiendo del concepto de cultura como un polisistema en permanente cambio, es decir de un estado continuo de dinamismo y reelaboración tanto en la concepción de lo uno como en la construcción del “otro”, la identidad cultural surge de un contexto histórico particular y no puede ser leída como una construcción estática, sino, por el contrario, como un proceso poseedor de una dinámica propia y que, de manera permanente y natural, reconstruye sus propios perfiles en las representaciones simbólicas de la literatura (Flawiá 2001: 18).
Nesas reelaboracións, interesa particularmente como se constrúe o suxeito nacional tematizado como pobo pola literatura galega do XIX e que no século XX será substituída polas “camadas populares”, un concepto sociolóxico non definido que se aproxima da categoría de Masa de Elias Canetti ou de Multitude de Toni Negri: El término “multitud” era un término peyorativo, utilizado por la ciencia política clásica. La multitud era el conjunto de personas que vivían en un mundo pre-social, que se trataba de transformar en una sociedad política, una sociedad, y que se trataba por tanto de dominar […] en toda la ciencia política clásica, moderna y posmoderna, el término “multitud” se transforma luego en plebe, en pueblo, etc. (citado por Montalvo 2003: 166).
Ora ben, no discurso modernizador que pretenden e en boa medida constrúen as clases letradas, masa e multitude non falan, só actúan e, por tanto auto-exclúense do pacto político moderno actuando subversivamente, por fóra, sen posibilidade de ingresaren na racionalidade da política: non teñen lugar porque non teñen discurso nin forma de seren representados (Montalvo 2003: 167). Ese suxeito é construído polo ensaio, moitas veces feito en español, e polos prefacios20 como unha outra forma de ensaio, ou un ensaio ás avesas e que se erixen en construcións de lexitimación socio-histórica e lugar por excelencia da manifestación ideolóxica. Esta preocupación pola identidade está na nosa literatura do Rexurdimento e está na nosa literatura da Xeración Nós porque é unha literatura surxida no seo dunha colectividade que se sente ameazada, a única, aliás, que ten dereito á identidade:
19 “La posmodernidad es el nombre de un malestar, de una imprecisa conciencia de cambio: de un lado, el rechazo de la razón totalizante, del cogito, del logos, bases de la filosofía occidental. De otro, la convicción de que el progreso ya no hará felices a los hombres […] Mi sistema religioso, estético, ético, étnico, vive en permanente confrontación con otros múltiples sistemas; todos contingentes, fluyentes y transitorios” (Pineda 1997: 31). 20 O estudo dos paratextos prefaciais galegos está ainda pendente de ser feito; só coñecemos, como estudos de conxunto, o que ten feito Goretti Sanmartín Rei desde unha leitura sociolingüística (Lendo nas Marxes. Lingua e compromiso nos paratextos, 2002 e Os (pre)textos galegos (1963-1936), 2002).
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Só tem direito a identidade colectiva, só têm necessidade legítima de identidade os grupos reprimidos […] o que produz a impressão de que no passado todos os grupos reprimidos, os grupos cuja identidade é negada, tiveram uma “linda” identidade, que agora se perdeu. Mas normalmente aquela identidade imaginada no passado é uma invenção, embora se acuse a sua ausência, repressão ou perda como real (Gumbretch 1999: 120).
Ora ben, esa identidade, mais un elemento de lexitimación dos (novos) proxectos identitarios, é unha produción que os intelectuais do período non recoñecen como tal porque eles, como indica Gumbrecht, “não tiveram intenção de produzir identidade no nosso sentido”, senón, na concepción esencialista do seu proxecto, pretenden procurar e “encontrar nas profundezas da literatura a identidade essencial” (Gumbrecht, 1999: 121). Final Neste texto que hoxe presento, tentei chamar a atención para algúns aspectos referidos á literatura galega entendida esta como construción identitaria, como elemento de afirmación de un ser social que se constrúe a través dun discurso que se fai de inclusións e de exclusións, de presenzas, mais tamén de ausencias, unha literatura que marca a singularidade dun suxeito colectivo en proceso de constante reformulación. A nación/colectividade galega afirmase perante outras, estabelece os seus límites e as suas fronteiras; fronteiras físicas e sociais mais, fundamentalmente, fronteiras simbólicas, e a literatura funcionará co criterio lexitimador desas fronteiras, a autoritas que pode producir mudanzas no mesmo “ser”; por iso, a literatura galega fai que a mesma Galiza exista como suxeito ou para dicilo con palabras de Bourdieu: par le fait de dire les choses avec autorité, c’est-à.dire à la face de tous et au nom de tous, publiquement et officielment, il [quen ten autoritas, neste caso literaria] les arrache à l’arbitraire, il les sanctione, les santifie, les consacre, les faisant exister comme dignes d’exister, comme conformes à la nature des choses, “naturelles” (Bourdieu 2001: 284).
A mesma esencia de Galiza como nación implica que existen fronteiras, mais estas son produto dun acto xurídico de delimitación que produce a diferenza cultural ao tempo que é produto desa diferenza. O discurso identitario que elabora a literatura (no caso galega) lexitima perante o discurso dominante a mesma existencia do país. Estas son, pois, algunhas das (pre)ocupacións que orientan o meu traballo con e desde a literatura galega, un territorio a descubrir e a traballar, un futuro, talvez, a (re)encontrar en todo o caso, unha realidade a construír.
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A LITERATURA DE VIAXES NOS CONTEXTOS DE EMERXENCIA LITERARIA: O CASO GALEGO Carme Fernández Pérez-Sanjulián
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1. Introdución Semella case unha obviedade lembrar que desde os inicios da historia literaria, viaxe e literatura aparecen intimamente ligadas. Desde as narracións bíblicas e orientais até os primeiros poemas da tradición clásica, desde a Odisea de Homero, á Anábasis de Xenofonte ou ao Éxodo bíblico, as viaxes adquiren un protagonismo claro no discurso literario. Así, quer viaxes individuais, quer colectivas, imaxinarias ou con referentes reais, formativas ou apenas de aventuras... todos estes textos foron configurando no noso imaxinario colectivo unha idea da viaxe ligada indefectibelmente a valores simbólicos diversos. Pódese afirmar que a nosa imaxinación e, mesmo, a nosa cosmovisión de lectores modernos está formada a partir das viaxes ficcionais a que asistimos nos poemas homéricos, nos contos das Mil e unha Noites ou nas novelas de cabalarías mais tamén nos mundos presentados en relatos de historiadores como Heródoto, relatos de pelerinaxes como o da monxa Exeria, nos de exploradores como Marco Polo ou nos de conquistadores e soldados, máis ou menos convencidos da súa misión imperial, como Colón nas súas Cartas de Relación, Pero Vaz de Caminha na súa Carta ou Fernão Mendes Pinto na súa Peregrinação. Nestes textos, ben diferentes do punto de vista xenolóxico, a viaxe adquire valores diversos. Nuns casos o percurso exterior está orientado polo pracer da descoberta (científica, de riquezas, relixiosa, do diferente -do Outro- ou, ás veces, simplemente lúdica, pois na viaxe procúrase o exotismo, o pintoresco ou a aventura). Noutros textos, a viaxe xorde da necesidade de fuxida (evasión do cotián, dun universo familiar ou social fechado, do desacougo interior...) e, en moitos casos, ese percurso polo exterior acaba por se converter nunha viaxe interior grazas á cal asistimos á evolución da viaxeira ou do viaxeiro, convertido en heroe protagonista dun proceso formativo. Do dito xa se pode deducir o carácter practicamente universal da viaxe na literatura e, tamén, a grande variedade de esquemas discursivos que a desenvolven (lendas, epopeias, relacións, crónicas, viaxes imaxinarias, novelas, diarios, ficcións científicas...) polo que semella lóxico intentar estabelecer criterios que permitan segmentar racionalmente ese inmenso corpus literario.
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Neste sentido, e para podermos iniciar a análise deste tema, cómpre introducir unha precisión necesaria. Se ben dun punto de vista xeral podemos constatar grandes similitudes semánticas entre os diferentes tipos de textos construídos arredor da idea da viaxe, cómpre asentar desde o inicio unha distinción que coidamos esencial. Xustamente, para evitarmos caer nunha confusión habitual entre unha parte da crítica, é imprescindíbel distinguirmos con claridade entre dous tipos de textos: aqueles en que a viaxe funciona como tema, con maior ou menor relevancia funcional (nalgúns casos pode ser o eixe estruturador da obra, pénsese, no caso da literatura galega, en Arredor de si de Ramón Otero Pedrayo, por exemplo) mais sempre articulado nun discurso claramente caracterizado como ficcional, e aqueloutros en que se narra unha viaxe que se pretende “real”, verdadeiramente realizada e que, a posteriori, o seu protagonista-narrador relata con afán informativo, didáctico, moralizador ou, simplemente, lúdico a un público receptor (por exemplo, Pelerinaxes, por citarmos unha obra do mesmo autor). Este xénero, ou subxénero, de contornos non ben definidos, é o que tradicionalmente se veu entendendo por Literatura de Viaxes, por máis que esta etiqueta resulte moito máis problemática do que, en principio, se podería agardar. En conclusión, antes de enfrontar o que propiamente constitúe o obxectivo principal desta investigación, isto é, a análise da rendibilidade estilística da Literatura de Viaxes nos contextos de emerxencia literaria (tomando como exemplo a Literatura de viaxes producida na Galiza entre 1916 e 1936), procederemos, dada a relativa indefinición e mais o carácter problemático do propio termo, ao estabelecemento dunhas certas cuestións previas; en concreto, seméllanos imprescindíbel introducir unha reflexión teórica sobre a Literatura de Viaxes como xénero literario, de cara a definilo con rigor, tanto do punto de vista formal como do semántico, así como unha breve panorámica da evolución histórica deste. 2. A Literatura de viaxes 2.1. Problematicidade do concepto de xénero literario Non é este o lugar de nos introducir nunha complexa reflexión de carácter teórico mais, dado que imos falar de xénero ao nos referir á Literatura de viaxes, debemos precisar cal é o valor con que empregamos este termo. Resulta evidente que a concepción de xénero que aquí subxace non é a que tradicionalmente foi transmitida pola preceptiva clásica (máis ou menos un conxunto de normas que, ademais de serviren para clasificar e ordenar as obras, posuía tamén un carácter prescritivo) senón que partimos da base de que, tal como foi exposto xa no seu día polos formalistas rusos, os xéneros non posúen un carácter normativo senón, apenas, descritivo. Neste sentido, e aquí seguimos de perto a descrición do proceso histórico de codificación dos xéneros exposta por Celia Fernández Prieto (1988: 17-19), é necesario lembrar como a partir dos formalistas o xénero pasou a ser entendido como un concepto cambiante e aberto; os xéneros transfórmanse ao evolucionar o sistema literario de modo que o seu estudo é imposíbel fóra do sistema no cal e co cal se relacionan (Todorov 1965: 128). Á súa vez, Tomachevsky definiu o xénero “como grupo, determinado genéticamente, de obras literarias unidas por una cierta semejanza entre su sistema de procedemientos y los procedimientos característicos, dominantes y unificadores” (Tomachevsky 1982: 211-214), unha formulación que foi asumida posteriormente polos estudos xenéricos de orientación estruturalista, baseados na construción dun modelo xenérico a partir da ou das obras iniciadoras da serie, logo repetido unha e outra vez nas obras posteriores.
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Seguindo en parte esta focaxe do concepto, foron as correntes máis recentes da Teoría da Literatura as que adoptaron unha perspectiva pragmática na análise do fenómeno xenérico e abriron novas vías para a valoración da historicidade e do dinamismo dos xéneros, moito máis complexos do que os formalistas pretendían. Así, asumindo unha visión pragmática da literatura en que esta é entendida como sistema cultural e como práctica comunicativa, partimos de que, ao longo da historia, a literatura xerou diversos tipos de discursos, os xéneros, que foron os que, dalgún modo, rexeron os procesos de produción e recepción dos textos cualificados como literarios (Bajtin 1982: 290-291). Xa que logo, os xéneros representan o elo entre o literario e o extraliterario e reflicten o dinamismo do sistema literario, posto que a escrita se configura como unha rede de tradicións textuais que teñen unha manifestación histórica mais que actúan simultaneamente no interior do sistema literario (Fernández Prieto 1998: 18-19). Os xéneros non son, pois, modelos estáticos (o que se engloba baixo a noción de xénero teórico: formas de discurso literario teóricas, universais, ahistóricas), senón tipos de discurso que, na súa transtextualidade e na súa retórica discursiva, funcionan en estreita interrelación co sistema cultural e os códigos ideolóxicos do momento: isto é, o que se denominan xéneros históricos. En consecuencia, debe ser neste marco, xunto aos estudos sobre xéneros concretos como a autobiografía, a novela de tese, de autoformación ou a novela histórica, onde haberá que incluír a análise do xénero Literatura de Viaxes. 2.2. Aproximación a unha definición de Literatura de Viaxes Nos últimos anos produciuse un medre apreciábel do interese crítico por este tema tal como se evidencia na maior produción editorial, así como na realización de simposios e cursos centrados na análise específica deste xénero (estudado moi pouco como tal até datas moi recentes) e que, en boa medida, supuxeron un verdadeiro punto de inflexión na valoración dos relatos de viaxes. Con todo, de revisarmos algúns dos traballos máis recentes sobre o tema, resulta evidente que a denominación de Literatura de Viaxes non é sempre utilizada co mesmo sentido. De feito, resulta doado constatar que a tipoloxía de textos incluídos baixo este rótulo varía substancialmente segundo o corpus literario nacional de que se falar (por exemplo, o que tradicionalmente se entendeu por Literatura de Viaxes nos estudos portugueses é diferente do que se se recolle baixo a mesma epígrafe na literatura francesa ou inglesa1), evidenciando unhas flutuacións que van máis alá do puramente terminolóxico e que nos levan a pensar que neses casos subxace unha diferente concepción do xénero provocada por causas diversas.
1 Fernando Cristovão, tras revisar as definicións de Literatura de Viaxes subxacentes nos traballos de Literatura Portuguesa, constata o carácter restritivo que os estudos literarios, condicionados pola relevancia dos textos nacionais de “acentuado carácter marítimo”, deron ao xénero de modo que, tradicionalmente, non se incluíron nel máis que ese tipo de relatos (crónicas de viaxes ultramarinas, textos sobre descobertas, Cartas, etc...). Fronte a isto, na literatura inglesa, tras unha etapa en que a crítica distingue tamén entre literatura marítima e de descoberta fronte á literatura de viaxes (onde se integraban os libros profesionais e a literatura xeográfica), elabórase, desde moi cedo, o concepto moderno de Literatura de Viaxes, agora cunha acepción ampla (pois permite englobar tipos de textos moi diferentes, de diversas épocas -desde a Idade Media até os nosos días- e producidos en variados contextos) (Cristovão 1999: 21-24 ).
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Nuns casos esta diverxencia aparece directamente condicionada polo grande peso que todos ou unha parte dos textos da literatura nacional correspondente exercen sobre a historia literaria (é o caso da literatura de descoberta e expansión no caso da literatura portuguesa), noutros pola falta de cotexo comparatista con outras literaturas con problemas semellantes e nalgún caso, aínda se podería afirmar que estas ambigüidades teñen moito a ver coa ausencia dunha reflexión profunda sobre o tema (Cristovão 1999: 23). Na nosa opinión, unha grande parte do problema radica, para alén da habitual confusión entre a viaxe como tema literario e a literatura de viaxes, no feito de nos atoparmos ante un xénero de problemática delimitación. En primeiro lugar, polo seu carácter fronteirizo, a medio camiño entre a consideración como xénero narrativo ou como xénero ensaístico, en parte creación (nestes textos componse un discurso claramente literario a partir dos lugares, persoas ou institucións coñecidos ao longo do percurso viaxeiro) e, en parte, ensaio, en moitos casos moi condicionado polo seu carácter didáctico e/ou informativo. Pódese afirmar, pois, o carácter compósito destes textos, mestura de información e reflexión, relato pormenorizado e concesión aos excursos confesionais, descrición e, á vez, expresión da subxectividade. En concreto, a maior parte dos textos anteriores ao século XVIII que se poden incluír no xénero presentan límites confusos á hora de estabelecermos o seu estatuto xenolóxico pois, en moitos casos (pénsese nos múltiples exemplos da literatura portuguesa dos séculos XV e XVI: História Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito, o Roteiro da viaxe de Vasco da Gama, a Carta de Pero Vaz de Caminha...), resulta difícil deslindar que textos deben ser incluídos na literatura de viaxes ou, pola contra, na historiografía, na crónica ou na epistolografía2. Este problema non resulta tan evidente nos textos dos séculos XVIII e XIX, verdadeira época de esplendor da literatura de viaxes, cando proliferan en toda Europa títulos e, mesmo, coleccións. É daquela, cando o discurso do relato de viaxes é elevado á categoría de xénero literario, nun momento en que se reduce, tamén, a distancia entre a literatura de viaxes e a novela. Porén, será a partir das últimas décadas do século XIX, cando o problema da filiación xenérica destes textos se volva pór sobre a mesa ao mesmo tempo que se vai estendendo paseniñamente unha valoración diferente, parcialmente pexorativa, do xénero; este tipo de textos van suscitar agora un interese relativo, pasan a ser lidos como obras secundarias dentro da obra dos grandes autores3 (como moito, interesantes na súa marxinalidade) e convértense nun xénero, en boa medida, “exótico”, un pouco xornalístico, un pouco costumista mais, en todo caso, considerado como unha manifestación literaria de ton menor.
2 Segundo algúns autores, o único modo válido para determinar se estes textos pertecen ou non ao xénero que agora nos ocupa é a verificación da presenza neles de certas características que, na nosa opinión, nos levan ao vello problema da definición da literariedade. Sinálase, por exemplo, que o criterio de inclusión pode ser que este tipo de textos posúan unha calidade literaria aceptábel (Cristovão 1999: 15) ou, aínda, que teñan como obxectivo principal procurar emoción literaria (Moureau 2002: 131); en calquera caso, criterios grandemente subxectivos e de problemática apreciación. 3 Este é o caso da Viaxe a América ou o Itinerario de Chautebriand, sempre lidos en relación a Atala ou ás Memorias de Ultratumba, ou a Viaxe a Oriente de Nerval en relación a Aurèlia. Isto mesmo resulta evidente na literatura galega no caso de Otero e de Risco.
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Esta última valoración, por certo, coincide coa que se aplica á literatura de viaxes producida na Galiza na etapa 1916-1936. Na nosa opinión, estas obras, sempre incluídas no caixón de xastre das obras ensaísticas, apenas mencionadas na historiografía e nos estudos literarios, foron avaliadas pouco máis que como unha curiosidade na obra dos seus autores. En calquera caso, unha vez constatada a problemática situación deste tipo de textos dentro do campo literario, semella pertinente delimitar con claridade que é o que entendemos nós por Literatura de Viaxes. Neste sentido imos partir da definición proposta por Fernando Cristovão que, se ben non partillamos na súa totalide, si coidamos que é basicamente axeitada como punto de partida. Por Literatura de Viagens entendemos o subgénero literário que se mantém vivo do século XV ao final do século XIX, cujos textos de carácter compósito, entrecruzam Literatura com História e Antropologia, indo buscar à viagem real ou imaginária (por mar, terra e ar) temas, motivos e formas (Cristovão 1999: 35).
Sendo esta, na nosa opinión, unha definición clara e precisa, contén dúas afirmacións coas que non podemos concordar. A primeira ten a ver coa determinación do límite a quo deste xénero nos finais do século XIX. Por máis que durante o período citado polo profesor portugués o xénero tivese un cultivo maior, non consideramos moi correcta esa data (mais outra vez prevalece o prexuízo ligado ás propias características da literatura nacional que se toma como referente) pois non semella correcto esquecer o amplo abano de títulos que poden ser incluídos baixo o rótulo de Literatura de Viaxes e que se sitúan no século XX; lémbrense, entre outros, os numerosos títulos vinculados á xeración do 98 en España4, os artigos e libros de Josep Plá, primeiro cultivador da literatura de viaxes na literatura catalá, sobre a Costa Brava ou o Ampurdán, o libro de J. M. Synge sobre as illas Arán (1907) ou, máis concretamente, os libros dos autores galegos da etapa 1916-1936 en que imos centrar a parte final deste artigo. A segunda refírese a esa inclusión, dentro do xénero, dos textos en que se narran viaxes imaxinarias. Para esclarecermos este aspecto, cómpre facermos unha breve revisión dos tipos de textos que poden ser incluídos dentro do rótulo que estamos a estudar. En concreto, desde un punto de vista metodolóxico, coidamos que pode resultar de grande utilidade estabelecermos unha tipoloxía xeral do relato de viaxes que, de entrada, nos permita clasificar a relativamente ampla variedade de textos que aquí se inclúen. Así, de entre as propostas clasificatorias existentes, imos escoller a que, pola súa clareza, nos semella a máis acaída. Fernando Cristovão propón unha tipoloxía de carácter temático con cinco items principais: • Viaxes de peregrinación. • Viaxes de comercio. • Viaxes de expansión (clasificadas, por súa vez, en expansión política, relixiosa e científica) • Viaxes de erudición, formación e de servizos e, finalmente, • Viaxes imaxinarias.
4 Por tierras de Portugal y España (1911) e Andanzas y visiones españolas (1922) de Miguel de Unamuno; Los pueblos (1905), La ruta de Don Quijote (1912) ou Castilla (1912) de Azorín, por exemplo.
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Na nosa opinión, parece existir unha clara distinción entre os catro primeiros apartados que este autor sinala e o quinto e último. Os catro primeiros presentan un trazo común que semella ser o esencial deste tipo de relato, é dicir, todos eles son discursos en que o viaxeiro ou a viaxeira narra todo aquilo que coñeceu ao longo do seu percorrido (sexa este do carácter que for), informando, con maior ou menor abundancia de reflexións intercaladas, sobre todas as cuestións que lle parecen de interese para o público lector, normalmente, invocado de maneira explícita en numerosas ocasións. O quinto apartado é o que corresponde ás viaxes imaxinarias. Neste caso, por máis que certos autores sinalen certas coincidencias xenéricas entre estes textos e os do grupo anterior5, o certo é que existe unha diferenza fundamental que, ao noso ver, nos autoriza a non incluír este tipo de relatos dentro do xénero6. En concreto, nas viaxes imaxinarias dilúense aqueles trazos que ligaban o xénero ao ensaio e sublíñanse os que o unen aos textos de ficción, en concreto, aos relatos fantásticos. O que prima nelas non é un discurso referencial, asentado no pacto de veridicción senón aqueloutro, propio da comunicación literaria, articulado mediante o pacto de ficcionalidade, en virtude do cal fica en suspenso o pacto de veridicción que rexe nos discursos referenciais (Fernández Prieto 1998: 39). Deste xeito, e por máis que se poidan estabelecer claras homoloxías entre as viaxes viradas para a evasión e a utopía e as outras en que se narra unha viaxe real, non semella pertinente inserir o conxunto de textos que habitualmente se inclúen baixo a epígrafe de viaxes imaxinarias no xénero da Literatura de viaxes, senón que deben ser estudados dentro doutros xéneros, como a novela (As viaxes de Gulliver de J. Swift) ou o ensaio (Utopia de T. Moro), por exemplo. 2.3. A evolución do xénero Tendo en conta o até aquí exposto, podémonos preguntar, pois, que tipo de textos son os que compoñen este xénero? Cal foi a evolución histórica deste? Afirma Paul Zumthor que desde o século X, o mundo árabe identificaba os relatos de viaxe como un xénero literario autónomo, emparentado coa novela (Zumthor 1994: 285). Mentres, nos países da Cristiandade, circulaban tamén textos máis ou menos semellantes que, a xulgar pola tradición manuscrita conservada, exerceron unha influencia considerábel no seu tempo aínda que o seu estatuto xenérico non ficase claramente definido. De revisarmos os relatos de viaxe publicados na Idade Media, constataremos o grande número de textos conservados que teñen por obxecto unha peregrinación. Desde o 5 “Sendo as viagens imaginárias paralelas às viagens reais, nelas as narrações, descrições, itinerários, meios de locomoção (com a novidade das deslocações pelo ar), e até a propia linguagem são semelhantes” (Cristovão 1999: 51). 6 Nesta mesma liña de diferenciación hai que inserir a distinción que sinala Mª Alzira Seixo quando afirma: “A poética da viagem ocupa, como é sabido, territórios vários susceptíveis de agrupamento em três grandes zonas: a da viagem imaginária (que recobre mitos e textos lendârios e alegóricos da Antiguidade e da Idade Média, assim como as utopias, e ainda todos os relatos de viagem da literatura mais recente sem referência de acontecimento circunstancial), a da literatura de viagens (constituída por textos directamente promovidos pelas viagens de relações comerciais e de descobrimentos, de exploração e de indagação científica, assim como pelas viagens de escritores que decidam exprimir por escrito as suas impressões referentes a percursos concretamente efectuados) e a da viagem na literatura (na qual a problemática da viagem é utilizada como ingrediente literário, em termos de motivo, de imagem, de intertexto, de organização efabulativa, etc, e que está presente ao longo de toda a história da literatura, com particular acuidade para os séculos posteriores ao Renacimento)” (Seixo 1998: 17).
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século IV, con textos como a Peregrinatio da monxa Exeria, até o século XVI, máis dun cento de relatos, en todos os idiomas, contan peregrinacións a Roma, a Santiago, a Terra Santa... Lonxe de ser unha sucesión de aventuras, milagres ou visitas a lugares, a maior parte destes textos está orientado desde a mentalidade profundamente relixiosa da época. O autor desexa deixar testemuño da súa experiencia, desexa convencer os outros cristiáns, seus irmáns e irmás, de que o imiten e, para iso, fornécelles toda a información posíbel para lles facilitar a tarefa de realizaren o camiño a ese lugar sagrado. O relato adquire, pois, unha función de iniciación á experiencia, de camiño cara á santidade. É esta unha función forte, que corresponde a un dos trazos específicos do cristianismo medieval, relixión do espazo máis que do tempo (Zumthor 1994: 287). Porén, a partir de da metade do século XIV, estes textos van tomando un carácter cada vez máis profano e vanse aproximando a outros relatos de viaxes. Porque non hai que esquecer que na época medieval hai outros tipos de relatos de viaxe que son lidos con ansia polo público culto, movido, en parte, pola curiosidade ante as novas perspectivas comerciais ou os acontecementos políticos (cruzadas, campañas dos mongois...); estamos a falar dos relatos de viaxes a Oriente, entre os que cómpre citar o texto máis representativo desta época: o libro de Marco Polo (do que se conservan nada menos que cento corenta e tres manuscritos, aínda que para explicar este dato sorprendente sexa necesario termos en conta que a súa difusión foi o resultado de ser tomado por unha obra de ficción, isto é, un conto marabilloso). Volvendo aos outros relatos de viaxes que circulan nesta época, se algo chama a atención é a súa enorme diversidade, característica esta que imos ver que se mantén ao longo dos tempos, constituíndose en trazo case poderiamos afirmar que xenético destes textos. Asistimos, a relatos de misioneiros, de comerciantes ou de viaxeiros, mais tamén a informes de embaixadores, a cartas ou diarios de a bordo de navegantes ou, mesmo, a relatos que, deixando de lado calquera pretensión de verosimilitude, son apenas unha colección de mirabilia. Son, pois, textos concibidos con materiais moi dispares e, tamén, con moi diferentes intencións. Tamén no período clásico continúan a se editar os relatos sobre as viaxes aos lugares máis distantes, ligados ás navegacións, viaxes militares, comerciais ou evanxelizadoras, concibidos, fundamentalmente, cunha función de propaganda política ou relixiosa. Estes relatos de viaxes do Renacemento e o Barroco consolidan unha determinada forma literaria ao tempo que presentan, por primeira vez, determinadas cuestións de grande relevancia como, por exemplo, os problemas de identidade-alteridade; neles o eu narrador, que describe o que ve desde unha visión do mundo eurocéntrica, afirma a cada paso o valor de referente absoluto que posúen os seus gostos, modos, estética... en que foi educado, fronte ao “outro”7 que representan os territorios “descobertos” e colonizados. Por outra parte, estes textos deixan ver, tamén, outras cuestións de relevo non menor que, hoxe, nos permiten interpretar aqueles relatos como indicios dos problemas que os procesos de colonización supuxeron, tamén, para os
7 Resulta evidente que o narrador sempre transmite unha visión moi persoal de todo aquilo que ve, unha visión condicionada pola ideoloxía de partida (que a miúdo casos é partillada polo seu público lector). En moitos casos, pódese afirmar que a viaxe funciona como a revelación da dificultade de asumir/entender a alteridade. A viaxe dramatiza e revela a dificuldade de comprensión dos universos visitados-representados (dalgún xeito, o outro é tan outro que eu non poderei nunca entendelo / coñecelo...).
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imperios europeos. É este un fenómeno singular que se pode observar con claridade na literatura portuguesa producida na época clásica e que, mesmo, foi utilizado para catalogar o que se entendía como un corpus textual excesivamente heteroxéneo8. Segundo Manuel Simões, este xénero maniféstase en dúas vertentes; unha, correspondente coa etapa da euforia (ou movemento ascendente) coa narración da viaxe e descoberta do Brasil por parte da armada de Pedro Álvares Cabral e, outra, a da disforia (movemento descendente) co relato do conxunto de relatos de naufraxios e mais coa obra de Mendes Pinto, A Peregrinação (Simões 1985: 11), unha serie de “narrativas destinadas a pôr en evidência o desastre, a semântica do litígio que dividia o país e a sua própria forma de pensar, e cuja escrita se situa entre a segunda metade do século XVI e o final do século XVII” (Simões 1985: 15). Polo xeral, en todos os textos desta época, o narrador déixase levar polos modelos xa existentes pois: “Le ‘moi’ du voyageur, sa perception personnelle, sont subordonnés à un discours viatique fondé sur des modes d’écriture de convention nourris de référentes érudites tirés de compilations plus ou moins anciennes” (Moureau 2002: 136). Con todo, vaise impondo pouco a pouco un criterio de exactitude na observación dos espazos na procura dunha credibilidade que, nalgúns casos, se aproxima ao que van ser o estilo dos tratados científicos. Ademais, esta necesidade de fornecer unha visión persoal (e verdadeira) dá orixe a textos tan singulares como A Peregrinação de Mendes Pinto, un texto radicalmente diferente, a cabalo entre relación e ficción novelesca9. Á beira disto, xa a fins do século XVI aparece o “Diario de viaxe”, un tipo de texto formado por notas tomadas día a día, como o de Montaigne en Italia, escrito en 1580-1581 e que é un dos máis antigos, ainda que non vise a luz até 1774, despois de ser achado por casualidade. As bibliotecas europeas están cheas de textos deste tipo, escritos no que, segundo François Moureau se podería denominar “período clásico” da viaxe (do século XVI ao XVII) e que, a pesar do seu aspecto acabado (divisións, paratextos...) foron concibidos para uso particular e non para seren editados, algo que vai variar substancialmente na época romántica cando os grandes viaxeiros peregrinen, entre outras razóns, para escribir e seren publicados. Seguindo de novo este autor, estes textos dos séculos XVI e XVII constitúen o “degrao cero” do relato de viaxe pois neles se atopan, nas notas collidas día a día, breves apuntamentos persoais cuxa función é eminentemente prática, en moitos casos, orientados a ser unha guía de instrucións para lectores posteriores: atópanse distancias, prezos de cuartos, dificultades da rota, lugares dignos de mención..., raramente reflexións individuais (Moureau 2002: 133). Estas notas de viaxe non están destinadas á publicación e o seu autor, sen ambición literaria, procura non traslucir a súa subxectividade no relato. Do mesmo modo, os numerosos informes diplomáticos ou militares da época pertencen tamén a esta categoría de textos semi-privados, dirixidos só á familia, aos ministros ou ao rei mais non concibidos para a esfera do público. 8 “[...] a expansão europeia deu azo a uma proliferação massiva de documentos e testemunhos que foram constituindo como un corpus vasto e heteróclito, alargando-se mais e mais, acompanhando, de maneira mais ou menos diferida as vicissitudes dos descobrimentos e as temerárias viagens no desconhecido em missão de ‘achamento’ ou ainda registando, ao sabor da corrente factológica, as diversificadas ‘invenções’ de outras terras e outras gentes” (Pinto 1989: 37). 9 Como entender a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (publicada en 1614, vinteún anos depois da morte do seu autor), como relación personalizada e directa sobre o Oriente ou texto de creación, máis ou menos, unha novela picaresca?
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Por outra parte, fronte a todo este conxunto de relatos de viaxes, caracterizados por seren os viaxeiros quen dan noticia do visto, sempre con todo tipo de datos precisos e con clara intención informativo-didáctica, outro tipo de relatos de viaxe, herdeiros, en parte, das viaxes marabillosas da Idade Media, mais directamente influídos polas descobertas do século XV e as conquistas do XVI, van afianzando a súa presenza na Europa destes anos: son as viaxes imaxinarias, a través das cales se presentan utopías, isto é, narracións con fins políticos e morais en que se propón a imaxe dun estado ideal, situado en lugares imaxinarios (seguindo o modelo proposto na Utopía de Tomás Moro). Mais outra vez, estes relatos sérvennos para constatar a delgada liña divisoria que existe entre o que propiamente se pode considerar relato de viaxes (quer dicir, aquel discurso que, aínda que literario, asenta os seus trazos fundamentais no pacto de veridicción) do que resulta ser un texto articulado exclusivamente no pacto de ficcionalidade, por tanto, textos que, como neste caso, deberemos incluír no subxénero das viaxes literarias (isto é, ao igual que acontece nos casos dos relatos de aventuras, na ficción científica ou na novela de formación, estamos, máis outra vez, no tema da viaxe na literatura). A partir do século XVII comezan a publicarse grandes coleccións de libros de viaxes, o que revela a progresiva integración do relato de viaxes no marco da “literatura”. A iniciativa parte de Inglaterra (lugar de orixe da palabra turismo e vangarda da curiosidade viaxeira dos europeos da época), coa edición de Astley de A New General Collection of Voyages mais rapidamente é imitada en Francia polo abate Prévost que, a partir de 1746, promove a Histoire Général des Voyages, á que seguirán outras series consagradas, todas elas, á recompilación de todas as relacións de viaxes publicadas até daquela (viaxes ao redor do mundo, descobertas, naufraxios, etc). É, xustamente, ao longo do século XVIII co enorme incremento das publicacións de literatura de viaxes, cando este tipo de discurso é elevado definitivamente á categoría de xénero literario, ao tempo que se pon en evidencia, máis que nunca, o seu carácter heteroxéneo e compósito. En primeiro lugar, nesta época prodúcese un considerábel medre do interese do público culto polos relatos de viaxes a países afastados. Os lectores europeos, guiados por un afán que poderiamos cualificar como antropolóxico, aprecian grandemente aqueles libros que, orientados polo afán de explorar, inventariar e, tamén, interpretar civilizacións distintas, lles permiten debruzarse, sempre cunha visión propia dos “ollos imperiais” que definiu Mª Louise Pratt (1992), sobre ese retrato dos outros continentes. Así, neste grupo podemos incluír os relatos das exploracións científicas desta época (as viaxes do capitán Thomas Cook, as de Malaspina ou Jorge Juan). En segundo lugar, consolídase unha tradición de viaxes filosóficas, analíticas e críticas. É neste tempo cando fica asentada a rota do Grand Tour, o famoso periplo clásico concibido como viaxe educativa para os mozos aristócratas (moi raramente, e xa moito máis tarde, para algunhas mulleres). Esta rota convértese no obxecto de numerosos relatos que unen á característica curiosidade arqueolóxica-xeográfica deste tipo de relatos-guía e ás novas valoracións persoais que acompañan a descrición dos lugares visitados (nesta época as e os “curiosos impertinentes” ocúpanse de subliñar canto de pintoresco, salvaxe, romántico ou sublime posuían os lugares visitados), unha certa dose de relato de iniciación e descoberta que
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terá o seu correlato nas novelas correspondentes, as cales, á súa vez, desenvolverán o tema literario da viaxe como axeitada metáfora para perfilar a evolución dos heroes protagonistas. Por último, hai outros textos que nos permiten observar como neste momento se dilúen as fronteiras entre o relato de viaxes e a novela (na medida en que o relato se presenta máis condicionado polo narrador e que este aparece con toda a súa carga de subxectividade no texto). En concreto, cómpre citar un texto relevantísimo: a Viaxe Sentimental de Laurence Sterne (1768) que, lonxe de atender fundamentalmente á descrición da paisaxe ou dos monumentos de Francia ou Italia, coloca en primero plano as impresións subxectivas do viaxeiro (é a súa “visión sentimental” a que prima). Nesta mesma liña, hai outro texto esencial, tanto polo seu éxito, como polo que supón nesa liña de progresión cara a un maior peso do subxectivo sobre o descritivo, é o Voyage autour de ma chambre de Xavier de Maistre (1795). O autor conta aquí o percurso polo seu propio cuarto ao longo de corenta e dous días, un itinerario que é parodia mais, ao mesmo tempo, tamén metáfora da evasión e reflexión sobre o sentido da viaxe. En resumo, estes dous libros van constituír un claro referente para os autores posteriores á hora de elaboraren o novo modelo de relato de viaxes, menos enciclopédicas e máis persoais. No século XIX, o desenvolvemento da prensa e dos folletíns axudou a difundir aínda máis este xénero literario, neste caso, a través dunha nova forma: a crónica xornalística. Isto serviu para introducir, ademais, outra nova categoría, a das escritoras e escritores viaxeiros que paulatinamente foron afacendo o público a un novo modo de narrar. Deixando de lado o estilo das vellas crónicas e, tamén, o estilo informativo propio das guías de viaxe, estes autores e autoras desenvolveron un discurso máis “literario”, máis subxectivo, ao construíren os seus discursos ao redor das propias experiencias (en moitos casos salferidas de ficción). Deste modo a literatura de viaxe aproximábase definitivamente á literatura de creación, consolidando o seu estatuto xenérico, toda vez que a maior parte dos e das novelistas decimonónicos cultivaron extensamente o xénero (véxase, por exemplo, a considerábel produción dunha autora como Emila Pardo Bazán, con seis libros editados e mais un inédito10). Ao mesmo tempo, ao abeiro deste novo estilo, xorde un novo tipo de textos que se ben toma a idea do relato dun percurso como base estruturadora, constrúe un modelo textual radicalmente innovador, tanto no nivel formal (onde se mesturan elementos do real con elementos da ficción) como no semántico, pois estes textos adoitan presentar proxectos de contornos claramente ideolóxicos. Un exemplo paradigmático deste modelo textual, ao noso entender de difícilísima clasificación do punto de vista xenérico, son as Viagens na Minha Terra de Almeida Garret, obra onde se mesturan códigos xenéricos distintos: crónica de viaxe, romance, drama, epístola ou narrativa ideolóxica máis virada para o ensaio (discurso sobre a historia, sobre literatura, etc). Así pois, durante todo o século XIX e, aínda, durante as primeiras décadas do século XX, os libros de viaxes convertéronse na principal fonte de información (asequíbel) que tiñan
10 Mi romería (Recuerdos de viaje) (1988), Al pie de la Torre Eiffel (1889), Por Francia y por Alemania (1889), Por la España pintoresca (1989), Cuarenta días en la Exposición (1900) e Por la Europa católica (1902). Sobre o seu texto inédito: Apuntes de un viaje. De España a Ginebra (1873), véxase González Herrán, J. M (1999).
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as persoas europeas cultas para coñeceren outras culturas sen saíren da súa casa. Esta situación mudou substancialmente ao longo do século XX, de xeito que hoxe en día se pode afirmar que a xeneralización das viaxes e a facilidade (e velocidade) para os realizar provocaron a case desaparición deste xénero, por máis que subsistan algunhas coleccións especializadas (consagradas, sobre todo, ás viaxes antigas) ou se publiquen algúns textos, como libros ou artigos en revistas literarias, que se poden encadrar neste xénero que estamos a analizar. Son, pois, estes antecedentes os que están na base da escolla (e introdución) desta forma literaria por parte dos autores galegos do primeiro terzo do século XX. Na nosa opinión, era necesario realizarmos este percurso histórico a través das diferentes formulacións que o xénero tivo ao longo dos séculos para coñecermos con exactitude cal era o substrato estético e cultural que os autores e as autoras daquel tempo tiñan detrás de si á hora de leren ou elaboraren textos deste tipo. Ben é certo que, por esta vía, poderiamos desenvolver análises moito máis demoradas dirixidas a un maior coñecemento das características e valores deste xénero literario mais non é esta a perspectiva crítica que agora pretendemos seguir. Neste traballo interésanos a literatura de viaxes como construción cultural, isto é, como forma de representación literaria duns territorios determinados e, xa que logo, como ferramenta interpretativa para o estudo dos propostas ideolóxicas subxacentes baixo determinado tipo de discursos culturais. Nesta liña, imos centrar a nosa atención, en primeiro lugar, na análise das razóns que levaron os autores galegos do período 1916-1936 a se interesar polo xénero da literatura de viaxes e, a seguir, veremos que tipo de discurso ideolóxico foi transmitido a través deste tipo de textos. 3. O marco analítico dos procesos de emerxencia literaria. Para poder estudarmos cal foi a función que este xénero cumpriu no sistema literario galego, é preciso inserir esta cuestión no marco teórico que nos fornecen os estudos que toman como obxectivo central a análise dos procesos de emerxencia literaria. Un concepto este, o da emerxencia literaria, relativamente recente, nacido no ámbito dos estudos poscoloniais e que nos últimos anos demostrou a súa rendibilidade ao obrigar a crítica a reflectir sobre problemas fundamentais tales como que é a literatura, os problemas do transporte do capital simbólico do centro para a periferia, a autonomización dos discursos, etc. Seguindo a Jean Mª Grassin11, pódese falar de literatura emerxente, en sentido amplo, cando nos atopamos ante unha literatura que, de modo inaugural, se amosa e adquire visibilidade e relevancia ou ben, cando unha literatura xa existente institúe unha diferencia sinalábel dentro do discurso estabelecido. Así, os estudos literarios orientados nesta liña teñen posto o acento, moi especialmente, na análise dos procesos de configuración e autonomización dos sistemas literarios e, á vez, na súa estreita relación cos procesos de construción nacional. Como xa explicamos noutro lugar (Fernández Pérez-Sanjulián 2003: 51-52), os procesos de constitución de nacións emerxentes, coas conseguintes autonomizacións dos
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Vid. “Emergence” en Grassin, J. M. (http://www.ditl.info/).
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discursos ideolóxicos que lles son inherentes, funcionan de modo substancialmente semellante en canto proceso, por máis que as situacións particulares logo estabelezan as individualizacións e caracterizacións correspondentes. Xa que logo, os discursos producidos en contextos de emerxencia van presentar moitos trazos comúns por máis que pertenzan a contextos nacionais, en principio, distantes e distintos. Non é este o lugar para nos estender neste punto, mais si cómpre subliñar o relevante papel que neste tipo de contextos emerxentes desenvolveron as elites intelectuais dos países correspondentes á hora de codificaren literariamente un discurso ideolóxico dirixido á creación de conciencia identitaria. Este discurso identitario, á súa vez, caracterizouse por estar orientado cara á creación e/ou consolidación dos referentes culturais e simbólicos que esa elite considerou imprescindíbeis para asentar a nación. Foi este un proceso de tipo transnacional, que se desenvolveu de maneira bastante similar en todos aqueles contextos en que se estaban a producir situacións de afirmación identitaria. Quer falemos da situación da América decimonónica, quer da Galiza do Rexurdimento ou da época das Irmandades, quer da África poscolonial, pódese afirmar con A. Mª Thiesse que as publicacións de literatura nacional se inscriben nun proxecto educativo dirixido a unir todos os compoñentes sociais da nación na conciencia da súa comunidade de destino (Thiesse 2001: 63). Un proxecto educativo que, explicitado nas súas grandes liñas nos discursos e textos políticos, vai ser repetidamente exposto a través de todo tipo de soportes e xéneros: libros, revistas, xornais, viñetas, novelas, actividades asociativas..., todos van ser espazos en que as elites nacionalistas desenvolvan o discurso didáctico dirixido aos e ás connacionais, un discurso focado a despertar a súa vontade de seren nación. Foi sobre todo nos últimos tempos, a partir da consolidación das teses post-estruturalistas (coincidentes á hora de estabeleceren o carácter non natural da nación), cando os teóricos centraron a súa reflexión na análise dos procesos de construción nacional, insistindo no seu carácter de produción colectiva. Os estudos recentes puxeron o acento, moi especialmente, en como reducidas elites de intelectuais se consagran ao labor de explicitaren a nación e como, posteriormente, organizacións políticas concretas, desenvolven un concepto político a partir duns materiais de base de tipo fundamentalmente cultural. Como xa se dixo, son sectores intelectuais os que se consagran á construción identitaria, especialmente na primeira fase pre-política, mais tamén, desde moi cedo, é a literatura un dos medios que se consideran máis acaídos para a difusión dos contidos ideolóxicos ligados ao proceso de construción nacional. Neste sentido, foron moitos as e os escritores que nestes contextos desenvolveron un dobre labor, como creadores e como políticos. A modo de exemplo pódese lembrar que a maior parte dos máis ilustres nomes da literatura latinoamericana foron tamén políticos (José de Alencar, José Martí, Bartolomé Mitre ou Rómulo Gallegos, entre outros) mais esta situación repítese nos contextos europeos similares ao da Galiza a finais do século pasado e nos inicios deste (Prat de la Riba en Cataluña, Sabino Arana en Euskadi, James Connolly en Irlanda...) ou é a que se observa máis recentemente en África (pénsese, por exemplo, en L. S. Senghor no Senegal, Amílcar Cabral en Guiné Bissau ou Agostinho Neto en Angola). Isto mesmo aconteceu así, tamén, no caso galego, sobre todo no período das Irmandades da Fala e do grupo Nós (pénsese en Castelao, Antón e Ramón Vilar Ponte, Otero
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Pedrayo ou Risco), un momento en que podemos achar os trazos caracterizadores que foron formulados por Miroslav Hroch (1985) para as dúas primeiras fases dos movementos nacionalistas: fase A ou identificación e formulación da identidade diferencial por parte dos eruditos e as minorías intelectuais (divulgación cultural) e fase B ou período da axitación política e extensión dos apoios sociais. Nesta liña, á hora de seleccionaren o vehículo preferente de transmisión deste discurso ideolóxico, de entre os mútiplos medios de difusión empregados, os autores van escoller como molde formal preferente o discurso narrativo12. Esta opción é tamén unha característica que achamos en todos os contextos emerxentes (o que explica que a maior parte dos estudos se teñan volcado sobre a análise das novelas), dando lugar á definición dun novo concepto que xa demostrou a súa rendibilidade crítica para a literatura galega13; este concepto non é outro que o de novela fundacional14. O que define estes textos (sobre todo as novelas mais tamén, como se verá, outros xéneros que partillan algunhas das súas características) é que tratan de crear nos lectores a sensación de vínculo entre eles mesmos, o autor e as personaxes configurando, así, un nós imaxinario15 que se refire aos compatriotas oriundos da nación. É este un vínculo de enorme valor simbólico e, á vez, de enorme rendibilidade ideolóxica que, como veremos, funciona activamente na maior parte dos textos producidos en contextos emerxentes pois, en último termo, constitúe a esencia dos discursos literarios que incluímos no rótulo de literatura fundacional. Como xa foi dito, o que todos eles posúen en común, por máis que pertenzan a espazos culturais moi diferentes, é que a través deste tipo de textos literarios os seus autores pretenden favorecer a construción dun imaxinario colectivo descritivo da sociedade nacional ou asentar valores, discursos ou temas ligados ao proxecto de ideación nacionalitaria. Neste cadro é, pois, onde cómpre situar o noso punto de partida para a análise das características da literatura de viaxes producida na Galiza durante o primeiro terzo do século
12 Resulta evidente que o discurso narrativo incorpora unha serie de elementos temáticos a través dos cales se expoñen certos aspectos básicos do proxecto de construción nacional. Así, elementos como a representación e valor simbólico da terra e a paisaxe, o deseño dunha determinada tipoloxía de heroes-protagonistas, a presentación recorrente de certos temas, etc, todos eles van estar dotados dunha sobredeterminación ideolóxica ligada ao proxecto nacionalista que sustenta a obra dos seus autores. 13
Véxase, por exemplo, Fernández Pérez Sanjulián 2003 e Salinas Portugal 2003.
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Noutro lugar definimos a novela fundacional como aquela “orientada a facerlle tomar conciencia identitaria ao público lector e/ou a despertar a súa vontade de se constituír en nación, incluíndose dentro do proceso xeral de conformación dos referentes nacionalitarios que os seus autores procuran” (Fernández Pérez Sanjulián 2003: 55). Porén, resulta pertinente lembrar que o termo “fundacional” aparece utilizado en moitos casos con valores ben diferentes do que aquí acabamos de introducir, o que pode orixinar unha relativa confusión terminolóxica. Por exemplo, resulta habitual ver o termo novela ou libro fundacional aplicado “á primeira novela ou obra” de alguén, confundindo, ao noso entender, unha mera circunstancia cronolóxica, cun concepto máis complexo. Neste sentido, outros autores definen como obra fundacional aquela que se caracteriza”por inaugurar unha nova vía de articulación discursiva ou temática” (González-Millán 1996: 53). 15 Esta comunidade de connacionais é a “comunidade imaxinada” de Anderson; unha fraternidade horizontal en que ningún membro dela pode chegar a coñecer a todos os demais (por iso é imaxinada) e cuxos límites, sendo conceptuais (ou sexa, representados idealmente por cada un dos membros da comunidade), serán, de feito, existentes para os individuos que se senten partícipes dela (Anderson 1993: 23-25).
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XX. No apartado seguinte ocuparémonos de expor como a través destes textos se desenvolve un proxecto ideolóxico de carácter identitario, ao tempo que se evidencia, máis unha vez, a inseparábel vinculación entre discurso literario e discurso político que caracteriza a produción literaria nos contextos de emerxencia. 4. O discurso identitario na literatura galega entre 1916 e 1936: un caso de emerxencia literaria. É xa unha afirmación comunmente asentada que o período que vai desde a fundación das Irmandades da Fala até a II República foi unha etapa caracterizada pola enorme actividade literaria e doutrinal levada adiante polo galeguismo o cal, aliás, se foi consolidando como movemento ideolóxico e como corrente política. Durante esta etapa os intelectuais ligados ás Irmandades, seguindo unha liña de traballo organizada e rigorosa, desenvolveron todo un proxecto normalizador en diversos campos (produción literaria: teatro, narrativa, ensaio, estudos científicos relacionados coa Galiza, xornalismo,...) mais, sobre todo e como elemento previo, elaboraron un discurso dirixido ao que se ten dado en chamar “ideación nacionalitaria” do noso país. Neste sentido son moitos os textos ensaísticos desta época en que os autores insisten na necesidade de consolidaren un pensamento propio, ou, sobre todo, de construíren a idea de nación e, para iso, a vontade nacional16. Este tipo de discursos foi exposto fundamentalmente en ensaios ou nos textos xornalísticos de carácter máis claramente doutrinario. Porén cómpre non esquecer que os autores das Irmandades e de Nós consideraron a narrativa, especialmente a prosa de ficción, mais non só, como un dos vehículos máis acaídos para faceren chegar esas mensaxes tan claramente ideolóxicas a máis amplas capas da poboación. Así, desde moi cedo, os autores van tomar conciencia do feito de seren os xéneros narrativos un vehículo privilexiado mediante o cal se poden explicitar as ideas que permiten a afirmación da existencia da nación e, xa que logo, a súa extensión ao maior número de destinatarios posíbeis. Neste contexto resulta doado intuír cales eran as razóns que levaron estes autores ao cultivo de xéneros compósitos, mestura de prosa ficcional e ensaio (ás veces, de difícil adscrición xenérica), na procura dunha permeabilidade entre o discurso narrativo e ensaístico que, desde o noso punto de vista ten moito a ver co afán didáctico que subxace nunha grande parte da literatura desta época. Unha vontade pedagóxica que, máis unha vez, non é exclusiva do espazo cultural galego senón común a todos os contextos de literaturas emerxentes onde a función didáctica e as necesidades pedagóxicas aparecen intimamente mesturadas cos procesos de autonomización do discurso literario. 4.1. Ampliación do repertorio xenérico: a escolla do xénero da literatura de viaxes. Como xa se dixo, o labor de creación dos escritores daquela etapa asentouse sobre unha serie de formulacións teóricas básicas que podemos rastrexar tanto nas súas propias
16 “ Chega ben que nós, a élite nacionalista, minoría inteleutual chea do esprito do seu tempo e levando nas maus a chave do mañán, teñamos esa vontade pra creala en todos os demais. (...) Nosa misión é crear en Galiza a vontade nacional” (Risco 1920: 124-125).
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obras de creación, como a través das declaracións teóricas formuladas na altura en xornais e revistas: era necesario ampliar o abano xenérico (de aí a especial insistencia na necesidade de potenciar a prosa de ficción e o ensaio) e mais o temático e, á vez, compría alargar o sistema (consolidación de editoriais, premios, coleccións, estruturas teatrais...) para ampliar o número e o tipo de receptores. Neste contexto é onde hai que incluír a aposta consciente pola literatura de viaxes17, un xénero que, como foi dito, se ben se aproxima á prosa de ficción, presenta tamén moitas das características do ensaio (ambos os dous os xéneros preferidos polos autores desta época) e que, xustamente por esta duplicidade xenérica, permite desenvolver doadamente determinados núcleos temáticos a través dos cales se expoñen, certos aspectos básicos do proceso de construción nacional de maneira, teoricamente, máis accesíbel para un público amplo. 4.1.1. O corpus Cando falamos de literatura de viaxes producida na Galiza entre 1916 e 1936 referímonos a un corpus textual formado por tres libros e mais por unha serie de artigos aparecidos en publicacións periódicas da época (Nós, A Nosa Terra, La Zarpa, El Pueblo Gallego, El Correo Gallego, El Heraldo Gallego, entre outras), aínda non recompilados na súa totalidade. En consecuencia, dado o carácter de introdución xeral que este traballo ten, só a título de cita, cómpre salientar os textos en forma de libro que se centran na descrición dun percorrido por un espazo físico concreto e que foron publicados nesa época pois, a pesar do seu reducido número, representan a cristalización dun grande esforzo colectivo. Estes libros foron: Pelerinaxes I de Ramón Otero Pedrayo (1929); As cruces de pedra na Bretaña de Alfonso R. Castelao (1930) e Mitteleuropa. Impresiós d’unha viaxe de Vicente Risco (1934). Dubidamos á hora de incorporar o Diario 1921. Francia-Bélxica-Alemaña de Castelao pola evidente razón de non ter sido concibido propiamente como libro (tal como logo, en 1977, foi editado). É este un texto interesantísimo que, do punto de vista do contido, certamente, pode ser descrito como as crónicas dunha viaxe mais que, polo seu carácter de texto privado e o seu formato de borrador, de apuntamentos previos á redacción do texto pensado para ver a luz pública, non semellaba moi correcto incluílo ao mesmo nivel que os outros. Con todo, polo seu carácter excepcional, coidamos pertinente recollelo na bibliografía primaria a carón dos artigos que recollen aqueles fragmentos que, sob o título de “Do meu Diario”, Castelao publicou en Nós ao longo de 1921. Por último, de repararmos nos tres libros que tomamos como exemplos do xénero no período 1916-1936, poderemos observar como neles se evidencia unha das características que foron apontadas como propias do xénero da Literatura de Viaxes, isto é, aquel carácter híbrido, con fronteiras esvaradizas entre diversas disciplinas e xéneros. Dos tres libros é Pelerinaxes I o que, tal vez, revela unha maior vontade de creación dun discurso literario e, á vez, o que obedece a un deseño minucioso previo á súa redacción (Allegue 2004a: 4).
17 Por que se importa o xénero nese momento? Apunta Alberte Allegue unha interesante hipótese cando afirma que, fronte aos ataques do escritores máis novos, os autores que incorporan este xénero, nomeadamente Risco e Otero, estaban a asegurar a súa posición central no “campo” literario galego (Allegue 2004b: 20-21).
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A seguir, Mitteleuropa. Impresiós d’unha viaxe, volume resultado da compilación dos artigos xa publicados na revista Nós, amosa as estreitas vinculacións do xénero coa crónica xornalística. Por último, As cruces de pedra na Bretaña é un magnífico exemplo do carácter fronteirizo destes textos entre a ficción narrativa e o ensaio. Estamos aquí ante un texto en que prima o carácter de discurso académico, sen interferencias ideolóxicas do narrador ao longo da exposición científica que se desenvolve nas páxinas do libro. Un “eu” narrador que só deixa constancia da súa intención (comparábel na súa clara vontade dialóxica á dos narradores dos outros libros) á hora de redixir as “Verbas limiares” que serven de prólogo ao volume18. Final A modo de resumo, debemos concluír que non é estraño que os autores galegos da etapa 1916-1936 se interesasen por este tipo de textos; os relatos de viaxes, polo seu carácter confesional (mais, ao tempo, erudito e didáctico), posibilitaban, mellor que outros xéneros, a exposición de ideas, valoracións subxectivas, nunha palabra, de ideoloxía, xa que a súa compoñente narrativa (e lúdica) facía destes textos un material de máis doada lectura que o ensaio. Doutra banda, o seu carácter de narración de feitos verídicos acontecidos durante a viaxe (pacto de veridicción) permitía desenvolver, cun impacto maior do que tería un texto puramente ficcional, a exposición das teses-liñas de pensamento que se pretendían subliñar para que o público lector tomase conciencia destas. Na nosa opinión, ademais, resulta evidente que a literatura de viaxes resultaba particularmente acaída para o desenvolvemento de certos temas literarios, sustentadores de chaves ideolóxicas de carácter nacionalista, que os autores da época querían espallar mediante o didactismo que permite a narrativa, en xeral, e a literatura de viaxes, en particular. Eses temas son os que nós denominamos ideoloxemas nacionalitarios (Fernández Pérez-Sanjulián 2003: 125-126). Así, unha análise interna destes textos deberá centrarse en precisar que ideoloxemas concretos aparecen desenvolvidos na literatura de viaxes producida na etapa obxecto de estudo. Non podemos agora, pola obrigada limitación de espazo desta publicación, analizar con toda a profundidade que desexariamos estes aspectos mais si queremos presentar brevemente que ideas relativas á construción da conciencia da identidade nacional galega aparecen representadas con máis forza nos textos citados. Na nosa opinión, os ideoloxemas nacionalitarios fundamentais que cómpre subliñar son os seguintes: 1) A delimitación do territorio. 2) A descrición da paisaxe como primeiro elemento identitario. 3) O estabelecemento dunha “listaxe identitaria”, isto é, a presentación daqueles elementos simbólicos e materiais considerados representativos da nación. Así, nestes textos realízase
18 Poderíase ler, tamén, como unha valoración do autor implícito as últimas liñas do libro: “De remate, diremos que os calvarios bretóns, comparados cos cruceiros, resultan catedrales comparadas con capelas; pero nos cruceiros aparece máis nídiamente a estética do xénero e a ialma limpa do pobo celta e cristián” (Castelao 1978: 97).
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o inventario da cultura material (patrimonio monumental, arquitectura popular, etc) e do patrimonio inmaterial (costumes, contos, ditos...) da Galiza. 4) O discurso autorreferencial galeguista (ao falaren das actividades, proxectos..., ou ao subliñaren explicitamente a rede de relacións entre os galeguistas, isto é, ao crearen ese núcleo simbólico da nación imprescindíbel nun contexto de emerxencia identitaria como era o daquel tempo).
Paralelamente, á beira destes textos que se poden inserir na literatura de viaxes, ao longo da produción literaria da época (especialmente da narrativa), verificamos que os mesmos autores recorren unha e outra vez ao topos da viaxe, incorporándoo ao seu discurso literario cun valor, coidamos, non moi diferente do expresado nos textos xa descritos. Os textos deste tempo están inzados de viaxes iniciáticas ou de peregrinación, de percursos polo propio país ou por fóra del que serven para transformar o protagonista ou, simplemente, para o dotar de coñecementos novos (entre eles, a descoberta da propia Galiza e da súa historia interna). Son viaxes ficcionais que, coidamos, vehiculizan os mesmos ideoloxemas nacionalitarios, o mesmo discurso ideolóxico que aqueloutras en que centramos a nosa análise. Na nosa opinión, o estudo comparativo destes dous grupos de textos pode resultar de enorme utilidade para analizar como se concretizaron na produción literaria daquel tempo, as ideas, temas ou, mesmo, propostas ideolóxicas que as elites culturais da época pretenderon consolidar como referentes para a creación dunha conciencia colectiva. Ao mesmo tempo, esta análise pode resultar moi esclarecedora, tamén, á hora de estudar o funcionamento dun proceso de emerxencia literaria concreto, obviamente interconectado co proceso de construción nacional que, con todo entusiasmo e brillantez, se estaba a desenvolver na Galiza das primeiras décadas do século XX.
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Referencias bibliográficas
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19 Desde xullo de 1930 e baixo o título de “Da Alemaña”, primeiro (Nós, 79-120), e “Mitteleuropa”, despois (do 122 ao 137-138), Risco foi publicando na revista Nós as crónicas da súa viaxe por Europa, crónicas que logo serían recollidas no libro aquí citado. No libro, para alén de certas modificacións (supresións ou engádegas), recóllense os materiais correspondentes ao relato da viaxe e mais da súa estadía en Alemaña (até o nº 120, correspondente a novembro de 1933), ficando fóra as crónicas de Praga e Viena. Son estas últimas as que aquí aparecen recensionadas como artigos. Na edición das Obras Completas de 1995 engádense estes capítulos editados en Nós e que non foran recollidos na primeira edición en libro de 1934.
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CARME FERNÁNDEZ PÉREZ-SANJULIÁN
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UNHA NOVELA DE FORMACIÓN: INTRES DE LUÍS MANTEIGA. Laura Tato Fontaíña
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UNHA NOVELA DE FORMACIÓN: INTRES, DE LUIS MANTEIGA.
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No primeiro volume destes Estudos Galego-Brasileiros, o noso traballo xirou en torno ao proceso de modernización da narrativa galega e como continuación, queremos agora, neste segundo volume, exemplificar eses logros analizando a obra dun dos integrantes da xeración máis nova das que contribuíron a aquela modernización, da xeración das Vangardas, de Luís Manteiga. Da vida e obra deste escritor pouco sabiamos até hai un par de anos (Tato 2003), cando recuperamos a súa obra dramática, pois ao seu labor de activista, crítico e xornalista pouca atención dedicaron as historias da literatura galega. Luís Manuel Antonio Manteiga naceu o 30 de xullo de 1903 en Santiago de Compostela, onde pasou unha infancia marcada pola necesidade e as crenzas relixiosas da súa nai. Na década dos anos 20 entrou a traballar nun comercio da cidade, o de Segundo García de la Riva, onde coincidiu con Arturo Cuadrado e, quizais a través del, entrou en contacto coa mocidade intelectual, artística e universitaria da época: Ánxel Fole, Luís Seoane, Ánxel Casal, Maside, Fernández del Riego... A súa primeira colaboración xornalística apareceu o 11 de maio de 1930, na revista Guión, de Lugo, e, a partir de aquí, baixo o pseudónimo de Sergio Ivaguín ou coa súa propia sinatura, traballou para diversas publicacións de tendencia progresista e/ou nacionalista: Guión; Yunque; Resol; Alento. Boletín de Estudos Políticos; Claridad. Semanario de Izquierdas de Compostela para toda Galicia; A Nosa Terra; Nós; contou cunha sección no xornal vigués El Pueblo Gallego; e con outras dúas no semanario El Heraldo de Galicia, de Ourense. A participación de Manteiga na vida cultural e política da Galiza da II República foi moi intensa, pois formou parte do Comité de Cooperación Intelectual, da Asociación de Escritores Galegos e, durante o Bienio Negro e como director do semanario Claridad, estivo na cadea da Coruña uns meses. Desde mozo viviu marcado pola tise e conseguiu sobrevivir á sublevación fascista de 1936, probabelmente por estar sufrindo un dos encerros a que tiña que se someter por mor da doenza; desde 1938 traballou na administración do Hospital de San Caetano, en Compostela, onde morreu o 25 de maio de 1949. O seu traballo como escritor quedou espallado polas publicacións en que colaboraba; en formato libro, as publicacións
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foron póstumas: o ensaio Lugares y caminos. Paisaje en Galicia 1 (1989) e, como xa indicamos, máis recentemente o seu Teatro galego (2003). Nos anos da posguerra, Manteiga refuxiouse na escrita e a súa produción en español é moi abundante, pois presentábase a todos cantos certames podía; consérvanse nove pezas dramáticas e cinco novelas, algunhas das cales quedaron finalista nos máis importantes concursos da época (Sierra 1945). Para podermos entender a súa obra no contexto en que se produciu, cómpre lembrarmos que a narrativa do XIX deixou como herdanza ás primeiras décadas do século seguinte o costumismo e o sentimentalismo, e estas foron as liñas que se seguiron cultivando até que as Irmandades da Fala tomaron a decisión de a renovaren pondo as canles acaídas para alcanzar o seu obxectivo. Estas canles, inevitabelmente, pasaban por crear unha editora nacional e mais uns órganos críticos axeitados desde os que orientaren e dirixiren esa renovación. O labor de crítica e orientación realizouse desde as páxinas do semanario A Nosa Terra, voceiro das Irmandades da Fala e, sobre todo, desde a revista Nós. A creación da editora foi máis traballosa: comezou con coleccións de novela curta e, unha vez consolidado, en certa medida, o público e actualizadas as técnicas narrativas, apareceu a Editorial Nós (1927). Nesas coleccións de novela curta – Céltiga, Alborada, Lar, Libredón e Galaxia– publicáronse, entre 1919 e 1927, máis de setenta noveliñas que serviron de campo de probas para que florecese unha narrativa de calidade. Crearon un continuum que preparou os prosistas galegos para ofreceren obras de maior empeño, conformando ese amplo abano de textos de segunda liña necesarios para que xurdan as grandes obras. A primeira achega destas coleccións foi que serviron para que, a través dos modelos propostos e das recensións, se fose aconsellando, orientando e mesmo dirixindo os escritores tanto a respecto dos temas como das técnicas narrativas. Como non podía ser menos, potenciouse a temática que incidía nos puntos que o nacionalismo consideraba básicos na forxa dunha conciencia nacional galega, como o ‘neoceltismo’, a recuperación das míticas raíces celtas, das lendas, personaxes e situacións da Materia de Bretaña, con que se puña de manifesto o elemento atlántico do pobo galego fronte a tradición mediterránea do pobo castelán; ou o humor negro coa representación do mundo do Alén, que tamén foron sentidos como elementos propios dos primitivos flamengos e, por tanto, como características propias do Norte atlántico, da Idade Media e dos galegos; ou a utilización das lendas e tradicións que permitían aproveitar o elemento sobrenatural da mitoloxía galega, desde o lobishome ás fadas ou mouros gardadores de tesouros. Canto á modernización das técnicas narrativas, nesta primeira fase da construción da novela, ademais das innovacións que foron achegando os integrantes do Grupo Nós e algúns vangardistas, tamén recorreron ás traducións, entre as cales cabe salientar a temperá versión realizada por Otero Pedrayo de fragmentos do Ulisses, de James Joyce. De todos os xeitos, nesta dimensión, os logros foron menos vistosos que na renovación temática, porque a experimentación que se podían permitir estaba limitada polo segundo obxectivo desas coleccións,
1 O volume, que recolle moitas das súas colaboracións xornalísticas, foi enviado por Manteiga a Luís Seoane para que llo presentase ao certame do Centro Gallego de Buenos Aires, en 1948; a través da viuva de Seoane chegou a Isaac Díaz Pardo, que o publicou en 1989.
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o de crear un público lector. Como achegas máis salientábeis podemos citar o focamento externo e neutral, chegando case ao obxectivismo, á cámara fotográfica; a substitución do realismo xenético polo realismo formal; a aparición da novela de iniciación ou formación; da novela impresionista; o fluír de conciencia; o final aberto; a anulación dos límites entre realidade e fantasía, entre o vivido e o soñado... A novela galega considérase consolidada a fins da década dos anos vinte, cando se publican as grandes obras dos escritores do Grupo Nós, Ramón Otero Pedrayo, Vicente Risco e Afonso Castelao. Era, como en todas as literaturas emerxentes que están creando un sistema literario propio, unha narrativa moi ligada á sociedade e á misión que debía cumprir nela: crear conciencia nacional. Mais, no camiño da normalización do sistema, correspondeu á xeración seguinte, á das Vangardas, contribuír cunha serie de elementos propios da época, dos chamados “ismos” europeos, que podían parecer contrarios aos intereses do propio sistema, creándolles, en ocasións, verdadeiros conflitos internos e unha necesidade enorme de se xustificaren. Neste caso está a narrativa de Luís Manteiga, que aínda hoxe pode correr o risco de non ser entendida e de ser, mesmo, mal interpretada por quen cuestione a lexitimidade do subxectivo no nacemento das literaturas emerxentes e/ou de resistencia. Canto ao texto que imos analizar, titulado Intres, de que xa se publicaron tres fragmentos na revista Nós, a primeira cuestión que abre é a da súa adscrición xenérica porque podería admitir unha dobre lectura. Na primeira, semella que estamos perante unha colección de catorce relatos, enmarcados por dous paratextos, “Confesións” e “Despois”, que lle confiren unidade. Apoiarían esta interpretación o propio título xeral da obra – Intres –, a disposición tipográfica, e mais a utilización dun título independente para cada texto. Nesta lectura, habería que cuestionar a condición de relato dalgún dos “intres”, xa que en moitas ocasións o que temos son reflexións e/ou descricións sen que exista a máis mínima acción ou historia. Canto a isto, non poden deixar de nos lembrar as Cousas, de Castelao, ao tempo que, en relación coa materia autobiografía en que se inspiran, os Intres remiten directamente a Retrincos, do mesmo autor, obra con que ten en común a base autobiográfica. Como explicaba o propio Manteiga na recensión que realizou da obra de Castelao: “Contos sen sangue, cousas ledas e tristes, das que un atopa a milleiros na largura cuasi infinda dos intres da vida...” (Manteiga 1935a).
Porén, nunha segunda lectura, Intres é unha novela de formación, a novela da autobiografía afectiva e ideolóxica dun dos integrantes da xeración das Vangardas. Aceptándomos que a narrativa é a creación dun outro mundo e que se caracteriza por representar unha secuencia de eventos, Intres constitúe a secuencia de eventos que constrúen o home Luís Manteiga, mais non na súa biografía física e vital, senón na súa configuración espiritual e emocional; de aí os contidos evanescentes e ondeantes, en que, ás veces, a narración acaba disolvida en reflexión filosófica e metafísica. Este carácter de novela de formación explica tamén moitas das súas características técnicas: o focamento do narrador autodiexético, o demorado das descricións paisaxísticas con que Manteiga configura o seu espazo telúrico e xeográfico e mais o tratamento das coordenadas espazo-temporais. Nesta segunda interpretación, o referente literario de Manteiga poderían ser Arredor de si ou Devalar, de Ramón Otero Pedrayo, e formaría parte do Bildungsroman galego (Salinas 2004).
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Fose como for, o autor de Intres probabelmente non tivo nunca a máis mínima preocupación pola adscrición xenérica da súa obra, e mesmo cualificaría de pedante a nosa pretensión de a clasificar, posto que non acreditaba na posibilidade de que puidese existir unha definición previa ás obras: Que é a novela? Ben, a novela pode ser o que V. queira, mais no fondo, a novela é? o que diría o amigo Pedro Grullo? o que queira o novelista. O afán de definir mata as cousas, ou, cando menos, envurúllaas. Sthendal quizais tivo a culpa, neste caso concreto, ao nos regalar o seu famoso espelliño; malia que despois, como cada quen, posto a crear, non pensase para nada na súa definición, e dese ao mundo, simplemente, o que había nel. (Manteiga 1949. A tradución é nosa).
Como novela de formación, os sete primeiros “intres” corresponden á “educación” en positivo do protagonista, á evolución ascendente caracterizada polo enriquecemento do espírito a través da perda de certas pexas como, por exemplo, as crenzas relixiosas, e a adquisición de valores colectivos e solidarios; mais a partir do “intre” oitavo prodúcese unha transformación deses valores, en sentido negativo, por mor da frustración, o desengano, a soidade... Manteiga abre o volume cun paratexto, a modo de prólogo, que leva o título de “Confesión”, en que un narrador heterodiexético se presenta como ‘editor’ da obra dun amigo. O diálogo directo entre ‘editor’ e ‘autor’ servirá para saír ao paso de posíbeis acusacións de diletantismo, facendo a defensa da arte pola arte e do dereito dun escritor a falar só de si mesmo, xustificación necesaria para alguén que tres ou catro anos antes clamaba pola revolución marxista (Manteiga 1932), e que estaba inmerso no proceso de configuración dun sistema literario periférico, o galego, que, na altura, procuraba a identificación colectiva. Cerra o prólogo a confesión que dá título ao texto: autor e editor son a mesma persoa. Isto vai permitir a cambio de focamento, o paso do narrador heterodiexético ao autodiexético, do “el” ao “eu”, quen, a partir dese momento e ao longo de toda a obra, se dirixirá a un “vós” omnipresente. Na identidade deste narratario radican as chaves da complexa interpretación do texto; o lector ideal de Manteiga, o que podería entender absolutamente todos os niveis da súa escrita, e perante o que, en moitas ocasións, se está xustificando e explicando a través de fórmulas como direivos, ollai, sabedes..., son os compañeiros do grupo Claridad, os amigos das iniciativas editoriais de Ánxel Casal, os activistas republicanos, comunistas, socialistas, nacionalistas... Para lles explicar literariamente un proceso ideolóxico que xa xustificara teoricamente no ensaio “Da nosa propia contemprazón”, Manteiga preparou este volume, Intres. O sentimento tráxico que vai presidir a vida do protagonista fica exposto no título do primeiro capítulo “A door”, consagrado a lembrar unha nenez moi afastada do tópico do paraíso perdido, en que a voz do narrador recupera unha familia sen pai, marcada pola pobreza, o frío, as carencias e as formas máis superficiais da relixión, que o levaron a unha verdadeira peregrinatio na procura dun Deus que non achou nin fóra nin dentro de si mesmo. O silencio de Deus, que non respondeu ás súas peticións de auxilio contra a revolta da carne, xerou o ateísmo do narrador, pois a soberbia do adolescente exixía unha resposta persoal:
UNHA NOVELA DE FORMACIÓN: INTRES, DE LUIS MANTEIGA.
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Se houbese ceo, tíñase que abrir ás miñas bágoas; si houbera anxos, terían que vir a bicar o meu corazón desfeito en door; se houbera Deus, tería que sentir sobre de min a súa man de pai...
O feito de que sexa a falta de resposta divina, e non a inxustiza social que o rodea, quen xera o ateísmo está marcando certa distancia entre o rapaz protagonista e o adulto que rememora; distancia necesaria para que o vivido se transforme en literatura e facilite unha reinterpretación dos feitos e das intencións, de maneira que o narrador poida cuestionar a verdade do que conta e problematizar a súa visión do pasado. Porén, deixando moi claro o convencemento de que a súa vida estivo, está e estará sempre gobernada por un fado fatal: “E todas as cousas que quixen e que quero están gardadas por un non”. Este primeiro “intre” ten un carácter esencialmente narrativo. O protagonista conta a súa nenez e adolescencia seguindo unha estrita orde cronolóxica, utilizando tempos pasados que demoran a narración, e só deixa paso ao presente na vigorosa orde que lanza o confesor sobre a desesperación do adolescente: “Non se pode pensar, reza e cala”. O carácter narrativo desaparece no segundo “intre”, o titulado “Remorso”, onde o protagonista traza un agarimoso retrato da nai e modula un canto en que, sen pormenorizar situacións nin feitos concretos, lamenta a dor gratuíta que o seu comportamento, ás máis das veces a mantenta, lle inflixiu. O texto ábrese cunhas reflexións do narrador sobre a súa propia personalidade, sobre a consciencia que sempre tivo, e continúa a ter, de que acabaría arrependéndose de moitos dos seus feitos e decisións, mais que, a pesar de todo, de volver a vivila, repetiría a súa historia; esta contradición, presente en moitos seres humanos, é denominada por Manteiga como “ambivalenza do si e o non”, nunha terminoloxía que non pode deixar de nos remitir á obra doutro vangardista, a Poemas do si e non, de Álvaro Cunqueiro. Evidentemente, este texto, de carácter impresionista, está escrito desde o presente dun home madurecido que volve os ollos ao pasado e reflexiona sobre el, e cumpre a función de pechar a primeira etapa de formación do heroe, a da fe católica, que será enerxicamente rexeitada na idade adulta e da que só fica o remorso pola falta de comprensión coa nai. O mesmo carácter impresionista ten o terceiro capítulo, o titulado “Medo”. No entorno dunha vila mariñeira, bañado polo luar e en comuñón cunha natureza poderosamente humanizada que se revela como unha forza inmensa ao servizo do home, a alma do narrador ascende até se sentir un deus para, a seguir, ser lanzado, pola presenza súbita da tise, ao abismo do confronto coa morte. O fado fatal que viña anunciando desde as primeiras páxinas semella que se vai cumprir pola tremenda soidade en que se produce o vómito de sangue e o estado de semiconsciencia en que se vai mover desde ese momento. A descrición do estado que seguiu á expulsión do sangue non pode deixar de nos lembrar a mesma situación descrita por Thomas Mann en A Montaña máxica. De novo, a utilización do estilo directo, o presente, queda reservado para aquelas frases que marcan o sentido máis profundo do texto: “¡Non, morrer non, eu non quero morrer!”. A importancia desta experiencia na evolución afectiva e ideolóxica do protagonista fica salientada non só polo feito de que se lle dedique un dos capítulos máis demorados do volume, senón tamén pola singularidade do entorno natural e o seu tratamento, posto que é o único “intre” que ten como marco o mar e en que o autor declara a súa localización exacta, a pequena vila do Pindo, na Costa da Morte, e non evita citar outros topónimos da zona: o Ézaro, o Xallas, Cee, Carnota, Corcubión...
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O “intre” seguinte está centrado na vivencia da solidariedade, quizais porque a proximidade da propia morte é unha das experiencias que máis marca un ser humano, obrigándoo a reparar nos que o rodean e facilitando que xurda nel ese sentimento. Así, no proceso de maduración espiritual do protagonista, este capítulo, titulado “Brétemas”, marca o paso do individual ao colectivo, do “meu” ao “noso”; é o momento vital en que deixa de se mirar o propio embigo para se ocupar dos problemas dos outros, exemplificados no lamentábel episodio dun novísimo aprendiz de escritor que descobre con horror que, cando logra acceder ao trato directo cun grande poeta consagrado –a quen seguía e imitaba con paixón–, este, o que procura nel é un encontro sexual. Talvez porque a identificación do poeta homosexual con Federico García Lorca2 podía resultar evidente de máis, sobre todo, para aqueles que conviviran con el nas visitas que realizou a Galiza (Fole 1955), a voz narrativa volve a cuestionar que os feitos tivesen acontecido tal como os conta: “Cecais non foi deste xeito”. Neste episodio, a aprendizaxe é dupla: a descuberta de que os ídolos teñen o pés de barro e mais a solidariedade. De todos os xeitos, o narrador non pode pasar sen deixar constancia da ingratitude do rapaz, comezando así unha listaxe de aldraxes, de comportamentos desagradecidos e egoístas por parte dos “outros”, que, en parte, servirán para xustificar a súa decisión final. No proceso de aprendizaxe, a seguinte lección vai ser a superación do interese individual polo ben común, a renuncia ao desexo persoal cando resulta pernicioso para outros; e así, o capítulo seguinte, “O fillo”, está dedicado a recrear as sensacións, emocións e pensamentos que conmoveron o protagonista a noite en que sentiu a tentación de ignorar a súa doenza e cumprir a súa arela máis ardente: ser pai3. Neste episodio aparece por vez primeira a muller como parella sentimental e sexual, mais é unha muller sen nome e sen rostro, unha figura tan triste e doente como a do propio narrador, con quen vive un penoso amor acubillado a carón dun braseiro, agachado nas faldras dunha mesa camilla. Nin sequera na lembranza deste amor, que semella vivido, Manteiga perde a tristeza infinita que asolaga a súa escrita e que transmite ao lector a xélida lentura da invernía compostelá. No camiño de aproximación ao “outro”, de saída do individualismo, vai ter un papel fundamental o encontro coa natureza que se produce no capítulo titulado “Unha noite”. Igual que no primeiro, aquí hai un verdadeiro relato que comeza in media res, cunha certa dose de intriga pola ambigüidade da frase en que se atribúe a responsabilidade dunha morte; morte que o leva a unha viaxe nocturna na procura da familia dun amigo agonizante. Porén, isto corresponde á lectura literal do episodio, porque na interpretación simbólica o narrador realiza unha viaxe iniciática que o afasta do seu mundo habitual, da cidade: Eu non tiña saído da cibdade, non coñecía aínda o mundo quente das cousas, [...] non coñecía ren máis aló da longura baldeira das rúas na noite, i o barullo noxento dos cafetíns i a algarada burda das parrandas nos burdeles.
2 A descrición da paisaxe en que se desenvolve o encontro do narrador co adolescente parece corresponder a Lugo, cidade en que vivía Manteiga cando foi visitada por Federico García Lorca. 3 Lémbrese que Luís Manteiga padecía a tise e que na época se pensaba que ese tipo de doente podía concibir fillos con terríbeis eivas físicas e mentais.
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Despois de horas viaxando na noite, comeza a derradeira etapa a pé, guiado por unha nena loura –lémbrese que tamén unha nena loura guiaba o Cego que abría a traxedia O Mariscal, de Antón Vilar Ponte e Ramón Cabanillas– con quen atravesa un río de augas negras, conducidos por un silencioso barqueiro, para ascenderen un monte de que baixarán xa coa luz do amencer. Resulta evidente que Manteiga relata a súa descuberta da natureza, do mundo rural, de Galiza, con todas as claves que permitirían a un lector culto, como eran os seus compañeiros e amigos, alcanzar a interpretación simbólica que o autor pretende: atravesou o Alén guiado pola Tradición, con quen cruzou, na barca de Caronte, o río Leteo, deixando aí a memoria da vida anterior para renacer, na baixada do monte Sinaí, transformado nun home novo e cunha nova lei que cumprir. Para marcar a transcendencia desta viaxe, o seu valor iniciático, o narrador prescinde da toponimia, e as únicas referencias concretas aparecen co abrente, cando o neófito comprendeu o seu destino e se albiscan, afastados, e coa luz da nova alborada, os montes de Avión e Arnoia. A experiencia amorosa non podía faltar na conformación da personalidade do protagonista, e a el están dedicados os dous “intres” seguintes. No primeiro deles, titulado “Inquedanza”, o narrador estabelece, na súa fantasía, unha relación case erótica, a través das imaxes dun aparello de Raios X, coa muller dun amigo. Este episodio, que de novo lembra as doentías personaxes de A montaña máxica, de Thomas Mann, é o único do volume en que non aparece a dor, nin ningún outro sentimento negativo, perturbando as relacións humanas. De todos os xeitos, non podemos deixar de indicar que a impresión que transmite o narrador é que o importante desa conquista amorosa– que podería estar só na imaxinación enfermiza do amante –non é a confirmación por parte del de que é correspondido, senón o feito de que sexa un amor prohibido, de ter conquistado a muller de outro home que, ademais, é un amigo. Lamentabelmente, o menos importante destoutra muller sen nome é ela mesma. Porén, onde o amor se vai manifestar en toda a súa grandeza e profundidade é no segundo dos capítulos que lle dedica, no titulado “Outra vez a door”. O relato está estruturado en dúas partes que o autor diferenza tipograficamente; na primeira, recrea unha relación de amizade que, a través do coñecemento mutuo, deixa paso á paixón, liberando os amantes dos medos e reticencias a un novo fracaso. Aínda que estamos, outra volta, perante unha muller sen rostro nin voz, o narrador proporciona a información necesaria para explicar os feitos da segunda parte: a rapaza padece a mesma doenza ca el: Ela traguía de lonxe a tara gravosa dos seus pulmoes feridos. Diadas longas pechábana no leito, ou nun repouso calado de xuventude cuasi morta. Eu pasaba con ela a longura das horas...
A segunda parte do texto contén a terríbel experiencia da morte da moza: o relato da longa e angustiosa agonía da muller, da desesperación alucinada do amante que se resiste á perda, e do seu desmesurado comportamento, que roza na necrofilia. A dimensión tráxica da vida do protagonista fica marcada de vez; non haberá felicidade posíbel para el que, a cada paso, vai topar coa morte. Ao longo dos sete primeiros “intres” o narrador-protagonista evoluíu desde unha mísera nenez, pasando por unha adolescencia fondamente relixiosa e individualista, a unha mocidade comprometida, solidaria e enerxicamente laica; o proceso foi lento, iniciárase coa crise
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producida polo silencio de Deus e culminara na exquisita reunión en que a música de Chopin e Beethoven servira de fondo ao coqueteo coa muller do amigo. No entanto, a harmonía co “outro”, co alleo, non durou moito, posto que a morte da rapariga tísica marca o comezo dunha outra etapa en que retornará, devagariño, ao individualismo. Un individualismo agachado baixo a forma de culturalismo e polo cal o narrador sente unha necesidade imperiosa de se xustificar. No capítulo titulado “Covardía”, deitado baixo o ceo dunha noite de verán, nun dos habituais momentos de adormecemento, o narrador fai balanzo da súa vida e, ao tempo que confirma a propia valía, confesa que a súa obra como creador, centrada nas propias emocións, é subxectiva, íntima e intimista. Nun desdobramento propio dos estados oníricos, o eu-comprometido exixe a destrución deses papeis que só lle producen vergoña: “Queima todo...”; mais o eu-creador resístese e opta por aceptar o reto do posíbel pouco valor dos escritos e deixar que sexa a posteridade quen os xulgue. A decisión acorda o narrador do seu desvarío, coincidindo coa saída do sol pola liña do horizonte. De novo a alborada marca, simbolicamente, a mudanza de rumbo no percorrido ideolóxico do protagonista: comeza unha nova singradura en que o máis importante será a propia obra. Os demais capítulos do libro son unha xustificación desa decisión –que non tería necesidade de ser xustificada nunha sociedade normalizada política e culturalmente–, mais que un activista marxista como Luís Manteiga sente a obriga de explicar. Porén, os cinco “intres” restantes xiran en torno ao fracaso do ser humano, tanto nas relacións persoais como públicas, e todos eles admiten dous niveis de lectura: unha literal e outra simbólica. Nesta segunda resultará evidente que o narratario, ese “vós” a quen se dirixe constantemente, son os compañeiros do Grupo Claridad, os republicanos, a esquerda nacionalista... En “O que foi” (Manteiga 1934a), o narrador, desde o encerro dunha habitación de doente, asume o fracaso de “algo” que se fecha definitivamente na súa vida; mais ese algo que acabou non é nomeado directamente (“Aquelo foi tan real e pleno como é a noite, pro xa non é”), de forma que só o lector avisado, só quen soubese da estadía no cárcere de Manteiga como director de Claridad, por mor da represión política do Bienio Negro, do deterioro da súa saúde na cadea, e da conseguinte ruptura co grupo da publicación (Tato 2003), poderá interpretar neste sentido a fábula. O autor non quere que a súa obra estea tan ligada ao “aquí e agora” que perda carácter universal, de forma que non entra nunca en pormenores sobre os feitos concretos que o levaron a tomar determinadas posicións vitais (abandono da actividade política, por exemplo), para que as súas reflexións poidan ser útiles para calquera ser humano que se achar perante unha situación semellante. Este desexo de liberar a escrita do particular, de evitar todo o que sexa demasiado identificábel, obriga o lector a localizar a escena pola paisaxe urbana que o narrador describe a través da altísima xanela, e só así chegamos a saber que está en Compostela, internado no antigo Hospital4 da praza do Obradoiro. No seguinte capítulo, “A door mais outra vez”, non hai relato; a demorada descrición dun fermoso solpor no campo fica rota pola violencia gratuíta con que un neno pegureiro desafoga a súa carraxe no lombo do gando. A inutilidade desa violencia serve de punto de
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Actual Hostal dos Reis Católicos.
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arranque para unha terríbel reflexión sobre a ruindade da condición humana, que supera a súa propia debilidade e covardía asoballando os máis febles. O narrador imaxina que o rapaz vinga no gando algún castigo inxusto, porque o habitual no comportamento do ser humano é facermos recaer sobre os de abaixo a inxustiza que padecemos dos que están por riba de nós, xerando unha cadea de violencia e de inxustiza que é asumida polo eu narrador como algo natural e sen solución posíbel. Este horríbel retrato da condición humana complétase co seguinte “intre”, o titulado “Derrubamento” (Manteiga 1934b), en que mostra o fracaso da relación de parella exemplificado nun matrimonio amigo. Nunha paisaxe urbana, nunha rúa de Compostela, sitúa o lugar de reunión, unha bufarda a que acode, a pesar de non acreditar xa no traballo colectivo, como derradeiro refuxio en que poder comprobar que, cando menos, é posíbel unha relación home-muller nobre e duradoira, para descubrir que tampouco iso é posíbel. Nunha das súas mellores páxinas, Luís Manteiga explica á dor inherente á vida nunha preciosa comparación desta coa peza musical Bolero, de Maurice Ravel: A vida empeza a sua canzón maina, suave, sinxela, ledamente, coma unha meniña que quer vivir. Brincadeira de danza, sartal de notas sin senso, solo un anceio infantil de vivir, garimoso, sutil, sin compricacións, que se rompe con unhas notas mais fortes, que non parecen ter ren que faguer alí. Pro a canzón volve un pouco mais outa, con tonos mais varios, con ledicia mais forte, e novamente notas mais fortes tamen a volven a cortar. Pro a canzón non lle importa, ela solo quer vivir, e vai brincando, rebuldeira, de un a outro instrumento da orquesta, para pulsar segura de si mesma, todolos sons do seu cantar. Mais os seus pulos son sempre cortados por uns rexos sonidos estraños, mais fortes, canto mais outa é a canzón. Entón decatámonos que a canzón leva as costas, un son de ferreñas, que xa está alí dende o pirmeiro intre, e que vai medrando o mesmo ritmo que a canzón. I ela sigue a brincar de instrumento en instrumento, como fuxindo do son que lle roe os pés, pra libertarse del e poder cantar libremente a súa ledicia. E xa non é un solo instrumento o que di a canzón, se non varios, combinados, faguendo variacións i estridenzas. E a canzón vai perdendo a sua ledicia inxenua, infantil pra faguerse berro forte e angurioso anceio. Pro todo é inutil pois o son medra, vese vir coma unha forza fatal de aniquilamento, trocarse de lixeira ferreña, en rexo redoble de timbal, e cando xa toda a orquesta é un berro agoirado no que inda quer vibrar a canzón, o son céibase sobre dela i engúlea con valvorto tolo de caos final. Igual que na vida.
O convencemento, e a xustificación, de que os seres humanos non merecen que se lles regale o esforzo dunha vida chega ao seu cume no capítulo titulado “Soidade”, que o narrador estrutura en tres partes diferenciadas tipograficamente. Ábrese cunhas reflexións sobre a liberdade do ser humano que acaba sendo limitada pola de outros homes, con que se pode aliar en grupos políticos para imporen a súa vontade, limitando así a liberdade doutros; neste encadeamento continuo, o Estado acaba cumprindo o papel de cadea mecánica que escraviza todos. Por tanto, só se pode ser libre na intimidade5. Na segunda parte descríbese a si mesmo
5 Na obra dramática A Mecada, recollida no seu Teatro galego, Manteiga insinúa que a sociedade rural galega podería sobrevivir perfectamente sen Estado.
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no pasado, coa inocencia e a pureza da mocidade que non recoñece leis inxustas, cando, sen se preocupar polas consecuencias, actuou en conciencia ignorando os perigos que o axexaban e os “crimes” que cometía. Na terceira parte, acompañamos o narrador durante unha noite na cadea, onde na soidade máis absoluta, acaba tirando a conclusión de que o único ser a quen realmente lle importa é á súa nai e de que está absolutamente farto dos homes: Entón decateime de que había moito tempo que estaba farto da convivencia cos homes...
De novo Manteiga actúa por estilización para conseguir unha reflexión xenérica, posto que os “crimes” a que se refire son os derivados da terríbel represión do Bienio Negro, que transformou en delito a liberdade de prensa, facilitando as múltiplas denuncias que sufriu o semanario Claridad, e que o levaron a permanecer varios meses no cárcere da Coruña, de onde só saíu, coa saúde moi deteriorada, co gallo dunha amnistía. Resulta evidente que o narrador está condenando calquera forma de actividade política para xustificar tanto o ostracismo en que se vai recluír a partir dese momento, como a temática dunha obra literaria que non segue as liñas habituais da época. De feito, a obra de Manteiga, tanto a narrativa como a dramática, resulta dunha orixinalidade extraordinaria dentro da literatura galega de preguerra. Como despedida, e fuxindo do fracaso da política, o autor vai procurar refuxio no mundo da fantasía, e así, no derradeiro “intre”, no titulado “Noiturnio” (Manteiga, 1934c), está de novo en medio da noite, tombado no monte para vivir unha outra experiencia onírica en que, afastado da humanidade e liberado da dor e de calquera sensibilidade animal, fica como un corpo de pedra que mantén viva a conciencia e o sentido da vista. En principio a experiencia resulta positiva até que pretende acariñar as cousas e descobre que non pode, polo que acorda, esta vez co luar, para se felicitar por ser home e sentir como tal, describindo con grande beleza a paisaxe nocturna que o envolve. Aquí fica deseñada a personaxe de Zabulón, verdadeiro alter ego de Manteiga, que máis tarde será protagonista de varios dos seus textos6 e a través da que intentará explicar as profundas contradicións e incoherencias que agacha a alma humana. No pequeno epílogo co que cerra o libro, titulado “Despois”, o autor reafirma a singularidade da súa obra, nada de “intres” do seu propio vivir, que deixa como froito do seu paso polo mundo, nese intento, tan humano, de sobrevivir á propia morte e, nun último aceno de complicidade co lector, confesa que desexaría asasinar a súa fonda descrenza e confíar en que, a pesar de todo, existan un Deus e unha Eternidade. Rematou a viaxe, o narrador protagonista chegou a bo porto e completou a súa formación emocional e ideolóxica: a partir de aí a súa vida terá como obxectivo a creación dunha obra construída con anacos de alma en comuñón co país, coa terra de que procede. En realidade, como xa indicamos, trátase dunha obra que non encaixaba moito nos parámetros da súa época de a compararmos coa narrativa dos homes do Grupo Nós ou mesmo coa doutros da súa xeración, como Rafael Dieste, mais
6 É o protagonista da peza dramática Zabulón (Manteiga 2003, 209-229) e de dúas obras en español escritas na posguerra: a novela Zabulón mundo cerrado, finalista do Premio Nadal de 1948 e mais a obra teatral Zabulón y los niños. Cuento en cinco cuadros.
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que responde aos trazos xerais da vangarda galega, da poesía de Manuel Antonio ou do abortado teatro de preguerra de Álvaro Cunqueiro, é dicir, unha vangarda que, sen chegar á ruptura co compromiso, liberou temas e formas. Coidamos que fica só por comentar que nesta autobiografía, o narrador non segue a orde cronolóxica que poderiamos agardar dunha biografía convencional e, como ten que xustificar e xustificarse, organiza o proceso de aprendizaxe en función do narratario, co fin de que comprenda, e aprobe, as súas decisións. Podemos citar como exemplo disto o feito de que o proceso emotivo-ideolóxico que sofre en “Unha noite” (descuberta da natureza, do país...) sexa contado con posterioridade á aparición da tise, que se produce en “Medo”, porque resulta evidente que a situación en que está o narrador cando se manifesta o vómito de sangue non sería posíbel na etapa da súa vida en que “non saíra nunca da cibdade” que foi superado en “Unha noite”. Para acabarmos esta breve aproximación á obra narrativa de Manteiga, e mais á triste experiencia que foi o seu paso polo mundo, queremos reproducir unha das súas últimas reflexións sobre o ser humano e o sentimento tráxico da vida, porque coidamos que nelas está condensada toda a experiencia relatada en Intres: O home é unha masa atrapallada de sutilezas, vulgaridades, instintos e anceios... En esencia, o home é un náufrago irremediábel no máis fondo do seu ser. Nesa fondura da súa soidade infinita, sabéndoo ou non, necesita unirse a algo en comuñón total e sabe, sen o saber, que esa comuñón total non é posíbel. Morgan acha tres factíbeis éxtases que poden ser salvación para a insufríbel soidade humana: a éxtase da arte, a do amor e a da morte (Manteiga 1948).
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Bibliografía citada
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«DA PALABRA Á (CALI)GRAFIA EN UXÍO NOVONEYRA: INFLUENCIAS INTERCULTURAIS E AFLUENCIAS PLÁSTICO-ESCRITURAIS» Carlos Paulo Martínez Pereiro (UDC)
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Wittgenstein says that when the eye sees something beautiful, the hand wants to draw it. [Elaine Scarry] Pretendemos, nas páxinas que seguen, realizar unha aproximación ás tendencias plástico-literarias e aos contornos (inter)culturais en que se integra a coñecida e positivamente avaliada obra caligráfica do ‘ser-esponxa’ que foi Uxío Novoneyra. Polo cal, non se esperen destas páxinas exposicións de referencias fixas e estábeis, nen esquemas redutores da múltipla casuística plastico-caligráfica do poeta lucense, hai poucos anos falecido. É, pois, a nosa intención practicar un discurso que quizais axuda a esa “excesiva consciencia de si mesma” de que falaba Borges a respecto da moderna literatura, que tamén pode ser aplicada á pintura moderna. Consciencia ansiosa que invade tanto o mundo da arte como o da literatura, como resultado dunha neurose nacida da dependencia excesiva do discurso crítico. Neste sentido, observemos, nos complexos, diversificados e múltiplos relacionamentos entre escrita e pintura, a existencia dun territorio privilexiado que, ao longo dos séculos e con moi diversa entidade e intencionalidade, ten funcionado como espazo de confluencia: trátase do lugar fronteirizo da caligrafía, da escrita manual. Isto é así porque o ‘xesto da man’ que (non só belamente) grafa tende á (con)fusión coa xestualidade exixida pola man que (non só materialmente) pinta ou deseña. Afirmando a vixencia deste espazo, lembremos a título de exemplo –recordando que, como dixera Borges, citar é omitir– unha recente entrevista en que o autor de Abbés, o escritor Pierre Michon, admitía a analoxía para o seu proceso de escrita, conceptualizándoa ao manifestar “J’ai vu que ma main acceptait de tracer ces mots-là”. Na secuencia do mesmo diálogo, Pierre-Marc de Biasi interrogábao, dun modo certamente retórico, sobre se, cando afirmaba “ma main acceptait cela”, falaba como os pintores ou os arquitectos ao evocaren unha realización gráfica instintiva, sobre se estaba a falar de que a xusteza non viña do razoamento mais dunha decisión do corpo (Biasi 2002: 100).
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Dunha perspectiva complementar, reiterando a confluencia e a analoxía de modos plásticos e escriturais, tamén Mário de Andrade, no comezo do seu artigo «Do Desenho», caracterizara o obxecto das súas lúcidas reflexións nos esvaídos moldes deste espazo fronteirizo que el adxectiva, significativa e equivocamente, de ‘antiplástico’: O que me agrada principalmente, na tão complexa natureza do desenho, é o seu caráter infinitamente subtil, de ser ao mesmo tempo uma transitoriedade e uma sabedoria. O desenho fala, chega mesmo a ser muito mais uma espécie de escritura, uma caligrafia, que uma arte plástica. Creio ter sido Alain quem chegou até o ponto de afirmar que o desenho não é, de natureza, uma plástica; mas se há exagero de sistema numa afirmativa assim tão categórica, sempre é certo que o desenho está pelo menos tão ligado, pela sua finalidade, à prosa e principalmente à poesia, como o está, pelos seus meios de realização, à pintura e à escultura. É como que uma arte intermediária entre as artes do espaço e as do tempo, tanto como a dança. E se a dança é uma arte intermediária que se realiza por meio do tempo, sendo materialmente uma arte em movimento; o desenho é a arte intermediária que se realiza por meio do espaço, pois a sua matéria é imóvel. Mas o desenho, da mesma forma que as artes da palavra, é essencialmente uma arte intelectual, que a gente deve compreender com os dados experimentais, ou melhor, confrontadores, da inteligência. É fácil de provar êste caráter antiplástico do desenho. Êle é, ao mesmo tempo, um delimitador e não tem limites, qualidades antiplásticas por excelência (Andrade 1961: 71).
Dando máis un paso e seguindo “sub aliena umbra latentes”, isto é, no manto da senequista ‘sombra allea’, nese purgatorio escrito-pictural, sitúase así mesmo, convicto e confeso, o extraordinario pintor (e escritor) Júlio Pomar, cando no seu longo discurso poemático TRATAdoDITOeFEITO, manifesta que, no seu proceso pictórico, “A mão é que vê. E manda” (Pomar 2003, XIII, 77)1, glosando “a mão vigilante e autónoma” de António Lobo Antunes. Na mesma dirección, o poeta galego José Ángel Valente no final do ensaio dialogado «El arte como vacío», –en que, xunto co crítico Francisco Calvo Serraller, conversa co escultor Eduardo Chillida– lembra, a respecto dun documental de Clouzot en que se ve pintar a Picasso cunha transparencia, “la cantidad de rayas que hacía, se ve una mano que busca, y eso me hace recordar una idea que está en Leonardo, que habla de la mano pensante, que es muy bonito. El pensamiento del pintor está en la mano, esa mano piensa; y la mano de Picasso iba tanteando y provocaba entonces el encuentro con la forma. Yo creo que eso es absolutamente decisivo” (Valente 2002: 134). E tan decisivo! Non só para o exercicio matérico da pintura e da escultura, mais tamén para o acto da escrita poética da propia obra valentiana2. É así que, coa (para)poética contida 1 Acrecentando de maneira converxente e complementar que, como xa por outros e con outras palabras fora dito, “o maior dos pintores de Lisboa [é] o poeta Cesário” (Pomar 2003: XXXII, 119). 2 Este carácter táctil, que aúna creación plástica e escritural, prolóngase no entrecruzamento doutros sentidos. Como ten dito Antonio Monegal, a respecto dun aforismo do poeta sobre a linguaxe, onde se interroga sobre “un oír de la mirada”: “Segundo el, tanto na escritura como na pintura é co ollo co que se oe o silencio. Este paradoxo xerado pola sinestesia quere acoller o límite do dicir e búscao nunha arte allea” (Monegal 2003: 21-22).
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no poema XXVI da luminosa obra El fulgor (1984), expresa esta súa convicción como unha das formas de entender a creación xenesíaca desde a ‘nada’ (Valente 1995: 174): Con las manos se forman las palabras, con las manos y en su concavidad se forman corporales las palabras que no podíamos decir.
Á vista destes catro diversos testemuños –que, aliás, de así o desexarmos multiplicariamos sen maior dificultade–, poderiamos, pois, defender como unha das divisas en pintura e, especialmente, en deseño que a man pense máis do que o cerebro, do que a cabeza? Poderiamos, en diversa dosificación, a respecto de non poucas tendencias e artistas plásticos3. Mais, poderiamos, en aproximativa correspondencia, defender así mesmo en literatura e, en particular, en poesía, como unha das divisas –ben é certo que modulada “ad hoc”– que a man pense tanto como o cerebro, como a cabeza? Poderiamos, tamén e en non menor medida, a respecto de certas escritas e escritores4. Para alén desta conceptualización relacional, é máis do que sabido que a antecitada (con)fusión é unha verdade procurada e consistente no tempo, entre outras, nas escritas pictorizantes orientais e/ou musulmás, mentres que nas occidentais, dependendo da vontade de correntes e individuos, o seu percurso se nos aparece historicamente como máis ocasional e sinuosamente oscilante. Ítem máis, non se pode negar que a influencia e a afluencia do modo oriental e, en especial, das escritas chinesa e xaponesa5 actuaron non pouco para que, entre nós, esta vía de reciprocidade e transitividade plástico-escritural se robustecese nos dous últimos séculos. Ben é certo tamén que, no máis recente, actuou sobre un terreo previamente aboado, no material, polos avanzos das técnicas tipográficas de edición impresa e, na práctica, polas chamadas ‘vangardas históricas’ –de xinea mallarmeana neste campo– e por algunhas das tendencias artístico-literarias que as precederon e alicerzaron. Ora ben, co visualismo e co concretismo poéticos e mais coa integración do escrito no pintado das liñas plásticas expresionistas e abstractizantes da segunda metade do século pasado, este exercicio de aproximación e confusión –de que se deriva e en que conflúe a varia
3 Aténtese, ademais, a que, antes da era que Walter Benjamin denominou da “reprodutibilidade técnica”, a imaxe reproducida (por exemplo, do gravado) conservaba a aura do tremor da man, a comunicación íntima e directa co pensamento, coa impactante invención. 4 Preguntas e respostas dúplices, en que somos conscientes de que estamos a distinguir, cerebrina e artificiosamente, dous ámbitos artísticos que, en significativos e diversos autores, se confunden pola dupla obediencia da súa actividade creativa. 5 A que o escritor Miguel-Anxo Murado se refería, no seu suxestivo Caderno de Xapón, con estas palabras: “A polémica, tan occidental, entre cultura visual e cultura escrita perde aquí todo o seu sentido, toda a súa falsidade. En chinés e en xaponés (aínda que en menor medida), ler é ver” (2001: 36).
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maneira caligráfica– foi para alén do caligrama á Apollinaire ou á Huidobro e das ‘palabras en liberdade’ á Marinetti, a que tan sensíbeis foran tanto os dúplices mo(ve)mentos vangardistas da primeira metade do recén pasado século como a escrita máis ou menos contundente dos poetas –paradigmáticos neste campo de diluición de limites– Manuel Bandeira, Manuel Antonio ou Almada Negreiros, por só citar algúns nomes de entre o oceano nominal posíbel e restrinxíndonos aos ámbitos literarios brasileiro, galego e portugués. De feito, o paradigmático –e, a varios títulos, xenesíaco– coup mallarmeano (Jamais un coup de dés...) e as súas derivacións na modernidade foron deglutidos e transformados, entre moitos outros, polos poetas concretistas portugueses (Melo e Castro) e brasileiros (Haroldo e Augusto de Campos), preferentemente nas súas obras das décadas de ’50 e ’60, marcando unha relativa prolongación neste campo e continuando a esclarecer a sempre difícil relación entre o ‘visto’ e o ‘escrito’, un (a)gravando o outro6. Aleatoria viaxe memorística por vía dos “exempla”: desde a poesía para a plástica caligráfica Le passage du dessin à l’écriture, et vice versa, est chez Michaux une obsession. C’est une question également fondamentale pour toute l’histoire de l’art du XXe siècle. [Michel Butor]
Destarte, nese produtivo e hibridizante espazo literario e servíndonos da memoria aleatoria por via dos “exempla”, lonxe de calquera ar de catálogo, chegue con lembrar, como realizacións ‘tanxentes’ e/ou ‘secantes’ da utopía dunha escrita poética entre palabra e pintura que, en diverso grao, ultrapasaron o modo estabelecido pola vangarda primeira e evoluído polo concretismo, varias de relevancia –e diferentes intencionalidades– no último século. En primeiro lugar, percorramos con brevidade e ponderación a obra do poeta portugués Alexandre O’Neill, quen, nunha das múltiplas (a)partes do seu poema «Mãos» –primeiro do volume Abandono Vigiado de 1960–, por medio do eu poético pregunta a um admirado pintor “que desenho, que desígnio traça a tua mão?” (O’Neill 1984: 110) –como a reasumir a sentenza “Disegno, segno di Dio in noi” que Zuccari xa acuñara no século XVII–, inseríndose no campo da reflexividade por volta do poder creador picto-escritural do xesto manual. Noutra das (a)partes, no ‘comedido’ soneto «A mão de trinta anos» (O’Neill 1984: 110-111), insistía (para)teoreticamente o noso poeta en que: Não posso abandonar-te, minha mão, na folha onde te moves por meu querer. Que jeito ou arte, só, a escrever, te levaría a não fugir, a não
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Relación, aliás, que tende á fusión no ámbito do hipertexto visual na ‘internet’.
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dizer o que de mais deves saber?... Cala-te em cinco dedos: como um cão sê fiel e contente, minha mão, que, presa a mim, podes saltar, correr... Neste céu de papel, se queres ser ave, vai-me voando comedidos versos, com uma ou outra audaz arritmia... Formal, impossessiva e tão suave, que de ti digam, mesmo os mais perversos, “Que mão ordeira e que caligrafia...”
Xa no campo da plasmación concreta, salientemos tamén os vinte e oito textos e (orto)grafismos que constitúen a segunda composición da obra antecitada, intitulada «Divertimento com sinais ortográficos». Neste heterodoxo e salutar poema grafado, os sinais, nunha outra escala gulliverizada de xigantismo, son (des)colocados e comentados na súa propia voz con ironía ou con sarcasmo, con frieza ou con distancia, mais sempre con humor espiritoso e intenso ludismo7. Véxase como mostra significativa a expresión figural transmitida polas ‘voces’ do fino (“En certas caligrafias quase voo / como uma andorinha destelhada”) e do groso til de nasalidade (“Noutras, / sou sobrancelha franzida”), na textualidade que acompaña á dúplice e redimensionada representación deste signo gráfico isolado (O’Neill 1984: 129-130):
Em certas caligrafias quase voo como uma andorinha destelhada...
Noutras, sou sobrancelha franzida.
7 De que tamén participa, por só pór unha complementar mostra extrapoética, o extraordinario cronista e memorialista brasileiro Pedro Nava (1903-1984) nos seus xogos interpretativos cos números descifrados, presentes nos seus coñecidos Cadernos (o segundo e o terceiro publicados postumamente en 1999): “6 – bunda grande em mulher magra; 9 – peito grande em mulher magra [...]. O aspecto cisneal e deslizante do dois – 2”.
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Mais non son estes os seus únicos poemas perturbadoramente visuais, contundentemente gráficos ou referencialmente pictorizantes. Unha parte significativa da obra ‘segunda’ de O’Neill supón unha mostra significativa da pervivencia irónica e distorcida da corrente caligramática en paralelo a tendencias que a ultrapasaban. De feito, poderíase defender que este noso autor prolonga, con sinuosa coherencia, liñas xeradas na súa escrita como compoñente principal do Grupo Surrealista de Lisboa (movemento de que se desolidarizou explicitamente en 1951) e, de maneira xenérica, como heterodoxo e inicial compañeiro de viaxe dunha certa poesía (para)concreta. Nesta experimental liña de práctica (a)poética8, o texto «O macaco (Valsa lisboeta)», un dos Poemas com Endereço de 1962, é presentado polo autor axeitadamente como “Comentário a desenhos de Júlio Pomar” (O’Neill 1984: 191-192): Nunca se sabe até que ponto um macaco pode chegar na ânsia de nos imitar Dizem alguns autores
ser o macaco
difícil de apanhar –mas não Em qualquer mundana reunião num ombro numa frase num olhar no jeito «humanista» de falar aí temos o macaco a trabalhar procurando aproveitar a confusão Pessoalmente sou de opinião que o macaco é fácil de caçar até à mão. 8 En que se move grande parte da súa obra a través de moitos outros procesos que se acrecentan ao que agora focamos en especial. De feito Eduardo Prado Coelho chamou a atención sobre o carácter imposíbel do seu lúdico exercicio (a)lírico e radicalmente antitradicional, como ben resume o propio título paradoxal dun seu artigo sobre «A impossibilidade da poesia na poesia de Alexandre O’Neill».
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Para alén do motivo e a ‘citación’, xeradores circunstanciais do texto, o “comentario” (a)parece perante os nosos ollos en comparación implícita e ambigua entre o macaco e o ser humano (tamén sobreentendendo o artista de dupla obediencia e a obediencia á duplicidade artística pomariana)... “procurando / aproveitar / a confusão [...] / é facil de caçar / até à mão” (con-fusión da cal escribe e deseña). Nótese que é, no ámbito da (auto e extra) referencialidade, onde coincide a disposición versal da poesía propia e a acumulación de trazos do deseño alleo. Ao lúdico catálogo de xogos espaciais do ámbito dun actualizado ‘bestiario’ particular o’neilliniano –desculpen o anómalo neoloxismo–, aínda se pode acrecentar, entre outros, o mínimo texto «Pulga», que forma parte do poemario de 1965 Feira Cabisbaixa (O’Neill 1984: 254). Nel, o mestre de humoristas constroe, reforzándoa visual e tipograficamente, unha brillante e intempestiva paronomasia explícita entre “pula” e “pul(g)a”: Pula pula g como o g da pul a.
Neste caso, non é o referente plástico nin a caligrafía-xesto manual as que, como acabamos de ver ou máis adiante veremos, significan, mais o salto no interliñado do mecanoscrito e a comparación “ad hoc” do movemento natural do insecto co forzado e artificioso da letra os que xeran o “time lag”, o principio de efecto retardado base da doseada percepción mental de consecuencias referenciais humorísticas. A teimosía en utilizar as múltiplas posibilidades expresivas da espacialidade permanece como unha teimosa constante co paso do tempo na máis do que interesante obra do autor de Entre a Cortina e a Vidraça. É así que poderiamos reproducir finalmente –entre outros moitos posíbeis– o poema «Digitamor» (O’Neill 1984: 326), pertencente á obra de 1972 agora referida: HMM POIS TRÁS QUARTO BRINCO SEI METE DOU-TO (OUVE) ? Z I D
Dificilmente se pode negar o carácter de poema concreto evoluído para este conceptualizante texto estruturado de maneira anticonvencional e antivangardista.
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Por outro lado, o percorrido destes textos ‘exemplares’ –e en especial do último reproducido– indician a subversión que O’Neill introduce nos modos caligramáticos e espacializantes de teor ‘tradicional’, supondo unha especie de revitalización-outra destes, ao tempo que a súa secuencia evolutiva deixa ver un progresivo distanciamento da sintaxe lingüística “come il faut” –de inicio reforzada redundante e visualmente nos seus valores, en especial semánticos–, ao substituíla por unha máis aséptica e polivalente xustaposición espacial de carácter (a)relacional, máis abstracta a respecto das categorías gramaticais e dos significados isolados do material lingüístico utilizado. Se podemos ver como o poeta portugués, nunha das liñas mestras da súa poética conceptual e escritural, procura unha expresividade plástica de teor ‘secante’ nos territorios fronteirizos e interartísticos de que estamos a falar, con parte da obra do pintor mallorquín Miquel Barceló podemos acompañar o camiño inverso: como, desde os presupostos da súa creación pictórica, un seu particular grafismo (para)escritural se constitúe nunha compoñente basilar de non poucos dos seus extraordinarios traballos plásticos. O illeu balear definiu a pintura de seu (isto é, a coherencia da súa indagación da condición humana) en síntese poética: Os teus pigmentos son as cinzas da vida. Procura, pois, que conserven unha sombra do lume que te queima.
É así que, aínda que supoña un leve desvío lateral na nosa disertación, esperamos saiban desculpar o excurso deste paréntese en que, por nos permitir mudar a perspectiva, achamos pertinente abordar un seu traballo9 que, no noso entender, supón un exemplo axeitado de realización ‘paralela’ nese espazo fronteirizo das confluencias do escribir e do debuxar, do plástico e do literario, partindo da base do expresado por Klee: “escribir e debuxar son semellantes no seu fondo”. Pois ben, Barceló ambiciosamente ilustrou e (re)interpretou –como el mesmo dixo, coa intención de edificalo de maneira paralela ao texto– os dantescos «Inferno», «Purgatorio» e «Paraíso» da Comedia, que o tempo e a súa impronta adxectivaron de Divina. De feito, este proceso ‘ilustrador’ –que supón unha auténtica redención desta práctica non raramente deostada nos actuais tempos10– afírmase porque texto literario e ilustración dialogan nunha peculiar reciprocidade, porque a imaxe non quere ser só unha redundancia, mais un real acrecentamento poético-significativo. Neste suxestivo e innovador traballo, ao “aggiornamento” e á actualización11 en que, por exemplo, se introduce o fenómeno do terrorismo ou acrecéntanse, coas técnicas da
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Publicado en tres volumes polo Círculo de Lectores español nos anos 2002 e 2003.
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De que pode ser paradigma a seguinte afirmación do pintor Bacon: “En arte, non hai nada máis aborrecido do que a ilustración”. 11 En que as barcas cargadas con almas e con condenados remiten para as “pateras” de emigrantes africanos á procura da Europa que cruzan o estreito de Xibraltar. Ou, con maior precisión, unha barca con condenados que dela se penduran tentando volcala ao atravesar o río Flexetonte, cunha contraposición violentísima de verdes e marróns de grande e suxestivo poder simbólico-tautolóxico.
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aguarela, da colaxe e mais da tinta da china, a iconografía particular e, moi especialmente, os grafismos propios –a que agora remitimos en especial– deste grande artista plástico –e non desprecíbel escritor– da nosa contemporaneidade. Miquel Barceló ilustrou de maneira impresionista e ‘esbozadora’, deixando a un lado a inclinación gótica ao detalle descritivo do poema dantesco, como o último dunha longa serie de pintores, de predecesores ilustres, que se puxeron ao servizo do poema (de Botticelli a Blake ou Dalí). Barceló interpreta a partir dunha dialéctica exasperada entre a cor e a figura. A liña só ten a función de recortar a mancha cromática sobre o fondo branco da páxina, nunha mostra de liberdade paralela á que Dante sentiu ao final d’A Divina Comedia, ponderando o peso da “terza rima” como un impositivo corsé. Non é resultado da casualidade o feito de Júlio Pomar ilustrar tamén A Divina Comédia –O Purgatório12, con idéntica actitude que a mostrada para os seus escritos, pois Júlio Pomar traballa a lingua, igual que a pintura. Liña de forza de que dan testemuño estas súas palabras tiradas do máis que lúcido Discurso sobre a pintura: “Escrevo e reescrevo do mesmo modo que me sinto puxado para pintar e, sobre a forma pintada, inscrevo uma forma nova”. O punto de chegada de Pomar (antes) e de Barceló (despois), nesta ilustración paralela da mesma obra, supuxo o fin dunha dupla viaxe para a caligrafía desde a pintura, por medio da súa escrita e reflexividade interartística13. Mais non é a actualización posvangardista e posconcretista, desde a órbita dos ‘pintores-escritores’ e/ou dos ‘escritores-pintores’, o único elemento contextual de relevancia, na segunda metade do pasado século, para a (re)consideración do interartístico trazo caligráfico como fenómeno propositadamente pictorizante. É así que, por exemplo, José Ángel Valente, poeta dunha escrita gravitante sobre un certo pictórico, tamén coloca nun contexto orientalizante a caligrafía, a pintura e a poesía cos seus ensaios críticos sobre arte e artistas recompilados co título de Elogio del calígrafo. Ensayos sobre arte (2002): “¿Que puede haber en definitiva –me pregunto– detrás de un objetivo fotográfico, sino una teoría de la paciencia, de la penetración y de la duración del mirar?” (Valente 2002: 27), pregúntase no ensaio «Imágenes para una pasión», onde se achega ao libro España oculta da fotógrafa Cristina García Rodero. Item máis, no moi belo e agudo ensaio «Elogio del calígrafo» (ABC, Madrid, 7-22001), o autor de Cantigas de alén, falando da figura do seu pai cando caligrafaba, lembra que “había en esa figura de mi padre, en la soltura de su mano, en la ligereza de su muñeca y su antebrazo, en la falta de arrimo a todas cuantas cosas no fueran sus propios rasgos o sus trazos, algo que significaba una clara relación corporal con la escritura”, para a seguir ligar aquela actitude paterna á técnica pictórica e caligráfica chinesa no manexo do pincel e para relacionala coa “sensibilidad extremoriental”, afirmando que na tradición chinesa –e non só– “pintura y caligrafía son, en realidad, la misma cosa”, que “la pintura se escribe”, e que,
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Editorial Minotauro (Lisboa, 1961).
Posta en evidencia, no caso de Pomar, no contido das agudas entrevistas de Bernardo Pinto de Almeida e de Virgílio de Lemos no lisboeta Jornal de Letras, Artes e Ideias, respectivamente de 20-08-85 e de 03-03-86.
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estimulándose e inspirándose coa lectura de poemas, nace a “visión interior”14. Eis dubitativamente manifesta a relación interartística: “Caligrafía, pintura, poesía. ¿Un solo cuerpo? ¿Una sola materia?” (Valente 2002: 32-34)15. Actitude monomatérica a respecto do ‘impulso caligráfico’ de que Juan Ramón Jiménez tamén participa, como é comprobábel nos poemas caligrafados da obra, recentemente recuperada, Una colina meridiana (1942-1950)16, ou que preside a white writing, a linear ‘escrita branca’, do pintor estadounidense Mark Tobey, influído pola técnica caligráfica chinesa, xaponesa, árabe e persa posta ao servizo da non intencionalidade, do descondicionamento zen e do dominio na obra da natureza, do tránsito do horror para o amor ao vacío, da simplicidade na procura da máxima significación, do ‘borrarse’ ou do ‘apagarse’ próximo, en sentido amplo, do emblemático ‘acto de pintar’17. Ora ben, se hai un autor que supón o paradigma do romancista, do ensaísta críticoreflexivo sobre a arte e a literatura, do poeta e do artista plástico como actividades solidarias, recíprocas e transitivas, que representa tamén a teimosa práctica experimental dunha escrita do teor dun grafismo entre imaxe e linguaxe, este é o escritor plasticizante Henri Michaux coas súas emblemáticas obras ‘caligráficas’18. Na escrita das mesmas, resulta unha característica fundamental o uso da elipse. Isto é, como ten afirmado Jean Roudaut, faltan as relacións, as sensacións xustapóñense e o espazo e o tempo son discontinuos. Neste seu evoluír para a confluencia da escrita na plástica caligrafizante, é de especial relevancia o feito de, en 1967, Michaux comezar a investigar coas pinturas acrílicas –aliás, tan caras ao noso Reimundo Patiño, de que logo falaremos–, xunto con outros materiais ‘pouco nobres’ da ‘era do plástico’. Acho que co paso do tempo se foi adquirindo a conciencia da importancia da obra de ‘dupla obediencia’ do escritor e pintor Henri Michaux para a cabal comprensión e o procurado desenvolvemento equilibrado dun dos múltiplos e posíbeis camiños das relacións transitivas e recíprocas das artes plástica e literaria. Cando programaticamente defendeu para o proceso da creación artística as rotas deseñadas pola falta de voluntariedade –que podería ser sintetizado co seu axioma “la volonté, mort de l’Art”–, o inventor de Plume sitúase, con clareza, na órbita dos ‘deseños cinemáticos’ ou dos por el propio chamados “dessins de
14 Que, como o propio poeta lembra noutro lugar falando de Eduardo Chillida, denominaba Kandinsky ‘necesidade interior’ (Valente 2002: 37). Por outro lado, para contextualizar axeitadamente a reflexividade expresiva interartística de Valente é preciso termos presente que deostaba “la deriva locuaz de la crítica de arte” e a “escritura vaga o delicuescente” que soe xirar por volta da pintura (2002: 43 e 147). 15 Aínda que é tamén certo que o xa recuado recoñecemento da caligrafía como expresión artística independente se debeu en parte ao desenvolvemento da escrita cursiva (“escrita herbosa”), que libertou os letrados da angulosidade convencional da “escrita clerical”. Todo isto sucedeu por volta do século III da nosa era. Por outro lado, no final do s. VI, modifícase o gosto chinés pola expresión abstracta de ritmos lineares. 16 Remitimos ao lector aos poemas caligrafados da man de Juan Ramón Jiménez na sección sen paxinar de «Facsímiles» da edición intitulada como o poemario (Jiménez 2003). 17 Para un maior desenvolvemento do aquí expresado en síntese, remitimos ao lúcido e ‘comprensivo’ ensaio de José Ángel Valente «Mark Tobey o el enigma del límite» (2002: 47-53). 18 Con todo, hai que considerar que dixo de si mesmo o seguinte: “Nacido nunha cultura verbal, pinto para descondicionarme”.
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désagrégation ou de réagrégation” que, en 1966, desenvolven os seus ‘deseños mescalinianos’ realizados e expostos nos sete anos anteriores, dando así máis un paso no seu percurso plástico e, tamén, na súa comprensión da pintura como un modo privilexiado de ir ‘afrouxando as alxemas das palabras’. Por outro lado, é nese contexto libertador e intuitivo que se poden inserir as ‘composicións pictográficas’ hibridizantes que o obsesionarán: dos Dessins commentés (1934), primeiro dos textos de Michaux composto a partir dos seus propios deseños, ou das ‘páxinas de signos’ de Mouvements (1951), até o derradeiro libro publicado por Michaux uns meses antes do seu pasamento, Par de traits (1984), en que aborda a desexada utopía sígnica da unión da escrita e do deseño. Nesta condensada explicación do percurso michauxiano, non podemos deixar de referir o “Prefacio” de 1970 á La Calligraphie chinoise de Tchang Long Yan, convertido posteriormente na obra Ideogrammes en Chine, que se pon en relación retroactiva como “essai d’écriture” co deseño, en outubro de 1927, dos seus dous primeiros alfabetos, «Narration» e «Alphabet». Téñase en conta que Michel Butor, nas súas Improvisations sur Henri Michaux (1985), dixo do artista que procurou concretar “le grand rêve idéographique d’une langue universelle”, cun referente chinés de “raffinement oriental de l’écriture”. Michaux acode á pintura da alteridade: con técnicas orientais pictórico-caligráficas –co “mostrar disimulando” oriental de que falara Foucault–, cos ‘modos’ dos alienados e dos infantes e mais coa peneira distorcida das experiencias coa mescalina e co ácido lisérxico. De todas as maneiras, nestes contornos ambientais en que estamos a movernos coa finalidade de encadrar os referentes culturais da actividade caligráfica de Uxío Novoneyra, resulta especialmente relevante a chamada de Michaux aos pintores seus contemporáneos: “Les peintres aujourd’hui devraient être fascinés par une autre perspective que la fameuse perspective à l’italienne”. O seu encontro coa caligrafía e a pintura chinesas19 permitiron a Michaux pór en práctica a “perspective du dedans”. Esta perspectiva é ante todo unha perspectiva de conxunto, onde as cousas se presentan simultaneamente. Exixe un ollo móbil, ‘mouvant’ e, por así dicilo, múltiplo e deslizante. Reencontra, pois, a perspectiva chamada “dos puntos dispersos” da pintura chinesa. O pintor e teórico Guo Xi (1020-1090) instaurou esta perspectiva. Nela o “alto-lonxincuo” designa o estado en que a ollada se encontra debaixo dunha montaña e se xira para o cume; o “profundo-lonxincuo” mostra o momento en que a ollada se encontra diante dunha montaña e tenta ollar o que está detrás; o “chan-lonxincuo” indica a situación en que a ollada se encontra á mesma altura que a montaña e percibe montañas máis distantes. Esta perspectiva ten de diferente a respecto da occidental que, como nunha pintura cómpre respectar simultaneamente os tres principios, a ollada non pode fixarse nun só punto; os tres “lonxincuos” non poden ser asegurados por unha única ollada que non se move: solicita esa ollada móbil que leva á perspectiva global e a ultrapasar o superficial20.
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Lémbrese que os textos fundadores chineses eran auténticos e indiferenciados “tratados de pintura e cali-
grafía”. 20 Considérese que a perspectiva cubista é unha perspectiva “du dedans” á occidental. Para Michaux, Magritte resolveu, revolucionando a pintura, o paradoxo creado entre as dúas perspectivas (occidental e oriental) totalmente opostas: el está á vez dentro e fóra.
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Para o pintor chinés –especialmente o de paisaxes–, a pesar da importancia dada á aparencia natural, as leis da perspectiva occidental non interesan, porque as paisaxes deben ser vistas “do ángulo da totalidade para se percibir a parte” e non dun punto determinado. El pinta un estado de espírito, non un espectáculo, ademais de que a noción de acabamento era –e, en certa medida, é– ignorada polo pensamento chinés. De aí o esbozo e a consideración de que a impresión de estar concluído non sería verdadeira. Os chineses –e non só, entre os orientais– resolveron os problemas do espazo e a representación en profundidade21. E todo isto resulta de sumo interese porque o poema non só ten unha cadencia, unha musicalidade, senón que pode recorrer ao xogo visual que permite a escrita chinesa. De feito, nos textos antigos ou tradicionais, a forma gráfica dos caracteres pode dar –e dá– moita información. Lembremos, aliás, que a poesía chinesa, pintada con pincel lírico, é integrada dentro das artes plásticas Os contornos próximos da (cali)grafía e a poética de Uxío Novoneyra Le dessin? C’est un silence noir sur le bruit blanc. [Frédéric Pajak]
Entremos, pois, nos contornos próximos da corrente da obra caligráfica que, entre nós, adquire un grande relevo na máis do que interesante e significativa obra do poeta do Courel Uxío Novoneyra (1930-1999). Ben é verdade que, sen as xenéricas e previas liñas mestras de contextualización epocal e tendencial, a obra caligráfica de Uxío Novoneyra podería ser ‘lida en campo aberto’, isto é, percibida sen calquera información previa. Non obstante, coidamos que só alcanzará a súa exacta consideración cando o seu exercicio de escrita-pintura neste campo aparecer integrado no(s) seu(s) moi significativo(s) contorno(s). A impronta da visualidade e da plasticidade asociadas á creación lírica traspasan a poesía de Novoneyra case desde os seus comezos nos anos ’50. A produción desa década viu a luz no courelán e excepcional poemario Os eidos (Vigo, 1955) e na edición bilingüe galego-castelán de Elegías del Caurel y otros poemas (Madrid, 1966). Ora ben, vai ser coa aparición do volume Os eidos 2 (1974), axeitadamente presidido coa epígrafe de Libro de olladas que o subtitula, e, noutro sentido complementar, cos Poemas caligráficos (Madrid, 1979), que a omnipresenza do gráfico e a importancia do ollar comecen a adquirir unha máis do que relevante entidade. Afirmar que, como punto de partida, o noso autor foi, da relixión do exercicio caligráfico evoluído, á vez o noso Papa e o noso primeiro Ateo, non sería descabido.
21 Existen, a pesar de todo, dous tipos de pintura chinesa ao longo da súa historia: unha, académica, ecléctica e decorativa (escola académica que nos tres últimos séculos quixo incorporar o claro-escuro, o sombreado e a perspectiva europea); outra, libre, caligráfica e subxectiva (escola letrada que non quixo incorporar principios occidentalizantes, pois defendía a tradición da pintura espontánea).
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Sabemos que toda obra se articula por volta dun(s) tema(s) dominante(s). Sabemos tamén que para Novoneyra esa dominancia primeira está presidida polo tema do Courel, metonimia da Galiza verdadeira e distante reflexo do Mundo auténtico, a partir da cal o autor se serve, para a súa elaboración poético-gráfica, do que en termos musicais é coñecido como ouvido absoluto a que nada se lle escapa. Nestes parámetros xerais, non estariamos moi lonxe da verdade22 –a respecto dunha poesía que se serve dunha contención do excesivo que xoga co sagrado, o profano e o pagán–, se resumirmos a poética novoneyriana nunha especie de radiografía constituída con parellas de conceptos substantivados como proceso e (re)creación, horacianismo e (re)escrita, procura e perfección, depuración e concentración, coherencia e sinuosidade, deglutición e integración, esencia e inefabilidade, precisión e evocación, contemplación e ensimesmamento, vitalismo e dor, memoria e continuidade, pasado e futuro etcétera. Tamén non estariamos moi distantes dunha relativa imaxe temática de conxunto, de usarmos parellas de conceptos adxectivados como telúrico e cósmico, naturalista e ‘metapaisaxístico’ (Blanco 1996: 1258), político e (inter)nacionalista, existencial e amoroso, persoal e social, (neo)trobadoresco e popular, vital e reflexivo, (in)formalista e rito-litúrxico, cívico e ‘vaticinante’, ‘pannaturismo’ e misticismo, panteísmo e profanación, simpatía e simbiose, interior e exterior, obxectivo e subxectivo, deseuización (entendida como desprendemento do ‘eu’) e alteridade, outridade e identidade, antibucolismo e animismo, personificación e cousificación etcétera. Trazos poéticos e temáticos filtrados, finalmente, por novos pares referenciais como plástica e escrita, palabra e pintura, tipografía e caligrafía, oralizante e escritural, falada e escrita, vangardista e tradicional, auditiva e visiva etcétera. Aínda sendo conscientes de que lle acontece o mesmo á palabra-concepto ‘Poesía’ que a ‘República’–canto máis se lle acrecentaren adxectivos (socialista ou islámica, por exemplo) máis podería dexenerar no seu contrario–, coidamos que, como unha cartografía ben xeral, a radiografía que vimos de expor pode servir para aproximarse cun aquel de sentido á complexa obra do ‘aedo bárdico’ d’Os Eidos, mesmo téndonos visto impelidos a utilizar, por veces, o oxímoro como figura de caracterización23. Dúas son as influencias indirectas ou as afluencias substanciais que conflúen na poética caligráfica do noso autor: unha de base literaria, o coñecemento ‘ruminante’ da poesía oriental, e outra de base plástica, o grafismo abstractizante pollockiano. A respecto da primeira de base literaria, Uxío Novoneyra alicerzouna inicialmente –pois ao longo da súa traxectoria foi aprofundando neste seu ‘saber’– co seu amplo e profundo coñecemento da antoloxía de poesía chinesa de Marcela de Juan, que caera nas súas
22 E na súa procura, permitímonos remitir á introdución ao conxunto da obra do noso autor que supón o excelente estudo de Carmen Blanco «Uxío Novoneyra: poesía, terra e compromiso» (1996). 23 Por exemplo, na introdución da angustia como ‘antipatía simpatizante’ ou ‘simpatia antipatizante’ á maneira de Kierkegaard. Utilización, por outro lado, que poderiamos resumir cun oxímoro final a respecto do conxunto da súa poética actitude, no ámbito da técnica e da tematización: “revolucionaria e conservadora”.
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mans en Madrid e que, como nos comentou o seu amigo e colega poético da altura, o recentemente falecido escritor Manuel María, sabía de cor24. Resulta significativo que a antóloga faga referencia á “morriña da miña terra” (Juan 1948: 11) –así en galego–, nas páxinas prologais á antoloxía antes referida, para sinalar a nostalxia do rincón nativo que a poesía oriental ultrapasa. Nostalxia que, entre nós, integra a saudade: liña poética de enorme impronta na primeira metade do século e que Novoneyra retoma e estiliza tamén por esta vía, como unha consecuencia lateral ao que aquí nos ocupa. Xa no que di respecto á segunda influencia ou afluencia de base plástica, sígnica e pollockiana, Uxío Novoneyra tivo como guía ao pintor –e poeta– Reimundo Patiño, seu amigo e colega no coñecido grupo madrileño «Brais Pinto», de que ambos formaban parte e compartían o bifrontismo literario-plástico dos intereses dos seus integrantes. Neste sentido de influxo do plástico, poderiamos dicir que Patiño se situou “in loco parentis”. O útopico renovador Reimundo Patiño (1936-1985) exerceu nas artes plásticas galegas unha actividade a contracorrente durante moitas décadas. Home reflexivo e comprometido co “genius loci”, mantivo, en relativo paralelo co tamén polifacético e poliédrico pintor Luís Seoane, unha actitude de vangarda radical anticipada a respecto do contexto social, político e cultural en que se moveu. Como dixera de maneira sintética o crítico e poeta Xavier Seoane: Primeiros outorgadores deste estatuto de pioneiro da renovación criativa que no ámbito da plástica haveria de vir posteriormente, foron os membros do colectivo Atlántica, quen recoñeceron nele o criador individual e solitário –mas fortemente vinculado tamén aos acontecimentos e o devir colectivo social e cultural– que, no seio dunha longa noite de pedra en exceso delongada, soubo conectar, desde a xeral desinformación e notável caréncia de homologación da arte galega do seu momento, con pautas de renovación que havia no contexto internacional, sobretodo através do informalismo, da pintura matérica e do xestualismo, que ele tan ben coñecia, e do seu intento de facer coa tentativa en boa parte fallida do grupo “A Gadaña”, unha sorte de “El Paso” ou “Dau al Set” a nível galego, que puxera as bases dunha renovación cernal no ámbito das nosas plásticas da longa postguerra (Seoane 1992: 74).
Esas mesmas situación e actitude presiden a escrita da súa breve, mais intensa e profunda, obra poética redixida en Madrid nos anos 1958 e 1959. Publicada en 1992 baixo o título do poemario de xuventude Bandeiras neboentas. Oito poemas numerados dende a lonxanía –prologado polo poeta Manuel María no esvaemento de límites con que “nos agranda o mundo”, nos parámetros efectivos de “libro desesperado que queima como unha brasa” e na ponderación reflexiva do senso da “vida da morte”–, ora sitúase no ámbito temático da
24 Trátase da Breve antología de la poesía china, publicada en Madrid pola ‘Revista de Occidente’ en 1948. Ampliada e refundida en 1962, foi publicada pola mesma editorial co título de Segunda antología de la poesía china e, en 1973, de novo reformulada e acrecentada, en ‘El Libro de Bolsillo’ da madrileña editorial Alianza co título de Poesía china: del siglo XXII a. C. a las canciones de la Revolución Cultural.
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superación da morte e da multifacetada saudade25, ora instálase na (con)fusión amorosa, panteísta e cósmica, como eixos basilares do seu invulgar e expresionista (t)alento lírico. A teimosa interiorización da paisaxe dunha terra e dun mar inscritos nunha temporalidade espiralada e circular –a que como manifestara o seu curmán, o pintor Antón Patiño, tiña unha consciente querenza na súa “resonancia colectiva”26–, a comuñón desde un consistente panteísmo desenvolvido signicamente e mais o omnisciente visualismo que percorren o tecido poético son, por outro lado, tres das liñas de forza, das afluencias máis do que influencias, que, entre outras, ha compartir co poeta Uxío Novoneyra. Non é casual o poema non datado con que encerra a súa escrita poética (Patiño 1992: 69) que dedica ao seu admirado pintor Jackson Pollock –de maneira significativa, único nome dos seus múltiplos referentes artísticos que é mencionado ao longo de toda a súa escrita literaria: Foi onte Ou mañá, supoño, Amigo Jackson Pollock Cando xuntos agardamos Polas furnas do vento. Hai un camiño tan estraño Pra poder remoer os ollos no valeiro.
Pollock (1912-1956), un dos principais nomes do expresionismo abstracto, foi quen afirmou con rotundidade: “Eu non uso o acaso. Eu nego o acaso”. Dixo isto para indicar o control que exercía sobre a súa pintura aparentemente caótica e na cal o pincel non tocaba a tela –era usado para só atirar a pintura sobre as telas inmensas que estendía no chan. O pintor estadounidense, alcoólatra, tivo unha especial percepción de escala que o levaba á súa particularísima maneira de arranxar elementos dentro dunha tela27, sendo un dos grandes representantes da vangarda do século XX –xunto con Mondrian, Malévich, Kandinsky, Newman, Rothko e Still– que loitaron por conseguir a utopía dunha linguaxe plástica pura, autónoma e autorreferencial, como (de)mostrou John Golding no seu coñecido ensaio Camiños do absoluto. En fin, retomando a afluencia chinesa de que antes falamos, ten un grande interese o feito de na década de ’60 tornarse de interese para os calígrafos e pintores chineses a
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Que preside a obra desde a dedicatoria inicial: “Ti / Estabas / Xunta min / E eu / Non estaba só / Diante da
Saudade”. 26 Manifestación realizada no sucinto e lúcido texto «Mundo sen fin», que acompaña e introduce, como limiar “a posteriori”, a publicación da poesía de Reimundo Patiño, ao igual que tamén fai –e é– o «Prólogo» de 1960 de Manuel María anteriormente citado (Patiño 1992: 11-12 e 17-19) 27 Influencia do seu acompañamento dos traballos no Grand Canyon do pai, agrimensor, e mais das composicións e xustaposicións dos muralistas mexicanos David Alfaro Siqueiros e Diego Rivera.
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corrente occidental da “action painting”28, que, aliás, dez séculos antes tivera un precedente no expresionismo dinámico de varios pintores chineses imbuídos de un moi peculiar misticismo taoísta e da tendencia budista-zen (tch’an) irracionalista, na súa procura de expresar polo exaxero e a deformación a emoción da incomunicábel experiencia mística29. Mais non foi só no coñecemento de Pollock no que influíu Reimundo Patiño a Novoneyra, mais tamén coa súa filosofía: de feito a case divisa do pintor, “pintar de dentro a fóra”, podería ser perfectamente asumida polo poeta. Inxusto sería, ademais, non ver a influencia recíproca do poeta no pintor, a quen dedicou un dos seus non raros exercicios místico-caligramáticos (Novoneyra 1994: 73), que supoñen un desenvolvemento natural do seu (ab)uso do xogo co branco da páxina –de o preferirmos, con maior precisión, da experimentación co vacío chinés e co silencio: O TRIÁNGULO DO COUREL
Poderiamos multiplicar os exemplos en que unha certa “psicoxeografía emocional” do Courel ou de Compostela, un certo plano das liñas afectivas da expresión, se reflicte na disposición dos versos, no deseño versal, no escalonamento literal, isto é, sempre na exploración e explotación plástica do consabido negro sobre branco e/ou no procurado confronto da voz e do silencio. De todas as maneiras o que a fortuna crítica da súa obra realmente ten caracterizado como basilar é a estrutura temática e retórica de ‘haiku’ que, “mutatis mutandis”, resulta ser paradigma da súa poesía, tomando a parte polo todo e a fortuna crítica pola evidencia da verdade. Ora ben, o problema non está tanto na referencia que fagocita o conxunto dunha poesía plural, como no referente conceptual trivial que se manexa. Pois esquécese o que con exactitude impresionista dicía Paul-Louis Couchoud en 1906 –cando descubriu o ‘haiku’ aos franceses (Le Haïkaï: les épigrammes lyriques du Japon): que este modo poemático era un “coup d’oeil”, “une sensation nue”, “une note bien pincée dont les harmoniques expirent lentement en nous”.
28 Que ten o seu correlato na mesma altura e en plena voga occidentalizante na creación artística e literaria, na alianza do abstraccionismo occidental, das vellas técnicas pictóricas xaponesas, do informalismo e da transformación abstracta de ideogramas na obra do importante calígrafo e pintor Kosaka Gajin. Amálgama orixinal que, a posteriori, inflúe con forza tanto no Xapón como no Occidente. 29 Cun claro paralelo, para alén das súas rupturistas aportacións á banda deseñada, no retrato paracinético feito por Reimundo Patiño (1992: 43) por medio de liñas caligráficas do seu amigo falecido, o narrador Xoan Casal: “Xohan Casal no vento, na noite e na lembranza”, reza o debuxo.
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Para alén disto, unha das posíbeis e parciais definicións do ‘haiku’ –que nos parece especialmente axeitada a respecto de como o podemos percibir ‘traducido’ e, máis que nunca, ‘atraizoado’– di que “o ‘haiku’ é unha fórmula poética (xa o ideograma, en si, é unha enumeración de compoñentes, como a fórmula); como as fórmulas matemáticas non ‘narra’ senón que ‘expresa’, explica, demostra, conclúe. A relación entre as partes e o todo, esa é a verdadeira poesía do ‘haiku’, unha relación lóxica, racional, evidente” (Murado 2001: 118). Entre esas partes (e o todo), para alén da (re)coñecida oralidade fonosimbólica –sobre a que se ten debruzado o crítico Claudio Rodríguez Fer– de quen foi considerado moderno e excepcional rapsoda, salienta a integración do deseño nos poemas (ou, tal vez con maior exactitude, dos poemas no deseño) e o tratamento destes como obxectos extravagantes tamén plásticos, privilexiando a súa concepción e conformación visual. Sendo ben certo que Novoneyra libertou o seu discurso do método, de calquera método, detras da “ligne Maginot” da opinión común, do outro lado da “ligne Verdun” da idea recibida, poderiamos e deberiamos afirmar a súa obra como a dun paisaxista, como pintor e como poeta, ademais da dun calígrafo que se mostrou cunha anorexia escritural só usando das palabras con valor duplo (de uso e simbólico) e unha paralela bulimia plástica ou, para sermos máis exactos, de deseño. Porque, na súa obra, ‘o ollo escoita’30, Novoneyra foxe do “digest” para lectores apresados, distánciase do pseudoformalismo, que chaman os franceses da escola oralista “diction formulaire”, e mais céntrase no particular significativo –no sentido en que Michel Leiris dixo: “Plus c’est particulier, plus c’est universel”–, até o extremo de que podemos considerar Uxío como un poeta preocupado pola ‘dirección de lectores’ –no sentido en que Hitchcock declaraba facer non dirección de actores mais ‘dirección de espectadores’. Baste, neste sentido, con lembrar o combativo poema de 1968 «Vietnam Canto», subtitulado ‘poema oral e visivo’. Dando máis un paso na caracterización dunha certa poética novoneyriana, na exacta ‘figuración’ dedicada ao poeta31, Luís Seoane definíao “como home do Caurel, un poeta desta terra familiar do longo silencio das montañas, capaz de recollelo en versos e nos blancos da compaxinación, pra facer brilar cada verba. Tamén os seus manuscritos, os orixinales dos seus poemas, teñen un carácter gráfico axeitado ós seus propósitos poéticos, e sería moi bon que se editasen en edición que os reproducise” (Seoane 1990: 127).
Na longa traxectoria poética do noso autor, eses manuscritos orixinais, eses poemas caligráficos van aos poucos adquirindo un lugar central –aínda que non excluínte– na súa
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Servíndomonos do título do volume de 1946 L’Oeil écoute, en que Paul Claudel exercía como crítico de arte.
Intitulada «Uxío Novoneyra» e publicada o 9 de marzo de 1975, intégrase na serie «Figuraciós» con que o polivalente pintor e escritor colaborou dominicalmente de 1971 a 1976 no xornal La Voz de Galicia. Modalidade híbrida que teñen descrito Lino Braxe e Xavier Seoane con estas axustadas palabras: “En cada colaboración aparecia unha ilustración realizada por Seoane, de un personaxe que destacaba en algún ámbito da actividade humana, e ia acompañado dun texto en que realizaba unha semblanza [...]. A série baseaba-se, pois, nunha estreita relación entre unha imaxe anteriormente creada e un texto en que se glosaba a figura e a personalidade do representado” (Seoane 1990: 7).
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concepción plástico-poética, van asumindo a función dun regrado “feedback” de natureza apreciativa, cunha rendibilidade artística igual de distante do pleonasmo saturante, ou da tautoloxía repetida, do que da simple ilustración gráfica. En fin, por non andar de lado, como os caranguexos, ou por non ollar como unha avestruz e ir directamente ás cousas, refiramos só dous exemplos significativos da complexa e variada casuística dos usos caligráficos na poesía novoneyriana, obviando, en consecuencia, pretendermos un inventario clasificatorio dun corpus basicamente heteróclito, que, en todo o caso, ficará pendente para outro lugar en que reproduciremos a segunda parte deste estudo. Así pois, o texto que segue, do volume Do Courel a Compostela (1956-1986), deseñado “alla prima” con tinta da china e con trazos de “pentimenti” (isto é, de cambios de opinión do escritor ao trazar-deseñar), multiplica nas grafías as súas texturas e tamaños e, ao tempo, varía os trazos e as direccións na procura dunha representación plástica paralela no manuscrito da cita do escarño medieval de Joan Airas de Santiago: SÓ a inminencia do posible / o máis temido / pon a ave á seestra Compostela 1986
Ora ben, este uso do caligráfico a respecto da nosa lírica medieval non acaba co caso exemplar agora referido. Como proba de tal afirmación pode servir a apropiación, na prolongación da tendencia neotrobadoresca que preside unha grande parte da obra Arrodeos e desvíos do Camiño de Santiago e outras rotas (1999). En concreto o seu poema «Dicía Pero de Ambroa» (Novoneyra 1999: 132-133), para alén das formas (pseudo)medievalizantes á maneira de cantigas ou de trazos lingüísticos arcaizantes, está acompañado cun grafismo da denominación do trobador medieval que, en caligrafía novoneyriana, quere reproducir por aparente semellanza caligráfica as rubricas atributivas do humanista Angelo Colocci ou dos copistas dos cancioneiros apógrafos e quiñentistas italianos, Cancioneiro da Biblioteca Nacional e Cancioneiro da Vaticana, que nos transmitiron a súa obra:
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En fin, só para rematar con esta primeira parte do estudo sobre as influencias e as afluencias do caligráfico en Uxío Novoneyra e deixando, pois, para un outro lugar o estudo pormenorizado da práctica gráfico-poética do poeta, permítannos relativizar a importancia da propia caligrafía como elemento de identidade, reproducindo, tamén en mecanoscrita transliteración, o seguinte texto autógrafo de António Maria Lisboa32, caracterizado pola súa implícita subversión irónica: POR TEREM INDAGADO SE ERA OU NÃO ERA ESTA A MINHA LETRA, VENHO COMUNICAR: Esta não é a minha letra Esta é a minha letra Esta nunca foi a minha letra Esta foi sempre a minha letra ESTA NUNCA SERÁ A MINHA LETRA Está será sempre a minha letra N.B.– Tudo É e não é alternadamente. ANTONIO MARIA LISBOA António Maria Lisboa Antonio Maria Lisboa António Maria Lisboa
32 Véxase a reprodución do manuscrito na páxina seguinte, tirada do “Frontispício” de ‘Exercício Sobre o Sonho e a Vigília de Alfred Jarry’ seguido de ‘O Senhor Cágado e o Menino’ (Colecção ‘A Antologia em 1958’, Cadernos organizados por Mário Cesariny, Lisboa, s.d.).
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Conferencia ESQUEMA DE CAPÍTULO QUE ESCAPOU A ARISTÓTELES1 Abel Barros Baptista Universidade Nova de Lisboa
1 A primeira versão deste ensaio foi apresentada no Simpósio Internacional Eça-Machado, que decorreu em São Paulo e Campinas em Setembro de 2003. Agradeço ao Prof. Paulo Franchetti e à Prof.ª Beatriz Berrini o convite para participar e a hospitalidade que ali me dispensaram.
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ESQUEMA DE CAPÍTULO QUE ESCAPOU A ARISTÓTELES.
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Como é que este capítulo escapou a Aristóteles? MACHADO DE ASSIS, Memórias Póstumas de Brás Cubas
Dir-se-ia incontroversa a descrição de Dom Casmurro como primeiro confronto com o trágico na literatura brasileira. Resultará, porém, pouco ou nada incontroversa, se exposta a distinção que reprime ou, quando menos, deixa implícita: confronto com o trágico ou confronto com a tragédia2. Pergunta decerto irrelevante, caso o motivo trágico no romance de Machado não estivesse imbricado numa singular explicação com o teatro: «trágico» parece ali muito mais um qualificativo inseparável do teatro do que uma categoria da «vida», e disso mesmo irá ressentir-se a ainda assim tentada transposição para a «vida» das figuras do teatro – ou da figura máxima: o destino. O trágico, agora substantivo, fica suspenso desse movimento ou dessa tentação de transposição; mas talvez não haja surpresa especial na comprovação de que a transposição, uma vez que apenas se cumpre numa história autobiográfica de ambição trágica, afinal é ainda um lance de teatro: e por via disso mesmo, eis que regressa a poética do teatro enquanto poética do efeito– do efeito trágico. É o que procuro mostrar, esboçando neste sentido uma leitura aristotélica de Dom Casmurro – o que talvez implique uma leitura machadiana de Aristóteles. I Consideremos a categoria do mythos: história, enredo, intriga, plot. Julgo que não sofre dúvida que Dom Casmurro, o autor ficcional do romance, pelo menos de certo ponto em diante, se propõe contar uma «história de contornos trágicos» (a descrição vai cautelosamente entre aspas, porque deliberadamente imprecisa). Também não
2 Reporto-me, em particular, à distinção de Peter Szondi entre poética da tragédia e filosofia do trágico. Ou à formulação de Eduardo Lourenço, opondo o trágico à expressão pela tragédia que o mata e fazendo da tragédia da expressão a única tragédia contemporânea (cf. Szondi 1961, Lourenço 1964). Seguindo embora orientação irredutível à dos dois ensaístas, o problema que me ocupa respeita à diferença entre trágico e tragédia: é viável uma noção de trágico que prescinda do teatro?
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tem recebido contestação significativa a ideia de que falha na tarefa de contar essa história: podemos imputar-lhe a intenção de a contar, não sendo necessariamente essa, porém, a história narrada pelo livro que escreve. Aliás, de Helen Caldwell a Roberto Schwarz, a interpretação moderna do romance consiste largamente em reconstruir, contra o autor ficcional, a «verdadeira história» que Machado quereria contar. Noutro lugar, analisando a relação de Dom Casmurro com o romance europeu e a noção de livro, procurei demonstrar as razões da inutilidade, e até da impossibilidade, da tentativa de história alternativa. Não o fazia, no entanto, apoiado em alguma pressuposição de ambiguidade. Ao contrário do que com frequência se sustenta, aquele fracasso não redunda em ambiguidade nem decorre dela. A presunção de ambiguidade, posto verosímil, apenas rasura o livro - a iniciativa e do domínio de Bento Santiago sobre o livro que escreve -, como se o «livro de Dom Casmurro», que é quase tudo o que lemos e a primordial ficção do romance, se resumisse à alternativa entre uma história de adultério e outra de ciúme. Recorde-se que não há qualquer ambiguidade na história que Dom Casmurro supõe ter contado, de resto expressamente sintetizada no capítulo final: para Dom Casmurro, o livro não pode ter contado senão uma história –história única e completa, com princípio, meio e fim–, que o subordinou, determinando-lhe os limites e a composição. Esta ideia é crucial para o entendimento do romance. O primeiro problema de leitura ultrapassa por isso o convívio ameno com histórias alternativas: consiste antes em compreender por que razão essa história inequivocamente imputável a Dom Casmurro não pode ser inequivocamente imputada ao livro que o mesmo Dom Casmurro escreveu. Depois, percebe-se que sequer é possível saber se a narração dessa história correspondeu desde sempre ao projecto de Dom Casmurro, se estava construída de antemão ou se foi formando durante a composição do livro. Esta, aliás, é a raiz de tais dificuldades insuperáveis. Por um lado, dada a natureza retórica do movimento de derivações e interrupções, a composição do livro progride através de nexos de figuras de linguagem, prolongadas, exploradas, reafirmadas e negadas, em processo de associações específico da escrita e irredutível à narração da história. Ou seja, do estrito ponto de vista da composição, a escrita predomina sobre a história, os nexos de linguagem sobrepõem-se ao nexos de enredo. No entanto, por outro lado, encontramos também uma espécie de absorção desses desvios –se «desvio» é termo adequado–, como que trazendo-os de volta à narração da história, e assim criando uma tensão entre o livro destinado a contar uma história e o livro destinado a reunir lembranças dispersas e sem rumo determinado. Essa tensão culmina no capitulo xcvii, o do «meio do livro»: justamente quando se torna inequívoca a intenção de fazer do livro a narrativa de uma história única, completa e necessária. Mas demasiado tarde: afecta todo o livro, retroactivamente, porque a missão desse capítulo é afectá-lo retroactivamente, não podendo porém fazê-lo senão de modo que o arruína – acção da errata3, do duplo efeito da errata. Em suma, deparamos com a indecidibilidade: o livro de Dom Casmurro, de certo ponto em diante (mas, repito, com acção retroactiva), subordina-se a uma história que porém não consegue contar.
3 Resumo muito rapidamente o argumento apresentado em Autobibliografias (486-499), depois retomado e revisto em «A reforma hermenêutica». Será talvez desnecessário esclarecer que o presente ensaio prossegue uma ruminação antiga em volta de dois ou três capítulos de Dom Casmurro.
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Não se tome isto, entretanto, como ponto de chegada da análise, qualquer coisa que decorresse de alguma suposta natureza essencial do texto literário ou romanesco; na verdade, será antes ponto de partida, porque não esbarramos simplesmente na impossibilidade de contar uma história: lemos essa impossibilidade, e a legibilidade do livro depende da possibilidade de a lermos. Tentemos esclarecer estes termos. Por um lado, não subsiste equívoco, como afirmei acima, a respeito da história que Dom Casmurro afirma ter contado no livro. Está lapidarmente sintetizada no parágrafo final: «E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me…» Entretanto, a própria exigência deste suplemento final denuncia o outro lado do problema: não é possível eliminar a possibilidade de Bento ter sido o causador da sua desgraça, confundindo o próprio ciúme com desígnio do destino. Convenhamos que não parece problema grave, tão-pouco irresolúvel; a noção de ambiguidade conforta muito nestes casos, e de resto não causa crise a possibilidade de o autobiógrafo estar enganado a respeito do sentido da própria história autobiográfica (ou de, até malevolamente, procurar expediente com que se exima). Porém, a síntese final vai além da alegação de união adúltera entre Capitu e Escobar: subordina-a ao destino. Mera flor retórica, ou antes figura de uma lógica inexorável que apenas retrospectivamente se revela? A ideia de destino percorre o livro desde cedo, em figuras várias que vão do teatro em sentido muito amplo –suficientemente amplo para incluir a ópera - ao trágico em sentido quase estrito– ou suficientemente estrito para se restringir a um exemplo: Othello. A imputação de desígnio ao destino implica uma história única e inequívoca, porque o destino coincide com isso mesmo – a história única e inequívoca. Por outras palavras, a figura do destino sustém a inteligibilidade da história que Dom Casmurro diz ter contado: define-lhe a unidade, a necessidade e a completude. Aqui reside todo o problema do trágico. A decisão sobre a história que se exige à leitura não lida, portanto, com a alegação de adultério, e sim com a possibilidade de, a partir dela, configurar qualquer coisa susceptível de receber o nome de destino; ao mesmo tempo, porém, tal possibilidade não se deixa avaliar sem esclarecimento da alegação de adultério - desde logo porque a configuração do destino será uma ou outra consoante a alegação de adultério ocorra por causa do ciúme ou apesar do ciúme -, a qual é impossível, como se sabe. Não podemos aceitar a história de Dom Casmurro - mas também não nos é possível recusá-la. Em consequência, o efeito específico da imputação de desígnio ao destino fica suspenso da decisão impossível: e é nessa suspensão que a «história de contornos trágicos» se desarticula, mera hipótese inseparável de outras hipóteses em vez de história única, completa e necessária. Onde se aloja o trágico quando a demarcação entre destino e ilusão de destino se revela indecidível? Ou ao trágico já basta a simples ilusão? Ou devemos encarar outro trágico, moderno, digamos, que consistiria nessa mesma indecidibilidade? Lê-se com frequência que a raiz da impossibilidade de confirmar ou rejeitar a alegação de adultério releva de factores inerentes ao modo da narração, como ser a história contada na primeira pessoa ou não ter Capitu voz autónoma para contar a sua versão dos factos. Não sendo de todo infundada, esta descrição do problema é no limite absolutamente falsa. Aliás, a inclusão de história alternativa narrada, suponhamos, por Capitu, essa sim, redundaria em
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plena ambiguidade, porque então sem exigência de decisão que a removesse. Vê-se que os críticos amigos da ambiguidade se contentariam simplesmente com saber «o que realmente se passou», e vê-se que afinal não se conformam com a radical ausência de uma autoridade que viesse garantir «o que realmente se passou». A ficção crítica de Helen Caldwell, «reabrindo o caso» em nome de Capitu - o que quer dizer: em nome de Machado –, ou as sucessivas ficções alternativas em volta de Dom Casmurro intentadas por vários escritores testemunham esse mal-estar do mesmo passo que atestam a eficácia do traço primeiro do lugar, melhor, do nãolugar em que podem instalar-se e reproduzir-se: a absoluta e radical ausência de autoridade. Repare-se, entretanto, que estas posições se tornam absolutamente idênticas à do próprio Dom Casmurro, porque também ele, afinal, ganharia muito se alguma autoridade lhe dissesse, sem margem para equívoco, «o que realmente se passou». A primeira pessoa da narração – ou a exclusão de Capitu, que uma coisa deriva da outra – é solidária da solidão de Dom Casmurro. Solidão de sobrevivente, desde logo, única testemunha que resta do «drama», mas sobretudo sobrevivente original, ou, se se quiser, estrutural, porque desde sempre única testemunha, isto é: desde sempre sem outra testemunha. Porque, e é o essencial, para o problema a que a história (não o livro, pelo menos não todo o livro) procura dar resposta - o destino e seu desígnio – nenhuma resposta se perfila, e ninguém pode ter resposta. Incluindo, é claro, o mesmo Dom Casmurro. Elaborar a história (não o livro, seguramente não todo o livro) visa assim estipular, isto é, determinar e impor, «o que realmente se passou»: a história –repito: única, completa, necessária – revela o destino, dá acesso à lógica do destino – institui o desígnio do destino enquanto princípio de inteligibilidade do «que realmente se passou». Como se, afinal, através dela, o destino ganhasse voz e chegasse a confessar as suas até então inescrutáveis intenções. Nesse sentido, o destino intervém na falta de autoridade, suprindo-a: a um tempo figura da autoridade absoluta e da ausência absoluta de autoridade. No romance de Machado, há um nome para essa figura paradoxal, e nome familiar: dramaturgo. II O que me conduz, digamos, ao assunto: a teoria do teatro e da tragédia, implícita no romance, que rivaliza ironicamente com a teoria aristotélica. Encontra-se no capítulo intitulado «A reforma dramática», o qual, conjugado com o imediatamente seguinte, coloca pela primeira vez de forma clara o problema da história completa (a noção de «começo» surgira muito antes, é claro, mas dividida, envolta nesse movimento compositivo que acima mencionei, sem exigir necessariamente um fim que tornasse esse começo inteligível enquanto começo da história175). Vou deter-me agora apenas no capítulo mencionado e na proposta de «reforma dramática»:
4 Refiro-me evidentemente à «tarde de Novembro», em que Dom Casmurro situa o início da «evocação». A composição permite ler dois tipos de «começo»: aquele que já depende de um termo conhecido, fechando uma estrutura completa de antemão definida (por exemplo, «o começo da minha ópera»); aquele que inaugura uma série sem termo à vista, praticamente indeterminada (por exemplo, «o começo da minha vida»). Sobre esta distinção e a argumentação que a sustenta, permito-me remeter para Autobibliografias, 469-485.
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UMA REFORMA DRAMÁTICA Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta história poderia responder mais, tão certo é que o destino, como todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho. Eles chegam a seu tempo, até que o pano cai, apagam-se as luzes, e os espectadores vão dormir. Nesse gênero há porventura alguma cousa que reformar, e eu proporia, como ensaio, que as peças começassem pelo fim. Otelo mataria a si e a Desdêmona no primeiro ato, os três seguintes seriam dados à acção lenta e decrescente do ciúme, e o último ficaria só com as cenas iniciais das ameaças dos turcos, as explicações de Otelo a Desdêmona, e o bom conselho do fino Iago: «Mete dinheiro na bolsa.» Desta maneira, o espectador, por um lado, acharia no teatro a charada habitual que os periódicos lhe dão, porque os últimos atos explicariam o desfecho do primeiro, espécie de conceito, e, por outro lado, ia para a cama com uma boa impressão de ternura e de amor: Ela amou o que me afligira, Eu amei a piedade dela.
Dir-se-ia que o original, o destino, é definido a partir do derivado, se o natural fosse os dramaturgos imitarem o destino quando cuidam de não anunciar as peripécias nem o desfecho. Na verdade, o símile tem ali direcção contrária: o destino, com os seus propósitos particulares, procede à semelhança dos dramaturgos (estes também com os seus propósitos particulares, presume-se). O destino recebe definição teatral, e num plano especificamente poético - no sentido aristotélico -, o do encadeamento das acções. O teatro é o termo familiar, o destino o termo a definir pela comparação, a disposição dos factos, o tertium comparationis. Num primeiro momento, portanto, a definição teatral reduz-se ao encadeamento dos factos: o destino ainda não é dramaturgo5. Mas captar-lhe o desígnio obriga a restabelecer os nexos da disposição dos factos: interpretá-lo não se distingue da operação - ou pelo menos não a dispensa – que reconstitui a história traçada pelo destino. Entretanto, se quisermos evitar que estas formulações recuperem o que o símile literalmente recusa – a prioridade do destino sobre os dramaturgos –, deveremos perguntar se a semelhança é acidental ou constitutiva da própria ideia de destino. Por outras palavras, dar-se-á o caso de o destino dever a semelhança com os dramaturgos ao facto de os imitar? A conexão, ainda humorística, entre o símile e a proposta da «reforma dramática» não apenas impõe a pergunta como requer para ela resposta afirmativa, o mesmo é dizer: a reforma dramática engendraria a reforma do destino. Como seria então o destino assim reformado? Não creio que a resposta acertada seja a que transponha a explanação da «reforma dramática». Não porque fosse despropositado imaginar os acontecimentos a desenrolarem-se, na «vida», do desfecho para o início. Como diria Brás Cubas, já se viram demonstrações menos lúcidas e não menos triunfantes… E aliás, não deixa de ser esse o sentido óbvio da menção do destino naquele episódio: Bentinho responde ali à pergunta de Capitu sobre a identidade de Escobar, e Dom Casmurro comenta que Bentinho não podia responder senão «É o Escobar»: actuasse o destino de modo diverso do
5 Será dramaturgo no capítulo imediato: «O destino não é só dramaturgo, é também o seu próprio contra-regra…» A metáfora é aqui meio de passagem para a figura do «contra-regra», decisiva na narração do episódio do dandy.
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de «todos os dramaturgos», e a resposta seria bem outra. Por outro lado, a diferença entre Bentinho e Dom Casmurro decide muito: Dom Casmurro faz como o destino e os dramaturgos – porque, narrando o episódio, nada diz além do que foi e poderia ser dito naquele momento – e, ao mesmo tempo, não faz como o destino e os dramaturgos – porque sugere que ali mesmo, quando escreve, podia acrescentar à narrativa algo que não poderia ter sido dito no momento do episódio. Ou seja, sem anunciar as peripécias e o desfecho, Dom Casmurro remarca a acção do destino – anuncia o próprio destino. Porém, a comprovação da presença e da acção do destino naquele preciso momento só pode ser exclusivamente dramática, e está suspensa de um desenlace, da completude da história, da surpresa e do efeito que causa no espectador. Enquanto a história não chega ao desfecho, não é apenas a informação sobre a identidade de Escobar que falta: é também, é sobretudo a possibilidade de constituir a coincidência da passagem do dandy em laço necessário em vez de fortuito. Assim, Dom Casmurro apenas se distingue dos dramaturgos no ponto em que reconhece imitá-los: o destino de que fala constitui-se rigorosamente por imitação dos dramaturgos. Daí que o destino receba definição teatral – só pode receber definição teatral, ou mais radicalmente: é uma categoria de teatro. O teatro imita o destino enquanto anterioridade que ele próprio produz à medida que imita. Não é outro o paradoxo da «reforma dramática» de Dom Casmurro: o teatro inventa o destino, o destino imita o teatro, quem quiser perceber o destino fora do teatro, na «vida», tem que imitar o teatro, e apenas essa imitação torna o destino visível, inteligível, decidível. Daí também que a «reforma dramática» engendrasse necessariamente uma reforma do destino. Mas a razão por que seria absurdo imaginar esta última como desenrolar dos factos da «vida» a partir do desfecho decorre da lógica da «reforma dramática», não da lógica da «vida»: é que a mais radical consequência da «reforma dramática» põe em causa a possibilidade de transportar a ideia de destino do teatro para a «vida». O destino reformado consistiria, muito simplesmente – e também muito literalmente –, na «reforma dramática»: bastaria que as peças começassem sempre pelo fim para impedir qualquer projecto de pensar na «vida» em termos de destino. Esta inferência defronta dois obstáculos. O primeiro, de carácter geral, reconduz-nos à questão do trágico formulada de começo: a pressuposição do destino como categoria da «vida», figura da condição trágica que o teatro, secundário e derivado, interpreta ou simplesmente exprime, ou seja, a pressuposição de que o teatro imita o destino. O outro obstáculo é que o livro de Dom Casmurro, pelo menos de certo ponto em diante (insisto!), partilha essa pressuposição: a história que supõe ter contado, já o vimos, depende de um desígnio do destino, justamente fora do teatro, na «vida». Mas não só. A mesma proposta da «reforma dramática» postula obviamente a diferença intransponível entre o teatro e a «vida», e o cotejo com Othello nela implicado tornar-se-á explícito mais adiante, em termos que confrontam a experiência de Bento Santiago com a do herói shakespeariano. Não é claro, no entanto, que desse confronto resulte a demarcação nítida e estável entre o teatro e a «vida». Pelo contrário. Vale a pena considerar a passagem em causa. É no capítulo CXXXV, quando, no pico da crise de ciúme, Bento assiste à representação da peça: Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço – um simples lenço! – e aqui dou matéria à meditação dos psicólogos deste e de outros continentes, pois não me pude furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais
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sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se, hoje são precisos os próprios lençóis; alguma vez nem lençóis há, e valem só as camisas.
Lençóis ou camisas, são hoje precisos para compor uma tragédia de ciúmes ou para acender os ciúmes fora do teatro? Diferença entre o teatro e «vida» ou diferença de época? Poucas linhas abaixo, o capítulo explicita a transposição para o lado da «vida», a de Bento Santiago, mas sem evitar o regresso ao interior do teatro, lógica curiosa análoga à do símile que encaixa a «reforma dramática»: O último acto mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público. – E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; – que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna extinção…
Eis grande parte do sentido da «reforma dramática» explicado, dir-se-á. Na verdade, o efeito final, chegado o último acto, está nos antípodas da «boa impressão de ternura e amor». Mas o ponto que por agora quero realçar não é esse, ou é esse para considerar a importância e a especificidade do efeito. De facto, qualquer coisa acontece em Bento Santiago por efeito da representação a que assistiu, e essa qualquer coisa inclui uma deliberação: abandona a ideia de suicídio e decide que Capitu devia morrer. O que pode haver no último acto que conduza a essa decisão? A «fúria do mouro» ou os «aplausos frenéticos do público», não obstante a inocência de Desdémona? Espécie de argumento a fortiori? O parágrafo seguinte introduz nova deliberação, já fora do teatro, rua abaixo, e aí, sim, o confronto explicita-se. Note-se, no entanto, que a diferença entre culpa e inocência - quer dizer, entre Capitu e Desdémona - causa uma interrogação que não se distingue da que se esperaria dum dramaturgo interessado em rescrever «a mais sublime tragédia deste mundo». Poderia tratar-se até de exercício dramatúrgico: como seria Othello se Desdémona fosse culpada? É um problema técnico de composição de acções - que morte lhe daria Otelo? - e de efeito sobre o espectador - que faria o público? Ao mesmo tempo, entretanto, note-se também que tal deliberação não se distingue da do homem que procura decidir o curso imediato da sua vida… interrogando o teatro: transpondo para o interior do teatro a sua experiência singular e procurando deduzir da lógica do drama a melhor linha de conduta. Como se Othello fosse um manual: de composição, para o dramaturgo, de ética, para o ciumento. Percebe-se, então, a condição dessa coincidência: ou deparamos com um caso de deliberação afectada pelo efeito trágico, ou é a peça que dá acesso a uma mesma ordem, a uma mesma lógica universal das acções. Mas o segundo termo da alternativa é ainda uma boa descrição da principal consequência do primeiro: por isso, em qualquer caso, a prioridade do teatro é indisputável. O momento crítico em que delibera sobre o sentido do curso da vida e o «acto irreparável» que o devia rematar, suicídio ou homicídio, é decidido sob influxo directo do teatro, mais precisamente de uma representação de Othello. Ainda que a decisão não tenha chegado à acção, Dom Casmurro, esse chega ao destino através do teatro e da imitação do teatro. Mas haveria destino, se
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aquela particular representação já seguisse a «reforma dramática» e desse o Othello do fim para o princípio, saindo Bento Santiago do teatro com uma «boa impressão de ternura e amor»? A pergunta não é apenas plausível: a lógica da «reforma dramática» exige-a. O que significa que, ao cabo, invalida a pressuposição em que assenta o projecto do livro de Dom Casmurro. Assim se abre a frincha por onde podemos espreitar a teoria do teatro e da tragédia que rivaliza com a de Aristóteles. Ironicamente, afirmei acima. De facto, por um lado, a rivalidade é efectiva: a teoria do teatro imputável a Dom Casmurro demarca-se da de Aristóteles num aspecto fundamental, o do destino precisamente; enquanto, por outro lado, essa mesma teoria se divide para dizer mais do que o que pode ser imputado a Dom Casmurro, e nesse mais aproxima-se curiosamente de Aristóteles. III Examinemos, então, na proposta de «reforma dramática» três aspectos essenciais que solicitam a poética aristotélica. 1) A proposta explora uma diferença, hoje familiar, que Aristóteles não menciona, mas com lugar indispensável na construção da Poética: entre a história enquanto estrutura de factos e a disposição com que os factos são apresentados na representação6. Em princípio, para Aristóteles, não faria sentido distinguir o começo da história do começo da representação, nem o final da história do final da representação. Desde logo, porque Aristóteles delimita, antes do espectáculo e mesmo antes do drama, o primeiro e essencial elemento da tragédia: o mythos, a história, a estrutura das acções. Mas por isso mesmo, reduzindo o trabalho do poeta à composição dos actos e definindo a história com traços distintivos - unidade, completude, extensão e encadeamento dos actos segundo a necessidade ou a probabilidade - independentes dos restantes elementos da tragédia, Aristóteles estipula a anterioridade e a prioridade do mythos enquanto entidade abstracta que decide e comanda o efeito próprio da tragédia: não se confunde com ela e, no limite, nem precisa dela. O capítulo 14 da Poética é claro: a estrutura dos factos produz por si só tal efeito (e o exemplo oferecido é Rei Édipo). Assim, a coincidência de começo e fim na história, no drama e no espectáculo funda-se numa prescrição implícita, a qual decorre por sua vez da lógica aristotélica do efeito: os outros elementos, incluindo, é claro, o próprio espectáculo, prolongam a história, subordinam-se à história, e completam-na, quer dando-lhe corpo quer transmitindo-a. São o meio de transporte do efeito. Ora, se, além disso, Aristóteles recomenda, em mais de um passo da Poética, que certas acções não sejam incluídas na acção representada – e há mesmo um ponto preciso em que prevê factos do mythos anteriores ao começo da acção representada7 –, tal prescrição
6 Por comodidade de exposição, incluo no termo «representação» tanto o drama escrito como o espectáculo, ambos passíveis de se designarem pelo termo «peça»; a referência no capítulo seguinte ao contra-regra, papel que o destino acumularia com o de dramaturgo, irá eliminar esta ambiguidade, mas com outra finalidade, que aliás confirma esta primeira diferença. 7 Trata-se do começo do capítulo 18, na definição de «nó» e «desenlace», aliás um dos pontos mais problemáticos da Poética, já que perturba a distinção, que ocorre em vários passos, entre o que está «dentro do drama» e o que deve ser deixado «fora do drama». Cf. Else 1957, 517-522; sobre a distinção «dentro do drama»/«fora do drama», é muito esclarecedora a análise de Deborah H. Roberts (1992, 133 e ss.).
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apenas se entende na condição de a) estipular uma incoincidência, não acidental mas necessária, entre a estrutura abstracta dos factos e a acção representada e b) visar o movimento inverso, isto é, a inteligibilidade do espectáculo e o cumprimento do seu efeito próprio dependem afinal da reconstrução da história pelo espectador. A conjugação das duas condições implica que a história não está no drama escrito pelo dramaturgo nem no espectáculo que o representa: é uma entidade a que se acede pela audição, pela leitura ou pelo espectáculo. Mas implica mais, ou outra coisa: a possibilidade de o espectáculo desviar o mythos da finalidade que o constitui tem que ser incluída na noção de mythos. O efeito próprio da tragédia, nos termos de Aristóteles, assenta na viabilidade de o espectador se desembaraçar do espectáculo. Isto abre caminho ao entendimento dos outros dois aspectos que quero sublinhar. 2) Da diferença entre a história enquanto estrutura de factos e a disposição com que os factos são apresentados na representação decorre que o fim permanece fim e o começo permanece começo; quer dizer, a história em si mesma não se altera com o artifício de fazer as peças começarem pelo fim. O desfecho desloca-se para o primeiro acto: mas não deixa de ser desfecho. O artifício produz uma dificuldade acrescida à inteligibilidade do todo, sem necessariamente a embaraçar: afecta a actividade da inteligência, sem dúvida, propõe um problema que oscila entre a reconstrução racional a partir dos extremos e a simples charada, mas persiste actividade racional com plena possibilidade de sucesso. Daí a «espécie de conceito», que no caso tanto pode aludir à noção barroca, agudeza decifradora de construção engenhosa, como a solução para charada ociosa (termo também presente na proposta), ou ambas, aliás evocando o desprezo oitocentista do engenho barroquista. Também nisto o modelo nos é familiar. Tanto é assim que corresponde, em parte, ao modelo do romance policial, que tem com a tragédia afinidades conhecidas (a começar pelo Rei Édipo). Aliás, este modelo é de tal forma próximo da «reforma dramática», que se percebe desde já a crise que implica para a noção aristotélica de começo: onde começa a «acção completa» de Rei Édipo? No princípio da peça, com a peste? Na exposição do recém-nascido? No oráculo que anunciou a Laio que filho que dele nascesse o mataria? Algures na história dos labdácidas? O problema impõe-se porque Rei Édipo começa de facto pelo fim, pelo último episódio de uma história mais vasta, de tal modo que a acção representada coincide com a acção de reconstrução dessa história mais vasta e que dela constitui o desfecho. Em qualquer caso - será preciso voltar a este ponto -, a «reforma dramática» percebe e ensina que a inteligibilidade da estrutura de factos não depende da coincidência do começo da história com o começo do drama e do espectáculo, porque depende essencialmente da completude: é sempre preciso chegar ao fim, ainda que o fim seja o começo. É preciso acabar, pôr termo, fazer cair o pano, etc., para que o último acto explique o desfecho apresentado no primeiro. 3) O que se joga então nessa coincidência ou incoincidência de começos e desfechos? A impressão causada no espectador, a qual também depende da completude. É o ponto que denuncia o carácter radicalmente anti-aristotélico da «reforma dramática». Não pela impressão de ternura e amor propriamente dita, contra a qual Aristóteles provavelmente nada teria, mas porque desviaria a tragédia do que considerava o seu efeito próprio e natural. No modelo aristotélico, o encadeamento das acções não é separável do efeito sobre o espectador, finalidade do trabalho de composição do poeta. Com a inversão da disposição dos factos, a inteligibilidade da história desembaraça-se do confronto com os actos irreparáveis, a
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surpresa das peripécias, os reconhecimentos: torna-se pura actividade intelectual, raiando a decifração de charada, como já vimos. Sobretudo, corta-se o circuito, decisivo no modelo aristotélico, entre a inteligibilidade da acção, o juízo moral e o efeito sobre o espectador. O capítulo 13 da Poética estabelece as linhas mestras do circuito ideal que liga a inteligibilidade ao efeito através da mediação do juízo moral: da inteligibilidade da acção do herói depende o juízo moral, e deste a capacidade da peça para causar o temor e a piedade (e não a repugnância ou a indiferença). É um dos pontos críticos em que a poética se cruza com a ética. Ora, a «reforma dramática», através da distinção entre a história em si mesma e a disposição dos factos em cena, revela a capacidade do teatro para manipular o efeito através da suspensão do juízo moral. Onde se mostra essa capacidade? No artifício, no procedimento, na técnica, como se queira. A mesma inversão da ordem de apresentação dos factos na representação faz que a inteligibilidade da história não seja separável da percepção dos nexos artificiais – teatrais – do drama e do espectáculo, que assim se recortam enquanto artifício global imposto a uma história. A impressão de ternura e amor representa este desvio para a percepção do teatro enquanto artifício, que dura até que o espectador se vá deitar. A acção completa, no estrito sentido aristotélico, é desviada do seu alvo por uma rede de mediações – a peça, incluindo o drama e o espectáculo ou simplesmente este – indispensáveis à sua transmissão. Estamos de volta à teoria da ópera, apresentada no começo do livro, com sentido afinal idêntico: o meio de transporte não só não se anula como corrompe o transportado8. IV Posto isto, o que ensina a «reforma dramática» sobre a história que o livro de Dom Casmurro intenta contar? Alerta, desde logo, para a dificuldade de delimitação do «começo» e do «fim». O livro propriamente dito começa pelo princípio, pela decisão de ser escrito, a qual porém é inseparável do desfecho ou das consequências do desfecho da biografia do seu autor. Haverá sentido em falar de «desfecho» da biografia? Voltaremos a esta pergunta mais adiante. Em qualquer caso, a decisão de escrever o livro articula-se com a «vida» de Dom Casmurro num modo que permanecerá por esclarecer: digamos que os últimos actos explicam o desfecho do primeiro, «espécie de conceito». Entretanto, logo a seguir, define-se outro começo, o da «evocação», situado na tarde de Novembro, «célebre», e este é que parece incluir-se na história a ser narrada. O duplo começo corresponde assim à divisão do livro entre a reunião de memórias e a narração de uma história, traçando uma fronteira que deixa de fora o suposto «desfecho» da vida: fora da evocação, não do livro, e consequentemente fora da história? Não cabe aqui prolongar o exercício de perguntas, posto necessárias. As oposições entre vida e evocação, vida e livro, vida e narração talvez sejam insuficientes, mesmo enganadoras. A noção de começo é problemática justamente porque o começo resulta de uma construção decerto irredutível à «vida», mas irredutível também tanto à escrita do livro como à rememoração. Pressuponho aqui o que Aristóteles chamava a unidade do mythos. De facto, quando falo de história a propósito de Dom Casmurro, não refiro simplesmente os factos narrados nem sequer o conjunto de factos, mas determinados factos organizados em sistema, com um
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Remeto aqui, mais uma vez, para Autobibliografias, 481-485.
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princípio, meio e fim de modo a formarem uma acção completa, com encadeamento necessário ou provável, retendo apenas o indispensável para a acção que se pretende contar com vista a certo efeito. A história, ao contrário do que se presume quase sempre, não é um dado natural da vida nem da memória da vida, algo que de uma ou outra emanasse já formada e ademais única e completa: trata-se, sim, de produto que reconfigura ambas segundo um modelo irredutível à memória, à vida e até à intenção de Dom Casmurro. Assim, a história desarticula a simples oposição entre a vida e o livro - ou entre a experiência e a narração - que afecta as leituras tradicionais do romance: enquanto construção específica, não se confunde nem com a vida nem com o livro. O trabalho do poeta, na definição aristotélica, consiste justamente nessa construção. Dom Casmurro define-se, então, como poeta nesse sentido aristotélico, ou dramaturgo, no vocabulário da «reforma dramática». Qualquer leitor do romance conhece bem a insistência na ideia de começo, de princípio, de meio do livro, de fim, de «resto» e de «resto dos restos». As fronteiras, se não estão bem definidas, são objecto de notório trabalho de definição. Mas o livro, por outro lado, revela muito cedo certa tendência para se desinteressar do trabalho poético de delimitação da história; o leitor é obrigado a perceber que uma história única e completa, a existir, tem que desentranhar-se de um conjunto de factos e acontecimentos heteróclitos. O essencial, porém, reside noutra percepção, que já mencionei bem atrás e é agora altura de retomar: a história não subordina o livro, mais do que isso, o livro arruína a história. O livro vem marcado desde o início pela tensão entre a acção de ser escrito sem sentido determinado e a acção de ser escrito subordinado à função de veicular uma história constituída. Há um ponto, porém, em que essa tensão se expõe e resolve: o capítulo XCVII «corrige» tudo o que o antecede, do mesmo passo que assinala um termo e descreve o procedimento que permitirá atingi-lo. Esse momento crucial do livro coloca-nos justamente diante da história enquanto finalidade que define o livro, que com ela deveria coincidir. A história única e completa é então desentranhada, já não da vida ou da memória, mas do próprio livro: ou porque sempre lá esteve, dissimulada entre as digressões de uma composição caprichosa, ou porque nela pode ser incutida por efeito retroactivo da errata do capítulo XCVII. E é então que a escrita do livro se subordina ao trabalho propriamente poético de delimitar o começo e o fim, de definir o meio, de seleccionar os factos e sobretudo de estabelecer a conexão necessária ou provável entre eles. Ora, nos termos da «reforma dramática», isto significa que a condição de dramaturgo emerge de uma outra: Dom Casmurro define-se também como espectador de si mesmo. O trabalho de construção da história envolve obviamente o desenrolar retrospectivo das acções desde o desfecho até ao limite em que seja possível situar o começo, processo análogo ao descrito na «reforma dramática», já que nele «os últimos actos explicariam o desfecho do primeiro, espécie de conceito». Dir-se-ia o espectador que não foi para a cama, que persiste na sala a olhar o palco onde a peça acabou de acabar, buscando o princípio de explicação. Ou, talvez mais adequado, foi para casa e deitou-se, mas não consegue dormir, passando e repassando na memória o palco e os acontecimentos nele representados. Ora a casa, réplica da casa da infância, não assegura a permanência de intriga e cenário, antes marca a ruptura: Dom Casmurro está fora do drama, fora do espectáculo, fora da acção representada. O aspecto decisivo, então, não reside nesse movimento retrospectivo, de certo modo trivial, mas na
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fronteira que necessariamente coloca Dom Casmurro no exterior do drama: a procura da acção completa pressupõe a acção completada, que atingiu o termo, que se encerrou, e que justamente a partir do desfecho delimitado lança o movimento retrospectivo. Neste sentido, a alcunha é precisa: Dom Casmurro não é Bento Santiago. Este é o herói que actua, aquele, o pós-herói que, completada a acção, a ela regressa para – pelo menos a partir de dado momento da composição do livro – a reconstruir em história dotada de unidade e completude. Nestes termos, e recordando o ponto de partida desta secção, o começo do livro não é o começo da história, a decisão de escrever o livro está já separada por um fronteira nítida da história que o livro conta. O limite final, portanto, estabelece o inicial: a história completa-se definindo a um tempo começo e desfecho. O capítulo final marca nitidamente essa fronteira, e a conhecida passagem sobre Capitu atesta-lhe a eficácia: O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirac, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IV, vers. 1: «Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti.» Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.
Decerto esta avaliação quase final (há ainda, recorde-se, o «resto dos restos») procura isentar o ciúme de Bento de qualquer responsabilidade na acção de Capitu: mas a condição decisiva é a presunção de um juízo libertado e agora resguardado da afecção do ciúme. Como se o ciúme, figura do drama, tivesse ficado circunscrito ao seu interior, como se, porque no exterior do drama, Dom Casmurro pudesse identificar-se com qualquer outro espectador, testemunhando, enfim, o que qualquer espectador poderia testemunhar. Tocamos aqui outra vez o efeito da história sobre o espectador, ou pelo menos a base dele, a inteligibilidade da história completa: não tanto a recusa do ciúme, mas a sua deslocação para lugar inerte, por assim dizer, aliás lugar onde se exerce a ironia do destino9. Assim, o remate autobiográfico transfigura-se em lance trágico. O poeta desliza sem dano para a posição de espectador e o trabalho do espectador visa reproduzir o do poeta: a coincidência sustenta-se na imputação da história ao destino, instância derradeira de inteligibilidade das acções, afinal o dramaturgo supremo. V Consideremos agora a pergunta seguinte: o que ensina a «reforma dramática» sobre a viabilidade de transpor a figura do destino para a «vida»?
9 Sintetizo o argumento que apresentei em Autobibliografias (486-498, depois retomado em «A reforma hermenêutica», 555-566) acerca do episódio da passagem do dandy, narrado no capítulo seguinte, e de que este, da «reforma dramática», constitui preparação. O dandy, entrando por ordem do contra-regra, desencadeia o «segundo dente de ciúme» de Bentinho - imediatamente após a saída de Escobar: o ciúme entra quando Escobar sai, e esta estrutura moldaria todo o drama: Bento com ciúmes de tudo e de todos, excepto do amigo, afinal o único de quem se justificaria a suspeita.
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Desde logo, que, a ser viável a transposição, também o destino começa pelo fim, ou seja, no ponto especial em que se levanta o problema de saber onde começou a actuar o destino: e é nesse ponto que faz sentido falar em desfecho de uma biografia. No teatro, a fronteira está convencionalmente definida, o pano sobe: mesmo que a acção se represente a partir do fim, o espectador sabe que terá de remontar àquele ponto inicial. O destino é que não ergue o pano, e o pano que cai não diz logo aos espectadores que podem ir dormir: um e outro não se distinguem do resto da acção. Dramaturgo ordenado e austero, o destino não tem o hábito da parábase nem do prólogo, não anuncia as peripécias e o desfecho porque não se anuncia a si próprio enquanto destino. Isto é trivial. Menos trivial, suponho, será a ideia de que as vítimas do destino, digamos assim, no momento em que decidem que a acção terminou, se colocam na condição do espectador que assistisse ao Othello de trás para diante: o destino começa quando certo acontecimento ou sucessão de acontecimentos exila o herói no exterior de si para, na posição de pós-herói, assumir a condição de espectador de si mesmo reconstituindo o trabalho do dramaturgo. Ao contrário do teatro, a completude da acção é o primeiro problema a partir do qual a configuração de um destino se decide. Ora, onde fundar essa decisão? Ainda no caso de Dom Casmurro, não se acaba de decidir onde ocorre o desfecho, se com o efeito da representação de Othello se com o exílio forçado de Capitu, a demolição da casa ou a morte de Ezequiel, a decisão do livro ou, enfim, o termo do livro. O que é claríssimo, como vimos há pouco, é que, para Dom Casmurro, a acção se completou, e ele escreve o livro separado dela pelo tempo decorrido, pela casa reconstruída, pela vida diferente, pela alcunha, no exterior da acção, pós-herói pleno: mas o intervalo que o separa do desfecho persiste difuso. A tarefa de reconstituição da acção passada em vista da inteligibilidade fica assim ameaçada: se o destino não dá, de antemão – como na «reforma dramática» –, um desfecho inequívoco e uma clara indicação da finalidade visada, como reordenar o conjunto de incidentes, como distinguir o trivial do decisivo, como destrinçar coincidências fortuitas de coincidências necessárias? O destino tem em comum com os dramaturgos a disposição dos factos numa estrutura única e completa; ao contrário deles, no entanto, parece indiferente às elementares condições de inteligibilidade. Não pretendo que a principal lição de Dom Casmurro sobre o trágico ou a tragédia consiste em afirmar a impossibilidade de compreender o destino. A formulação seria outra, retomando o que ficou atrás: o destino é inteligível desde que enquadrado nos limites do teatro; quando se transpõem esses limites, supondo-o mais do que uma categoria dramática, sobretudo supondo-o entidade que a tragédia exprimiria, o teatro resiste e denuncia a ininteligibilidade do destino. A razão da resistência é simples: os dramaturgos recorrem ao destino, e tornam-no inteligível com golpes… de teatro - a fim de obterem determinado efeito. O teatro mostra a possibilidade de decisão inseparável da própria arte do dramaturgo, o que significa também: inseparável da impossibilidade de decidir fora do teatro. Consideremos rapidamente os dois exemplos eleitos, o de Aristóteles, Rei Édipo, e o de Dom Casmurro, Othello. Édipo fura os olhos, Otelo suicida-se: são duas modalidades de definição do desfecho que representa o cumprimento do destino. Porém, quem decidiu e como decidiu? a) Primeiro traço: a decisão deriva de uma história autobiográfica.
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No Rei Édipo, a acção começa por ser investigação da morte de Laio para se tornar inquirição sobre as origens e a identidade de Édipo. A sucessão dos acontecimentos, em larga medida, é também uma sucessão de histórias: e a descoberta consiste em estabelecer factos10 a partir de histórias e declarações sobre factos. Assumindo a culpa, Édipo responde ao problema, entretanto surgido, da própria identidade e ao mesmo tempo estabelece o princípio de inteligibilidade da peça. No caso de Otelo, deparamos construção dramática muito diversa. Édipo descobre quem é descobrindo o que fizera antes da acção representada: Otelo descobre quem é depois de ter feito o que fez perante o espectador, na própria acção repesentada do drama. Mas a decisão do desfecho não é menos autobiográfica. Quando fala pela última vez, Otelo pede a Ludovico e a Gratiano que, nas cartas que escreverem contando os factos ocorridos, «falem deles tal como são, sem atenuar nada, sem agravar nada». E quando explicita o que significa falar dos factos tal como ocorreram, Otelo oferece o próprio epitáfio enquanto princípio de inteligibilidade da acção: I pray you in çyour letters, When you shall these unlucky deeds relate, Speak of them as they are; nothing extenuate, Nor set down aught in malice; then must you speak Of one that lov'd not wisely, but too well; Of one not easily jealous, but being wrought, Perplex'd in the extreme; of one whose hand, Like the base Indian, threw a pearl away, Richer than all his tribe; of one whose subdue eyes Albeit unused to the melting mood, Drops tears as fast as the Arabian trees Their medicine gum; set you down this, And say besides, that in Aleppo once, Where a malignant and a turban'd Turk Beat a Venetian, and traduc'd the state, I took by the throat the circumcised dog, And smote him thus.
b) Segundo traço: a decisão autobiográfica é improvável. No episódio III de Rei Édipo, com a chegada do mensageiro de Corinto – a melhor peripécia, segundo Aristóteles, associada ao reconhecimento derivado da sucessão dos factos –, o problema que domina Édipo, «Quem matou Laio?», torna-se autobiográfico: «Quem sou eu?» O pastor chamado para confirmar o primeiro testemunho, que Laio fora morto por vários
10 A tragédia de Sófocles é de facto o exemplo privilegiado da importância das histórias e da acção de contar histórias, da distinção entre o que está dentro da história e o que está fora dela, bem como da dificuldade em traçar uma fronteira entre o «dentro» e o «fora». Sobre alguns destes problemas, veja-se, em particular, Miller 1978, 3-45.
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homens, não por um, acaba, no episódio IV, por ser interrogado apenas a respeito do mensageiro e da criança que este diz ter recebido das suas mãos. Com base nestes testemunhos, Édipo descobre que era filho de Laio, e consequentemente decide que só ele o podia ter assassinado. A sucessão dos acontecimentos desvia-o do primeiro problema em favor de outro, o qual por sua vez o conduz a engendrar uma história que não apenas responde ao segundo como explica a razão do abandono do primeiro. Conjugando dois oráculos – o que anunciava a Laio que filho que dele nascesse o mataria e o que lhe anunciou a ele mesmo que mataria o pai e se uniria à mãe –, Édipo firma aquela decisão, e aparentemente não há margem para dúvidas. Mas, no decurso, foi eliminado sem esclarecimento um testemunho – o do pastor sobrevivente, que afirmou terem sido vários homens a matar Laio –, e escamoteada a eliminação com o próprio artifício que a permite: o facto de o único sobrevivente da comitiva de Laio ser o mesmo homem encarregado de matar o recém-nascido. Acresce que o desvio no interrogatório do pastor convocado é causado por outra dupla coincidência, envolvendo também um testemunho: o mensageiro chega no preciso dia em que o problema da morte de Laio se debatia, e é o mesmo homem que recebeu Édipo do pastor. Tudo matéria da invenção de Sófocles, manipulação do mito tradicional pela poética do dramaturgo. Ora o destino, ensina a «reforma dramática», imita a arte do dramaturgo na concatenação dos factos; e Aristóteles sublinha, no capítulo 9 da Poética, que os melhores nexos entre acontecimentos são, não apenas os necessários ou prováveis, mas ainda os que provocam surpresa, porque paradoxalmente é nesses que o espectador vê uma razão: como no caso da estátua de Mítias, que matou o causador da morte de Mítias caindo-lhe em cima quando ele a contemplava. O efeito de surpresa da chegada do mensageiro e o desvio que introduz na acção é assim lance de teatro que orienta a história para o desfecho do mesmo passo que o torna dependente da decisão que resolve a disputa entre duas interpretações já presentes na peça: ou mera coincidência, expressão da irracionalidade da vida, ou desígnio da divindade cruel. O que decide entre uma e outra? Nada mais do que o reconhecimento do herói. Não se trata de dizer – se bem já tenha sido dito com algumas boas razões11 – que Édipo não matou Laio, mas de compreender que o que transforma a coincidência de acontecimento fortuito em acção do destino é a construção de uma história autobiográfica. Sófocles não conta a história do Édipo que matou o pai e casou com a mãe: conta a história do processo ao cabo do qual Édipo se convence de que matou o pai e casou com a mãe; e esse processo, por sua vez, engendra a história global, de que a representada na peça constitui o epílogo. Isto é o mesmo que dizer que Édipo representa, dentro da peça, a arte de compor a sua própria história: e o destino, para Édipo, apresenta-se no momento em que a completa enquanto história única e necessária. Herói e dramaturgo, no entanto, apelam a instâncias diversas para confirmar a história final: Édipo supõe a cruel divindade, Sófocles supõe o espectador, quer dizer, supõe no espectador o conhecimento do mito tradicional que lhe permite reconhecer na acção representada o desfecho da história de Édipo. A hipótese de o pastor ter falado verdade no primeiro testemunho e, consequentemente, de aquele Édipo não ser o Édipo que se sabe ter matado Laio, é demasiado remota para ser sequer considerada: não chega a impedir o espectador de confirmar que a história reconstruída por Édipo é a que ele deve necessariamente construir por ser a única possível.
11
Para leituras neste sentido, ver Goodhart, 1978, e Ahl, 1991.
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Algo de semelhante se passa no Othello, posto por efeito do jogo de perspectivas. O espectador sabe que Otelo está enganado, e sabe que está certo quando reconhece que estava enganado: acompanhou as manipulações de Iago, conhece o circuito do lenço e não duvida da veracidade do testemunho de Emília. O lance de teatro é ainda mais claro. Otelo actua dominado pelo ciúme, afecção particular que precisamente afecta o discernimento na elucidação da trama dos factos e que, mais do que isso, exacerba a capacidade de engendrar tramas: no ciúme, o plot é sempre complot. Prova da fidelidade de Desdémona, Otelo nunca a poderia ter, apenas provas da infidelidade: o ciúme não tem exterior. Daí que o ciumento, que pede provas desesperadamente, tema encontrá-las não menos desesperadamente. Perante isto, que poder tem o testemunho de Emília? No final, Otelo pôde resumir a sua identidade, agora completada, antes de se suicidar, pôde decidir quem era e fixar o próprio epitáfio, porque o ciúme deixou de o dominar e, restituído a si mesmo, pôde enunciar o balanço, nem agravando nem amenizando. Mas essa operação seria simplesmente implausível se a manipulação de Iago não fosse visível de há muito e o espectador não tivesse sido conduzido, melhor dizendo, preparado para ver naquele balanço final menos o apaziguamento do ciúme do que o reconhecimento do erro. Tal como Édipo, o desfecho decide-se na modalidade autobiográfica do reconhecimento final. O traço comum com Édipo é nítido: a presunção de Édipo é aceite porque o espectador, a partir do mito tradicional, reconhece nos oráculos e nas testemunhas função idêntica à de Emília e à da precipitação de Iago na fuga. A diferença é que o mesmo conhecimento permite ao espectador do Édipo discriminar a acção da divindade cruel e irónica do trabalho específico do dramaturgo: o mito tradicional já lhe dá as acções, a peça de Sófocles a composição poética que mostra uma possibilidade da respectiva descoberta pelo próprio herói. No caso de Othello a ironia dos deuses é substituída pela ironia do malvado: não se trata a bem dizer de uma história de ciúme, mas de uma história de manipulação do ciúme, agora plenamente visível, nisso cumprindo a vocação do teatro. Já tudo é teatro: a acção de Iago e o ciúme conjugam-se na técnica teatral, a qual, tal como o ciúme, não tem exterior. Othello representa a possibilidade de o teatro instruir o espectador, preparando-o para a função de autoridade capaz de confirmar a adequação do «auto-epitáfio» de Otelo ao curso de acções que com ele se completa. Aqui chegados, será talvez fácil aceitar ao menos a plausibilidade da tese que apresento, a saber: que o leitor de Dom Casmurro está mais bem preparado do que qualquer outro para perceber a indispensabilidade, não só do momento autobiográfico do herói - ou seja, a acção de deduzir da acção a própria história -, mas ainda de uma instância de autoridade que a confirme enquanto história única e necessária. Numa palavra, para perceber que a história não é decidível sem deus ex-machina hermenêutico. (Deverá ser este o capítulo que escapou a Aristóteles). De outro ângulo: Dom Casmurro é como uma tragédia depurada, reduzida ao momento essencial, aquele em que o herói pratica a acção autobiográfica. Daí a primeira pessoa, daí a ausência de testemunhos e testemunhas: daí também a ausência de dispositivo teatral. E daí a indecidibilidade. Se, enquanto herói, Bento Santiago não teve testemunhas, o pós-herói, na condição de dramaturgo, Dom Casmurro, não tem autoridade. Está mais ou menos como o espectador diligente que assistisse a uma representação do Rei Édipo em total ignorância do mito; ou como o espectador relapso que chegasse ao teatro pouco antes do final da
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representação de Othello. Mas, atenção! tem preparação que nenhum desses hipotéticos espectadores tem: assistiu a pelo menos uma representação de Othello e vai ao teatro com frequência, a ponto de se sentir habilitado a propor uma «reforma dramática». E então a história que engendra, estando por condição isenta de lances de teatro, confunde situações peculiares com lances de teatro desferidos pelo destino: a coincidência da passagem do dandy após a saída de Escobar, a coincidência de encontrar Othello quando vai ao teatro no pico da crise de ciúmes… O destino aí convocado só pode ser dramaturgo, porque imitação de dramaturgos, e os golpes que desfere imitação de peripécias e lances de teatro: como se a imitação isentasse o destino dramaturgo da exigência a que o teatro não só não escapa como representa: a de autoridade que estipule a unicidade, a completude e a necessidade das histórias. O leitor de Dom Casmurro está então em condição ideal para perceber uma outra lição: se chamarmos «destino» ao princípio de inteligibilidade da acção no teatro, o destino depende de um deus ex-machina hermenêutico; fora do teatro, o destino exige um simulacro de dispositivo teatral, sempre incompleto e imperfeito, porque desprovido desse deus exmachina. O teatro, cioso dos seus domínios próprios, não exporta para a «vida» senão o nome «destino», e mesmo assim sem deixar que designe mais do que a tentação frustrada de fazer a «vida» imitar o teatro. Ora este capítulo é que em certo sentido não escapou a Aristóteles. De facto, «destino» é termo que não tem lugar na poética aristotélica. Aristóteles considerava a tragédia um género especializado em certo tipo de acontecimentos, porque orientado para uma finalidade que não era revelar o destino, nem exprimir o trágico ou a fragilidade da condição humana: era o prazer, o prazer próprio tragédia. O facto de não ter cessado nem provavelmente poder cessar a controvérsia em volta do que venha a ser esse prazer não nos devia impedir de levar um pouco mais a sério a «reforma dramática» que também ele propôs. Ainda que sem pano a cair ou luzes que se apagam, Aristóteles sabia que chega sempre o momento em que os espectadores se vão deitar.
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