LEITURAS CONSTITUCIONAIS DO SISTEMA PENAL CONTEMPORÂNEO
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LEITURAS CONSTITUCIONAIS DO SISTEMA PENAL CONTEMPORÂNEO
SALO DE CARVALHO Organizador
www.lumenjuris.com.br EDITORES João de Almeida João Luiz da Silva Almeida CONSELHO EDITORIAL Alexandre Freitas Câmara Amilton Bueno de Carvalho Augusto Zimmermann Eugênio Rosa Fauzi Hassan Choukr Firly Nascimento Filho Flávia Lages de Castro Flávio Alves Martins Francisco de Assis M. Tavares Geraldo L. M. Prado Gustavo Sénéchal de Goffredo J. M. Leoni Lopes de Oliveira Letácio Jansen Manoel Messias Peixinho Marcos Juruena Villela Souto Paulo de Bessa Antunes Salo de Carvalho
CONSELHO CONSULTIVO Álvaro Mayrink da Costa Aurélio Wander Bastos Cinthia Robert Elida Séguin Gisele Cittadino Humberto Dalla Bernardina de Pinho José dos Santos Carvalho Filho José Fernando de Castro Farias José Ribas Vieira Marcello Ciotola Marcellus Polastri Lima Omar Gama Ben Kauss Sergio Demoro Hamilton
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LEITURAS CONSTITUCIONAIS DO SISTEMA PENAL CONTEMPORÂNEO
EDITORA LUMEN JURIS Rio de Janeiro 2004
Copyright © 2004 by Salo de Carvalho
Produção Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Salo de Carvalho
ix
PARTE I: DIREITO PENAL A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. não se responsabiliza pela originalidade desta obra e pelas opiniões nela manifestadas por seu Autores.
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei no 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei no 9.610/98).
A Liberdade de Consciência na Constituição de 1988 . . . . . . . . . Bruno Heringer Júnior
3
A problemática das Leis Penais em Branco Face ao Direito Penal do Risco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pablo Rodrigo Alflen da Silva
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A Proteção do Bem Jurídico Ambiental e os Limites do Direito Penal Contemporâneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lenôra Azevedo de Oliveira
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Delitos Informáticos – Resposta Penal? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Felipe Cardoso Moreira de Oliveira A Incompatibilidade entre a Criminalização do Inadimplemento de Tributos e o Direito Penal Garantista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Marcelo Machado Bertoluci
95
119
PARTE II: DIREITO PROCESSUAL PENAL O mito sobre a Verdade e os Sistemas Processuais . . . . . . . . . . . Gilberto Thuns Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Tutelas de Urgência, Emergência e Evidência – A Questão da Sumarização frente ao Processo Penal Garantista . . . . . . . . . . . . . Cláudia Marlise Alberton
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177
Reflexões Crítico-Fragmentárias sobre a Sentença Penal . . . . . . . Aramis Nassif
209
Breves Considerações sobre o Flagrante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Daniel Gerber
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Perspectivas de Controle do Crime Organizado na Sociedade Contemporânea: Da Crise do Modelo Liberal às Tendências de Antecipação da Punibilidade e Flexibilização das Garantias do Acusado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Francis Rafael Beck
Participam desta obra: 261 Alexandre Wunderlich – Advogado, Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS, Doutorando em ‘Derechos Humanos y Desarrollo’ pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha/ES), Professor da PUC/RS e Escola da Magistratura/RS.
PARTE III: EXECUÇÃO PENAL O Discurso Ressocializador e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Natalia Gimenes Pinzon
325
Aramis Nassif – Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Mestre em Direito pela Unisinos e Professor da Escola da Magistratura/RS.
A (I)Legitimidade do Processo de Imposição das Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro: Diagnóstico Garantista . . Ronya Soares de Brito e Souto
343
Bruno Heringer Júnior – Promotor de Justiça do Rio Grande do Sul, Mestre em Direito pela Unisinos e Professor da Escola Superior do Ministério Público/RS.
HIV/AIDS e Cárcere: Uma Leitura de sua Complexidade no Contexto das Ciências Criminais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Thaís Prestes Veras
365
O Suplício de Tântalo: a Lei 10.792/03 e a Consolidação da Política Criminal do Terror . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Salo de Carvalho e Alexandre Wunderlich
383
O Processo de Execução Penal e a Violência Estatal . . . . . . . . . . Paula Gil Larruscahim
285
Cláudia Marlise da Silva Alberton Ebling – Mestre em Direito pela Unisinos e Professora da Unisinos. Daniel Gerber – Advogado, Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS e Professor da Unisinos. Felipe Cardoso Moreira de Oliveira – Advogado, Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS e Professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Francis Rafael Beck – Advogado, Mestre em Direito pela Unisinos e Professor da Fevale. Gilberto Thums – Procurador de Justiça do Rio Grande do Sul, Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS e Professor da PUCRS. Lenôra Azevedo de Oliveira – Advogada e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Marcelo Machado Bertoluci – Advogado, Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS e Professor da PUCRS. Natalia Gimenes Pinzon – Advogada e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Pablo Rodrigo Alflen da Silva – Advogado, Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS e Professor da Ulbra (Campus Canoas e São Jerônimo).
Paula Gil Larruscahim – Advogada e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS.
Apresentação
Ronya Soares de Brito e Souto – Advogada, Mestre em Direito pela Unisinos e Professora da Ulbra (Campus Canoas). Salo de Carvalho (Org.) – Advogado, Mestre em Direito Público pela UFSC, Mestrando em Filosofia pela PUCRS, Doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR, Professor da PUCRS. Thaís Prestes Veras – Advogada, Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS e Professora da UFSM e Ulbra/Cachoeira do Sul.
A presente publicação é o resultado do processo de orientação que realizei nos últimos anos (entre 2000 e 2003) nos mestrados em Ciências Criminais do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS e no mestrado em Direito da UNISINOS/RS. Seu conteúdo é a síntese de inúmeras dissertações que tive a oportunidade de orientar. Todas, de alguma forma, estão estruturadas na base teórica do garantismo. Descobri, ao longo deste período, que a cisão orientador-orientando é apenas formal, pois, no doloroso processo de formação, professor e aluno estão engalfinhados num constante vir a ser, tendo em vista que o conhecimento não é algo estático e a “dissertação nunca termina”. No entanto, findo o rito de passagem com a banca de avaliação, após o intenso convívio durante o período de elaboração da dissertação, a tendência natural é “separação” de orientando e orientador. Ao recém-mestre, é chegado o momento de direcionar seu saber à atividade profissional (acadêmica e forense). Ao orientador, cabe prosseguir no auxílio de novos mestrandos. A falta e o vazio, porém, se concretizam, de forma muito similar ao fim da relação amorosa, no qual a separação dos amantes revela a estranheza do fato de se deixar de conviver com alguém que se imaginava ter ao lado para sempre. Este livro, ao menos para mim, representa a tentativa de experimentar novamente o saboroso gosto das relações acadêmicas e afetivas que nutri ao longo das orientações. Mais, a organização deste livro é a revelação pública do carinho que tenho por todas estas pessoas que, em sua singularidade, me ensinaram e continuam me ensinando muito. Meu eventual auxílio em sua formação não se compara com retorno afetivo e acadêmico. Penso que aprendemos juntos a desconfiar do “messianismo” da ciência penal e a desnudar o narcisismo dos juristas a partir da quebra da “rudeza cartesiana” que a todos é imposta nas Faculdades, sobretudo as de Direito. Assim, passamos a compreender as (inúmeras) limitações e as (escassas) virtudes do Direito Penal. ix
Salo de Carvalho
Aos (co)autores, portanto, meu agradecimento pela experiência proporcionada: sou absolutamente grato pelo carinho e, sobretudo, pela tolerância com minhas intolerâncias. Aos leitores, espero demonstrar que o trabalho de deslegitimação do sistema de (in)justiça penal deve ser constante, sendo este mais um tijolo na tentativa de edificação do discurso crítico. Salo de Carvalho Porto Alegre, dezembro de 2003
PARTE I DIREITO PENAL
x
A Liberdade de Consciência na Constituição de 1988 Bruno Heringer Júnior
Introdução A necessidade de progressiva atualização dos direitos humanos, para atender a novas demandas de proteção de indivíduos e coletividades, não foi desatendida pelo constituinte de 1988. A Constituição brasileira dali resultante previu uma gama significativa de direitos fundamentais, na esteira de modelos mais avançados, principalmente de países europeus e de pactos internacionais. No âmbito das liberdades, não apenas se ampliaram os direitos protegidos como previram-se diversas garantias para assegurar sua inviolabilidade. Como especificação daquelas, destaca-se o direito à liberdade de consciência, essencial para o livre desenvolvimento da personalidade e para a ampliação do espaço democrático, por favorecer a tolerância à divergência. Especial relevância assume, nesse contexto, a objeção de consciência, que há de ser tida como um direito geral, não apenas vocacionada à esfera do serviço militar, mas a todas as hipóteses em que a imposição de deveres jurídicos colida com convicções existenciais pessoais. Estabelecer os fundamentos desse direito fundamental, sem colocar em xeque a validade da ordem jurídica, é tarefa das mais delicadas, mas, por isso mesmo, das mais prementes.
1. Direito geral de liberdade: dimensões, limites e novos direitos As liberdades integram a primeira geração de direitos fundamentais,1 estabelecidas nas declarações de direitos das revoluções liberais do século XVIII. Apesar de já reconhecido em alguns pactos da Idade 1
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, pp. 32-33. 3
Bruno Heringer Júnior
A Liberdade de Consciência na Constituição de 1988
Média (como a Magna Charta Libertatum de 1215) e em Constituições da Antigüidade (como a da República romana), é com a defesa da liberdade religiosa, na época moderna, que se dá a afirmação do direito de liberdade.2 No processo de positivação jurídica de direitos de liberdade, as Constituições modernas estabeleceram, a partir de então, um amplo leque de imunidades pessoais frente às intervenções do poder político: liberdade de culto, de pensamento, de religião, de associação, de reunião, de profissão etc. Cuidava-se de direitos contra o Estado, que objetivavam assegurar aos indivíduos espaços livres da ingerência arbitrária do governo. Paulatinamente, porém, verificou-se que as liberdades não apresentavam uma dimensão apenas negativa, impeditiva da ação do Estado, mas também outra, positiva,3 consistente de prestações fáticas e jurídicas.4 Como graficamente adverte MARSHALL, “o direito à liberdade de palavra possui pouca substância se, devido à falta de educação, não se tem nada a dizer que vale a pena ser dito, e nenhum meio de se fazer ouvir se há algo a dizer”.5 Além de liberdades específicas, as Constituições costumam consagrar um dispositivo para o direito geral de liberdade. No Brasil, dispõe o art. 5o, III, da Constituição que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Também o caput desse mesmo artigo garante a inviolabilidade do direito à liberdade. Aliás, a prioridade conferida à liberdade é princípio inafastável em uma concepção liberal de Estado,6 a qual não se mostra incompatível com as teses comunitaristas que parecem ter exercido influência mais decisiva no processo constituinte pátrio.7 Na própria Alemanha, cuja Lei Fundamental indiscutivelmente contribuiu para a conformação da
Constituição nacional de 1988, a intenção normativa fundamental do título dos direitos fundamentais é o recurso ao princípio de liberdade do Estado de Direito Liberal, como resposta às ofensas à liberdade da época nazista.8 Nesse sentido, ilustra SARTORI que “democracia totalitária” somente se apresenta como uma contradictio in terminis porque “tomamos a democracia liberal como ponto de referência”; vale dizer, um Estado não-liberal, agindo em nome do povo e, assim, reivindicando legitimidade absoluta, “não poderia ser democrático em qualquer sentido significativo”.9 Tradicionalmente, entendia-se que o espaço de liberdade individual vinha delimitado pela lei; ou seja, podia-se fazer tudo o que a lei não proibisse ou mandasse. Com esse perfil, o direito geral de liberdade não constituía garantia cidadã suficiente, já que se atribuía ao legislador o poder discricionário de regular os âmbitos de liberdade da maneira que lhe aprouvesse. No entanto, a partir de decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão, em interpretação ao art. 2-110 da Lei Fundamental de Bonn, que dispõe que todos têm direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade, o direito geral de liberdade passou, progressivamente, a ser entendido de uma maneira reforçada: somente restrições derivadas das restantes determinações constitucionais poderiam limitálo.11 Demais disso, mesmo nas restrições amparadas constitucionalmente, haveria de ser observado o princípio de proporcionalidade,12 do qual decorreria, ainda, a garantia do conteúdo essencial do direito fundamental, restrição das restrições.13 Modifica-se, assim, a compreensão do princípio geral de liberdade:14 não apenas se é livre para fazer o que a lei não proibir, mas o que não deva ser proibido.15 Em outras palavras, os mandados ou as proibições legais,
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PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 6. ed. Madrid: Tecnos, 1999, pp. 108-120. ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pp. 446-448. Nesse sentido, o Tribunal Constitucional espanhol, por exemplo, reconheceu a dupla dimensão (liberdade e prestação) do direito à educação (RUBIO LLORENTE, Francisco. Derechos fundamentales y principios constitucionales: Doctrina jurisprudencial. Barcelona: Ariel, 1995, p. 432). MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e “status”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1967, p. 80. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997, pp. 266-275. CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, pp. 219-234.
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BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1993, p. 69. SARTORI, Giovanni. A Teoria da Democracia Revisitada: 2. As questões clássicas. São Paulo: Ática, 1994, p. 178. “Todos têm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, desde que não violem os direitos de outros e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral.” STCF 6, 32 (36 e segs.) (BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Op. cit., p. 99). Idem, ibidem, p. 102. ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, pp. 286-291. Sobre o direito geral de liberdade: ALEXY, Robert, op. cit., pp. 334-380. DÍAZ REVORIO, Francisco Javier. Valores superiores e interpretación constitucional. Madrid: Centro de Estudios Políticos e Constitucionales, 1997, p. 513. 5
Bruno Heringer Júnior
A Liberdade de Consciência na Constituição de 1988
em sendo restrições à liberdade, devem decorrer dos valores albergados na Constituição, sob pena de serem tidos por ilegítimos e, conseqüentemente, nulos. Não se pode sufragar, porém, a tese de que somente o que resultar transcendente para a liberdade alheia pode ser legalmente restringido, já que “incluso bienes o valores no individuales (por ejemplo, el orden público) pueden justificar la limitación de derechos fundamentales concretos”.16 Mais ainda: mesmo diante de uma restrição legal à liberdade abstratamente autorizada a partir da Constituição, pode ocorrer que, em determinada situação concreta, prevaleça o direito de liberdade sobre a proibição ou o mandado da lei. E isso porque “entre el principio general de libertad y sus limitaciones ha de producirse una ponderación, que determine cuál prevalece en el caso concreto”.17 Aliás, a Constituição não fornece uma hierarquia predeterminada de princípios. Essa hierarquia, mais propriamente, é móvel, variando de caso a caso; vale dizer, um princípio que prepondere numa situação poderá ter um peso relativamente menor em outra. Por isso, GUASTINI assinala que uma característica destacada da ponderação consiste em que, “para establecer la jerarquia axiológica, el juez no valora los dos principios en abstracto, sino que valora el posible impacto de su aplicación al caso concreto”.18 Com isso, tem-se a possibilidade de uma restrição legal à liberdade deixar de ser aplicada em dada situação, desde que a tensão das regras e dos princípios em jogo se incline favorável e decisivamente, no caso específico, à liberdade. E, se se admitir o sobreprincípio in dubio pro libertate,19 a esfera de imunidade individual amplia-se ainda mais. A atividade legislativa que interfira no âmbito do direito geral de liberdade, bem como no das liberdades específicas, necessita, portanto, de justificação constitucional suficiente. Em sendo as liberdades um direito prima facie, as restrições jurídicas devem gozar de apoio constitucional razoável, sob pena de serem deslegitimadas inclusive mediante juízo de inconstitucionalidade. O caráter prima facie dos princípios, inclusive o de liberdade, significa que eles oferecem razões que podem ser afastadas por outras
razões opostas, devendo ser realizados na maior medida possível. Não contêm, por isso, um mandado definitivo. Carecem de conteúdo de determinação relativamente às suas possibilidades fáticas e jurídicas. Apesar disso, o seu caráter prima facie pode ser reforçado com a introdução de uma carga de argumentação em favor de determinados princípios.20 Diferentemente, as regras exigem que se faça exatamente o que elas ordenam, desde que válidas; daí seu caráter definitivo. Isso não impede que se formulem exceções a regras, com base até mesmo em princípios, de modo a atenuar seu caráter definitivo.21 Também os princípios podem oferecer razões para ação, ou seja, normas individuais concretas. Ocorre que, como razões prima facie, ampararão direitos definitivos somente através de uma relação de preferência.22 Segundo lei formulada por ALEXY, a solução da colisão de princípios consiste em que, consideradas as circunstâncias do caso concreto, se estabeleça uma relação de precedência condicionada.23 Confronta-se o peso dos princípios em tensão para chegar-se à regra aplicável, resultado da ponderação. Vê-se, assim, que a natureza prima facie dos direitos fundamentais, considerados como princípios, exacerba a maleabilidade da ordem jurídica, escancarando sua dimensão política originária: o que é o Direito é algo sempre em construção e em constante disputa. E, apesar de existirem limitações importantes para a significação das normas jurídicas, a atual feição estrutural do Direito torna-o campo privilegiado dos embates ideológicos. “El discurso del derecho es el discurso del poder”, afirma CARCOVA. “En manos de los grupos dominantes, constituye un mecanismo de preservación y de recondución de sus intereses y finalidades, en manos de los grupos dominados, un mecanismo de defensa y contestación política”.24 O reconhecimento de um direito geral de liberdade, conseqüentemente, além de permitir a deslegitimação in abstracto de leis restritivas desligadas das coordenadas axiológicas da Constituição ou ofensivas ao princípio de proporcionalidade, autoriza, eventualmente, a
16 17 18 19 6
Idem, ibidem, p. 514. Idem, ibidem, p. 518. GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo. Barcelona: Gedisa, 1999, p. 170. PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Op. cit., pp. 315-316.
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Como nos Estados Unidos, em que as liberdades de expressão, de imprensa e de religião são consideradas em “preferred position” (NOWAK, John; ROTUNDA, Ronald. Constitutional Law. 6. ed. St. Paul: West Group, 2000, pp. 1.062-1.063). ALEXY, Robert. Op. cit., pp. 98-101. Idem, ibidem, pp. 101-103. Idem, ibidem, pp. 90-95. CARCOVA, Carlos Maria. “Las Funciones del Derecho”. In: Revista de Direito Público, no 85, pp. 146-147. 7
Bruno Heringer Júnior
A Liberdade de Consciência na Constituição de 1988
desconsideração in concreto de proibições ou mandados jurídicos, quando o resultado da ponderação dos princípios e regras em conflito se inclinar significativamente em direção à liberdade. A delimitação de um direito constitucional geral de liberdade permite, por outro lado, o reconhecimento de novos direitos, geralmente conseqüência da evolução social e da especial relevância de determinadas manifestações desse direito. Apesar de ser questionável a autonomia dos novos direitos, já que derivados de outros já consagrados, sua especificação dogmática confere maior segurança jurídica às situações que procuram amparar.25 DÍAZ REVORIO, analisando essas novas expressões concretas da liberdade constitucionalmente assegurada, refere que se trata de “derechos prima facie, no exentos de límites y cuya prevalencia en el caso concreto depende de la ponderación con otros derechos, bienes o valores dignos de protección constitucional”.26 Entre esses novos direitos, arrola a liberdade de disposição sobre o próprio corpo e sobre a própria vida, a voluntária autocolocação em perigo, o direito à procriação e à reprodução, à objeção de consciência.27
forma privada, sem a presença de sacerdote.29 A liberdade de culto, então, consistiu em um plus, permitindo o culto público ou o culto privado com ministro.30 A Lei Fundamental de Bonn, porém, buscando evitar que se repetissem os abusos do nacional-socialismo, especificou a liberdade de consciência – desvinculando-a de sua origem estritamente religiosa – como um direito absoluto, impedindo qualquer tipo de limitação, ao menos em sua dimensão negativa.31 Segundo STEIN, “la libertad de conciencia se refiere a las convicciones de cada individuo sobre la conducta moralmente devida. Lo que debe ser moralmente querido depende de la relación del hombre con los poderes supremos y con las capas más profundas de su ser”.32 Tais convicções podem decorrer de concepções filosóficas, religiosas, políticas etc. Nessa perspectiva, a liberdade de consciência corresponde a uma das heranças mais significativas do liberalismo moderno, qual seja, a positivação do princípio de secularização, que garante a reserva das atitudes internas, impedindo a confusão entre Direito e Moral.33 O direito fundamental à liberdade de consciência não se limita a proteger o livre desenvolvimento da consciência,34 mas também as manifestações nela amparadas. Conforme HESSE, “não está restringida à liberdade de ‘formação’ da consciência, portanto, o ‘forum internum’; mas ela compreende também a liberdade da ‘atuação’ da consciência e protege, com isso, a decisão de consciência destacada para fora”.35
2. Liberdade de consciência: fundamento constitucional e extensão A Constituição brasileira de 1988, expressamente, dispõe que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença” (art. 5o, VI). Com isso, permite contornar a via alternativa traçada pela doutrina espanhola, a qual, não tendo como amparar-se em dispositivo similar, parte da liberdade ideológica para alcançar resultados semelhantes aos fundamentados na liberdade de consciência.28 Até o século XIX, a liberdade de crença expressava-se sob a denominação de liberdade de consciência, sendo ambas, por vezes, tidas como sinônimas. No I Reich alemão, a liberdade de consciência era também designada devotio domestica simplex, uma liberdade religiosa reduzida, autorizando apenas que se professasse uma confissão em
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8
DÍAZ REVORIO, Francisco Javier. Op. cit., p. 529. Idem, ibidem, p. 535. Idem, ibidem, pp. 536-545. PÉREZ ROYO, Javier. Curso de Derecho Constitucional. 8. ed. Madrid: Marcial Pons, 2002, pp. 344-352.
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GOZÁLEZ DEL VALLE, José M. “Objeción de conciencia y libertad religiosa e ideológica en las constituciones española, americana, alemana, declaraciones de la ONU y Convenio Europeo, con jurisprudencia”. In: Revista de Derecho Privado. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, abril/1991, p. 291. Idem, ibidem, p. 275. STEIN, Ekkehart. Derecho Político. Madrid: Aguilar, 1973, p. 210. Idem, ibidem, p. 210. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: Teoría del garantismo penal. 4. ed. Madrid: Trotta, 2000, pp. 481-483. Não se trata, evidentemente, de consciência como vigília ou estado de conhecimento e percepção (SEARLE, John R. Mente, linguagem e sociedade: Filosofia no mundo real. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 45), mas de consciência moral. A língua alemã dispõe de palavras diversas para designar a simples consciência (“bewusstsein”) e a consciência moral (“gewissen”), diferentemente do português e do espanhol, que tratam de ambas sob o mesmo nome (MUGUERZA, Javier. “El tribunal de la conciencia y la conciencia del tribunal”. In: Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. Universidad de Alicante, no 15-16, 1994, pp. 535-536). HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, pp. 299-300. 9
Bruno Heringer Júnior
A Liberdade de Consciência na Constituição de 1988
Apesar de a Constituição oferecer proteção reforçada à liberdade de consciência, distinguindo-a como direito fundamental, a ordem jurídica não pode ter sua validade condicionada à adesão interna dos destinatários das normas. Com efeito, o Direito, exatamente por seu caráter heterônomo, é vinculante para todos, independentemente do eventual convencimento pessoal de que determinada lei seja imoral. É certo, porém, que a compatibilidade da ordem jurídica com as concepções morais dominantes constitui condição de sua eficácia social. Sem embargo, o reconhecimento constitucional da liberdade de consciência, como direito geral, pode implicar limitação à coatividade do Direito, já que até mesmo as regras – que descrevem imediatamente a conduta devida – são apenas preliminarmente decisivas, vale dizer, mesmo que tenham suas condições de aplicabilidade preenchidas, ainda assim podem não ser aplicadas, “pela consideração a razões excepcionais que superem a própria razão que sustenta a aplicação normal da regra”.36 As normas jurídicas, assim, continuam válidas e vinculantes para todos, mas, excepcionalmente, não podem ser impostas às pessoas que as rechaçam por suas convicções morais. A comunidade admite que não se cumpram determinadas normas jurídicas por certos indivíduos, para evitar conflitos de consciência.37 A partir desse viés, a liberdade de consciência relaciona-se com a dignidade da pessoa humana, valor expressamente elencado no art. 1o, III, da Constituição brasileira, como sendo um dos fundamentos do Estado. Revela-se, assim, como pressuposto de um Estado que se pretende instrumental do livre desenvolvimento da personalidade. Ao tratar a pessoa humana como fim, e não como meio, como sujeito, e não como objeto, o Estado Democrático de Direito busca proteger não apenas a sua vida corpórea, mas também favorecer a procura pela própria felicidade.38 A legitimidade mesma do Direito, ao cabo, depende de sua compatibilidade “com os princípios éticos de uma conduta de vida auto-responsável, projetada conscientemente, tanto de indivíduos, como de coletividades”.39
É importante ressaltar, entretanto, que a liberdade de consciência não se restringe a essa perspectiva subjetiva de garantia individual. Propicia também, no plano objetivo, a realização de inúmeros outros valores e princípios constitucionais, notadamente aqueles relativos à democracia e ao pluralismo político.40 Com efeito, o projeto constitucional é marcadamente aberto, permitindo que as forças sociais disputem a significação do Direito dentro dos marcos do compromisso político originário. Existem inúmeros “mundos constitucionalmente posibles”,41 o que impede que as concepções morais e políticas das maiorias momentâneas obstaculizem, através da ordem jurídica, as manifestações de visões alternativas. MORIN, com percuciência, observa que, tanto quanto de consenso, a democracia necessita de conflitos: a “democracia supõe e nutre a diversidade dos interesses, assim como a diversidade de idéias. O respeito à diversidade significa que a democracia não pode ser identificada com a ditadura da maioria sobre as minorias; deve comportar o direito das minorias e dos contestadores à existência e à expressão, e deve permitir a expressão das idéias heréticas e desviantes”.42 E conclui afirmando que a democracia “deve conservar a pluralidade para conservar-se a si própria”.43 Não é outro o entendimento de TOURAINE, para quem a democracia, procurando aumentar sua própria diversidade, “reconhece o trabalho do sujeito, até mesmo nos aspectos em que os outros vêem apenas transgressão de normas”.44 Outrossim, é traço caracaterístico da democracia sua incerteza referencial, vale dizer, os resultados do processo político devem ser indeterminados. Todas as forças sociais devem submeter-se à concorrência, e “nadie puede estar seguro de que sus intereses acaben por triunfar”.45 Conseqüentemente, impõe-se o reconhecimento da
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ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 69. É o que se chama “aptidão para cancelamento” das regras (defeasibility). STEIN, Ekkehart. Op. cit., p. 211. RIBEIRO LOPES, Mauricio Antonio. Princípios Políticos do Direito Penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp. 242-257. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. V. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 133.
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Sustenta-se, porém, ser condição desfavorável às instituições democráticas a existência de fortes conflitos culturais, o que revela a paradoxal tensão entre democracia e pluralismo (DAHL, Robert. La democracia: Una guia para los ciudadanos. Madrid: Taurus, 1999, pp. 170-171). MORESO, José Juan. “Mundos Constitucionalmente Posibles”. In: Isonomia, no 8, 1998, pp. 139-159. MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. 6. ed. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2002, p. 108. Idem, ibidem, p. 109. TOURAINE, Alain. O que é a Democracia? 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 194. PRZEWORSKI, Adam. “La democracia como resultado contingente de conflictos”. In: Constitucionalismo y Democracia. Organizadores Jon Elster e Rune Slagstad. México: Fondo de Cultura Económica, 1999, p. 91. 11
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contestabilidade como condição de legitimidade das decisões majoritárias: “Um governo será democrático, ou seja, representará uma forma de mando controlada pelo povo, na medida em que este povo, individual e coletivamente, possa usufruir permanentemente o direito de contestação perante as decisões do governo”.46 Exige-se, portanto, a formação de uma “República responsiva”,47 que assegure canais para a manifestação da divergência da forma mais ampla possível e que, efetivamente, a leve em consideração. Para tanto, é insuficiente reduzir a participação popular à eleição de representantes, porquanto, pela “lei das conseqüências decrescentes”, quanto mais numerosas forem as pessoas a serem representadas e as questões a serem tratadas, tanto menos a vontade real de pessoas reais será considerada.48 Mais construtivo é conceber a democracia a partir dos direitos fundamentais,49 com a ampliação dos participantes do processo de interpretação da Constituição,50 permitindo até mesmo manifestações individuais sobre a significação da ordem jurídica, principalmente quanto à extensão dos espaços de liberdade. É evidente que a própria Constituição oferece os balizamentos necessários para que as disputas e as divergências não degenerem em anarquia. Por isso, manifestações radicalmente contrárias aos valores e direitos constitucionalmente acolhidos configuram limites infranqueáveis ao exercício da liberdade de consciência em sua dimensão externa. Além do mal a tolerar e do bem de tolerar, há o intolerável. Para GIANFORMAGGIO, “la intolerancia es intolerable”, pois “la intolerancia es el limite fundamental de principio, necesario para que la tolerancia no se autodestruya”.51 No marco axiológico da Constituição brasileira, não seriam admissíveis expressões de racismo, por exemplo, mesmo que isso importasse desrespeito a convicções de grupos minoritários.52
A importância política da liberdade de consciência, portanto, consiste em que esse direito fundamental “prohíbe que la mayoría oprima la conciencia de cada individuo. Pero también impide que la minoria imponga a la mayoría sus convicciones sobre lo que debe ser querido moralmente”.53 Em outras palavras, o direito fundamental à liberdade de consciência, através de procedimentos fixados de antemão e respeitados os limites materiais impostos pela Constituição, favorece o debate político e permite a alternância das idéias sobre a organização da sociedade, em incisiva recusa à “idéia do one best way”.54 Entretanto, integra as regras do jogo, necessárias ao exercício da liberdade de consciência, o princípio de igualdade, previsto no art. 5o, caput, da Constituição brasileira. De fato, autorizarem-se isenções de deveres jurídicos por motivos de consciência não pode importar privilégios injustificados. Daí a necessidade de ter-se extrema cautela no momento de proceder ao estudo dogmático desse direito fundamental. Entende-se que a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. É, pois, inevitável que se proceda a diferenciações. Conforme BANDEIRA DE MELLO, é “sempre possível desigualar entre categorias de pessoas desde que haja uma razão prestante, aceitável, que não brigue com os valores consagrados no Texto Constitucional; isto é, que não implique exaltar desvalores”.55 O princípio da igualdade, se entendido inclusive como impossibilidade de fundamentarem-se quaisquer tratamentos diferenciados a minorias, conduz a excessos uniformizadores, com a supressão das particularidades que definem o próprio grupo. O entendimento de que não se permitem isenções às normas impostas pelo regime comum em matéria penal, civil, tributária etc., em atenção a peculiaridades culturais ou outras dos indivíduos, fatalmente levaria à eliminação das minorias por assimilação.56
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PETTIT, Philip. “Democracia e Contestabilidade”. In: Direito e Legitimidade. Organizadores Jean-Christophe Merle e Luiz Moreira. São Paulo: Landy, 2003, p. 372. Idem, ibidem, pp. 378-384. SARTORI, Giovanni. Op. cit., pp. 87-89. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 38. Idem, ibidem, pp. 20-23. GIANFORMAGGIO, Letizia. “El mal a tolerar, el bien de tolerar, lo intolerable”. In: Doxa. Cuadernos de Filosofia del Derecho. Universidad de Alicante, no 11, 1992, p. 64. Nesse sentido, Rivero critica o otimismo liberal, lembrando experiências trágicas recentes, como o fascismo, em que a liberdade de espírito conduziu à negação da dignidade
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do homem e dos valores fundamentais da sociedade (RIVERO, Jean. Les libertés publiques. Les droits de l’homme. T. 1. 8. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1997, p. 103). STEIN, Ekkehart. Op. cit., p. 211. TOURAINE, Alain. Op. cit., p. 189. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. “Princípio da isonomia: Desequiparações proibidas e desequiparações permitidas”. In: Revista Trimestral de Direito Público, no 1, 1993, p. 82. PRIETO SANCHÍS, Luis. “Minorias, respeto a la disidencia e igualdad substancial”. In: Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. Universidad de Alicante, no 15-16, 1994, p. 372. 13
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Para enfrentar esse dilema, segundo PRIETO SANCHÍS, existem somente três respostas jurídicas possíveis: “Olvidarse de la tolerancia y aplicar la sanción o consecuencia jurídica que corresponda; considerar lícita la conducta, lo que equivale a olvidarse del deber jurídico; o, en fin, recurrir a una solución intermedia, la llamada objeción de conciencia”.57 A Constituição brasileira parece ter fornecido um importante norte, ao dispor, em seu art. 5o, VIII, que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.58 Do dispositivo mencionado, parece clara a opção do Constituinte pelo oferecimento de alternativas legais ao objetor de consciência; ou seja, foi imposta ao legislador ordinário a obrigação de, ao criar mandados ou proibições jurídicas, considerar possíveis manifestações individuais divergentes fundadas em convicções morais, possibilitando isenções sem privilegiamentos. Esse entendimento é reforçado pelo disposto no art. 143, § 1o, da Constituição, em que, tratando da objeção de consciência ao serviço militar, se ponderam os bens, valores e direitos em jogo e se garante a possibilidade de sujeição à prestação substitutiva.59 Mantém-se a justa distribuição dos sacrifícios públicos com a previsão de atividade neutra ao objetor. Ocorre que a dinâmica social, geralmente, é mais célere que a jurídica, produzindo inúmeras situações de conflito de consciência decorrentes de deveres legais sem a correspondente via neutra de cumprimento. Por isso, é imperioso que se tracem o perfil e a extensão da liberdade de consciência, para oferecer solução razoável principalmente àqueles casos em que inexiste previsão legal de outro comportamento substitutivo ou em que o previsto se mostre colidente com o princípio de proporcionalidade. A existência do dever jurídico de obediência às leis pelos indivíduos é inegável. Não bastasse o conteúdo do dispositivo antes referido (art. 5o, VIII), o próprio art. 5o, II, da Constituição, que estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, permite, a contrario sensu,
fundamentá-lo. Aliás, é de observar que o Capítulo I do Título II da Constituição, em que se insere esse artigo, cuida “dos direitos e deveres individuais e coletivos”. Diferentemente, porém, dos agentes públicos, que inclusive moralmente se comprometem, através de juramento, a obedecer às leis do Estado, o dever dos cidadãos é meramente jurídico, não moral.60 Daí a importância do reconhecimento do direito fundamental à liberdade de consciência, pois autoriza a admissão eventual de isenções ao cumprimento de deveres legais com base em convicções morais divergentes. O conteúdo do art. 5o, VIII, da Constituição poderia dar a falsa idéia de que os imperativos de consciência não permitiriam o descumprimento de obrigações legais a todos impostas. Não parece ser essa, porém, a interpretação mais adequada. Em primeiro lugar, em um Estado liberal e secularizado, legislar sobre matérias sensíveis a convicções morais deve, sempre que possível, ser evitado. Em segundo lugar, a própria conjunção aditiva (“e”), anteposta à oração que trata da recusa de atendimento à prestação alternativa, evidencia que se trata de requisitos cumulativos, impondo ao legislador ordinário a obrigação de garantir, ao criarem-se deveres jurídicos, via moralmente neutra ao objetor. Em terceiro lugar, como já analisado, pode ocorrer, em casos concretos, que o peso das regras e dos princípios em disputa se incline decisivamente em favor da liberdade, autorizando a isenção. A flexibilidade da ordem jurídica é um traço distintivo da contemporaneidade, em que a complexidade e a conflituosidade sociais impedem que todas as soluções estejam exaustivamente fixadas de antemão. E não apenas o caso do serviço militar obrigatório exige respeito à consciência dissidente.61 Essa é somente a hipótese em que o próprio Constituinte sopesou os princípios em tensão e, antecipadamente, ofereceu a solução. Nos demais casos, cumpre ao legislador, primacialmente, regrar a matéria, sem prejuízo do controle judicial da eventual omissão ou da regulamentação irrazoável. E, inexistindo regra legal específica, compete ao Poder Judiciário sopesar os princípios em tensão e decidir. A diversidade e a magnitude dos valores, interesses e bens jurídico-constitucionais contrapostos à liberdade de consciência são, praticamente, imprescrutáveis. Sem embargo, RAZ parece oferecer uma di-
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Idem, ibidem, p. 373. A inobservância do disposto no art. 5o, VIII, da Constituição pode levar até à perda ou à suspensão de direitos políticos (art. 15, IV, da Constituição). A Lei no 8.239/91 regulamenta o disposto no art. 143, §§ 1o e 2o, da Constituição.
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FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., pp. 920-931. É de observar que não são todos os casos de escusa de consciência que apresentam ofensa ao princípio da igualdade, a exigir a imposição de prestação substitutiva. 15
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retriz capaz de facilitar – não, evidentemente, resolver definitivamente – o juízo de ponderação. As regras paternalistas (paternalistic laws), aquelas que impõem um dever em favor do próprio destinatário, bem como as regras de interesse público (public-interest laws), aquelas em que a contribuição individual de cada pessoa é insignificante, afigurando-se o desatendimento da norma jurídica insuficiente, portanto, para inviabilizar sozinho o objetivo da lei, permitiriam, em princípio, o reconhecimento de eventual isenção pessoal por motivos de consciência.62 De qualquer forma, é incontestável que existe um direito geral à objeção de consciência – não absoluto, evidentemente –, decorrência do reconhecimento mesmo do direito fundamental à liberdade de consciência e dos demais dispositivos constitucionais sobre o assunto, já antes apontados. Por isso, “a escusa de consciência se aplica às obrigações de forma genérica, e não somente ao serviço militar obrigatório”.63 Aliás, é princípio de hermenêutica dos direitos fundamentais o da maior extensibilidade, que impõe ao intérprete perquirirlhes todo o alcance não apenas lógico, mas também axiológico, “de forma a considerar protegidos outros que expressamente não se declaram como direitos, mas cuja postergação pode comprometer a plenitude da fruição do direito declarado”.64 A alegação de motivos de consciência não constitui, entretanto, panacéia para convicções pessoais quaisquer, com o objetivo de reconhecimento de imunidade relativamente à observância da lei. Ao contrário, apresenta pressupostos rígidos e contornos bem definidos, exigência do caráter heterônomo do Direito.
comportamentos divergentes. Até que ponto a ordem jurídica pode tolerar atos contrários a seus comandos normativos? A tensão é manifesta: por um lado, a Constituição, que traça o primado da liberdade e define os limites da inovação normativa pelo Poder Legislativo; por outro, o princípio democrático, que torna vinculantes as deliberações dos representantes do povo. Encontrar o ponto de equilíbrio entre ambos parece ser um dos principais desafios impostos pelo paradigma do Estado Constitucional de Direito, em que os dogmas da completude e da certeza da ordem jurídica já não mais podem ser entendidos à maneira tradicional. Fundamentar o direito geral à objeção de consciência, porém, é apenas o primeiro passo da tarefa. Mais complexa é a construção de seus limites dogmáticos, à luz de outros valores, bens e interesses também relevantes constitucionalmente. De qualquer forma, iniciado o “século das minorias”,65 mais atenção há que ser dispensada, juridicamente, aos dissidentes.
Considerações finais A problemática da liberdade de consciência avulta nas sociedades contemporâneas, caracterizadas pelo pluralismo – religioso, cultural, político –, fazendo aflorar a discussão acerca da justificação dos 62 63
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RAZ, Joseph. The Authority of Law: Essays on Law and Morality. Oxford: Clarendon Press, 1994, pp. 276-289. MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 124. Também admitindo, a partir do art. 5o, VIII, da Constituição, uma escusa genérica de consciência: BUZANELLO, José Carlos. Direito de Resistência Constitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 216. SALGADO, Joaquim Carlos. “Princípios Hermenêuticos dos Direitos Fundamentais”, In: Direito e Legitimidade. Organizadores Jean-Christophe Merle e Luiz Moreira. São Paulo: Landy, 2003, p. 208.
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I – Excursus esclarecedor A questão das chamadas leis penais em branco desde há muito tem permanecido à margem das investigações e pesquisas desenvolvidas no âmbito do Direito Penal brasileiro, e mesmo na literatura jurídico-penal do “mundo europeu” somente na última década se tem voltado os olhos para a mesma. Tal questão exsurge à medida em que se parte de um Direito Penal que tem a sua própria raiz no pensamento ilustrado, uma vez que este proporcionou o desenvolvimento das garantias ainda hoje asseguradas pelo Direito Penal, onde preceitos como o da secularização, da ultima ratio ou do caráter subsidiário, do princípio da legalidade, orientado pela idéia de certeza e clareza das leis penais, passaram a constituir o alicerce do que se convencionou chamar de Direito Penal clássico, os quais formaram a base do pensamento liberal do jurista alemão Karl Binding, que foi um dos primeiros juristas a desenvolvê-los em uma estrutura sistematizada. Contudo, passados quase dois séculos após a primeira edição da obra de Binding, intitulada Die Normen und ihre Übertretung,1 na qual o jurista alemão elaborou a designação e delineou os aspectos básicos das chamadas leis penais em branco, percebe-se que a problemática acerca destas não só subsiste, e de maneira latente, como se acentua ainda mais. Naturalmente, à época a hipótese desta técnica legislativa não apresentava maiores problemas, na medida em que a Constituição do Império alemão possibilitava às instâncias de categoria inferior legislar em matéria penal. No entanto, com os problemas resultantes da inspiração dos desenvolvimentos sociais, mais precisamente da moderna sociologia do risco, exsurge o chamado Direito Penal do Risco
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A obra de Karl Binding, intitulada “Die Normen und ihre Übertretung. Eine Untersuchung über die rechtsmässig Handlung und die Arten des Delikts”, teve sua primeira edição publicada no ano de 1872. 21
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A Problemática das Leis Penais em Branco em face do Direito Penal do Risco
que, com a debilitação das garantias político-criminais, tem suscitado um panorama propício para o emprego arbitrário e indiscriminado de leis penais em branco. Disso se segue a adesão a um modelo minimalista, assegurador das garantias político-criminais, isto é, a orientação pela limitação do poder punitivo estatal, que reconheça os direitos fundamentais como direitos de defesa (Abwehrrechte) contra o Estado, assumindo com isso uma posição contrária a um Direito Penal orientado pelas modernas teorias sociológicas e estabelecendo assim diretrizes para a admissibilidade das leis penais em branco em unissonância com os postulados do Estado Democrático de Direito.
relevância ainda a constatação de Binding sobre a flexibilidade destas leis, de modo que, de acordo com estas, a matéria de proibição modifica-se facilmente segundo as vicissitudes que sofrem os acontecimentos a que se referem. Tal concepção, naturalmente, estava em completa unissonância com a estrutura constitucional do Império alemão. A Constituição do Império (datada de 16 de abril de 1871) sinalizou a mudança para uma Federação com competência geral e não pela reunião das meras competências dos estados singulares. Esta, como afirma Binding,4 atribuía ao Império alemão a legislação comum sobre Direito Penal, sendo que em alguns casos a competência era tanto do Império como dos Estados da Federação (Bundesstaaten). E, embora Binding tenha observado o fato de que a designação leis penais em branco na época tenha sido completamente aceita pelo Tribunal do Reich, ressalta que Heinze já havia constatado a existência desta técnica legislativa, porém as tinha designado “blinde Strafdrohungen” (ameaças penais cegas).5 Esta concepção originária foi levada adiante e ampliada por E. Mezger, o qual insere a questão das leis penais em branco no âmbito da teoria tipo,6 sendo que, ao elaborar a distinção entre tipos fechados e tipos que necessitam de complementação, insere nestes as leis penais em branco. Segundo Mezger, tipos fechados são aqueles que “em si mesmos trazem todos os elementos do respectivo fato punível”7 e como tipos penais em branco designa “aqueles tipos que já na forma exterior (portanto, não apenas pela sua necessidade de complementação valorativa) remetem a complementações encontradas desde fora”;8
II – Leis penais em branco a) Conceito, gênese e classificação Ao desenvolver sua teoria das normas, Binding,2 orientado pelos influxos ideológicos do período (como o racionalismo historicista – que apresentou reflexos diretos na chamada Jurisprudência dos Conceitos – e pelo positivismo jurídico), constatou a existência de algumas lex imperfectas, as quais designou Blankettstrafgesetzen (leis penais em branco). Estas apresentavam como características principais, em primeiro lugar, o fato de que o tipo era descrito de modo impreciso, e em segundo, que a matéria de proibição deveria ser preenchida por uma autoridade policial local ou dos Estados ou por legislação particular; daí a clássica afirmação de que “esta proibição pode perseguir a promulgação da lei penal, onde então a lei penal temporariamente como um corpo errante procura sua alma”.3 Todavia, é de extrema
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Binding distinguia em sua teoria a lei e a norma penal, esta seria um mandato, uma proposição do Direito não legislado, ou seja, um imperativo que determina que se deve fazer ou deixar de fazer algo, e que é derivado da primeira parte da lei penal. As leis penais seriam disposições que contêm ou regras gerais sobre a responsabilidade criminal ou que declaram quais são as ações puníveis e as respectivas penas; estas se constituem de duas partes: o Tatbestand (tipo) e a Rechtsfolge (conseqüência jurídica). Com isso, Binding chegou à conclusão de que o criminoso infringe não a lei penal de acordo com a qual ele é julgado, antes ele age em unissonância com a primeira parte desta lei, ele infringe sim a norma. Para uma análise aprofundada, comparar BINDING, Karl. Die Normen und ihre Übertretung. Zweite Auflage, Bd. 1, Leipzig: Verlag Wilhelm Engelmann, 1890. BINDING, Karl. Op. cit., p. 162: “Dieses Verbot dem Erlass des Strafgesetzes erst nachfolgen kann, wo denn das Strafgesetz einstweilen wie ein irrender Körper seine Seele sucht”.
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Comparar BINDING, Karl. Op. cit., p. 158. Comparar BINDING, Karl. Op. cit., p. 161, nota de rodapé 9. Engana-se Álvaro Mayrink da Costa (cf. Direito Penal. vol. I, tomo I, 6a ed., RJ: Forense, pp. 318-319), ao ressaltar que a expressão “Blankettstrafgesetz” empregada por Binding significa “norma penal do mandato em branco”; isso demonstra uma confusão conceptual inadmissível e uma deturpação da teoria bindingniana, pois neste aspecto o autor prescinde da própria distinção de Binding entre lei e norma; ademais, a expressão utilizada seria “Blankettmandatsstrafnorm”. Cometendo engano semelhante Vladimir Giacomuzzi (cf. Norma penal em branco. in: Revista da AJURIS, jul./1999, p. 105), mas o maior engano neste último consiste em falar de “leis penais de mandato em branco”, quando Binding é claro ao afirmar que a lei penal não encerra um mandato, sendo que esta característica diz respeito exclusivamente à norma. Comparar MEZGER, Edmund. Strafrecht. AT. Ein Studienbuch. Bd. 1, Berlin: Beck’sche Verlagsbuchhandlung, 1951, pp. 84 e s. Comparar MEZGER, Edmund. Op. cit., p. 84. Comparar MEZGER, Edmund. Op. cit., p. 85. 23
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trata-se portanto de uma “técnica legislativa”. Entretanto, o conceito de lei penal em branco sofre uma notável ampliação com Mezger, pois este (com a distinção entre leis penais em branco em sentido amplo e leis penais em branco em sentido estrito) inclui a idéia de que o complemento da lei penal em branco pode estar contido na mesma lei ou em outra lei que emana da mesma instância legislativa.9 Assim, nas leis penais em branco em sentido amplo o tipo e a sanção encontramse separados externamente, sendo que a sanção vincula-se apenas a um tipo que necessita ser complementado, podendo distinguir-se duas hipóteses: ?) a complementação necessária está contida na mesma lei, o que, conforme Mezger, implica tão-só em um problema de pura técnica legislativa; e ?) o complemento está contido em outra lei, embora da mesma instância legislativa. Já nas leis penais em branco em sentido estrito a complementação necessária está incluída em uma lei de outra instância legislativa. Em consideração a esta distinção, Mezger dá a entender uma maior preocupação com o princípio da legalidade, em particular aos postulados de lex scripta e lex certa, embora considere irrelevante esta forma especial de legislação penal em branco, bem como que, em qualquer hipótese, a sua importância se limita ao âmbito da técnica legislativa externa. Assim, observa que o complemento necessário sempre integra o tipo, de maneira que o tipo já complementado cumpre as mesmas funções que os casos normais.10
das a cada uma delas, apresentaram reflexos inclusive na legislação com o recurso a instâncias mais ágeis, onde então as leis penais em branco passaram a ser reconhecidas como um “mal necessário”. Como exemplo deste desenvolvimento exasperador, vem à tona o próprio Direito Penal econômico,12 pois já a partir da Primeira Guerra Mundial desenvolveram-se novas formas jurídicas pela chamada “economia de guerra”, a qual ofereceu o quadro de uma economia inteiramente organizada, extrapolando o âmbito das relações privadas.13 Em razão disso as leis penais em branco passaram a se constituir em uma solução muito cômoda, particularmente diante das particularidades deste setor, que impuseram o recurso a disposições jurídico-penais mais flexíveis e variáveis, possibilitando a modificação da matéria de proibição mais facilmente. Mas, naturalmente, todo conceito adquire novos matizes quando se submete a novos contrastes, e neste sentido o próprio conceito de lei penal em branco adquiriu novos matizes em consideração à complexidade dos âmbitos que passaram a reclamar proteção penal. No entanto, com isso, além dos problemas de ordem constitucional, resultou ainda uma verdadeira confusão conceptual, sendo que a própria designação per se confirma esta problemática, na medida em que se tem utilizado expressões como “normas em branco” (Blankettnormen),14 “tipos em branco” (Blanketttatbestände),15 o que coaduna com a perspectiva desenvolvida por Mezger, ou ainda “prescrições em branco” (Blankettvorschriften).16 Do mesmo modo
b) Desenvolvimento e problemática O que se verifica com clareza é que já na primeira metade do século XX o emprego de leis penais em branco nas legislações se tornou cada vez maior. A multiformidade e a complexidade da vida em face dos problemas resultantes para os diversos campos de atividade (como economia, relações de consumo, tributação),11 cuja regulamentação é de difícil determinação, uma vez que dependem de conjunturas ocasionais, exigindo assim a adoção de decisões temporárias adequa-
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MEZGER, Edmund. Op. cit., pp. 85 e s. Tanto em seu Studienbuch como no Tratado, utiliza a classificação leis penais em branco “im weiteren Sinne” [em sentido amplo] e “im engeren Sinne” [em sentido estrito]. MEZGER, Edmund. Tratado de Derecho Penal. Trad. Rodriguez Muñoz, Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1955, Tomo I, pp. 397-398. Comparar TIEDEMANN, Klaus. Wirtschaftsstrafrecht. in Staatslexikon. 7. Aufl., 5. Bd., Freiburg i. Br.: Herder, 1995, p. 1.068.
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Nesse sentido comparar ANDREUCCI, Ricardo Antunes. Estudos e pareceres de Direito Penal. São Paulo: RT, p. 150, o qual, ao referir-se ao Direito Penal econômico, ressalta que “o seu objeto é vago e os bens jurídicos tutelados demasiadamente imprecisos ou heterogêneos”. Comparar ainda TRIPMAKER, Stefan. Der sujektive Tatbestand des Kursbetrugs. In Wistra, Heft 8, August 2002, Heidelberg: C. F. Müller Verlag, p. 291, o qual afirma que “a complicada técnica de remissão do legislador leva à que as manipulações cambiárias e de preços do mercado [...] devam ser punidas por decreto”. Comparar RADBRUCH, Gustav. Introdução à ciência Direito. Trad. Vera Barkow, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 93 e s. Nesse sentido comparar KOHLMANN, Gunter. Die grundsätze und die verfassungsrechtlich gewährleisteten Garantien und Rechte des deutschen Steuerstrafrechts. in Princípios, derechos y garantias constitucionales del Régimen sancionador Tributario. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales no 19/01, Vol. I, 2001, p. 18. Nesse sentido ARNOLD, Jörg. Bericht über das Drittes Chinesisch-Deutsches Kolloquium vom 31.8 bis 4.9.1998 in Beijing, Freiburg i. Br.: Max Planck, p. 11. Nesse sentido comparar TIPKE, Klaus. Steuerstrafrecht. in Staatslexikon, Bd. 3, Freiburg i. Br.: Herder, p. 318, sendo que alguns Tribunais da República Federal da Alemanha também empregam esta expressão. No mesmo sentido WESSELS, Johannes; BEULKE, Werner. Strafrecht. AT, 32. Aufl., Heidelberg: C. F. Müller Verlag, p. 34. 25
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A Problemática das Leis Penais em Branco em face do Direito Penal do Risco
pode-se falar em relação a própria idéia de lei penal em branco de que se parte: assim, por exemplo, se consideram leis penais em branco “aquelas em que o legislador se limita a fixar a cominação penal, cedendo a formulação dos tipos – o preenchimento do branco – a outros organismos, que podem ser tanto órgãos legislativos, autoridades administrativas federais, autoridades administrativas estaduais e, excepcionalmente, autoridades estrangeiras”.17 Porém, nesta hipótese, o ato legislativo estabelece a sanção de modo preciso, mas deixa o conteúdo totalmente sem especificação, pois cede a formulação do tipo. Tal idéia de lei penal em branco infringe o princípio da legalidade (tanto quanto a exigência de lex praevia, quanto de lex certa), ao mesmo tempo em que apresenta típica hipótese de delegação de atribuição legislativa proibida em matéria penal. Sob outra ótica entende-se que “normas penais em branco são aquelas cuja hipótese de fato se configura por remissão a uma norma de caráter não penal”.18 Nesta hipótese, além de rechaçar a distinção bindingniana entre lei e norma,19 ao limitar a remissão tão-só a normas de caráter não-penal (extrapenal), se prescinde da idéia de lei penal em branco em sentido amplo. Entretanto, a concepção mais grave tem sido apresentada por Tiedemann, ao elaborar um mixtum compositum de institutos que não podem ser misturados, pois equipara as leis penais em branco aos chamados “tipos penais abertos”. Assim ressalta o jurista tudesco: “Como leis penais em branco em sentido lato designam-se todos os tipos penais abertos, cuja ação e/ou matéria de proibição estão descritas de maneira incompleta e por isso necessitam complemen-
tação”.20 Contudo, as leis penais em branco não são tipos incompletos no sentido de tipos abertos,21 de modo que ambos os institutos não devem ser equiparados. Enquanto os tipos completos contêm o conteúdo do injusto de uma espécie de delito dispondo todos os elementos, nos tipos abertos os elementos constitutivos não são descritos concretamente pela lei. De fato, o grau de formação da matéria de proibição acerca das disposições individuais é distinto, de modo que a complementação dos tipos abertos o juiz produz, pelo juízo de valor comum ou pelas circunstâncias, com outros elementos.22 Este juízo de valor substitui a descrição das circunstâncias do tipo (ao contrário das leis penais em branco), de modo que estes tipos estão apenas “abertos” à concretização por meio da interpretação. Assim, pode-se dizer que nos tipos abertos há uma ampla “margem de liberdade semântica e com isso abrem ao juiz, obrigatoriamente, margens de espaço de decisão, dentro das quais ele deve se movimentar sem a instrução da lei”.23 Portanto, as leis penais em branco não se tratam de tipos abertos, pois estes não são hipóteses de técnica legislativa; são disposições cujo “complemento” (valoração!) é produzido pelo juiz por meio de um juízo de valor, ao passo que nas leis penais em branco se exige o preenchimento do tipo a partir de outros dispositivos, de modo que para a sua realização remete-se a outras disposições jurídicas (remissão interna e externa) ou atos administrativos em face da imprecisão do conteúdo do tipo, ou seja, para concretizar a norma o intérprete precisa recorrer a estas, sem as quais não se torna possível, pois estas disposições limitam as margens de espaço de decisão. Mas diante deste panorama conflitante e em razão do emprego excessivo de leis penais em branco na maior parte das legislações, torna-se insustentável o fato de que desde a sua noção e sua legitimidade até suas conseqüências permaneçam incertas, uma vez que
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MAURACH, Reinhart. Tratado de Derecho Penal. Trad. Cordoba Roda, Barcelona: Ediciones Ariel, 1962, p. 98. No mesmo sentido o conceito apresentado por ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Teoria del Delito. Argentina: Ediar, p. 189. Nesse sentido MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal. 2. ed., Valencia: Tirant lo Blanch, 1996, p. 36. Tais autores são totalmente contraditórios em suas afirmações, pois primeiramente afirmam que as leis penais em branco cuja matéria de proibição se consigna em outra lei de caráter penal (lei penal em branco em sentido amplo) são meros procedimentos de técnica legislativa, ao passo que as leis penais em branco que se determinam por autoridade de categoria inferior (lei penal em branco em sentido estrito) não se tratam de técnica legislativa, senão de um problema de competência. Contudo, ao abordar a análise das leis penais em branco e o princípio da legalidade, afirmam que o Tribunal Constitucional espanhol tem se pronunciado sobre a utilização desta técnica legislativa, mas neste caso referem-se às hipóteses complementadas por disposições administrativas (isto é, leis penais em branco em sentido estrito). Tal rechaço é manifestado de modo expresso por MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho Penal y control social. Colombia: Temis, p. 9.
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Comparar TIEDEMANN, Klaus. Blankettstrafgesetz. in Handwörterbuch des wirtschaftsund Steuerstrafrechts, Freiburg i. Br., Mai, 1990, p. 1. Nesse sentido ZAFFARONI, Eugenio Raul. Op. cit., p. 190, no mesmo sentido PIERANGELLI, José Henrique. A norma penal em branco e a sua validade temporal. In Revista dos Tribunais, no 584, RJ: RT, 1984, p. 312. Nesse sentido SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER. Strafgesetzbuch, Kommentar. 20. Aufl., München: Beck, 1980, § 13, D, V, comparar ainda JESCHECK, Hans-Heinrich. Lehrbuch des Strafrechts. AT, 3. Aufl., Berlin: Duncker & Humblot, 1978, p. 197. Comparar HASSEMER, Winfried. Einführung in die Grundlagen des Strafrechts. 2. Aufl., München: Beck, 1990, pp. 194 e s. (Há tradução desta segunda edição da obra, por Pablo Rodrigo Alflen da Silva sob o título Introdução aos Fundamentos do Direito Penal, safE, 2003). 27
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os problemas resultantes da moderna sociedade do risco tendem a fazer com que se amplie cada vez mais o emprego desta técnica, ao mesmo tempo em que objetivam a redução das garantias jurídicopenais. Assim, se se toma como horizonte de projeção a própria afirmação de Binding de que “a lei penal temporariamente como um corpo errante procura sua alma”,24 tem-se que a lei penal dispõe o preceito, mas o faz de modo impreciso, sendo que remete a outro dispositivo para precisá-lo, e isso devido à exigência do postulado de lex certa. Portanto, pode-se considerar as leis penais em branco como aquelas leis penais que fixam a cominação penal, mas que descrevem o conteúdo da matéria de proibição de modo impreciso (o branco), remetendo expressa ou tacitamente a outros dispositivos de lei (remissão interna ou externa) ou emanados de “órgãos de categoria inferior”,25 para precisá-los.
c) Justificação e inconvenientes quanto ao emprego de leis penais em branco É inegável que as leis penais em branco (em sentido amplo ou estrito) tratam-se de uma questão de técnica legislativa,26 sendo que apresentam como características principais os seguintes aspectos: –
só podem ser designadas como leis penais em branco aquelas que tipificam delitos,27 ficando, portanto, fora de consideração os dispositivos da parte geral do Código Penal e as disposições da parte especial que têm por objeto regular de maneira particularizada questões pertencentes à parte geral.
A Problemática das Leis Penais em Branco em face do Direito Penal do Risco
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Entretanto, como não bastasse o problema constitucional suscitado (que segue uma dupla via: uma referente à idéia de certeza da lei penal e a outra referente à competência legislativa em matéria penal), há dois aspectos de ordem pragmática que são considerados inconvenientes no uso de leis penais em branco: o primeiro está relacionado com a dificuldade para o conhecimento das leis penais por parte dos cidadãos,29 o segundo é apontado por Haft, ao observar como uma peculiaridade da atualidade a nova formulação de leis por meio de um sistema de remissão (Verweisungssystem), o qual pode conduzir a erros quanto à aplicação da lei, na medida em que ultrapassa a curta capacidade de recordação do homem.30 Mutatis mutandis, apesar dos inconvenientes, não é possível prescindir desta técnica, de modo que, como observa Vega, a questão a esclarecer não é tanto a de se devem existir ou não, senão como e em que medida se deve permitir a utilização de leis penais em branco no Direito Penal.31 Justamente por isso se considera que as leis penais em branco são um “mal necessário”, e que se justificam pela variabilidade das situações das quais depende a lesão do bem jurídico protegido pelo tipo em branco, pois há
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Comparar supra nota de rodapé no 3. Observando-se a partir de uma estrutura escalonada do ordenamento jurídico, ou seja, que tem como núcleo a idéia de que as normas do ordenamento não estão todas no mesmo plano, há normas superiores e normas inferiores e uma norma fundamental na qual repousa a unidade do ordenamento, comparar BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste Santos, 6. Ed., Brasília: Unb, 1995, pp. 48 e ss. Nesse sentido VEGA, Dulce María Santana. El concepto de ley penal en blanco. Buenos Aires: Ad Hoc, 2000, p. 16. Nesse sentido CURY, Enrique. La ley penal en blanco. Colombia: Temis, 1988, pp. 48-49; compara ainda JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Tratado de Derecho Penal. T. II, 3. ed., Buenos Aires: Losada, 1964, p. 348; GARCÍA-PABLOS, Antonio. Derecho Penal. Madrid, 1995, pp. 174 e ss.; TIEDEMANN, Klaus. Blankettstrafgesetz. pp. 1-5; do mesmo, Wirtschaftstrafrecht, p. 1.071; TIPKE, Klaus. Steuerstrafrecht, p. 319.
são consideradas leis penais em branco aquelas que confiam a outro dispositivo tão-só a especificação (individualização) da matéria de proibição.28 só são leis penais em branco aquelas que fazem uso de técnica de remissão (expressa ou tácita), que é outro aspecto que as distingue dos tipos abertos, ou dos tipos que empregam elementos normativos ou de conteúdo indeterminado.
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Nesse sentido RUDOLPHI/HORN/SAMSON/SCHREIBER. Systematischer Kommentar zum Strafgesetzbuch. Bd. 1, 2. Aufl., Frankfurt a.M.: Metzner Verlag, 1977, § 16, B, IV; comparar ainda MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. São Paulo Bookseler, 1997, p. 190. Tal aspecto é referido por Bacigalupo, comparar BACIGALUPO, Enrique. Princípios de Derecho Penal. 4. ed., Madrid: Akal, 1997, p. 101. Comparar HAFT, Fritjof. Recht und Sprache. in KAUFMANN/HASSEMER. Einführung in die Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart, 6. Aufl., Heidelberg: C. F. Müller Verlag, p. 272; sob outro ponto de vista MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Op. cit., p. 38, afirmam que esta técnica dificulta o trabalho do penalista não só porque remete a âmbitos jurídicos que lhe são desconhecidos ou que não conhece tão bem como o penal, senão também porque o alcance e o conteúdo distinto da norma penal em relação às demais normas jurídicas produzem uma discordância entre as próprias normas penais que não auxiliam à certeza e à segurança jurídica. Comparar VEGA, Dulce María Santana. Op. cit., p. 21. 29
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certos bens jurídicos cuja integridade depende de circunstâncias conjunturais, de maneira que uma conduta que em certo momento não a afeta, em outro pode lesioná-la gravemente.32 Sua ratio essendi se encontra não só em um princípio de economia legislativa, senão na impossibilidade de que as leis abarquem a infinita variedade dos fatos da vida, freqüentemente modificáveis no tempo. Portanto, isso decorre do fato de que determinadas matérias estreitamente vinculadas a setores mais dinâmicos do ordenamento jurídico são fortemente condicionadas por circunstâncias histórico-sociais concretas, e como a atividade legiferante nestes setores é incessante, se produziria uma grave deterioração legislativa se fossem incluídas na leis penais as hipóteses que se quer proibir de modo pormenorizado, assim, para se evitar esta deterioração, recorre-se às leis penais em branco estabelecendo um “marco” e remetendo a outras disposições para individualização do conteúdo.
ponto de vista sociológico, nos trabalhos de Ulrich Beck34 e de Niklas Luhmann,35 pois a idéia de risco suscita ao Direito Penal problemas novos e incontornáveis. Tal idéia, por um lado, anuncia o fim de uma sociedade industrial em que os riscos ou provinham de acontecimentos naturais (para a tutela dos quais o Direito Penal é absolutamente incompetente) ou de ações humanas próximas e definidas, para contenção das quais era suficiente a tutela penal dispensada aos clássicos bens jurídicos individuais.36 Por outro lado, anuncia o fim desta sociedade e sua substituição por uma sociedade tecnologizada, massificada e global, onde a ação humana se mostra como suscetível de produzir riscos, também eles globais.
III – Direito Penal do Risco Uma análise dos problemas resultantes do panorama social atual para o Direito Penal é suficiente para observar que as leis penais em branco passam a se caracterizar como um risco para o mesmo. Isso porque o Direito Penal tanto na práxis como na teoria, está passando da formalização e da vinculação aos princípios valorativos a uma tecnologia social e paulatinamente vai se convertendo em um instrumento político de manobra social. De modo que o problema atual não é mais a luta contra um Direito Penal moralizador, o que se levou adiante com as armas da filosofia política do Iluminismo, mas sim contra um Direito Penal inspirado pelas modernas teorias sociológicas, orientadas segundo um modelo globalizante, que no Direito Penal tem se refletido naquilo que se convencionou chamar Direito Penal do Risco (Risikostrafrecht).33 Tal desenvolvimento se deve particularmente às questões que se formulam perante o topos que se tornou conhecido como a Sociedade do risco, que encontra seu desenvolvimento mais elaborado, sob o
a) Direito Penal do Risco e debilitação das garantias jurídico-penais Os desenvolvimentos e os problemas resultantes dessa “sociedade do risco” para o Direito Penal foram amplamente analisados e criticados pela Escola de Frankfurt, particularmente por Prittwitz,37 o qual, sem procurar reconstruir jurídico-sociologicamente o discurso do risco, analisa três modelos na sociedade do risco: no primeiro, a sociedade se caracteriza pelo aumento dos perigos de grande dimensão – em parte novos, em parte recentemente reconhecidos – como uma conseqüência conjunta do progresso tecnológico. A partir dessa “sociedade do perigo” (Gefahrgesellschaft)38 Ulrich Beck cunhou o conceito de sociedade do risco.39 Este é complementado por um segundo modelo, no qual a sociedade do risco se apresenta como uma sociedade subjetivamente insegura, em razão dos novos riscos ou dos novos riscos percebidos. O terceiro modelo renuncia à resposta à questão sobre se a vida que se tornou perigosa e, em vez disso,
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Nesse sentido comparar CURY, Enrique. Op. cit., p. 51; comparar ainda, do mesmo, Contribución al estudio de las leyes penales en blanco. In Revista del Insituto de Ciencias Penales y Criminológicas de la Universidad de Esternado de Colombia, v. I, no 4, p. 9. Comparar acerca disso PRITTWITZ, Cornelius. Strafrecht und Risiko. in Rechtliches Risikomangement. Berlin: Duncker & Humblot, 1999, p. 194.
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Comparar BECK, Ulrich. Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne. Frankfurt: Suhrkamp, 1986. Comparar particularmente LUHMANN, Niklas. Die Welt als Wille ohne Vorstellung. in Die politische Meinung, Bonn: Verlag A. Fromm, no 229, 1986, pp. 18-21, que é um dos primeiros trabalhos no qual o autor procura desenvolver a problemática do risco. Nesse sentido DIAS, Jorge de Figueiredo. O Direito Penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade do risco”. In Revista brasileira de Ciências Criminais, no 33, 2001, pp. 43-44. Comparar PRITTWITZ, Cornelius. Op. cit., pp. 195 e ss. PRITTWITZ, Cornelius. Op. cit., p. 195. Comparar particularmente BECK, Ulrich. Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne. Frankfurt: Suhrkamp, 1986. 31
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A Problemática das Leis Penais em Branco em face do Direito Penal do Risco
observa que se estabeleceram nos âmbitos sociais importantes orientações pelo risco, que a sociedade transformou os perigos imprevisíveis e incontroláveis em riscos. De modo que a vida na sociedade do risco se tornou ao mesmo tempo objetivamente segura e insegura através de um certo convívio com os perigos e inseguranças, em razão do que aumentou principalmente a insegurança subjetiva. Tal perspectiva conduz ao surgimento de um Direito Penal do risco que, longe de aspirar a conservar o seu caráter fragmentário, como ultima ratio, tem se convertido em sola ratio, mais precisamente, em um Direito Penal expansivo,40 sendo que este caráter expansivo tem assumido um significado tridimensional: a acolhida de novos candidatos no âmbito dos bens jurídicos (tais como meio ambiente, saúde pública, mercado de capital, processamento de dados, tributos), o adiantamento das barreiras entre o comportamento impune e o punível, e a redução das exigências para a reprovação, o que se expressa na mudança de paradigma que vai da hostilidade para o bem jurídico e da perigosidade para o mesmo.41 No mesmo sentido Hassemer tem ressaltado o fato de que este moderno Direito Penal se apresenta na forma de crimes de perigo abstrato que exigem somente a prova de uma conduta perigosa, renunciam a todos os pressupostos clássicos de punição, e, com isso, naturalmente, também reduzem as respectivas possibilidades de defesa e no campo da moderna política criminal, como a criminalidade organizada, o meio ambiente, a corrupção, o tráfico de drogas ou a criminalidade econômica, encontram-se sempre novos tipos penais e agravamentos de pena.42 Ademais, ao analisar a idéia de risco, Hassemer toma como ponto referencial a idéia de segurança como um “contraconceito” de risco,43 ressaltando que o risco é categoria própria da “sociedade do risco” com a qual se pode compreender este desenvolvimento aqui
brevemente caracterizado pelo “paradigma da segurança”.44 E estes riscos modernos atingem justamente aqueles campos nos quais se executa a modernização da nossa vida, campos que expandem e em uma boa parte ainda são desconhecidos: globalização da economia e da cultura, meio ambiente, drogas, sistema monetário, migração e integração, processamento de dados, a violência por parte dos jovens.45 Em todos estes campos pode ocorrer um colapso de sistemas que leva a conseqüências imprevisíveis e que possivelmente não pode ser evitado. Com isso Hassemer ressalta que em face deste tipo de ameaça não se pode esperar uma reação racional, tranqüila, refletida por parte daqueles que são atingidos, o que se espera é muito mais uma insegurança geral, medo e orientação pela insegurança.46 Adaptando-se à ótica da sociedade do risco, o Direito Penal assume funções, aspectos e alterações que o convertem em um Direito Penal racional e funcional, orientado por uma dogmática do risco, tornando-se um eminente instrumento de prevenção, que para responder a esta sociedade insegura assume uma função simbólica,47 apresentando como característica principal o fato de que o comportamento que vai ser tipificado não se considera previamente como socialmente inadequado, ao contrário, se criminaliza para que seja considerado como socialmente desvalorado. Tal Direito Penal do risco apresenta ainda como características: um número cada vez maior de bens jurídicos protegidos; o redirecionamento dos bens jurídicos protegidos sob dois aspectos, tanto pela orientação por bens jurídicos universais (de maior amplitude e complexidade), como pelo aumento de crimes de perigo; e a menor determinação legal do injusto. Este último aspecto representa o ponto crucial na análise da problemática, a qual decorre do fato de que, com a impenetrabilidade total dos conceitos clássicos aos novos tempos, as tendências que surgem em razão do desenvolvimento desta orientação social do risco global seguem no sentido de uma “demolição do edifício conceitual da teoria do delito, assim como o do constituído pelas garantias formais e materiais do Direito Penal”.48 Pois, como observa Kaiafa-Gbandi, se
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Comparar PRITTWITZ, Cornelius. Op. cit., pp. 196 e s. Sobre a idéia de expansão do Direito Penal comparar a obra de SILVA SÁNCHEZ, Jesus-Maria. A expansão do Direito Penal. Trad. Luiz Otavio Rocha, São Paulo: RT, 2002. PRITTWITZ, Cornelius. Op. cit., p. 4. HASSEMER, Winfried. Die neue Lust auf Strafe. in Frankfurter Rundschau, 2000, p. 18. Comparar HASSEMER, Winfried. Staat, Sicherheit und Information. in Freundesgabe für Alfred Büllesbach, 2002, p. 236, orientando-se aqui no mesmo sentido de Luhmann, unicamente ao tomar a idéia de segurança como um Gegenbegriff de risco, ainda que não manifeste expressamente. Críticas e análise apontado os limites da teoria da legitimação pelo processo desenvolvida por Luhmann no Direito Penal em HASSEMER, Winfried. Einführung. pp. 98-100.
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HASSEMER, Winfried. Op. cit., p. 237. HASSEMER, Winfried. Op. cit., p. 237. HASSEMER, Winfried. Op. cit., p. 237. Comparar PRITTWITZ, Cornelius. Op. cit., p. 195. Comparar SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Op. cit., p. 75. 33
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A Problemática das Leis Penais em Branco em face do Direito Penal do Risco
não em todos, pelo menos na maior parte destes âmbitos, são registrados pontos de intersecção com o Direito Penal material, que atingem o espectro dogmático integral do delito, e que estão relacionados com o princípio do Estado de Direito, o princípio da legalidade, o princípio da culpabilidade até o da dignidade do homem, isto é, com os princípios que asseguram principalmente a função de garantia do Direito Penal.49 Tal situação reflete a tendência à restrição ou eliminação de aspectos fundamentais do Direito Penal como, por exemplo, a relativização dos princípios político-criminais de garantia, particularmente da idéia de certeza da lei penal, a qual se debilita em razão das exigências sociais de proteção penal de bens jurídicos complexos, de difícil determinação. Isso porque, segundo seus defensores, se faz evidente a primazia dos elementos de expansão em face das regras e princípios do Direito Penal clássico, tendo em vista que, dada a natureza dos interesses objetos de proteção, dita tutela seria praticamente impossível mediante as regras e os princípios clássicos. De forma que o Direito Penal não estará preparado para a tutela dos grandes riscos se teimar em ancorar a sua legitimação substancial no modelo contratual.50 Assim, seguindo esta diretriz, se preconiza a supressão de princípios que dificultam ou impedem a tipificação de certos bens jurídicos complexos, de forma que se considera mais relevante, por exemplo, “o manifesto abandono do mandato de determinação nos tipos que, com toda probabilidade, passarão a configurar o Direito Penal da criminalidade transnacional”.51 E, dessa forma, como o “legislador penal formula estes bens jurídicos universais de modo muito vago e trivial”,52 não há dúvida de que isso o leva a fazer um uso cada vez maior da técnica de remissão, com o emprego de tipos penais em branco, sendo que tal aspecto já foi ressaltado por Sieber ao afirmar que, “em razão da maior complexidade e da dinâmica, o Direito utiliza
cada vez mais conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais e remissões dinâmicas (dynamische Verweisungen)”.53
b) A matriz garantista de Ferrajoli e a Escola de Frankfurt Mutatis mutandis, ao passo que se verifica de um lado a existência deste moderno Direito Penal do risco, de outro lado se verifica a existência de matrizes que sustentam o caráter fundamental das garantias político-criminais. Na primeira, a idéia de legalidade, embora não seja contestada – na medida em que tais garantias asseguradas pelo princípio da legalidade seguem em conformidade com o estabelecido pelo garantismo penal contratualista clássico, como, por exemplo, o ideal de clareza, simplicidade e coerência das leis –, sofre uma revisão teórica com o desenvolvimento do chamado garantismo de Ferrajoli, cujo programa é calcado em um modelo teórico minimalista. Ferrajoli divide o princípio da legalidade – pressuposto básico do programa garantista – em duas regras correspondentes à sua legitimação formal ou substancial:54 o princípio da mera legalidade (ou legalidade ampla), segundo o qual só é crime o que está formalmente nominado na lei como pressuposto de uma pena e o princípio da legalidade estrita, que comporta o caráter absoluto da reserva da lei penal, de maneira que só se constitui de precisa referência empírica e factual a definição legal das hipóteses de desvio que possuem de fato um grau de determinação tendencialmente exclusivo e exaustivo no seu campo de aplicação.55 Assim, o primeiro configura a reserva (relativa) da lei dirigida ao juiz, ao qual prescreve que considere crime qualquer fenômeno livremente qualificado como tal pela lei (no sentido formal, do ato ou comando legislativo) e o segundo configura a reserva
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50 51 52
34
Comparar KAIAFA-GBANDI, Maria. Das Strafrecht an der Schwelle zum neuen Jahrtausend, in Strafrechtsprobleme an der Jahrtausendwende. Baden: Nomos, 1999, p. 44, daí ressaltar a jurista da Universidade Tessalônica, com razão, que este desenvolvimento é particularmente alarmante para a função de garantia do Direito Penal e pode levar à punibilidade descontrolada da vida social. Nesse sentido DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 45. Conforme SILVA SÀNCHEZ, Jesús-María. Op. cit., p. 94. HASSEMER, Winfried. Kennzeichen und Krisen des modernen Strafrechts. in ZRP, Heft 10, 1992, p. 381. (Há tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva sob o título “Características e crises do moderno Direito Penal” in Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, no 18, 2003, pp. 144-157)
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Comparar SIEBER, Ulrich. Mißbrauch der Informationstechnik und Informationsstrafrecht. in Herausforderungen und Perspektiven für Wirtschaft, Wissenschaft, Recht, Politik. Baden, 1996, p. 646. Comparar CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 91. Luigi Ferrajoli desenvolve o sistema garantista a partir de uma cadeia principiológica constituída por dez axiomas: (A1) Nulla poena sine crimine; (A2) Nullum crimen sine lege; (A3) Nulla lex (poenalis) sine necessitate; (A4) Nulla necessitas sine iniuria; (A5) Nulla iniuria sine actione; (A6) Nulla actio sine culpa; (A7) Nulla culpa sine iudicio; (A8) Nullum iudicium sine accusatione; (A9) Nulla accusatio sine probatione; (A10) Nulla accusatio sine defensione; comparar FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione. 5. ed., Roma-Bari: Laterza, 1998, p. 69. Comparar FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., pp. 6-7. 35
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A Problemática das Leis Penais em Branco em face do Direito Penal do Risco
absoluta da lei, dirigida ao legislador, ao qual prescreve a taxatividade e a determinação empírica da formulação legal. Todavia, Ferrajoli considera que de todos os princípios garantistas o que caracteriza especificamente o seu sistema é o princípio de legalidade estrita, pois a legalidade estrita “exige todas as outras garantias como condição necessária da legalidade penal”,56 de forma que a estrita legalidade, ou taxatividade do conteúdo, por hipótese de nível constitucional, é, ao contrário, condição de validade ou legitimidade da lei vigente. Esta se identifica com a idéia de reserva absoluta da lei, isto é, com a lei no sentido substancial da norma ou conteúdo legislativo e prescreve ainda que este conteúdo seja formado pelo fato dotado de significado unívoco e preciso, garantindo a sujeição do juiz exclusivamente à lei.57 Porém, o que se observa claramente no sistema ferrajoliano é que a certeza constitui a idéia nuclear, a partir da qual se desenvolve todo o sistema sob a ótica de um “direito penal mínimo” em oposição a um “direito penal máximo”, os quais se distinguem de acordo com a maior ou menor quantidade ou qualidade de vínculos garantistas que compõe a estrutura do sistema. Assim, um direito penal mínimo, maximamente condicionado e limitado, corresponde não só ao máximo grau de tutela da liberdade dos cidadãos contra o arbítrio punitivo, como também a um ideal de racionalidade e certeza. Sob este aspecto pode-se dizer ainda que um Direito Penal mínimo está identificado com o Direito Penal de um Estado de Direito, expressando com isso um tipo de ordenamento no qual o poder público, e especificamente o penal, é rigorosamente limitado e vinculado à lei, ao passo que o chamado Direito Penal máximo configura o sistema de controle penal próprio de um Estado absoluto ou totalitário, expressando com isso os ordenamentos nos quais os poderes públicos não são disciplinados pela lei e portanto privados de limites e condições.58 Com isso a idéia da máxima determinação (certeza) da lei penal corresponderia a um Direito Penal mínimo, na medida em que a racionalidade deste está necessariamente ligada à idéia de que as intervenções jurídico-penais são previsíveis de tal modo que nenhum inocente seja punido.59
Em relação a estes aspectos a matriz garantista converge com o minimalismo da Escola de Frankfurt, particularmente com a orientação de Hassemer, que, partindo das garantias jurídico-penais da tradição iluminista, analisa o Direito Penal como um meio de controle social formalizado, que consiste na limitação da intervenção punitiva. Entende o jurista alemão que o Direito Penal do século XIX já se baseava na idéia de precisão dos conceitos e pressupostos que autorizam a punição, mas que só mais recentemente foram intensificados e complementados os esforços da antiga tradição jurídico-penal pelos limites às intervenções penais, reconhecendo os direitos fundamentais como direitos de defesa contra o Estado, sendo que a intervenção arbitrária, com a elaboração de leis penais extremamente vagas e abrangentes pelo legislador, implica abuso, “o qual configura uma ameaça à segurança, clareza, previsibilidade e controlabilidade, isto é: à legalidade do nosso ordenamento jurídico”.60 Nesse sentido, e principalmente diante do panorama orientado pelo risco global, tanto a perspectiva apresentada pelo garantismo de Ferrajoli, como pelo minimalismo da Escola Frankfurt, com Hassemer e Prittwitz, são indicadas como orientações racionais, ao passo em que convergem ao tomarem a Constituição como a base para a construção de um Direito Penal assegurador das garantias fundamentais dos cidadãos em um Estado de Direito.61
c) Debilitação da idéia de certeza e o emprego de leis penais em branco A breve reflexão elaborada até aqui sobre o panorama crítico atual, o qual tem estabelecido a exigência de renúncia aos princípios que estão atravessados nessa modernidade, indica que a idéia de uma criminalização determinada ao máximo possível está no retículo do Direito Penal do risco, na medida em que se exige que o Direito Penal
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FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 71. O jurista italiano refere-se aqui aos axiomas nulla lex poenalis sine necessitate, sine iniuria, sine actione, sine culpa, sine iudicio, sine accusatione, sine probatione, sine defensione. Comparar FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 72. FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 81. FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 83.
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Comparar HASSEMER, Winfried. Der hölzerne Handschuh des Anstands. In Novo, Frankfurt A. M.: Alexander Horn Verlag, no 50/51, 2001, p. 77. Apesar disso, o modelo frankfurtiano apresenta-se mais coeso, na medida em que preconiza a redução do Direito Penal a um “Direito Penal nuclear”, ao qual pertençam todas as lesões aos bens jurídicos individuais clássicos, sem renunciar, no entanto, à proteção aos bens jurídicos universais, bastando para isso que sejam formulados do modo mais preciso possível e funcionalizados pelos bens jurídicos individuais. Comparar quanto a isso HASSEMER, Winfried. Kennzeichen, p. 378. 37
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se torne mais “flexível e abrangente para poder responder de maneira adequada às crescentes perturbações”.62 Desta forma, como o chamado “mandato de certeza” é considerado o inimigo da flexibilização – dos crescentes e futuros problemas colocados a um Direito aberto –, em um Direito Penal moderno orientado pelo risco não se exige que o legislador seja cauteloso ao introduzir conceitos jurídicos indeterminados, normativos e cláusulas gerais, basta apenas (e isto tem sido freqüente) que ele escolha conceitos que possam ser aplicados do modo mais flexível e superficial possível.63 Isso conduz, sem dúvida, cada vez mais ao emprego – além de tipos penais excessivamente vagos e ambíguos – de cláusulas gerais64 como a da técnica legislativa das leis penais em branco,65 principalmente aquelas que fazem uso de remissões dinâmicas, tendo em vista que o panorama atual comporta um número incalculável de situações extremamente complexas, o que justamente era utilizado como fundamento para o uso desta técnica já em épocas nas quais as situações complexas que reclamavam tutela jurídico-penal eram em número reduzido e cuja complexidade possuía extensão muito menor. Tal problemática já foi verificada por Filippo Sgubbi, principalmente ao observar que com o desaparecimento (scomparsa) da divisão de poderes, a autoridade administrativa independente torna-se legislador.66 Contudo, o problema em relação a este aspecto (violação ao princípio nullum crimen nulla poena sine lege certa) segue duas orientações: o primeiro, típico de um Estado absoluto ou autoritário, se refere ao fato
de que a lei não possibilita aos cidadãos conhecimento suficiente daquilo que lhe é proibido e o segundo diz respeito ao fato de que, como “a certeza da norma penal é a base da idéia de prevenção geral, pelo menos sob o ponto de vista da intimidação e da exigência de previsibilidade do uso do poder coercitivo estatal”,67 tal idéia se desvanece. Esta orientação leva à que o Direito Penal se desenvolva unicamente como um instrumento de solução dos conflitos sociais, sendo que, com isso, não se distingue mais, tanto quanto à sua utilidade, como pela sua gravidade, dos outros instrumentos de solução destes conflitos, de maneira que, apesar dos seus instrumentos rigorosos, o Direito Penal torna-se um soft law, um meio de manobra social. O mandato de certeza é conseqüência obrigatória do fato de que um sistema jurídico se organiza sobre codificações, isto é, sobre leis escritas; entretanto, o moderno legislador segue uma tendência à experimentação, orientando-se pelas conseqüências, e quanto mais o legislador penal toma em consideração as conseqüências, preocupando-se com os efeitos empíricos da sua atuação (e justifica a sua atuação pela produção e pela falta de tais efeitos) tanto mais ameaça a lex certa68 e à medida que se formulam preceitos pouco claros, imprecisos, extremamente flexíveis, as questões que não são resolvidas pelo legislador ficam entregues ao desenvolvimento judicial, e aqui reside o risco maior, pois a jurisprudência pode desenvolver uma norma formulada de modo flexível, em uma direção completamente oposta àquela que o legislador queria lhe dar.69 Por outro lado, ao retirar as garantias do Direito Penal em geral, fazendo uso, aliás, de um efeito simbólico, será eliminada a sua potência jurídica protetora e se terão instrumentos que não servirão para nada ou tão-só ao arbítrio punitivo. Representativo neste sentido é o emprego abusivo, arbitrário e desvinculado de preceitos constitucionais justamente de leis penais em branco, as quais se apresentam como instrumentos oportunos para regular as situações complexas que caracterizam a criminalidade moderna (a exemplo da legislação ambiental brasileira). O que se verifica já no âmbito da União Européia, onde expressões como Blankettstrafgesetzgebung (legislação penal em branco) e Blankettstrafrecht (Direito Penal em branco) são de uso
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Comparar acerca disso HASSEMER, Winfried. Einführung, p. 380. Comparar ainda BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao Direito Penal. Forense, 2003, p. 80, o qual, ao observar em relação à lei penal que há uma tendência do legislador moderno em se expressar com signos pouco claros e até mesmo ambíguos, ressalta, ademais, que “se em alguns ramos do Direito, que precisam de uma característica de mobilidade – como, por exemplo, no Direito Econômico – isto pode ser considerado um indício de modernidade, em outros – é o caso do Direito Penal – a falta de clareza na formulação da lei significa uma afronta aos cidadãos, que ficam sujeitos à instabilidade e à insegurança”. Nesse sentido HASSEMER, Winfried. Kennzeichen, p. 382. Paradigmático DREIER, Ralf. Generalklausel, in Staatslexikon. Freiburg i.B.: Verlag Herder, Bd. 2, 1995, p. 863. A nova forma de manifestação da criminalidade tem levado a um uso cada vez mais freqüente de leis penais em branco, sendo que isto já tem sido observado amplamente na União Européia, principalmente nos âmbitos da criminalidade econômica, ambiental, drogas ou ainda, lavagem de dinheiro, comparar, com uma análise abrangente da questão, DANNECKER, Gerhard. Strafrecht in der Europäischen Gemeinschaft, in JZ, München: Mohr Siebeck, no 18, p. 869, especialmente as pp. 870 e 874 e ss. Comparar SGUBBI, Filippo. Il Diritto penale incerto ed efficace, in Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Milano: Giuffrè, no 04, 2001, p. 1.193.
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SGUBBI, Filippo. Op. cit., p. 1.193. Comparar HASSEMER, Winfried. Einführung, p. 255. Comparar HASSEMER, Winfried. Op. cit., p. 257. 39
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corrente, e em face disso já se analisam diretrizes de caráter comunitário para o uso de tal técnica.70 Diante deste panorama, é mister ter em vista as palavras de Ferrajoli, ao ressaltar o fato de que uma norma em branco é comparável “a uma espécie de caixa vazia preenchível de volta a volta com conteúdos muito arbitrários”, típicas de um “estado de polícia que consente intervenções punitivas livres de qualquer vínculo”,71 principalmente porque disso se deduz que as leis penais em branco não possuem per se um conteúdo arbitrário, porém, à medida que o seu emprego por parte do legislador se faz livre de qualquer vínculo e sem a observância dos limites quanto ao uso desta técnica, ou seja, sem a observância tanto das garantias fundamentais dos cidadãos como das garantias jurídico-penais que as asseguram – as quais realizam a função de garantia da lei penal, desempenhada sobretudo pelo princípio da legalidade –, configuram um meio arbitrário de punição. Com isso, não resta dúvida de que o conflito existente no Direito Penal entre modernismo e conservadorismo é inevitável e muito difícil de ser solucionado. Porém, é preciso ter em vista que a “reformulação” do postulado da certeza da lei penal, do modo como tem sido proposta pelos defensores de um Direito Penal do risco de caráter expansionista, conforme já referido (no sentido de flexibilização ou debilitação do postulado), configura “violação” aos preceitos constitucionais do Estado de Direito, já que a conversão das leis penais em dispositivos extremamente abrangentes e flexíveis representam um risco às garantias fundamentais dos cidadãos. De forma que já por isso é necessário estabelecer diretrizes, com assento constitucional, para a elaboração desta técnica legislativa.
derno Direito Penal, mas, por outro lado, tem gerado ainda problemas de ordem jurídico-estatal, e isso se reflete claramente na idéia de superação do caráter ilimitado da soberania estatal, na medida em que esta se faz indispensável para o desenvolvimento de um constitucionalismo mundial.73 Contudo, a afirmação de que o Estado titular do poder-dever de punir impõe a lei penal por ele editada ao seu território,74 ou ainda de que o seu âmbito de eficácia se deve cingir positiva e negativamente ao chamado território nacional pertencente a um Estado,75 demonstra que ainda prevalece a noção de um Estado constitucional que assenta na idéia tradicional de soberania76 (conforme o princípio insculpido no art. 1o, I, da Constituição da República Federativa do Brasil); partindo assim de uma noção de Estado que só pode atuar nos limites das competências que lhe são referidas pela Constituição, de maneira que já a partir daí se observa que esta exerce um papel fundamental na legitimação das leis penais. Isso porque a lei penal, como expressão de uma concepção de Estado de Direito, tem projetado na Constituição prescrições concretas que afetam o conteúdo mesmo do Direito Penal estabelecendo limites. A este entendimento segue a afirmação de Ferrajoli de que o “legislador penal não tem o poder de dispor ou predispor proibições, penas e juízos ‘quando’ e ‘como’ quiser, mas só na presença das condições estabelecidas como necessárias aos princípios garantistas enunciados pela Constituição”.77 Um Estado Democrático de Direito, assim como o Brasil, tem como uma de suas orientações que o poder estatal seja considerado como vinculado sobretudo a determinados princípios ou valores jurídicos superiores que são reconhecidos como elementos essenciais do
IV – Aspectos Constitucionais e diretrizes: à guisa de conclusão
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A chamada “Weltrisikogesellschaft” (Sociedade Mundial do Risco), como mais recentemente tem referido Beck,72 tem manifestado aspectos sociológicos determinantes para o desenvolvimento do mo-
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Comparar acerca disso EISELE, Jörg. Einflussnahme auf nationales Strafrecht durch Richtliniengebung der EG. in JZ, München: Mohr Siebeck, no 23, 2001, p. 1.164. FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 79. Comparar BECK, Ulrich. Das Schweigen der Wörter und die politische Dynamik in der Weltrisikogesellschaft. Moskau: Duma Rede, 2001, p. 4.
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Comparar FERRAJOLI, Luigi. O Direito como sistema de garantias. In O novo em Direito e Política, Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 107; comparar ainda MAIZIÈRE, Thomas de. Globalisierung und Nationalstaat. in Die politische Meinung. Bonn, no 382, 2001, pp. 19-24, o qual ressalta que a Globalização tem enfraquecido de modo particularmente acentuado o Estado (nacional). Comparar JUNIOR, Miguel Reale. Instituições de Direito Penal, I. Forense, 2003, p. 107. Nesse sentido COSTA, José de Faria. A globalização e o Direito Penal. In Revista de Estudos Criminais, no 06, 2002, p. 27. Soberania entende-se aqui como um atributo do Estado que se traduz pela circunstância de não reconhecer nenhum outro poder superior nem igual ao seu na ordem interna, sobre isso comparar BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política, p. 94; comparar ainda FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. O Estado do futuro e o futuro do Estado in Direito e Democracia, Canoas, v. 1, no 1, 2000, p. 84. Comparar FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione, p. 721. 41
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postulado do Estado de Direito, dentre os quais se destaca o da segurança jurídica, o qual implica o fato de que a lei que responde aos pressupostos deste postulado deve também dizer ao indivíduo o que se ajusta ao direito e o que não.78 Se poderia dizer, à primeira vista, que unicamente a este postulado de caráter formal corresponde o princípio da legalidade, como expressão do Estado de Direito. No entanto, se se observa ainda que um Estado de Direito começa a existir materialmente a partir da garantia dos direitos fundamentais, esta orientação é analisada sob outro prisma na medida em que a Constituição Federal, ao estabelecer no art. 5o os direitos e garantias fundamentais, elencou no inciso XXXIX o princípio da legalidade, sendo que aqui este incorpora a posição de garantia fundamental e, ao mesmo tempo, de garantidor dos demais direitos e garantias fundamentais. Assim circunscrevendo-o ao plano jurídico-penal, se verifica que ele assume duplo caráter na orientação da legitimação da lei penal, enquanto postulado representativo de um Estado Democrático de Direito, de forma que a preconizada debilitação ou flexibilização deste princípio, de qualquer modo, implica a quebra de tal postulado. Com isso se observa que para se decidir acerca do rechaço ou da aceitação das chamadas leis penais em branco é preciso passar necessariamente pela validação constitucional das mesmas,79 sendo importante ressaltar que o problema da admissibilidade constitucional das leis penais em branco refere-se a ambas as classificações (leis penais em branco em sentido amplo e estrito).80 Ademais, como em determinadas matérias, devido a sua variabilidade e complexidade, somente pode se realizar sua proteção penal, eficaz e corretamente, por meio de leis penais em branco; a proscrição destas, portanto, poderia produzir situações muitos mais perigosas, como o emprego pelo legislador de leis completamente indeterminadas ou tipos abertos, particularmente em face da nova orientação social pelo risco e da tendência do legislador em fazer uso de um Direito Penal simbólico. No entanto, sua admissibilidade incontestada e incontrolada afetaria a vigência absoluta do princípio da legalidade (enquanto expressão típica do “Rechtsstaatsprinzip”)81 e, por conseqüência, levaria à
violação de outros preceitos constitucionais. Dessa forma, a solução, que por sua vez implica a constitucionalidade das leis penais em branco, está em admitir a compatibilidade destas com o princípio da legalidade, desde que cumpram as exigências que garantem de modo suficiente a efetividade das funções políticas atribuídas a este, tanto no plano formal como material, bem como a sua compatibilidade com os demais dispositivos constitucionais, tanto os referentes aos direitos fundamentais, como os referentes à competência legislativa.82 No entanto, o que se deve ressaltar é o aspecto de que a Constituição não proíbe ao legislador o emprego de leis penais em branco, mas sim a partir dos seus preceitos é possível traçar diretrizes quanto ao seu emprego, sendo que estas só serão inconstitucionais quando não observarem os aspectos constitucionais referentes à sua admissibilidade. Dito de outro modo, ao legislador é facultado recorrer à técnica de remissão das leis penais em branco na construção dos tipos penais, quando apresentar-se como imprescindível para a incriminação de determinados fatos, embora deva sempre ter em vista os limites constitucionais que lhe são estabelecidos, bem como as exigências decorrentes do princípio da legalidade, caso contrário, verificar-se-á a inconstitucionalidade destas leis. Portanto, ainda que se destaquem os riscos apresentados pela técnica de remissão destas leis, não há como prescindir da sua utilização. Disso resulta que as leis penais em branco não são inadmissíveis, apesar de remeterem em algumas hipóteses ao conteúdo de dispositivos ainda desconhecidos emanados de outra instância, pois a suposição de legalidade também vige nesse sentido,83 contudo o legislador deve estabelecer a lei em branco em consonância com o princípio da legalidade, pronunciando a pena sem dubiedades e junto a isso descrever o conteúdo, o fim e a extensão da proibição (especificando pelo menos a conduta ou o resultado proibidos, já na lei formal), de modo que o cidadão possa concluir acerca dos pressupostos da punibilidade e a espécie de pena cominada já a partir da lei, caso contrário não estará cumprido o princípio da certeza legal dos crimes e das penas.84 Um primeiro aspecto que exsurge aqui, aliás, é o de que as leis penais em branco em sentido estrito, ao remeterem o preenchimento do
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Comparar BENDA, Ernest. Manual de Derecho Constitucional. Madri: Marcial Pons, 2001, pp. 490 e 493. Comparar VEGA, Dulce Maria Santana. Op. cit., p. 22. Nesse sentido, comparar CURY, Enrique. La ley penal en blanco, p. 57. Comparar STERN, Klaus. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland. Bd. 1, 2. Aufl., München: Beck, 1984, pp. 825 e ss.
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Nesse sentido CURY, Enrique. Op. cit., p. 58. Nesse sentido JESCHECK, Hans-Heinrich. Op. cit., p. 86. Nesse sentido CURY, Enrique. Op. cit., p. 59; comparar ainda JESCHECK, Hans-Heinrich. Op. cit., p. 86. 43
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branco a dispositivos emanados de instâncias de categoria inferior, implicariam delegação de poderes, de forma que configurariam hipótese de inconstitucionalidade, uma vez que no Brasil é competência privativa da União legislar em matéria penal. Quanto a isso se pode ressaltar que as leis penais em branco em sentido estrito não configuram tal hipótese, desde que a sua estrutura venha imposta pela divisão de poderes, o que ocorre quando a lei em branco (formal) descreve suficientemente a matéria de proibição remetendo tão-só a individualização, e não o estabelecimento da matéria de proibição, a dispositivo emanado de outro órgão de “categoria inferior”.85 e 86 Pois, ao remeter a definição do núcleo do fato punível a um regulamento, se estaria habilitando à Administração “legislar” em matéria penal, infringindo-se, por conseqüência, tanto o disposto no art. 22, I, da CF/88, como o princípio da legalidade. Trata-se da primeira diretriz a ser observada pelo legislador na elaboração da lei penal. A segunda diretriz diz respeito à descrição suficiente da conduta punível, a qual decorre do fundamento básico do princípio da legalidade, qual seja, o de que o destinatário da norma, com auxílio no respectivo texto e a partir da interpretação do mesmo, possa prever que conduta está proibida penalmente e qual pena será aplicada no caso de eventual violação, para que, conseqüentemente, a partir do princípio do Rechtsstaat (Estado de Direito), se possa justificar a intervenção do Estado na esfera dos direitos do cidadão. A lei formal a que se refere o princípio da legalidade pode cumprir sua função sem oferecer uma descrição pormenorizada (casuística) de todas as circunstâncias necessárias para que uma conduta seja passível de punição com uma pena. E para isso é suficiente a indicação da conduta que será punida, se perpetrada juntamente com alguns pressupostos que estão individualizados em dispositivo jurídico distinto.87 Assim, para que seja admitida constitucionalmente a técnica de remissão, é exigido que na lei fiquem suficientemente determinados os elementos essenciais da conduta (objetivos e subjetivos), ou seja, nos tipos penais não se descrevem condutas “puras”, senão elaboram-se precisões que as especificam, de modo que só a sua execução em determinadas circunstâncias se ajusta ao esquema traçado por cada um deles, do que resulta ainda que a lei
penal em branco não precisa se referir aos aspectos que não integram a conduta punível. Jescheck ressalta que os tipos “descrevem a conduta, o objeto da conduta, eventualmente o resultado, as circunstâncias exteriores da ação e a pessoa do autor”,88 os quais todavia permanecem fora do conteúdo da conduta. E, como adverte Cury,89 a lei penal em branco não requer referência às circunstâncias, podendo remeter a sua especificação ao dispositivo de complementação. Por outro lado é necessário observar que não se exige que a descrição da matéria de proibição cumpra-se empregando de precisão lógica, pois isto escapa até mesmo às possibilidades da linguagem, na medida em que esta exige uma relação com a realidade.90 Outro aspecto diz respeito ao dispositivo ao qual se remete para o “preenchimento do branco”, que deve ser necessariamente determinado, de modo que cumpra com o objetivo de “complementação” da lei penal em branco e não implique uma segunda remissão (remissão sucessiva),91 pois neste caso a idéia de segurança jurídica é colocada em perigo quando a precisão deve ser obtida a partir da remissão a diversos dispositivos de complementação, dificultando, ademais, ao cidadão o conhecimento da lei, na medida em que “ultrapassa a curta capacidade de recordação do homem”.92 Tal questão, no entanto, exige que faça referência a um aspecto peculiar das chamadas remissões dinâmicas. Ao passo em que nas chamadas remissões estáticas ocorre a hipótese em que a lei penal em branco se limita a referir-se (remeter) ao conteúdo de outra lei que, desta forma, o torna fixo, as remissões dinâmicas remetem ao estado atual de uma norma exterior e às modificações futuras desta, ou seja, às suas respectivas versões, sendo que a tendência em relação a estas
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Analisado sob uma perspectiva escalonada do ordenamento jurídico. Nesse sentido comparar TRIPMAKER, Stefan. Op. cit., p. 292. Nesse sentido comparar CURY, Enrique. Contribución al estudio de las leyes penales en blanco, p. 15.
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JESCHECK, Hans-Heinrich. Op. cit., p. 220. Comparar CURY, Enrique. La ley penal en blanco, p. 73. Comparar HASSEMER, Winfried. Einführung, p. 178. Tal problemática ocorre com o art. 269 do Código Penal brasileiro, que remete o preenchimento do branco (que consiste na elaboração do rol de doenças cuja “notificação é compulsória”) à Lei 6.259/75 (art. 7o, I e II), a qual preenche parcialmente o branco do tipo ao especificar que são de notificação compulsória, primeiramente, as doenças que impliquem medidas de isolamento ou quarentena de acordo com o Regulamento Sanitário Internacional (ou seja, remetem, por sua vez, a este último), e, por conseguinte, as doenças constantes de relação elaborada pelo Ministério da Saúde, para cada Unidade da Federação, a ser atualizada periodicamente (neste caso, trata-se de segunda remissão ou remissão sucessiva, no qual órgão de hierarquia inferior tem a capacidade de estabelecer o espaço de risco permitido em matéria penal). HAFT, Fritjof. Op. cit., p. 272. 45
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A Proteção do Bem Jurídico Ambiental e os Limites do Direito Penal Contemporâneo
últimas, que têm sido referidas por Tiedemann,93 é a de remissão a “regras de técnicas em geral reconhecidas”, a qual recentemente foi alvo da crítica de Vega94 que, com razão, observa que estas se fazem “extramuros” ao ordenamento jurídico, de maneira que devem ser rechaçadas, pois consistem na remissão a regras emanadas de organismos profissionais privados (p. ex., regras de projeção, orientação ou execução de construções), violando, assim, o princípio da legalidade, bem com o próprio princípio do Estado de Direito.
Lenôra Azevedo de Oliveira
1. Considerações Introdutórias As relações do homem ocidental com a natureza e as mudanças ecológicas advindas dessa relação, por vezes violenta, são fruto da dicotomia homem-natureza/sujeito-objeto, advinda do paradigma moderno característico da sociedade ocidental. Neste aspecto, o uso de tecnologias e a apropriação do meio ambiente como produtor de recursos inesgotáveis e assimilador de rejeitos contempla uma complexidade, que, quando ignorada, pode resultar medidas ineficazes de proteção e manutenção do meio ambiente. A visão moderna de que a natureza é um objeto que deve satisfazer as necessidades do homem tem como resultado a degradação ambiental, cuja conseqüência pode ser observada pela deterioração da qualidade de vida no planeta. Pode-se dizer que a tecnologia empregada na transformação de matérias-primas em objetos de consumo faz com que “nos empolguemos com nosso fabuloso poderio tecnológico e nos orgulhemos do ‘domínio da natureza’, nosso entusiasmo pueril nos torna cegos diante dos verdadeiros custos das modernas tecnologias e não nos permite ver nossa total incapacidade de repor, com a mesma facilidade, o que destruímos”.1 Este poderio tecnológico desenvolvido ao longo dos séculos XIX e XX, cujo intuito visa à satisfação e bemestar do indivíduo, tem sido uma das principais causas da degradação ambiental. Esta degradação tem causado impactos ambientais,2 cuja freqüência e conseqüência têm colocado em risco a própria vida no planeta, uma vez que
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Comparar TIEDEMANN, Klaus. Blankettstrafgesetz, p. 1. Comparar VEGA, Dulce Maria Santana. Op. cit., p. 46.
Lutzenberger, José. O Fim do Futuro?: Manifesto Ecológico Brasileiro, p. 14. Impacto Ambiental: qualquer alteração significativa do meio ambiente – em um ou mais de seus componetes – provocados por uma ação humana. Milaré, Edis. Direito do Ambiente, p. 671. 47
Lenôra Azevedo de Oliveira
A Proteção do Bem Jurídico Ambiental e os Limites do Direito Penal Contemporâneo
o extraordinário desenvolvimento da técnica ao longo dos anos da chamada era industrial, não obstante ter sido responsável por um incremento inegável das condições de vida e pela satisfação de inúmeras necessidades da sociedade em que se assentou (...) foi ainda responsável, qual reverso da medalha, pela gênese e multiplicação de novos riscos.3
uma das principais causas da problemática ambiental foi atribuída ao processo histórico do qual emergem a ciência moderna e a Revolução Industrial. Esse processo deu lugar à distinção das ciências, ao fracionamento do conhecimento e à compartimentação da realidade em campos disciplinares confinados, com o propósito de incrementar a eficácia do saber da cadeia tecnológica de produção.
Os efeitos e riscos da degradação ambiental, nem sempre perceptíveis, têm atuação local e global, sendo locais “os efeitos produzidos e sentidos pelas populações ou agentes econômicos locais, como é o caso das poluições do ar e da água”, e globais quando “as causas estão disseminadas pelo mundo, e os efeitos podem se dar em nível planetário (embora muitas vezes não sejam sentidos localmente), como é o caso do efeito estufa, da destruição da camada de ozônio e a perda de grandes áreas florestais”.4 Este panorama permite afirmar que “nunca foi-se tão longe tecnologicamente e nunca as contradições foram tão evidentes e reclamantes. Há algum tempo soa o alarme.5 Para regulamentar as relações do homem com a natureza, visando evitar a crescente degradação do meio ambiente, uma das ferramentas de proteção ambiental introduzidas no ordenamento jurídico foi a tutela penal, estabelecida de forma gradativa até o ápice determinado pelo artigo 225 da Constituição Federal. A partir disso, questiona-se a eficácia da proteção ambiental através do Direito Penal, fato que tem causado inúmeras discussões entre os doutrinadores penais, considerando sua matriz racional-antropocêntrica, inspirada no paradigma moderno, em contradição com a complexidade das questões ambientais.
2. Paradigma Moderno e Complexidade As idéias Humanistas, caracterizadas pela exaltação do indivíduo e valorização da razão, marcam o paradigma da modernidade que até hoje orienta a sociedade ocidental. Assim, desde o século XV, esse prisma passou a influenciar o desenvolvimento não somente das ciências naturais, mas também das ciências sociais. Leff6 comenta que 3 4 5 6 48
Fernandes, Paulo. Globalização, ‘Sociedade de Risco’ e o Futuro do Direito Penal. Souza, Renato Santos de. Entendendo a Questão Ambiental: temas de economia, política e gestão do meio ambiente, p. 43. Pelizzoli, Marcelo. A Emergência do Paradigma Ecológico: Reflexões Ético-filosóficas para o Século XXI, p. 13. Leff, Epistemologia Ambiental, p. 60.
O processo de conhecimento foi dividido em disciplinas pela “aplicação rigorosa e sistemática do cartesianismo”, através do qual a matéria é vista como plena e homogênea, considerando que a “natureza cartesiana tem horror ao vazio; a matéria preenche-a por completo e ela deixa-se, por outro lado, dividir em tantas partes quantas se deseje”.7 O Direito também segue as orientações cartesianas, compartimentando a unidade das relações entre os homens e entre os homens e a natureza, conforme afirma Ost8 quando refere que “o mesmo se passa com o direito dos modernos; tendo, a partir de agora, ‘ocupado’ o espaço natural, estes não descansarão enquanto não o revestirem por completo com o manto concretizador da propriedade: também aqui se reencontram as duas características da integralidade (nada escapa à apropriação) e da divisibilidade ilimitada”. O questionamento dos valores modernos tem sido o motivo para que as tradicionais construções jurídicas não se adaptem a muitas exigências deste novo tempo, incluindo-se as questões ligadas ao meio ambiente. O paradigma antropocêntrico se conflitua com a complexidade das questões ambientais, que não pode ser protegida e administrada através de categorias modernas, tais como a propriedade privada e a liberdade individual. Esse conflito evidencia uma crise de valores, pois destaca o paradoxo entre produção capitalista e tecnologia dominante, responsáveis pela degradação do meio ambiente, e a necessidade urgente de preservação ambiental. Esse conflito, segundo Leff,9 caracteriza-se como uma crise de civilização, que pode ser explicada a partir de uma diversidade de perspectivas ideológicas. Por um lado, é percebida como resultado da pressão exercida pelo crescimento da população sobre os limitados recursos do 7 8 9
Ost, A Natureza à Margem da Lei, p. 67 Ost, A Natureza à Margem da Lei, p. 67. Leff, Epistemologia Ambiental, p. 59. 49
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planeta. Por outro, é interpretada como o efeito da acumulação de capital e da maximização da taxa de lucro a curto prazo, que induzem a padrões tecnológicos de usos e ritmos de exploração da natureza, bem como formas de consumo, que vêm esgotando as reservas de recursos naturais, degradando a fertilidade dos solos e afetando as condições de regeneração dos ecossistemas naturais.
de produção,16 caracterizadas pelo uso de diferentes tecnologias: quanto mais o homem evolui, mais complexas as tecnologias empregadas nos processos de produção. Conforme Toynbee,17 quanto mais o homem evolui, menores são os espaços de tempo que marcam as transformações tecnológicas: do período Paleolítico ao período Neolítico pode-se dizer que se passaram mais de 450.000 anos. Do período Neolítico à Idade dos Metais passaram-se somente 50.000 anos. Da Idade dos Metais até nossos dias, 12.000 anos, sendo da Revolução Industrial à atualidade, somente 150 anos. Porém, foi com a Revolução Industrial do século XIX que se iniciou a mais severa e radical mudança, quando a modificação na forma de produção de bens de consumo transformou a própria estrutura da sociedade. O emprego do vapor, por exemplo, proporcionou a produção em larga escala, através do uso de máquinas cujo funcionamento não dependia mais da força humana, dos animais ou da energia eólica. Porém, desde aqueles tempos, a ênfase no desenvolvimento tecnológico tem sido a maior responsável pelos impactos ambientais. A destruição e os desastres observados na natureza demonstram que o uso irresponsável da tecnologia18 tem causado graves conseqüências ao meio ambiente. Se por um lado a tecnologia aumentou a qualidade de vida de alguns povos, por outro também contribuiu para a miséria e pobreza de outros, de forma que a “transnacionalização do empobrecimento, da fome e da má nutrição tiveram entre muitas conseqüências adversas a da degradação ambiental”.19 O advento do processo industrial, da Revolução Industrial do século XIX até nossos dias, intensificou a violência causada pelo homem contra o meio ambiente, uma vez que
O avanço tecnológico e a velocidade das mudanças, cujo objetivo é satisfazer as novas necessidades do mundo contemporâneo, têm feito com que “o homem de hoje viva em um só ano o que o homem do século XIX teria de viver em cem”.10 As necessidades andam paralelas a novos perigos, que têm nos impulsionado para uma verdadeira ‘sociedade do risco’,11 cuja característica “chama a atenção, precisamente, para o lado obscuro do desenfreado desenvolvimento da técnica, com a falácia conseqüente do seu sistema de cálculo de riscos, que originou, origina e virá certamente a originar conseqüências negativas, as quais fazem mesmo perigar a própria continuação (pelo menos tal qual a conhecemos) da vida no nosso planeta”.12 Estas características, juntamente com os sistemas naturais,13 conferem a complexidade descrita por Morin:14 “Pode-se dizer que há complexidade onde quer que se produza um emaranhamento de ações, de interações, de retroações”. A questão ambiental está inserida na complexidade da sociedade contemporânea, pois os efeitos da ação do homem sobre o meio ambiente produz o emaranhado descrito por Morin, uma vez que “os problemas ambientais não estão circunscritos nem geograficamente nem socialmente. Há problemas ambientais decorrentes tanto da modernidade expansiva quanto do atraso e da pobreza”.15 As mudanças globais ocasionadas pela ação da natureza têm acontecido e continuam a acontecer no planeta desde sua origem. No entanto, desde o aparecimento do homem na Terra, a atividade humana tem sido o maior agente de transformações no planeta. O processo evolutivo da humanidade é marcado por revoluções nos meios 10 11 12 13 14 15 50
Maquieira, apud Fernandes, Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal, pp. 31-32. Beck, La Sociedade del Riesgo, 1998. Fernandes, Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal, p. 46. Como por exemplo, o Ciclo da Água. Morin, Novos Paradigmas, Cultura e Subjetividade, p. 274. Paula, Biodiversidade, População e Economia, p. 206.
(...) grande parte da tecnologia tem sido dirigida para mudar o meio ambiente natural. O homem remodela a 16
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O período Paleolítico utilizava a pedra lascada, técnica extremamente rudimentar de transformar a pedra em instrumento útil. No período Neolítico, além do uso da pedra polida, instrumento ainda rudimentar, porém mais aperfeiçoado que a pedra lascada, o advento da agricultura proporcionou uma grande transformação na forma de viver do homem, que deixou de ser nômade para tornar-se sedentário. Na Idade dos Metais, por sua vez, o uso do ferro marcou importantes mudanças na sociedade, diversificando o número de objetos tanto para uso doméstico como para uso bélico. Toynbee, A Humanidade e a Mãe Terra, p. 63 e seguintes. O uso de CFH, substância usada na fabricação de ares condicionados, espumas e refrigeradores, tem provocado a destruição da camada de ozônio, cuja conseqüência, no homem, é o aumento do número de casos de câncer de pele Santos, Pela Mão de Alice, p. 296. 51
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superfície da Terra, muda o curso dos rios e altera a fauna e a flora vivas. A pretensão de que podemos melhorar a natureza sempre entra em choque com seus vários processos. À medida que estamos alterando as condições do meio ambiente é paralela à do crescimento da população humana. Estamos, no momento, produzindo mais tipos diferentes de mudanças em mais lugares do que jamais foi feito antes.20
Neste sentido, “vale lembrar que as sociedades modernas são das mais complexas; sua dinâmica engendra inúmeras formas de mediação nas relações sociais e com a natureza”.25
2.1. Relações do Homem com a Natureza
Por isso, a análise da complexidade nas questões ambientais precisa considerar que “a problemática ecológica não é somente local, regional, nacional, continental. Formula-se em termos de biosfera e de humanidade. O problema do homem-natureza no seu conjunto e na sua extensão converte a ciência ecológica em uma ciência/consciência planetária,21 uma vez que estamos na era planetária e tudo o que ocorre em um ponto do globo pode repercutir em todos os outros pontos do globo”. Devemos, pois, considerar a existência “de inter-retro-ações entre os diferentes problemas, as diferentes crises, as diferentes ameaças”,22 uma vez que não se poderia destacar um problema número um, que subordinaria todos os demais; não há um único problema vital, mas vários problemas vitais, e é essa intersolidariedade complexa dos problemas, antagonismos, crises, processo descontrolado, crise geral do planeta, que constitui o problema vital número um”.23 Situações complexas como o acidente de Chernobyl, a chamada doença da “vaca louca”; no Brasil o desastre com o Césio na cidade de Goiânia, a explosão da plataforma de petróleo P36, o derramamento de óleo na Baía da Guanabara, a contaminação com mercúrio dos rios da Região Norte pelos garimpeiros, a contaminação dos lençóis freáticos pelo uso de agrotóxicos, apesar de consumados, ainda não demonstraram todos seus possíveis resultados, tanto para o homem como para os ecossistemas, comprovando que a complexidade dos riscos e perigos atuais ultrapassam as tradicionais formas de abordagem, de maneira que devemos enfrentar os desafios da complexidade (...) se quisermos um conhecimento pertinente, precisamos reunir, contextualizar, globalizar nossas informações e nossos saberes, buscar, portanto, um conhecimento complexo.24
A relação estabelecida entre o homem ocidental e a natureza faz parte do processo cultural iniciado com o Iluminismo, de forma que “valores como a construção do pensamento, a precisão das máquinas, resultado da aplicação da ciência à indústria como uma supremacia da teoria sobre a técnica, mudaram a relação entre homem e a natureza”.26 Este processo se apresenta como “racionalidade manipulatória da natureza”,27 em que o meio ambiente é destacado como objeto de intervenção para uso em favor dos interesses do homem. Sendo uma perspectiva antropocêntrica, a proteção da natureza é justificada com base no seu valor para os interesses do homem, como um objeto passível de apropriação, uso e disposição. Conforme Ost,28 a natureza passa a ser “natureza apropriada”, consagrando um projeto de domínio, que depende mais da tecnologia do que da ciência: esta última é mais da ordem do saber; a primeira é mais da ordem do poder. Através do vínculo homem e natureza-objeto, a esfera econômica explica os problemas ambientais basicamente como falhas de governo e falhas de mercado. A falha de governo é entendida como inépcia administrativa dos governantes pela produção ou agravamento dos problemas ambientais; as falhas de mercado têm entendimento no fato de os recursos ambientais não serem apropriáveis privativamente nem possuírem preços condizentes com o seu real valor, não podendo ser alocados eficientemente.29 A fórmula natureza-objeto, aliada à intensificação da produção industrial, demonstrou seus resultados, cujos danos ao meio ambiente podem ser verificados tanto à escala global, como efeito estufa e redução da camada de ozônio, como à escala local, através da urbanização descontrolada, poluição dos rios, etc. Por isso, a partir da década
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52
Villwock, As Mudanças Globais, p. 9. Morin, O Método 2, p. 95. Morin & Kern, Terra-Pátria, p. 99. Morin & Kern, Terra-Pátria, p. 99. Morin, A Religação dos Saberes, p. 566.
Tavolaro, Movimento Ambientalista e Modernidade, p. 28. Gauer, A Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772, p. 24. Paula, Biodiversidade, População e Economia, p. 202. Ost, A Natureza a Margem da Lei, p. 81. Souza, Entendendo a Questão Ambiental, p. 116. 53
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de 70, a preocupação com a crise ambiental30 tornou-se temática mundial e um dos paradoxos enfrentados pela humanidade é crise ecológica, que pode ser descrita como a “crise da nossa relação com a natureza”.31 Neste contexto, Paula32 comenta que É central na perspectiva crítica a idéia de que a crise ambiental é um produto histórico das formas concretas de produção, reprodução material, das formas concretas de apropriação da natureza, formação dos territórios, do exercício do poder e organização social, dos modos, mentalidades e culturas. Isso significa dizer que nenhuma intervenção sobre o mundo é neutra, desprovida de conseqüências, e que as formas concretas de apropriação da natureza e seus desdobramentos ambientais decorrem do interesse e das estratégias das classes de grupos sociais, empresas, comunidades, Estados, etc. Devido à complexidade inerente às questões ambientais, o desafio está lançado ao Direito. O meio ambiente passa a fazer parte do mundo jurídico, que a partir de agora precisa ajustar-se ao paradigma ecológico, caracterizado pela complexidade e pela inevitável incerteza, cabendo-lhe transformar esta “incerteza ecológica em certeza social”.33 Para tanto, Guatari34 diz que “mais do que nunca a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar transversalmente as interações entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de referência sociais e individuais”. Sem observar esses comentários e introduzir no pensamento jurídico a questão cultural, fundamental na análise das relações do homem com a natureza, dificilmente a certeza social de Ost poderá ser atingida. Observe-se que a certeza social apontada por Ost tem sido uma das funções destinadas ao Direito Penal, que, segundo Batista,35 tem como missão defender a sociedade, protegendo (bens, ou valores, ou interesses), garantindo (a segurança jurídica, ou a confiabilidade nela) ou confirmando (a validade das normas). Ocorre que essa função do Direito Penal deixa a desejar quando da consideração do meio ambiente como bem jurídico. 30 31 32 33 34 35 54
Problemas e agentes causadores descritos no Anexo A. Ost, A Natureza a Margem da Lei, p. 8. Paula, Fundamentos Históricos e Metodológicos da Questão Ambiental, p. 204. Ost, A Natureza à Margem do Direito, p. 114. Guatari, F., As Três Ecologias. São Paulo, Papirus, 1990, p. 25. Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, p. 111.
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2. 2. Meio Ambiente como Bem Jurídico-Penal No universo constitucional, o preceito descrito no caput36 do artigo 225 da Constituição Federal de 1988 esclarece o valor atribuído ao meio ambiente, declarando-o como “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”. Em que pese a necessidade de um meio ambiente equilibrado para a saúde do homem, a valoração constitucional do bem meio ambiente como bem jurídico não apresenta o enfoque no interesse ou direito individual. A contrario sensu dos tradicionais mecanismos de proteção baseados na ótica individualpatrimonialista, a tutela constitucional do bem ambiental prevê proteção a interesses difusos ou coletivos, sendo interesses difusos aqueles que “não encontram apoio em uma relação-base bem definida, reduzindo-se o vínculo entre as pessoas e fatores conjunturais ou extremamente genéricos a dados de fato freqüentemente acidentais e mutáveis: habitar a mesma região, consumir o mesmo produto, viver sob determinadas condições socioeconômicas, sujeitar-se a determinados empreendimentos, etc.” e interesses coletivos aqueles que compreendem os “interesses comuns a uma coletividade de pessoas e apenas a elas, mas ainda repousando sobre um vínculo jurídico definido que as congrega. A sociedade comercial, o condomínio, a família dão margem ao surgimento de interesses comuns”.37 Neste aspecto, Brandão38 afirma que a “doutrina tradicional sempre estabeleceu uma diferença clara entre interesse e direito”, sendo interesse a vontade do homem dirigida a uma finalidade e direito o interesse protegido pela norma.39 Prado40 define os interesses difusos como aqueles que “se direcionam ao coletivos ou social, apresentando-se de modo informal em certos setores sociais, com sujeitos indeterminados e cuja lesão tem natureza extensiva ou disseminada, (...)admitindo como titulares toda 36
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Caput do art. 225 C.F/88: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondose ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações. Grinover, A Problemática dos Interesses Difusos, pp. 29-45. Brandão, Ação Civil Pública, pp. 99-100. Isto não significa que um interesse não incluído na ordem jurídica não possa ser pleiteado em juízo, conforme Artigo 4o da Lei de Introdução ao Código Civil: quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Prado, Direito Penal Ambiental, p. 29. 55
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categoria de indivíduos unificados por possuírem um denominador fático qualquer em comum”. Assim, os bens de quem são titulares entes difusos são considerados bens supraindividuais ou transindividuais, isto é, bens cujos titulares estão para além do indivíduo isoladamente considerado. Nesta esteira, a natureza jurídica do bem ambiental descrita por Piva41 considera-o um bem difuso, de natureza indivisível, pois
stricto sensu, mas ao que tudo indica elencou o bem ambiental como disciplina autônoma e a título jurídico autônomo”.43 A necessidade de proteção jurídica ao meio ambiente passa a ser analisada pela valoração positiva que lhe é conferida, sendo que, “para obter um conceito mais amplo de meio ambiente, há necessidade da integração e interação de várias áreas do saber”, considerando que “a noção genérica de meio ambiente pode ser construída a partir de diversas perspectivas teóricas”.44 Canotilho 45 aponta que não são poucas nem pequenas as dificuldade de conceituar o meio ambiente, podendo-se seguir duas alternativas: “a) a de optar por um conceito amplo de ambiente, que inclua não só os componentes ambientais naturais, mas também os componentes ambientais humanos (isto é, não somente o ambiente natural, mas também o construído), b) ou a de optar por um conceito estrito de ambiente, que se centre nos primeiros componentes referidos”. A dificuldade referida por Canotilho pode ser demonstrada, ainda, pelo caráter de interdependência entre diversas matérias que se identificam com o meio ambiente. Todos os elementos naturais estão interligados e por isso não existe um objeto específico a ser conceituado, como é tradição na área jurídica. A dificuldade de conceituar meio ambiente juridicamente provém da necessária visão holística e não fragmentária do bem ambiental, tarefa penosa às áreas tradicionais do Direito, incluindo-se o Direito Penal, uma vez que, para obter um conceito mais amplo de meio ambiente, há necessidade da integração e interação de várias áreas do saber.46 Objetivando superar esta dificuldade, o legislador infraconstitucional definiu normativamente de meio ambiente no artigo 3o da Lei no 6.938, de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, determinando:
bem ambiental é um valor difuso, imaterial ou material, que serve de objeto mediato a relações jurídicas de natureza ambiental. (...) Trata-se de um bem difuso, um bem protegido por um direito que visa assegurar um interesse transindividual, de natureza indivisível, que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. Há um reconhecimento geral no sentido de que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é considerado um bem de uso comum do povo. Aliás, o disposto no artigo 225 da Constituição Federal não deixa dúvidas quanto a isso. Se é de uso comum, não há titularidade plena, pois, como o próprio nome está a dizer, o uso não é individual. É de todos. O meio ambiente como bem supraindividual tem natureza indivisível e titularidade indefinida, incluída na categoria de interesse não individual, uma vez que os titulares do bem ambiental são pessoas indeterminadas e ligadas por situações de fato. Os interesses transindividuais são “aqueles que não se personalizam, vale dizer, que não têm um titular determinado, mas sim dizem respeito a toda uma coletividade ou sociedade, tendo como centro a qualidade de vida. Assim, “seriam difusos o direito à informação, à saúde pública, ao meio ambiente (...)”.42 Por isso, a legitimidade para tutela do bem ambiental não é de exclusividade do Poder Público, sendo também responsabilidade de todos os titulares do direito ao bem ambiental ecologicamente equilibrado, uma vez que o “legislador constitucional, ao inserir o meio ambiente como res communes omnium, não legitimou exclusivamente o Poder Público para sua tutela jurisdicional civil, como interesse difuso. Assim o fazendo, apartou o meio ambiente de uma visão de bem público
41 42 56
Piva, Bem Ambiental, p. 114. Piva, Bem Ambiental, pp. 38-39.
Art. 3o: Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I – meio ambiente: o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.
43 44 45 46
Leite, Direito Ambiental na Sociedade de Risco, pp. 51-52. Leite, Direito Ambiental na Sociedade de Risco, p. 41. Canotilho, Introdução ao Direito do Ambiente, p. 21. Leite, Direito Ambiental na Sociedade de Risco, p. 41. 57
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Este conceito é criticado por Antunes,47 por considerar que “seu conteúdo não está voltado para um aspecto fundamental do problema ambiental que é, exatamente, o aspecto humano”. Ocorre que o conceito deve ser interpretado de forma abrangente, entendendo-se a expressão “abriga e rege a vida em todas as suas formas” estando incluída a vida humana. A Constituição Federal de 1988 soluciona a questão antropocêntrica levantada pelo autor, pois determina a titularidade ao meio ambiente, referindo que todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo bem de uso comum de todos e das futuras gerações. A definição constitucional complementa a descrição do artigo 3o da Lei 6.938, de 1981, quando inclui as atuais e as futuras gerações, sem com isto eliminar outros aspectos de vida que não humanos, permitindo uma visão para além do antropocentrismo característico da cultura ocidental e do direito. O status de bem jurídico conferido ao meio ambiente foi introduzido tanto na legislação Constitucional como na infraconstitucional. Desta forma, o meio ambiente como bem jurídico foi introduzindo no ordenamento jurídico por legislação infraconstitucional anterior à Constituição Federal de 1988. Neste período a legislação preocupavase somente com áreas pontuais, tais como a Lei no 4.771, de 1965, que institui o Código Florestal; Lei no 5.197, de 1967, que dispõe sobre a proteção à fauna; o Decreto-lei no 1.413, de 1975, que dispõe sobre o controle da poluição do meio ambiente provocada por atividades industriais; Lei no 6.902, de 1981, que dispõe sobre criação de estações ecológicas e áreas de proteção ambiental, somente para citar algumas. A visão holística do meio ambiente só foi introduzida no ordenamento jurídico pelo referido artigo 3o da Lei 6.938, de 1981,48 quando a perspectiva autônoma foi finalmente destacada. Entretanto, em que pese a natureza difusa do bem ambiental e a titularidade do direito ser de todos e não somente do indivíduo ou da coletividade, o artigo 225 da Constituição Federal determinou a tutela jurídico-penal do bem ambiental. Mesmo que algumas categorias do meio ambiente já estivessem tuteladas penalmente pela legislação ordinária antes da Constituição Federal de 1988, tais como a água e a saúde pública,49 a eleição do meio ambiente como bem jurídico-penal
autônomo só foi introduzida no ordenamento nacional no parágrafo terceiro do artigo 225 da Constituição Federal de 1988: § 3o As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.50 Dessa forma, outros artigos referentes ao meio ambiente dispostos no Código Penal ou mesmo em legislação esparsa foram recepcionados pela Constituição Federal, delegando ao bem ambiental o caráter de bem jurídico-penal. Neste aspecto, a introdução do meio ambiente como bem penal autônomo não foi novidade, uma vez que esta inclusão também ocorreu nas Constituições de países como Portugal, Espanha e Alemanha. Prado51 refere, inclusive, que a origem imediata do parágrafo terceiro do artigo 225 da Constituição Federal Brasileira “se encontra no parágrafo terceiro do artigo 4552 da Constituição Espanhola, que foi a primeira a fazer constar em seu texto a possibilidade do emprego de sanções penais”. Ocorre que a complexidade que envolve os problemas ambientais atinge “também os juristas que se debruçam hoje sobre o ambiente, deparando aí, no entanto, com enormes dificuldades: em parte provenientes da sua compreensível falta de preparação nos domínios da técnica e das ciências exactas e da inadequação dos instrumentos jurídicos tradicionais para resolver as questões ambientais na sua globalidade”.53 A escolha do Direito Penal como uma das ferramentas para a defesa do meio ambiente pode ser explicada pelo fato de os juristas, e mesmo do legislador, desconsiderarem outras formas de tutela para situações referentes ao meio ambiente, haja vista ser este um tema complexo e sem precedentes na história da humanidade. Por isso, apesar de Hassemer afirmar que “é minha opinião, compartilhada
50 51 52
47 48 49 58
Antunes, Direito Ambiental, p. 43. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente. Código Penal, artigo 267 e seguintes.
53
A regulamentação desse parágrafo foi realizada pela Lei 9.605, de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente Prado, Direito Penal Ambiental, p. 32. Art. 45, § 3o: para quienes violar lo disposto en el apartado anterior, en los términos que fije la ley, se establecerán sanciones penales o, en su caso, administrativas, así como la obligación de reparar el daño causado. Canotilho, Introdução ao Direito do Ambiente, p. 20. 59
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com alguns outros autores, entre eles Muñoz Conde, que o Direito Penal não é instrumento adequado para lidar com este tipo de problema”,54 o Direito Penal positivo admite a criminalização das condutas consideradas lesivas ao bem ambiental, provavelmente por ser considerado o último recurso jurídico existente, ou ultima ratio.
Coria59 adverte que não existe um conceito material preciso para o que seja bem jurídico-penal, devendo-se extrair do texto constitucional os valores relevantes e, a partir deles, eleger-se os bens sujeitos à tutela penal. Segundo Zaffaroni,60 a outra forma de determinar a tutela penal de bens jurídicos ocorre quando o legislador pune a violação da norma com uma pena, de forma que os bens jurídicos passam a ser bens jurídicos penalmente tutelados. Importante ressaltar que a necessidade de tutela penal para proteção de bens é definida através de valores baseados em interesses individuais, considerando que a gestação do Direito Penal moderno está ligada às idéias liberais defensoras dos interesses burgueses de caráter privado e antropocêntrico. O paradigma penal tem por escopo a tutela de bens que dizem respeito ao indivíduo, priorizando principalmente a vida humana, a integridade física do homem e seu patrimônio, intitulados bens jurídicos clássicos. Este padrão penal antropocêntrico considera que a tutela penal deve preocupar-se somente com bens jurídicos individuais ou dotados de referente individual. Dessa forma, para que determinado objeto ou situação social eleve-se à categoria de bem jurídico, é necessária sua inclusão no ordenamento jurídico, fato que ocorre na medida em que “há certos bens pelos quais o legislador se interessa, expressando este interesse em uma norma jurídica, o que faz com que sejam considerados juridicamente como bens (bens jurídicos)”.61 Palazzo62 refere ser premissa indispensável para penetração no sistema penal a concretização de bens, situações e valores através de sua introdução, primeiramente, na Constituição. Nesse aspecto, destaca a diferença entre Princípios de Direito Penal Constitucional e Princípios (ou valores) Constitucionais pertinentes à matéria penal. Os primeiros dizem respeito ao conteúdo penalístico típico (legalidade do crime e da pena, individualização da responsabilidade, etc.) e delineiam a “feição constitucional” do sistema penal, fazendo parte diretamente do sistema penal, em razão do próprio conteúdo, e circunscrevem os limites do poder punitivo e as relações entre o indivíduo e o Estado. Os Princípios (ou valores) Constitucionais em matéria penal traçam os “grandes
2.3. Bens Jurídico-Penais e sua Legitimidade A controvérsia acerca do conceito de bem jurídico tem sido uma das temáticas da doutrina penal. Seus primeiros questionamentos datam do século XIX, “dentro de um prisma liberal e com nítido objetivo de limitar o legislador penal”.55 Prado afirma ter sido Birnbaum o primeiro a introduzir a noção de bem jurídico no contexto jurídico-penal, em 1843. Figueiredo Dias56 refere que a intenção de Birnbaum era abranger um conjunto de substratos de conteúdo eminentemente liberal, que oferecessem base suficiente à punibilidade dos comportamentos que os ofendessem. Porém, foram Binding e Von Liszt os autores que buscaram uma definição para bem jurídico-penal; aquele enfatizando o aspecto legal e este o aspecto sociológico. Pelarin57 destaca que Binding, “adepto do positivismo jurídico, concebia o bem jurídico como tudo o que, aos olhos do legislador, tem valor como condição para uma vida saudável aos cidadãos, de tal maneira que o bem jurídico se identifica com tudo o que como tal for considerado pelo legislador. Para Binding não há direitos inatos, são sempre criados pela lei, atribuídos e não simplesmente reconhecidos”. Quanto a Von Liszt, a visão sociológica do bem jurídico enfatiza que seu “conteúdo axiológico não depende do juízo do legislador (...) isto porque o fim do direito não é outro que o de proteger os interesses do homem, e estes preexistem à intervenção normativa”.58 Desde então, à exceção do Funcionalismo Sistêmico de Güinter Jackobs, os doutrinadores afirmam que a função primordial do Direito Penal é a tutela de bens jurídicos. Por isso, ainda hoje a doutrina penal não determinou com precisão a definição de bem jurídico-penal. 54 55 56 57 58 60
Hassemer, A Preservação do Ambiente através do Direito Penal, p. 30. Prado, Bem Jurídico-penal e Constituição, pp. 24-25. Figueiredo Dias, Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas, p. 63. Pelarin, Bem Jurídico-penal, pp. 64-65. Prado, Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 27.
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Coria, Presupuestos para Delimitación del Bien Jurídico-penal en los Delitos contra el Ambiente, p. 267. Zaffaroni & Pirangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 462. Zaffaroni & Pirangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, pp. 461-462. Palazzo, Valores Constitucionais e Direito Penal, pp. 22-23 61
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rumos disciplinadores”, referindo-se à matéria ou valores relevantes para tutela penal e que por isso delineiam a Política Criminal. A determinação da inclusão de bens no rol dos protegidos penalmente devem seguir o segundo critério destacado por Palazzo, analisando-se as diretrizes ditadas pelos Princípios Constitucionais em matéria penal. Assim, será um bem jurídico penal o ente, material ou imaterial, cujo valor para o indivíduo seja relevante para conferir sua inclusão no rol dos bens protegidos pela tutela jurídica, uma vez que
jurídico, a intra-sistemática e a extra-sistemática, ou a visão interna do sistema penal e a visão externa. A função intra-sistemática analisa o bem penal a partir do direito penal positivo, obedecendo à “interpretação teleológica das normas penais e a sua construção sistemática”, cuja conseqüência principal é a “duplicação da antijuridicidade: a antijuridicidade formal é a violação da norma social ou jurídica correspondente ao tipo delitivo (Binding); a antijuridicidade material é a lesão ou ameaça ao interesse protegido pela norma”. A construção extra-sistemática, ou visão externa do sistema penal, analisa o nível ideológico e político da produção de normas penais, sendo o conceito de bem jurídico utilizado “como critério de apreciação do sistema positivo e da política criminal”. Ocorre que existe uma distinção aparente entre as duas formas de análise, pois tanto a análise interna como a externa ao sistema classificam os discursos acerca do bem jurídico segundo a intenção dos autores, ou pela análise do direito positivo, ou pela análise valorativa-axiológica. Esta distinção não pode ser considerada apropriada para classificar os bens jurídico-penais, pois não deve haver diferença entre a definição de bem jurídico a partir do sistema penal e a definição analisada de forma externa ao sistema penal, uma vez que
os bens jurídicos têm como fundamento valores culturais que se baseiam em necessidades individuais. (...) E os valores culturais transformam-se em bens jurídicos quando a confiança em sua existência surge necessitada de proteção jurídica. A noção de bem jurídico implica a realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação social e de sua relevância para o desenvolvimento do ser humano.63 Importante ressaltar que, em relação aos bens jurídico-penais, “não se estabeleceu com segurança o seu sentido operacional, ou seja, a capacidade do bem jurídico em evidenciar de maneira concreta as fronteiras do legitimamente criminável”.64 Não existe uma técnica jurídica capaz de auxiliar o legislador originário na tarefa de especificar os Princípios Constitucionais para matéria penal que determinarão as diretrizes da Política Criminal, pois esta decisão depende menos de aspectos jurídicos do que de aspectos sociais ou culturais. Para o legislador infraconstitucional, os bens a serem penalmente tutelados seguirão as determinações constitucionais que se formalizam nos Princípios Constitucionais para matéria penal, conforme referido anteriormente. Contudo, Baratta65 afirma que um “discurso crítico sobre bens jurídicos (...) decididamente deve posicionar-se externamente ao sistema penal e à lógica de sua legitimação instrumental”. Para uma análise genuína da legitimidade dos bens penais, esse autor considera necessária a observação da dupla função atribuída ao conceito de bem
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Prado, Bem Jurídico-penal e Constituição, pp. 41 e 63-64. Pelarin, Bem Jurídico-Penal, p. 24. Baratta, Funções Instrumentais e Simbólicas do Direito Penal, p. 17.
na realidade, as definições extra-sistemáticas dos bens dignos de tutela têm sido obtidas utilizando-se amplamente, num ponto de vista heurístico, o sistema de bens protegidos pelas normas penais existentes. Inversalmente, observa-se que nas definições intra-sistemáticas os modelos ideais e as valorações político-criminais dos autores em particular sobrepõem-se amplamente às operações analíticas sobre as normas penais existentes.66 A introjeção de um sistema de análise no outro impede a consideração de que “a negatividade social e o sistema de controle são objetos de uma construção social e institucional que reflete a dinâmica dos conflitos e seu deslocamento; a transformação do poder de definir dos atores envolvidos e das relações de poder entre eles”.67 Com esta limitação, tem-se a ilusão de que a função penal descrita por Batista anterior-
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Baratta, Funções Instrumentais e Simbólicas do Direito Penal, p. 7. Baratta, Funcões Instrumentais e Simbólicas do Direito Penal, p. 9. 63
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mente é legítima, ignorando-se a relação de poder que se estabelece entre as pessoas envolvidas nos conflitos acerca dos bens penais e sua inclusão ou exclusão no sistema penal. Ferrajoli68 aponta algumas questões importantes na análise do bem jurídico, relativas ao conceito de bem jurídico e ao caráter axiológico quando da decisão acerca de sua inclusão ou não na tutela penal, salientando quatro critérios a serem avaliados pela Política Criminal adotada por cada Estado quando visa ao controle e proteção de bens. A primeira é uma questão ético-política; a segunda, uma questão jurídico-constitucional; a terceira, uma questão jurídico-penal e a quarta; sociológico-empírica. O autor destaca que muitos dos problemas enfrentados nas discussões sobre bem jurídico-penal estão ligados a essas quatro questões, que admitem respostas diferentes, conforme o questionamento aborde uma ou outra situação. No que se refere à questão axiológica “o que proibir?”, há que se fornecer um critério positivo de identificação dos bens que requerem tutela penal, e, “portanto, un parámentro ontológico de legitimación aprioristica de las prohibiciones y de las sanciones penales”. Este aspecto revela a origem da inadequação da maior parte das definições de bem jurídico formuladas até hoje: “O son demasiado amplias, como las eticistas que, al apelar al valor intrínseco del derecho o incluso a lo que se estima merecedor de tutela por el legislador, caem em vácuas peticiones de principio; o son demasiado estrechas, como las ilustradas o neoilustradas que identifican los bienes com ‘derechos’ o ‘interesses individuales’, com lo que se hacen inidôneas para justificar la prohibición de conductas como cohecho, la malversación o el fraude fiscal, lesivos todos ellos de bienes públicos e colectivos”. A questão ético-política reflete um ponto de vista externo ao ordenamento jurídico, tem caráter axiológico, sendo genérica e indeterminada, considerando que “ningún bien justifica uma proteción penal – em lugar de uma civil o administrativa – si su valor no es mayor que el de los bienes de que priva a pena”. Questiona quais são as situações que devem ser tuteladas penalmente para que o sistema penal não perca sua legitimidade moral e política, sendo o “más elemental critério es el de justificar las prohibiciones solo cuando se dirigen a impedir ataques concretos a bienes fundamentales”, sendo os ataques tanto o dano causado como o perigo, por ser esta categoria
inerente à finalidade preventiva do Direito Penal. Ainda neste critério, Ferrajoli salienta um perfil utilitarista distinto quanto ao caráter axiológico da análise, uma vez que “las prohibiciones no solo deben estar ‘dirigidas’ a tutela de bienes jurídicos, deben ser idôneas”, referindo-se ao Princípio da Secularização, por indispensável à escolha de bens a serem tutelados penalmente. A segunda questão analisa a perspectiva interna do ordenamento jurídico, especificamente os pressupostos e ditames constitucionais, sendo questões estritamente jurídicas, já que “admiten como respuesta no ya juicios u opciones axiológicas, sino aserciones basadas em analisis jurídico-positiva, e que, por ende, son diferentes em los distintos ordenamientos”. A terceira questão avalia a perspectiva interna do ordenamento jurídico-penal, com referência ao Princípio da Legalidade e os tipos penais em si, pois “el análisis de los bienes, valores o privilégios legalmente tutelados reviste, por lo demás, uma relevância no solo cientifica, sino también política, pues brinda el presupuesto de toda valoración crítica y toda consideración de reforma del derecho vigente”. A quarta e última questão referente ao conceito de bem jurídico é totalmente independentes das outras três, pois parte da análise da efetividade do Direito Penal na proteção dos bens jurídicos penalmente tutelados. É uma questão empírica e sociológica, que “se ha resolver sobre la base no que lo dicen lãs normas sino de lo que, de hecho, ocurre”, privilegiando o estudo de aspectos extrapenais tais como psicológicos, sociológicos e de direito comparado, pois “aunque aproximativos e hipotéticos, sus resultados constituyen la base de todo acercamiento crítico a la cuestión de los bienes penales y de cualquier política criminal dirigida a su tutela”. Os diferentes níveis desses discursos, tanto os que abordam questões jurídico-normativas quanto os que abordam questões éticopolíticas e práticas, têm como resultado múltiplas falácias ideológicas, “mistificando la primera como descriptiva de la segunda, o a registrar descriptivamente los bienes tutelados o no por las leyes vigentes y la práctica, obliterando su dimensión axiológica violada y, com ello, los perfiles de ilegitimidad política e jurídica”. Algumas destas áreas são descritas por Ferrajoli69 como psicológica, sociológica e de direito comparado. Porém, outras áreas do conhecimento são imprescindíveis
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Ferrajoli, Derecho y Razón, pp. 470-479.
Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 467. 65
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quando se trata da complexa questão do bem ambiental, tais como economia, ecologia, as engenharias e demais áreas que se relacionam com o meio ambiente. Ocorre que os critérios ético-políticos e sociológico-empírico comumente não são abordados pela área jurídico-penal, cuja análise só pode ser alcançada através de trabalho transdisciplinar e, portanto, estranho ao mundo jurídico. Esses critérios são fundamentais para a compreensão do bem e seus efeitos na esfera jurídica, destacando-se sua existência na sociedade de risco e de consumo.
a produção social já não é mais a produção de riquezas, mas a produção social de riscos produzidos pelo desenvolvimento técnico-econômico; a pergunta é: como evitar/minimizar os processos avançados de modernização em relação aos seus efeitos secundários, de forma que não obstaculizem o processo nem ultrapassem os limites do suportável para a ecologia? No estado ocorre a crise do Estado de Segurança, que deve redistribuir as riquezas; o risco não é mais seletivo, pois atinge a todos indiscriminadamente e a dinâmica da sociedade de risco é o desrespeito às fronteiras, de maneira que los peligros se convierten em polizones del consumo normal. Viajan com el viento y com el agua, están presentes en todo y atraviesan con lo más necesario para la vida (el aire, el alimento, la ropa, los muebles) todas las zonas protegidas pela modernidad, que están controladas tan estrictamente.72
2.4. Sociedade de Risco, Sociedade de Consumo O termo “sociedade de risco” foi cunhado pelo sociólogo alemão Ulrich Beck70 em 1986, ano em que ocorreu o acidente nuclear em Chernobil.71 A análise feita por Beck demonstra as divergências entre a sociedade industrial clássica e a sociedade atual, batizada “de risco”. Para tanto, divide a história do risco em três fases. Na primeira, existia uma sociedade de classes definidas, cuja contradição apresentava-se entre o capital e o trabalho; a produção significava produção social de riquezas e o grande conflito verificavase pela distribuição da riqueza, que pode ser traduzida pela pergunta: como dividir uma riqueza produzida socialmente de forma desigual, mas ao mesmo tempo legítima? O estado é o Estado de Segurança com instituições e leis a garanti-lo, e os riscos atingiam somente as classes menos privilegiadas, uma vez que provenientes de processos naturais como tempestades, neve, etc. No final do século XIX até meados do século XX, ocorre a chamada segunda etapa do risco, sendo caracterizada pela necessidade de controlar e domesticar os riscos, só agora percebidos como realmente perigosos, pois começam a ser decorrentes da ação humana e seus processos produtivos. A terceira fase seria a sociedade de risco atual, onde há superação da luta de classes; a crise do estado é a crise do Estado de Segurança, 70 71
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Beck, La Sociedad del Riesgo, 1998. Dados da ONU estimam que 7 milhões de pessoas foram afetadas, tendo a radioatividade atingido um nível 100 vezes maior que Hiroshima e Nagasaki. Com este acidente, seis mil quilômetros quadrados de solos cultiváveis foram atingidos. Em 2000, 14 anos depois, ainda foram registrados casos de anemia e retardo mental em filhos de mulheres expostas à radiação.
Os riscos são definidos pela possibilidade de desastres ecológicos, passíveis de ocorrer pelas decisões humanas. Essas decisões são decorrentes das atividades de produção contemporânea, cuja toxidade disposta no meio ambiente é quantitativamente maior do que as produzidas na sociedade industrial. O impacto dessas toxinas é irreversível e as conseqüências sobrevivem aos causadores. As características da “sociedade de risco” demonstram que há pouca visibilidade dos danos; os riscos não são locais; não há vítimas individuais; pouca visibilidade dos danos; distanciamento tempo-espaço; distanciamento entre ação resultado; bens atingidos não são atuais; incapacidade de individualizar condutas; bens jurídicos ameaçados pelo risco são universais, vagos, genéricos; responsabilidade difusa ou irresponsabilidade organizada. As características apresentadas por Beck, segundo Mendes,73 põem em xeque a própria sobrevivência da Humanidade, sendo “o aspecto mais marcante do novo estágio civilizacional (...) a vulnerabilidade da natureza em função da intervenção técnica dos homens”. Aliadas aos problemas da sociedade de risco, estão as questões suscitadas pela sociedade de consumo. As duas interpenetram-se e contribuem para a complexidade da sociedade contemporânea, sendo marcadas por dois aspectos fundamentais. A sociedade de risco, pelo 72 73
Beck, La Sociedade del Riesgo, p. 13. Mendes, Vale a pena o direito penal do ambiente?, pp. 52 e 77. 67
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processo de industrialização transformador da matéria-prima em produtos e bens de consumo, cuja tecnologia empregada na transformação tem sido o agente causador da degradação ambiental atual. E a sociedade de consumo, marcada pela necessidade de mercados para os produtos, degrada o ambiente de duas formas: pelo processo de produção e pelo descarte dos resíduos, estabelecendo o que Lutzenberger74 chama de “bacanal do esbanjamento”, significando que, para
representando a vitória sobre a escassez, mesmo quando não há meios para adquirir tudo que é oferecido. Não se contentando em dar respostas às necessidades, sempre inventa uma nova forma de desejo. A criança que existe dentro de cada um é estimulada ao consumo através da publicidade, que representa a “ressurreição do conto de fadas aplicado à mercadoria”. Neste aspecto, importante o papel do crédito, da tecnologia e do divertimento. O crédito encurtou o intervalo de tempo entre o desejo e a satisfação, reforçando a característica básica da infância que não reconhece a renúncia. A evolução da técnica e da ciência cada vez mais responde aos nossos desejos, incutindo na humanidade a idéia “tenho direito a tudo, mereço”. Essa sedução do mercado é, “simultaneamente, a grande igualadora e a grande divisora”,78 pois os impulsos sedutores serão eficazes se transmitidos em todas as direções e indiscriminadamente. Ocorre que a desigualdade entre os membros sociais se torna evidente na medida em que apenas uma minoria é capaz de acompanhar as ofertas do mercado. Com isso, a carga social do sistema capitalista de produção apresenta um paradoxo: se por um lado estimula o consumo, por outro não divide a riqueza capaz de consumir estes mesmos produtos. Essa contradição segrega aqueles que não conseguem acompanhar o ritmo de consumo, tornando-os excluídos do sistema. Uma visão crítica da função penal demonstra seu caráter de controle social dessas classes excluídas e estigmatizadas, consideradas o refugo perigoso, ou, conforme Wacquant,79 o refugo do mercado. Assim, Bauman80 descreve estas relações usando como metáfora um jogo de cartas, onde alguns poucos jogadores, os consumidores, conhecem as regras e tem acesso à moeda legal; outros, os pretensos jogadores, são considerados incapazes para o jogo, e, portanto, o refugo, de maneira que
Além da criação de necessidades fictícias, as necessidades reais são atendidas de maneira a maximizar os custos em recursos e em poluição. (...). Toda a fabricação industrial, inclusive a fabricação de muita máquina de ferramenta, segue hoje a filosofia da “obsolecência planejada”, ou envelhecimento planejado de produtos. As coisas são feitas para não durar, porque se pretende sempre vender mais. Como conseqüência, vivemos em uma sociedade sem limites, onde o consumo é considerado a medida de uma vida bem-sucedida, da felicidade e mesmo da decência humana; então foi retirada a tampa dos desejos humanos: nenhuma quantidade de aquisições e sensações emocionantes tem qualquer probabilidade de trazer satisfação da maneira como o “manter-se ao nível dos padrões’ outrora prometeu: não há padrões a cujo nível se manter – a linha de chegada avança junto com o corredor, e as metas permanecem continuamente distantes, enquanto se tenta alcançá-las. (...). De todos os lugares, por intermédio de todos os meio de comunicação, a mensagem é clara: não existem modelos, exceto apoderar-se de mais (...):75 Estimulado pela mídia, o “consumo desregrado torna-se superconsumo insaciável que alterna com curas a privação; a obsessão dietética e a obsessão com a forma física multiplicam os temores narcisísticos e os caprichos alimentares. (...) entre os ricos, o consumo se torna histérico, maníaco pelo prestígio, a autenticidade, a beleza, a tez pura, a saúde”.76 Bruckner77 chama de “processo de infantilismo” o lançar-se ao consumismo. Afirmando ser uma conseqüência do capitalismo, 74 75 76 77 68
Lutzemberguer, Fim do Futuro?, pp. 37-38. Bauman, O Mal-estar da Pós-modernidade, p. 56. Morin, Terra-Pátria, p. 89. Buckner, Filhos e Vítimas, p. 55.
Dada a natureza do jogo agora disputado, as agruras e tormentos dos que dele são excluídos, outrora encarados como um malogro coletivamente causado e que precisava ser tratado com meios coletivos, só podem ser redefinidos como um crime individual. As classes perigosas são assim redefinidas como classes de criminosos. 78 79 80
Bauman, O Mal-estar da Pós-modernidade, p. 55. Wacquant, Punir os Pobres, p. 33. Bauman, O Mal-estar da Pós-modernidade, p. 57. 69
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Às classes de criminosos somam-se agora os criminosos ambientais, também fora do jogo e por isso excluídos da sociedade de consumo. Mas, como “ninguém é alienígena da própria cultura”.81 esses criminosos ambientais cometem crimes no intuito de participar do jogo: tráfico de animais da Mata Atlântica ou da Região Norte, retirada de palmito em extinção, com vistas à sobrevivência nesta sociedade de consumo. Criminalizar estas condutas não resolve o complexo problema ambiental, cuja degradação e violação não é fruto de indivíduos isolados, mas sim produto de uma teia que envolve aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais, cujas raízes profundas não podem ser solucionadas com a simplicidade da tipificação de condutas. Wacquant82 comenta que, “a despeito dos zeladores do Novo Éden neoliberal, a urgência, no Brasil, como na maioria dos países do planeta, é lutar em todas as direções não contra os criminosos, mas contra a pobreza e a desigualdade, isto é, contra a insegurança social que, em todo lugar, impele ao crime e normatiza a economia informal de predação que alimenta a violência”. Importante ressaltar que a violência contra o meio ambiente e a degradação ambiental não é resultado somente da pobreza e da desigualdade, mas ocorre principalmente pela ação e omissão dos detentores do poder econômico e político. Estes, porém, dificilmente são penalizados por suas agressões ao meio ambiente. Por fazerem parte do jogo descrito por Bauman e estabelecerem as regras, nem sempre são atingidos por elas, de forma que “nunca são castigados os grandes poluidores, mas apenas os pequenos”.83 Este é o caso da legislação penal para proteção do meio ambiente, que tipifica condutas realizadas por pequenos violadores em detrimento da poluição gradativa e invisível efetuada por grandes indústrias. Essas indústrias muitas vezes não possuem um programa de gestão ambiental para os rejeitos provenientes do processo de produção, que, devido à invisibilidade, poluem o meio ambiente gradativamente. O resultado dessa poluição, lenta, contínua e invisível, só será conhecida anos mais tarde.84 Em outras situações, essas mesmas
indústrias podem ocasionar grandes desastres ambientais de uma única vez, de forma rápida e bem visível.85 Entretanto, o custo de um desastre ambiental não pode ser saldado com o pagamento de multa administrativa ou através de um processo penal, mesmo quando há condenação. Este custo possui um índice diferente do utilizado na sociedade de consumo: não pode ser quantificado monetariamente nem poderá voltar ao status quo ante com a aplicação da pena de prisão. Trata-se do custo pelo desequilíbrio ecológico de ecossistemas, pela poluição de rios, pela morte de milhares de vidas e pelas conseqüências futuras e desconhecidas, impossibilitando que se cumpra o mandamento constitucional de manutenção do ambiente ecologicamente equilibrado em respeito às gerações futuras.
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70
Gauer, A Construção do Estado-Nação no Brasil, p. 24. Wacquant, As Prisões da Miséria, p. 12. Hassemer, A Preservação do Ambiente através do Direito Penal, p. 30. Como exemplo poder-se citar o caso da empresa Shell, cuja unidade em São Paulo, desativada há alguns anos, eliminava resíduos tóxicos no lençol freático. O resultado da inexistência de gerenciamento desses resíduos pode ser verificado pelas doenças da população local, até então com causas desconhecidas.
3. A Ilegitimidade do Direito Penal como Ferramenta de Proteção Ambiental 3.1. Incriminação da Violência contra o Meio Ambiente O Direito Penal elege o indivíduo e seus interesses como fundamentos para tutela penal, tornando-o a medida da necessidade ou não da intervenção penal. Essa assertiva pode ser observada em textos como os de Figueiredo Dias e Prado, quando defendem o caráter antropocêntrico como critério legitimador da incriminação penal, afirmando respectivamente: Para que o bem jurídico cumpra a função de critério legitimador e de padrão crítico da incriminação, que por força lhe tem que ser assinalada dentro do paradigma penal actual, se torna indispensável guardar um seu caráter extremamente antropocêntrico, que dele só permite falar quando estão em causa interesses reais, tangíveis e portanto também actuais do indivíduo.86
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Exemplos podem ser dados pelos desastres ocasionados pela Petrobrás, com a Plataforma P36 e o derramamento de óleo na Baía da Guanabara. Mais recentemente, outro desastre de proporções incalculáveis, o da empresa Cataguases de Papel e Celulose, que poluiu vários rios em dois estados, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 175. 71
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(...) uma política criminal restritiva de intervenção penal impõe subordinar esta última a valorações tipicamente jurídico-penais, que permitem selecionar com critérios próprios os objetos dignos de amparo penal (...). É imperiosa a distinção entre valores jurídicos e metajurídicos e a localização de bens dignos de tutela penal no terreno social, mas com vistas ao indivíduo. Tudo isto serve para delimitar a matéria do juridicamente tutelável e o Direito Penal deve oferecer a substância básica do que for por ele protegível. Explicando: o interesse social relevante para o indivíduo deve ser elevado à categoria de bem digno de tutela jurídico-penal.87 Interessante observar que Prado, ao utilizar as expressões “elevado à” e “digno”, caracteriza a intervenção penal como a mais eficaz forma de tutela de bens jurídicos, atuando onde outras intervenções jurídicas são consideradas ineficientes. Baratta88 refere que a “pretensão de que os interesses protegidos penalmente possuem uma qualidade privilegiada em relação aos outros interesses” é exemplo do que o autor chama de “argumentação circular”, entendendo esta como a tautologia que ocorre entre os discursos penais e extrapenais, referindo que, “em outras palavras, define-se o direito penal como sendo um instrumento que tutela os interesses vitais e fundamentais das pessoas e da sociedade, mas, ao mesmo tempo, definem-se como vitais e fundamentais os interesses que, tradicionalmente, são tomados em consideração pelo direito penal”. Devido à “argumentação circular”, questiona-se o objetivo da norma penal ambiental. Conforme Zaffaroni,89 a legislação penal tem um caráter programático e pretender que pelo simples fato de sua formalização positiva ter ocorrido não significa que o objetivo legal foi alcançado. As funções tradicionais do Direito Penal, prevenção e repressão, não legitimam a tutela do bem ambiental, pois como “bem difuso ou supra-individual é detentor de uma complexidade extremamente maior que os bens de cunho simplesmente individual”.90 Ocorre que a visão moderadamente antropocêntrica nas relações entre o homem e o bem ambiental e a positivação de tipos penal am-
bientais não impedem o uso da natureza como objeto de satisfação de necessidades. Mesmo assim, autores como Prado, Silva Sanchés e Figueiredo Dias consideram que todos os bens fundamentais são passíveis de tutela penal, afirmando, respectivamente, que uma concepção geral do Direito Penal pode ser entendida como “as ações mais graves dirigidas contra bens fundamentais podem ser criminalizadas”;91 el derecho penal es um instrumento cualificado de protección de bienes jurídicos especialmente importantes,92 e que a função do Direito Penal “não trata da tutela de quaisquer bens jurídicos, mas só de bens jurídicopenais, entendendo como tais os bens jurídicos fundamentais”.93 Porém, a incriminação das agressões ao meio ambiente, em que pese a existência de lei penal vigente, não poderá evitar a lesão ao bem ambiental. Na função de prevenção penal em matéria ambiental, os beneficiários da norma são meros espectadores, aguardando o efeito preventivo subentendido na lei, que o faz através de ameaça da sanção penal. Importante destacar que penas impostas quando da conduta típica, antijurídica e culpável podem preencher o caráter castigo e retribuição conferidos às penas, mas não protegem o bem jurídico meio ambiente, pois o Direito Penal não é preventivo, isto é, não é instrumento legítimo para prevenir condutas lesivas. Com a concretização da conduta ilícita, o bem ambiental já terá sido agredido e apenas a aplicação da pena prevista na norma penal será insuficiente para restituir o status quo ante à agressão. Uma das dificuldades observadas na ineficiência da função prevenção penal é o aspecto de invisibilidade das agressões ambientais. Cunha94 refere, com propriedade, que só uma maior atenção às pequenas percepções permitirá “libertar o campo específico do invisível” – um invisível radical, não inscrito, não manifesto, mas que tem efeitos. No caso das agressões ao meio ambiente, a invisibilidade não pode ser constatada com pequenas percepções. A complexidade desta análise depende de diversas avaliações e pela atuação de diversas disciplinas. Caso essa medida não seja tomada, não se pode definir, ab initio, quem são os atingidos pelos resultados ou mesmo quais são estes resultados. As conseqüências da degradação do ambiente dificilmente são constatadas rapidamente, considerando que os rejeitos industriais e/ou
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91 92 93 94
72
Prado, Bem Jurídico-penal e Constituição, pp. 89-90. Baratta, Funções Instrumentais e Simbólicas do Direito Penal, p. 10. Zaffaroni, Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 91. Silveira, As Duas Faces de Janus, p. 301.
Prado, Direito Penal Ambiental, p. 52. Silva Sanchés, La Expansión del Derecho Penal, p. 25. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 157. Cunha, O Paradoxo da Demarcação Emancipatória, p. 54. 73
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domésticos, quando não recebem tratamento adequado, podem ocorrer de forma contínua e imperceptível. A poluição de um rio, por exemplo, começa a ser percebida pelo homem com a morte dos peixes, fato que ocorre muito depois do início da degradação. Os poluentes lançados no rio começam seus efeitos degradantes antes da mortandade dos peixes, enfatizando a invisibilidade e a dificuldade de percepção. Para serem constatados a tempo de evitar um desastre ambiental, os efluentes devem ser controlados e tratados antes de chegarem ao rio. Este controle dever ser realizado através de uma gestão ambiental, a ser efetuada tanto pelas industrias como pelo Poder Público. Outro exemplo pode ser dado pela utilização de energia nuclear, não só pela possibilidade de “escapamentos” nucleares como também pelo lixo tóxico produzido, cuja finalidade ainda é uma incógnita para a ciência. Importante destacar que
atuação a serem empregadas nas técnicas jurídicas. Estes fundamentos estão enraizados no antropocentrismo e racionalismo da cultura ocidental, legitimando o modo de produção do direito descrito por Streck como liberal-individualista. Por isso, “os fenômenos sociais não podem mais ser estudados sob o ângulo cerrado da dogmática jurídica”,99 cujo modo de produção de Direito, segundo Streck100
nas sociedades pós-industriais, a simples vida social do indivíduo implica atentados freqüentes ao ambiente, à fauna, à flora. A utilização de veículos automotores, de produtos não biodegradáveis, a produção avolumada de lixo, de resíduos tóxicos e nucleares, entre tantas atitudes cotidianas do homem, são, por si sós, degradantes à natureza.95 Sendo assim, situações ambientais como as que se apresentam na atualidade devem ser vistas como momento de mudança e aprendizado, não parecendo ser esta posição do universo penal em relação à problemática ambiental. A despeito de ser a “crise uma oportunidade de julgamento (...) e ser preciso julgamento crítico em tempos críticos para perceber que o que interessa é o que vem aí”,96 a dogmática jurídica segue com a fórmula more of the same, repetindo o modelo liberal-individualista de Direito97 mesmo em situações onde os interesses e direitos envolvidos não têm cunho individual, mas sim transindividual, como é o caso do bem ambiental. Neste sentido, a dogmática jurídica como “ciência prática e, como tal, marcada, sem dúvida, por uma dimensão técnica”,98 dependente de fundamentos filosóficos e éticos que lhe determine as diretrizes de 95 96 97 98 74
Silveira, As Duas Faces de Janus, p. 300. Kerckhove, A Pele da Cultura, p. 111. Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, p. 61. Andrade, Dogmática Jurídica, p. 112.
(...) se instala justamente porque a dogmática jurídica, em plena sociedade transmoderna e repleta de conflitos transindividuais, continua trabalhando com a perspectiva de um direito cunhado para enfrentar conflitos interindividuais, bem nítidos em nossos códigos (Civil, Comercial, Penal, Processual Penal e Processual Civil, etc.). Esta é a crise de modelo (ou modo de produção) de Direito, dominante nas práticas jurídicas de nossos Tribunais, fóruns e na doutrina.
3 .2. Direito Penal como Instrumento de Proteção Ambiental Uma visão a partir do Iluminismo permite verificar que antes das idéias que transcenderam o paradigma teológico o controle social era realizado pelo poder do rei ou do clero. Com a ruptura do ancien régime, tem início um direito fundamentado nas idéias Iluministas, defensoras da liberdade do homem e responsáveis pela secularização,101 que proporcionou uma minimização na intervenção do Direito Penal, tornando passíveis de criminalização somente atos que empreendiam efetiva “lesão de bens jurídicos de terceiros, com vistas à imunidade do ‘ser”’.102 Com isso, tem início o Direito Penal clássico e suas principais diretrizes, tais como o princípio da legalidade, presunção de inocência, processo contraditório e público, direito penal do fato103 e imparcialidade do julgador, traduzidos como “legado da modernidade 99 Wunderlich, Sociedade de Consumo e Globalização, p. 43. 100 Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, p. 36. 101 O termo secularização é utilizado para definir os processos pelos quais a sociedade, a partir do século XV, produziu uma cisão entre a cultura eclesiástica e as doutrinas filosóficas (laicização), mais especificamente entre a moral do clero e o modo de produção da(s) ciência(s). Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, p. 5. 102 Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, p. 9. 103 Violação do pacto por atividade externamente perceptível e danosa. Carvalho, Pena e Garantias, p. 55. 75
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e suas conquistas irrenunciáveis: os direitos humanos, a secularização, a razão crítica”.104 Assim sendo, desde seu nascedouro o Direito Penal moderno tem como função a proteção social partindo da perspectiva do indivíduo que pratica uma conduta danosa (por ação ou omissão) em relação ao poder arbitrário e ao ius puniendi do Estado. Entretanto, mesmo mantendo-se o caráter de proteção ao indivíduo, o processo histórico do Direito Penal moderno demonstra mudanças nos enfoques e perspectivas. Essas perspectivas105 certamente dependem de aspectos culturais e condições históricas, enfatizando, ora uma maior proteção para o indivíduo que comete delitos, como nos primórdios do Direito Penal moderno e no contemporâneo garantismo de Ferrajoli, ora maior proteção à sociedade em detrimento de garantias deste mesmo indivíduo, como no caso da política criminal adotada pelos Estados Totalitários na Alemanha e Itália e, mais recentemente, pelos Estado Unidos com a doutrina da “tolerância zero”. Conforme a escolha por uma ou outra perspectiva, a política criminal pode variar entre o aumento/expansão ou diminuição/minimização do Direito Penal. A expansão do Direito Penal ocorre com a tipificação cada vez maior de condutas e aumento de penas, projetando no imaginário coletivo a existência de segurança social garantida pela severidade da lei. Com isso, ocorre uma “tendência progressiva de instituir o Direito Penal não mais como ultima, mas como sola ou prima ratio para a solução dos problemas sociais”.106 Esta política criminal nada mais significa a adoção de um Direito Penal Simbólico, sem aptidão para combater a realidade criminal. Hassemer107 afirma que
ineficácia, com o tempo a população percebe que se trata de uma política desonesta, de uma reação puramente simbólica.
o legislador – que sabe que a política criminal adotada é ineficaz – faz de conta que está inquieto, preocupado, e reage imediatamente ao grande problema da criminalidade. É a isso que eu chamo de “reação simbólica” que, em razão de sua 104 Figueiredo Dias: Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 162. 105 Conferir as obras: Baratta, Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal, Ferrajoli, Derecho y Razón, Wacquant, Punir os Pobres e As Prisões da Miséria, todas indicadas na bibliografia, e ainda Larrauri, Elena. La Herencia da Criminologia. México: Siglo Veintiuno, 1992. 106 Hassemer, Características e Crises do Moderno Direito Penal, p. 58. 107 Hassemer, Perspectivas de uma Moderna Política Criminal, p. 43. 76
Simbólica ou não, esta reação ineficaz do legislador penal acarreta conseqüências muitas vezes irreversíveis, tanto para o indivíduo que pratica ação contrária à lei como para a sociedade. Para o indivíduo submetido à aplicação da lei pelo etiquetamento108 resultante do processo que se inicia com o inquérito policial – e toda atuação de uma polícia despreparada para respeitar o princípio in dubio pro reu –, segue com o processo penal, e, no caso de condenação, perpetua-se com o processo de execução, que, mesmo com o cumprimento da pena, não liberta o ex-apenado. À sociedade, as conseqüências são menos visíveis, diluídas no esquecimento e crença em uma justiça aplicada corretamente com a condenação do criminoso. Importante ressaltar que as condutas que agridem a natureza fazem parte de atitudes enraizadas culturalmente, fundamentadas no antropocentrismo e na dicotomia sujeito-objeto ou homem/natureza. Estas atitudes, consideradas corretas e principalmente necessárias, não transcenderão este posicionamento pela simples introdução de lei penal no ordenamento jurídico, que não proporciona a manutenção do equilíbrio e a recuperação quando da agressão, servindo a uma Política Criminal de estímulo à implementação de um Estado Penal. O Estado Penal, conforme Wacquant,109 nada mais significa do que uma substituição de medidas políticas, de maneira que uma Política Criminal dura é implementada em detrimento do EstadoProvidência e de Políticas Sociais, ou, no caso em debate, de Políticas Ambientais. No Estado Penal “a criminalização da marginalidade e a ‘contenção punitiva’ das categorias deserdadas faz as vezes de política social”, fazendo com que uma reelaboração da missão histórica do encarceramento sirva “bem antes à regulação da miséria, quiçá sua perpetuação, e ao armazenamento dos refugos de mercado”, do que corresponda à proteção do indivíduo contra o poder arbitrário do Estado, conforme as idéias precursoras do Direito Penal moderno, ou à proteção de bens jurídicos, como no Direito Penal con-
108 Na perspectiva da criminologia crítica ou criminologia da reação social, etiquetamento significa a seleção de indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações à norma penalmente sancionadas. Baratta, Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal, p. 161. 109 Wacquant, Punir os Pobres, pp. 20 e 33. 77
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temporâneo. Sob este viés, a política criminal, a dogmática jurídicocriminal e a criminologia, enquanto “ciências conjuntas do direito penal”,110 têm a função de determinar quais são os bens jurídicos necessitados de tutela penal. Neste aspecto tem ocorrido um paradoxo. A gênese do Direito Penal está ligada ao paradigma antropocêntrico e à defesa de bens com referência ao indivíduo. Atualmente depara-se com a complexidade que transcende a compreensão através do caráter racional e individualista do paradigma moderno, ampliando sua atuação para abranger bens de caráter transindividual como forma de adaptar-se às necessidades e exigências sociais. Moraes111 sustenta que os problemas atuais têm diluído as fronteiras do Direito Penal, de maneira que o “direito parece estar sendo chamado a resolver questões advindas de novas necessidades, para as quais ele não pode, em tese, dar resposta, utilizando-se apenas de meios tradicionais do Direito Penal Clássico”. Nesse sentido, a análise da inclusão ou não do meio ambiente como bem jurídico-penal deve contemplar critérios comumente ignorados pela doutrina penal. Somente o fato de estar previsto na Constituição e ser importante para o indivíduo não legitima a escolha, que deve avaliar aspectos econômicos, sociais e de política ambiental. Neste sentido, destaque deve ser dado a natureza jurídica do bem ambiental, de caráter supra-individual, e à natureza jurídica dos bens tradicionalmente abarcados pelas categorias do Direito Penal, de caráter individual ou com referência ao indivíduo.
A resposta depende menos de aspectos jurídicos do que da análise contextual extra-sistemática, pois esse questionamento contempla perguntas e respostas ligadas a questões econômicas, políticas, éticas e culturais, que, aliadas aos pressupostos jurídicos, podem trazer soluções eficazes aos cuidados com o meio ambiente. Não se pode olvidar da esfera econômica em que envolve as questões ambientais, cujo modelo de produção explora a natureza como fonte inesgotável de matérias-primas e assimiladora incontestável de rejeitos. O Poder Econômico e a procura por novos mercados são valores que direcionam investimentos em técnicas e pesquisas muitas vezes financiadas por grandes empresas. Este “poder atrás do trono” não somente direciona a produção intelectual conforme seus interesses, mas também se concretiza no Poder Político, legitimado a introduzir metas e leis direcionadas à defesa desse poder, caracterizado por uma atuação invisível. Por isso, a problemática ambiental não pode ser tratada juridicamente sem relevância à cultura e tradição ocidental, de forma que “toda pretensa alternativa cosmológica ou ecológica plantada sobre convicções mais profundas da cultura ocidental não passa, assim, de um momento dialético do mover-se da grande realidade. Não é no passado que se encontra a possibilidade do futuro”,112 pois repetir antigas fórmulas, reforçando a dicotomia homem-natureza, não poderá transcender a crise ecológica. Neste sentido, Lutzenberger113 afirma:
3.3. Natureza Jurídica de Bens como Critério de Legitimidade da Tutela Penal
A causa profunda da crise não é tecnológica nem científica, é cultural, filosófica. Nossa visão incompleta do Mundo nos faz querer agredir o que devíamos querer proteger. Achamos que devemos “dominar a natureza”, lutar contra ela para não seremos por ela dominados. Acontece que a alternativa senhor ou escravo não corresponde à realidade das coisas.
A escolha de bens que devem ficar sujeitos à tutela penal e à justificativa para sua inclusão no ordenamento penal tem sido uma das temáticas enfrentadas pela doutrina penal. Pode-se afirmar que a crise no Direito Penal contemporâneo é proveniente da pergunta: quais as situações, entes ou valores relevantes na eleição de um bem à categoria jurídico-penal?
Diante desta realidade, a insistência na manutenção das antigas formas de produção jurídica, tais como administrar a violência contra o meio ambiente através do Direito Penal, tem causado uma crise doutrinária. Silva Sanchés114 refere que a alusão de uma crise somente
110 Von Liszt, apud in Figueiredo Dias, Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas, p. 49. 111 Moraes, Um direito penal do risco para uma sociedade de risco?, p. 116.
112 Souza, Educação Ambiental, p. 99. 113 Lutzenberger, Fim do Futuro?, p. 13. 114 Silva Sanches, Aproximación al Derecho Penal Contemporâneo, p. 13.
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no Direito Penal contemporâneo não é incorreta, mas inexata, afirmando que “la crisi, em realidad, es algo connatural al Derecho penal como conjunto normativo o, en lo mínimo, resulta, desde luego, inmanente al Derecho penal moderno”, referindo-se à tensão entre liberdade e segurança, que no âmbito penal diz respeito à prevenção e garantias, ou liberdade e Política Criminal, que faz parte de uma “tensión interna que permanece en nuestros dias”. Ocorre que a análise de Silva Sanchés aborda questões somente do ponto de vista interno e que podem ser observadas através da historicidade do Direito Penal. Referentemente às questões atuais, como o caso da legitimidade da tutela penal do meio ambiente, existe uma crise no paradigma penal que não pode ser olvidada. A característica do meio ambiente como bem supra-individual ultrapassa as fronteiras da discussão da doutrina penal, dedicada a alcançar o equilíbrio entre formas de prevenir e de processar condutas ilícitas e as garantias do indivíduo que comete estes delitos. Ou seja, a discussão entre pena e garantias, a partir da visão intra-sistemática do Sistema Penal, sem questionamento acerca de aspectos extra-sistemáticos às Ciências Penais. Entretanto, para determinar a inclusão ou não do bem ambiental como bem penal, há que se realizar uma análise acurada tanto da categoria interna como da categoria externa do Sistema Penal. Através da análise interna poder-se-á conhecer o potencial de eficácia de proteção penal para o meio ambiente. Pela análise externa far-se-á a avaliação ética e axiológica do bem ambiental, legitimando ou não sua inclusão como bem jurídico-penal. Diante deste panorama, questiona-se o método de escolha dos bens passíveis de tutela penal e qual a categoria de análise aplicada. Seriam estes bens escolhidos de acordo com uma “refracção no texto e na intencionalidade da Constituição”, conforme afirma Figueiredo Dias?115 Ou, conforme Zaffaroni, seriam os bens destacados na norma jurídica penal, cuja escolha fica a critério unicamente do legislador penal? Conforme dissertado anteriormente, a própria doutrina penal não é unânime ao conceituar a categoria bem jurídico-penal, limitadose a interpretar a intenção do legislador, estabelecendo a “argumentação circular” observada por Baratta.116 No caso do bem ambiental,
muitos penalistas117 concordam com a inclusão do meio ambiente como bem jurídico-penal baseando-se em dois argumentos: o primeiro, por estar determinado na Constituição; segundo, pela importância do meio ambiente para os interesses do indivíduo. Entretanto, somente a inclusão na legislação, mesmo que Constitucional, não deve ser considerado fato absoluto na determinação de bens penais. Neste sentido, a premissa “a intervenção é legítima somente quando a conduta (ativa ou omissiva) causar perceptível dano externo”118 precisa ser respeitada, evitando-se uma expansão do sistema penal e a agressão ao Princípio da Intervenção Mínima. Este Princípio determina que a intervenção penal só deve ser requisitada quando os outros ramos do Direito não podem, de forma eficaz, tutelar o bem jurídico, conferindo caráter subsidiário à proteção penal, uma vez que
115 Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 157. 116 Conferir item 2.3. 80
a subsidiariedade do Direito Penal, que pressupõe sua fragmantariedade, deriva de sua consideração como remédio sancionador extremo, que deve portanto ser ministrado apenas quando qualquer outro se revele ineficiente; sua intervenção se dá unicamente quando fracassam as demais barreiras protetoras do bem jurídico predispostas por outros ramos do Direito.119 No mesmo sentido, Figueiredo Dias sustenta a subsidiariedade da intervenção penal bem como o caráter antropocêntrico dos bens sujeitos à tutela penal, quando refere que “a função do Direito Penal é, exclusivamente, a proteção subsidiária de bens jurídicos. Devendo-se sublinhar que não se trata de quaisquer bens jurídicos, mas só bens jurídico-penais, entendendo por tais os bens jurídicos fundamentais à vida comunitária e ao livre desenvolvimento da pessoa (...)”.120 A função do Direito Penal atual pode ser traduzida, conforme Hassemer,121 pela “proteção de interesses humanos elementares 117 Entre os estrangeiros: Figueiredo Dias, Silva Sanches, Paulo Silva Fernandes; entre os brasileiros, Luiz Regis Prado, Salomão Shecaria, e a maioria dos autores de livros de direito ambiental, tais como Paulo de Bessa Antunes, e Paulo Afonso Leme Machado, cuja abordagem não questiona a legitimidade ou não de um direito penal ambiental, mas limita-se a aprová-la. 118 Carvalho. Pena e Garantias, p. 55. 119 Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, pp. 86-87. 120 Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 157. 121 Hassemer, Três Temas de Direito Penal, p. 31. 81
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ameaçados, intimidação das pessoas propensas ao crime e recuperação do delinqüente com o menor custo para ele”. Estas são as tarefas e promessas do Sistema Penal, e assim devem ser mantidas. Neste aspecto deve ser destacado que a definição da necessidade de tutela penal e os pressupostos para proteção ambiental estão em contradição. Conforme afirma Canotilho,122 a “intervenção do Direito Penal, enquanto ordenamento repressivo especialmente gravoso, só se justifica quando for absolutamente indispensável à proteção do bem jurídico”. Entretanto, a proteção do bem ambiental não pode ser realizada através do Direito Penal, pois, conforme Hulsman,123 a “legislação penal não é um padrão confiável para distinguir entre o que é bom e mau, seguro ou nocível”. Uma das formas de solucionar a questão refere-se à análise da natureza jurídica da situação, bem ou valor a ser incluído ou não à tutela penal. Partindo-se desta análise, conclui-se que o bem ambiental, de natureza difusa e titularidade indefinida, característica de bens transindividuais ou supra-individuais, não corresponde ao caráter individual conferido aos bens comumente abarcados pela tutela penal, e, portanto, não deveria estar incluído na categoria de bem jurídico-penal.
diferente da criminalidade de massa,125 contemplando uma criminalidade organizada. A criminalidade organizada enfatiza um “fenômeno ao mesmo tempo encoberto e ameaçador: fala-se nele sem que se saiba ao certo o que é e quem o produz, sabe-se somente que é explosivo, pensa-se até que pode devorar-nos todos”,126 podendo-se citar como exemplo os “crimes ecológicos”, conforme são denominadas as agressões ao meio ambiente. Neste sentido, a onipotência penal não se restringiu às categorias para as quais foi forjada. Com isso, esforça-se na adaptação aos novos riscos e desafios apresentados pela “sociedade de risco” e de consumo através de uma releitura inepta do Direito Penal e do desafio ao Princípio da Intervenção Mínima. Poucos autores dedicam-se a denunciar este esforço adaptativo, sendo Winfried Hassemer o jurista de maior destaque nesta área, quando elege quatro razões na inadequação do Direito Penal para proteger o meio ambiente. A primeira razão refere-se à dependência do Direito Penal ao Direito Administrativo, a segunda diz respeito à responsabilidade criminal, seguida do fato de que os fins das penas não são atingidos e por último a questão do simbolismo característico da lei penal ambiental, em conformidade com a abordagem supracitada. A primeira razão assenta-se no fato de o juiz criminal necessitar do Direito Administrativo para aplicar a lei penal, pois os limites e fronteiras da definição do fato lesivo ao meio ambiente encontram-se em Resoluções ou Portarias. Este é o caso do limite de emissões possíveis em águas nacionais, determinado pela Resolução no 20, de 1986, do CONAMA127 (Conselho Nacional do Meio Ambiente) e que deve ser analisada pelo juiz em conjunto com o laudo pericial da água. Esta resolução, de caráter administrativo, precisa ser considerada pelo juiz no julgamento da ocorrência ou não de contaminação e em que medidas esta contaminação ocorre/ocorreu. Impossível julgar esta situação somente com base na lei penal. Hassemer128 chama atenção para o fato de a acessoriedade administrativa legitimar a invisibilidade do ilícito penal e na “prática a matéria da ilicitude penal passa a ser objeto de negociação direta entre a Administração e o potencial infrator. Com isso,
3.4. Possibilidades Jurídicas Extrapenais para Proteção do Meio Ambiente Uma alternativa eficaz para o conflito evidenciado entre o Direito Penal e a complexidade das questões ambientais deve levar em consideração que a proteção do ambiente caracteriza-se, como é óbvio, por uma idéia fundamental: ele não pode ser visualizado pelo jurista com o mesmo enfoque das matérias tradicionais do Direito. E isso porque ele diz respeito à proteção de interesses pluriindividuais que superam as noções tradicionais de interesse individual ou coletivo.124 A doutrina penal desconhece o comentário de Mukai, e busca adequar as novas necessidades contemporâneas às categorias penais clássicas e modernas, cuja complexidade aufere uma criminalidade
122 Canotilho, Introdução ao Direito Ambiental, p. 168. 123 Hulsman, Penas Perdidas, p. 150. 124 Mukai, Direito Ambiental Sistematizado, pp. 5-6. 82
125 Ilícitos penais referentes a bens como vida, integridade física e patrimônio, ou bens penais clássicos. Hassemer, Três Temas de Direito Penal, pp. 61-68. 126 Hassemer, Três Temas de Direito Penal, p. 62. 127 Resolução que regulamenta a qualidade das águas no território brasileiro, determinando parâmetros e indicadores específicos para a saúde, bem-estar humano e equilíbrio ecológico aquático. 128 Hassemer, A Preservação do Ambiente através do Direito Penal, p. 32. 83
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o Direito Penal perde credibilidade”. Importante destacar que o limite de contaminação aceitável depende das diretrizes de Política Ambiental de cada Estado, sem olvidar o já referido “poder atrás do trono”. A responsabilidade em matéria penal ambiental é a segunda razão apontada pelo autor pela dificuldade para sua determinação. No caso de pessoas jurídicas, em que “pouquíssimos são os responsáveis dentro de um vasto grupo de pessoas com responsabilidades difusas”, a tendência é delimitar a responsabilidade a alguns indivíduos, sem, contudo, atingir os verdadeiros responsáveis. Assim, “no afã de tudo querer simplificar, em nome da eficácia da persecução penal, é a própria dignidade do Direito Penal que é sacrificada”,129 pois a inaplicabilidade do pressuposto tradicional da imputação individual da responsabilidade “pode ser inteiramente impeditivo de uma política criminal eficiente”.130 A terceira razão para inadequação do Direito Penal para tratar questões ambientais refere-se aos fins objetivados pelas penas. Segundo Hassemer,131 os fins das penas não são aqui atingíveis:
motivos: “Por um lado, não serve para proteção efetiva de bens jurídicos; por outro lado, obedece a propósitos de pura jactância da classe política”,132 afirmando ainda que “tudo isso denuncia o caráter simbólico do direito penal do ambiente, cujo verdadeiro préstimo redunda em desobrigar os poderes públicos de perseguirem uma política de proteção do ambiente efetiva”. Com a denúncia da ineficácia do Direito Penal para tutelar o meio ambiente, Hassemer propõe a criação de um novo ramo do Direito, a qual chama de “Direito de Intervenção”. Este ramo do Direito ficaria responsável por categorias típicas da contemporaneidade, tais como os riscos produzidos pelas técnicas industriais e as aplicações de sanções para caso de descumprimento de leis e determinações administrativas determinadas pela política ambiental. Ao Direito Penal seria mantida a tarefa de proteção aos bens clássicos e garantias ao indivíduo, mantendo-se sua tradição e a tutela de perigos graves e visíveis, possibilitando sua eficácia e credibilidade. O Direito de Intervenção “deve reunir todas as franjas dos outros ramos do Direito que tem relação direta com o chamado Direito Ambiental”, possibilitado pelas seguintes características, destacadas por Hassemer:133
Por um lado, a ressocialização do infrator não é necessária. Por outro, a prevenção geral positiva (ou prevenção geral de integração) não funciona devido às colossais cifras negras. Sendo aplicadas as penas de multa, quem acaba por pagar a multa nunca é o infrator, mas a empresa. As penas privativas de liberdade são aplicadas em razão de uma para mil casos possíveis. Mesmo referindo-se à realidade da Alemanha, observa-se que no Brasil a situação não é diferente. A Lei de Crimes Ambientais é aplicada em conjunto com a Lei no 9.099/95 onde a transação penal é permitida e comumente aplicada. Quanto às penas de multa, agrava-se o fato de a multa administrativa ser superior à pena de multa, conferindo a esta última um caráter de ineficiência. Hassemer atribui um caráter simbólico ao Direito Penal Ambiental como quarta razão para a ineficiência deste ramo do Direito por dois
129 Hassemer. Op. cit., p. 32. 130 Hassemer, Características e Crises do Moderno Direito Penal, p. 62. 131 Hassemer, Preservação do Ambiente através do Direito Penal, p. 32. 84
1. (...) atuar previamente à consumação de riscos. Ou seja, deverá ser pensado como um direito de caráter preventivo, ao contrário do Direito Penal, que é de caráter repressivo. 2. deverá poder dispensar os mecanismos de imputação individual de responsabilidades. Isto significa que a imputação de responsabilidades coletivas deverá ser admitida, contanto que as penas privativas de liberdade não venham a integrar o rol das sanções aplicáveis. 3. este novo ramo do Direito deverá dispor de um catálogo de sanções rigorosas. Designadamente deverá poder decretar a dissolução de entes coletivos, encerrar as empresas poluidoras, suspender as respectivas atividades, entre outras medidas. 4. o direito de intervenção deverá atuar globalmente, e não apenas estar destinado a resolver casos isolados (...) 132 Hassemer, A Preservação do Ambiente através do Direito Penal, p. 33. 133 Hassemer. Op. cit., p. 34. 85
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5. (...) para o Direito Penal ainda deverá ficar reservada apenas uma função ancilar, de caráter flanqueador, destinada a dar cobertura a determinadas medidas de proteção ambiental.
As questões ambientais não podem continuar com a abordagem jurídica tradicional, valorizadora da cisão entre os saberes e voltada à adaptação de seus consagrados institutos às exigências da contemporaneidade. Precisamos tratar de forma diferente o diferente, ampliando nossas perspectivas jurídicas da visão interna dos problemas para uma visão externa, que contemple de forma holística as incertezas típicas da atualidade, reconhecendo a ineficácia de alguns institutos jurídicos. Por isso, uma perspectiva crítica da crise ambiental deve considerar a sociedade contemporânea tanto pela interface da “sociedade de risco” como pela da “sociedade de consumo”, uma vez que ambas são produtos do desenvolvimento histórico relativo às formas de produção e de apropriação da natureza. Leff136 afirma que a crise ambiental “é acima de tudo um problema de conhecimento, demonstrando a necessidade de abrir novas pistas para o saber no sentido da reconstrução (...) do mundo”. Esse “problema de conhecimento” pode ser compreendido pela limitação dos processos racionais característicos da matriz moderna, cuja atuação reflete uma ética inspiradora do homem como princípio e fim de todas as coisas. Morin137 afirma que “a ciência não é apenas elucidadora, é também cega sobre o seu devir e contém em seus frutos, como a árvore bíblica do conhecimento, ao mesmo tempo o bem e o mal”. Nesse sentido, não há neutralidade na ciência quando da atuação sobre o mundo. O papel exercido na apropriação da natureza e nas formas de relação com o outro não é neutro, mas segue o padrão ético característico da cultura ocidental, destacando-se que nenhuma intervenção sobre o mundo é desprovida de interesses de grupos sociais específicos, empresas ou Estados. O mesmo padrão que produziu melhorias na qualidade de vida, proveniente do desenvolvimento técnico-científico, provocou perturbações imensuráveis, considerando as maravilhas que nossa civilização pode usufruir, tais como a
Neste sentido, introduzir no ordenamento jurídico mecanismos eficientes para atuar com os problemas atuais, notadamente a questão ecológica, significa desvincular o Direto Penal desta tarefa, considerando que os problemas atuais “são ramos inteiros de organizações sociais. São também grupos dentro do Estado. É necessário que nos concentremos (...) na criação e divisão de hierarquias, na criação de sistemas de proteção. É exatamente isso que o Direito Penal que temos não pode fazê-lo.134 Este posicionamento tem causado um profundo impacto no mundo jurídico, cujos “adeptos têm sido inclusive acusados de serem defensores da indústria e não cientistas propriamente ditos”.135 Certamente este posicionamento tem relação com a costumeira visão intra-sistemática do Direito Penal, condicionada a considerar este ramo do Direito o mais adequado para solucionar os problemas sociais, mesmo quando pendente de adaptações extrapenais para legitimá-lo. As idéias de Hassemer podem e devem ser criticadas, pois representam a gênese para a transcendência das tradicionais formas de atuação do Direito e a possibilidade de implementar uma efetiva proteção ao meio ambiente.
4. Considerações Finais Diante da argumentação exposta, pode-se concluir que a tutela penal do meio ambiente necessita de reavaliação constante. A preservação e proteção de bens jurídicos clássicos podem e devem permanecer da forma como hoje se apresentam, pois estão adequados ao paradigma moderno ao qual estão fundamentados. Porém, aos novos riscos impõe-se um repensar sobre os valores clássicos, sob pena de negligência não somente às novas necessidades, mas também ao papel do Direito diante das exigências sociais advindas destas necessidades.
134 Hassemer, Perspectivas de uma Moderna Política Criminal, p. 49. 135 Silveira, As Duas Faces de Janus, p. 305. 86
domesticação da energia física, as máquinas industriais cada vez mais automatizadas e informatizadas, as máquinas eletrodomésticas que liberam os lares das tarefas mais escravizadoras, o bem-estar, o conforto, os produtos extrema-
136 Leff, Epistemologia Ambiental, p. 191. 137 Morin& Kern, Terra-Pátria, p. 96. 87
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mente variados de consumo, o automóvel (que, como indica o nome, proporciona autonomia na mobilidade), o avião, que nos faz devorar o espaço, a televisão, janela aberta para o mundo real e os mundos imaginários....138
fundamental para explicar as atitudes que tomamos com relação aos elementos naturais”.140 Mudar nossas relações com a natureza é possível. As possibilidades são infinitas e por isso um grande desafio à criatividade humana, em que deve “haver vigilância para mudar, para novas idéias, para possíveis novas interpretações do mundo, para evitar que uma civilização caia na rotina bizantina”.141 Devemos questionar, sempre. Porém, respostas essencialmente racionais-antropocêntricas precisam ser fiscalizadas, sob pena de continuarmos destruindo a natureza e nossas relações interpessoais, pois o mesmo desenvolvimento que proporcionou uma vida com maior conforto criou não apenas processos multiformes de degradação da natureza, mas também produziu e produz efeitos em nossas vidas mentais e afetivas. Esses efeitos priorizam o eu e suas vontades egoístas em detrimento do outro e da solidariedade, provavelmente o único valor moral capaz de frear as contradições da nossa sociedade. Gauer142 comenta que precisamos “reinventar uma reordenação intelectual que permita reescrever a complexidade e não eliminá-la em favor de uma verdade absoluta”. Por isso, o Direito, como esfera do conhecimento que regulamenta situações sociais, deve preocupar-se com a complexidade das questões ambientais priorizando a análise extrapenal dos problemas ambientais através da interface entre aspectos culturais, políticos, econômicos e sociais, inerentes às agressões ao meio ambiente. Evitar a “verdade absoluta” de que o Direito Penal protege bens jurídicos, notadamente o meio ambiente, é um dos caminhos a serem trilhados. A afirmação “Direito/texto/norma/fato não estão separados”143 precisa ser considerada, pois fundamental para desmistificar o Direito Penal como ramo do Direito hierarquicamente superior aos outros e capaz de atuar onde os outros, em tese, não são eficientes. Afinal, o Direito Penal, considerado a ultima ratio em matéria de intervenção jurídica, não pode ser ferramenta eleita para resolver os complexos problemas ambientais, devendo-se “evitar a tendência cada vez acentuada a incriminar os problemas socialmente produzidos”.144 A
Infelizmente, essas maravilhas não estão disponíveis para todos, pois são desenvolvidas por poucos e para poucos, seguindo a lógica da segregação típica da cultura ocidental. Importante ressaltar ainda que a violência contra o meio ambiente, mais do que conduta contrária ao senso comum, é uma prática social arraigada em toda sociedade ocidental. Apenas o fato de viver nas grandes cidades, produzir lixo doméstico, locomover-se com veículos movidos a combustíveis fósseis, utilizar energia elétrica, consumir produtos industrializados, entre tantas outras atividades diárias, é suficiente para degradar imensuravelmente o meio ambiente. Estas atividades são realizadas diariamente por milhões de pessoas que vivem nos grandes centros urbanos, e nem por isso suas condutas são consideradas crimes. O paradoxo entre a invisibilidade e a visibilidade da degradação ambiental freqüentemente mascara os problemas socialmente produzidos, cuja análise histórica demonstra que não são privilégios da atualidade, mas decorrentes do padrão de vida ocidental progressivamente agressivo e que somente há poucas décadas tornou-se temática mundial. Talvez faça parte da história do homem ocidental transcender o paradigma antropocêntrico, priorizando todas as espécies de vida e todos os processos da natureza. Infelizmente, talvez esta transcendência não seja uma questão de desenvolvimento ético, mas sim uma imposição pelos próprios resultados catastróficos gerados pelo tipo de cultura em que vivemos, que prioriza o crescimento econômico e o consumo em detrimento da própria vida saudável e equilibrada. Ost139 pergunta se teremos nós perdido a natureza e o sentido da nossa relação com ela. O sentido da nossa relação com a natureza fundamenta-se no aspecto cultural e por isso o questionamento de Ost deve considerar que o “meio ambiente natural e a visão de mundo estão estreitamente ligados, sendo esta última
138 Morin & Kern, Terra-Pátria, p. 88. 139 Ost, A Natureza a Margem da Lei, p. 9. 88
140 141 142 143 144
Waldman, Natureza e Sociedade como espaço de Cidadania, p. 547. Baumer, O Pensamento Europeu Moderno, p. 292. Gauer, Conhecimento e Aceleração (Mito, Verdade e Tempo), pp. 88, 95-96. Streck, Hermenêutica Jurídica em Crise, p. 230. Bauman, O Mal-estar da Pós-modernidade, p. 25. 89
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permanência no ordenamento jurídico pátrio das diretrizes ditadas pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei 9.605/98, em detrimento de medidas de Política Ambiental, será o mesmo que arrebentarmos com o Direito Penal”,145 destacando-se que o Direito Penal Ambiental não é instrumento apto à proteção e defesa do meio ambiente, atuando no plano da eficácia como mecanismo meramente simbólico. Uma atuação juridicamente pró-ativa nas questões ambientais não pode olvidar da importância da transdiciplinaridade, forma de abordar todas as esferas do conhecimento sem negligenciar nenhuma, propiciando o reconhecimento de que os limites do saber de um pode ser o início do saber do outro. Por isso, devemos insistir que a questão ambiental é necessariamente “uma questão ético-política, em que neutralidade e isenção científica são ilusão-ideologia”.146 Nessa seara o Estado Democrático de Direito Ambiental tem papel fundamental, lembrando a afirmação de Canotilho,147 quando refere que um “estado só será democrático se mantiver firme o princípio de subordinação do poder econômico ao poder político”. Dessa forma, mais do que de Política Criminal, a abordagem do meio ambiente necessita de Política Ambiental, que priorize ações de gestão e educação ambiental e favoreça a subordinação do poder econômico ao poder político, pois, “já que não podemos prever os resultados, devemos investir nos meios”.148 Ocorre que o investimento destacado por Coutinho, no que se refere ao meio ambiente, necessita considerar também que
transformação da forma de viver daqui em diante, considerando nosso padrão técnico-científico e a existência de 6 bilhões de pessoas no planeta, todas merecedoras do afastamento da miséria e de um meio ambiente equilibrado e saudável, pressupostos imprescindíveis para que a dignidade da vida possa ser respeitada e mantida.
não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e com a condição que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural, reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais. Essa revolução deverá concernir, portanto, não só às relações de forças visíveis em grande escala, mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, inteligência e de desejo.149 As idéias de Guatari parecem utópicas diante do enraizamento dos valores ocidentais, mas se apresentam como um caminho para a 145 146 147 148
Hassemer, op. cit., p. 49. Paula, Biodiversidade, População e Economia, p. 206. Canotilho, Estado de Direito, p. 39. Coutinho, Jacinto. Aula ministrada na Faculdade de Direito da PUCRS, em setembro de 2001. 149 Guatari, As Três Ecologias, p. 9. 90
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Lenôra Azevedo de Oliveira
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Delitos Informáticos – Resposta Penal? Felipe Cardoso Moreira de Oliveira
I. Delitos Informáticos – Conceituação e Delimitação Necessárias de uma Espécie 1. Dificuldades conceituais A primeira grande discussão científica acerca da criminalidade eletrônica se constitui na conceituação dos delitos informáticos. Até o presente momento a doutrina não se preocupou devidamente com a questão. O que, na verdade, é condição e elemento fundamental para o desenvolvimento de qualquer tema, nos delitos informáticos, é deixado em segundo plano. O Direito, como ciência cultural que é, obrigatoriamente, possui rigor terminológico, sendo inadmissível a confusão de expressões originadas da ausência de uma linguagem científica rígida. Antonio-Enrique PÉREZ LUÑO em sua excelente obra Manual de informática y derecho,1 conceitua os delitos informáticos como “aquel conjunto de conductas criminales que se realizan a través del ordenador electrónico, o que afetan al funcionamento de los sistemas informáticos”. PÉREZ LUÑO considera, assim como a mexicana Maria de la LUZ LIMA,2 delito informático toda a conduta criminal que tenha alguma relação com componentes informáticos, sejam eles ferramentas ou alvos. Tal definição, no entanto, verifica-se dissonante frente às classificações criminosas da dogmática penal que sempre tiveram por 1 2
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PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Manual de informática y derecho. Barcelona: Editorial Ariel, 1996, p. 69. “Delito eletrônico, em um sentido amplo, é qualquer conduta criminógena ou criminal que, em sua realização, faz uso da tecnologia eletrônica, seja como método, meio ou fim e que, em sentido estrito, o delito informático é qualquer ato ilícito penal no qual os computadores, suas técnicas e funções desempenham um determinado papel, seja como método, meio ou fim.” LIMA DE LA LUZ, María. “Delitos Electrónicos” en Criminalia. México. Academia Mexicana de Ciencias Penales. Ed. Porrúa. No. 1-6. Año L. EneroJunio 1984, p. 100. Apud http://www.stj-sin.gob.mx/Delitos_Informaticos2.htm. Acesso em 17.02.2002. 95
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Delitos Informáticos – Resposta Penal?
base, não raro alguns equívocos, o bem jurídico tutelado. É flagrante nas referidas conceituações uma certa promiscuidade entre bem (objeto) jurídico e objeto material. A Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OECD), em reunião realizada em Paris, em maio de 1983, definiu os delitos informáticos – computer crimes – como “any ilegal, unethical ou unauthorized behaviour involving automatic data processing and/or transmission of data”.3 O conceito proposto pela OECD é de uma amplitude desconfortável, inserindo com os criminosos condutas contrárias à ética, ignorando o processo de secularização do Direito Penal, representado nos postulados iluministas e concretizado no “Plan de législation criminelle”, de Marat. Rafael Fernández CALVO,4 por sua vez, define essa nova forma delitiva como “a realização de uma ação que, reunindo as características que delimitam o conceito de delito, por meio de um elemento informático ou telemático, viola os direitos e liberdades dos cidadãos garantidos no título 1 da Constituição Espanhola”. Trata como delito informático a realização de atos violadores aos direitos e liberdades constitucionais dos cidadãos, praticados por meio informático ou telemático. José de Oliveira ASCENSÃO, catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, em seu Estudos sobre Direito da Internet e da Sociedade da Informação, define como criminalidade informática aquela especificamente gerada pelo computador.5 Sustenta o professor que as condutas criminosas praticadas por meios informáticos não ultrapassam os limites dos tipos penais comuns, não alterando sua classificação. Percebe-se incerteza e certo conflito conceitual. Tal miscelânea de definições traz a necessidade de estabelecermos um critério para a
posterior formulação do conceito de delito informático. A identificação do bem jurídico a ser tutelado. Os delitos informáticos, a partir da preocupação com a objetividade jurídica, são ações realizadas com o intuito de destruir, obter, copiar ou alterar dados (objeto material) de uma unidade de computador ou, ainda, de uma rede. São condutas a serem praticadas especificamente contra os dados e, por conseqüência, contra a capacidade funcional do sistema que os abriga. Como se percebe, sua realização somente se dá envolvendo, pelo menos, um computador. Caso não existissem computadores no mundo, tais delitos jamais seriam cogitados e, muito menos, perpetrados em nossa sociedade. O bem jurídico a ser tutelado é a capacidade funcional dos sistemas informáticos, envolvendo sob esse valor a inviolabilidade de dados, sendo estes (os dados) o objeto material do delito. Importante trazermos que já WELZEL6 traçava a necessidade de diferenciação entre bem jurídico e objeto material. Este é aquilo contra o qual a conduta se volta, aquele é o interesse protegido pela norma. Luís JIMENEZ DE ASÚA7 ensina que os bens jurídicos são de fundamental importância para indicar o fim de um determinado preceito e de todo o ordenamento jurídico. A falta de uma definição baseada no bem jurídico tutelado traz insegurança e fragilidade científica que pode acarretar na confusão de valores e funções do objeto de estudo. A partir dessa preocupação com a tutela da capacidade funcional do sistema, em caso de resguardo de tal bem jurídico por norma penal, genericamente constituir-se-ia Delito Informático toda a conduta realizada com o intuito (necessidade do aspecto volitivo) de alterar, destruir, copiar, inserir ou obter dados, afetando o funcionamento de um sistema, causando-lhe paralisação, temporária ou permanente, indisponibilidade de acesso ou de dados, ou diminuindo, de qualquer forma, o seu desempenho frente ao fim que se destina. Tal conceito, importante salientar, não se constitui em sugestão de criação típica assim estabelecida. O conceito tem por finalidade balizar condutas praticadas contra os sistemas informáticos. Somente poderiam ser entendidas como delitos ou crimes informáticos condutas
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Qualquer conduta ilegal, anti-ética, ou não autorizada que envolva o processamento automatizado de dados e/ou a transmissão de dados. GIANNANTONIO, Ettore. Manuale di diritto dell’informatica. Seconda edizione. CEDAM: Padova, 1997, p. 441. FERNANDEZ CALVO, Rafael. El Tratamiento del llamado “delito informático” en el proyecto de ley orgánica de código penal: reflexiones y propuestas de la CLI (Comisión de Libertades e Informáticas) in Informática y Derecho, no 12, 13, 14 e 15. Mérida: UNED, 1996, pp. 1.149-1.163, Apud http://www.stj-sin.gob.mx/Delitos_Informaticos2.htm. Acesso em 17.02.2002. ASCENSÃO, José de Oliveira. Estudos sobre Direito da Internet e da Sociedade da Informação. Coimbra: Almedina, 2001, op. cit., p. 261.
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WELZEL, Hans. Derecho penal alemán: parte general. Traducción por Juan Bustos Ramirez y Sérgio Yañes Pérez. 11a ed. Santiago de Chile: Editorial Juridica de Chile, 1970, p. 13. JIMENEZ DE ASÚA, op. cit., p. 20. 97
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Delitos Informáticos – Resposta Penal?
que, desde que tipificadas, apresentassem as características delimitadas no conceito sugerido. O que não significa admitir a necessidade de uma tipificação penal.
a riqueza, revelando e promovendo novos rumos de acesso ao conforto.(...) Parece estranho que o conforto moderno possa ocasionar rupturas na cidadela individual. No entanto, as investigações desenvolvidas a respeito desse problema evidenciam que o aumento da espionagem privada, da intromissão na intimidade alheia, têm sido facilitada e mesmo acicatadas pelos recursos tecnológicos. É a ambivalência da revolução tecnológica”.
Por que não a intimidade como bem jurídico tutelado? Uma das controvérsias que, quiçá, poderia gerar o presente estudo reside na discussão acerca da intimidade como bem jurídico a ser tutelado contra a conduta informática invasiva. Como sustentado anteriormente, o bem jurídico protegido pela norma penal deveria ser a capacidade funcional dos sistemas de informática. Por capacidade funcional entende-se a realização de todas as atividades para as quais o computador objeto da prática danosa esteja programado a realizar. Explico. A capacidade funcional do sistema estende-se desde o correto desenvolvimento das atividades programadas, ou seja, funcionamento sem travamentos ou interrupções dos programas armazenados, até a integralidade e correção dos dados inseridos, constantes, no hardware. A alteração ou supressão dos dados afeta a capacidade funcional do sistema, uma vez que faz parte do funcionamento ideal a manutenção dos dados armazenados. A alteração destes acarreta na modificação da capacidade funcional do sistema. Um programa somente poderá ser executado a partir da inserção de dados sobre os quais ele realizará as atividades preestabelecidas. A supressão dos dados do sistema levará o programa a não realizar sua função pela falta de elementos sobre os quais agiria, ou a realizá-la de maneira incompleta a partir da supressão de alguns dados. Por que não a intimidade como bem jurídico tutelado? Como muito bem trazido por Paulo José da Costa Jr.:8 “O processo de corrosão das fronteiras da intimidade, o devassamento da vida privada, tornou-se mais agudo e inquietante com o advento da era tecnológica. As conquistas desta era destinar-se-iam em tese a enriquecer a personalidade, ampliando-lhe a capacidade de domínio sobre a natureza, aprofundando o conhecimento, multiplicando e disseminando 8
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COSTA JR, Paulo José da. O Direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1970, pp. 14-15.
Em 1970, Paulo José da Costa Jr.,9 quando sequer havia massificação do fenômeno Internet, percebia o efeito que o desenvolvimento tecnológico trazia sobre a intimidade. Prosseguia o autor afirmando que “o mais desconcertante não é observar que a tecnologia acoberta, estimula e facilita o devassamento da vida privada”, o que chamava a atenção do autor era “tomar conhecimento de que as pessoas, condicionadas pelos meios de divulgação da era tecnológica (...) sentemse compelidas a renunciar à própria intimidade”. Tal renúncia é mais evidente a partir da utilização da Internet. Criada nos Estados Unidos no final dos anos 60, fruto de um projeto militar que buscava a possibilidade de uma forma de comunicação descentralizada e simultânea de cientistas e engenheiros militares, capaz de resistir a um ataque nuclear, a inicialmente denominada ARPANET era uma rede de acesso exclusivo aos integrantes do Departamento de Defesa norte-americano.10 Com o passar dos anos passou a ser utilizada como meio de comunicação, pelo e-mail, e, posteriormente, abriu-se a possibilidade de uma rede internacional aberta, sem o estabelecimento de limites ou regras de controle. A Internet, portanto, possui como preço para a conexão a ameaça permanente à intimidade/privacidade11 dos usuários. Todos que 9 10 11
Ibid., p. 16. LUNA FILHO, Eury Pereira. Internet no Brasil e o direito no ciberespaço, apud MORI, Michele Keiko, Direito à Intimidade versus Informática. Curitiba: Juruá, 2001, p. 62. Acerca da distinção entre privacidade e intimidade embora existente por parte da doutrina, demonstra-se irrelevante no presente estudo, uma vez que a intimidade é que é o bem constitucionalmente tutelado. Por privacidade se entende “o conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito” (Pereira, J. Matos, Direito de Informação. Lisboa: associação Portuguesa de Informática, 1980, p. 15, apud SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 7a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 183). Tal conceituação não afasta, também, os argumentos trazidos em relação à intimidade. No momento em que cabe ao indivíduo decidir sobre o sigilo, cabe a ele extraí-los do sistema pelo qual acesse à Internet. 99
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Delitos Informáticos – Resposta Penal?
“navegam” pela rede mundial de computadores têm a consciência de que deixam espalhados pelas home pages visitadas inúmeras informações de caráter privado. Da mesma forma, ninguém que realiza compras ou operações bancárias no mundo “virtual” desconhece o risco de que as informações enviadas sejam interceptadas por outros usuários. É o “preço” da conexão. Percebem-se contornos contratualistas no ingresso do mundo desregulamentado da Internet. O indivíduo aceita o risco de dispor das informações privadas contidas em seu computador e por ele informadas para que tenha acesso ao mundo das facilidades e maravilhas virtualizadas. No momento em que o usuário conecta-se à Internet, ele, automaticamente, aceita o risco de ter violadas as informações contidas no seu computador. O direito à intimidade persiste conforme as limitações que o seu próprio titular impõe. Flagrante, pois, que o direito à intimidade está vinculado àquilo que o titular do direito considera privado, íntimo, nas características da sua vida em que ele exerce o seu direito de solidão ou de sigilo de suas informações. É conclusível, portanto, que o direito à intimidade, garantia constitucional insculpida no artigo 5o, X, da lei maior de nossa pátria,12 vincula-se àquilo que o próprio titular do direito estabelece como de esfera íntima, estando limitado “à noção relativa e subjetiva de espaço e tempo”.13 Analogicamente à formulação do contrato social, quando o homem abre mão de parcela de sua liberdade para a formação de um Estado que o acolha e promova o bem comum, no momento em que o sujeitocibernético resolve ingressar na sociedade virtual, sair do ambiente controlado pelo poder Estatal, alcançar virtualmente os pontos mais distantes do planeta e comunicar-se com qualquer outro integrante desta tribo, ele abre mão do sigilo absoluto e inatacável das informações contidas em seu computador. Não significa que ele entregue parte ou a integralidade dos dados, mas ele abre a possibilidade de disponibilizá-los a outros. Cabe ao titular das informações utilizar-se,
se assim entender necessário, de fire walls e outros programas que dificultem o acesso às suas informações. Outro elemento que afeta a concepção do direito à intimidade como bem jurídico a ser tutelado por eventual norma ou catalogação de crimes é o fato de não ser verificável em pessoas jurídicas. A intimidade está vinculada à dignidade humana, não podendo ser estendida às pessoas jurídicas. Como ensina COSTA JR., a intimidade é “a necessidade de encontrar na solidão aquela paz e aquêle equilíbrio, contìnuamente comprometidos pelo ritmo da vida moderna; de manter-se a pessoa, querendo, isolada, subtraída ao alarde e à publicidade, fechada na sua intimidade, resguardada da curiosidade dos olhares e dos ouvidos”. DOTTI14 conceitua intimidade como “a esfera secreta da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais”. Em não sendo atribuído tal direito às pessoas jurídicas, não se poderia punir atividades de supressão de dados de sistemas informáticos praticados contra pessoas jurídicas. As pessoas jurídicas restariam à margem da proteção legal. Os sujeitos passivos seriam somente indivíduos, o que levaria a uma desarmonia do sistema, criando uma diferenciação ilógica de particulares, ambos lesados em suas atividades, pela perturbação de seus sistemas. Afastada, portanto, a intimidade como bem jurídico a ser tutelado. A disponibilidade de informações de que o internauta corre o risco de propiciar, contudo, não se confunde com a diminuição da capacidade funcional de um sistema, onde o instrumento para o acesso à Internet teria a sua capacidade diminuída ou afetada. O internauta jamais poderia abrir mão da higidez funcional do sistema, sob pena de não poder se utilizar dos benefícios da comunidade virtual. Não haveria como conectar-se sem o funcionamento correto do sistema, por isso o bem jurídico tutelado não é a intimidade, mas a capacidade funcional do sistema informático. A capacidade funcional corresponderia, de certo modo, à vida do “ciber-cidadão” na comunidade virtual; sem tal capacidade, não haveria a vida virtual.
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Constituição Federal, artigo 5o, X, “– são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. CRETELLA JR., José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, volume I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 257.
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DOTTI, René Ariel. Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1980, p. 69. 101
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Delitos Informáticos – Resposta Penal?
II. Delitos de Informática e Direito Penal – Incompatibilidade Orgânica
das páginas pelas quais ele “visita”. Pelo número, concedido pelo provedor de acesso quando da conexão, é possível se chegar ao computador de onde, eventualmente, tenha partido a prática desautorizada. Tal número, porém, não nos dá a capacidade de saber quem, efetivamente, está por trás de sua tela, digitando e estabelecendo seus comandos. Para a efetiva resposta penal, seria necessário descartar o princípio processual do in dubio pro reo, nos casos em que o agente não fosse pego em flagrante. Sabemos qual o computador, onde ele se localiza, sem, contudo, podermos afirmar quem se encontrava utilizando o aparelho tecnológico. A falta de certeza na identificação do autor do crime acarretaria a fragilização do princípio da culpabilidade, uma vez que, certamente, iria se chegar às condenações a partir de uma responsabilidade objetiva inadmitida em Direito Penal, ou seja, a do proprietário da máquina. Igual inquietação sentimos quando pensamos em condutas praticadas a partir de hardwares de propriedade de pessoas jurídicas. Em não havendo senhas para identificar cada uma das pessoas que acessam os computadores (embora as senhas também não assegurem a titularidade do acesso), quem seria responsabilizado? Faríamos como a apresentada legislação portuguesa (Lei no 109/91) que pune as “pessoas coletivas”, reincidindo na absurda responsabilidade penal da pessoa jurídica? Não há, portanto, como chegarmos seguramente a uma responsabilidade penal subjetiva, elemento essencial para a manutenção dos valores do Direito Penal. A “incerteza da vítima” é outro elemento a prejudicar a previsão penal de condutas informáticas lesivas. Ao se utilizar tal expressão, não se afirma que é impossível desconhecer o sujeito passivo. O que se concretiza é a prática de condutas não dirigidas especificamente contra uma pessoa ou sistema, mas em prejuízo de toda a sociedade digital. Ao ser espalhado um “worm” na Internet, não há, por parte de seu criador, a visualização do ataque a um determinado sistema. Há uma dissolução da figura da vítima, ocorrendo uma espécie de difusão das lesões causadas pela conduta. Há uma verdadeira indeterminação de ofendidos. A única identidade existente diz respeito a alguém que utiliza sistemas informáticos e navega pela Internet; assim como em algumas modalidades de crimes ecológicos as vítimas são seres que respiram. Outro ponto de dificuldade é a questão do tempo do crime. O sistema penal brasileiro, pelo artigo 4o, considera “praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do
Ao falarmos sobre crimes de computador, temos que ter sempre presente a amplitude de ações e relações que o ambiente digital nos oferece. No que tange à prática dos crimes em questão, temos como principal característica a singularidade do bem jurídico a ser tutelado – a capacidade funcional dos sistemas de informática. As condutas praticadas com o intuito de alterar, destruir, copiar, inserir ou obter dados, afetando o funcionamento de um sistema, causando-lhe paralisação, temporária ou permanente, indisponibilidade de acesso ou de dados, ou diminuindo de qualquer forma o seu desempenho frente ao fim que se destina, possuem características que o Direito Penal tradicional teria dificuldades em responder. Várias são as peculiaridades da criminalidade digital que trariam dificuldades para a aplicação de uma solução penal. A iniciar pela identificação do agente, passando pela incerteza da vítima, tempo do crime, verificação do dolo, concurso de crimes, chegando a prováveis lesões aos princípios da culpabilidade, da intervenção mínima, da tipicidade, da lesividade, do in dubio pro reo, e em outras incompatibilidades ainda sequer imaginadas, surge vigorosa a idéia da impossibilidade de resposta do Direito Penal a tal categoria de conduta. Em nossa construção, os delitos informáticos teriam como bem jurídico a ser tutelado (objetividade jurídica) a capacidade funcional do sistema computacional. O sujeito ativo seria o invasor desautorizado do computador ou rede. Constituem objeto material da conduta, o conjunto de dados informáticos – eles é que são atacados, afetando o funcionamento ideal do sistema. Sujeito passivo, qualquer proprietário de sistema informático. O elemento subjetivo da conduta, a vontade de violar o sistema, alterando, destruindo, copiando, inserindo ou obtendo dados, afetando seu funcionamento, causando-lhe paralisação, temporária ou permanente, indisponibilidade de acesso ou de dados ou alterando de qualquer forma o seu desempenho frente ao fim que se destina. A identificação do agente é o primeiro obstáculo para a criminalização. Além das dificuldades de investigação e habilidade dos violadores de sistemas, a titularidade da ação injusta em muitos casos não seria de fácil demonstração diante do princípio da responsabilidade subjetiva. Cada computador que trafega pela Internet apresenta um número de identificação que é registrado em cada uma 102
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Delitos Informáticos – Resposta Penal?
resultado”. Mais uma vez nos casos dos “vermes”, qual o momento da ação? Quando se cria o worm? Quando se introduz ele na Rede ou quando ele ingressa no computador? Pela teoria adotada pelo código, a ação seria no momento de sua colocação na Internet, ou seja, quando o agente “dispara-o” contra os diversos sistemas espalhados pela comunidade virtual. Os “vermes” espalham-se de maneira constante, violando, um a um, os sistemas que encontram pela frente. Podem transitar durante anos pelos computadores do mundo até atingirem um alvo sem o antivírus. É possível, portanto, que cheguemos até mesmo à surrealista situação de, ao causar o dano esperado pela conduta criminosa, esteja prescrita a ação penal a partir do tempo transcorrido entre a emissão e o resultado produzido pelo vírus. No caso de “bombas-lógicas”, bastaria a programação para que elas causassem seus estragos a partir de uma determinada data, quando já estivesse extinta a punibilidade do agente. O conceito de tempo de crime seria facilmente driblado. Por outro lado, entendendo-se que cada computador teria sido contaminado a partir de uma única ação, verificaríamos a ocorrência de um concurso formal em que os resultados da ação surgiriam ao longo do tempo, indefinidamente, causando dificuldades quanto à certeza e delimitação da prática imputada quando a regra para estabelecer o tempo do crime é a sufragada pela teoria da atividade, pouco importando o momento do resultado lesivo. A questão da responsabilização das pessoas jurídicas já foi apreciada quando da dificuldade de identificação do agente, porém cumpre trazer passagem de DOTTI:15 “É, portanto, no labirinto das emoções e paixões, como formas de expressão da consciência e da vontade humanas, que vamos conhecer o ‘coração’ do Direito Penal que é a culpabilidade”. Frente ao princípio da lesividade, como restaria culpável a conduta do hacker que ingressa em um sistema apenas para mostrar sua capacidade de driblar as ferramentas de segurança? Infiltrando-se no sistema sem a alteração, destruição, cópia, inserção ou obtenção de dados, estaria configurada a lesividade da conduta?
Com certeza, a tentativa de punição de tais condutas levaria à criação de tipos penais de perigo abstrato, modalidade típica que vem se difundindo na esfera penal, ferindo o princípio da ofensividade. HERZOG fala de uma “colocação em perigo do Direito penal mediante o Direito penal da colocação em perigo”.16 Como traça ZAFFARONI, “a irracionalidade da ação repressiva do sistema penal não pode chegar ao ponto de pretender imputar uma pena sem a pressuposição de um conflito no qual resulte afetado um bem jurídico”.17 Outra técnica legislativa inaceitável, mas muito praticada, é a da utilização de tipos penais abertos para coibir condutas. A utilização de tipos penais abertos viola o princípio da taxatividade, derivado do princípio da legalidade, uma vez que o legislador, em sua obrigação de manufaturar leis escritas,18 deve determinar com precisão a conduta punível. Everardo da Cunha LUNA adverte que “o maior perigo atual para o princípio da legalidade, em virtude da forma com que se apresenta, são os chamados tipos penais abertos ou amplos”.19 Frente ao avanço tecnológico contínuo e a provável mutabilidade das condutas que hoje entendemos como desviadas, praticamente seria necessária a difusão de tipos penais abertos para responder à criminalidade informática, o que se constituiria em mais um modelo de fragmentação do Direito Penal, violando o princípio da taxatividade. A partir da análise até aqui realizada, percebe-se que o primeiro elemento da necessária forma triangular proposta, a possibilidade, encontra-se desajustado a partir das regras gerais de funcionamento do Direito Penal. Quanto ao princípio da intervenção mínima, ao reconhecermos a capacidade funcional do sistema como bem jurídico, percebemos que esse bem jurídico não possui sustentação nos princípios constitucionais, carecendo de legitimidade para ser incorporado ao Direito Penal. O Direito Penal, a partir da visão de bem jurídico apresentada, possui como limites, positivo e negativo de justificação, os preceitos
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DOTTI, René Ariel. Incapacidade criminal da pessoa jurídica (Uma perspectiva do direito brasileiro). In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, no 11, pp. 184-206, jul./set. 1995, p. 206.
16 17 18 19
Apud ROXIN, op. cit., p. 60. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda de legitimidade do sistema penal. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. 3a ed. Rio de Janeiro: Revan, 1998, p. 240. CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil: (do discurso oficial às razões de descriminalização). Rio de Janeiro: Luam, 1996, p. 85. Apud BATISTA, op. cit., p. 82. 105
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constitucionais. Tendo sido afastado o direito à intimidade da esfera dos denominados delitos de informática e reconhecida a capacidade funcional dos sistemas como elemento a ser protegido pela legislação, apaga-se a luz constitucional do bem jurídico protegido, sendo discutível a possibilidade de tutela penal. Aqui, o vértice ausente é o da legitimidade. Percebe-se, a partir da análise apresentada, um manifesto descompasso entre os princípios e preceitos penais frente às características dos crimes informáticos. Fazendo uma alusão aos ensinamentos de HULSMAN,20 “não deve haver nunca criminalização quando isto acarretar sobrecarga para o sistema” e “a criminalização não deve servir para encobrir aparente solução para o problema”, não podemos aceitar a pura e simples tipificação dos delitos informáticos, inserindo-os no âmbito do Direito Penal, hipertrofiando-o ainda mais, sem que se possa, a partir de seus princípios, atender à demanda e dar as respostas esperadas. Fenece o terceiro elemento proposto, a eficácia.
ignorando-se a característica de ultima ratio atribuída Direito Penal, aviltando-se o princípio da intervenção mínima. SILVA SÁNCHEZ identifica, denominando-a de expansão, “uma tendência claramente dominante na legislação de todos os países, no sentido da introdução de novos tipos penais, assim como um agravamento dos já existentes”. Chama-se também atenção para a “criação de novos bens jurídico-penais, ampliação dos espaços de riscos penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia”.21 OST percebe, em toda parte, um “movimento de sobrepenalização” e uma mudança de paradigma interno, transferindo-se dos objetivos de “tratamento e de recuperação do condenado” para uma “política de gestão do risco criminal com base na segurança”.22 HASSEMER23 demonstra sua preocupação analisando a alteração de certas características de direito material e adjetivo na Alemanha. No Direito Penal é notável o aumento de penas, na utilização exagerada de crimes de perigo abstrato. Quanto ao Direito Processual Penal, percebe-se a possibilidade de negociação prévia antes do oferecimento da denúncia; a infiltração de investigadores; um aumento da capacidade dos sistemas de investigação, havendo a possibilidade de utilização de aparelhos de filmagens e de escuta por longos períodos; o cruzamento de dados informatizados, envolvendo, inclusive, informações de pessoas que não são objeto de investigação. O autor alemão percebe que “o processo penal está se antecipando cada vez mais. Sempre foi necessária a existência de uma suspeita, pelo menos, para se poder investigar. Agora já se permite o início da investigação mesmo antes de existir qualquer suspeita”.24 Atribui-se como causas da expansão do Direito Penal o surgimento de novas realidades, uma maior valoração de bens anteriormente existentes, como a questão do meio ambiente, e o patrimônio histórico e cultural, enfim, interesses difusos, que denotam a crescente dependência do ser humano frente ao externo. Somado a isso, temos a
A Criminalidade Contemporânea Não há como falar em crimes de computador ou criminalidade informática sem que se trabalhe com os conceitos de criminalidade contemporânea desenvolvidos a partir dos estudos de HASSEMER e SILVA SÁNCHEZ. A criminalidade contemporânea trouxe consigo uma nova política criminal caracterizada pela tentativa de dar respostas aos clamores de segurança, frutos da globalização e da disseminação do risco. São componentes desta política criminal a constante busca de celeridade no combate, a qualquer preço, das condutas mais alarmantes; o aumento do emprego de tipos de perigo abstrato e a criação de bens jurídicos universais, negando o princípio da lesividade; a utilização cada vez maior de tipos penais abertos e o esquecimento do princípio da taxatividade; a responsabilidade penal de pessoas jurídicas ou coletivas e a descaracterização da necessidade da identificação subjetiva do autor, ferindo o princípio da culpabilidade; a hipertrofia do sistema penal, aumentando-se penas e a quantidade de tipos penais,
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HULSMAN, L. H. C. Descriminalização. In: Revista de Direito Penal, São Paulo, no 9/10, pp. 07-26, jan./jun. 1973, p. 23.
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SILVA SÁNCHEZ, La expansión, p. 20. OST, op. cit., p. 377. HASSEMER, Wilfried. Perspectivas de uma moderna política criminal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, no 8, São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 41-51, out./dez. 1994, pp. 45-48. Resumo elaborado por Cezar Roberto Bitencourt, sem revisão do autor, da conferência realizada no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, dia 17.11.93. Ibid., p. 47. 107
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tentativa legal de afastar os riscos característicos da sociedade pósindustrial.25 Para OST,26 na “sociedade do risco” há um afastamento dos indivíduos da gestão política (o aumento contínuo da quantidade de abstenções nos sistemas democráticos de voto facultativo ratificam a afirmação), transferindo-se da reivindicação (política) para a “queixa” (em justiça) o instrumento de reparação ou justiça social. O aumento contínuo e desproporcional de demandas frente ao crescimento populacional denota a busca, cada vez maior, do poder judiciário como instrumento de satisfação das aspirações individuais. Quanto à questão penal, o autor sustenta que
legal na realização do ato para a perfectibilização do crime, ferindo o princípio da ofensividade ou lesividade. Do ponto de vista processual há um incremento no sistema de investigação, abusando-se da utilização de escutas telefônicas, ambientais, filmagens, infiltração de policiais, invasão de privacidade de terceiros, investigações prévias – anteriores até mesmo de suspeitas fundadas. Este aguçamento da atividade processual-investigatória, violando basicamente a privacidade de pessoas que sequer estão sendo investigadas, sem a fiscalização e, mais importante, limitação por parte do Poder Judiciário, “provém do fato de o direito material ter recebido demasiados encargos da nova criminalidade, encargos que não pode suportar”.31
“aos olhos dos indivíduos que se tornaram medrosos, o interdito reafirmado e sancionado parece poder estreitar os elos sociais e garantir um pouco da segurança perdida. (...)... os tribunais correcionais são transformados em lugar (...) onde a queixa social pode finalmente exprimir-se, onde os ‘pequenos’ postos em pé de igualdade com os ‘grandes’ podem enfim reclamar justiça”.27 HASSEMER exemplifica como características da criminalidade contemporânea o fato de, em regra, as vítimas serem pessoas jurídicas, havendo ausência de vítimas individuais, a pouca visibilidade dos danos causados, a internacionalidade das condutas e a inocorrência de violência perceptível.28, 29 O abarcamento da criminalidade contemporânea, característica da Sociedade do Risco, acarreta, em uma nova criminalização e um aguçamento de medidas, bem como em uma transformação do direito adjetivo, modificando-se especialmente na fase de investigação,30 na busca desesperada pela efetividade. Para HASSEMER, o Direito Penal Contemporâneo, voltado para as novas características delitivas, traz como principais efeitos o aumento das penas, o abuso da utilização de tipos penais de perigo abstrato, onde não há a necessidade da produção do dano, bastando a proibição 25 26 27 28 29 30 108
SILVA SÁNCHEZ, op. cit., pp. 25-28. OST, op. cit., pp. 340-342. Ibid., p. 379. Representada na expressão de Hassemer “não corre sangue”. HASSEMER, op. cit., pp. 44-45. Ibid., p. 45.
Alternativas Propostas Frente à dificuldade de adequação dos princípios e garantias penais na resposta à criminalidade contemporânea, surgem algumas alternativas à estrutura existente. Cumpre, pois, trazer as principais propostas em discussão.
O “Direito de Intervenção” O “Direito de Intervenção” possui origem na “Escola de Frankfurt”. Especialmente representada por HASSEMER, NAUCKE, ALBRECHT, PRITTWITZ e HERZOG, entende que a tentativa de utilização do Direito Penal, para a solução da segurança na “sociedade do risco”, acarretaria sua expansão desmedida, levando-o a uma funcionalização e a uma desformalização,32 causando sua ruptura. PRITTWITZ foi o primeiro a abordar a questão da “sociedade do risco” em sua obra “Derecho penal y riesgo” (Strafrecht und Risiko), onde aborda os limites do Direito Penal, a partir de sua estrutura liberal e conforme o Estado de Direito, aos riscos atuais.33 Postula o Instituto de Ciências Criminais de Frankfurt a defesa de um modelo ultraliberal do Direito Penal, propondo sua restrição de aplicabilidade às condutas praticadas contra a vida, a saúde, a liberdade e a propriedade, garantindo-se a tutela das máximas garantias legais, da imputação da responsabilidade e o processo.34 31 32 33 34
Ibid., p. 48. FERNANDES, op. cit., pp. 71-75. ROXIN, op. cit., p. 61. SILVA SÁNCHEZ, op. cit., p. 19. 109
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HASSEMER entende ser impossível utilizar-se o Direito Penal como instrumento de resposta à criminalidade contemporânea. Teria apenas uma função simbólica, uma vez que os instrumentos utilizados não seriam aptos a lutar efetiva e eficientemente contra a criminalidade real, porque o Direito Penal não pode ser utilizado como uma arma no combate à criminalidade, esquecendo-se sua tradição normativa e protetividade jurídica.35 A fim de não se causar verdadeira implosão do Direito Penal, HASSEMER propõe o que denomina de “Direito de Intervenção”, um campo do direito que se localizaria entre o Direito Penal, o Direito Administrativo, os ilícitos civis e o Direito Fiscal. Entende o autor germânico ser necessária a utilização de instrumentos voltados contra pessoas jurídicas (contrários ao princípio da culpabilidade, voltado para o indivíduo) e para o enfrentamento do perigo, da periclitação, e não para o dano. A criminalidade contemporânea não é um caso de danos, é um caso de riscos. O “Direito de Intervenção” teria condições de reagir ao perigo, ao risco, devendo organizar-se preventivamente.36 Percebe-se pelo fundamentado que o “Direito de Intervenção” apresenta lógica diversa do Direito Penal, que tem por característica agir após a concretização de um ato danoso, enquanto que aquele teria como função intervir, prevenindo o ato lesivo. O “Direito de Intervenção” permitiria uma maior maleabilidade em relação ao Direito Penal, autorizando atividades preventivas por parte do Ministério Público e acordos a fim de evitar a ocorrência de danos a bens difusos. Além disso, poder-se-ia estabelecer controles e obrigações com sanções para eventuais descumprimentos, sem que houvesse a necessidade da fundamentação penal da culpa.37 Certamente, o “Direito de Intervenção” disporia de garantias e procedimentos reguladores menos exigentes que o Direito Penal, ao mesmo tempo em que apresentaria sanções menos rigorosas.38 Conclui HASSEMER:39
aspectos. Não quero que fechemos os olhos diante desses problemas, ao contrário, desejo que sejam observados minuciosamente. Se tentarmos solucionar esses problemas, não teremos êxito e o máximo que conseguiremos será destruir o Direito Penal ao eliminarmos seus princípios fundamentais. Retirando as garantias do Direito Penal, eliminaremos a sua potência protetora jurídica e teremos instrumentos que não servirão para nada, porque estarão mal localizados e por isso sugiro que se reflita sobre outras reações de direito”.
“Temos grandes problemas de uma sociedade moderna de risco, problemas que foram esboçados em muitos de seus 35 36 37 38 39 110
HASSEMER, op. cit., pp. 41-43. Ibid., p. 49. Ibid., p. 50. ROXIN, op. cit., p. 61. Ibid., p. 51.
Conforme Augusto Silva DIAS,40 os penalistas de Frankfurt: “rejeitam todas estas manifestações consideradas típicas do Direito Penal do risco e admitem a intervenção penal no âmbito dos grandes riscos apenas nos confins do modelo liberal, assente na protecção de bens jurídicos individuais tangíveis, na restrição da responsabilidade penal às pessoas singulares e em critérios de imputação rigorosamente individuais”. A extensão do Direito Penal, portanto, na visão da “Escola de Frankfurt”, poderia sacrificar as garantias essenciais do Estado de Direito. Postula HASSEMER o enxugamento do Direito Penal a um “Direito Penal Nuclear”, resolvendo os problemas contemporâneos pelo “Direito de Intervenção”.41 NAUCKE percebe um deslocamento do centro de gravidade do Direito Penal, conforme o Estado de Direito, frente à exigência social. Insiste na conformidade do Direito Penal ao Estado de Direito, mesmo a custo da prevenção.42 ALBRECHT percebe a ocorrência de “erosões” no Direito Penal ajustado ao Estado de Direito, defendendo a retirada total do Direito Penal do controle preventivo, devendo, para isso, ser utilizadas as formas adequadas de controle e disponíveis no Direito Civil, Público e no Social.43
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Apud FERNANDES, op. cit., pp. 73-74. ROXIN, op. cit., p. 61. Ibid. loc. cit. Ibid., pp. 61-62. 111
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O Direito Penal de Duas Velocidades JESÚS-MARIA SILVA SÁNCHEZ propõe a criação de um Direito Penal de Duas Velocidades. Analisando o que chama de “expansão” do Direito Penal – a flexibilização dos princípios político-criminais e de regras de imputação, assim como o incremento e ampliação das sanções penais, a introdução de novos bens jurídicos e a fragilização das fronteiras da proteção penal – percebe ter ocorrido uma rápida transição do modelo político-criminal “delito de lesão a bens individuais” para o modelo “delito de perigo (presumido) de bens supra-individuais”.44 Hoje, temos a proteção de contextos cada vez mais genéricos, “de dimensões estruturais, globais ou sistêmicas”, nos quais as ações individuais, contempladas isoladamente, apresentam pouca intensidade. Assim, o Direito Penal que agia posteriormente ao fato lesivo, limitado aos sujeitos ativo e passivo, converteu-se em um Direito punitivo de riscos genéricos.45 É o que se chama de delitos de acumulação, onde a conduta, por si só não lesiva, é reprimida penalmente, uma vez que a sua prática por uma pluralidade de agentes, cumulativamente, causa lesão ao bem jurídico resguardado.46 Tal concepção é desenvolvida por Lothar KUHLEN que, ignorando os princípios da lesividade, culpabilidade e proporcionalidade, entende necessária a tipificação de certas condutas que per se não constituam perigo, nem mesmo abstrato, ao bem jurídico protegido, mas que a acumulação destas ações tenham a capacidade de produzir danos. Na concepção de KUHLEN, a acumulação não é um elemento hipotético, mas real – “se cuenta de antemano con la realización actual o inminente de hechos similares por una múltiple pluralidad de sujetos”.47 A “sociedade do risco” conduz, necessariamente, ao “Estado da prevenção”. “En este contexto policial-preventivo, la barrera de intervención del estado en las esferas jurídicas de los ciudadanos se adelanta de modo sustancial”.48 SILVA SÁNCHEZ percebe a encruzilhada em que o Direito Penal se encontra e propõe duas alternativas: setorizar as regras da Parte Geral do Direito Penal entre criminalidade clássica e contemporânea, ou, a
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SILVA SÁNCHEZ, op. cit., p. 121. Ibid., p. 123. Ibid., p. 131. Ibid., p. 132. Ibid., p. 138.
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partir da força gravitacional da nova criminalidade, modificar as regras gerais de todo o Direito Penal para moldá-lo à nova realidade. Advoga a criação de um “Direito Penal de Duas Velocidades”, renunciando uma teoria geral penal. Para ele, “não é necessário que haja as mesmas garantias em todo o sistema jurídico; (...) nem sequer em todo o sistema sancionatório penal há justificativa para se exigir as mesmas garantias. As conseqüências jurídicas são substancialmente diversas”.49 Na colocação de sua maior inquietação, refere a preocupação de limitação da reprimenda penal. Na verdade, não busca limitar a expansão do Direito Penal em geral, mas, sim, a expansão específica do “Direito Penal da pena privativa de liberdade”. Dessa forma, SILVA SÁNCHEZ coloca em paralelo a diminuição de garantias e de “rigor dogmático” aplicadas no Direito Penal Contemporâneo e a aplicação restrita de sanções pecuniárias ou privativas de direitos em lugar da tradicional pena privativa de liberdade. Haveria um Direito Penal de uma primeira velocidade em que se manteriam intactos os princípios político-criminais clássicos, punidos com pena privativa de liberdade; e outro de uma segunda velocidade, para os crimes punidos com penas pecuniárias ou restritivas de direito em que haveria uma flexibilização dos princípios, regras e garantias tradicionais. Ao contrário do “Direito de Intervenção”, portanto, o “Direito Penal de Duas Velocidades” não retira da esfera penal a prática das condutas concebidas como criminalidade contemporânea. Afirma que a inserção da previsão legal de tais condutas no ordenamento jurídico-penal traz como vantagens a dimensão sancionatória e a força dos mecanismos públicos de persecução das infrações do Direito Penal; uma dimensão comunicativa maior das sanções penais, além de uma maior neutralidade política frente ao Direito Administrativo.50 Conclui SILVA SÁNCHEZ que
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Ibid., p. 151. Ibid., p. 155. 113
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“el conflicto entre un Derecho penal amplio y flexible (convertido en un indeseáble soft law) y un Derecho penal mínimo y rígido – seguramente imposible – debe allar así una solución en el ‘punto medio’ de la configuración dualista. En efecto, no parece que la sociedad actual está dispuesta a admitir un Derecho penal orientado al paradigma del ‘Derecho penal mínimo’. Pero ello no significa que la situación nos aboque a un modelo de Derecho penal máximo. La función racionalizadora del Estado sobre la demanda social de punición puede dar lugar a un producto que resulte, por un lado funcional y, por otro lado, suficientemente garantista. Así, se trata de salvaguardar el modelo clássico de imputación y de princípios para el núcleo duro de los delitos que tienen asignada una pena de prisión”.51
dolo e consciência do injusto, autoria e participação e de responsabilidade penal das pessoas jurídicas.54 Finalizando, STRATENWERTH julga equivocado o posicionamento da “Escola de Frankfurt”. Entende inadmissível que se renuncie à pena, sanção mais violenta existente no Direito, justamente nos delitos em que estão em jogo interesses vitais não só do indivíduo, mas da humanidade como um todo.55
Uma Terceira Via Além das propostas da “Escola de Frankfurt” e de SILVA SÁNCHEZ, trazemos uma terceira forma de abordagem sobre o tema. STRATENWERTH, em 1993, propôs uma “terceira via” no intuito de “assegurar o futuro com os instrumentos penais”. Estabeleceu posicionamento contrário frente a um Direito Penal meramente funcionalista que, desrespeitando as tradicionais garantias do Estado de Direito, apenas cuidaria da finalidade de alcançar uma defesa, a mais eficaz possível, frente aos riscos que ameaçam o futuro.52 Propõe a proteção jurídica “normas de conducta referidas al futuro” sem referência a direitos individuais. Sendo a proteção dos bens jurídicos fruto do pensamento antropocêntrico, propõe que não se limite a extensão penal a ela, buscando a tutela de contextos da vida (v.g., ecologia, genética) sem que se vincule tal resguardo a interesses concretos de qualquer integrante da sociedade. A reprimenda penal é voltada para o futuro.53 STRATENWERTH, portanto, propõe um deslocamento da imputação orientada pelo bem jurídico para o novo campo de problemas – os delitos relativos ao futuro – nas questões de causalidade e resultado, 51 52 53 114
Ibid., p. 160. ROXIN, op. cit., p. 62. Ibid.
Crimes de Informática e Resposta Para que se possa buscar uma resposta possível, legítima e eficaz para delitos informáticos, é fundamental que tenhamos presente que as condutas praticadas que violam a incolumidade dos dados e a capacidade funcional dos sistemas de informática possuem características da denominada criminalidade contemporânea, uma vez que há uma pluralidade múltipla de sujeitos – tanto ativos quanto passivos – uma pouca visibilidade dos danos causados – uma vez que muitos dos atacados pelas condutas sequer noticiam às autoridades policiais a ação de que foram vítimas – a amplitude territorial da conduta, a inocorrência de violência perceptível, além das já demonstradas dificuldades de adequação às regras penais gerais existentes. Percebemos, portanto, a dificuldade do Direito Penal no enfrentamento do problema. Um ramo do conhecimento humano baseado nos ideais iluministas, nos princípios estruturantes da modernidade, procurando dar resposta para uma atuação com características instantâneas, alheias aos limites espaciais, caracterizada pela dificuldade de identificação real do autor do delito e incorpórea. Somada a isso, temos a incapacidade do Estado sobre o controle da técnica e, por conseqüência, de limitar tais ações. A prática da modalidade delitiva em estudo prescinde do deslocamento espacial físico, bastando que, com o manuseio de equipamentos eletrônicos, se rompa a distância entre o agente e o bem jurídico a ser lesado. A criminalidade informática, independentemente da distância física entre agente e vítima, passa a ser quase instantânea, adquirindo a característica da comunicação. Como se percebe, esse tipo de criminalidade constitui-se em conduta delitiva à qual são inaplicáveis os caracteres punitivos e 54 55
Ibid. Ibid. 115
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processuais do Direito Penal de massa. Segundo HASSEMER,56 a criminalidade massificada é a do roubo de veículos, de assaltos de rua, de agressões físicas contra estrangeiros, de arrombamentos de casas, etc., fatos vinculados dentro de um ordenamento jurídico e perfeitamente harmonizadas com os princípios do Direito Penal. O bem jurídico tutelado, capacidade funcional do sistema, é supraindividual, vago e genérico, o que transcende os direitos individuais universais. Percebe-se, portanto, uma categoria de condutas sendo “perseguida” por um modelo sancionador de lógica e funcionamento totalmente diverso. Há, na elaboração de novas leis, o simples esquecimento de princípios norteadores do Direito Penal, a fim de combater a rapidez do injusto tecnológico. Não é com a flexibilização desrespeitosa dos princípios que se verá a socialmente desejada efetiva repressão de determinadas condutas. Assim, como não parece possível inserirmos uma forma quadrangular em outra de forma circular de mesma área, não podemos adequar e compatibilizar condutas ontologicamente diversas. A atualidade traz essa crise paradigmática da Ciência Penal moderna, inserida no mundo da velocidade da técnica – uma característica do final do século XX tenta dar resposta a condutas de natureza pós-moderna, pós-industriais. A violência é praticada não apenas na forma tradicional, ou seja, física, mas, também, de característica psicológica. Parafraseando VIRILIO,57 quando diz que o medo é o mais cruel dos assassinos, pois não mata jamais, mas impede de viver, poder-se-ia dizer que em uma sociedade dependente da informática a incerteza do funcionamento correto de seu sistema computacional é uma das maiores ameaças ao indivíduo, pois coloca-o em um patamar de vulnerabilidade, insegurança e impotência (medo). É, justamente, essa forma de violência que hackers, crackers e os serviços de inteligência estatais praticam. Imiscuem-se nos computadores de outras pessoas, às vezes por simples prazer, ou sob a justificativa da “segurança nacional”, obtendo informações de caráter pessoal, íntimo.58
Perceptível a necessidade de uma ação do Estado no sentido de buscar minimizar ou prevenir tais condutas violentas. A questão é: Como fazê-lo? O primeiro passo acreditamos ser afastar o Direito Penal do plano de ação. Ousamos discordar dos fundamentos de SILVA SÁNCHEZ e STRATENWERTH acerca da necessidade de manutenção do Direito Penal. STRATENWERTH, de maneira mais grave, entende que se deve fazer uma abordagem penal alheia ao bem jurídico, devendo ser aplicada pena privativa de liberdade aos delitos “futuros”. Não se percebe como deixar de violar os princípios da ofensividade, da culpabilidade e da tipicidade a partir de tal previsão. Respeitamos a posição do autor, mas não visualisamo-la como possível e legítima, estando sua eficácia limitada pelos próprios riscos futuros. SILVA SÁNCHEZ defende a manutenção do Direito Penal, resguardando a pena privativa de liberdade aos delitos tradicionais, juntamente com os princípios, e diminuir o caráter dogmático de um “segundo” Direito Penal, voltado aos delitos não puníveis com pena privativa de liberdade. Entendemos que a posição do Professor espanhol afeta a estrutura da Ciência Penal, uma vez que a divide ao meio, reconhecendo tutelas diversas, a partir das sanções estabelecidas. Como afastar do legislador penal a possibilidade de tipificar com penas privativas de liberdade tipos penais que necessitam de agilidade e rapidez para serem punidos? Tais tipos se demonstrariam ineficazes, não em virtude da sanção, mas pelas limitações legais que a escolha da espécie de sanção implicaria; não dariam a resposta esperada a partir de sua dimensão comunicativa.59 A criação de um Direito Penal de Dupla Velocidade poderia causar uma crise estrutural do sistema que, a partir da própria força gravitacional dos tipos contemporâneos, certamente viria romper com os valores penais clássicos. Por fim, cumpre analisar o chamado “Direito de Intervenção”. Antes de mais nada, é necessário esclarecer que não nos posicionamos como Jorge de Figueiredo DIAS, que entende “que não valerá a pena (...) o cultivo de um direito penal que, seja em nome de que princí-
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HASSEMER, op. cit., p. 42. VIRILIO, op. cit., p. 51. O projeto Echelon, controlado pelas Agências de Segurança dos Estados Unidos, da Inglaterra, do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia, estabelece a possibilidade de monitoramento de cada ligação telefônica, e-mail, fax ou pacote de transmissão de dados
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que trafegam pelas redes de telecomunicações mundiais. Disponível em www.terra.com.br/amanha/160/capa_print.htm, acesso em 10.12.2001 e SILVA NETO, op. cit., pp. 53-58. Tal argumento, “dimensão comunicativa”, utiliza-se com o único intuito de crítica, uma vez que o próprio autor estabelece a necessidade da reprimenda penal a partir, também, desta característica (Op. cit., p. 155). 117
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pios for, se desinteresse da sorte das gerações futuras e nada tenha para lhes oferecer perante o risco existencial que sobre elas pesa”.60 Entendemos que não cumpre ao Direito Penal garantir as vidas futuras na superfície terrestre. Ele foi criado na defesa dos indivíduos contra o arbítrio estatal e, como tal, deverá permanecer. Mudar seu caráter traria o risco de desvirtuamento completo de suas finalidades. Não é admissível que se queira utilizar o Direito Penal para a resolução dos problemas da humanidade, sejam atuais ou futuros. O “Direito de Intervenção”, por sua vez, pode preocupar-se com a questão do futuro, sem ter um passado de princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito a limitar sua atividade. A princípio, o “Direito de Intervenção” preenche melhor o triângulo formado pelos vértices possibilidade, legitimidade e eficácia, o que ocorre, naturalmente, por se tratar de ramo do Direito com características próprias, não possuindo qualquer vinculação com o Direito Penal, suas origens, princípios e conseqüências. A criação de um ramo novo abre a possibilidade de se elaborar uma teoria nova, com seus fundamentos e princípios próprios para estabelecer regras aplicáveis a condutas ilícitas contemporâneas.61 A legitimidade apresenta-se justificada no momento em que se percebe a quantidade e as conseqüências dos ilícitos informáticos. A eficácia está atrelada aos instrumentos de resposta e às possibilidades proporcionadas pela teoria a ser elaborada. Com isso, o Direito Penal permanece estável e se fortalece frente aos crimes tradicionais, impedindo a desvalorização das normas e fragilização do sistema em decorrência da indesejável inflação penal. Ademais, a criminalidade contemporânea poderia ser enfrentada de maneira eficaz, segundo parâmetros e princípios próprios, procurando aplacar os sentimentos de medo e insegurança típicos da “sociedade do risco”.
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DIAS, Jorge de Figueiredo. O direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade do risco”, texto a publicar in Estudos em Homenagem ao Doutor Rogério Soares, no prelo, p. 13. Apud FERNANDES, op. cit., p. 75. Utilizamos a expressão “condutas ilícitas contemporâneas” em lugar de “criminalidade contemporânea”, pois, no momento em que se propõe retirar do Direito Penal a possibilidade de reprimir tais comportamentos, por coerência, deve-se retirar o caráter criminoso dessas práticas. Somente se afasta a expressão “criminalidade contemporânea” a partir do momento em que, no presente estudo, se examina a possibilidade de lançar mão do denominado “direito de intervenção”, tal como preconizado pela Escola de Frankfurt.
A Incompatibilidade entre a Criminalização do Inadimplemento de Tributos e o Direito Penal Garantista* Marcelo Machado Bertoluci
Introdução Como primeiro passo, é fundamental lançarmos um olhar retrospectivo sobre a legislação penal brasileira – para nos darmos conta do quanto o Estado-legislador tem incrementado o seu poder de ação por meio de leis interventivas da liberdade individual, infelizmente marcadas pelo utilitarismo penal. É nossa intenção produzir uma crítica amparada na análise principiológica, considerando que a criminalização em pauta decorre de duas marcantes crises (do Estado Interventivo e do Estado Fiscal), caracterizando marca indelével da violência institucional. Tal crítica privilegia-se por uma concepção interdisciplinar de saberes – abarcando pontos relevantes desde a pouca valoração do patrimônio público por nossa sociedade até a perquirição sobre o conceito vago e impreciso de “coisa pública” e sua baixa representatividade. Diante dessa problemática, assumimos o compromisso de discutir o tema tendo como norte os modernos critérios político-criminais, embasados nos iluminadores princípios da proporcionalidade e isonomia aplicáveis no Estado Democrático de Direito. Respeitaremos os princípios do Direito Penal garantista, pleiteando uma revisão da criminalização do inadimplemento de tributos e contribuições, mediante um (re)pensar do atual sistema, enfocando a necessidade da descriminalização da conduta com vistas ao seu *
Este texto compreende a síntese enxuta da Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais – PUCRS, apresentada à Banca Examinadora em 2001, e representa um estudo sobre a problemática advinda do art. 2o, II, da Lei no 8.137/90, que abarca a criminalização do inadimplemento de tributos e contribuições. O enfoque procura relacionar a baixa valoração social que a sociedade brasileira dá ao bem jurídico tutelado (o patrimônio público) e o deletério vício da inconstitucionalidade dessa criminalização em especial. 119
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disciplinamento por intermédio do Direito de Intervenção ou do Direito de Mera Ordenação social.
comunidade política, como, por exemplo, cuidar da Justiça Social ou assumir tarefas culturais, preservar o meio ambiente natural ou adotar medidas de proteção contra riscos da própria existência. A transição ocorrida entre o sistema liberal e o sistema intervencionista trouxe, como inegável conseqüência, a busca do bem-estar público, como também a procura pela Justiça Social. As transformações das funções do Estado, igualmente, ocorreram no Brasil, quando a ação do Estado-Providência aumentou sobremaneira: assistência social, proteção ao trabalho, regulação e fornecimento de prestações públicas, políticas sanitárias, habitacionais, urbanas, educacionais, culturais, dentre outras tarefas de fundamental relevância. Em função dessa própria ampliação das atribuições do Estado contemporâneo, logicamente, a tarefa destinada à obtenção dos recursos públicos torna-se de fundamental importância para a satisfação das múltiplas prestações por ele devidas. A transição operada entre o Estado-Liberal e o Estado-Social pode ser estruturalmente comparada com a transição deste para o denominado Estado Fiscal. NORBERTO BOBBIO (1995, p. 404) leciona com precisão:
1. As Características do Estado Intervencionista As transformações ocorridas no século XX modificaram profundamente o papel do Estado, em suas características fundamentais, bem como a relação dos administradores públicos com os governados. Muitos são os fatores que colaboraram para a ocorrência dessas mudanças. A concepção desenvolvida no século XIX, segundo a qual o Estado deveria atuar restritivamente, enfrentou severos questionamentos. Naquele século, “aceitava-se como exceção a interferência do Estado nos assuntos em que fosse predominante o interesse individual, sendo raros os que não eram assim considerados” (STRECK; MORAIS, 2000, 10p. passim). No decorrer da História, houve flagrante alteração nos papéis do Estado – a qual abarcou desde um aparente absenteísmo até a tarefa de intervenção. Para compreender esta mutação, citamos alguns fatores que colaboraram sobremaneira para o desenvolvimento da tarefa interventiva: a Revolução Industrial, com suas conseqüências de proletarização, o advento da 1a Guerra Mundial, que rompeu a tradição do liberalismo econômico, dilatando as exigências de armamento e evidenciando a necessidade do controle da atividade econômica, como também a Constituição de Weimer e a crise de 1929, que produziram reflexos internacionais, com a intervenção do Estado no domínio econômico. Também contribuiu, para a afirmação do Estado Interventivo, o conjunto de concepções teóricas formuladas pela Igreja Católica, notadamente as Encíclicas Papais conhecidas como “doutrina social da Igreja”. A mutação ocorrida resultou num Estado Intervencionista, caracterizado por novas funções, cuja construção teórica (economia e política sempre ligadas) é atribuída a John Maynard Keynes (apud VENÂNCIO FILHO, 1998, p. 11). O nascimento do Estado Interventivo ocorreu num momento marcado pela necessidade de ele zelar pelo equilíbrio adequado dos poderes sociais, bem como de atuar contra os processos de concentração, garantindo, em linhas gerais, a harmonização adequada dos interesses conflitantes. Sabe-se, hoje em dia, que o mercado livre, por princípio, não tem capacidade para resolver satisfatoriamente certos problemas de política econômica e social, dado que está unilateralmente orientado para promover a oferta dos bens mais rentáveis. Ele não promove, ou fá-lo de modo apenas insuficiente, outras tarefas da 120
R. Goldscheid pôs em relevo a tendência histórica a um progressivo empobrecimento do Estado, já que a burguesia conseguiu criar um Estado dependente, no que respeita à disponibilidade financeira, às suas concessões. Se na época do Estado Absoluto os que detinham o poder representavam igualmente o Estado, e a riqueza do Estado era a sua riqueza, na época do Governo Constitucional, ao contrário, o Estado e a propriedade se separaram. Esta separação originou a dependência – a dependência fiscal – do Estado à sociedade. Dessa forma, a fonte de recursos para a sustentação de suas obrigações passa a ter preponderância nas pautas de discussão, tanto assim que o Estado Intervencionista necessita um incremento cada vez maior das receitas públicas, a fim de implementar e fazer frente às suas múltiplas funções. Isto porque as exigências da sociedade são cada vez maiores e, por conseguinte, aumentam os desafios do Estado-providência.
1.1. O Estado Intervencionista Brasileiro Efetivamente, o esforço de agilização da conduta do Estado justificou a sucessiva criação das autarquias e das sociedades mistas; 121
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mas, à medida que esses se desenvolviam, o Estado foi, aos poucos, retirando-lhes a necessária autonomia e flexibilidade. Ocorreu, assim, a chamada “desautarquização das autarquias”, fazendo com que lhes fosse aplicado o mesmo regime legal imperante em relação à administração direta na maior parte de suas atividades e na sua relação com os seus funcionários. Após a frustração da solução autárquica, desenvolveu-se a economia mista, cujo declínio, já em 1954, foi previsto pelo Professor BILAC PINTO (1957), mas que, desde então, continuaram a se multiplicar. Por muito tempo, não se admitiu nem a presença do Estado como simples acionista minoritário, nem a gestão realmente privada das empresas mistas, cuja personalidade de Direito privado escondia uma atuação que, mesmo fora da ação monopolista, obedecia de fato a um regime semipúblico, com uma camisa-de-força em matéria de licitações que falseava a adequada competição que deve existir entre atividades comerciais públicas, mistas e privadas. A criação de novos Ministérios, como o do Trabalho, o da Educação e Saúde, com atividades mais de prestação de serviços do que simples registros burocráticos, indica uma tentativa de modernização e adaptação da estrutura administrativa a novas contingências da vida brasileira. Inicia-se um amplo esforço de elaboração legislativa, com a criação das Comissões Legislativas. E em dois setores principais o Governo Provisório vai estabelecer regime inteiramente novo, prenunciadores do Direito público econômico nascente, o regime das águas e energia elétrica, e o regime das minas. Em ambos os casos, os novos códigos, regulando a matéria, afastam-se claramente das simples disposições privatistas, para dar ao Estado poderes os mais amplos, transformando as relações contratuais de Direito privado em relações de Direito público, nas quais se tinha como objetivo principal o interesse público. A Constituição de 1934 já se enquadra neste novo espírito das Constituições européias do pós-guerra, refletindo o desenvolvimento de uma ordem econômica e social mais consentânea com as aspirações das classes trabalhadoras e com as novas atividades do Estado. Além do aumento crescente da tarefa interventiva, verificamos no cenário nacional um incremento da ação normativa estatal na seara do Direito Penal: a Carta da República de 1937, que oficializou o período do Estado Novo e estabeleceu a intervenção estatal no domínio econômico, definiu de forma mais explícita que o Estado promulgaria leis mais severas em defesa da economia.
Pode-se perceber que o legislador brasileiro sempre deu atenção especial à propriedade privada e aos detentores do patrimônio. O próprio Código Penal de 1941 evidencia a existência de um descompasso entre a eleição de bens jurídicos e a gravidade das sanções penais. A política intervencionista é evidenciada na Consolidação das Leis do Trabalho, ditada por Getúlio Vargas em 1943: igualmente o Decreto-Lei no 7.661/45, originando a Lei de Falências, e o Decreto-Lei no 7.666/45, punindo atos contrários à ordem moral-econômica. Em 1946, com o advento da Constituição liberal, a legislação brasileira adotou posição mais flexível, contrariando o rumo à hipercriminalização por meio de uma política normativa implantada no período do Estado Novo. Ademais, no governo do Presidente Getúlio Vargas, a Lei no 1.521/51, Lei da Economia Popular, revolucionou a legislação à época. Numa verdadeira hemorragia de novos crimes, esta lei criou mais de vinte tipos penais, adotando uma forma sumária para o seu processamento (art. 10) e implantando o Júri da Economia Popular (art. 12 usque 30). Posteriormente, nos anos sessenta, aparece a Lei no 4.137/62, com o intuito de intervir no domínio econômico. Nesse período, destacaram-se, ainda, as Leis no 4.395 e no 4.728, ambas de 1965. A primeira criou o Conselho Monetário Nacional, dispondo sobre a política e as instituições monetárias, bancárias e creditícias. A segunda disciplinou o mercado de capitais, prevendo medidas para o seu desenvolvimento. Com a nova Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional no 1, de 1969, é estabelecido que
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(...) a ordem econômica tem por fim a realização da justiça social com base nos princípios da liberdade de iniciativa, valorização do trabalho como condição da dignidade humana, função social da propriedade, harmonia e solidariedade entre os fatores da produção, desenvolvimento econômico e da repressão do abuso do poder econômico. Em 1986, o Estado (legislador) segue com mais ênfase em sua política de intervenção na ordem econômica, promulgando a Lei no 7.492, conhecida como a Lei dos Crimes do Colarinho Branco, tutelando o Sistema Financeiro Nacional. 123
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1.2. O Tributo como Instrumento de Arrecadação Para que o Estado-Providência implemente suas variadas prestações, torna-se imperioso que o instrumento da receita e o aprimoramento das técnicas de instrumentalização das finanças públicas sejam eficazes para viabilizar o custo financeiro da atividade Estatal. Além da dimensão sociológica e histórica do tributo, outra dimensão é a denominada de caráter normológico (ver DE JUANO, 1990). O poder de tributar representa um aspecto da própria soberania estatal e, além de relação de poder, constitui-se em relação jurídica cuja origem remonta à imposição do vencedor sobre o vencido.
1.3. Os Princípios Estruturais da Tributação A defesa do sistema tributário e do próprio regime jurídico da tributação opera-se por um conjunto de limitações estatais do poder de tributar. Os princípios básicos do sistema tributário (ver BELSUNCE, 1982, p. 67) representam padrões mínimos de atuação estatal e devem significar manifestação da Justiça tributária. Por sua vez, os princípios constitucionais tributários, expressos ou implícitos, são os mandamentos nucleares do sistema, seu alicerce e fundamento, definidores de sua lógica e racionalidade (MELO, apud ATALIBA, 1984, pp. 35-36). Dentre os princípios basilares do fenômeno da tributação destacam-se os que mais se relacionam ao presente trabalho: princípio da capacidade contributiva; da economia do tributo; da igualdade jurídica ou isonomia em matéria tributária, os quais, no caso de virem a ser violados, causam uma área de atrito de graves proporções entre o fisco e o contribuinte.
a) Princípio da Capacidade Contributiva A Constituição Federal de 1988 restabeleceu a norma que expressamente consagrava na Constituição de 1946 o princípio da capacidade contributiva. De acordo como o art. 145, § 1o, os tributos serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte. O princípio da capacidade contributiva representa a potencialidade do sujeito passivo da relação tributária de agregar, ao patrimônio 124
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e necessidades do Erário, recursos que não afetem sua própria possibilidade de gerá-los. Entende-se, por outro lado, como função distributiva de riquezas aquela finalidade estatal de reciclar seus ingressos tributários, permitindo que outras pessoas atinjam capacidade contributiva. No sistema tributário brasileiro, assistimos à violação do estrutural princípio da capacidade contributiva (MARTINS, 1998, p. 20), sendo muitos os fatores indicativos dessa constante transgressão, a qual causa uma área de atrito de graves proporções entre o fisco e o contribuinte.
b) Princípio de Economia do Tributo Por considerá-lo exato para este estudo, transcrevemos o conceito do princípio da economia do tributo de autoria de DINO JARACH (1990, p. 304), iluminado por ADAM SMITH: Consiste este princípio, según la acepción de A. Smith, en lograr que los impuestos impongnan al contribuyente la menor carga posible por encima del monto que efectivamente ingrese en las arcas del fisco. Este princípio tem sido reiteradamente violado no Brasil, sobretudo porque a carga tributária brasileira se apresenta como elevadíssima, marcada pelo excesso de soberania do Estado na área da tributação, chegando, muitas vezes, a apresentar natureza confiscatória. O Estado Fiscal brasileiro desenvolveu-se rapidamente e a intervenção no domínio econômico ganhou contornos exagerados. Tanto assim que ARNOLD WALD considera ser o Brasil um dos países em que o estado mais intervém na economia (1998, pp. 60-61). Esta excessiva carga tributária praticada em nosso país impressiona pela profunda ingerência no patrimônio dos governados, configurando, inclusive, ameaça a princípios sagrados, como pondera NABAIS (1998, pp. 233-234) – o qual chega, até, a falar no “domínio da fiscalidade”.
c) Princípio da Igualdade Jurídica ou Isonomia em Matéria Tributária O princípio da igualdade para o Direito Tributário é a projeção geral de isonomia jurídica, segundo o qual todos são iguais perante a 125
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lei. Apresenta-se como garantia de tratamento uniforme, pelo sujeito ativo da relação tributária. HUGO DE BRITO MACHADO (1997, p. 37) considera que a igualdade consiste, no caso, “... na proporcionalidade da incidência à capacidade contributiva em função da utilidade marginal da riqueza”. Em virtude das disposições do princípio agora estudado, o fenômeno da tributação deve operar-se tendo em vista a igualdade entre pessoas físicas e jurídicas nas mesmas situações, proibindo-se qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função. Entretanto, como ocorre com os outros princípios, o da isonomia também tem sido violado constantemente no sistema tributário brasileiro.
A importância da análise e compreensão sobre o conceito de bem jurídico mereceu atenção por parte de LUIGI FERRAJOLI, o qual discorre sobre o princípio da necessidade ou da economia das proibições penais, expressado pelo axioma (nulla lex poenallis sine necessitate) e também sobre a idéia de máxima economia na configuração dos delitos, expressada pelo princípio nullum crimen sine necessitate (1997, p. 467). Esse autor aduz que, com o renascimento da cultura penal liberal e democrática, o conceito de bem jurídico recuperou o caráter garantista, não sendo possível, no entanto, o alcance de uma definição exclusiva e exaustiva da noção de bem jurídico (FERRAJOLI, 1997, 467p. passim). A necessidade de conter os excessos criminalizadores dá origem ao entendimento de que o Direito Penal tem por objeto não a tutela de direitos subjetivos, mas a de bens jurídicos. Todavia, no decorrer do século XIX, sustentava-se que a proteção do Direito Penal devia se estender além dos bens de natureza corpórea, incluindo-se na sua área, também, os bens imateriais. Com o objetivo de buscar o embasamento que permita uma determinação dos bens jurídicos merecedores de tutela penal, limitando, inclusive, essa ação tutelar, surgiu, nesses últimos decênios, o que se pode definir como um processo de constitucionalização dos bens jurídicos penais. É nas Constituições que o Direito Penal deve encontrar os bens que lhe cabe proteger com suas sanções. E o penalista assim deve se orientar, uma vez que nelas já estão feitas as valorações criadoras dos bens jurídicos, cabendo a ele, em função da relevância social destes bens, tê-los obrigatoriamente presentes, inclusive a eles se limitando.
1.4. Crise do Estado Fiscal Quando a procura existencial do Estado atinge um determinado grau de intensidade, a continuação do alargamento das prestações públicas de assistência e abastecimento parece já não ser acompanhado por uma aceitação crescente em face do Estado, mas antes por um certo desagrado sentido por largas partes da população. As disfunções do sistema tributário, juntamente com a inegável violação dos princípios da capacidade contributiva, economia de tributo, bem como igualdade da tributação, acarretam uma verdadeira crise do Estado Fiscal (ver MARTINS, 2000, p. 2). A crise de legitimação apresenta-se como crise fiscal do Estado, ou seja, como incapacidade da autoridade pública em enfrentar a situação contraditória dos interesses do grande capital e da força de trabalho marginal, existentes dentro do corpo social. Além disso, as despesas públicas não conseguem prover, devido à diferença crescente entre as saídas desnecessárias e as entradas insuficientes, a distribuição de recursos que satisfaçam às aspirações de uma área cada vez mais vasta de indivíduos, cuja reprodução social só pode ser esperada da expansão das despesas sociais por parte do Estado. A crise fiscal, junto com a crise de legitimação, revela-se, portanto, como uma crise social.
2. O Bem Jurídico Tutelado pelo Artigo 2o, II, da Lei no 8.137/90 Revelada a crise social, acrescenta-se, a ela, a baixa valoração que a sociedade brasileira dá ao bem jurídico tutelado pelo art. 2o, II, da Lei no 8.137/90. 126
2.1. O fenômeno do patrimonialismo e a valoração social da conduta incriminada Questão merecedora de investigação diz com a baixa valoração social emprestada pela sociedade brasileira ao bem jurídico tutelado pelo art. 2o, II, da Lei no 8.137/90, cujas condutas nele tipificadas protegem a ordem tributária (em sentido macro) com o próprio bem tutelado (LOVATTO, 2000, p. 104). A origem do Estado patrimonial brasileiro representa a expressão de processos sociais e políticos específicos. A análise da problemática do patrimonialismo no Brasil é de vital importância, sobretudo para 127
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compreendermos a dinâmica das relações de poder no contexto da formação de nossas instituições políticas. Tanto a origem do Estado Patrimonial brasileiro, como seu desenvolvimento e estruturação ainda guardam, em nossos dias, extrema atualidade. Na medida em que, historicamente, o Estado atua objetivando, dentre outras ações, implementar sua dominação na esfera econômica, não é difícil imaginar que a riqueza econômica dos administrados sempre representou parcela imprescindível para o atingimento dos fins estatais. É flagrante a percepção da nossa sociedade sobre o poder patrimonial do Estado, sobretudo porque verdadeira fúria arrecadadora marca a atuação tributária no Brasil. Somada a esta característica, verificamos uma ação fiscal marcada pelo excesso de tributação, pelas constantes violações dos princípios basilares do Direito Tributário, bem como pelo diminuto retorno das parcelas pecuniárias adimplidas pelos contribuintes em termos de serviços e prestações públicas em geral. Para SCHWARTZMAN (1982), a história brasileira resume-se na continuidade, sintoma de uma “doença medular, da qual até hoje não conseguiu erguer-se”, destacando a idéia de dicotomia entre Estadosociedade. A característica patrimonial do Estado brasileiro, o qual é vislumbrado (desde o período colonial) como um instrumento de obtenção de receitas privadas, constitui elemento que colabora sobremaneira para a rasa representatividade dos administradores públicos e, por conseguinte, o distanciamento destes e os administrados. Outro fator que colabora para uma baixa valoração social ao bem jurídico tutelado (patrimônio público-ordem tributária) diz com o conceito vago e impreciso sobre o que seja, efetivamente, a denominada “coisa pública”. Essa difícil visibilidade do conceito abstrato e impessoal de “coisa pública” e, por conseguinte, do que efetivamente represente a expressão “patrimônio público” na sociedade brasileira constitui-se elemento colaborador para a baixa valoração social ao bem jurídico tutelado. Outro fator acessório, mas que guarda relação com essa baixa valoração, diz com a crise de poder e legitimidade enfrentada pelo Poder Executivo em nosso país. É inequívoco que as pautas tributárias são discutidas e levadas a cabo mediante projetos de lei idealizados pelos administradores públicos, os quais labutam (em termos de tributação) por meio de critérios exclusivamente matemáticos, com o desiderato de aumentar exageradamente a receita pública para fazer frente às intermináveis despesas, oriundas de um
Estado pretensamente social, responsável por uma gama significativa de prestações crescentes e irrenunciáveis. Reforça-se, neste ponto, que, na hipótese criminalizadora em exame, está transparente a forte influência do Poder Executivo. Atingido por uma turbulência constitucional que desaguou em 1964, quando o Poder Militar assumiu o controle dos Poderes Constitucional e Executivo, nosso país viu-se num contexto político e econômico, no qual o Estado detinha meios precários de arrecadação. Para a justificação da tomada de poder repentina e por meios não-convencionais, era imperioso que os novos titulares do poder auferissem receita suficiente para a implementação das reformas pretendidas. Daí a criminalização de fatos de natureza econômica. Todavia, o panorama se apresentava inseguro em termos econômicos. As especulações financeiras eram constantes e o Fisco se mostrava com fraco poder de arrecadação – agravado pela própria característica cultural do país, que contribuía, sobremaneira, na profunda falta de comprometimento com a “coisa pública”. Essa problemática agrava-se com o advento da Constituição Federal de 1988. A Carta Magna, eivada de institutos sociais, esbarrava, todavia, no entrave constante da pequena massa de contribuintes e da renda nacional em declínio. Somadas a estas circunstâncias, verificava-se a inflação elevada e a necessidade imediata de cumprir os compromissos com a ordem internacional, firmados durante o período do Regime Militar. Nesse contexto atípico e temerário, é promulgada a Lei no 8.137/90. Fácil supor, nessa realidade, a má elaboração das leis penais, conforme DOTTI (1998, p. 239), com a agravante que Ordens impostas pela força não se convertem em ordem jurídica (Ibid.). A crise de legitimidade enfrentada pelo Poder Executivo no Brasil não é um fenômeno exclusivamente nosso. Muitos são os indicativos que apontam a falta de interação entre o universo político – leia-se aí Estado e os administrados –, o que provoca indisfarçável distanciamento e desconhecimento mútuo, numa circunstância que merece a análise de MICHEL MAFFESOLI (1987, pp. 68-69); este autor, em outra obra (1997, pp. 62-63), considera que o político reduz-se aos interesses econômicos. Em verdade, verificamos que o distanciamento entre o Poder Legislativo brasileiro e o complexo social é flagrante e extremamente atual. A leitura da legislação criminalizadora do inadimplemento de tributos faz com que imaginemos uma sociedade que, efetivamente, tenha internalizado a real função instrumental dos tributos para a
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consecução dos fins do Estado. É evidente que a fúria legislativa criminalizadora de fatos nitidamente distantes do Direito Penal clássico representa um racionalismo exagerado, exemplo de planificação mal concebida. Negligenciou, o legislador brasileiro, no dizer de MAFESSOLI, os “sentimentos” (por não serem racionais) de qualquer coletividade particular. É ainda distante de nossa realidade o fenômeno denominado “eticização” do Direito Penal Fiscal, o qual exprime uma consciência coletiva no sentido de que o sistema fiscal não visa apenas à sustentação financeira do Estado, mas também à efetivação de maior justiça distributiva dos rendimentos entre os cidadãos, tendo em conta as necessidades de financiamento das atividades sociais do Estado (ver DIAS; ANDRADE, 2000, p. 59).
vista que, afinal, só o remisso incorrerá na sanção. Quem paga livra-se da pena; quem não paga sofre a sua imposição. Atrevemo-nos, ainda, a afirmar que, infelizmente, persiste uma escassa inter-relação em termos de desvalor entre o objeto da tutela do crime fiscal e a realidade. Isto significa que são acentuadas, no meio social, a cultura permissiva e a ausência do caráter ofensivo que representa a conduta. A utilização da pena criminal com fins meramente utilitaristas é sinal tangível de anomalia do sistema legislativo criminalizante e indicativo de que o Direito Penal Econômico, neste particular, mostrase inoperante para implementar o aumento da receita tributária. À medida que o Estado criminaliza o inadimplemento de tributos e contribuições, lança mão da última técnica de controle social como demonstração de fracasso no que concerne à utilização das outras formas de atuação. A criminalização do inadimplemento de tributos representa uma das tantas “reações simbólicas” do sistema legislativo sinalizadoras da inoperância do Estado-Administração em atender minimamente às suas pautas de obrigações. Resulta inequívoco que a criminalização do inadimplemento de tributos e contribuições não integra nem mesmo o corpo das infrações penais consideradas pertencentes ao Direito Penal Econômico tradicional. Tal constatação, somada à baixa valoração social emprestada ao bem jurídico tutelado, à difícil visualização de autor e vítima, bem como à própria impunidade nesta seara, colabora, sobremaneira, para a ineficácia da atual forma de responsabilização. Há que se destacar o caráter instrumental do art. 2o, II, da Lei no 8.137/90. É flagrante que a tipificação não tutela um bem jurídico facilmente perceptível e valorado pela sociedade brasileira. Lamentavelmente, deparamo-nos com a edição de uma norma penal destinada a instrumentalizar o cumprimento de normas extrapenais, dada a ineficácia da atuação estatal na seara tributária, quer em nível de atuação legislativa, quer em práticas administrativas (ver OLIVEIRA, 1997, pp. 90-147). A séria questão da utilização das normas penais para instrumentalizar o cumprimento de outras normas extrapenais é enfrentada por SERGIO MOCCIA (1999, p. 34), que destaca que a crise de legalidade e de legitimidade atingiu vários setores do sistema punitivo, deixando emergir a ineficácia das estruturas institucionais oficiais.
2.2. Elementos Característicos da Criminalidade Fiscal Contemporânea Importa verificar quais são as características fundamentais da criminalidade fiscal contemporânea, sobretudo para aferirmos se a hipótese criminalizadora atende eficazmente ao fim arrecadatório idealizado pelo Estado-Legislador brasileiro. Não pairam dúvidas acerca do objetivo que norteou os produtores da Lei no 8.137/90. A Exposição de Motivos (EM) 88, de 28.03.90, a qual acompanhou o projeto que deu origem à Lei no 8.137/90, de 27.12.90, deixa claro que o legislador brasileiro pretendeu implementar estratégias para reforçar o sistema de arrecadação tributária coibindo a sonegação e a evasão, por meio da utilização de sanções penais mais severas. Além deste objetivo, salta aos olhos o fortalecimento do instituto da extinção da punibilidade pelo pagamento espontâneo do tributo ou contribuição, anteriormente do recebimento da peça incoativa. É notório que o legislador não pretendeu tutelar abstratamente o valor “honestidade do contribuinte” ou, ainda, proteger o complexo de realização da “política financeira do Estado” informada pelo bem comum, mas, sim, acelerar o ingresso de recursos, como condição inclusive à extinção da punibilidade. Em verdade, nosso legislador priorizou interesse mediatamente tutelado (crédito tributário), minimizando o imediatamente protegido (fé pública, administração pública). Eis por que, também, dissemos que o Direito Penal foi transformado em mero cobrador de tributos. Parecenos pouco moralizante essa causa de extinção da punibilidade, haja 130
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Outro ponto que deslegitima a criminalização do inadimplemento de tributos refere-se à própria impunidade. Muitos são os fatores que podem ensejar a falta de responsabilização penal: a aparência de licitude das ações empreendidas no âmbito da tributação, o notório distanciamento físico entre autor e vítima, a baixa visibilidade social da conduta, a imagem favorável do autor. De outra parte, as “técnicas de neutralização e justificação”, consistentes no conjunto de estratégias que desencadeiam os formadores de opinião pública, no sentido de buscar a execração pública do “sonegador”. É comum, de outro lado, que a infração seja apresentada como “uma prática normal e generalizada”, ou que está de acordo com a “moral de fronteira” ou com os níveis éticos do mundo dos negócios ou, ainda, com a moral do êxito de nossa sociedade, ou que o infrator seja apresentado como um criador de riqueza e de empregos, etc. Igualmente, as inúmeras deficiências da legislação tributária, muitas vezes de técnica deplorável, fazem com que a tipificação penal não seja evidente. Como visto, a persecução penal da “criminalidade não-convencional” encontra várias dificuldades. Somam-se outros fatores tendentes a legitimar a ineficácia do atual sistema penal, como a sua própria incapacidade operacional, na medida em que suas deficiências são por demais conhecidas: a seletividade e a corrupção institucional. O Direito, principalmente o Penal, encontra-se em descrédito, desprestigiado. Tanto assim que ZAFFARONI (1999) conclui que o atual discurso penal “... é, portanto, irracional, porque lhe faltam ‘coerência interna’ e ‘o valor de verdade enquanto à operatividade social’”. O alto índice de “cifra negra” existente representa a disparidade entre o exercício de poder programado e a capacidade dos órgãos oficiais. Outro ponto conflituoso relaciona-se à própria linha divisória entre a figura do sonegador e do inadimplente de tributos. Não há dúvidas de que o ilícito tributário merece severa sanção. É notória a complexidade e são muitas as dificuldades de compreender o fato tributo (fato social, econômico e jurídico), fazendo com que haja confusão, posto que, como complexo, o fato não pode ser visto unicamente sob a ótica do administrador público, ou do jurista, ou do economista. O tributo visto apenas pelo lado do resultado para o administrador público representa, apenas, receita tributária, desprezando o ordenamento jurídico (ver MESQUITA, 1999, p. 181). Entendemos que o legislador brasileiro, ávido por recursos, afirmando cada vez mais o traço do patrimonialismo, pratica flagrante
ato de violência ao buscar, nas sanções de natureza criminal, o instrumento de coação necessário para que os súditos recolham devidamente as exações fiscais, abastecendo os cofres impessoais e invisíveis e alimentando, por conseguinte, o projeto político. Demonstrado está, indelevelmente, um perigoso traço da violência institucional, principalmente se considerarmos o termo violência na conceituação de RUTH M. CHITTÓ GAUER (1993, p. 13). A palavra violência significa constrangimento físico ou moral, uso da força, coação, torcer o sentido do que foi dito, estabelecer o contrário do direito à Justiça – que se baseia faticamente no dado, dar-se a ética –, negar a livre manifestação que o outro expressa de si a partir de suas convicções. A criminalização do inadimplemento de tributos é sintoma inequívoco do Direito Penal Simbólico, uma vez que o legislador, ao submeter o comportamento em apreço à normatização penal, além de pretender o aumento da receita pública, busca difundir, na sociedade brasileira, uma falsa impressão de segurança jurídica. Ignora-se a advertência de que mais leis, mais juízes, mais prisões, significam mais presos, mas não necessariamente menos condutas indesejáveis. Verificamos que a intervenção do sistema penal, nesta seara, resulta em intervenção sobre os problemas e anomalias do sistema tributário e não uma resposta sobre suas raízes. Assim, o Direito Penal reage com rigor fora de proporção, preocupando-se seletivamente com alguns indivíduos. Verificamos, como nítido exemplo, a Lei Complementar no 105, de 10.01.01, que instituiu as hipóteses da quebra do sigilo financeiro, passando a ser mais um diploma legal tendente a conter os “sonegadores” por meio de expediente dissimulado e eivado do vício da inconstitucionalidade. Em seu art 1o, caput, está definido que o sigilo das operações financeiras é a regra, elencando, em seus parágrafos 3o e 4o, algumas exceções: no § 3o é dito que “as trocas de informações, entre instituições financeiras, para fins cadastrais, inclusive por intermédio de centrais de risco, desde que observadas as normas baixadas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil”. Todavia, o § 4o dispõe: “Recebidas as informações de que trata este artigo, se detectados indícios ou falhas, incorreções ou omissões, ou de cometimento de ilícito fiscal, a autoridade interessada poderá requisitar as informações e os documentos de que necessitar, bem como realizar fiscalização ou auditoria para adequada apuração dos fatos”. Desta forma, independentemente do crivo jurisdicional, fica ao
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arbítrio do Fisco investigar um cidadão ou uma empresa ao seu belprazer, no caso de “falhas ou incorreções” em informações que nem mesmo são prestadas pelo contribuinte, mas sim pelas instituições financeiras que controlam sua movimentação. A garantia Constitucional da intimidade da vida privada cai por terra segundo este perigoso dispositivo legal. Desconheceu, o legislador, que o sigilo bancário é espécie do sigilo de dados e aspecto da personalidade do cidadão, estando preservado no art. 5o, X e XII, da Constituição Federal, cláusula pétrea de primeira geração e somente vulnerável por decisão fundamentada da Autoridade Judiciária competente.
Na esteira desses axiomas propostos por FERRAJOLI, pode-se, ainda, representar um sistema ideal de Direito Penal com vistas à proteção dos direitos individuais, da seguinte forma: a) pena somente com crime; b) crime somente com lei anterior que o defina como tal; c) lei definindo o que seja crime somente com necessidade; d) necessidade de definição como crime somente com lesão externa; e) lesão externa somente com ação; f) ação somente com culpa; g) culpa somente com julgamento; h) julgamento somente com acusação separada de quem decide; i) acusação somente mediante comprovação; j) comprovação somente com defesa. Neste caso, os postulados de a a f representam as garantias penais, e os de g a j, as processuais. LUIGI FERRAJOLI (1997, pp. 851-852) explicita as três acepções de garantismo, citando, por primeiro, a relativa ao Estado de Direito e seus níveis de normas e de deslegitimação:
3. Teoria do Garantismo Penal Cumpre, neste momento, analisar a atuação legislativa estatal consistente na criminalização do inadimplemento de tributos à luz do sistema garantista. Idealizado por LUIGI FERRAJOLI (1997), este sistema apresenta-se como uma construção teórica tendente à análise, não somente das formas de produção das leis e outros atos normativos, mas, também, visando à investigação acerca dos conteúdos substanciais das leis, vinculando-os normativamente aos princípios gerais do sistema jurídico, bem como aos valores albergados pelas Constituições. Tal investigação é instrumentalizada através de técnicas de garantia em três níveis: no nível da teoria do Direito, por meio de uma revisão da teoria da validade; no nível da teoria política, por meio da revisão da concepção puramente processual da democracia; e, por último, no nível da teoria da interpretação e da aplicação da lei. O modelo teórico construído por esse autor, denominado modelo garantista de Direito Penal, apresenta um conjunto de condições sine qua non para afirmar a responsabilidade penal e aplicar a pena. Segundo esta construção, na ausência de qualquer uma das condições, é proibido castigar; são os seguintes os seus axiomas: Nulla poena sine crimine; Nullum crimen sine lege; Nulla lex (poenalis) sine necessitate; Nulla necesitas sine iniuria; Nulla iniuria sine actione; Nulla actio sine culpa; Nulla culpa sine iudicio; Nullum iudicium sine acusatione; Nulla accusatio sine probatione; Nulla probatio sine defensione. 134
Según una primera acepción, “garantismo” designa un modelo normativo de derecho: precisamente, por lo que respecta al derecho penal, el modelo de ‘estricta legalidad’ SG proprio del estado de derecho, que en plano epistemológico se caracteriza como un sistema cognoscitivo o de poder mínimo, en el plano político como una técnica de tutela capaz de minimizar la violencia y de maximizar la libertad y en el plano jurídico como un sistema de vínculos impuestos a la potestad punitiva del estado en garantia de los derechos de los ciudadanos. En consecuencia, es “garantista” todo sistema penal que se ajusta normativamente a tal modelo y lo satisface de manera efectiva. Em uma segunda acepção, “garantismo” designa uma teoria jurídica de validade e efetividade, (...) como categorías distintas no sólo entre sí, sino también respecto de la “existencia” o “vigencia” de las normas. En este sentido, la palabra garantismo expressa una aproximación teórica que mantiene separados el “ser” y el “deber ser” en el derecho; e incluso propone, como cuestión teórica central, la divergencia existente en los ordenamientos complejos entre modelos normativos (tendencialmente garantistas), y prácticas operativas (tendencialmente anti-garantistas), interpretándola mediante la antinomia – dentro de ciertos límites fisiológica y 135
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fuera de ellos patológica – que subsiste entre validez (e inefectividad) de los primeros y efectividad (e invalidez) de las segundas. (...) Esta perspectiva crítica no es externa, política o metajurídica, sino interna, científica y jurídica, en el sentido de que asume como universo del discurso jurídico la totalidad del derecho positivo vigente, evidenciando sus antinomias en vez de ocultarlas y deslegetimando así, desde el punto de vista del derecho válido, los perfiles antiliberales y los momentos de arbítrio del derecho efectivo.
Por outro lado, o princípio normativo da separação entre Direito e Moral exige que o juízo não verse acerca da moralidade ou caráter ou outros aspectos da personalidade do réu, mas deva recair, a investigação judicial, somente sobre os fatos penalmente proibidos, que são imputados, empiricamente provados pela acusação e refutados pela defesa. Neste sentido, o juiz não deve indagar a alma do imputado, nem tampouco emitir juízos morais acerca de sua pessoa, mas somente investigar os comportamentos proibidos. E o cidadão poderá ser julgado somente pelos fatos praticados e não por aquilo que possa representar. Daí a imperiosa necessidade de o juiz investigar com caráter cognitivo, não bastando que os delitos estejam previstos por leis anteriores em atendimento à legalidade em sentido lato. É fundamental que os delitos consistam em fatos taxativamente elencados na lei, segundo o princípio da estrita legalidade. Portanto, a legalidade concebida em sentido lato não atende aos ditames da separação entre Direito e Moral, mas sim à legalidade estrita que, no plano epistemológico, cria ou fornece condições para um sistema cognoscitivo ou de poder mínimo. O Direito Penal, segundo FERRAJOLI, serve de instrumento de proteção do mais débil contra o mais forte. A doutrina garantista, por sua vez, representa a tutela dos valores ou direitos fundamentais, cuja satisfação, mesmo contra os interesses da maioria, é o seu fim justificador: imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das punições e dos castigos, a defesa dos débeis mediante regras iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado e, por conseguinte, a garantia de sua liberdade, mediante o respeito de sua verdade. Relativamente às doutrinas de justificação e justificações, o autor trabalha com as idéias sobre os discursos normativos (doutrinas de justificação ou fins justificadores) e as justificações (ou nãojustificações) como discursos assertivos acerca da correspondência entre os fins normativamente assumidos e as funções explicadas e reconhecidas. Os discursos sobre a justificação dirigem-se, com efeito, a argumentar os critérios de aceitação dos meios penais em relação às finalidades buscadas. Os discursos de justificação (ou justificações), por sua vez, dirigem-se a argumentar a aceitação dos meios penais, na medida em que, sem comprovação de que são funcionais, dizem respeito aos fins assumidos como justificadores. Por representarem um topos caracterizador da modernidade e do constitucionalismo, os direitos do homem representam o fundamento
Dessa forma, segundo o referido autor, as acepções de garantismo (...) delinean, efectivamente, los elementos de una teoría general del garantismo: el caráter vinculado del poder público en el estado de derecho; la divergencia entre validez y vigencia producida por los desniveles de normas y un cierto grado irredutible de ilegimidad jurídica de las actividades normativas de nível inferior; la distinción de punto de vista externo (o jurídico) y la correspondiente divergencia entre justicia y validez; la autonomia la precedencia del primero y un cierto grado irreductible de ilegitimidad política de las instituciones vigentes com respecto a él. Estos elementos no valen sólo en el derecho penal, sino también en los sectores del ordenamiento. Outro ponto de fundamental relevância da teoria do garantismo penal está relacionado com o principal pressuposto metodológico, ou seja, a separação entre Direito e Moral. O princípio da secularização é desenvolvido insistentemente na obra de FERRAJOLI, por exprimir o processo pelo qual a sociedade, a partir do século XV, produziu uma laicização e um rompimento entre a cultura eclesiástica e as doutrinas filosóficas das demais instituições jurídico-políticas. O processo de secularização é adotado por FERRAJOLI como o marco referencial, notadamente para delimitar os traços distintivos entre o modelo de Direito Penal máximo autoritário, cuja raiz é justamente a falta de dicotomia entre Direito e Moral. Segundo o autor, a separação entre Direito e Moral está expressa em três princípios axiológicos distintos, relativos, respectivamente, à concepção de delito, ao processo e à pena. 136
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do Estado Constitucional. Está no âmago do constitucionalismo moderno que os direitos fundamentais do homem constituem a raiz antropológica essencial da legitimidade da Constituição e do poder político. LUIGI FERRAJOLI (1997) considera que a expressão “Estado de Direito”, concebida como legalidade em sentido estrito ou substancial, é sinônimo de garantismo, denotando não simplesmente um estado legal ou regulado pela lei, senão um modelo de estado nascido com as modernas constituições e caracterizado, dentre outros aspectos,
dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável da obrigação alimentícia e a do depositário infiel”, estabelece limitações ao legislador ordinário. A norma constitucional que proíbe a prisão por dívida alberga o direito à liberdade, colocando-o em patamar superior ao direito de receber um crédito. Releva notar que alguns entendimentos estão estruturados e advogam a tese de que o dispositivo constitucional do art. 5o, LXVII, da Constituição Federal veda tão-somente a prisão de natureza civil, restando possível a previsão da prisão penal, em virtude da tipificação autônoma do art. 2o, II, da Lei no 8.137/90. Verificamos, todavia, que o cerne da questão está na incorreta criminalização pelo não-pagamento de uma dívida, conflitando com o garantismo penal, notadamente porque viola o axioma “Nulla lex (poenalis) sine necessitate”. Ora, o fato de a Constituição Federal proibir a prisão por dívida não autoriza supor que a referida conduta omissiva possa ser tipificada, estando autorizada a prisão de natureza penal por dívida. As condutas são, de fato, absolutamente distintas, sendo impraticável qualquer equiparação entre elas. Primeiramente, porque o dado essencial no crime de apropriação indébita é o caráter alheio da coisa. E, como salienta MIGUEL REALE JÚNIOR (1998), “a apropriação não pode, por conseguinte, ser cometida pelo proprietário do dinheiro ou da coisa”. Ora, se o conceito de posse não decorre do Direito Civil, no entanto, o limite da possibilidade de apropriação deflui da noção civilística de propriedade. Verificadas as diferenças estruturais entre o delito de apropriação indébita e a figura típica do art. 2o, II, da Lei no 8.137/90, resta cristalino que a criminalização do inadimplemento de tributos agride a Constituição Federal, isto porque, na medida em que ela proíbe a prisão civil, implicitamente está proibindo a prisão criminal, sobretudo porque medida mais gravosa ao indivíduo. Por meio de um processo de interpretação enunciativa depreendese que, se a prisão civil é vedada em nosso ordenamento jurídico, com muito mais razão é, também, a prisão penal. A criminalização operada pelo art. 2o, II, da Lei no 8.137/90 ofende o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da Constituição Federal) – a qual deve ser garantida pela proibição de qualquer tipo de prisão por dívida, seja de natureza civil ou penal.
(...) b) no plano substancial, pela orientação de todos os poderes do Estado a serviço das garantias dos direitos fundamentais dos cidadãos, mediante a incorporação limitativa em sua Constituição dos deveres públicos correspondentes, quer dizer, das proibições de lesar os direitos de liberdade, e das obrigações de dar satisfação aos direitos sociais, assim como os correlatos poderes dos cidadãos de acionarem a tutela judicial. De há muito tempo, o legislador brasileiro tem procurado atender ao interesse arrecadatório do Fisco por meio da criminalização de condutas consistentes na presunção de retenção de tributos e contribuições a serem pagas em nome de terceiro por sub-rogação legal.
3.1. Inconstitucionalidade da Criminalização Operada pela Lei no 8.137/90 (art. 2o, II) Parte dos doutrinadores afirma que o tipo penal previsto no art. 2o, II, da Lei no 8.137/90 apresenta estrutura omissiva, não se exigindo, para sua consumação, o animus rem sibi habendi, ou seja, a intenção de inverter o título da posse, passando a possuir a coisa como se fosse sua, com a deliberada intenção de não restituir, correspondendo ao próprio significado do vocábulo “apropriar-se”. Todavia, à luz da teoria geral do delito, é sabido que a simples omissão não é suficiente para configurar, por si só, a conduta delituosa. Questão central é saber se o legislador pode criminalizar o inadimplemento de uma dívida tributária. De acordo com a construção garantista, a qual, dentre vários postulados, sustenta a necessidade da eliminação das antinomias do sistema jurídico, isto seria incompatível. A Constituição Federal, ao estabelecer que “não haverá prisão civil por 138
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Merece destaque a análise sobre a estrutura da norma penal prevista no art. 168-A, § 1o, I, do Código Penal, o qual descreve a conduta de não-recolhimento de contribuição previdenciária. Dessa forma, por meio da Lei no 9.983, de 14 de julho de 2000, o legislador brasileiro criou a “apropriação indébita previdenciária”, prevista no art. 168-A do Código Penal. Entendemos que as críticas quanto à criminalização devam ser mantidas. É bem verdade que o legislador atendeu ao indispensável processo de recodificação das leis que regulam o sistema repressivo. Como sabido, a reserva de código constitui-se em metagarantia, destinada a imunizar as garantias penais e processuais das legislações de emergência, colocando um freio à inflação penal que causou a regressão inquisitorial do Direito Penal contemporâneo. Segundo o modelo ideal de reserva de código, todas as normas penais e processuais devem ser introduzidas no corpo dos Códigos, não podendo nenhum dispositivo desta natureza ser criado, senão com a modificação do estatuto principal. Desta forma, o legislador trabalharia pela unidade e coerência do Direito Penal, restituindo a sua credibilidade e sua natureza genealógica de ultima ratio. Tal providência torna-se indispensável, considerando as características do atual Estado Intervencionista, o qual desenvolve uma política legislativa ampliativa das suas formas de intervenção, deformando as estruturas do Estado Liberal e praticando um processo de administrativização e privatização dos ilícitos e, por conseguinte, diminuindo sobremaneira os níveis de garantias do sistema jurídico. Todavia, entendemos que o art. 168-A do Código Penal não se caracteriza como um novo tipo penal de “apropriação indébita”, mas sim simples “omissão de recolhimento”, restando evidenciada a inconstitucionalidade da norma por incriminar conduta que não passa de inadimplemento de dívida civil-previdenciária, cuja prisão é expressamente vedada pela Constituição Federal. Ora, em que pese o legislador ordinário, através da recente Lei no 9.983/2000, ter criado um novo tipo de “apropriação indébita previdenciária”, não houve alteração na conduta descrita no inciso I, do § 1o, do art. 168-A do Código Penal. Torna-se primordial examinar o conteúdo da proibição constitucional da prisão por dívida, que se consubstancia num direito fundamental, o qual deve garantir o indivíduo frente à atuação repressiva estatal. Note-se que tal disposição constitucional está inserta no capítulo dedicado aos direitos e deveres individuais e coletivos,
integrando o Título II, que trata dos direitos e garantias fundamentais. Em sendo direito fundamental do indivíduo, cumpre afirmar que o mesmo submete-se a todo um regramento, a saber: aplicabilidade direta das normas que o reconhecem (art. 5o, § 1o, da CF), princípio da proporcionalidade como princípio informador da produção da atividade legislativa, inclusive das leis restritivas a direitos e garantias (art. 5o, LIV, da CF), limitação da possibilidade de suspensão nos casos de estado de sítio e estado de defesa (arts. 136, § 1o, e 139 da CF), garantia contra o poder de emenda à Constituição (limite material ao poder de reforma constitucional) restritiva ao conteúdo dos direitos fundamentais (art. 60, § 4o, IV, da CF). De acordo com a construção de ALEXY (1993), uma teoria sobre direitos fundamentais está baseada em uma tripla divisão das posições que têm sido designadas como direitos, ou seja: as ações negativas do poder público (direitos de defesa) são divididas em três grupos: primeiramente, os direitos a que o Estado não impeça ou obstaculize determinadas ações de seus titulares; em segundo lugar, os direitos a que o Estado não afete determinadas propriedades ou situações do titular do direito; e, em terceiro lugar, os direitos a que o Estado não elimine determinadas posições jurídicas dos titulares. Em nosso Estado Democrático de Direito, tais vínculos substanciais revelam-se não só nos direitos de liberdade, mas, também, nos direitos sociais, ou seja, em todos os direitos fundamentais legitimadores do ordenamento jurídico. Assim, um tipo incriminador, apesar de vigente (formalmente válido), pode apresentar-se nulo (inconstitucional), posto que atentatório aos direitos fundamentais. Na medida em que o tipo penal previsto no art. 2o, II, da Lei no 8.137/90 viola uma situação de não-sujeição garantida ao cidadão, e criminaliza o inadimplemento de tributos, ocorre verdadeira fraude constitucional.
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3.2. A Violação ao Princípio da Proporcionalidade É justamente na seara tributária que se verificou a primeira referência de algum significado ao princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro. No RE no 18.331, de relatoria do Ministro Orosimbo Nonato, deixou-se assente que “o poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos limites que o 141
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tornem compatível com a liberdade de trabalho, comércio e da indústria e com o direito de propriedade” (RF 145 (1953), pp. 164 e ss). O princípio da proporcionalidade guarda fundamental importância na aferição da constitucionalidade de leis interventivas à esfera da liberdade humana, porque o legislador, mesmo perseguindo os fins previstos na Constituição Federal, editará leis inconstitucionais, no caso de intervir no âmbito dos direitos fundamentais, utilizando cargas coativas maiores do que as exigíveis à sua efetividade. Ante estas várias hipóteses, CANOTILHO (1993, pp. 646-647) sublinha a importância de “as regras do direito constitucional de conflitos deverem-se construir com base na harmonização de direitos, e, no caso de isso ser necessário, na prevalência de um direito ou bem em relação ao outro”. Assim, a valoração de prevalência pode ser efetuada logo em nível legislativo, e não somente quando o Juiz elabora a norma de decisão do caso concreto. É tranqüila a constatação de que a Constituição Federal brasileira de 1988 agasalhou a estrutura do novo arquétipo do Estado Constitucional. Frise-se que a dignidade da pessoa humana foi erigida à condição de princípio fundamental do Estado Brasileiro (art. 1o), sendo que aos direitos e garantias fundamentais foi conferida aplicabilidade imediata (art. 5o, § 1o), tendo sido assegurada a expectativa de expansão: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.1 Verificamos que a criminalização do inadimplemento de tributos não atende minimamente ao conteúdo do princípio da proporcionalidade. Tampouco vislumbramos o cumprimento do subprincípio da adequação ou da idoneidade da imposição da pena privativa de liberdade ao inadimplente de tributos. Segundo este princípio, questiona-se se o controle intrínseco da legiferação no que respeita à congruência na relação meio-fim restringe-se à seguinte indagação: o meio escolhido contribui para a obtenção do resultado pretendido?
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Constituição Brasileira de 1988, art. 5o, § 2o.
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3.3. A Violação ao Princípio da Isonomia Nesta mesma linha, verificamos flagrante violação ao princípio da isonomia, sobretudo quando o legislador prevê a hipótese de extinção da punibilidade. Muito além de falta de técnica, verificamos uma profunda antinomia entre o poder punitivo e a possibilidade de afastálo mediante a reparação do dano, concreto ou projetivo, por meio do pagamento do tributo ou contribuição social. O poder punitivo não é bem comerciável e assim compreendê-lo significa mercantilizar a atividade estatal. Assim como a proporcionalidade exige a conversão do princípio da reserva legal em reserva legal proporcional, ela permite, com critério de aferição da relação, a busca de uma igualdade proporcional, para o fim de garantir a proteção do bem jurídico e da própria democracia.
4. Descriminalização do Artigo 2o, II, da Lei no 8.137/90 MIGUEL REALE JÚNIOR (1983, p. 213) asseverou que “um pensamento crítico do Direito Penal remete, obrigatoriamente, à questão da criminalização e descriminalização”. Verificamos que a conduta de não recolher, no prazo legal, tributos e contribuições devidas deverá ser descriminalizada, porquanto na medida em que o Direito Penal deve ocupar-se da proteção de bens jurídicos (consistentes nos valores fundamentais para o agrupamento social) vislumbramos uma flagrante incompatibilidade entre a aludida criminalização e a valoração social emprestada ao patrimônio público, bem como à ordem tributária. Resta transparente que a conduta de não recolher, no prazo legal, as exações fiscais não merecem a valoração necessária na sociedade brasileira a tal ponto de se utilizar a última técnica de reação social – o Direito Penal. Em verdade, verificamos que a fúria legiferante no campo penal representa fuga de responsabilidades e funciona como uma cortina de fumaça lançada sobre os olhos da população que se ilude com o legislador brasileiro. Daí que qualquer análise crítica acerca do Direito Penal passa, necessariamente, pela análise da descriminalização. HULSMAN (1973) volta a sua atenção aos princípios que regem a decisão de (des)criminalizar no caso de ser abordada, racionalmente, a questão de saber se um comportamento determinado deve ser punível (ou se um comportamento que é punível deve continuar a sê-lo): há que se distinguir três questões que passaremos a examinar separadamente. 143
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Em primeiro lugar, é necessário estabelecer qual comportamento nos parece desejável ou não desejável e quais as competências de apreciação que queremos reconhecer ao Estado, em um campo específico. Em segundo lugar, é conveniente examinar quais são as vantagens e os custos (sociais) de uma ação penal em relação a um tipo determinado de comportamento. Com referência a esta questão, devese, igualmente, examinar em que medida os objetivos visados pela outorga de um mandato ao sistema penal podem, também, ser atingidos por outros sistemas jurídicos e não-jurídicos e quais seriam as vantagens e os custos disto. Em seguida, devemos comparar os resultados dessa avaliação sobre as vantagens e os custos com que proporciona o sistema penal. ZAFFARONI (1999, p. 359) salienta que a descriminalização pode ser “de fato”, quando o próprio sistema criminal deixa de agir, sem que tenha perdido a competência para isto, ou quando o Estado, pela descriminalização, abstenha-se de intervir, “de iure”, ou ainda (e na maioria das vezes) quando se propõe que o Estado intervenha apenas de modo não-punitivo.
atuar globalmente, e não apenas estar destinado a resolver os casos isolados. Outra alternativa razoável para a disciplina jurídica da conduta de não recolher tributos e contribuições devidas seria o denominado “direito de mera ordenação social”, já existente em Portugal e, segundo EDUARDO CORREIA (1976), presente também na então Alemanha Federal e na República Democrática Alemã. A alternativa de política criminal, com a qual concordamos, já havia sido externada por esse autor, em 1963. É possível constatar que o Direito Penal, tomado como instrumento de realização do crédito tributário, fracassou, em razão – dentre vários fatores – da absoluta incongruência em aplicar sanção, que em nada colabora para estimular o comportamento desejado pelo Estado-Administração. Com inegável sabedoria, CEZAR ROBERTO BITENCOURT (1996, p. 118) pontifica sobre a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio dos princípios limitadores:
Entendemos que o controle Estatal e conseqüente disciplina legal da conduta de deixar de recolher no prazo legal os tributos e contribuições devidas devem operar-se por meio do Direito “extrapenal”, ou até mesmo, como entende Winfried HASSEMER (1984, p. 86), por um novo direito: um “Direito Interventivo” ou “Direito de Intervenção” (“Interventionsrecht”). Segundo esse autor (1984, p. 27), o direito de intervenção
As idéias de igualdade e liberdade, apanágios do Iluminismo, deram ao Direito Penal um caráter formal menos cruel do que aquele que predominou durante o Estado Absolutista, impondo limites à intervenção estatal nas liberdades individuais. Muitos desses “princípios limitadores” passaram a integrar os Códigos Penais dos países democráticos e, afinal, receberam assento Constitucional, como garantia máxima de respeito aos direitos fundamentais do cidadão. Todos esses princípios, hoje, inscritos, explícita ou implicitamente, em nossa Constituição (art. 5o), têm a função de orientar o legislador ordinário para a adoção de um sistema de controle penal voltado para os direitos humanos, embasado em um Direito Penal da culpabilidade, um Direito Penal Mínimo e Garantista.
(...) deverá ser concebido de molde a poder atuar previamente a consumação dos riscos, ou seja, deverá ser pensado como um direito de caráter preventivo (...) deverá poder dispensar os mecanismos de imputação individual de responsabilidades (...) deverá dispor de um catálogo de sanções rigorosas. Designadamente, deverá poder decretar a dissolução dos entes coletivos (...) deverá estar preparado para
O princípio da intervenção mínima (também conhecido como “ultima ratio”) orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta somente é legitimada quando constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. No caso de outras formas de sanção ou meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável.
4.1. Direito de Intervenção ou Direito de Mera Ordenação Social como Instrumento Compatível para a Disciplina Jurídica da Conduta
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Lamentavelmente, nessa seara, deparamo-nos com o desrespeito ao princípio da subsidiariedade ou a “ultima ratio” do Direito Penal, para dar lugar a um Direito Penal visto pelo legislador brasileiro como “sola ratio” ou “prima ratio”, porquanto a resposta penal surge como a primeira alternativa de atuação estatal para as pessoas incumbidas de resolver os problemas estruturais no campo da tributação. Somos favoráveis ao fim subsidiário do Direito Penal. CLAUS ROXIN (1997), lecionando sobre a proteção dos bens jurídicos, conclui que o Direito Penal deve ser considerado como a última entre todas as medidas protetoras que se há se utilizar. Por isso se denomina a pena como a “ultima ratio da política social”. LUIZ LUISI (1991), após mencionar GIAN DOMENICO ROMAGNOSI, discorre sobre o princípio da intervenção mínima, segundo o qual “... só se legitima a criminalização de um fato se a mesma constitui meio necessário para a proteção de um determinado bem jurídico”. E segue o mestre: “Se outras formas de sanção se revelam suficientes para a tutela desse bem, a criminalização é incorreta. Somente se a sanção penal for instrumento indispensável de proteção jurídica é que a mesma se legitima”. Analisando o caso brasileiro, esse autor (1991, p. 25) considera que: A Constituição vigente no Brasil diz serem invioláveis os direitos à liberdade, à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5o, ‘caput’), e põe, como fundamento de nosso Estado democrático de direito, no artigo 1o, do inciso III, a dignidade da pessoa humana. Decorrem, sem dúvidas, desses princípios constitucionais, como enfatizado pela doutrina italiana e alemã, que a restrição ou privação desses direitos invioláveis somente se legitima se estritamente necessária a sanção penal para a tutela de bens fundamentais do homem, e mesmo de bens instrumentais indispensáveis a sua realização social. É de vital importância valorizar as soluções alternativas à penal em matéria de inadimplemento de tributos e contribuições, a fim de que o Estado possa realizar os seus objetivos sociais de modo mais eficaz, evitando-se, por conseguinte, a utilização do doloroso maquinário criminal, porquanto as conseqüências que o mesmo provoca são de difícil superação. 146
A Incompatibilidade entre a Criminalização do Inadimplemento de Tributos e o Direito Penal Garantista
Considerações Finais A imperiosa necessidade de serem – a liberdade individual e as atividades humanas – disciplinadas por regras legislativas, acrescida a circunstância das inumeráveis incumbências do Estado InterventivoSocial, levou-nos a realizar a presente investigação, ao longo da qual pudemos confirmar a nossa constatação: que, efetivamente, o tributo e suas repercussões assumem relevantíssima função, especialmente na sociedade brasileira. O Estado-legislador brasileiro lança os olhos sobre o tributo – o qual, dada a sua instrumentalidade, representa o meio mais eficaz para a pesada sustentação do custo financeiro da atividade estatal, transfigurando-se a solução simplista para a resolução de todos os males. É a partir daí que se verifica, claramente, uma perigosa atuação legiferante tributária em nosso país – identificada pela voracidade fiscal que se volta à incrementação, a todo custo, da receita pública, ainda que, para o atingimento de tal desiderato, sejam flagrantemente vilipendiados os princípios estruturais da tributação: capacidade contributiva, de economia do tributo e da igualdade jurídica em matéria de tributação. Não nos é agradável perceber que o Estado Social brasileiro não atende, sequer minimamente, à sua longa pauta de deveres – aí se abrindo uma larga e profunda lacuna de prestações públicas não adimplidas. Em reação reflexa, a inquietante “desafeição” sentida pelos administrados. Como consectário daí decorrente, pudemos perceber, nos diversos estágios da nossa pesquisa, que – inobstante a crise do sistema tributário brasileiro – toda e qualquer pretendida “solução”, infelizmente, é implementada por meio daquela que deveria ser a última técnica de controle social a ser adotada: o Direito Penal. Verificamos que o bem tutelado pelo art. 2o, II, da Lei no 8137/90 – o patrimônio público – possui baixa representatividade e tem um conceito vago e impreciso para a sociedade brasileira em função, até, da própria origem patrimonial do Estado brasileiro e sua constante implementação de estratégias de caráter de dominação econômica. Como a denominada “eticização” do Direito Penal Fiscal está distante de nossa sociedade, a função tributária passa a ser sentida muito mais como instrumento de dominação e fonte de atritos (entre Estado e indivíduos) do que como percepção no sentido de ver um eficaz 147
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instrumento de redistribuição de riquezas e minimização das notórias desigualdades sociais. Em nosso cuidadoso caminhar, flagramos que a criminalização do inadimplemento de tributos e contribuições é mais uma das tantas medidas legislativas simbólicas – identificadoras de um legislador apressado, preocupado em incutir uma falsa imagem de eficiência, rigorismo e competência, numa sociedade que aplaude sem saber o motivo e nem a quem. Além desta constatação, pesa-nos a verificação de que a criminalização em pauta, além de atropelar os princípios estruturais do Estado Democrático de Direito (tais como a proporcionalidade e a isonomia), mostra-se inteiramente inoperante, não surtindo os efeitos arrecadadores desejáveis, violando a liberdade individual e marcando, de maneira indelével, a violência institucionalizada. Além desses esbarros, flagramos, também, que a aludida criminalização fere os princípios do garantismo penal, afronta as restrições qualitativas da criminalização e o princípio geral da economia das proibições penais, apanágio valiosíssimo de FERRAJOLI – autor cuja doutrina acerca do bem jurídico representa exemplo irretocável de antagonismo em relação à criminalização do inadimplemento de tributos. Lamentavelmente, deparamo-nos com a perfeita visão da inconstitucionalidade do art. 2o, II, da Lei no 8.137/90 – por insultar justamente a garantia constitucional que proíbe a prisão por dívida, como também a Convenção Americana de Direitos Humanos (no mesmo particular) e, por fim, os princípios da proporcionalidade e da isonomia. Dedicamo-nos intensamente ao presente estudo – daí ser tranqüilo o nosso entendimento de que, diante da ineficácia desta criminalização e da desmedida agressão legislativa produzida pelo art. 2o, II, da Lei no 8.137/90, é imperioso repensar a atual estrutura legislativa. Surgem, como nova via, como um inovador critério de orientação político-criminal, a própria descriminalização e a transferência da disciplina legislativa da conduta para outras áreas do Direito, numa perspectiva moderna de Direito Penal subsidiário e de intervenção mínima. Não fechamos a questão, nem é nossa pretensão esgotar a discussão. Motiva-nos, isto sim, lançar a presente proposta para estudo, crítica e revisão – representando a nossa séria tentativa de colaborar na busca do aprimoramento do pensar e do fazer operar o Direito Penal. 148
A Incompatibilidade entre a Criminalização do Inadimplemento de Tributos e o Direito Penal Garantista
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PARTE II DIREITO PROCESSUAL PENAL
O Mito sobre a Verdade e os Sistemas Processuais Gilberto Thuns “Em algum ponto perdido deste universo, cujo clarão se estende a inúmeros sistemas solares, houve, uma vez, um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira e da suprema arrogância da história universal”. Friedrich Nietzsche Gaia Ciência, 1873
A distinção atual entre sistemas processuais penais tem despertado muita discussão, desde os elementos conformadores de um sistema, até à idéia de que não existe sistema processual penal genuíno, puro. A dificuldade conceitual origina-se do próprio princípio ontológico de sistema na área do processo, na medida em que não é possível aplicar-se os conceitos luhmanianos de sistema. Pode-se aliar a esta dificuldade a ausência de uma teoria geral do processo penal, a carência de desenvolvimento científico, o utilitarismo e funcionalismo do processo penal como instrumentos do poder político para o controle social, bem como o surgimento da concepção moderna de Estado Democrático de Direito que consolidou um sistema de garantias penais e processuais. O antigo e secular traço fundamental que delimita os sistemas – acusatório e inquisitório – através da separação da figura do órgão acusador e julgador está completamente superado. Em nenhum Estado de Direito pode-se admitir que o mesmo órgão que julga possa promover a acusação. Sob este aspecto, o sistema inquisitório estaria extinto na atualidade, todavia não é isto o que ocorre na maioria dos países ditos democráticos, que ainda se utilizam do modelo inquisitório. Vários elementos devem ser levados em conta para configurar-se um sistema processual penal: delimitação do campo acusatório, direito de refutação da imputação, tratamento dispensado ao réu durante a instrução, considerando a dignidade da pessoa humana, direito de defesa ampla, autodefesa, direito à última palavra (ser interrogado ao final da instrução), direito de refutação da imputação, contraditório, juiz natural, poderes instrutórios conferidos ao juiz na 153
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O Mito sobre a Verdade e os Sistemas Processuais
busca da malfadada verdade real, sistema probatório, fundamentação da decisão judicial, entre outros. No presente estudo será levado em conta apenas um componente que auxilia na caracterização dos sistemas processuais penais. Tratase do mito que envolve o princípio da verdade processual, tema que os processualistas tradicionais não enfrentam nos seus manuais, restringindo-se à referência surrada de verdade real e verdade formal. Pode-se iniciar a abordagem sobre a verdade, como valor do conhecimento humano, com a afirmação de que “não existe nenhuma verdade”, absolutamente nenhuma. As infindáveis discussões filosóficas sobre o tema inquietaram filósofos por vários séculos, até que pensadores e cientistas questionaram seus paradigmas epistemológicos. Atualmente afirma-se que uma verdade científica somente existe até que outra venha a ser descoberta para contradizer a anterior. Neste sentido já dizia Einstein que a verdade tem um tempo de validade.1 Esta afirmação de cunho científico põe fim ao mito também no mundo jurídico.2 Constata-se, pois, que todo o conhecimento tem um prazo de validade.3 Não fosse assim, não haveria motivo de a ciência buscar outras fronteiras e a vida na terra se resumiria em reproduzir o conhecimento científico dos antepassados. O não-reconhecimento de uma verdade acabada é o estímulo à abertura de campo de trabalho para os cientistas. Se não há uma verdade, muito menos é possível definir o que é real e o que é a realidade. Pode-se observar que, a partir do século XIX, a ciência natural destrói a concepção de uma realidade convencional e objetividade científica, na medida em que os dispositivos de observação microscópica provocam alteração do objeto, a tal ponto que Baudrillard adverte sobre a incerteza das coisas, que acaba nas certezas através da leitura dos instrumentos eletrônicos da microfísica.4 No mesmo sentido, pode-se encontrar a preocupação de Lyotard, ao analisar a
questão da matéria e do tempo, com enfoque filosófico, destacando que a microfísica e a cosmologia inspiraram os filósofos, mais pelo lado materialista do que teológico. Haveria, assim, um materialismo imaterialista, se considerarmos a matéria como energia e o espírito como a vibração retida.5 Lyotard refere a existência de um novo impacto decorrente da tecnologia, denominando-o de “narcisismo humano”, à semelhança do que Virílio trata o egotismo em “Inércia Polar”. Segundo Lyotard, Freud já havia detectado três impactos para a humanidade: a descoberta de Copérnico, de que o homem não está no centro do universo; a teoria de Darwin, de que o homem não é o primeiro dos seres vivos; e a constatação do próprio Freud, de que o homem não é o dono do significado. O homem está aprendendo que a ciência é apenas uma complexificação da matéria e que a tecnologia auxilia na transformação dos meios de vida que, de um lado, pode representar alegria, mas, de outro, pode levar o homem ao desespero.6 Deve-se a Einstein a desmitificação do conceito sobre verdade, na medida em que critérios científicos passaram a integrar a razão humana na busca do conhecimento. Foi a partir dele, com a teoria quântica, que a humanidade iniciou o progresso tecnológico. Através da teoria da relatividade, Einstein derrubou dois paradigmas de verdade da ciência do século XIX: o do repouso absoluto e do tempo absoluto ou universal. A teoria da gravitação universal de Newton, que afirma que a força de atração entre dois corpos é proporcional ao produto de suas massas e inversamente proporcional à sua separação, foi suplantada por Enstein, pela relatividade geral. O mesmo ocorreu com a idéia de tempo absoluto, no sentido de que poderia haver um relógio universal. A teoria da relatividade de Einstein mostrou a impossibilidade deste conceito. O “paradoxo dos gêmeos” demonstra que o tempo não flui de forma universal, depende da velocidade (movimento), da posição do corpo do observador e em relação a que objeto é medido. Para quem está parado, o tempo flui mais rápido do que para quem está em movimento próximo à velocidade da luz. Neste sentido, o paradoxo dos “gêmeos de Langevin” teve sua versão testada experimentalmente fazendo-se dois relógios precisos voarem em direções opostas ao redor
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EINSTEIN, Albert. Apud VIRILIO Paul. A Inércia Polar. Tradução de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993, p. 61. Observa-se que a maioria dos críticos da tecnociência comete o equívoco de imaginar que ela é infalível e que a técnica é sempre eficaz. Neste aspecto, Pierre Lèvy faz uma crítica ácida a Heidegger, afirmando que um dos principais erros cometidos pelo filósofo alemão foi a sua crença da infalibilidade da ciência. Aliás, Heidegger acreditava na ciência como as pessoas da Idade Média acreditavam no direito divino dos reis. VIRILIO, Paul. A Inércia Polar. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993, p. 20. BAUDRILLARD, Jean. As Estratégias Fatais. Lisboa: Editorial Estampa. 1990, p. 69.
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LYOTARD, Jean-François. O Inumano, Considerações sobre o tempo. Tradução Ana Cristina Seabra e Elisabete Alexandre. Lisboa: Editora Estampa, 1989, p. 54. LYOTARD, Jean-François. Op. cit., p. 54. 155
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O Mito sobre a Verdade e os Sistemas Processuais
do mundo. Quando se reencontraram, o relógio que voou para leste havia registrado ligeiramente menos tempo.7 Certamente encontramos em Nietzsche, com o anúncio da morte de Deus, o fim do mundo tipicamente metafísico de pensar, visto que o Cristianismo, tanto como religião, quanto como doutrina moral, representa uma versão vulgarizada do platonismo, adaptada às necessidades e anseios de amplas massas populares. Para o pensador alemão, o Cristianismo representa a medula ética do mundo ocidental.8 A expressão “morte de Deus”, utilizada por Nietzsche, significa a possibilidade de colocar em confronto a crença na origem divina e no valor absoluto da verdade. Considerando a delimitação da abordagem do tema, dispensa-se as discussões filosóficas sobre a verdade para limitar o enfoque sob o viés do processo, que tem como objeto a investigação acerca da verdade de um fato. O desafio para as ciências naturais e para a tecnologia é cada vez maior, eis que direcionado à ampliação do conhecimento humano. Enquanto isso, as ciências sociais estão preocupadas em conservar mitos, idolatrar pessoas e reproduzir um conhecimento fabricado. Não se pode fugir da referência à verdade para as ciências naturais, na medida em que há uma valoração completamente diferente neste campo do conhecimento. O cientista constrói ou explora uma teoria, procura comprová-la e anuncia a descoberta, mas não sob a forma de uma verdade e sim como conceito teórico. Seu campo de pesquisa é infinito. Paralelamente a esse campo do conhecimento situam-se as ciências jurídicas, fruto de conhecimento fabricado, onde se sustenta a possibilidade de alcançar a verdade real, não a verdade do processo, ou
um juízo de probabilidade sobre o fato, mas a própria verdade substancial. Certamente os juristas construíram (inventaram) o mito sobre a verdade. As ciências naturais apresentaram fantástico desenvolvimento a partir do século XX,9 especialmente na segunda metade. Hoje a preocupação dos físicos consiste na investigação das dimensões da matéria. Busca-se comprovações sobre a existência dos buracos negros,10 das membranas com 10 dimensões, da supergravidade com 11 dimensões, das “p-branas”, a confirmação da “teoria-M” e das “supercordas”, bem como a validade das regras da mecânica quântica e da relatividade geral para a pesquisa do universo. Novas descobertas destruirão verdades tidas como absolutas. A cada dia o homem das ciências naturais constata que nada sabe sobre o universo e que as próprias verdades científicas têm efetivamente um prazo de validade. Não há nenhum embaraço para as ciências naturais em destruir uma verdade afirmada, porque sabe-se que todas as teorias, embora comprovadas, possuem uma validade limitada. Já nas ciências sociais, notadamente nas jurídicas, o homem é arrogante, petulante, audacioso e ao mesmo tempo temerário, ao afirmar que busca a verdade absoluta no processo penal. A afirmação dos manualistas e teóricos do Direito Processual Penal no campo da verdade é uma posição ingênua ou mal-intencionada. Isto porque esta área do conhecimento já se ressente de uma teoria geral do processo e mesmo assim tem a pretensão de alcançar o graal.
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HAWKING, Stephen. O Universo numa casca de noz. 2a ed. Tradução Ivo Korytowski. São Paulo: Mandarim, 2002, p. 9. O autor destina a maior parte do livro à teoria quântica da gravidade. A teoria dos gêmeos de Langevin também é comentada por Comte-Sponville, eis que confirmada no nível de partículas elementares. Assim, se um gêmeo viaja no espaço à velocidade da luz e o outro fica na terra, após transcorridos 14 anos de tempo terrestre, retornando o gêmeo viajante, teria envelhecido apenas 2 anos, embora biologicamente no mesmo ritmo o viajante tenha envelhecido por menos tempo, isto porque o tempo varia em função da velocidade. (COMTE-SPONVILLE, André. O SerTempo: algumas reflexões sobre o tempo da consciência. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 60). GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. NIETZSCHE (Folha explica). São Paulo: Publifolha, 2000, p. 24.
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As primeiras descobertas sobre a teoria quântica de Max Planck em 1900 foram aperfeiçoadas pelo físico alemão Werner Heisenberg ao formular o famoso princípio da incerteza, consistente na observação de partículas através de ondas eletromagnéticas. Assim, quanto maior o comprimento da onda, maior é a incerteza de sua posição. (HAWKING, Stephen. Op. cit., p. 42). Uma das maiores revoluções intelectuais do século XX foi a descoberta de Edwin Hubble em 1929 de que o universo está em constante e acelerada expansão, mudando completamente as teorias sobre sua origem. Através do efeito “Doppler” conseguiu-se provar que as galáxias estão se afastando cada vez mais da Terra (HAWKING, Stephen. Op. cit., p. 77). Ora não sendo conhecidos os limites do universo, eis que formado por bilhões de galáxias, e estas por bilhões e bilhões de estrelas, as descobertas das ciências naturais não têm limites e os desafios são constantes e cada vez maiores. Exige-se a expansão do conhecimento para viabilizar as descobertas. Buraco negro é uma região do espaço-tempo da qual nada, nem mesmo a luz, consegue escapar, em razão da enorme força da gravidade. Os buracos negros do universos, ao contrário do que se pensava, emitem partículas e radiação de todos os tipos, como se fossem corpos quentes. Também emitem ondas gravitacionais. A radiação seria decorrente de flutuação quântica de partículas (Hawkin Stephen, op. cit., p. 192). 157
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O Mito sobre a Verdade e os Sistemas Processuais
Enfocar o tema sobre a verdade a partir da uma categoria dos sistemas processuais penais representa sem dúvida um desafio, que exige abandono de todas as formas de preconceito e espécies de influências teológica, filosófica, social ou científica sobre a manipulação do conhecimento humano. A verdade não pode ser analisada como oposição à cegueira, mas no verificar sua valia para o fim proposto como objeto do conhecimento. É neste sentido que a verdade processual será enfocada e sua justificativa centra-se na distinção dos sistemas processuais. De um lado, o que se utiliza da verdade como instrumento de dominação e legitimação a justificar qualquer procedimento, inclusive com poderes investigatórios conferidos ao julgador; de outro lado, o sistema acusatório (garantista), que encara a verdade apenas como uma referência, um juízo de probabilidade sobre o fato, condicionando-o à forma de produzir-se a prova e aos instrumentos de sua valoração. Neste contexto, observa-se que ser humano como sujeito do conhecimento tem uma história e a relação deste sujeito com o objeto evidencia que a verdade também tem sua história. Para Foucault, há duas histórias sobre a verdade: uma interna, entendida como aquela que se faz a partir da história das ciências; e a outra é uma história externa, composta por formas de subjetividade, de certos tipos de saber. Um exemplo são as práticas judiciárias, notadamente do Ocidente, a partir da concepção de uma forma para julgar pessoas por erros cometidos. A sociedade estabeleceu formas de saber, tipos de subjetividade e relações entre o homem e a verdade. O Inquérito é utilizado como forma de construção da verdade.11 “O inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício do poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de auferir a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir”.12 O termo verdade sempre foi objeto de instrumentalização do saber e dominação pelo poder. Em 1873 Nietzsche começa a destronar dogmas e mitos construídos pelo homem, ao afirmar que o “homem inventou o conhecimento e dele se utiliza como forma de poder”.13 Por isso a verdade sempre foi ideologizada a serviço do poder. Desde a
Grécia arcaica se observam formas rudimentares de estabelecer a verdade, notadamente na área jurídica. A verdade, portanto, está ligada ao poder político e todas as formas de poder, principalmente do conhecimento. Só é possível, segundo Foucault, a existência de certos tipos de sujeitos de conhecimento, certas ordens de verdade, a partir de condições políticas, que são o solo em que se forma o sujeito, os domínios de saber e as relações com a verdade.14 No campo da teologia, a religião constitui-se no melhor modelo de verdade. O catolicismo, por exemplo, manipulando a verdade com saber político, dominou o mundo ocidental por mais de um milênio. Para Nietzsche a religião foi fabricada, da mesma forma como foi inventada a poesia.15 No Oriente, a religião também domina igualmente os povos, porém de modo mais acentuado, como controle social. Até mesmo porque ali a Idade Média ainda não acabou. A radicalização, como ocorre com os fundamentalistas islâmicos, provoca tamanha alienação que o homem aceita a morte (homem-bomba) em nome da fé. Neste breve estudo interessa sobremaneira a dialética acerca da verdade das formas jurídicas, na medida em que o processo penal é construído dogmaticamente sobre o mito da verdade, diversamente do processo civil. Assim, o processo penal é nutrido por um discurso sobre a verdade que fundamenta a outorga legal de poderes ao magistrado para a busca desta verdade. Este discurso sobre a verdade e os poderes conferidos ao juiz é o divisor de águas entre os sistemas processuais. Segundo Foucault, as “invenções” – mitos – criadas pelo conhecimento devem-se a obscuras relações de poder. Daí por que se afirma que o conhecimento foi inventado, o que significa dizer que não teve origem.16 Somente a partir de Nietzsche ocorre uma ruptura da teoria do conhecimento com a teologia. Isso porque a filosofia ocidental garantia a existência de uma relação entre as coisas a conhecer e o conhecimento, certamente representada por Deus. Nietzsche afirma que o conhecimento é o resultado de nossos instintos, mas não é um instinto, não está inscrito na natureza humana, não há um germe do conhecimento.17
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FOUCAULT Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau Editora, 1999, p. 11. Id. Ibid., p. 78. NIETZSCHE, Friedrich. Apud FOUCAULT, Michel, op. cit., p. 13.
FOUCAULT, Michel, op. cit., p. 27. NIETZSCHE, Friedrich. Apud. FOUCAULT, Michel, op. cit., p. 15. FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 16. NIETZSCHE, Apud. FOUCAULT, Michel, op. cit., pp. 16-17. 159
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O Mito sobre a Verdade e os Sistemas Processuais
Sobre este aspecto é interessante destacar a análise de Foucault no sentido de que o inquérito é uma forma bem característica da verdade em nossa sociedade. Inventado no meio da Idade Média, o inquérito apareceu como forma de pesquisa da verdade no interior da ordem jurídica. No século XIX, porém, em razão de problemas jurídicos, penais, etc., surgiram novas formas de análise, denominadas de “exame” e não mais inquérito. Estas formas deram origem à sociologia, psicologia, psicanálise, criminologia, etc.18 A história sobre a verdade é a própria história do poder. Neste apertado espaço não é possível examinar a relação entre saber e poder, entre o conhecimento e o poder político, como formas ou técnicas para chegar à verdade, enfocando o aspecto diacrônico sobre a evolução das provas. Quanto à questão da verdade, é imprescindível que se examine a decisão judicial na atualidade, como resultante de um ato de inteligência, fruto da razão. A sentença, por excelência, deve estar alicerçada num princípio de verdade. O julgador é desafiado a buscar a verdade, porque sua decisão está vinculada a ela. Antes de existir o Estado organizado e mesmo no atual Estado Democrático de Direito, o jogo da verdade é intrigante e desafia os limites do conhecimento. Nos dias atuais, a burocratização é o único caminho, segundo Zaffaroni, capaz de modelar o juiz ao sistema penal e fazê-lo produzir verdades. O processo de seleção e treinamento a que é submetido o magistrado e a manipulação de sua imagem pública provocam sua despersonalização.19 Diante deste quadro o juiz realmente acredita que tem o poder de encontrar a verdade, sem se dar conta de que é vítima de uma máquina burocratizante do sistema penal. Salta aos olhos, diante das limitações do homem, que a verdade histórica, recognoscível, é apenas um mito e que a discussão acerca de verdade substancial ou formal é estéril. A própria verdade científica está à espera de uma nova verdade que a destrua. Nesse sentido, a complexidade dos fenômenos físicos e sociais, diante da superação das
verdades absolutas pela teoria da relatividade e da física quântica, faz com que desmoronem as vetustas formas de conhecer o mundo, os objetos ou o próprio processo. Acabou o desafio da verdade absoluta. Na visão de Capra, “duas descobertas no campo da física, culminando na teoria da relatividade e na teoria quântica, pulverizaram todos os principais conceitos da visão do mundo cartesiano e da mecânica newtoniana”.20 Portanto, os conceitos, a forma de pensar e a linguagem da ciência mostram-se incompatíveis para a análise dos fenômenos atômicos. O cientista abandona a certeza para adotar a teoria da probabilidade. Nesse contexto, “ao transcender a divisão cartesiana, a física moderna não só invalidou o ideal clássico de uma descrição objetiva da natureza, mas também desafiou o mito da ciência isenta de valores”.21 O homem é incapaz de reconstruir um fato histórico, porque o tempo encarregou-se de extingui-lo no exato instante em que tornouse passado, ou seja, o instante que não é mais presente. Portanto, não pode existir uma verdade sobre um fato que está no passado, por mais que a doutrina dominante insista em denominar a solução judicial sobre um caso de “reconstrução da verdade”. Qualquer estudo sobre a verdade concluirá que ela não pode ser alcançada. Jacinto Coutinho, ao abordar o princípio da verdade material, refere-se a Carnelutti, anotando que “já em 1925 mostrou ser estéril a discussão a respeito de viger a verdade material ou a verdade formal, olhando a diferença que se insistia – e alguns ainda insistem – em fazer entre elas, no processo penal e civil”.22 É clássica a distinção na doutrina processual sobre verdade formal e material, aplicada ao Direito Processual Civil e Penal, respectivamente, como se a verdade de um sistema fosse diferente da do outro, ou seja, a dogmática convencionou atribuir conceitos distintos à verdade processual, conforme o objeto em julgamento. Os juristas Cintra, Dinamarco e Grinover admitiram tal convenção, estabelecendo que o processo civil contenta-se em julgamentos baseados na verdade formal,
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FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 12. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas – a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vania Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 141. O autor afirma que o juiz é manipulado através da introjeção falsa de sinais de poder, o que faz com que o seu agir seja desenvolvido na crença de que é um super-homem da justiça, visto que passou por uma assepsia ideológica, possui neutralidade valorativa, sobriedade em tudo, suficiência e segurança de resposta, apresenta-se como um ‘executivo ‘senior’ com discurso moralizante e paternalista.
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CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação a ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 69. O autor, baseado na evolução do princípio da incerteza de Heisenberg, afirma que: “Em nível subatômico, a matéria não existe com certeza em lugares definidos; em vez disso, mostra tendências para existir, e os eventos atômicos não ocorrem com certeza em tempos definidos e de maneiras definidas, mas antes mostram tendências para ocorrer.” (p. 75). CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 81. COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. Introdução aos Princípios Gerais do Direito Processual Penal Brasileiro. In: Separata do ITEC, no 4, jan.-fev.-mar./2000, p. 12. 161
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já “no processo penal, porém, o fenômeno é inverso: só excepcionalmente o juiz penal se curva à verdade formal, quando não disponha de meios para assegurar a verdade real (CPP, art. 386, inc. VI)”.23 Na lição de Walter Coelho, “há várias projeções sobre o tema ‘verdade’, determinando inúmeros posicionamentos, que se refletem em diversas denominações. Assim, é possível falar em verdade transcendental, metafísica, ou verdade lógica, racional, ou mesmo física, empírica, histórica, etc. Em nosso departamento jurídico fala-se em verdade formal e substancial, bem como em ‘verdade dos autos’”.24 O renomeado professor lembra que a verdade no processo envolve duas perquirições: a primeira, referente à veracidade dos fatos e suas circunstâncias, a fim de que o julgador tenha uma idéia da ocorrência do evento; e a segunda, a verdade relativa ao Direito, no sentido de encontrar-se um preceito jurídico capaz de harmonizar-se ao caso sub judice. A doutrina formada a partir de manuais necessita superar sua visão ontológica sobre a verdade, a fim de viabilizar as reformas dos axiomas processuais, que causam prejuízos à efetividade do processo, e são mantidos no sistema como forma de dominação política. José Reinaldo Lopes chama a atenção para a inadequação do Poder Judiciário brasileiro de solucionar a crescente demanda de conflitos sociais.25 O apego à verdade material e a obsessão por sua busca representam fator de eternização do procedimento judicial em homenagem à suposta segurança jurídica. Jacinto Coutinho, após analisar as afirmações de Carnelutti sobre a verdade formal, única alcançável pelo homem, adverte: “Aqui, como salta à vista, há uma grande responsabilidade ética: Carnelutti funda as bases para que se sustente que os julgamentos são lançados sobre aquilo que, a priori, sabe-se não ser verdadeiro. Dá-nos, então, por primário, a possibilidade – quiçá pela primeira vez! – de questionar a malfadada segurança jurídica, desde sempre tão-só retórica e que transformou heróis em vilões e vice-versa”.26
O Direito antigo, enquanto vinculado aos poderes divinos, tinha sua legitimação na crença em Deus. Assim, os juízes e os reis diziam o Direito e a verdade por inspiração divina. Com a morte de Deus e o predomínio da razão humana, o Direito ainda continua a ter o privilégio de contar com a tradição dos mitos. Os pronunciamentos judiciais e a dialética utilizada para seu convencimento ao povo baseia-se em mitos, construídos pela burocratização do sistema penal. Essa constatação torna-se evidente quando se afirma a busca da verdade material no processo penal, sustentando-se que o juiz condena a partir da formação de seu convencimento de ter chegado à verdade substancial. O argumento de que essa situação conduz à “segurança jurídica” talvez represente uma das maiores falácias do Direito. A discussão sobre a verdade na ordem jurídica traz profundas inquietações, tanto que foi objeto de muitas pesquisas e com as mais variadas observações. Digladiam-se pensadores e juristas de muitas tendências, destacando-se estes no desespero de justificar a possibilidade de o juiz chegar à verdade, a fim de manter-se a crença na justiça. Encontra-se em Mittermaier o registro de que a verdade é a concordância entre um fato ocorrido na realidade sensível e a idéia que fazemos dele.27 Pode-se observar que se trata de uma visão filosófica atrelada ao paradigma do “ser” de Aristóteles, que num jogo de palavras traduz a noção do óbvio: “Dizer daquilo que é, que é, e daquilo que não é, que não é, é verdadeiro; dizer daquilo que não é, que é, e daquilo que é, que não é, é falso”.28 Esta concepção metafísica sobre a verdade está superada, porque não importa mais a essência do objeto do conhecimento, que o homem das ciências sociais não alcança. O que importa agora é o procedimento utilizado para se atingir o conceito e nesse passo a visão habermasiana supera a aristotélica, conforme se verá a seguir. A verdade apresenta inúmeros enfoques pelos pesquisadores, conforme a área do conhecimento a explorar. Excluídas as concepções metafísicas, torna-se difícil a dialética dos parâmetros para a definição da verdade sobre um objeto do conhecimento diante das limitações humanas. Daí por que Miguel Reale, ao abordar o tema sobre as dificul-
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CINTRA, Antônio Carlos Araújo, DINAMARCO, Cândido; e GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo, 9a ed., São Paulo: Malheiros, 1993, p. 61. COELHO, Walter. A prova indiciária em matéria criminal. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1996, p. 28. LOPES, José Reinaldo de Lima. “Crise da norma jurídica e a reforma do judiciário”. In: Direitos humanos, direitos sociais e justiça, (org.) José Eduardo Faria. São Paulo: Malheiros, 1994, pp. 68-93. COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. Op. cit., pp. 12-13.
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MITTERMAIER, C.J.A. Tratado da prova em matéria criminal. 2a ed., Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1979, p. 78. Apud COSTA, Newton C. A. Da “Conjectura e quase-verdade” In: Direito Política Filosofia Poesia: estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale, em seu octogésimo aniversário Coord. Celso Lafer e Tércio Sampaio Ferraz Jr.. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 79. 163
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dades de chegar-se à verdade, constata que “o pensamento, tanto como a natureza, tem horror ao vácuo, ao não-explicado ou não-compreendido. VAIHINGER, afirmando que toda verdade se reduz a uma ‘ficção’, a um como se (als ob) que o nosso espírito admite para compreender e dominar uma série de situações problemáticas, atendendo, assim, a exigências biológicas, e, mais amplamente, existenciais. A teoria da verdade reduzir-se-ia, desse modo, a uma teoria das ficções conscientes e úteis, em função dos esquemas ideais com que o homem encapsula o real e o ordena segundo os seus próprios fins vitais, constituindo, ao mesmo tempo, uma lógica naturalista e operacional”.29 A par das dificuldades que envolvem a discussão sobre a verdade, ainda assim a dogmática tradicional constrói toda a argumentação na busca desse elemento conceitual a partir de prova, conferindo poderes ao juiz para diligenciar na sua descoberta. A história luso-ibérica está impregnada de valores inquisitivos como forma de busca da verdade, advindas principalmente do direito canônico. Sob este prisma, mostra-se extremamente difícil a evolução legislativa brasileira no campo do sistema acusatório, que implicitamente foi adotado pela CF/88. Há um apego exagerado ao tema da verdade e seu tratamento legal, na medida em que o legislador crê no mito e o institui pela lei, conferindo poderes ao julgador de buscar subsídios para sua decisão, que tanto pode ser condenatória quanto absolutória, mas seria o retrato da verdade. É neste sentido que se trabalha a idéia de mito para afirmar que o fato reconstruído no processo é o mesmo ocorrido no passado, ou seja, impõe-se mediante argumentação de convencimento a idéia de que se chegou à verdade. Isso porque a cognição probatória do processo tem por objeto principal a descoberta da verdade. O juiz necessita convencer o jurisdicionado de que o Estado é capaz de dar uma resposta baseada na verdade, que deve ser aceita como um dogma. Passa-se a impressão de que o juiz não erra; afinal ele está do lado da verdade. Na ótica de Taruffo e Michelli, o juiz deve buscá-la como condição de qualidade da justiça que o Estado oferece ao cidadão.30 Em outras palavras, a verdade é a fonte de legitimação da atividade jurisdicional, porque é a única forma de fazer o povo acreditar e respeitar as decisões judiciais.
O maior problema que a dogmática enfrenta é o paradoxo existente entre a exigência de um juiz que seja justo e apto a desvendar a verdade de um fato ocorrido no passado e o reconhecimento de que as limitações humanas não permitem alcançá-la. Embora o juiz não seja um ser divino, o sistema jurídico assim o caracteriza, quer através dos ritos judiciários, quer através das agências de formação do conhecimento, originando o mito (à semelhança das funções sacerdotais). Mister, portanto, desmascarar a figura mítica do juiz, como um ser sobrenatural, capaz de descobrir a verdade sobre as coisas e, por isso mesmo, apto a fazer justiça. Esta fundamentação retórica da doutrina processual não pode mais sobreviver, porque ninguém chegará à verdade mediante simples processo dedutivo de cognição, havendo necessidade de modificar-se o discurso. Em vez de verdade, utiliza-se o conceito de verossimilhança das provas, juízo de probabilidade. Isto é, o juiz deve procurar chegar mais perto da verdade através de cognição razoável. Todavia, as provas não podem conferir ao julgador um grau de segurança quanto à verdade. Nesse sentido afirmou Wach: “Aller Beweis ist richtig verstanden nur Wahrscheinlichkeitsbeweis”.31 O juízo será sempre de probabilidade e não de certeza, de verdade absoluta, por maior que seja o número de testemunhas ou provas sobre um evento. Voltaire, citado por Calamandrei, refere que numa hipótese concreta, mesmo havendo doze mil testemunhas, não são nada mais do que doze mil probabilidades, o que corresponde a uma forte probabilidade, e que não traduz necessariamente um juízo de certeza, ou seja, não é a verdade. É uma forte probabilidade.32 A discussão sobre a verdade material no processo marca toda a trajetória do Direito. Em Roma o juiz poderia abster-se de declinar sua decisão diante do caso concreto que lhe cabia examinar, desde que declarasse sob juramento, sibi non liquere.33 Isto é, o juiz negava a prestação jurisdicional sob o argumento de que os fatos não foram suficientemente esclarecidos e não foi descoberta a verdade. Situação absolutamente inaceitável no processo atual, porquanto o Estado é o devedor da prestação jurisdicional, que é indeclinável. Aquela situação
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REALE, Miguel. Verdade e conjectura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 18. MICHELLI, Gian Antonio e TARUFFO, Michele. “A prova”. In: Revista de Processo, no 16, São Paulo: Revista dos Tribunais, out/dez 1979, p. 168.
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“Todas as provas, em verdade, não são mais que provas de verossimilhança” (tradução livre). Apud CALAMANDREI, Piero. “Verità e verossimiglianza nel processo civile”. In: Rivista di diritto processuale, Padova: CEDAM, 1995, p. 164. Apud CALAMANDREI, Piero, op. cit., p. 225. A respeito do tema, ver em SURGIK, Aloísio. Lineamentos do processo civil romano. Curitiba: Livro é Cultura, 1990, p. 71. 165
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autorizava o juiz romano a ficar em “cima do muro”, hipótese que se traduz hoje na absolvição por falta de provas. Para a dogmática, a distinção entre verdade formal e material ainda persiste, mesmo não tendo nenhuma repercussão sobre a atividade cognoscitiva, uma vez que a verdade não passa de uma utopia. Seria absurdo qualificar uma sentença penal condenatória como retrato da verdade (qualificada pela verdade), enquanto a sentença cível seria meramente um juízo formal sobre a verdade. Estudando o tema, Voltaire também conclui que a verdade é intangível, ao afirmar que “les vérités historiques ne sont que des probabilités”.34 Daí por que a tendência da doutrina mais comprometida com a razão humana é discutir o problema sob o enfoque da verossimilhança. Neste diapasão encontra-se Miguel Reale, que percebeu a impossibilidade de se atingir a verdade real no processo, preferindo utilizar o conceito de “quase-verdade”, em substituição ao da verdade. Afirma o jusfilósofo: “Se a verdade, numa síntese talvez insuficiente, não é senão a expressão rigorosa do real, ou, por outras palavras, algo de logicamente redutível a uma correlação precisa entre ‘pensamento e realidade’, tomando este segundo termo em seu mais amplo significado, e não apenas como ‘realidade fatual’, forçoso é reconhecer que a adequação entre o mundo dos conceitos e o da realidade, mesmo nos domínios das ciências consideradas exatas, deixa-nos claros ou vazios que o homem não pode deixar de pensar. No fundo é esta a distinção kantiana essencial entre ‘conhecer segundo conceitos’ e ‘pensar segundo idéias’, isto é, acrescento eu com certa elasticidade, ‘pensar segundo conjecturas’. De mais a mais, discutem até hoje os filósofos e cientistas no que tange à definição de verdade, e os conceitos que se digladiam não são mais do que conjecturas, o que demonstra que a conjectura habita no âmago da verdade, por mais que nossa vaidade de ‘homo sapiens’ pretenda sustentar o contrário”.35 Não bastasse todo o drama sobre a verdade, o juiz, ao proferir a sentença, sofre forte incidência de subjetividade na valoração da prova, o que já foi observado por Rui Portanova, acrescentando, ainda, motivações pessoais, tais como: “Interferências (psicológicas, sociais, culturais) personalidade, preparação jurídica, valores, sentimento de
justiça, percepção da função, ideologia, estresse, remorsos, intelectualização”.36 Qualquer análise das formas jurídicas evidencia ser impossível atingir a verdade sobre certo evento histórico. Pode-se ter uma elevada probabilidade sobre a forma de sua ocorrência, mas nunca a certeza absoluta. Primeiro, porque ao homem não é dado conhecer a verdade absoluta de uma fato que está no passado, e esta talvez seja a única verdade. Segundo, porque a verdade formal é uma espécie de reflexo no espelho, reconstruída por um sistema de provas, mas não é a verdade, é a probabilidade. A título de exemplo, poder-se-ia ilustrar o tema a partir de um crime de estupro, ocorrido na clandestinidade. Toda a prova é meramente circunstancial e sustentada na versão da vítima. Portanto, é um juízo precário e superficial de probabilidade, mas jamais será uma certeza, uma verdade. Assim, o processo penal necessita encontrar uma razão suficiente para justificar o pronunciamento judicial, que fundamenta o juízo de afirmação sobre um evento criminoso. Constrói-se então o mito sobre a verdade. A dogmática acredita no mito e o povo não questiona a manipulação dos conceitos. Se houver injustiça, fica restrita à visão do injustiçado. Para a sociedade o fato está esclarecido e a “justiça” está feita. Pode-se afirmar que a dogmática jurídica baseia-se fundamentalmente no formalismo e muito menos na cientificidade, eis que atrelada aos velhos dogmas de formas probatórias. As ciências naturais e sua tecnologia ainda não conseguiram perpassar, salvo raras exceções – como é o caso de exame de DNA na investigatória de paternidade – as masmorras conservadoras e o atraso do procedimento processual penal. A dogmática, formada por em exército de conservadores, encarrega-se de manter o direito impregnado de mitos, isto é, de pensamentos racionalizados a partir da crença sobre determinado instituto, que pode conter certa arbitrariedade na própria norma jurídica fundante. A hipótese é metafísica e não científica. O mesmo fenômeno de arbitrariedade encontra-se também nos dogmas religiosos. O drama está na epistemologia da dogmática jurídica, que não é construída a partir de fundamentos científicos; por esta razão, antes de se indagar acerca de determinada norma jurídica, deve-se optar entre uma posição dogmática ou uma posição crítica. A opção certamente é
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Apud CALAMANDREI, Piero. “Verità e verossimiglianza nel processo civile”. In: Rivista di diritto processuale, Padova: CEDAM, 1995, p. 165. REALE, Miguel. Verdade e conjectura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 17-18.
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PORTANOVA, Rui. Motivações Ideológicas da Sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1994, 2a ed, p. 16. 167
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metodológica, isto é: ou se encara a questão jurídica como objeto de interpretação, segundo regras hermenêuticas, ou se examina o problema do ponto de vista externo, como fenômeno social, político, histórico ou econômico.37 A verdade real, apesar da dificuldade conceitual do próprio termo, que aglutina verdade e realidade, é considerada pela dogmática tradicional e pela jurisprudência da Corte Suprema um “postulado”.38 A partir do dogma da determinação da verdade pela justiça, que separa o culpado do inocente, estrutura-se a legitimação de todas as regras do sistema criminal. Colocam-se lado a lado a “verdade real” e o princípio do livre convencimento sobre as provas, que evidenciam flagrante antinomia, porque a verdade é somente a verdade, não podendo ser formal, material, substancial, adjetiva ou objetiva. Em sendo a verdade retratada pelas provas, o juiz não possui livre convencimento, porque somente poderá optar pela prova verdadeira. Assim, a verdade choca-se com o livre convencimento na apreciação das provas, porque, se o juiz encontrou a verdade, seu convencimento está vinculado a ela e não é mais livre e esta verdade não pode ser modificada pelo tribunal, porque ela é única. As limitações humanas na reconstrução de um fato histórico tornam o processo impotente e estéril na busca da verdade. De um lado, os litigantes apresentam suas versões baseadas em provas, e que sempre são antagônicas; de outro lado, o juiz, que deve apreciar as versões e optar pela que mais lhe convence. Esta opção, muitas vezes difícil, demonstra a fragilidade da cognição, como operação de busca da verdade. Não importa, por exemplo, que o réu tenha confessado, porque pode ter sido induzido a fazê-lo ou sofrer de distúrbio psíquico decorrente de trauma da tortura policial, ou, ainda, pode ser manobra para acobertar o verdadeiro criminoso. A mesma situação pode apresentar-se quanto às testemunhas, que terão os mais variados motivos para não revelar exatamente o que viram. De qualquer forma,
por mais astuto e escrupuloso que seja o magistrado, o elemento de prova que for decisivo para o veredito pode conter um grave equívoco. Não há nunca um juízo de certeza material na sentença, na medida em que as provas sofrem toda a espécie de influência das limitações e fraquezas do homem. Sobre esta precariedade que forma a convicção do juiz, Calamandrei já advertia que aquilo que se vê é apenas aquilo que parece ser visto. Não é verdade, mas verossimilhança, isto é, aparência (que pode ser ilusão) de verdade. É forçoso reconhecer, na genialidade deste processualista, a exata visão sobre a verdade processual, ao afirmar que, quando se diz que um fato é verdadeiro, apenas se diz que a consciência de quem emite o juízo atingiu o grau máximo de verossimilhança que, segundo os meios limitados de cognição de que dispõe o sujeito, basta a dar-lhe certeza subjetiva de que tal fato ocorreu.39 A verdade processual não equivale à verdade material, conforme já foi dito, em razão da forma de produção da prova para reconstruir o fato passado. Concorrem para isso o subjetivismo das testemunhas e da precariedade das demais provas, bem como os aspectos subjetivos do julgador. Todavia, o juiz tem o dever de decidir e dizer a verdade. Esta verdade é uma verdade subjetiva e não material, real. Ao introduzir o tema sobre o mito da verdade real no processo penal, Francisco das Neves Baptista indaga sobre as expressões utilizadas, observando que “é mister estabelecer-se se verdade e realidade se podem confundir e, até, se é possível coexistirem, o que leva a investigação aos domínios da teoria do conhecimento e – para além da adesão liminar à fé na viabilidade do conhecer, já mencionada e condicionante de qualquer raciocínio ulterior – ao problema da acessibilidade dessa confusão ou coexistência, relativamente ao intelecto. Ou, inversamente, admitir-se a indistinção entre verdade e realidade e o conseqüente cunho pleonástico da expressão verdade real”.40 As evidências ou verdades científicas também são provisórias, em face da velocidade de evolução da tecnologia e da pesquisa, o que acaba por reduzir a verdade à mera verossimilhança, generalizando a incerteza e o relativismo, isto é, a uma mera probabilidade.41 A preocupação com a verdade é um fenômeno típico do século XX, mas já
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Ver mais detalhadamente sobre a atividade do cientista que busca o conhecimento, distinguindo o sujeito e o objeto, em GUSDORF, Geoges. “A Interdisciplinariedade” In: Ciências Humanas. N.o 1, Rio de Janeiro: jul.-set./1997, pp. 13-22. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. I, 6a ed. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 36; TORNAGHI, Hélio Bastos. Curso de Processo Penal. Vol. I, São Paulo: Saraiva, 1982, p. 272: NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso Completo de Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 1985, p. 90. ESPÍNDOLA FILHO, Eduardo. Curso de Processo Penal Brasileiro Anotado. Vol. II, 6a ed., Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1980, pp. 347 e 434.
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Apud CALAMANDREI, Piero, op. cit., pp. 164-166. BAPTISTA, Francisco das Neves. O Mito da Verdade Real na Dogmática do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 9. BAPTISTA, Francisco das Neves. Op. cit., pp. 29-30. 169
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inquietou Aristóteles ao reconhecer que “nunca se alcança a verdade do todo, nem nunca se está totalmente alheio a ela”.42 A evolução das ciências físicas e a constante quebra de verdades científicas também atingiram as ciências jurídicas; estas, todavia, estão menos sensíveis em razão dos mitos e dogmas que as sustentam. Para Francisco Baptista, a única concepção possível de “verdade real” seria “a de uma formulação cognoscitiva, isto é, uma proposição do intelecto – um juízo, enfim – que reflita exatamente algo que preexiste e subsiste ao próprio conhecimento de sua entidade ou existência”.43 Adotar-se a verdade real como princípio processual revela um aspecto preocupante de índole tendenciosa do legislador, diante dos contornos imprecisos do conceito. O meio pelo qual se alcança a verdade, segundo os ditames definidos na legislação, representa uma pobreza científica atroz. Para o sistema inquisitório, justifica-se qualquer diligência na busca da verdade, legitimando os poderes instrutórios do julgador. A hipervalorização do interrogatório e a dialética estabelecida entre a versão do réu com as demais provas vão formar uma “verdade”, que se dá o rótulo de real, como se fosse um reflexo no espelho do fato ocorrido. Há, portanto, um erro conceitual inominável, que acaba sendo assimilado como mito ou dogma. O princípio da verdade sustenta o sistema processual inquisitorial, pois autoriza o juiz a pesquisar provas de ofício, independentemente da vontade das partes. Portanto, o discurso sobre a verdade material ou real é típico de sistemas autoritários. Há muito tempo a ciência jurídica deveria ter superado a discussão acerca da verdade, porque representa um mito jurídico que não serve mais ao Direito contemporâneo. As demais ciências já se deram conta de que não há nenhuma verdade sobre um fato específico ocorrido no passado, ou seja, não há nem mesmo verdade científica. Isso porque, na esteira de Jürgen Habermas, a moderna filosofia compreende a verdade de um fato a partir de um conceito dialético, estabelecido a partir da argumentação dos sujeitos cognoscentes, que constróem a verdade e não a descobrem. Sob esta concepção, a verdade é o que o consenso do grupo afirma ser, a partir de elementos de verossimilhança. Habermas, advertindo sobre os riscos que correm
os princípios normativistas de perder contato com a realidade, afirma que as decisões judiciais necessitam de critérios de racionalidade para que possam ser aceitas pelos membros do Direito.44 O juiz deve construir a verdade judicial a partir das provas, mas não se trata de descoberta da verdade, nem de reconstrução do fato passado. O magistrado justifica na sentença o procedimento utilizado para construir o conceito que representa a verdade formal, ou melhor, a probabilidade sobre o fato passado. A argumentação que fundamenta a verdade do juiz deve resultar de um critério de valoração delineado pelo sistema processual. Isto é, deverá haver um consenso sobre a arquitetura da prova, porque o processo moderno passa a ser um placo de argumentação e não de reconstrução de eventos pretéritos atrelado à descoberta da verdade. Pode-se concluir com a lição de Jacinto Coutinho, após analisar as variáveis que envolvem o conceito sobre verdade material, cuja observação é lapidar: “...a grande maioria da doutrina brasileira insiste em dizer que o processo penal é regido pelo princípio da verdade material. Contudo, não se dá conta de que esta idéia vem legitimar o sistema inquisitório e toda a barbárie que o acompanha, na medida em que tem o processo como meio capaz da dar conta ‘da verdade’, e não de ‘uma verdade’, não poucas vezes completamente diferente daquela que ali estar-se-ia a buscar”.45 O resultado a que chega o juiz, por mais que se tenha empenhado na busca da verdade, será sempre um juízo de verossimilhança, que não pode ser confundido com a essência da verdade. Trata-se de empirismo processual penal marcado pelas limitações do ser humano na forma de produzir a prova. O julgador busca nas suas decisões um convencimento pautado nos princípios e regras essenciais ao Estado Democrático de Direito, demonstrando que o juízo de probabilidade é fruto de um processo lógico regido pela razão.46 A epistemologia inquisitiva é típica dos sistemas autoritários, de concepção ontológica do desvio penal, que considera a pessoa em si, como sujeito mau, e não uma conduta de transgressão a um cânone enquanto formalmente previsto pela lei. Confere ênfase aos aspectos subjetivos do criminosos e não se limita aos aspectos objetivos que
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Apud BAPTISTA, Francisco das Neves. O Mito da Verdade Real na Dogmática do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 30. BAPTISTA, Francisco das Neves. Op. cit., pp. 33-34.
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HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade. Vol. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Templo Brasileiro, 1997, p. 246. COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. Op. cit., p. 14. COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. Op. cit., p. 14. 171
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envolvem o fato. Ferrajoli identifica dois modelos quanto à busca da verdade processual: de um lado situa-se o formalista, que aceita a verdade formal, baseada em pressupostos e garantias de defesa, e de outro lado, o substancialista, que sustenta a busca da verdade absoluta, material, baseada na pessoa investigada, e que pode ser obtida por qualquer meio, resultando um juízo arbitrário, fundado em verdades substanciais incontroláveis.47 Assume especial revelo o problema da verdade processual, porquanto o juízo penal trabalha uma relação de saber-poder (conhecimento e decisão). Segundo Ferrajoli, quanto maior o poder, tanto menor será o saber, e vice-versa. O poder, sem limites para o julgador, certamente permitirá o surgimento da arbitrariedade,48 que tão profundas seqüelas deixaram no mundo ocidental. Discorrendo acerca das vitórias e derrotas da cultura dos juristas na elaboração do novo Código de Processo Penal italiano,49 Enio Amodio revela as tramas realizadas pelo Executivo para influenciar a derrota do ideal acusatório, eis que se pretendia um juiz menos ativo, mais imparcial, sem poderes inquisitórios. Referindo manobras da Corte Constitucional, aponta o jurista que o princípio da não-dispersão da prova é utilizado para legitimar o poder inquisitório do juiz. Observa que não se consegue romper com a cultura que faz do juiz penal o dominus da prova, na medida em que a ideologia conservadora de raízes históricas e sociais, impede a mudança para um sistema acusatório pleno ou garantista.50 Tudo gira em torno da busca da verdade, tendo o juiz o “poder supremo” de encontrá-la. O sistema acusatório, abordo aqui com enfoque do modelo garantista, trata a verdade processual como resultado da correspondência entre a verdade fática (por via indutiva, resultante da prova dos fatos) e a verdade jurídica (por via dedutiva, decorrente da interpretação do complexo de normas que qualificam o fato como delito). Para Ferrajoli, a verdade processual será sempre uma verdade aproximativa em relação ao ideal, é uma verdade formal, diante da impossibilidade
de alcançar a verdade material.51 Para o modelo garantista a legitimidade das decisões penais deve condicionar-se à verdade empírica de suas motivações.52 A epistemologia garantista de Ferrajoli53 baseia-se na identificação do desvio penal, tendo como objetivo assegurar o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo, procurando impor limites ao poder punitivo, evitando arbitrariedades. O modelo teórico garantista de direito processual decorre das idéias iluministas, baseado em princípios constitucionais de direitos e garantias fundamentais da pessoa contra o poder estatal. Destacam-se os princípios da estrita legalidade, da ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência e da responsabilidade pessoal do indivíduo tido como desviante. As garantias processuais,54 segundo Ferrajoli, podem ser traduzidas em quatro axiomas: “nulla culpa sine iuditio” (princípio da jurisdicionalidade); “nullum iudicium sine accusatione” (princípio acusatório ou da separação entre acusador e julgador); “nulla accusatio sine probatione” (princípio da carga probatória ou da verificação); e “nulla probatio sine defensione” (princípio do contraditório, da ampla defesa, ou do direito de refutação, da contra-prova). Esses axiomas, que podem ser desdobrados em vários teoremas, traduzem apenas proposições prescritivas e não afirmativas; sugerem como deve ser.55 Ferrajoli denomina de irracionais os modelos punitivos que suprimem os seguintes axiomas: “nulla poena sine crimine; nullum crimen sine lege; e nulla culpa sine iudicio”.56
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FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 44. FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 46. Conferência proferida no “Encontro de Estudos”, realizado em Florença, Itália, em 25-26 de setembro de 1996, abordando a cultura processualista penal e o Código de Processo Italiano de 1988. AMODIO, Enio. Vitórias e derrotas da cultura dos juristas na elaboração do novo Código de Processo Penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Jan-mar/99, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, pp. 16-22.
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FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 50. FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 69. FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 33. O sistema de garantias de Ferrajoli é composto por dez axiomas, sendo seis penais e quatro processuais. As garantias penais envolvem: 1) o delito, como fenômeno legalmente previsto como pressuposto para impor a pena; 2) a lei, como norma emanada do legislador, segundo o sistema legislativo; 3) a necessidade, identificada como a função de tutela dos bens fundamentais que justificam as proibições e as penas; 4) a ofensa, caracterizada pela lesão efetiva a um ou vários bens tutelados legalmente; 5) a ação, identificada como um comportamento humano exteriorizado, material ou empiricamente manifestado, tanto por omissão quanto por comissão, aliado ao nexo de causalidade com o resultado; 6) a culpabilidade, representado pelo juízo de reprovabilidade da conduta. Os dez axiomas do sistema de garantias dão origem a 45 teoremas. Todos os princípios estão interligados e um dá suporte ao outro. Diante de um quadro de tipologia dos sistemas punitivos, Ferrajoli afirma que a subtração de um ou mais axiomas pode traduzir três modelos distintos: um modelo de processo penal autoritário; um modelo de direito penal autoritário ou um modelo punitivo irracional. (Op. cit., pp. 94-97). FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 92-93. FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 102. 173
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O garantismo processual-penal corresponde a um modelo de direito penal mínimo, baseado em um ideal de racionalidade jurídica e de certeza processual. Esta concepção está fundamentada no axioma in dubio pro reo. Por isso Ferrajoli deixa claro que “A certeza perseguida pelo modelo de direito penal máximo está em que nenhum culpado fique impune, à custa da incerteza de que também algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo, ao contrário, está em que nenhum inocente seja condenado ou castigado, à custa da incerteza de que também algum culpado possa resultar impune”.57 Nesse passo resta evidente que o modelo garantista busca a condenação daqueles cuja culpa tenha sido plenamente comprovada, diversamente da concepção de direito penal máximo, que é nitidamente uma aspiração autoritária. Segundo Ferrajoli, o conjunto de garantias penais restaria incompleto não fossem as correspondentes garantias processuais, como a presunção de inocência, direito ao contraditório, a separação entre acusação e juízo, o direito de ampla defesa e carga probatória para formar o convencimento. De um lado, as garantias substanciais, relativas ao delito, e de outro as garantias instrumentais, assegurando ao máximo a imparcialidade, a verdade e o controle, completam o sistema de garantias com recíproca efetividade.58 Sobre a eficiência do direito penal e do processo penal num modelo garantista, Ferrajoli arremata: “Para o direito penal, há uma submissão da lei penal à lei fundamental, e o sistema processual será eficiente se realizar a tutela dos direitos fundamentais...”59 A crítica que é feita ao garantismo no campo da efetividade da prestação jurisdicional reside em conciliar eficiência e o respeito ao sistema de garantias. Ferrajoli tem a resposta, ao apregoar que as expressões “garantias” e “eficiência” tendem a se confundir, na medida em que devem traduzir a menor intervenção penal possível e a máxima realização da proteção dos direitos fundamentais. Não é pela punição a um maior número de pessoas, muitas vezes por infrações ridículas, que se pode dizer que a justiça é eficiente.
O filósofo italiano sustenta que a “reserva de código” dá certeza ao Direito, porque o legislador se vê “limitado sobretudo na produção de legislações excepcionais, propagandísticas que, lamentavelmente, formam a maior parte do acervo de normas penais”.60 A correta aplicação da lei não significa atender aos reclamos da opinião pública, que, muitas vezes, é manipulada pela mídia interesseira ou, pior, movida por interesses político-econômicos escusos. O exagero de normas penais esparsas, como ocorre no Brasil, leva o Estado ao descrédito no campo penal, diante de sua incapacidade de aplicar a lei a todos os crimes. Surge a política do etiquetamento e a polícia escolhe os crimes que serão objeto de investigação. Na advertência oportuna de Ferrajoli, essa política de inflação legislativa penal leva à justiça privada, e à fuga da jurisdição. Ou seja, volta-se à situação anterior ao Estado, numa guerra de todos contra todos.
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FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 106. FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 537. FERRAJOLI, Luigi. Entrevista concedida a Fauzi Hassan Choukr, em 14.12.1997, em Roma, sobre a Teoria do Garantismo e seus Reflexos no direito processual penal, publicada no Boletim do IBCCrim no 77, abril-1999, p. 4.
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Id. Ibid., p. 4. 175
Tutelas de Urgência, Emergência e Evidência – A Questão da Sumarização frente ao Processo Penal Garantista Cláudia Marlise Alberton
Introdução Vivemos sob a égide da imediatização da comunicação e da aceleração das relações. As relações sociais estão à mercê da velocidade (aceleração temporal), que, ao mesmo tempo em que soluciona, também gera uma complexidade de conflitos. Entendemos que no momento em que o Estado proibiu a autotutela, punindo como crime fazer justiça pelas próprias mãos, assumiu o compromisso de solucionar, de forma adequada, efetiva e em tempo hábil, os litígios ou lides que ocorrem no seio da sociedade. O processo, mediante o qual atua a sua função jurisdicional, deve ensejar resultado semelhante ao que se verificaria se a ação privada não estivesse proibida. À vista da tensão entre celeridade e processo penal garantista, vem se considerando possível a sumarização no processo penal, através da simplificação dos procedimentos e da criação de novas legislações, como é o caso dos Juizados Especiais (de âmbito estadual e federal). Mas até que ponto está correta esta adaptação ao processo penal de “rapidez” na respota à sociedade? Ou, indo um pouco além, levando-se em conta a necessidade de ampla cognição no processo penal, a sumarização processual pode ser encarada como avanço ou retrocesso? Exsurge desta ânsia social uma verdadeira aporia: instrução e cognição, pilares do processo penal garantista, os quais não se harmonizam com velocidade.
1. As Tutelas de Urgência no Processo Penal A dicotomia tempo x efetividade no processo nos leva, automaticamente, a uma análise mais profunda acerca da verdadeira 177
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problemática existente quando se fala da tutela de urgência no processo penal. A necessidade de tutelas jurídicas diferenciadas, à vista da velocidade do tempo e do crescimento das inter-relações sociais, tem por escopo não apenas buscar a efetividade do processo, como se demonstra à hipótese da antecipação dos efeitos da tutela no processo civil, mas, em se tratando de processo penal, de uma verdadeira pacificação dos “nervos” sociais, pela resposta imediata aos anseios da sociedade, que vê na proliferação de novas penas e, mais surpreendentemente, no encarceramento, em si, a forma mais eficiente de controle social no combate à criminalidade. Emergência, urgência e evidência são termos que ultimamente têm sido utilizados, tanto na seara processual civil quanto penal para demonstrar situações em que não se pode aguardar uma decisão final do magistrado, porém muitas vezes perde-se a noção do verdadeiro sentido de tais conceitos. Fauzi Hassan Chouckr, em trabalho específico sobre o tema, nos traz importante abordagem:
Notadamente vemos que a resposta judiciária, no dizer de JeanFrançois Burgelin,2 ao tratar sobre o tempo no procedimento em matéria penal, é endereçada não somente à vítima, mas também à sociedade.
Que a idéia de emergência está atrelada à de urgência – e, num certo sentido, ao de crise –, isso é inegável. Chama a atenção para algo que, de forma repentina, surge de modo a desestabilizar o status quo ante, colocando em xeque os padrões normais de comportamento e a conseqüente possibilidade de manutenção das estruturas. Nesse sentido, a ela se atrela a necessidade de uma resposta pronta, imediata e que, substancialmente, deve durar enquanto o estado emergencial perdura.
Il faut veiller à rétablir la paix publique après la commission de l’infraction. Or le sentiment d’insécurité progresse ainsi que le sentiment d’impunité des auteurs de petits délits auquel il n’est pas répondu du tout ou pas assez rapidement. Autant dire, em effet, qu’une réponse tardive em matière pénale équivaut à une abasence de réponse. L’appareil policier et judiciaire réagit avec lourdeur et lenteur aux petits désordres sociaux qui sont pourtant la source essentielle de ce sentiment d’insécurité. Na esfera penal, qualquer decisão pré-processual, ou seja, em fase inquisitorial, onde são desconhecidas as garantias constitucionais de contraditório e ampla defesa, bem como durante a instrução criminal, as famosas medidas acautelatórias se tornam efetiva antecipação da pena, e, embora passível de reforma, eis que por ser cautelar, não definitiva, tornam-se extremamente perigosas ao indivíduo e afrontam o princípio de presunção de inocência antes de decisão definitiva transitada em julgado. Ferrajoli, sobre a temática, constata que La alteración de las fuentes de legitimación ha consistido precisamente en la asunción de la “excepción” o de la “emergencia” (antiterrorista, antimafia o anticamorra) como justificación política de la ruptura o, si se prefiere, del cambio de las reglas del juego que en el estado de derecho disciplinam la funcion penal. Esta concepção de la emergencia no es otra que la idea de la primacía de la “razón de estado” sobre la “razón jurídica” como criterio informador del derecho y del proceso penal, aunque sea en situaciones excepcionales como la creada por el terrorismo político o por otras formas de delincuencia organizada. Y equivale a un
Mas, assim como o vocábulo crise, emergência não possui apenas aplicação no mundo do Direito. Mais que isso, pode-se afirmar que o Direito apenas camufla um de seus mais importantes significados, este melhor compreendido no âmbito das ciências naturais, especialmente na biologia geral. Lá, emergência assume o significado de algo que se apresenta como uma excrescência do organismo e não possui forma definida.1 2 1
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CHOUCKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, pp. 1-2.
BURGELIN, Jean-François. La situation spécifique de la matière pénale. In COULON, Jean-Maire e FRISON-ROCHE, Marie-Anne. Le temps dans la procedure. Paris, Dalloz, 1996, pp. 31-42. 179
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principio normativo de legitimación de la intervención punitiva no ya jurídico sino inmediatamente político, no ya subordinado a la ley como sistema de vínculos y de garantías sino supraordenado a ella. “Salus rei publicae, suprema lex”: la salvación o incluso el bien del estado es la “Grundnorm” del “derecho de emergencia”, la ley suprema a la que han de plegarse todas las demais, incluidos los principios generales, de los cuales legitima el cambio.3
Lopes Júnior,4 assegurando a eficácia da sentença condenatória, tendo em vista as futuras responsabilizações na seara cível, contribuindo, isto também, para a mantença da tranqüilidade social e a confiança da sociedade no funcionamento da justiça (e, por tabela, do Estado). No que tange às medidas cautelares de caráter pessoal, vemos que estas exteriorizam com mais clareza a proteção da sociedade e o restabelecimento da paz social afetada pelo delito. Temos, aí, os fundamentos da prisão cautelar configurada na prisão preventiva para garantia da ordem pública ou econômica (art. 312 do CPP e, no mesmo sentido, o art. 503, 2o, da LECCrim espanhola). O fundamento principal da prisão cautelar é o periculum libertatis, visto como a situação de perigo para o normal desenvolvimento do processo causado pela situação de liberdade do autor do delito. Muito embora se tenha o costume, conforme dissemos acima, de utilizar os mesmos requisitos das liminares do processo civil para as medidas cautelares no processo penal, resta mais do que evidente a impossibilidade de aplicar os mesmos pressupostos necessários à cautelar civil à jurisdição penal, tendo em vista que a indiscricionariedade de sua aplicação serve apenas como instrumento de injustiça social, tendo o processo penal já exercido sua função penalizadora muito antes de finda a instrução criminal. Não se pode afirmar que o delito cometido é uma “fumaça do bom direito”, quando na verdade o que se espera é a probabilidade da ocorrência de um delito, ou seja, o fumus comissi delicti. Desta forma, é a provável ocorrência de um delito e os indícios da autoria que se fundem no pressuposto fumus comissi delicti, e não a existência de um sinal, fumaça de um bom direito que deverá ser tutelado pelo Estado, o fumus boni iuris. Também incompossível aplicar ao processo penal o segundo pressuposto que necessário se faz presente nas medidas cautelares civis: o periculum in mora, uma vez que o fator imprescindível encontrado nas cautelares penais não é o tempo que corre contra um direito que supostamente existe e o conseqüente perigo da demora que tornaria ineficaz a medida ao final, como ocorre na tutela civil, mas a probabilidade de fuga ou a perigosidade da liberdade do réu é que conta.
Aliás, em matéria de processo e procedimento, note-se que as antecipações “de pena”, maquiadas como medidas acautelatórias, são tratadas como efetivas cautelares, quando, na verdade, não o são. Ou seja, exige-se a existência de fumus boni iuris e periculum in mora não para assegurar direitos, mas, sim, para assegurar a instrução criminal e a aplicação da lei penal. As medidas cautelares no processo penal têm em seu bojo, claramente, o caráter satisfativo dos anseios sociais e do próprio Estado que, por um problema de segurança pública precária, não consegue “cuidar” de seus investigados sem que os mesmos estejam presos, sendo, portanto, um problema a menos se o mesmo já o estiver por ocasião da sentença condenatória transitada em julgado. Burgelin, ao falar desse anseio de penalização e urgência nas medidas de constrição penal, trata esse estado como de “delírio penal”, definida por ele como uma situação na qual a sociedade se agita de tal forma que não enxerga outra saída para uma situação de crise que não recorra diretamente ao Direito Penal – é o movimento político de penalização, que visa acalmar os ânimos sociais através da criação de novas leis penais.
1.1. A Questão do Fumus Boni Iuris e do Periculum in Mora e sua adequação ao processo penal A aceleração dos procedimentos no processo penal pode ser verificada em vários níveis, desde a produção antecipada de provas até as medidas cautelares patrimoniais, que têm por escopo garantir o pagamento das custas do processo, bem como o ressarcimento dos prejuízos causados pelo delito. Basicamente, conforme ensina Aury
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FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., pp. 807-808.
LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001, pp. 45-46. 181
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Assim, vemos que o segundo pressuposto da cautelar penal está no periculum libertatis, ou seja, no perigo que oferece à sociedade o acusado de um crime, através do entendimento de que, uma vez que solto, poderá o réu se eximir da aplicação da sanção penal, obstruir a instrução do processo ou ainda macular a manutenção da ordem pública e econômica.
conduzirão, provavelmente, a um resultado favorável, cuja utilidade se busca preservar. Quanto ao periculum in mora, que trata justamente dos riscos que se corre pela demora da prestação jurisdicional, são necessários dados reais que provem o dano que a demora do acertamento do direito das partes poderá acarretar à utilidade da sentença futura. Não basta o perigo genérico, tênue, exigindo-se a demonstração de que, provavelmente, a alteração do status quo, razoavelmente demonstrada, esvaziará a atuação jurisdicional, tornando-a irremediavelmente imprestável. Assim, uma vez presentes os requisitos legais acima referidos, não dispõe o juiz de discricionariedade capaz de levá-lo a indeferir a providência cautelar, abdicando de seu relevante papel de tutela dos bens jurídicos postos sob seus cuidados, sob pena de esvaziamento, ao menos do ponto de vista prático, da própria garantia da inafastabilidade da jurisdição. João Gualberto Garcez Ramos5 identifica cinco diferentes grupos nas medidas de urgência do processo penal: medidas patrimoniais de urgência, medidas instrutórias de urgência e a busca e apreensão (que, segundo a concepção do autor, pode ser medida tanto instrutória quanto patrimonial), sendo que no campo da liberdade de locomoção do imputado as medidas podem ainda ser privativas e/ou protetivas dessa liberdade. Visualizado o problema de sua assistemática, outro obstáculo encontramos nas cautelares previstas no ordenamento processual pátrio, principalmente pela falta de atualização (interpretação constitucional), uma vez que foi concebida a partir de uma realidade social totalmente diferente da atual, época de costumes diversos, de criminalidade diversa, de diferentes práticas democráticas, deixando, portanto, de contemplar diversas situações que hoje vêm demandando dos operadores do Direito uma postura diferente. A busca de uma efetividade do processo penal, e à vista da crescente demanda por respostas ao aumento da criminalidade, impõe ao magistrado decidir sobre a prisão do suspeito desde o início do processo, tendo em vista que o tempo age implacavelmente sobre o processo penal, levando a um real esvaziamento da prestação jurisdicional, contribuindo, assim, para o desprestígio do chamado “sistema de justiça”. A prisão cautelar, nestes termos, seria medida
1.2. As Medidas Acautelatórias Bem entendido que a chamada tutela de urgência vai buscar seu fundamento no princípio da inafastabilidade da jurisdição, consagrado pelo art. 5o, XXXV, da Constituição Federal, e, mais, que não basta uma garantia de acesso ao Judiciário pela possibilidade de utilização do processo de conhecimento (cognição exauriente), sem que seja possibilitado, antes, a utilização de novas técnicas capazes de garantir, mesmo que reflexamente, a satisfação do bem da vida; a garantia de efetividade da jurisdição penal contraditoriamente se manifesta nas medidas acautelatórias no conflito entre pretensão punitiva estatal e pretensão de liberdade. O Poder Judiciário, como poder do Estado, tem por missão proporcionar a pacificação social, através de regramentos que se comprometam em reprimir a criminalidade. Para tanto, exige-se do Magistrado uma postura igualmente rígida, que se comprometa em afastar do meio social o que lhe é pernicioso, não lhe sendo, portanto, facultada a aplicação da pena, sendo esta a única resposta plausível à coletividade atingida. Tal situação, a toda evidência, mostra um quadro típico do Estado em crise, levando o operador do Direito a uma postura menos democrática e garantista, contrariando justamente os princípios que regem a Constituição nacional. A concessão de toda e qualquer providência cautelar, típica ou atípica, depende da presença de dois requisitos fundamentais, quais sejam, o fumus boni iuris e o periculum in mora, no processo civil, e os seus correspondentes fumus delicti e o periculum libertatis no processo penal. No processo civil, cumpre-nos relembrar que o primeiro requisito (fumus boni iuris) enseja análise judicial a partir de critérios de mera probabilidade, em cognição não exauriente, avaliando-se a plausibilidade do direito pleiteado pelo autor a partir dos elementos disponíveis no momento. Deve o juiz indagar, assim, se a pretensão veiculada, diante dos elementos apresentados pelo legitimado, o 182
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RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Doutrina e jurisprudência. Belo Horizonte, Del Rey. 183
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garantidora da eficácia da prestação jurisdicional; medida essa, entretanto, nem sempre acertada, dada a gravidade de efeitos que decorrem do encarceramento durante o processo, bem assim em razão dos requisitos estabelecidos pelo Código de Processo Penal para a sua decretação, nem sempre cabível por falta de razoabilidade e proporcionalidade. Diante dos exíguos mecanismos disponibilizados pela lei, o Juiz criminal, em muitas hipóteses, se vê diante da dicotomia do “prender” ou “não prender”, o que, como conseqüência, ou o leva a decretar prisões cautelares desarrazoadas ou, ao contrário, a assistir, passivamente, o esvaziamento do processo, não obstante estar diante de real necessidade de garantir a aplicação da lei penal, a instrução criminal ou mesmo a ordem pública. O cuidado a se verificar dos requisitos inerentes à decretação de uma medida de tal relevância está atrelado ao mesmo cuidado que se deve ter em adequar tais possibilidades à realidade temporal e social do delito. É Romeu Pires de Campos Barros6 quem, ao discorrer sobre o tema, coloca que
parece possível tal entendimento, devendo as providências cautelares ser somente cabíveis às hipóteses expressamente previstas em lei a partir do argumento da “tipicidade de direito substancial”. Entretanto, a adoção de medidas cautelares atípicas sempre restou marcada no processo penal, sendo incorporada de forma desordenada, sendo pertinente que, diante da impossibilidade prática de a lei prever todas as hipóteses de risco, não faria sentido que o juiz, identificando concretamente um dano à ordem jurídica não prevista pelo legislador, se visse impossibilitado de adotar outras soluções de garantia. Sucintamente, vemos que ao longo dos tempos já houve aproximação do conceito de ordem pública com a preservação da credibilidade do Estado na Justiça; igualando a garantia da ordem social com a garantia da ordem pública, somente sendo efetivada com a aplicação da lei penal; sendo sinônimo de periculosidade, ou gravidade do delito, como método de apaziguação social, tendo em vista o clamor público, ou seja, a revolta da população pela prática da infração; ordem pública inclusive em favor do acusado, na idéia de que é mais seguro deixar o réu encarcerado do que solto, a fim de garantir sua incolumidade, entre tantas outras.8 O deferimento das cautelas inominadas no campo do processo penal, igualmente, demandará a demonstração do binômio utilidadeadequação, à vista de ser o interesse de agir condição inafastável ao legítimo exercício do direito de ação; consiste na demonstração, pelo autor, não só da utilidade da medida por ele pleiteada, ou seja, a imprescindibilidade da intervenção jurisdicional para garantir o pleno gozo de seu direito, como também da adequação da via eleita para o alcance de tal desiderato, podendo ela se dar também na esfera cível e/ou administrativa.
A possibilidade jurídica na ação cautelar consiste em se verificar “prima facie”, se a medida cautelar pleiteada é admissível no estatuto processual ou em qualquer lei dessa natureza. Existe uma tipicidade processual não diferente da tipicidade de direito substancial. Portanto, importa verificar se o pedido do autor pode subsumir-se num dos modelos descritos nos preceitos normativos do direito vigorante. Inexistindo no ordenamento jurídico a medida cautelar pleiteada, não há possibilidade jurídica para o pedido do autor. Muito embora se entenda que as normas que tratam das providências cautelares têm natureza exclusivamente processual, utilizando-se da interpretação dos princípios gerais de direito (previsto no art. 3o do CPP), e, portanto, comportando a incidência dos princípios gerais do direito em busca da efetividade da ação jurisdicional, aplicando-se o disposto da norma contida no art. 798 do CPC,7 não nos
1.3. As Medidas Instrutórias de Urgência O estudo em apartado das medidas instrutórias de urgência mostra-se adequado no momento em que, embora entendamos o
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BARROS, Romeu Pires de Campos. Processo penal cautelar. Rio de Janeiro, Forense, 1982. Art. 798 CPC: “Além dos procedimentos cautelares específicos, que este Código regula no Capítulo II deste Livro, poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar ade-
quadas, quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação”. Como referência a tais conceitos, ver HC no 60.973 – PR, em voto proferido pelo Min. Francisco Rezek, RTJ 106/573; RT 531/296; RT 575/455; RTs 477/401, 504/436, 534/366, 549/398, 538/458 e 489/344; RT 593/399; RT 593/339, Apud CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da Constituição (...), pp. 115-118. 185
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processo como um conjunto de todas as atividades exercidas pelos seus atores, a mais importante não poderia deixar de ser a atividade instrutória. Afinal, é por ela que o processo se guia e se desenvolve, e por ela vai se formar o juízo decisório. Saber a quem está disposta a gestão da prova é marco que vai definir se estamos diante de um sistema inquisitivo ou acusatório, mostrando-se, portanto, a preocupação da lei processual penal em garantir a higidez da atividade instrutória. Eis por que a importância dada à formação do inquérito policial, do auto de prisão em flagrante e da antecipação de provas. Tendo em vista que a prova em matéria criminal assume papel tão relevante, há a previsão de medida privativa de liberdade do acusado por conveniência da instrução criminal. A proteção da instrução criminal da ação do tempo e de outros fatores de dissolução se dá através desses três instrumentos, como veremos a seguir. Entendemos o inquérito policial como efetivo processo administrativo, sendo o mesmo um ato complexo, e não apenas preparatório para a instrução criminal, podendo, a partir dele, ser determinadas diversas providências cautelares, inclusive no decurso do mesmo. Entretanto, não se trata de um processo administrativo, pois, tendo em vista a necessidade de uma proteção de provas, evidências e de um contato imediato após o cometimento do fato delituoso, o inquérito policial assume a caracterização de urgência. Assim, podemos muito bem colocá-lo como uma medida cautelar. O inquérito policial procura localizar e proteger todos os elementos de convicção que cerquem o fato criminoso, de forma cuidadosa o suficiente para que possibilite o exame por parte dos futuros participantes do processo penal e uma conclusão mais próxima da verdade real. Também, de acordo com Garcez Ramos, procura “cristalizar versões do fato para futuro uso em juízo. A tomada dos testemunhos por escrito, pela autoridade policial, garante que o acusador poderá valer-se da versão ali retratada”.9 Muito embora seja concebida esta função como a mais importante do inquérito policial, pois efetivamente prepara os caminhos para acusação e para a formulação decisória, temos um importante dilema, que merece aqui breve reflexão, e que se dá em dois pontos: primeiro, que, tendo em vista que não é concebido como um “processo” em si,
apesar da defesa que fizemos anteriormente, a ele não são aplicadas as garantias previstas constitucionalmente, sendo ferido tanto contraditório como direito à defesa e produção e provas nesta fase e, segundo, e mais perigoso, no momento em que o caso é levado a juízo, não poderia o Magistrado tomar o inquérito policial como parte do processo, já que não é encarado como tal, sendo inclusive prejudicial ao réu a presença do mesmo, no qual, dependendo da natureza do fato delituoso, pode apresentar divergências no depoimento de testemunhas e da própria vítima. Assim, e ainda assumindo nosso compromisso com o processo penal-garantista, é com sérias ressalvas que vemos como adequada essa função exercida através do inquérito policial, pois, uma vez convicto do que está ali escrito, é da natureza humana relutar em mudar tal posicionamento, mesmo tratando-se de um juiz imparcial. Assim, justamente por este princípio de imparcialidade é que se espera que a convicção judicial não seja viciada pelo conteúdo do inquérito policial. Qualificado pela sumariedade tanto do ponto de vista formal (pois é um procedimento de poucas e abertas regras), tendo por escopo simplesmente servir de base para a propositura ou não da ação penal, quanto material, eis que as providências realizadas são genéricas, e procuram abordar todas as possibilidades e colher todos os elementos de convicção, há ainda a questão da relação de referibilidade do inquérito policial com o direito material subjacente ao processo penal que virá a ser instaurado, pouco importando se a solução do caso penal dar-se-á pelo pedido de arquivamento.10 O arquivamento do processo, por sua vez, também tem natureza cautelar,11 à vista que o despacho que determina o arquivamento é efetivamente uma decisão jurisdicional, eis que obsta o seguimento do processo. É decisão caracterizada pela urgência, tendo em vista que a existência de um inquérito policial fere diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana, referendado pela Constituição Federal em seu artigo 1o. Assim, uma vez não comprovada a suspeita sobre determinado fato delituoso, não tendo o mesmo se transformado em prova, é dever estatal o arquivamento do inquérito policial. O auto de prisão em flagrante, por sua vez, já é admitido na ampla doutrina como sendo uma medida tipicamente cautelar, uma vez que
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RAMOS, João Gualberto Garcez. Op. cit., p. 260.
RAMOS, João Gualberto Garcez. Op. cit., p. 262. COUTINHO, Jacinto no de Miranda. “A natureza cautelar da decisão de arquivamento do inquérito policial.” Revista de processo. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1993, no 70, p. 56. 187
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serve de diversas formas em sua função cautelar: como título de prisão, como medida de proteção à prova contra ação prejudicial do tempo e como medida de proteção de uma versão sobre o fato a ser objeto de processo penal condenatório. Em não se buscando a certeza processual, o auto de prisão em flagrante se reveste apenas pela verossimilhança dos fatos, sendo urgente, e dispondo de pouco tempo para sua perfectibilização. Relacionando-se nitidamente com a proteção da liberdade do preso em flagrante, vemos também sua relação com a atividade instrutória, sendo, portanto, também medida instrutória, desta vez, assim como ocorre no auto de prisão em flagrante, medida cautelar protetiva da atividade instrutória do imputado.12 Por fim, no que tange às medidas cautelares de natureza instrutória, temos a produção antecipada de provas, também chamada, como vimos anteriormente, de depoimento ad perpetuam rei memoriam, sendo determinada a pedido da parte, e mesmo de ofício pelo magistrado, tendo em vista sua característica de urgência. A mais comum é a produção antecipada de prova testemunhal, prevista no art. 225 do Código de Processo Penal,13 ocorrendo, geralmente, diante de situação de velhice, doença ou iminente ausência, que pudesse colocar a perigo a dilação da oitiva da testemunha para momento posterior.
evidente”, ou seja, pretensões em que se opera mais do que o fumus boni iuris, mas a probabilidade de certeza do direito alegado, aliada à injustificada demora que o processo ordinário carreará até a satisfação do demandante, com grave desprestígio para o Poder Judiciário, posto que injusta a demora que o processo ordinário carreará até a satisfação do interesse do demandante, com grave desprestígio para o Poder Judiciário, posto que injusta a espera determinada.14 O direito de evidência pode ser comparado, assim, ao direito líquido e certo existente no mandado de segurança e no processo de execução. Assim, a legitimação do provimento urgente em favor do direito evidente situa-se entre o limite da certeza e da verossimilhança preponderante. Conforme leciona Luix Fux, são os fatos notórios a primeira espécie de fato gerador do direito evidente, constituídos de verdades de reconhecimento geral, de tal forma propagados que não há a possibilidade de se duvidar de sua existência. Também os fatos incontroversos são entendidos como favoráveis para a demonstração da evidência do direito, sofrendo, da mesma forma, a “influência do ‘balanceamento dos interesses em jogo’, nalguns casos acrescendo-se da credibilidade pessoal dos litigantes e do caráter de normalidade circunstancial do evento que ampara o pedido de tutela do direito evidente, sem que se confunda evidência com aparência, este, juízo próprio da função cautelar”.15 No processo penal, tal “evidência do direito” assume outra forma, uma vez que, conforme já vimos, os termos fumus boni iuris e periculum in mora não são compatíveis com o sistema processual penal. Assim, a evidência da urgência de um provimento cautelar na seara penal se dá pela visualização nítida de um fumus delicti comissi e de um efetivo periculum libertatis. Como no caso da prisão provisória, nos casos em que mais do que um juízo de probabilidade, mas, pelas circunstâncias que cercam a pessoa do acusado, patente a necessidade de uma medida urgente que vise proteger a produção de provas até o julgamento, presente está a evidência que justifique a aplicação da medida cautelar. Entretanto, para que possamos analisar a tutela de evidência à luz do processo penal, necessário que se faça uma reflexão sobre os
2. A Tutela de Evidência no Processo Penal Tratada de forma diferenciada mesmo na esfera processual civil, a tutela de evidência é modalidade que vem assumindo importante reflexão no processo moderno, à vista da crescente e excessiva litigiosidade do aparelho estatal como “desvio ético”, propiciada pela atual processualística, cuja maior aplicação, hoje, tem sido menos o desenrolar processual em busca da prestação jurisdicional, e mais a busca da protelação processual, da perenização de feitos. Tendo em vista a necessidade de uma justiça urgente, o próprio Judiciário se vê forçado a um novo entendimento sobre o “direito 12 13
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RAMOS, op. cit., p. 274. Art. 225 CPP: “Se qualquer testemunha houver de ausentar-se, ou, por enfermidade ou por velhice, inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, tomar-lhe antecipadamente o depoimento.
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FUX, Luiz. Tutela de segurança e tutela de evidência. São Paulo, Saraiva, 1996, pp. 305-306. FUX, Luiz. Op. cit., p. 316. 189
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demais tipos de tutela, de segurança e as antecipatórias, bem como a figura do habeas corpus e do mandado de segurança em matéria criminal como formas de inibir esta urgência apresentada sob o manto da evidência
compasso, visualizar métodos de remediação de tais medidas, que podem ser perfectibilizadas através do habeas corpus e do mandado de segurança de natureza penal. Há de se falar, ainda, na tutela inibitória, caracterizada por ser voltada para o futuro. No sistema processual penal, podemos utilizar desse instituto para justificar a possibilidade do habeas corpus preventivo como forma de inibir a instauração da ação penal, aí inserido todos os riscos imanentes ao processo, bem como a desnecessidade do ferimento a garantias fundamentais como o da dignidade à pessoa humana.
2.1. Distinção entre Tutela de Evidência, Tutela de Segurança e as Antecipações de Tutela A tutela de evidência mostra-se plenamente justificada no processo civil, tendo em vista a necessidade do magistrado em prestar uma rápida solução aos litígios, dispensando o prolongamento desnecessário dos ritos processuais, visando-se sempre à efetividade, sempre que verificada a existência do “direito evidente”, sendo, portanto, tutela consectária da aplicação do “devido processo legal”, que ajusta o processo, bem como o procedimento, à necessidade de proteção judicial do direito lesado ou ameaçado de lesão. Já a tutela de segurança é decorrente da garantia de “acesso à justiça”, e decorre do poder jurisdicional, que acarreta para o juiz responsabilidade judicial quanto ao objeto e provas do processo, a partir de sua instauração, sendo prestada através de processo com natureza sumária, utilizando-se das regras do procedimento cautelar, tendo como ensejador um estado de “periclitação do direito” material, gerado tanto por um fato da natureza quanto a uma postura da parte adversa, judicial ou extrajudicialmente. Ou seja, a prova na tutela de segurança está atrelada ao poder-dever estatal de conjurar os perigos de dano ao direito material da parte. A tutela antecipatória, por sua vez, tem cunho meramente satisfativo, visando evitar o uso indevido do processo cautelar para a proteção de direitos substanciais, sendo necessário o cumprimento de requisitos da fumaça do bom direito e do perigo da demora para sua concessão, não sendo possível ao Juiz a concessão de ofício de tal medida, a não ser que se vislumbre o risco de dano irreparável ou de difícil reparação. A partir dessa simples distinção entre os diversos tipos de tutela, podemos entender a grande distância que separa o Direito Processual Civil do Penal, não sendo possível, portanto, utilizar-se de seus institutos. Entretanto, em admitindo-se, conforme destacado anteriormente, a tutela de evidência no processo penal, à vista da certeza de um perigo em se deixar livre o acusado, seja sob a justificativa de fuga ou pela possível obstrução da instrução criminal, temos que, no mesmo 190
2.2. O Habeas Corpus e o Mandado de Segurança No momento em que tratamos do habeas corpus e do mandado de segurança em matéria criminal como formas de contracautela, necessário, em um primeiro momento, que distingamos os dois tipos de ações, devido às suas particularidades. O habeas corpus, instituído no regramento constitucional brasileiro de 1824 (Constituição do Império), embora de forma implícita, foi definitivamente adotado a partir do Código de Processo Criminal de 1832, vindo então a figurar em todas as posteriores Constituições promulgadas. Foi, entretanto, na vigência da primeira Constituição republicana, de 1891, que houve uma cisão entre o entendimento dos direitos que visava remediar o habeas corpus. Ora, levando-se em conta que na época nem se pensava no mandado de segurança como remédio constitucional, normal que alguns questionamentos fossem alentados sobre a norma que assim prescrevia (art. 72 § 22): “Dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder”. Divergiam, portanto, dois entendimentos: primeiramente, o de que o habeas corpus somente serviria para a proteção do direito de ir e vir (locomoção), não cabendo sua aplicação em outros casos em que houvesse recurso específico ou próprio; e, segundo, defendendo a aplicação do habeas corpus a todos os casos de constrangimento arbitrário aos direitos individuais. Nos parece adequado este último entendimento, tendo em vista que naquele texto de 1891 estão abarcados diversos direitos individuais, não devendo ser entendido de forma restritiva ao direito de locomoção. Após a inserção do remédio constitucional do mandado de 191
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segurança, é outro o entendimento, conforme ainda adotado nos dias de hoje. A natureza do habeas corpus é objeto de grande discussão na doutrina, mas que para nós, e concernente ao presente trabalho, tratase de ação autônoma, visivelmente de urgência, que visa proteger o indivíduo em seu direito de locomoção dos abusos do Estado exercido através de suas autoridades administrativas e policiais. Aliás, ainda vemos o habeas corpus estudado nos manuais entre os recursos cabíveis. Como medida que serve a qualquer tipo de abuso, possível de ser efetivado em qualquer fase do processo, constando, inclusive, no Livro III, Título , Capítulo X, que trata dos recursos em geral, não é, contudo, recurso, tratando-se de ação autônoma, pois o habeas corpus é instrumento que pode ser utilizado a qualquer momento do processo, diferentemente do recurso, que necessita de uma decisão judicial. Além disso, a interposição de recurso só é possível mediante prévia relação jurídico-processual, ao contrário do habeas corpus, que, além de, per se, instaurar uma nova relação jurídica, independentemente daquela que deu origem à sua instauração, pode ocorrer independentemente de uma relação jurídica previamente instaurada. Podendo ser ele de cunho liberatório ou preventivo (que estudaremos mais detidamente a seguir), podemos resumidamente colocar que o habeas corpus preventivo tem lugar no momento em que surge uma ameaça de violência ou coação à liberdade de locomoção do indivíduo. Em concedida a ordem, é expedido o salvo-conduto, que significa, em termos literais, o direito de ser conduzido a salvo sem ser admoestado. Já o liberatório é concedido quando já atacada a liberdade de locomoção, sendo, nesse caso, em concedida a ordem, expedido alvará de soltura ao paciente-impetrante, conforme dispõe o art. 660, § 1o, do CPP. O objeto do habeas corpus está vinculado ao direito à liberdade corpórea do indivíduo e sobre o seu direito de locomoção, sobre o qual recai a prestação jurisdicional. Qualquer outro direito líquido e certo que não a liberdade de locomoção, conforme preleciona Paulo Rangel, será tutelado por mandado de segurança.16 Também importante lembrar que, como ação autônoma, necessário ao habeas corpus a existência dos elementos da ação, ou seja, partes, pedido e causa de pedir. Até aí não temos maiores confusões;
tendo em vista que as partes correspondem ao paciente e à autoridade coatora, o pedido é o de salvo-conduto ou de liberdade, dependendo da natureza do habeas impetrado, sendo a causa de pedir o fato originário da ilegalidade. O que se visa tutelar, com o habeas corpus, é a liberdade de locomoção, que é direito líquido e certo, sendo exigível, portanto, a prova pré-constituída de tal constrangimento ilegal (ou iminência de), não cabendo, neste instituto, a discussão sobre provas no processo. De outra banda, o mandado de segurança tem por escopo a proteção de todo e qualquer direito individual não amparado por habeas corpus ou habeas data, no momento em que violado ou ameaçado de lesão por ilegalidade ou abusividade do poder, praticado por autoridade no exercício de atribuições do poder público, não cabendo, portanto, contra ato de particular, diferentemente do habeas corpus, que permite tal impetração. Importante salientar, entretanto, que não há vários tipos de mandado de segurança. O mesmo é remédio constitucional, sendo ação cível autônoma de impugnação, de rito sumário especial, podendo ser impetrado, entretanto, em qualquer outra seara, sendo especialmente aqui estudada a parte criminal. Sobre ele disciplinam, além da própria Lei do Mandado de Segurança (Lei 1.533/51), também as Súmulas no 266, 267, 268, 430, 474, 510 e 597 do STF e Súmulas no 41, 169 e 217 do STJ. Assim, tendo em vista que o mandado de segurança tem por objeto um ato revestido de ilegalidade a ser impugnado, líquido e certo, ou seja, comprovado de plano, vedada a dilação probatória, sendo a prova pré-constituída, que não seja tal ato referente à liberdade de locomoção, caso em que o remédio apropriado, como vimos acima, é o habeas corpus. Surge a dúvida então em que casos seria cabível a impetração do mandado de segurança em matéria criminal, tendo em vista que, em tal seara, o que se vê realmente ameaçado é o direito à liberdade e à locomoção. Entretanto, diversos são os exemplos em que pode ser utilizado tal remédio criminal. O art. 5o, LVIII, da CF/88 determina que “o civilmente identificado não será submetido à identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”. Pois bem, deixando aqui de lado a hipótese do art. 6o, VIII, do Código de Processo Penal, vemos que, uma vez obrigado o indivíduo a se submeter à identificação criminal, sendo este civilmente identificado, o ato recai sobre este direito, líquido e certo, previsto constitucionalmente, inclusive, e deverá recorrer ao Mandado de
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RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 5. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001, p. 620.
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Segurança, uma vez que se trata de direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data. Nesta temática, temos o exemplo da Lei 9.034/95 (Lei do Crime Organizado), que autoriza, em seu art. 5o, justamente, a identificação criminal daqueles que já possuem identificação civil, mas que estejam envolvidos em ações praticadas por organizações criminosas. Outro exemplo que temos é o caso da possibilidade de impetração de mandado de segurança contra ato da autoridade policial que obrigue o indiciado a fornecer escritos do próprio punho para exame grafotécnico (art. 174, IV, do CPP). Isto porque estamos confrontando um dispositivo legal contra um princípio próprio do processo penal, que é do ônus da prova, que em matéria penal incumbe ao Ministério Público, além de estarmos ferindo o direito que toda pessoa tem de não ser obrigada a depor contra si mesma.17 Resta-nos evidente, portanto, que a observação dos pactos, como o de São José da Costa Rica, é prevista e necessária ao fortalecimento do Estado Democrático de Direito, respaldada pela Carta Magna, sendo, portanto, direito líquido e certo, a ser amparado em sede de mandado de segurança. Por derradeiro, e aqui citamos posição de Paulo Rangel18 sobre o tema, é a possibilidade de medida que proteja o direito a voto do preso provisório (seja em virtude de flagrante ou de prisão preventiva). Explica o autor que os direitos políticos são inerentes à qualidade de cidadão, e tal capacidade eleitoral (de votar e ser votado) somente poderá ser privada na forma estabelecida em nossa Lei Maior, ou seja, pela perda ou suspensão dos direitos políticos, conforme reza o art. 1519 da CF/88. Estando o indivíduo preso provisoriamente, claro nos parece que permanecem seus direitos como cidadão, sendo expressão de tal qualidade os direitos políticos.
mandamental, se necessário for. Deferido o pedido pela autoridade judiciária, a autoridade policial adotará as medidas necessárias quanto à segurança do transporte do preso até a zona eleitoral competente para exercer seu direito ao voto.20
O preso provisório tem, assim, direito líquido e certo de exercer sua capacidade eleitoral ativa, podendo propor ação
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O pacto de São José da Costa Rica, art. 8o, § 2o, g, dispõe que toda pessoa tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada. RANGEL, Paulo. Op. cit., p. 679. Art. 15 da CF/88: “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: (...) III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; (...)” – (grifamos)
Embora esteja claro no texto legal que somente é possível a impetração de mandado de segurança contra ato do qual não caiba outro recurso, temos visto freqüentemente nos tribunais a impetração do writ tanto para obter efeito suspensivo de recurso interposto, quanto para atacar o despacho que não admite o assistente de acusação, levando-se em conta que não há um recurso específico para tais situações, bem como não nos deparamos com a possibilidade de habeas corpus. Vinculados os dois institutos como se mostram, eis que tutelam os direitos do indivíduo em face dos abusos de poder de autoridade, a diferenciação se nos parece tênue, eis que, nos casos em que não é cabível o habeas corpus, o mandado de segurança teria eficiência garantida como remédio constitucional.
2.3. O Habeas Corpus Preventivo como Tutela Inibitória Uma vez entendido a tutela inibitória como tutela preventiva, que “visa a prevenir o ilícito, culminando por apresentar-se, assim, como uma tutela anterior à sua prática, e não como uma tutela voltada para o passado”,21 estamos, com evidência, desconstruindo a idéia de que a única tutela contra o ilícito seria a tutela ressarcitória, ou seja, aquela de reparação do dano. Toma lugar, no processo civil, a idéia de ilícito e dano, sendo admitida a tutela inibitória para coibir o ilícito de que seja praticado. Entretanto, entende-se que a probabilidade do ilícito é, freqüentemente, a possibilidade de dano, e, portanto, obtém-se a tutela inibitória independentemente da demonstração de um dano futuro. Delineadas essas primeiras idéias da tutela inibitória, embora utilizada somente no processo civil, vemos que esta tutela preventiva encontra lugar no processo penal no momento em que pensarmos justamente sobre sua natureza preventiva. Ou seja, antes que ocorram
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RANGEL, Paulo. Op. cit., p. 680. MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit., p. 26. 195
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a lesão, o dano, imperativo uma tutela de urgência que vise à conservação da integridade de direitos, que não poderão ser reparados, mesmo que não demonstrável o possível dano. Encontramos, nesta linha, uma brecha para incluirmos o habeas corpus preventivo como remédio a ser utilizado como tutela inibitória contra as medidas cautelares aplicáveis ao processo penal. Já vimos o cabimento do habeas corpus, bem como sua natureza, sendo interessante, entretanto, analisar o que pode ser entendido pela “preventividade” atribuída a este instituto. A simples verificação da “iminência” de violência ou coação não nos parece um critério totalmente adequado para o exame da questão. Apesar de ter sido retirada tal limitação a partir da Constituição de 1946, admitindo-se, inclusive, a tutela mesmo em situações em que a prisão constitua evento apenas possível a longo prazo, é nosso dever irmos mais além, renovando nossas considerações sobre os princípios e garantias fundamentais do indivíduo. É direito de todos, e garantia inerente ao Estado Democrático de Direito, a preservação da dignidade da pessoa humana. Juntamente com a vida e a liberdade, é tal princípio base fundamental das garantias e princípios que regem o processo. Assim, a “iminência” de violência ou coação somente poderá ser verificada no momento em que estiver prestes a ocorrer, não nos servindo, portanto, de tutela que vise coibir o ato atentório. Também o estudo do princípio da presunção de inocência nos leva à mesma intenção de que ninguém poderá ser condenado (e, portanto, privado de sua liberdade) até que finda a instrução criminal com decisão transitada em julgado.
Desta forma, antes que ocorra a violação à liberdade de locomoção, é o instituto do habeas corpus preventivo instrumento hábil a deter tal violação, utilizando-se da idéia já estabelecida de uma tutela inibitória, devendo ser analisada, portanto, caso a caso.
Admite-se assim o remédio constitucional para o trancamento de ação penal, ou até de inquérito policial, mesmo que o acusado ou investigado não esteja preso ou com ordem de prisão expedida, pois a simples tramitação do procedimento penal já encerra, potencialmente, o risco de uma futura restrição à liberdade.22
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GRINOVER, Ada Pellegrini, GOMES FILHO, Antonio e FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos no processo penal. 3. ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001, p. 347.
3. A Sumarização do Processo Penal e a Cognição enquanto Técnica O tempo e a sumarização no/do processo penal vem nos oferecendo diversas possibilidades de estudo, tanto no que diz respeito à crítica a uma teoria geral do processo quanto à inadequação da utilização dos institutos do processo cível na seara penal. Em crítica direta ao processo de sumarização, tratamos então de defender a cognição plena enquanto técnica a ser utilizada para a solução do caso penal, vedada a abreviação dos procedimentos, a não ser que seja favorável ao réu/indiciado, bem como a impossibilidade da decretação das medidas cautelares não respaldadas pela Lei processual penal (recepcionadas, evidentemente, pela Constituição).
3.1. Procedimento Administrativo Pré-Processual e Procedimento Judicial Pré-Processual Utilizamo-nos dos termos escolhidos por Lopes Jr.,23 que classifica o inquérito policial como um procedimento administrativo pré-processual, uma vez que é levado a cabo pela Polícia Judiciária, órgão vinculado à administração, desenvolvendo, por isso, tarefas de natureza administrativa. Nesta linha, entendemos que no momento em que a instrução preliminar está a cargo de um órgão que pertence ao Judiciário, consideramos este procedimento como judicial pré-processual, pois a investigação é dirigida justamente com base no poder a ele dotado, exatamente por pertencer ao Poder Judiciário. Entretanto, esta instrução preliminar, mesmo que dirigida por uma autoridade judiciária dotada de poder jurisdicional, não pode ser considerada como processo em sentido próprio, uma vez que carece de características essenciais da atividade puramente processual, 23
LOPES Jr., Aury. Op. cit., p. 33. 197
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potencialmente contrapostas, como o exercício de uma pretensão; existência de partes potencialmente contrapostas; da garantia de um contraditório e a existência de uma sentença, com a produção de coisa julgada. Podendo iniciar de ofício ou mediante a notitia criminis, na instrução preliminar não falamos em partes, mas sim em sujeitos. O contraditório, embora previsto constitucionalmente, inclusive nesta fase “pré”-processual, resta mitigado, sendo que as decisões ali existentes têm caráter apenas interlocutório, carecendo, portanto, de um efetivo comprometimento do poder jurisdicional. Não há a formação, assim, do “jogo” processual, onde ambos os sujeitos interagem, ora atacando, ora reagindo, sendo sua finalidade apenas preparatória do processo ou do não-processo. O “segredo” que permeia a instrução preliminar nos remete ao sistema inquisitivo, e são revestidos, predominantemente, a forma escrita e secreta. A fim de se evitar a insuportabilidade de inquéritos, haja vista o incontável número de delitos que são cometidos diuturnamente, necessário se faz estabelecer, nesta fase pré-processual, um filtro, pelo qual determinadas condutas, muito embora passíveis de enquadramento criminal, à vista da sua superação enquanto delito pela própria sociedade, devem ser dispensadas do sistema investigatório. Para tanto, ousamos dizer que para ocupar tal função destacamos a necessidade da justa causa. Entendemos ser a justa causa uma das condições da ação, cristalizamos seu caráter de imprescindibilidade e damos a este instituto a função de legitimar a função penal. Desta forma, ao se entender a justa causa como condição primeira para o exercício da ação penal, volta-se a afirmar a necessidade de prova induvidosa de uma conduta, em tese, delitiva e, no mínimo, fortes indícios, quase inabaláveis de sua autoria, sendo que a falta desta justa causa seria motivo primeiro não de absolvição, mas de rejeição da denúncia ou queixa, fundamentada na carência de ação. Em sendo tênue a linha entre a legalidade e a arbitrariedade, fixando-se a justa causa como filtro da fase pré-processual, busca-se uma maior efetividade das garantias do processo penal, para que não ocorra absurdos como o esculpido no art. 386, II, do CPP, que dispõe sobre a possibilidade de absolvição do réu nos casos em que não houver prova da existência do fato. Ora, uma vez inexistente prova da existência do fato, como existir processo? Em juízos de verossimilhança, assim como se embasam as medidas cautelares? Em procedimentos desta linha, em que pri-
meiramente se instaura a ação penal para, somente após, perquerir-se da culpa, colher-se a prova da materialidade e da autoria, estamos, sem dúvida alguma, diante da arbitrariedade, que se protege de forma acintosa sob o manto da legalidade.
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3.2. O Tempo Pré-Processual e suas Conseqüências no Processo É de suma importância ressaltar que, muito embora ainda se tenha enraizado no pensamento moderno a idéia sobre a certeza e a segurança jurídica das decisões judiciais, a própria aceleração das relações sociais traz consigo (“no vácuo”) a necessidade de uma maior velocidade nas respostas do Estado às demandas sociais. Embora seja plenamente aceitável no âmbito do Direito Civil, a esfera penal é cercada por particularidades que impedem tal raciocínio, e a velocidade imprimida aos conflitos na área penal, inclusive no que antecede ao processo, necessário para a perfectibilização do direito material, traz consigo riscos que fogem ao controle do próprio Estado, e que, por conseqüência, devem ser observados com muita atenção. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), integrada no ordenamento brasileiro, impôs uma série de garantias processuais, que adquiriram índole e nível constitucional. No artigo 8o, item 2, c, temos que, durante o processo, é uma garantia mínima, assegurada a toda pessoa a “concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa”. Assim, vemos justamente a contraposição entre garantias e velocidade. A garantia do tempo e meios adequados para se defender adquire relevância processual, chocando-se com a idéia de procedimentos abreviados na esfera penal. Muito embora não criem uma relação processual autônoma, entendemos pela existência de pretensão cautelar nos casos de requerimentos de prisão provisória, de aplicação de interdições de direitos e medidas de segurança, de seqüestro, de antecipação de provas previstas no código vigente. Assim, não há dúvida, no nosso entendimento, de que a prisão provisória em nosso Direito tem natureza não somente acauteladora, destinada a assegurar a eficácia da decisão penal, assim como possibilitar a regular instrução probatória, mas de efetiva antecipação de pena, uma vez que há uma antecipação dos efeitos da sentença 199
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condenatória, estando inclusive previsto no sistema instituto da detração penal (art. 42 do Código Penal). Busca-se garantir, no processo, uma finalidade hipotética da jurisdição penal, que seria a atuação da vontade da lei material, através das providências cautelares, para que os meios de que se deve servir ou a situação sobre a qual irá incidir não se modifiquem ou se tornem inúteis, antes ou durante o desenrolar do procedimento.24 A liberdade provisória, sob este espectro, como bem coloca Afrânio Silva Jardim,25 assume no processo penal pátrio a natureza de medidas de contra a cautela, vez que tem como finalidade diminuir a probabilidade de prejuízo ao acusado provisoriamente preso, em caso de procedência da pretensão punitiva do Estado. Muito embora não seja do nosso agrado comparar os institutos das medidas cautelares do processo civil com o processo penal, tendo em vista a nossa sincera crítica às teorias de unificação dos processos, é interessante uma visualização das mesmas à luz do processo civil, eis que bem mais trabalhado por nossos juristas pátrios. Podemos dispor tais características na seguinte ordem: a) acessoriedade: em razão de o processo ou medida cautelar encontrarse sempre vinculado ao resultado do processo principal; b) preventividade: vez que se destina a prevenir a ocorrência de danos enquanto o processo principal não chega ao fim; c) instrumentalidade hipotética:26 a tutela cautelar pode incidir em sem que seu beneficiário, ao final do processo principal, tenha efetivamente reconhecido o direito alegado, que surge apenas como viável ou provável; d) provisoriedade: sua manutenção depende da persistência dos motivos que evidenciar uma urgência da medida necessária à tutela do processo.
Tratando-se de medida cautelar, da mesma forma encarrega-se parte da doutrina da exigibilidade dos pressupostos fumus boni iuris e periculum in mora, difundidos amplamente nas medidas cautelares da esfera civil para obtenção da tutela antecipada. O primeiro dos requisitos está atrelado à existência material da infração, bem como a um indício mínimo de autoria. Itens que se encontram ainda na fase de inquérito policial, cabe ao juiz verificar do seu cabimento à luz dos princípios que cercam a teoria do delito, pois são requisitos estes também que justificam a justa causa para a proposição da ação penal. Já o perigo da demora encontra-se exigido pelo legislador pátrio quando se refere à decretação da prisão preventiva para garantia da ordem pública ou para a assegurar a aplicação da lei penal. Dentre as medidas cautelares previstas no ordenamento processual penal pátrio temos a prisão temporária, criada pela Lei 7.960/89 com a finalidade de banir a prisão para averiguações e a prisão em flagrante, que representa verdadeira exceção à regra de que ninguém será preso senão por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, como se constata pelo inciso LXI, do art. 5o de nossa Carta Política. É interessante, entretanto, a redação dos artigos que regulam a prisão em flagrante, pois, uma vez homologada a prisão e não concedendo o juiz à liberdade provisória ao acusado, optando em manter a prisão, já não o faz porque mantém a prisão em flagrante, mas por achar estar presentes os autorizativos da prisão preventiva. Caso contrário, ouvido o Ministério Público, deverá lhe conceder liberdade provisória, submetendo-o ao comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação da medida. A terminologia “pode” inserida no parágrafo único do art. 310/CPP pela Lei 6.416/77 não deve ser interpretada pelo juiz como mera faculdade, mas ação cogente, um dever do magistrado, já que a regra passou ser a defesa em liberdade, em sintonia ao que estabelece nossa Carta Magna em seu art. 5o, LXVI: “Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”, consubstanciado pelo parágrafo único do art. 310/CPP. Por fim, tida como a mais importante das cautelares de restrição à liberdade é a prisão preventiva. Para sua adoção, necessária a satisfação, por completo, dos pressupostos cautelares fumus delicti (prova de existência do crime e indício suficiente de sua autoria) e do periculum libertatis (garantia da ordem pública, conveniência da instrução
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É o entendimento de Domingues e Ramos Méndez: “Las medidas cautelares constituyen un remedio jurídico al problema de la forzosa lentitud del proceso. Como se ha dicho acertadamente, responden al compromiso entre hacer las cosas pronto y hacerlas bien. Siendo la dimensión temporal inmanente al propio concepto de proceso, debe encontrarse una solución que garantice que el objeto litigioso permanecerá inalterado durante toda la pendencia del mismo, y que, en definitiva, la sentencia que se ha dicho será una sentencia eficaz, por proyectarse sobre la misma realidad económica existente a la iniciación del proceso. Las medidas cautelares tienden esencialmente a garantizar la eficacia de la sentencia, mediante una anticipación limitada de los efectos normalmente derivados de su ejecución.” Apud JARDIM, Afranio. Direito processual penal, p. 246. JARDIM, Afrânio. Op. cit., p. 250. Expressão usada pela primeira vez pelo grande Calamandrei em seu célebre livro Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, Padova, Cedam, 1936, p. 89.
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criminal ou assegurar a aplicação da lei penal) presentes no caput do art. 312/CPPB. Não cabendo, entretanto, esta medida cautelar nas hipóteses de crime culposo, contravenção penal, e crimes em que o réu se livre solto, independente de fiança, pode ser a prisão preventiva decretada em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal (art. 311/CPP). Bem coloca Ferrajoli que a hipótese ventilada de uma prisão ante iudicium, pouco importando o fim para o qual foi associada, choca-se frontalmente com o princípio da jurisdicionalidade, que consiste, segundo seu entendimento, não apenas no poder do indivíduo ser detido pela ordem de um juiz, porém sê-lo apenas com base em um juízo.27 O pressuposto do fumus delicti está claro no próprio artigo 312, que determina a necessidade de prova de existência do crime e indício suficiente da autoria. Como primeiro elemento deste pressuposto, espera-se a materialidade do crime; a conduta típica. Entretanto, a mera existência de uma conduta típica, como bem sabemos, não basta para configurar-se o crime, sendo necessária também a existência da antijuridicidade, excluindo-se, da mesma forma, todas as hipóteses excludentes de ilicitude (art. 23 do CPB), quais sejam: estado de necessidade; legítima defesa; estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de um direito. Os indícios suficientes de autoria estão ligados necessariamente ao mínimo necessário para o convencimento do magistrado. Entretanto, estamos diante de dois conceitos lógico-aritméticos, de possibilidade e probabilidade. Deve, enfim, ser proporcional. Os mesmos requisitos que demandam contra um suposto criminoso podem não demandar contra outro. As lições do Marquês de Beccaria no custo de sua liberdade nos ensinam sobre a proporcionalidade das penas e das medidas de coercibilidade ante os diversos fatos típicos de nosso diploma legal. Ensinou-nos ainda que o cárcere, por sua natureza penosa, dever durar o menor tempo possível. Inexistindo tais pressupostos, estamos diante de evidente ilegalidade, que tem como remédio unicamente a interposição da ação de habeas corpus. De extrema relevância, e já de forma sucinta abordada, a prisão em virtude de decisão condenatória recorrível também possui natureza
cautelar, e objetiva resguardar o resultado em definitivo do processo, em face do provável perigo de fuga, para se eximir da aplicação da sanção penal que, em primeiro grau, já lhe fora imposta. O princípio da presunção de inocência termina com a sentença condenatória, tendo sido tal entendimento inacreditavelmente sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça em ementa de no 9: “A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência”. No nosso entendimento, a forma como está previsto o art. 594 do CPP atenta não só contra a presunção de inocência como ao duplo grau de jurisdição, ambos princípios previstos na Constituição pátria, e que não poderiam ser preteridos à vista do texto normativo de inferior escala, não restando dúvidas, portanto, de uma verdadeira situação de perigo na falta de critérios mais eficientes para a implantação da medida. Por fim, tratamos da prisão decorrente de pronúncia, prevista no ordenamento do júri, que não nos parece de todo lógica, uma vez que a simples pronúncia não se trata de um juízo de condenação, mas mera admissibilidade da acusação. Assim, analisadas individualmente as medidas cautelares no processo penal, nos parece evidente que se trata, efetivamente, de decisão discricionária, onde o único amparo que temos para sua legitimação é o dever constitucional de motivação, onde o convencimento quanto à necessidade e conveniência, além dos requisitos legais, devem ser claramente demonstrados. Ainda, cabe às autoridades judiciais questionar da efetiva necessidade de uma medida tão extremada, e perigosa, adotando-a de forma subsidiária, como ultima ratio, devendo ser evitada a todo custo, à vista do seu caráter de punição antecipada, uma vez que uma medida cautelar jamais pode ter como finalidade a punição do acusado, fim este exclusivo da sanção penal.
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FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., pp. 555-556.
3.3. O Tempo no Processo Penal e a Função Garantista Pensar o tempo no processo penal exige de nós, primeiramente, pensar na condição em que transpomos o conceito de tempo ao próprio direito. Tendo em vista que o direito leva, consigo, o caráter de estrutura de expectativas, é interessante neste tópico lembrar alguns conceitos luhmannianos, para quem a discussão em torno da idéia de tempo está implícita na própria noção de sistema jurídico. Para Luhmann, 203
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A estreita relação entre o direito e o tempo já se insinua na normatividade enquanto transposição temporal, e até mesmo já no caráter do direito enquanto estrutura de expectativas – mas apenas se insinua, permanecendo inicialmente impenetrável. A expectativa contém um horizonte futuro da vida consciente, significa antecipar-se ao futuro e transcender-se além daquilo que poderia ocorrer inesperadamente. A normatividade reforça essa indiferença contra eventos futuros imprevisíveis, busca essa indiferença tentando assim desvendar o futuro. O que acontecerá no futuro torna-se a preocupação central do direito. Quanto futuro será necessário para que se possa viver sensatamente no presente, isso constitui uma variável essencialmente evolutiva, e aí reside o ponto onde as mudanças nas necessidades sociais invadem o direito.28
imprescindível, pois ninguém pode mudar tudo ao mesmo tempo”. O passado surge, agora no presente, como status quo dos sistemas, do qual tem que partir qualquer mudança significante, enquanto aspecto não mais evitável do futuro. Toda inovação tem que se acoplar ao já existente, já conhecido, não modificado. Assim, o direito se faz conjuntamente com o tempo e as mudanças que ele agrega à sociedade e à transmutação de valores antes inexistentes. A positivação, então, não se faz apenas com a imposição normativa, mas inclusive com a adotação de procedimentos que possam dar eficácia às normas. Como bem observa Cristiano Paixão Araujo Pinto,30
E, seguindo as idéias por ele postulados, somente é possível compreender a positividade, ou seja, o princípio da variabilidade estrutural do direito, quando visualizamos o presente como conseqüência do futuro, como decisão. Ainda de acordo com Luhmann, o tempo pode ser imaginado como um esquema infinito da complexidade do mundo, residindo nele, ao mesmo tempo, a possibilidade de “descolar” o futuro dos acontecimentos passados e dos acervos que sempre acompanham o presente em permanente progressão. Entendendo o tempo sempre como possuidor de uma história já coletada, mesmo assim ele não tem o condão de fixar, por si só, o futuro, deixando-o em aberto, e aumentando, portanto, o número de possibilidades que nunca puderam se tornar presentes e, com isso, passadas. “Tendo em vista um futuro em aberto, porém, o presente evidencia-se ao mesmo tempo como seleção entre outras possibilidades que o futuro tinha indicado”.29 E o passado, muito antes de ser descartado, adquire outro significado no sistema jurídico, não estabelecendo a necessidade de sua permanência, uma vez que se apaga a idéia conservadora de que o antigo normalmente é melhor do que o novo, produzindo, na verdade, “um efeito de ordenamento que – dentro de limites variáveis – continua
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LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985, p. 166. Idem, pp. 168-169.
como o mero recurso à legislação não é suficiente para resolver problemas jurídicos – e isso foi observado no estudo da inclusão da idéia de produção de legislação como rotina dos Estados modernos –, o sistema jurídico precisa operar mediante conceitos como “dogmática” e critérios como a casuística oriunda das interpretações sucessivas emitidas pelas cortes de justiça. E, em se tratando de Direito Penal, temos que o mesmo diz respeito à restrição de direitos e/ou liberdades individuais pela prática de condutas preestabelecidas, com sanções pré-cominadas em uma legislação aprovada, vigente e aplicável. Assim, por definição de crime temos a conduta típica, antijurídica e culpável. Fácil seria tomar a decisão em matéria penal se tal atividade fosse simplesmente resumida à atividade judiciária de, após analisar o caso concreto, ver se este se subsume à norma codificada, e aplicar a sanção nela existente. Entretanto, o Direito Penal, por sua natureza, impossibilita o rigorismo típológico a que se propõe, ensejando larga margem de apreciação judicial, devendo a verificação dos fatos não se ater à subsunção lógica dos fatos ao tipo penal, senão a uma apreciação decorrente da realidade, a qual propicia poderes efetivos ao juiz, que longe da arbitrariedade, tem em suas mãos a discricionariedade, ou seja, o poder de decidir de acordo com um caso que se apresente, frente a um sistema que envolve contingências e complexidades, em uma sociedade em permanente evolução. 30
PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Modernidade, tempo e direito. Belo Horizonte, Del Rey, 2002, p. 266. 205
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Estamos diante, efetivamente, de uma problemática em torno da decisão, e isso se torna cada vez mais evidente na medida em que existe uma clara distinção entre legislação e jurisprudência, sendo esta última, na verdade, uma adequação da primeira ao fato concreto. A função do juiz seria, então, não apenas de interpretar a lei genérica e a possibilidade de sua aplicação ao caso particular, mas, em não havendo essa “ligação direta”, criar novas possibilidades de solução. Luhmann, ao falar sobre o processo de decisão judiciária, alerta que o juiz terá que encontrar as regras gerais para suas decisões, uma vez que nem toda situação já está regrada pelo ordenamento jurídico. Toda decisão é um risco, e a abreviação desta aumenta, proporcionalmente, o mesmo. Assim, a ligação existente entre tempo, direito e processo penal nos exige também um estudo mais aprofundado de como se dá a cognição processual, buscando, em suas origens, o motivo pelo qual defendemos a manutenção da técnica de cognição plena em contraposição à sumária como necessária na esfera processual penal. Kazuo Watanabe, no tópico, nos oferece de forma esclarecedora a compreensão histórica da cognição que se apresenta importante para o desenvolvimento do tema em análise. Vemos, modernamente, que o termo cognição é utilizado tanto para designar a atividade do juiz quanto o próprio processo, além, é claro, de também indicar a natureza da atividade do órgão judiciário. A cognição, podemos resumidamente colocar, é um ato de inteligência, lógico, portanto, que consiste na consideração, análise e valoração de alegações e provas produzidas pelas partes. A “lógica” aqui defendida se extravasa através da motivação inerente à decisão, onde se verificará se houve tal processo de cognição de forma global no processo. Quando é feita uma tomada de decisão, deixa-se de escolher todas as demais e é certo e comprovado que o magistrado, ao decidir, apenas afirma uma convicção inicial do que ele “sentiu” no processo, lançando tal sentimento através de uma adequação normativa também preexistente, adaptável ao caso em questão. A motivação, como vimos, serve não somente como garantia das partes, mas como verdadeiro critério de dissonância cognitiva, para auxiliar o magistrado a crer que a sua decisão não foi somente a “melhor” decisão, mas a “única” possível e mais justa naquela situação, após um processo de plena cognição. No processo penal, vemos a relevância de se utilizar uma técnica de cognição plenária ao tratar de garantias como o direito de defesa, componente necessário do “devido processo legal”; sendo a obrigatoriedade da motivação, como observa Taruffo, efetiva garantia
de seu controle, não no sentido de que as partes de fato tiveram, ou não, a possibilidade de valer-se de todos os instrumentos postos às sua disposição pelo sistema processual para o idôneo exercício de suas razões, mas sim “specialmente il fatto che il giudice abbia preso adeguatamente in considerazione le istanze e le allegazioni in cui l’esercizio del diritto di difesa si è in concreto manifestato”.31 Entendendo o processo como um efetivo instrumento de tutela dos direitos, ou, na linguagem por nós adotada, um instrumento de garantias, essa instrumentalidade somente se dá no momento em que se efetiva o poder fiscalizador do processo de que sejam oferecidos aos sujeitos todos os meios necessários e posssíveis ao amparo do indivíduo (seus direitos e interesses) contra qualquer forma de manifestação arbitrária por parte do Estado, seja em forma de violação ou ameaça de ofensa, ou mesmo, denegação de justiça. Ante a não-observação de princípios basilares, previstos constitucionalmente como são as garantias ao devido processo legal, com o seu devido tempo e toda a forma de defesa possível e razoável, admitindose o princípio da igualdade como uma busca da paridade de armas de acusação e defesa, torna-se ineficaz a criação de novas fórmulas que visem apenas acelerar o procedimento ou evitá-lo, através de “barganhas” judiciais e extrajudiciais, sendo impossível dar-lhes validade no momento em que estão afrontando a Constituição. Repensar o processo de sumarização no/do processo penal e, enfim, a impossibilidade de uma teoria única do processo é tarefa árdua, que deve ser feita diariamente, pois assim como a sociedade, o Judiciário também não acompanha o tempo e suas (r)evoluções, e a questão que deve ser respondida para tal reflexão é a quem serve o Direito Processual Penal.
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Conclusão Deparamo-nos com um número cada vez maior de demandas e uma hiperinflação de leis para novos direitos. E do processo, entendido, num plano geral, como instrumento de realização do direito material ou instrumento de composição de litígios, como preferem os processualistas civis, cobra-se efetividade com a mesma velocidade dos conflitos. O que vemos estampado em nosso meio social é que, sob o ponto de vista do Estado, o Direito Penal é forma de controle político e moral 31
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da sociedade, que usa o processo como instrumento de perfectibilização do mesmo, sendo cada acusação um “suspiro de alívio” à sociedade que se desencanta com o fruto de seus próprios males. Sob a ótica da vítima, temos explícita a vingança, impossível de ser exercida pela autotutela, porém levada à plena eficácia no momento em que se coloca o criminoso em frente a um Juiz, que representa o Estado, para julgá-lo. Já em relação ao réu/acusado, temos no processo a única garantia de que serão respeitados os princípios acusados na Constituição e nos diplomas infraconstitucionais. Este tipo de pensamento não se ajusta com a teoria garantista, que busca, mais do que tudo, uma legitimação para o julgamento do caso penal, através do respeito das normas jurídicas à Constituição e aos postulados dos direitos fundamentais. E, mais do que isso, a preservação de um efetivo “Estado de Direito”, não sendo apenas este Estado regulado por leis, mas sim um Estado que nasceu com as modernas Constituições, e se caracteriza, no plano formal, pelo princípio da legalidade, em virtude do qual todo poder público, seja ele legislativo, judicial e executivo, está subordinado às leis gerais e abstratas, que disciplinam suas formas de exercício e cuja observância se dá pelo controle de legitimidade por parte de juízes separados do mesmo e independentes. Já no plano substancial, pela funcionalização de todos os poderes do estado ao serviço da garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, mediante a incorporação limitativa em sua Constituição dos deveres públicos correspondentes, isto é, das proibições de lesar os direitos de liberdade e das obrigações de dar satisfação aos direitos sociais, assim como daqueles correlativos poderes dos cidadãos de ativar a tutela judicial. Se a redução de tempo, a velocidade, atinge os planos das relações contemporâneas, por óbvio o processo penal também é atingido por idêntica demanda de aceleração. Vemos isso claramente no papel cada vez mais destacado das prisões cautelares no processo penal, as quais, longe de assegurarem a preservação social ou uma tutela da futura instrução penal (instrumento do instrumento), servem fundamentalmente como antecipação sancionatória. A busca da celeridade do processo penal somente poderá ser admitida sob o prisma garantista no momento em que observar respeito a todos os direitos individuais, tutelados constitucionalmente (inclusive), porém nunca pela restrição dos mesmos, com abreviação de procedimentos que limitam a defesa e decisões judiciais inaudita altera pars, eliminando o contraditório. 208
Reflexões Crítico-Fragmentárias sobre a Sentença Penal Aramis Nassif Tenho defendido que a sentença penal é o ato de reduzir a um espaço documentado, estrito, oficial, praticado por juiz competente, toda a gama de circunstâncias e emoções visíveis e descritíveis informadas com as garantias constitucionais do processo, ocorrentes em um fato praticado com necessária intervenção humana, que a lei traduz como crime, para o efeito de confirmar ou desconstituir, determinando sanções legais, ou preservando o estado de inocência do cidadãoacusado. A partir de tal resultado de uma observação constante do local de atuação junto à magistratura nacional, o viés conceitual supra impõe algumas reflexões, dispostas em fragmentos que seguem, sem que, necessariamente, haja defluxo lógico entre eles. São pontas que podem ser ligadas ou não, mas compõem o todo observado nas decisões judiciais penais. 1. Quando John Rawls1 afirmou que a característica da justiça processual imperfeita é que, embora haja um critério independente para o resultado correto, não há qualquer processo prático que assegure que ele será atingido, serve mais como efeito estimulante a que os juízes reflitam sobre a sentença, do que como resultado desanimador do trabalho de um cientista. A advertência pessimista permite a conclusão de que, se é imperfeita, é porque, ainda que aplicadas corretamente normas de direito positivo, a busca para determinação da verdade não garantem, àquelas, a justiça da decisão: sempre existe a possibilidade de um inocente ser condenado. Todavia, é possível admitir, contrariando temerária e parcialmente o pensamento de Rawls, que a jurisdição não se resume à observância da igualdade dos interesses conflitantes no processo penal, quais
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RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Lisboa: Editorial Presença, 1993. 209
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sejam, a do Estado buscando a punição e do indivíduo, em reação, a preservação de seu estado constitucional de inocência. O desequilíbrio, sempre possível de existir, manifestar-se-á no emprego dos princípios constitucionais inerentes à jurisdição, mormente quando seu exercício eclode na prolação da sentença. Não há como alcançar um resultado seguramente mais justo, se não com rigorosa observância da principiologia processual-constitucional. A filtragem estatutária necessária de se fazer do texto legal que versa sobre a sentença em nosso Código de Processo Penal leva, inevitavelmente, à conclusão de que muitas normas, especialmente as que se referem à emendatio e mutatio libelli (arts. 383 e 384, CPP), que substituem, pela força normativa, a solução absolutória que seria a única possível na contingência do momento em que devem ser adotadas, consolidam uma das mais graves agressões a preceitos superiores assegurados no sistema acusatório, imparcialidade do juiz, inércia jurisdicional, ampla defesa, etc., o que encaminha à irremissível proscrição dos referidos institutos processuais do sistema jurídico brasileiro. Os princípios que são aplicáveis à sentença, que tem as suas especificidades, mas não afasta o registro e aplicação de todos os demais que se impõe no processo penal, nem significam seu desprestígio, os quais os devem ser considerados em sua formação endógena e que cercam o ato de julgar. Se desrespeitado qualquer deles, a sentença não terá existência legítima. Assim, o magistrado só sentenciará – pena de nulidade – se realizadas todas as garantias do devido processo legal, contraditório, etc. A ênfase pretendida, pois, diz respeito à incidência direta sobre a sentença. A releitura da positividade processual-penal deve ser feita sob a ótica da Constituição, pena de ser consumada violência contra a própria Carta.
vocação burocrática, pretendendo que a sentença seja a demonstração de sua inexistente – mas sempre afirmada – neutralidade. O discurso judicial, com retórica persuasiva, transporta a afirmação ideológica do magistrado, marcada não por tendências facciosas, partidárias, etc., mas entranhada no espírito do julgador como elemento estimulante para a inspiração de justiça, da coragem de romper, se necessário, com o sistema, transcendendo os lindes jurídicos, alimentando-se nas ciências que circunvagam o pensamento humano, inafastáveis da sentença na sua necessária construção transdisciplinar e conseqüência abrangente, para consecução de decisão mais justa. É axiomática a necessidade de uma magistratura responsável. Todavia, a exigência da independência e imparcialidade não se confunde com imposição de neutralidade, pois, como ensina Cappelletti, citado por Rui Portanova,2 “todo o elemento do ato (humano em geral e jurídico em especial) se reporta sempre a ‘valor’, o que é precisamente o que põe em movimento, é causa (origem) e fim (meta) da vontade humana”; “a pretendida ‘neutralidade’ ou ‘pureza’ radicam numa ideologia bem clara: precisamente a da aceitação e a da conservação”. Seja mesmo para decidir com a vocação mais conservadora e positivista, seja com vinculação à corrente mais progressista, o magistrado precisa ser independente no tanto que se refira ao efetivo exercício jurisdicional, como na liberação de sua carga ideológica, desde que adequada, esta, à sensibilidade social, sem ver desprotegido o indivíduo, como o que levou Antonio Carlos Wolkmer (2000, p. 187) a proclamar que se trata “de uma postura equivocada daqueles que acreditam que os magistrados, na missão que lhes compete, mesmo pretendendo agir com inteira isenção e projetando a imagem da excelsa eqüidistância, são inteiramente orientados por diretrizes neutras e princípios inatacáveis que pairam acima das demandas abusivas, das desregrações múltiplas, dos interesses e dos conflitos de classes”.3 Desta forma, cogente afirmar que a imparcialidade, aqui assumida como uma obrigação derivada do princípio do contraditório, mais não é
2. Para consecução da finalidade processual óbvia – instrumentalizar a proteção do acusado – deve ser repelida, na construção da sentença, a imagem do magistrado apolítico, alheio à fenomenologia histórico-social, que faz o direito se ajustar às novas exigências e necessidades da sociedade, preservando a individualidade como direito e garantia fundamental do cidadão. O momento constitucional não se afeiçoa à sentença prolatada por juiz sem a dimensão cultural-coletiva, encasulada, ensimesmada, com 210
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PORTANOVA, Rui. Motivações Ideológicas da Sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 63, 1994. WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. 211
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do que uma regra técnica de observância de algumas garantias processuais, inclusive e especialmente aquelas com vigor constitucional.
como legal, ou seja, como´Estado de direito´. O papel do Direito ou das leis é o de que fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita. A lei é direito para o dominante e dever para o dominado. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa realidade real, isto é, como instrumentos para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados e os dominados se revoltariam”.
3. No ramo do pensamento jurídico quem se afirma neutro exerce uma opção que, mais das vezes, acaba provocando per se, ainda que implicitamente, uma quebra dessa alegada neutralidade para não incorrer na exposição do compromisso de proteção dos direitos e garantias fundamentais dos criminalmente acusados, elegendo manter o status quo, ainda que a expressão legal adotada resulte em injustiça. A sentença, iniludivelmente, contém uma vontade e – indaga-se – qual a preponderante: a da lei (legislador)? do juiz? ou a do Estado? A lei não se manifesta em vontade, certo que a sentença apenas retira-lhe a abstração, concretizando-a, se for o caso, como resposta justa ao conflito. Mas nem sempre é assim, pois a sentença pode representar exatamente sua contrariedade, desde que ela se projete injusta se aplicada, ou, ainda, que esteja inadequada ou proscrita ao/do sistema pela vontade popular. Para Amilton Bueno de Carvalho, “se a função do juiz é buscar a vontade do legislador, qual a razão de ser do Judiciário? Simples seria deixar ao próprio legislador a tarefa da aplicação da lei”,4 mesmo pensar que levou à insurgência de Wolkmer quando afirmou que “a função jurisdicional transcende a modesta função de servir aos caprichos e à vontade do legislador”.5 Ainda a respeito da ação volitiva exercida sobre a sentença, importa colacionar texto de Marilene Chauí6 (1990, pp. 90-91), que aprecia, num exame único, a intensidade volitiva da lei e do Estado e que, pela correção que o qualifica, deve ser observado pelo magistrado ao sentenciar: “Através do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social, que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento de leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece 4 5 6 212
CARVALHO, Amilton Bueno. Magistratura e direito alternativo. São Paulo: Acadêmica. 1.992, p. 19. WOLKMER, Luiz Carlos. Revista AJURIS, 34/95. CHAUÍ, Marilena. O que é Ideologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
Para ela, “a função da ideologia do Estado dirige-se, obviamente, em impedir a provável revolta, dando aparência de legitimidade à legalidade aos cidadãos. O legal seria, nessa imagem oficial, justo e bom”, ensinando, por fim, que “a ideologia substitui a realidade do Estado pela idéia do Estado – ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela idéia de interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela idéia do Direito – ou seja, a dominação de uma classe por meio da lei é substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos”. De ver, assim, ser possível extrair da lição da socióloga que a sentença, mesmo que possa ser instrumentalizada para arrostar o poder estatal, pode ser, ao acolher a pretensão punitiva, o meio de realização ou manutenção do poder do segmento social e político dominante. Se assim é, somente a qualidade ética e armadura ideológica do magistrado poderão levar ao discernimento entre o interesse do Estado com tal conteúdo teleológico (e que nele se esgote), ou de, de através do próprio direito, manter o poder e a efetiva busca do justo. Poderá decorrer um verdadeiro dilema na percepção do magistrado, ou seja, aquele que diz respeito sobre o cuidado que deverá ter em não se tornar, apenas, meio à realização dos interesses da dominação, de um lado, e, de outro, da necessidade de aplicar a lei como resposta justa pela ocorrência do fato incriminado. Sua incumbência (do julgador) é identificar na sentença (e aplicar através dela) os princípios imutáveis de justiça que se lhe induzem a adoção de critérios que tais, com moderação e buscando equanimidade, ainda que em detrimento do direito positivo. A sentença penal, repete-se, deve considerar que, se a solução justa encontra-se na lei, ela deve ser aplicada. Mas, se não, devem ser perseguidos critérios implementares da atividade jurisdicional, até 213
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alcançar a veredicto correto para solucionar o dilema processual, pois o direito é instrumento para descoberta da solução adequada diante do injusto rompimento das relações interindividuais, para que a decisão não se torne um ato de injustiça na composição individual. Por outro lado, ao exame da vontade do juiz, obriga a considerar que ele, mesmerizado, propende a ser excessivamente positivista, com acentuada simpatia pela cômoda interpretação logocentrista da norma. É certo que a imposição de respeito ao sistema normativo e a aplicação da lei abstratamente disponível seja, ao magistrado, a própria justificativa de seu papel jurisdicional. Todavia, como já referido, existem momentos em que deve vencer sua sempre estimulada vocação ao conforto da dogmática jurídica e, para ser justo, provocar a ruptura com o comportamento meramente sistêmico, propulsionando o direito em direção ao seu real destino, qual seja, o de manter (tentar manter) a regularidade das relações intersubjetivas, a partir da satisfação de uma perspectiva criada pelo próprio meio social.
várias formas que ela toma no discurso das pessoas e na vida em sociedade. No entanto, é muito vulgar as pessoas acharem que podem mentir perante as instituições públicas, porque o seu funcionamento é deficiente, ou então alegarem que todos mentem (perante as instituições que tratam dos impostos, da saúde, da educação, da justiça ...Os juízes não podem mentir...”. Acresce-se: a própria dúvida pode perpetuar a mentira para condenar o réu. Se o processo é o instrumental jurídico das garantias do acusado, a sentença é, teleologicamente considerada, seu objeto. Por isto que, por ela, a partir do exame do fato, da prova e da interpretação de direito, é imperativo que os juízes mantenham ou tentem manter a dignidade do cidadão réu, ainda que contrariando o axioma in claris cessat interpretatio, se a ruptura com a rigidez da norma penal tornese impositiva. Acentuado por Warat9 em seus estudos, descobre-se que os magistrados latino-americanos, inclusive os brasileiros, optam sistematicamente pelo positivismo, por sua percepção de que, nele, está o determinismo do controle social, marcado pelo discurso da segurança jurídica e racionalização do legislador no exercício do poder legisferante, a que se submetem incondicionalmente, seja pela indigência criativa, seja pela sua identificação ideológica com a classe inspiradora da montagem legal e mantenedora do status quo. Esta teoria formal/racional mantém antinomia com a teoria realista, ou anti-racionalista, que vê na norma apenas um indicativo, devendo o julgador buscar seu melhor sentido. A sentença deve ser expressão do ceticismo legal do magistrado a partir da observação da fenomenologia social. Mas, ainda com os anunciados progressos, o dogmatismo jurídico, com ou sem razão de ser, ainda é encarado como via única para alcançar segurança jurídica, que decorreria da previsibilidade e uniformização dos julgados.
4. Se o elemento interno da vontade não indica preponderância entre aquelas aparentemente concorrentes (lei, juiz, Estado), é certo que, mesmo antes do processo, durante ele e até mesmo depois, salvo revogação pela res judicata, existe e está identificada uma verdade incontestável: o acusado é inocente, é titular do estado constitucional de inocência. Ele tem a seu favor o in dubio pro inocentiae veritatis e não simplesmente in dubio pro reo, o que obriga o magistrado a alcançar irremissivelmente estado de certeza para alterar a verdade jurídica do acusado, o que poderá ser alcançado apenas mediante prova irrefutável da responsabilidade penal do agente, pois é a verdade e não a autoridade que faz a jurisdição, conforme ensina Ferrajoli7 (“veritas, non auctoritas facit iudicium”). É a mesma lição de António Pedro Barbas Homem,8 quando sustenta que “chegamos, assim, à conclusão de que o problema da verdade antecede o da justiça. Uma decisão não pode ser justa se não for verdadeira. Por esta razão, não podemos admitir a mentira e as
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FERRAJOLI, Luigi, Derecho y razón – Teoría del garantismo penal. Trad. Espanhola: Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayón Mohino, Juan Terradillos Basoco, y Rocío Cantarero Bandrés. Madrid: Trotta, 4a ed., 2000. HOMEM. António Pedro Barbas. O Justo e o Injusto. In: O que é o Direito? Lisboa: AAFDL, 2001.
5. Os únicos sinais de revolução surgiram com o movimento do direito alternativo e, mais atualmente, com o garantismo penal, percebido da assunção de nova postura de operadores do Direito, que, comprometidos com nova ética e clara estatura política, assumiram a responsabilidade de refazer a leitura (ou fazer a releitura) do direito 9
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito; epistemologia jurídica e modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995. 215
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positivo, orientando suas decisões em favor dos mais fracos na estratificação social, tornando presente em suas decisões a principiologia constitucional e geral do direito, acompanhando, assim, a teorização da práxis revolucionária. O Juiz não decide para a maioria enquistada no sistema orgânico que compõe, ainda que a decisão possa vir ao seu encontro. Sua independência corrige as próprias distorções provocadas por essa (duvidosa) maioria. A expressão superegóica da atividade jurisdicional estabelece como diretriz básica o reconhecimento político do controle que o juiz, via decisões fundamentadas, exerce sobre a sociedade e os outros poderes do Estado. Neste mister, a sentença é o mais claro demonstrativo de que o magistrado, ainda que positivista e conservador, elege opções, expressa seu convencimento e aproxima-se da satisfação de interesses comuns da sociedade, não necessariamente majoritários ou de apenas alguns particulares. Por isto mesmo que José Eduardo Faria,10 analisando as transformações do Judiciário, do qual não está ausente seu maior protagonista – o juiz –, adverte que “se há um mérito no movimento dos magistrados gaúchos em favor do ‘Direito Alternativo’, em que pese o fato de não efetuarem com clareza essa distinção entre direitos civis e políticos, por um lado, e direitos sociais e econômicos, por outro, é o de terem questionado as concepções exegéticas comuns ao Estado liberal clássico; concepções que, em nome da certeza jurídica, valorizam a igualdade formal sem permitir aos intérpretes que levem em conta a desigualdade real de sujeitos de direito localizados em espaços sociais fragmentários; espaços comunitários, associativos e corporativos diferenciados, que delimitam e mediatizam materialmente o tradicional princípio da igualdade formal. Ao enfatizarem a importância das funções políticas do direito, valorizando tanto as leis e os códigos em vigor quanto as teorias jurídicas em circulação como instrumentos de ação coletiva, esses magistrados chamaram a atenção para um fato em si óbvio (mas cujo reconhecimento público, pelo Judiciário, implicaria a ruptura de seu discurso institucional tradicional): se a solução judicial de um conflito é em sua essência um atributo de poder, na medida em que pressupõe não apenas critérios fundantes e opções entre alternativas, implicando
também a imposição da escolha feita, toda interpretação, toda aplicação e todo julgamento de casos concretos sempre têm uma dimensão política; por conseguinte, a Justiça, por mais que seu discurso institucional muitas vezes enfatize o contrário, não pode ser, na prática, um poder exclusivamente técnico, profissional e neutro A decisão será sempre um instrumento de crítica da lei, porque buscará a preponderância axiológica no concurso de interesses e necessidades em embate no processo. Em verdade, a demonstração da função política dos magistrados suscita reação de corrente conservadora no sentido de qualificar a apoliticidade dos mesmos como corolário do exercício jurisdicional, levando, como possível demonstrar nos julgados dos últimos anos, à postura extremamente severa, ante o pretexto do aumento da criminalidade e discursos, apregoando, naqueles, a responsabilidade pela impunidade. Se lhes passa imperceptível, porém, que essa conduta apolítica mais não produz, por sua vez, que um ato político, vez que reflete a adesão axio-ideológica dominante, de maneira submissa e passiva daí ...la razón de la obstinada resistencia manifestada en general por la mayoría de los jueces en las sociedades post-industriales, en las que la ideología del derecho igual y abstracto es hegemónica se presentes, junto a la adversión intelectual de asumir otra adquisición teórica, también como el reflejo de una precisa posición política. Por el contrario, el reconocimiento de un ineliminable momento político en el ejercicio de la función jurisdiccional supone una actitud constantemente crítica no só1o respecto de esas mismas prácticas de la jurisdicción ancladas en el supuesto apoliticismo de los jueces sino, en particular, del contradictorio derecho vigente, como ha venido sucediendo en Italia entre aquellos democráticos principios constitucionales (Art. 3.2 Const.), y amplios sectores del ordenamiento jurídico vigente.11
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FARIA, José Eduardo. As Transformações do Judiciário em face de suas responsabilidades sociais. In: Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, São Paulo: Malheiros Editores, 1994.
6. Um dos graves problemas que o magistrado encontra é o absoluto desconhecimento do direito pelo cidadão, na medida em que, ao ditar o veredicto, o faz para alguém que, mesmo sabendo pela intuição ética qual o comportamento ou conduta adequados socialmente,
BERGALLI, Roberto. Usos y riesgos de categorías conceptuales: conviene seguir empleando la expresión uso alternativo Del derecho? In: Anais: Sociología Jurídica y Política en América Latina. México: Workshop, 1993. 217
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desconhece as conseqüências jurídicas da decisão, ao menos até o momento em que lhe sejam cassados seu status libertatis e direitos políticos, obviamente na hipótese condenatória. Menos grave pelas conseqüências, mas não menos importante, é a ignorância decorrente da sentença absolutória, vez que, em qualquer das alternativas, o acusado ficará marcado por seqüelas em sua dignidade, pois indiscutível a estigmatização que se lhe acarreta o processo criminal. Por isto que Aury Celso de Lima Lopes Junior afirmou “(...) a grave degeneração do processo permite que se fale em verdadeiras penas processuais, pois confrontam violentamente com o caráter e a função instrumental do processo, configurando uma verdadeira patologia judicial, na qual o processo penal é utilizado como uma punição antecipada, instrumento de perseguição política, intimidação policial, gerador de estigmatização social, inclusive com um degenerado fim de prevenção geral”.12 Certo que o preceito constitucional da ampla defesa (art. 5o, XLVI, CF) assegura-lhe a leitura e a reação recursal através de um defensor técnico, mas o prejuízo existe em que está assentado que ele pode defender-se pessoalmente, seja através do interrogatório, seja orientando seu advogado, seja para manifestar sua inconformidade com a sentença, que será tomado, necessariamente, como interposição de recurso. Assim a sentença surge como uma leitura de direitos (ou de sua perda) para o réu, especialmente àquele condenado, que vai entendêla, todavia, tão-somente nas conseqüências da decisão ou estreitadas no entendimento que o juiz teve do fato, mas jamais pelas razões jurídicas que levaram ao resultado. Importante, pois, que a linguagem da decisão judicial seja acessível ao seu destinatário fundamental e que, de sua leitura, seja-lhe permitido assumir a postura que entenda mais correta diante do julgamento, inclusive, se for o caso, conformando-se com o convencimento do magistrado ou, então, exercendo a opção recursal, que será, então, abastecida juridicamente pelo seu defensor.
concordância e obediência à hierarquia de princípios do processo explícitos ou implícitos no Direito Constitucional pátrio. Ele se vale, ainda assim, de outro princípio, qual seja, o da adequação às necessidades e exigências da sociedade em determinado momento histórico, não mais sendo possível submetê-la a normas de falecida teleologia. Decorre deste sentido da adaptação uma extraordinária produção cultural, pois a sentença vai influenciar diretamente as relações intersubjetivas, legitimando práticas vedadas no texto legal (v.g., descriminalização de condutas socialmente aceitas), identificando direitos subjacentes à expressão da norma inferior (v.g., a função social da propriedade nos tipos penais de esbulho, etc.), afluindo para a construção de lege ferenda, e, assim, inspirando a criação de normas, sem que o tivesse feito diretamente, pelo que resulta mantida a independência dos poderes. Por isto que a sentença transforma o direito e produz cultura, vez que, da abstração da norma quando injusta ou inadequada, patrocina a ruptura com o status quo jurídico positivista, autorizando, inclusive, que ao longo do tempo a própria sociedade seja, no segmento da regulamentação das relações interindividuais, estudada e, de seu conjunto (jurisprudência), especialmente na ruptura com o sistema normativo-positivo, sejam identificadas as causas evolucionárias e transformadoras do ambiente comunitário, pena de majorar o conflito social de que resultará perda da legitimação democrática perante a comunidade em geral, e, em particular, com os excluídos ignorantes e marginalizados, cujos direitos e garantias lhe incumbe assegurar e proteger, o que será identificado (se lhe fará justiça) no momento histórico da observação antropológica futura.
7. Quando o magistrado, na necessidade imperativa de fazer da sentença um objetivo de justiça, contrariar a norma abstratamente positivada, o fará – repete-se necessária e exaustivamente – em
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LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. A instrumentalidade garantista do processo de execução penal. In: Crítica à execução penal. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2002. 219
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1. Introdução ao Tema Antes de adentrar-se o tema do presente artigo, creio ser válido ressaltar que o estudo de qualquer instituto processual penal deve partir da premissa já sinalada por Figueiredo Dias, qual seja, a de que “(...) o direito processual penal é, fora de toda a dúvida, um dos ramos mais fortemente ‘ideologizados’, dada a directa conexão da sua temática com os pressupostos políticos fundamentais de uma comunidade e com a ‘concepção do homem’ que lhe subjaz”.1 Tal assertiva nada mais faz do que ressaltar que o “dever ser”, imposto pela norma (lato sensu), jamais poderá ser dissociado de fatores sociais, políticos e econômicos, presentes em um determinado momento histórico de uma específica sociedade. Nesta seara, ao entendermos que “(...) existem no processo penal três missões – uma missão jurídica (ordenada à realização do direito substantivo), uma missão política (ordenada à salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias do arguido) e uma missão social (ordenada à manutenção da pacífica convivência social) (...)”,2 perceberemos que a produção legislativa de direito material e processual, assim como a incidência das normas frente aos casos em concreto, dependerá, sempre, de uma opção ideológica por parte do Estado, onde tais fatores, encontrados em permanente tensão, irão se realizar com maior ou menor intensidade. A busca de valores (ideologia lata), enquanto informadores da criação e incidência das normas, traz consigo uma primeira conseqüência, qual seja, a diferenciação entre legalidade e legitimidade desta
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DIAS, Jorge de Figueiredo apud PATRÍCIO, Rui. O princípio da presunção de inocência do argüido na fase do julgamento no actual processo penal português (alguns problemas e esboço para uma reforma do processo penal português), Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2000, p. 22. PATRÍCIO, Rui. O princípio da presunção de inocência do argüido na fase do julgamento no actual processo penal português (alguns problemas e esboço para uma reforma do processo penal português), p. 20. 221
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mesma norma. Desta maneira, sendo legítima a norma que, através de sua operacionalização, resguarde valores compatíveis para com a espécie de sociedade em que se encontra, e considerando-se que nosso país escolheu, como postulado político, a consagração de uma democracia de direito, parte-se, em tese, do princípio de que a produção legislativa deverá estar vinculada a valores que, primeiramente, resguardem o indivíduo como valor máximo a ser preservado, ainda que em detrimento, por vezes, de um pretenso “interesse social”.3 Indo além, ao entendermos que nos encontramos sob a égide de um Estado Constitucional de Direito, partimos da premissa de que a Constituição Federal serve de “(...) ordem jurídico-normativa fundamental vinculativa de todos os poderes públicos”,4 ou seja, tal documento, ultrapassando a fronteira de mera “carta de intenções”, “(...) trata-se de uma verdadeira ordenação normativa fundamental dotada de supremacia (...)”.5 Tais postulados – político e normativo – traduzem-se, então, da seguinte forma: “A norma constitucional que traga em si a proteção a direitos fundamentais do indivíduo é que irá nortear a produção legislativa infra-constitucional e vincular a interpretação e aplicação destas leis frente ao caso em concreto”. Ainda que tal assertiva nos pareça óbvia quando observada pelo prisma lógico-formal de sua estrutura, não se pode incorrer, como adverte Ferrajoli,6 em uma falácia garantista, qual seja, a de que basta uma “lei boa” (ou uma estrutura adequada) para que os resultados também os sejam. Para tanto, basta o destaque da crítica tecida por Nilo Batista ao sistema e à disfunção entre o “legal” e o “real”: “(...) o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas,
integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas”.7 Continuando, “(...) o sistema penal é também apresentado como justo... quando de fato seu desempenho é repressivo, seja pela frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade de regular a intensidade das respostas penais, legais e ilegais”.8 Por fim, conclui: “(...) o sistema penal se apresenta comprometido com a proteção da dignidade humana... quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua clientela”.9 O cotidiano forense permite observar situações que desprezam a estrutura lógico-formal de um Estado Constitucional de Direito. A sociedade, induzida a um estado de emergência por força de uma mídia amplificadora de desgraças, assim como pela constatação empírica, e ainda não racionalizada, de que o Direito Penal não cumpre para com os objetivos que lhe emprestam, notadamente a manutenção da paz social, clama por uma intervenção máxima do Estado nas liberdades do indivíduo, passo este facilmente observado junto aos insistentes debates acerca da legitimidade da pena de morte. Os poderes da república, por sua vez, voltados à atuação simbólica de suas atividades, fornecem a “resposta esperada”. No seio do Legislativo criam-se leis direcionadas, exclusivamente, à satisfação de tais clamores. O Executivo, fazendo “sua parte”, sanciona projetos e estabelece medidas de “segurança pública” similares às encontradas em qualquer espécie de regime ditatorial. O Judiciário, por fim, representando a relação direta entre Estado e indivíduo, simplesmente corrobora tal situação, através de uma omissividade aguda, aplicando normas de cunho eminentemente inconstitucional. O processo penal, nesta esteira, corroborando a lição de que “(...) a conformação teleológica fundamental do direito penal substantivo exercerá uma influência decisiva na concepção do direito processual penal respectivo (...)”,10 passa a atender a ditos “simbolismos”. De medida limitadora do ius puniendi, transforma-se neste próprio, adquirindo um caráter substantivo que não deveria lhe pertencer, sendo que um dos principais reflexos de tal situação encontra-se junto aos sistemas de prisão provisória que, a par das críticas processuais propriamente ditas, acabam por incorporar, “extra-oficialmente”, uma
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O próprio conceito de “interesse social” traz consigo um problema ontológico e irresolúvel. Neste sentido, Nilo Batista adverte: “(...) que significarão ‘interesses do corpo social’ numa sociedade dividida em classes, na qual os interesses de uma classe são estrutural e logicamente antagônicos aos da outra?” (BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, 3a ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996, p. 26). CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4a ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 245. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 245. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoria del Garantismo Penal, Trad. Perfecto Ibánez et. Al. Madrid: Trotta, 2000, p. 941.
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BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, p. 26. BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, p. 26. BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, p. 26. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal, p. 6. 223
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das funções da pena privativa de liberdade – prevenção geral positiva –, ou seja, se prende provisoriamente por uma necessidade social de punição. Dentre as prisões denominadas provisórias, a modalidade do flagrante adquire singular importância, eis que, associada, pelo senso comum, à “certeza de cometimento de um crime por determinada pessoa” , traz consigo um simbolismo de extrema força política, representada pela “imediata resposta do Estado ao delinqüente”. Através desta modalidade prisional, o Estado e, principalmente, a instituição policial, passam uma imagem de eficiência que não pode e nem é desprezada por este primeiro. Pelo contrário, é justamente em nome desta “eficiência” que se molda o quadro até agora exposto. Por força desta importância simbólica que adquire o flagrante, é que suas modalidades legais e aplicação prática se tornam o objeto do presente artigo. Ao analisar-se o artigo 302 de nosso Código de Processo Penal, constata-se que, das quatro variantes da prisão ali descritas, somente uma trabalha, incontestavelmente, com o conceito de “certeza visual do ato”, sendo que as demais incorporam uma presunção de realização do ato por parte do agente. Desta maneira, trabalhar-se-á com a hipótese de que, tanto em caráter legislativo quanto frente ao Judiciário, ditas variantes, frutos de um modelo totalitário e inquisitivo, configuram-se em atentado contra os postulados de um Estado Constitucional Democrático de Direito que, em tese, deveriam nortear a produção e aplicabilidade de nosso sistema jurídico. Os argumentos utilizados para a contestação das formas de flagrante que se estruturam com fulcro na presunção de realização do ato surgem de um posicionamento garantista frente ao Direito Penal e Processual Penal. Ao adotar-se o garantismo como premissa, e entendendo-se o mesmo como um “(...) modelo interpretativo do sistema penal, como recurso heurístico de legitimação e/ou deslegitimação das normas e práticas do controle social formal”, voltado à preservação das garantias e direitos fundamentais do indivíduo, se objetivará demonstrar que: (1) a Constituição Federal detém caráter vinculante e, sendo assim, “(...) os limites jurídicos das leis e de outras normas jurídicas têm de ser aferidos segundo os parâmetros das normas constitucionais (...)”;11 (2) nossa Constituição consagra o princípio da presunção de inocência, e este, entendido em sua amplitude, traz
consigo, também, reflexos processuais, principalmente no que tange ao tratamento a ser fornecido ao acusado enquanto alvo de persecutio criminis; (3) a única maneira de se relativizar dito princípio se encontra na aplicação de princípio de igual envergadura, no caso, o da proporcionalidade; (4) a prisão em flagrante, assim como qualquer outra espécie de prisão provisória, afeta a presunção de inocência, pois, como cita Patrício, “(...) do que se duvida – e era, sobretudo, isso que se ofereceria à investigação e à reflexão, a nosso ver – é que a aplicação de medidas de coacção seja, verdadeiramente, compatível com o princípio da presunção de inocência em toda sua extensão (...)”;12 (5) a única relativização possível frente a prisão em flagrante, e, ainda assim, em caráter precário, é a de inocência, jamais podendo se relativizar, neste momento, a certeza de autoria e realização de um ato, em tese, criminoso; (6) as hipóteses de flagrante que, além de relativizarem a inocência, trabalham, também, com presunção de autoria e concretização de ato, não foram recepcionadas por nossa Constituição. A utilização do sistema garantista, ao cabo, permitirá que se constate a inconstitucionalidade da prisão em flagrante quando a mesma, consoante hipóteses descritas em lei, não carregar, consigo, a certeza visual do ato.
2. Ius Puniendi e Processo Penal O Direito Penal, bem se sabe, é um direito de punição extremada. Neste sentido, Bitencourt alerta que “(...) falar de Direito Penal é falar, de alguma forma, de violência”;13 desde sua institucionalização que o tema é alvo de debates voltados à legitimidade de seus fins, ou seja, busca-se, desde seu início, respostas que fundamentem a pena como um instituto jurídico que sirva para a persecução de um fim legítimo frente à sociedade e ao indivíduo sobre o qual recai a sanção. Deve-se atentar, na busca de tal legitimidade, que a punição é imanente ao convívio social. Ao falar-se em agrupamento social, fala-se, também e inexoravelmente, em coercitividade.14 Zaffaroni, por exemplo,
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CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 259.
PATRÍCIO, Rui. O princípio da presunção de inocência do argüido na fase do julgamento no actual processo penal português (alguns problemas e esboço para uma reforma do processo penal português), p. 16. BITENCOURT, Cezar. Manual de Direito Penal, São Paulo: Saraiva, 2000, parte geral, p. 1. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas. Trad. Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. 4a ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 225
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observa a existência de uma “estrutura de poder”, “(...) com grupos que dominam e grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados dos centros da decisão”,15 sendo que através destas disposições sociais decorre, como conseqüência, um controle dos grupos dominados por parte dos dominantes (controle social). Em suma, o exercício de poder e a imposição de regras sobre os grupos nada mais são do que uma decorrência de sua própria configuração, e o Direito Penal, por sua vez, transforma-se em mais um dos variados instrumentos que existem para a concretização de tal atividade. Indo-se além, é de se destacar que, muito embora a coercitividade social seja algo que se insere na própria essência do grupo, sua institucionalização não o é; pelo contrário, tanto em sociedades antigas quanto em algumas sociedades orientais (conceito lato), a punição era (é) exercida pelo grupo que, porventura, sentia-se ofendido ou, neste mesmo diapasão, pela vítima em si. Consoante Prado, “(...) é possível iniciarmos pela afirmação de que os primeiros grupos humanos, as primeiras tribos, desconheciam métodos mais sistematizados de solução de conflitos e interesses penais, isto porque, como sociedades simples, rudes e incipientes, tendiam à concretização de seu direito”.16 Percebendo-se a punição como fenômeno natural,17 pode-se afirmar que a distinção que caracteriza um Estado Moderno frente às sociedades ditas “primitivas” reside na concentração do ius puniendi nas mãos deste primeiro. O monopólio do direito de punir significa, em primeiro passo, a negação da vingança privada como fonte legitimadora da punição, afirmação esta corroborada por Maier que, em análise ao tema, observa: “La superación de la venganza de sangre del ofendido o sus parientes se logró, tras una evolución secular, mediante la creación del poder penal del Estado (...)”.18 Ao se versar sobre a negação de uma vingança privada, pode-se falar, de imediato, no surgimento do processo penal. O processo, neste diapasão, é o caminho pelo qual o Estado deverá passar para declarar a existência de um delito e impor a pena correspondente ao mesmo. É, pois, fonte limitadora do exercício do
direito de punir e, conseqüentemente, garantia do indivíduo frente ao mesmo. A existência do devido processo legal como único instrumento hábil à consecução dos fins punitivos, consoante o salientado, traduzse em garantia instrumental fornecida ao indivíduo, pois evita, através de mecanismo próprio, que a constatação da culpa e a incidência da punição decorram de elementos caracteristicamente autoritários. Trata-se de um sistema biunívoco de garantias, consoante Ferrajoli, para quem “el conjunto de las garantias penales (...) quedaría incompleto si no fuese acompañado por el conjunto correlativo o, mejor dicho, subsidiario de las garantias procesales (...) la correlación biunívoca entre garantías penales y procesales es el reflejo del nexo específico entre ley y juicio en matéria penal”.19 Inobstante o avanço representado pelo monopólio do ius puniendi e de sua conseqüência natural – o processo –, é de se marcar a existência de distintos sistemas processuais, notadamente (1) sistema inquisitório e (2) sistema acusatório.
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ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal, São Paulo: RT, 1997, p. 81. PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 74. Ultrapassa-se, aqui, o conceito de fenômeno político. MAIER, Julio B. J. Derecho procesal penal I, Buenos Aires: Editores del Puerto, 1999, v. I, p. 89.
3. Sistemas Processuais: Acusatório e Inquisitório A importância do sistema processual vigente em uma determinada sociedade é singular, eis que, inobstante a “busca da verdade” ser o objetivo dos dois casos a serem abordados neste item – sistema inquisitório e sistema acusatório –, o próprio conceito do que venha a ser “verdade” (verdade real no sistema inquisitório e juízo de verossimilhança20 no sistema acusatório) e, conseqüentemente, as formas utilizadas em sua perseguição, encontram-se, nos mesmos, em pólos diametralmente opostos. Por fim, o reflexo dos paradigmas utilizados em tais sistemas altera, substancialmente, o papel do segregamento provisório do acusado, objeto do presente artigo. Divididos os sistemas em inquisitório e acusatório,21 afirma-se ser, o primeiro, marcado por um caráter decisionista, utilizado, tradicional19 20
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FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoria del garantismo penal, pp. 537-538. O autor continua: “Es decir, tanto las garantías penales como las procesales valen no sólo por sí mismas, sino también unas y otras como garantía recíproca de su efectividad”. A “verdade”, entendida como fruto de uma filosofia da consciência, não existe. O sistema acusatório, na busca de um juízo de verossimilhança, ultrapassa dito ensinamento, substituindo-o pela filosofia da linguagem. Nesta seara, ver Lênio Streck, em seu livro “Hermenêutica Jurídica e(m) Crise”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. Consoante CARVALHO, Salo de, em Pena e Garantias: Uma Leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001: “(...) em se tratando de este227
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mente, em sistemas sociais totalitários, e o segundo, fulcrado em uma base cognoscitiva, utilizado em sociedades democráticas de direito.22 O sistema inquisitório, marco do medievo, ou seja, de uma sociedade estamentada, inflexível e autoritária, traz em sua configuração a crença na existência de uma verdade absoluta, cuja revelação acaba justificando toda sorte de meios para encontro da mesma, como, por exemplo, a tortura do acusado. Percebe-se que a manutenção de um sistema com tal característica somente se justifica frente a uma sociedade onde a figura Divina aparece como “real”, dotando seus “enviados” de um conhecimento apriorístico e não contraditável. Com os novos pensamentos oriundos do movimento Iluminista, dito sistema acaba por ceder espaço ao modelo acusatório. Prado, em análise ao tema, realiza a distinção entre “sistema acusatório” e “princípio acusatório”, sendo que este último é quem informa ao primeiro quais as diretrizes a serem adotadas. Para referido autor, temse que o princípio acusatório reflete a principal característica desta nova sociedade, qual seja, o valor do homem frente ao todo; neste sentido, e sob uma perspectiva processual, o indivíduo, enquanto devidamente valorado como ente máximo, deixa de ser um mero objeto de investigação e adquire o status de sujeito processual, ou seja, passa não apenas a deter obrigações frente ao processo, mas, fundamentalmente, Direitos e Garantias.23 Para Coutinho, esta valoração que se dá ao indivíduo, enquanto sujeito processual, deve se encontrar refletida no critério de gestão da prova, ou seja, “(...) o sistema inquisitório, regido pelo princípio inquisitivo, tem como principal característica a extrema concentração de poder nas mãos do órgão julgador, o qual
detém a ‘gestão da prova’. Aqui, o acusado é mero objeto de investigação e tido como o detentor da verdade de um crime, da qual deverá dar contas ao inquisidor – sendo que, em um sistema acusatório onde, repete-se, o indivíduo detém um valor a ser preservado, o processo continua sendo um instrumento de descoberta de uma verdade histórica. Entretanto, considerando que a ‘gestão da prova’ está nas mãos das partes, o juiz dirá, com base exclusivamente nessas provas, o direito a ser aplicado ao caso em concreto”.24 Sendo assim, “(...) falamos, pois, ao aludirmos ao princípio acusatório, de um processo de partes – e, por conseqüência, um processo onde a gestão das provas não se encontra nas mãos do julgador mas, sim, destas mesmas partes –, visto, quer do ponto de vista estático, por meio da análise das funções significativamente designadas aos três principais sujeitos, quer do ponto de vista dinâmico, ou seja, pela observação do modo como relacionam-se juridicamente autor, réu, seu defensor e juiz, no exercício das mencionadas funções.25 Desta transformação decorrem, naturalmente, várias outras; ao versar-se sobre um processo de partes e ao limitar-se a gestão da prova à ação desenvolvida pelas mesmas, depreende-se que o indivíduo deve ter, à sua disposição, instrumentos adequados e eficazes no sentido de refutar a acusação que lhe é imposta, criando-se, pois, o princípio do contraditório, eis que a idéia de acusação só tem sentido...contraposta à idéia de defesa.26 Inobstante as demais diferenciações que poderíamos estabelecer frente aos sistemas, para o objetivo do presente artigo deve-se ressaltar que a existência do contraditório traduz efeitos marcantes junto – como já afirmado – ao conceito do que venha a ser “verdade” e, por isso, passa-se, de imediato, ao estudo da mesma.
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reótipos tendenciais e irrealizáveis em sua plenitude, os dois modelos coexistem diafonicamente nos ordenamentos jurídicos dos Estados contemporâneos, caracterizando e diferenciando textos legais e estruturas normativas. São sistemas de direito e de responsabilidade penal que ‘oscilam entre dois extremos opostos, identificáveis não somente pela dicotomia saber/poder, fato/valor ou cognição/decisão, mas também pelo caráter condicionado ou incondicionado, ou seja, limitado ou ilimitado do poder punitivo”. Com tal afirmação não se está a excluir a possibilidade de um sistema acusatório se prestar aos interesses de um regime totalitário ou, quem sabe, um sistema inquisitório enquadrar-se junto a uma sociedade democrática. Está-se, isto sim, relacionando tais sistemas, de forma genérica, com o ambiente sociocultural e político mais propício à sua adoção. Indo além, é de se destacar que inexiste um sistema puro, seja acusatório, seja inquisitório; em verdade, os sistemas serão erguidos sobre pilares fundamentais que lhes traçarão características genéricas, ora pendentes para o decisionismo, ora para o cognoscivismo. Surgem, aqui, o que a doutrina denominou de “direitos de primeira geração”, quais sejam, direitos e garantias a serem impostos, pelo indivíduo, contra a atividade do Estado.
3.1. Sistemas, Verdade e Prisão Provisória Como visto anteriormente, o sistema inquisitório trabalha com o conceito de verdade real, em contraposição ao juízo de verossimilhança trazido pelo sistema acusatório.26 Esta diferenciação é de suma importância na (des)legitimação das prisões provisórias, eis que o 24 25 26
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos Princípios Gerais do Direito Processual Penal Brasileiro, em Revista de Estudos Criminais, no 01. Porto Alegre: Nota Dez, 2001, p. 28. PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório, p. 114. PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório, p. 115. 229
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julgador inquisitivo, como se denota, já detém em si a verdade absoluta, e busca junto ao acusado a existência de elementos que não são empiricamente verificáveis, eis que referentes ao “estado de alma” da pessoa. Desta maneira, justifica-se a prisão provisória como instrumento apto a buscar, de maneira “eficaz”, a confirmação do acusado frente às imputações que lhe são feitas.27 Tal sistema abdica de critérios objetivos no embasamento da decisão, recorrendo, tão-somente, à análise subjetiva do julgador sobre seu “objeto de investigação”; as conseqüências de tal proceder são destacadas por Ferrajoli, para quem “(...) a subjetivação perverte o processo, dirigindo-o antes da comprovação de fatos objetivos à análise da interioridade da pessoa julgada; antes da verdade processual sustentada empiricamente à convencimentos subjetivados e incontroláveis do julgador”.28 Ao revés, em um sistema acusatório, onde se busca um conhecimento passível de ser verificado empiricamente, a prisão provisória já não mais se prestará para os fins acima delimitados, tornando-se uma exceção dentro do ordenamento jurídico. Consoante Ferrajoli, “(...) en la jurisdicción penal, sin embargo, la verdad garantizada por estricta legalidad es directamente un valor de libertad. Sobre todo porque los derechos de libertad están protegidos frente al abuso gracias, precisamente, al carácter cognoscitivo y no potestativo del juicio (...) el objetivo justificador del proceso penal se identifica com la garantía de las ‘libertades’ de los ciudadanos, a través de la garantia de la ‘verdad’ – una verdad no caída del cielo, sino obtenida mediante pruebas y refutaciones – frente al abuso y el error”.29 Desta maneira, as diferenças fundamentais entre os sistemas podem ser entendidas junto à gestão da prova e valoração do indivíduo enquanto sujeito processual. No sistema inquisitório o que se ressalta é a busca de uma verdade lato senso, substancial, máxima; para a busca de tal verdade ocorrer de forma adequada, despreza as garantias do indivíduo e, comumente, concentra papéis de acusação e defesa na
mão de uma mesma pessoa, qual seja, o juiz; voltando-se a Carvalho, “(...) o processo inquisitivo é infalível, pois o resultado é determinado previamente pelo próprio juiz-acusador. A sentença é potestativa e plena, e, na maioria das vezes, não admite recurso, pois o divino encarnado pelo Santo Ofício não se contradiz e não admite questionamento, ou seja, é perfeito e não suscetível ao erro”.30 Para o sistema acusatório, por sua vez, o que se busca é uma aproximação histórica formal, empiricamente comprovável. Conseqüentemente, obriga-se a respeitar as garantias do indivíduo mesmo que dito respeito torne inalcançavel uma fiel reprodução dos fatos ocorridos. É um processo cognoscitivo, eis que o julgador deverá ter sua imparcialidade garantida e somente exercerá seu julgamento sobre os fatos que lhe forem dado conhecimento – “(...) juiz espectador, voltado sobretudo à objetiva e imparcial avaliação dos fatos (...)”.31 Inserida em tal ótica, volta-se a afirmar que a prisão antecipada do acusado torna-se medida excepcional, e tal constatação já era sinalada por Beccaria, que em sua obra afirmava: “(...) um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que seja decidido ter ele violado as condições com as quais tal proteção lhe foi concedida. Só o direito da força pode, pois, autorizar um juiz a infligir uma pena a um cidadão quando ainda se duvida se ele é inocente ou culpado”.32 Marcada a diferença entre os sistemas no que tange ao aprisionamento provisório do indivíduo, a discussão que atualmente se ergue junto à doutrina e jurisprudência diz respeito à possibilidade de privar-se a liberdade de alguém antes de sua formação de culpa. Muito embora referida discussão abarque, obrigatoriamente, uma análise mais aprofundada dos princípios da proporcionalidade, necessidade e presunção de inocência, pode-se afirmar, desde já, que o aprisionamento do indivíduo sem a formação de sua culpa é possível e encontrase, inclusive, legitimado (pelo menos sob o aspecto da forma) em nossa Constituição Federal, eis que esta, ao tratar da prisão em flagrante em seu artigo 5o, inciso LXI, assim dispõe: “Ninguém será preso senão em
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Consoante MAIER, Julio B. J. Derecho procesal penal, v. I, p. 315: “(...) su defensa y asistencia técnica fueron negadas, incluso como consecuencia del secreto procedimiento19”. Continuando, expõe que tal regramento “condujo a la pérdida de la mayoría de las facultades que distinguen a un sujeto de derechos y, por otro lado, a la incomunicación del detenido. La pérdida de su libertad ambulatória, su sometimiento a la prisión durante el procedimiento, se transformó de la excepción en la regla (...)”. CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias: Uma Leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil, p. 27. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoria del garantismo penal, p. 546.
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CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias: Uma Leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil, p. 30. FERRAJOLI, Luigi apud CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias: Uma Leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil, p. 30. BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas, Trad. Lúcia G. e Alessandro B. Contessa. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 35. 231
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flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.33 Restando satisfeita a possibilidade formal-constitucional de prender-se antes da formação de culpa, o questionamento, então, versa sobre quais os motivos que autorizam tal medida, ou seja, quais os fins a serem alcançados e que legitimam a excepcionalidade frente ao princípio geral do processo; busca-se, desta maneira, a legitimidade material do instituto. Frise-se: muito embora seja tormentosa a afirmação, o constatado é que o aprisionamento sem culpa encontra-se legitimado em nosso sistema jurídico. Entretanto, para que o mesmo ocorra sem, com isso, ferir os princípios de nosso Estado de Direito, deverá obedecer a todos os critérios insculpidos em nossa Constituição, sob pena de transformar-se em simples arbitrariedade. Por tais motivos, mister uma brevíssima e superficial análise dos principais dispositivos Constitucionais que, diretamente, influenciam a discussão.
presunção de inocência do argüido opera decisivamente sobre a questão da prova, não é menos verdade, a nosso ver, que esse princípio tem outra significativa incidência no processo penal: impõe que o argüido seja titular de um estatuto e receba um tratamento e uma consideração próprios de alguém que é considerado inocente e que, portanto, está no uso do seu ‘jus libertatis’ (...)”.35 A incidência do referido princípio em matéria processual traduz-se em conseqüências junto à (1) regra probatória do feito, passando à acusação o ônus de provar o que alega, à (2) valoração da prova, manifestado, aqui, o brocardo in dubio pro reo, e, principalmente, (3) junto à forma pela qual o acusado deverá ser tratado no transcurso do feito, ou seja, como um verdadeiro inocente.36 Esta última conseqüência, bem se percebe, reflete-se justamente no ponto que versa sobre a possibilidade de prender-se o mesmo antes de findo o processo e declarada sua culpa. Consoante Ibañez, “(...) la prisión provisional...es también un problema. Yo diría que el problema por antonomasia del processo penal. Sobre todo del processo penal de los paises que se han dotado de una disciplina constitucional del mismo que gira formalmente en torno al principio de presunción de inocencia”.37 Parte da doutrina entende, neste diapasão, que o aprisionamento que se efetua mediante a obediência aos fins “processuais” não mitiga a incidência da presunção, eis que não se relaciona com a culpa do sujeito.38 Desde já se ressalta que não concordamos com tal posicionamento, destacando-se a observação de Prado sobre o assunto: “O sistema de prisão e liberdade adotado no Brasil e nos países que têm a mesma cultura jurídica brasileira é, em certa medida, contraditório com a plena efetividade do princípio da presunção da inocência, porque a realidade é que, se levássemos a cabo o princípio da presunção da ino-
4. A Presunção de Inocência Referido princípio reflete-se como corolário lógico de um sistema de preservação individual. Se, à luz da inquisição, o acusado era preconcebido como culpado e deveria, neste diapasão, tentar provar sua inocência no curso do processo, tem-se que, sob a égide do Estado de Direito, a acusação é que deverá provar, de forma conclusiva, a culpa que atribui ao imputado. Ferrajoli, neste sentido, enuncia que “(...) la culpa y no la inocencia debe ser demostrada(...) este principio fundamental de civilidad es el fruto de una opción garantista a favor de la tutela de la inmunidad de los inocentes, incluso al precio de la impunidad de algún culpable”.34 Indo além, dito princípio traduz seus efeitos não apenas sobre a aplicação do direito material (na dúvida não se pune) mas, também, sobre a aplicação do Direito Processual Penal, estando com razão Patrício, ao afirmar que “(...) se é indiscutível que o princípio da 33
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Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5o, inc. LXI; interessante ressaltar que a única prisão não decorrente de culpa que nossa Constituição Federal permite de forma expressa é a prisão em flagrante. Muito embora a constitucionalidade das demais “prisões provisórias” não seja objeto do presente trabalho, fica o ponto para discussão futura. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoria del garantismo penal, p. 549.
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PATRÍCIO, Rui. O princípio da presunção de inocência do argüido na fase do julgamento no actual processo penal português (alguns problemas e esboço para uma reforma do processo penal português), p. 34. Neste sentido, ver também IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Garantismo y Proceso Penal, Revista de la Facultad de Derecho de la Universidad de Granada, 3o época, no 2, 1999, p. 39 PRADO, Geraldo. Prisão e Liberdade, http://2000.mrweb.com.br/cl/ telejur/artigos/artigos – view2.asp?cod-69, acesso em março de 2002. IBAÑEZ, Perfecto Andres. Presuncion de Inocencia y Prisión sin Condena. Revista de La Asociación de Ciencias Penales, Costa Rica, no 13, ano 9, agosto 1997, p. 3. Um bom exemplo de tal afirmação encontra-se junto à súmula 9 de nosso STJ: “A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência”. 233
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cência e se quiséssemos dar a ele a efetividade que a Constituição prescreve, do modo como ela prescreve, conforme a cultura de garantia, não poderia haver nenhum tipo de prisão antes de a sentença condenatória transitar em julgado”. Continuando, o autor esclarece: “(...) apesar disso, poderemos ter a prisão do imputado, durante o período de persecução penal”.39 Partilhando do entendimento de Prado, nos parece óbvio que a prisão provisória afeta a presunção de inocência e, desta maneira, partimos do pressuposto de que a mesma somente poderá ocorrer se obedecidos os critérios de proporcionalidade da medida.
constituem verdadeiros limites materiais à ação do legislador, que fica vinculado à realização ótima desses direitos”.40 Para Bonavides, a aplicação do princípio da proporcionalidade deve obedecer a dois distintos e inter-relacionados quesitos, quais sejam, a (1) presunção de relação proporcional entre meio e fim, entendendo que “há violação do princípio da proporcionalidade, com ocorrência do arbítrio, toda vez que os meios destinados a realizar um fim não são, por si mesmos, apropriados e ou quando a desproporção entre meios e fim é particularmente evidente, ou seja, manifesta”, e (2) a situação de fato, ou seja, a real necessidade de determinada medida se operacionalizar frente ao caso em concreto. Em análise ao quesito segundo, qual seja, a análise do caso em concreto, mister salientar que tal indicação se desdobra frente aos princípios da pertinência, necessidade e razoabilidade da medida, obrigando o operador jurídico à verificação do instrumento utilizado enquanto “(...) meio certo para levar a cabo um fim baseado no interesse público”41 (pertinência), determinando, ainda, que “(...) a medida não há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja”42 (necessidade) e, por fim, escolher, dentre os vários instrumentos colocados à disposição, “(...) o meio ou os meios que, no caso específico, levarem mais em conta o conjunto de interesses em jogo”,43 sem olvidar-se que, neste momento, (...) de todas as medidas que igualmente servem à obtenção de um fim, cumpre eleger aquela menos nociva aos interesses do cidadão”44 (razoabilidade). Verificada a proporcionalidade lata entre meio e fim, necessitase salientar, contudo, que a utilização do princípio da proporcionalidade serve tanto para a justificação garantista quanto totalitarista, sendo que, já adotada a matriz garantista, a verificabilidade do meio proporcional deverá ocorrer em respeito ao princípio da intervenção mínima.
5. Princípio da Proporcionalidade Através do princípio da proporcionalidade é que a prisão provisória irá encontrar sua legitimidade. No caso em concreto, será ponderada a gravidade da medida imposta com a finalidade pretendida – o equilíbrio entre dois deveres do Estado –, a proteção do conjunto social e a manutenção da segurança coletiva dos membros da comunidade frente a desordem provocada pelo injusto típico, através de uma eficaz persecução dos delitos e, de outro lado, a garantia e a proteção efetiva das liberdades e direitos fundamentais dos indivíduos que a integram. Na lição de Barros, a aplicação de tal princípio torna-se “especialmente útil na verificação da constitucionalidade das leis interventivas na esfera de liberdades do cidadão, porque o legislador, mesmo perseguindo fins estabelecidos na Constituição e agindo por autorização desta, pode editar leis consideradas inconstitucionais. O juízo de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais pelo contraste direto entre normas de hierarquia diversa não é suficiente. Faz-se necessário um exame da lei em relação a ela mesma. O conteúdo do princípio da proporcionalidade é assim identificado: exigência de adequação da medida restritiva ao fim da lei; necessidade da restrição para garantir a efetividade do direito e a proporcionalidade em sentido estrito, pela qual se pondera a relação entre a carga de restrição e o resultado obtido. Os direitos fundamentais, nesta perspectiva, 39
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PRADO, Geraldo. Prisão e Liberdade, http://2000.mrweb.com.br/cl/ telejur/artigos/artigos – view2.asp?cod-69, acesso em março de 2002.
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BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais, 2a ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 158. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 11a ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 360. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 360. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 360. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 360. 235
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6. O Princípio da Intervenção Mínima O princípio da intervenção mínima é utilizado, tradicionalmente, em estudos sobre o Direito Penal, e pode servir como balizador de vários outros princípios, dentre eles o de humanidade, culpabilidade, efetivo dano, etc. Seus efeitos processuais, entretanto, fazem-se sentir de forma imediata, e consoante salienta Lopes Júnior, “(...) como correspondente, a discricionariedade judicial deve ser sempre dirigida não a estender, mas a reduzir a intervenção penal enquanto não motivada por argumentos cognoscitivos seguros”.45 Além de se evitar o processo em sentido lato, a intervenção mínima espraia seus efeitos para junto das prisões provisórias. A liberdade, enquanto Direito Fundamental, e devidamente resguardada pelos três princípios supracitados, somente será objeto de restrição em última análise, ou seja, as medidas restritivas do direito de ir-e-vir tornam-se a exceção dentro de um sistema já excepcional. Com efeito, deverá existir uma situação de fato que, por sua gravidade, legitime a incidência do aprisionamento provisório. Para a doutrina que justifica instituto, esta situação versa sobre garantirse a instrução processual e garantir-se, também, a aplicabilidade da lei penal.46 Recorre-se, no tema, aos brocardos periculum libertatis e fumus comissi delicti47 como condicionadores e limitadores desta modalidade de prisão, ou seja, não basta que o indivíduo, em liberdade, esteja a oferecer riscos ao processo ou ao corpo social,
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LOPES JÚNIOR, Aury. O Fundamento da Existência do Processo Penal: Instrumentalidade Garantista, http://www.ambitojuridico.com.br/aj/dpp0012.html, acesso em agosto de 2001. Consoante PRADO, Geraldo, em Prisão e Liberdade, a prisão provisória poderá ocorrer “(...) toda vez que a liberdade do imputado puser em risco o conteúdo de verdade que o processo penal terá que buscar, ou vier a inviabilizar a aplicação da lei penal, deixando em perigo a efetivação da sanção criminal”. Consoante LOPES JÚNIOR, Aury, em Crimes Hediondos e a Prisão em Flagrante como Medida Pré-Cautelar, Mimeo, tais brocardos trazem consigo o seguinte entendimento: “fumus comissi delicti: é o requisito de toda e qualquer medida cautelar pessoal, considerado como a existência de sinais externos, com suporte fático real, extraídos dos atos de investigação levados a cabo, em que por meio de um raciocínio lógico, sério e desapaixonado, deduz-se com maior ou menor veemência a comissão de um delito, cuja realização e conseqüências apresentam como responsável um sujeito concreto (...) periculum libertatis: é o fundamento da prisão cautelar. Cumpre recordar que para as medidas cautelares pessoais do processo penal, o fator determinante não é o tempo mas a situação de perigo criada pela conduta do sujeito passivo do processo (...)”.
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mas, indo além, se faz necessária a existência de materialidade do ato, ou seja, prova congnoscitiva séria e idônea que aponte para a realização de um crime. Entretanto, versando-se sobre o “flagrante” propriamente dito, e em acordo com as idéias que serão desenvolvidas em capítulo III desta obra, adianta-se, desde logo, que, em nosso entendimento, o fumus comissi delicti se traduz não em um “raciocínio lógico, sério e desapaixonado” (vide nota 49), mas, isto sim, em certeza visual do delito; o periculum libertatis, por sua vez, irá versar não sobre a preservação da prova e do processo, mas sim sobre o aponte da mesma. Estabelecidos os parâmetros, passa-se, finalmente, ao flagrante.
7. Prisão em Flagrante Tal instituto, para uma quase-totalidade da doutrina, deriva do latim flagrare, ou seja, “queimar”, “crepitar”. Desta maneira, adequando-se tal significado ao mundo jurídico, o “flagrante” deve referir-se ao momento exato em que a atividade do agente está se realizando ou, como reza a doutrina, significa “certeza visual do fato”, trazendo, consigo, “a possibilidade para uma pessoa de comprová-lo mediante a prova direta”.48 Percebe-se, dos conceitos acima, que o flagrante expressa uma relação de imediatidade entre o ato praticado pelo agente e o momento de sua prisão. É a certeza visual do ato, a “eficaz resposta ao delito”. Por tais considerações, fácil constatar que a prisão em flagrante, como instituto de resposta imediata ao crime, transforma-se em um dos pilares de sustentação das políticas de segurança pública de um Estado, eis que enseja, aos olhos do leigo, a impressão de que o aparato de repressão está, efetivamente, a funcionar. Nesta seara, e inobstante o valor processual que detém o flagrante, deve-se perceber que sua utilidade político-administrativa transcende os limites do Poder Judiciário. O próprio processo penal brasileiro (assim como o Direito Penal), se bem observado, cada vez mais se afasta de seu modelo ideal – caminho utilizado para a reconstrução histórica do fato – para servir como verdadeiro instrumento de políticas de segurança pública. Neste prisma, motivado pela cobrança midiática de respostas céleres ao problema da criminalidade, abdica do modelo garantista (eis 48
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que este, ao preservar as garantias individuais, acaba por gerar um processo moroso em seu desenrolar) em prol de um sistema marcadamente inquisitorial, banalizando a segregação do indivíduo como se esta fosse regra geral. É, em verdade, uma resposta também midiática do Estado aos anseios “públicos”, ou seja, uma verdadeira “solução midiática de antecipação da defesa social”. Em tal quadro é que se constata que, por força de sua extrema importância enquanto ato político, a prisão em flagrante é a modalidade mais violenta das prisões provisórias, surgindo, daí, a necessidade de diferenciá-la, quando de seu estudo dogmático, das demais espécies de prisões provisórias existentes em nosso sistema jurídico.
autor ainda afirma que, “se for o particular, o ato continua sendo administrativo (...)”.49 Indo mais longe, Pontes de Miranda, através da citação realizada por Delmanto Júnior, ultrapassa as barreiras do Direito Administrativo e defende a idéia de que “quando a polícia exerce o poder de prender em flagrante não exerce poder de polícia: exerce ato estatal, como o que seria a prisão em flagrante feita por alguém do povo (...)”.50 Continua: “(...) o poder é de tutela jurídica, poder estatal, que não se confunde com o poder de polícia”.51 Concordando-se com ditas afirmações, a prisão em flagrante, em nosso entendimento, serve, exclusivamente, para proteger o bem material frente ao ataque sofrido e fornecer (apreender) ao processo meios de prova sem, contudo, comprometer-se com o resguardo do mesmo e, por força desta conclusão, cremos que dita modalidade prisional pode ser, basicamente, dividida em dois fatores, um de ordem social e outro de ordem processual:
7.1. Natureza Jurídica O flagrante stricto sensu, como sinalado em tópico anterior, indica uma relação de imediatidade entre ato e prisão, sendo que, em certos casos, pode-se anunciar como verdadeiro instrumento de cessação da atividade delituosa. Parte-se do pressuposto de que um ato que importe a restrição do direito fundamental do indivíduo à sua liberdade somente se legitima quando, à margem de um mero exercício de poder, represente medida necessária e proporcional ao fim pretendido, estando em acordo com os princípios estruturadores e condicionantes de nossa Constituição Federal. Desta maneira, e no sentido de primar-se pela obediência a tais pressupostos, referido ato deve ser decretado somente pela autoridade judicial competente. Inobstante tal conclusão, o artigo 301, CPP, informa: “Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”. A redação deste artigo se coaduna com os artigos 5o, inc. LXI, da CF, e 282 do CPP, colocando a prisão em flagrante como sendo a única, em nosso ordenamento jurídico, que será exercida sem a prévia autorização judicial. O fato de referida modalidade prisional prescindir de autorização emanada por juiz competente ressalta seu caráter administrativo, eis que realizada à margem da jurisdição e oriunda, somente, de um juízo de valor realizado pelo agente que irá efetuá-la sobre o ato que presencia. Neste sentido, Tourinho Filho entende que “(...) o ato de prender em flagrante não passa de simples ato administrativo, levado a efeito, grosso modo, pela Polícia Civil (...)”. Continuando o raciocínio, o 238
1. Quanto à ordem social: o flagrante se legitima como medida de segurança na medida em que diz respeito a fazer cessar uma atividade que, em tese, se caracteriza como delito ou, dito em outras palavras, a liberdade do indivíduo está, no momento exato em que se efetua a prisão, acarretando perigo a determinado bem jurídico (periculum libertatis). Desta forma, o flagrante traz em si a força de evitar a lesão ao bem jurídico, tornando-se, pois, uma defesa individual de caráter imediato a ser exercida em prol do bem jurídico ameaçado. 2. Quanto à ordem processual: tal fator contemporiza-se com a persecução penal a ser adotada pelo Estado frente ao ato, eis que esta deverá ser intentada, somente, quando houver prova de autoria e materialidade do fato52 e, ante a relação de
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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado, p. 540. DELMANTO JÚNIOR, Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração, 2a ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 112. DELMANTO JÚNIOR, Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração, p. 112. Do fato, e não do “crime”, ainda que a doutrina utilize, de forma equivocada, esta segunda expressão. 239
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imediatidade entre ato e prisão, tais quesitos restariam, ao menos em tese, satisfeitos. Neste sentido, o fumus comissi delicti restaria satisfeito no momento da prisão, eis que visualizada a ação empreendida pelo agente, e restaria, também, preservado como fonte de prova posterior e necessária à persecução penal. O periculum libertatis, idem, eis que a colheita imediata dos elementos probatórios por parte do Estado poderia restar prejudicada se fosse dado ao agente delituoso a opção de continuar em liberdade. Conjugando-se os elementos que autorizam o flagrante (preservação do bem jurídico e apreensão de elementos que indiquem autoria e materialidade do fato) com seu caráter administrativo, ou seja, com sua essência arbitrária, notadamente voltada ao poder de polícia que detém o Estado lato sensu e seus cidadãos, percebe-se que o flagrante é medida que, além de carregar consigo o caráter de ultima ratio, se esgota logo após sua realização. Tais pontos merecem, também, análise mais detalhada: 1. Quanto ao caráter de medida ultima ratio: considerando os paradigmas de proporcionalidade e presunção de inocência que devem nortear qualquer inferência do Estado na vida do indivíduo, e conjugando-se tais fatores com os objetivos do flagrante, quais sejam, o de preservar o bem jurídico do ataque que está a sofrer e apreender elementos que possibilitem a futura instrução criminal, depreende-se que, ausente a visibilidade do ato delituoso, a prisão deixa de se justificar, eis que perdida a “prova direta” almejada pela restrição. Voltando-se a Hassemer, “(...) com o comprometimento da tutela penal com a proteção de bens jurídicos, ocorreu que, de um lado, o princípio da ‘ultima ratio’ ganhou vida...o Direito Penal passa a se apresentar como meio de solução de problemas sociais...subordina, porém, o emprego de seu maquinário – porque ele magoa e fere intensivamente – a rigorosíssimos requisitos e, afinal, só entrará em campo quando mais nada adiantar”.53 Desta maneira, frise-se, se ausente a possibilidade de, através do flagrante, obter-se prova direta do delito e de sua autoria, a privação de liberdade do
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HASSEMER, Winfried. Três Temas de Direito Penal, Porto Alegre: AMP, 1993, p. 33.
indivíduo (por força desta específica modalidade prisional) deixa de coadunar-se com a proporcionalidade de tal medida e com a presunção processual de inocência. 2. Quanto ao esgotamento da medida: percebendo-se que o resguardo ao bem jurídico atacado é um objetivo que se alcança no momento exato da prisão, depreende-se que este primeiro elemento legitimador do flagrante não serve como fundo para a manutenção do preso no cárcere. Observando o segundo elemento, qual seja, colheita de autoria e materialidade do fato, constata-se, a exemplo do acima citado, que o mesmo também restará satisfeito logo após a prisão, quando da formalização da mesma junto ao órgão competente. Seja por um ou outro argumento, não há como se versar sobre a manutenção de alguém em cárcere por força do flagrante, eis que esgotados os elementos que autorizam tal medida. Os fatores acima apontados legitimam o flagrante e, ao mesmo tempo, limitam sua incidência e seus efeitos.54 Considerando-os como válidos, o flagrante deverá ocorrer somente quando, através de sua incidência, for medida capaz de (1) fazer cessar um ataque ao bem jurídico e/ou, no mínimo, (2) fornecer ao Estado elementos concretos que evidenciem autoria e materialidade da ação, ou seja, somente se privará alguém de sua liberdade quando tal privação for caminho único à preservação do bem material ou processual, entendido este, repitase, ainda que à exaustão, pela apreensão de tais elementos, e não pelo posterior resguardo dos mesmos. Desta maneira, estabelece-se uma relação de proporcionalidade entre a prisão e o bem que a mesma afeta – liberdade individual – e sua necessidade – preservação imediata de bem jurídico indevidamente atacado e dos quesitos necessários à proposição de uma futura ação penal. Inobstante a precariedade desta modalidade prisional quando encarada frente aos agentes que podem realizá-la, além de seu
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A limitação dos efeitos do flagrante são de extrema importância, também, junto à exegese do art. 310, CPP; neste sentido, propugnamos pela absoluta inconstitucionalidade de tal dispositivo legal, eis que a prisão em flagrante não traz consigo os elementos que, em tese, autorizam a prisão preventiva. Deixa-se de analisar tal ponto, entretanto, por ser o mesmo secundário frente aos objetivos deste artigo. 241
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específico entendimento quanto ao alcance do periculum libertatis e do fumus comissi delicti, tem-se que o CPP, consoante sua exposição de motivos, flexibilizou o conceito de “flagrante delito”, permitindo que dito aprisionamento ocorra mediante presunções de autoria e realização do ato, passo este que, em nosso entendimento, configurase em clara violação ao preceito constitucional.
o las personas objeto de enjuiciamento”.55 Percebendo-se a inafastabilidade de uma relação de poder entre Estado e indivíduo, a administração deste relacionamento entre o poder e o saber é que irá ditar a espécie de processo a que se fala, sendo que, pela matiz garantista, “(...) la dimensión de poder, como coacción afectante a los sujetos pasivos de actiaciones procesales, tendrá que ocupar un lugar secundário y permanecer sujeta a reglas muy estrictas, presididas por el principio de necesidad y por el respeto de los derechos fundamentales (...)”.56 Consoante o exposto em item supra, a figura do aprisionamento sem culpa encontra-se devidamente formalizada em nossa Constituição, através da expressa aceitação do flagrante. Se o “poder” encontra-se aceito pela ordem constitucional, e considerando-se que a Carta Magna utiliza a expressão “flagrante” sem, no entanto, defini-la de forma taxativa, ou seja, sem explicitar que espécie de “saber” irá orientar o exercício desta medida, cabe ao operador jurídico, confrontando dita previsão com o diploma processual, em seu artigo 302, verificar, das hipóteses neste previstas, quais se encontram recepcionadas pela Constituição. Neste sentido já se apontou que a possibilidade do aprisionamento sem culpa, não obstante certas posições doutrinárias e jurisprudenciais, sempre irá atingir a presunção de inocência, passo este que somente poderá se realizar graças ao princípio da proporcionalidade. Desta maneira, se já está-se a versar sobre um afastamento de princípio constitucional, torna-se óbvio que esta medida somente deverá ocorrer, primeiro, por força de outro princípio de igual envergadura (proporcionalidade) e, segundo, em situação extremada. No caso do flagrante, tal excepcionalidade, em nosso entendimento, será permitida, exclusivamente, quando houver a já mencionada “certeza visual do ato”. Tal conclusão nos parece óbvia. Na medida em que o flagrante é medida pré-cautelar, de caráter precário, administrativo, podendo ser exercido por “qualquer um do povo”, e considerando que o objetivo desta prisão reside na preservação do bem jurídico e na indicação de elementos que possibilitem o exercício da futura ação penal, não há
7.2. Presunções no Flagrante Como dito, desprezando-se o entendimento doutrinário que fornece ao flagrante o sentido de “certeza visual do fato”, sua tipificação junto ao CPP traz a previsão de situações onde a prisão do sujeito poderá e irá ocorrer, tão-somente, com fulcro em uma presunção de autoria em relação ao fato. Por isto, e sem entrar-se, ainda, na análise específica de cada uma destas situações, é que afirma-se, sem embargo, que o maior problema desta modalidade prisional encontra-se na aplicabilidade acrítica e vulgarizada de tais hipóteses . Em verdade, ao considerar-se a força do flagrante enquanto instrumento político (que se presta à satisfação imediata do desejo de punir), o que se denota do cotidiano fático-processual é que esta medida é unanimemente aceita, em todas as suas variantes, sem que, para tanto, haja o mínimo de indagação quanto à validade das mesmas. Crê-se que, em um país onde a única presunção abarcada pela Carta Magna é a de inocência, presunção esta que, consoante o já analisado, gera efeitos materiais e processuais, a permissão para que a prisão de indivíduos ocorra com fulcro em presunções de um agir criminoso somente pode ser explicada através de argumentos metajurídicos, a bem dizer, de cunho eminentemente político. Tal passo significa um profundo desprezo pelos valores garantidos em nossa Constituição, e demonstra que em nossa sociedade a concepção de Lassale continua a viger no plano fático, ou seja, nossa Carta Magna não passa de “um pedaço de papel”. Tal situação, por óbvio, não poderia existir. Em existindo, deve ser objeto de cotidiana denúncia, eis que retrato de uma concepção totalitarista de Estado, onde o poder é que regula, primariamente, as interações sociais. Consoante Ferrajoli, citado por Ibáñez, “(...) el juicio penal es un ‘saber-poder’. Un proceso de adquisición de conocimiento com una ineliminable dimensión coactiva en aspectos centrales de su desarrollo, a cuyo resultado puede asociarse un penetrante ejercicio de poder sobre la 242
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IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Garantismo y Proceso Penal. In: Revista de La Facultad de Derecho de La Universidad de Granada, p. 54. IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Garantismo y Proceso Penal. In: Revista de La Facultad de Derecho de La Universidad de Granada, p. 54. 243
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como se permitir, ante o princípio da presunção de inocência, que se presuma a realização do ato por parte do agente. A utilização do princípio da proporcionalidade, aqui, deve se realizar com extrema cautela. Havendo a certeza visual do ato, detémse, por óbvio, um determinado “saber”, representando, este, pela certeza de autoria, certeza de materialidade e presença de nexo causal.57 Presentes os elementos do tipo penal, ou seja, sabendo-se que o agente realizou ato descrito em lei e taxado como delito, relativiza-se, tão-somente, e também em caráter de absoluta precariedade, a inocência do agente frente ao ato realizado. A relação entre saber e poder encontra-se, nesta hipótese, adequada, pois se conhece a existência de um fato típico e se exerce o poder, de forma precária, no intuito, apenas, de se viabilizar a proteção ao bem jurídico e o interesse de um futuro processo. Ao revés, nas hipóteses onde a visibilidade do ato não se faz presente, relativiza-se a presunção de inocência frente (1) à autoria, (2) à própria materialidade, dependendo de que ato está-se a versar58 e (3) à culpa do agente frente a tais elementos, ou seja, não se parte de nenhum elemento em concreto que pudesse autorizar a medida coativa. Frente às considerações supra, passa-se à análise do CPP, em seu art. 302.
Voltando-se aos objetivos da prisão em flagrante, quais sejam, a proteção ao bem jurídico ameaçado e garantia da prova de autoria e materialidade à futura e provável ação penal (objetivos jurídicos, frisese), tem-se que tal inciso traz consigo tanto a existência do periculum libertatis quanto do fumus comissi delicti, o primeiro concretizado tanto frente ao perigo ou dano que a ação desenvolvida representa ao objeto ameaçado quanto junto à apreensão imediata da prova, e o segundo, por óbvio, junto aos elementos colhidos com a prisão, eis que efetuada através da certeza visual do ato e de sua autoria. Carnelutti, em análise a esta específica situação, refere que o flagrante “(...) no es la actualidad, sino la visibilidad del delito”. Vai mais longe: “(...) supuesto, por tanto, el delito flagrante como un delito que da la certeza de sí, lo que hemos llamado el costo del aislamiento del imputado y consiste en el riesgo de injusticia de la imputación, se reduce al mínimo, de manera que no hay razón de no recurrir a la medida cautelar(...)”.59 Em concordância com tal idéia, depreende-se que o inciso ora retratado encontra-se devidamente legitimado frente à Constituição Federal e ante os princípios internacionais de proteção aos Direitos Humanos, tornando-se despicienda maior consideração sobre o tema.
7.3. Art. 302, CPP
7.3.2. Flagrante Próprio (Inciso II)
7.3.1. Flagrante Próprio (Inciso I)
Referido inciso entende que estará em flagrante delito quem “acaba de cometer a infração penal” (“acaba de cometê-la”), passo este que nos legitima a afirmar a inexistência da visualização do ato em si e sim, tão-somente, uma forte presunção de que aquele determinado indivíduo foi quem o realizou. Como dito em capítulo supra, relativiza-se, aqui, a própria existência do ato, a autoria frente ao mesmo e a culpa do agente. Em verdade, não se está a relativizar a presunção de inocência, e, isto sim, em desprezá-la de forma absoluta enquanto princípio. Tourinho Filho afirma que, no presente caso, “(...) deve haver uma relação de ‘quase’ absoluta imediatidade. Assim, por exemplo, se alguém surpreende uma pessoa com a faca suja de sangue e, ao seu lado,
O artigo 302, CPP, estabelece no inciso ora em tela que estará em flagrante delito aquele que “(...) está cometendo a infração penal”. Tal inciso encerra o conceito estrito de flagrante, eis que se refere à prisão que ocorre no momento do delito, ou seja, enquanto a ação criminosa está a “arder”.
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Muito embora a própria visualização do ato possa ser discutida frente ao conceito de “certeza”, deve-se atentar que, ao partirmos para uma relativização radical dos conceitos, acabaríamos por inviabilizar a própria sentença condenatória. Tal discussão, entretanto, ao abarcar a própria existência do “real”, não se torna objeto deste artigo. Neste sentido, poder-se-ia utilizar, como exemplo, os crimes formais e de mera conduta. Na medida em que, para tais espécies delituosas, não se exige a produção de um resultado naturalísico, como se afirmar materialidade sem que, para tanto, ocorra a certeza visual do ato?
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CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el Proceso Penal, v. II, Trad. Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Bosch, 1950, p. 79. 245
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prostrada ao chão, outra com o peito sangrando, é sinal de que ‘acabou de cometê-la”.60 A afirmação supra demonstra de forma incontestável que, da certeza do ato, adentra-se no campo das presunções. Obviamente que exemplos “radicais”, como uma pessoa segurando uma “faca suja de sangue”, facilitam a exposição de uma idéia, mas jamais se pode olvidar o caráter geral que detém o Direito e, ainda, a parcela minoritária dos delitos cometidos com violência. Partir-se para a construção e legitimação de uma teoria normativa utilizando-se, para tanto, de um ou outro exemplos práticos, transforma-se no que Ferrajoli classifica de “falácia normativista”. No caso em análise, busca-se a legitimação do estado de flagrância – ainda que não mais existente a ação – através de um exemplo onde o aprisionamento do indivíduo aparece, ainda que de forma inconsciente, como medida necessária, eis que, utilizando-se a figura criada por Tourinho Filho, se uma pessoa detém uma faca em sua mão, ao lado de um cadáver coberto de sangue e facadas, tornam-se61 óbvias a autoria e a materialidade e, neste diapasão, a prisão do agente estaria a cumprir de forma exemplar sua função frente ao processo, ou seja, restaria justificada a inclusão de tal modalidade dentro do tema “flagrante”. Percebe-se claramente que se parte de uma situação aprioristicamente delimitada, qual seja, a de que a posse de determinado objeto ou a presença de uma pessoa em um determinado local implicam, necessariamente, a sua participação junto ao fato e, por isso, justificada a medida de aprisionar-se em flagrante. O equívoco deste pensamento reside, nas palavras de Ferrajoli, no fato de que “(...) las justificaciones, en efecto, se obtienen ‘a posteriori’, sobre la base de la correspondencia comprobada entre los fines justificadores y las funciones efectivamente realizadas. Cuando una justificación es apriorística, es decir, prescinde de la observación de los hechos justificados, queda degradada a ideología normativista o idealista”.62 Desta maneira, o raciocínio a se realizar no sentido de perquerirse quanto à legitimidade de se considerar em estado de flagrância um indivíduo que não foi visto cometendo o ato é se, ante o (des)conhecimento que nos é trazido pela complexidade do mundo moderno, pode-se afirmar a existência de uma determinada situação com fulcro,
apenas, na utilização de uma lógica indutiva ou dedutiva, em ambos os modelos, identitária.63 Nesta seara, consoante Morin, “uma tal lógica é estritamente aditiva e não pode conceber as transformações qualitativas ou as emergências que sobrevêm a partir das interações organizacionais. Ela fortalece o pensamento linear, que vai da causa ao efeito, e faz obstáculo à inteligência da retroação do efeito sobre a causa (...) essa lógica armou a concepção de um mundo coerente, inteiramente acessível ao pensamento, e tudo aquilo que excedia essa coerência se torna não somente fora da lógica, mas também fora do mundo e fora da realidade”.64 Tal assertiva é, em verdade, uma denúncia que se ergue contra o pensamento simplificador que se originou na renascença e permeia nossa atualidade. Se os Direitos Fundamentais nasceram em tal época, não seria errado se afirmar, também, que as maneiras de se aviltarem tais direitos lá se originaram, ainda que por um equívoco derivado da boa-fé. Na medida em que a Razão dialética se reduz ao raciocínio lógico dedutivo/indutivo, tem-se que esta “(...) só concebe os objetos simples que obedecem às leis gerais (...) produz um saber anônimo, cego, sobre todo o contexto e todo o complexo; ignora o singular, o concreto, a existência, o sujeito65 (...)”; no exemplo citado por Tourinho Filho, ignora-se todas as peculiaridades de um caso real, partindo-se da premissa de que quem carrega a faca é quem esfaqueou. Infelizmente se constata, aderindo-se ao pensamento de Morin, que a utilização deste mecanismo simplificador” (...) é de uma terrível eficácia. Atirando o complexo nas latas de lixo, sustentando o quantificável e o algoritmável, isolando seus objetos e comprometendo as experimentações, ela permitiu e desenvolveu a manipulação de inúmeras vitórias técnicas, ignorando contudo os efeitos perversos que elas podem engedrar”.66 É verdade que, se prescindirmos de tal lógica, estaremos inviabilizando a própria sentença condenatória em processos onde não tenha ocorrido a visualização do ato. Entretanto, já que ainda necessária, que pelo menos se limite a utilização da mesma em acordo
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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado, p. 543. “Torna-se” no sentido de se condicionar uma idéia. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoria del garantismo penal, p. 325.
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Consoante MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A Inteligência da Complexidade, Trad. Nurimar Faria Falci. 2a ed. São Paulo: Fundação Peirópolis, 2000, p. 97: “(...) a indução, a dedução e os três axiomas identitários de Aristóteles asseguram a validade formal das teorias e raciocínios (...) o núcleo da lógica clássica tomou um valor universal e intransgressível nos sistemas racional-empíricos clássicos”. MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A Inteligência da Complexidade, p. 99. MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A Inteligência da Complexidade, p. 100. MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A Inteligência da Complexidade, p. 97 247
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com os princípios constitucionais citados, notadamente, no caso específico, a presunção de inocência. Desta maneira, se temos que utilizar uma premissa, que seja a da inocência; se temos que, porventura, ultrapassá-la através do raciocínio lógico, que tal fato se dê apenas em sentença, momento este em que o acusado já dispôs de suas armas racionais para refutar os elementos da acusação. Voltando-se ao flagrante: percebendo-se a utilidade da lógica como forma de simplificar o conhecimento e ignorar a própria realidade através das nuances que lhe são características; verificando ser a mesma um excelente instrumento de manipulação do saber e, ao fim, sabendo-se que a prisão em flagrante pode ser efetuada por “qualquer um do povo”, a união desta legitimidade ativa ao raciocínio que despreza o preconceito social/racial e a “necessidade humana” de se punir “alguém” não se transforma em elemento apto à concretização de uma verdadeira aberração jurídica? Inobstante tais observações, Espínola Filho, concordando com jurisprudência de sua época, sinala: “Bem entendido, o tempo que se escoa entre o momento, no qual a autoridade, advertida de que um delito acaba de cometer-se, que há traços de infração, por exemplo, que acaba de ser descoberto, ainda quente, o cadáver da vítima de um assassinato, etc., e o transporte, que segue tal descoberta, não poderia fazer perder, ao delito, o seu caráter de flagrância”.67 Em que pese esta última argumentação, cremos que, no caso retratado pelo inciso segundo do artigo 302, CPP, o flagrante já deixou de ser uma qualidade da ação, passando a ser uma “qualidade da pessoa”, ou seja, não mais importa a ação,68 mas, isto sim, a dedução que se faz com fulcro na imagem de uma determinada pessoa e sua relação com o ato cometido. Neste sentido, “aquela pessoa, em um determinado momento, e por determinadas circunstâncias, encontra-se em flagrante”. Tal afirmação, em nosso entender, é absolutamente equívoca ante os postulados de um direito que se diz humanista, e encontramos, no próprio Carnelutti, citação que corrobora nosso entendimento, eis que, para referido autor, “(...) la flagrancia no es un modo de ser del delito en si, sino del delito respecto a una persona; y, por eso, una cualidad absolutamente
relativa; el delito puede ser flagrante respecto a Ticio y no flagrante respecto a Cayo (...)”.69 Como visto, para Carnelutti o flagrante não recai sobre a ação ou sobre a pessoa, mas sim sobre a relação havida entre a mesma e o ato praticado. Desta maneira, seguindo em seu ensinamento, observa que, ante a ausência de visibilidade desta relação, “(...) el concepto de flagrancia se extiende de la percepción de la acción del delito a la percepción de una conducta o, en general, de un estado de la persona, de donde surge la presunción de que haya cometido poco antes el delito(...)”.70 Isto posto, afirma-se, novamente, que a inexistência da imediatidade entre ato e prisão faz com que o relacionamento entre ato e pessoa seja desfigurado, restando o flagrante como medida que se origina, somente, em face da pessoa a ser presa e, neste diapasão, tem-se que a prisão em flagrante de quem “acabou de cometer o crime” é, em verdade, a prisão de quem “presumidamente cometeu o ato”. Tal situação, por si só, ainda que se valha ao fornecimento de carga probatória ao processo, desvirtua a relação já mencionada de saber-poder, e, analisada pelo viés constitucional de respeito aos princípios da presunção de inocência, da proporcionalidade das medidas coativas e, ao fim o caráter ultima ratio das mesmas (princípio da necessidade), não se encontra legitimada em nossa Carta Magna.
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ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, vols. 1 a 8, Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 325. Até porque, dependendo do caso (crimes formais, etc.), nem mesmo pode-se afirmar que existiu ação.
7.3.3. Flagrante Impróprio (Inciso III) Aqui o Código de Processo Penal elenca, como hipótese de flagrante, situação onde o agente é preso ao fim de uma perseguição que se iniciou “logo após o delito”, e “(...) em situação que faça presumir ser o autor da infração”. De tal conceito, duas hipóteses se abrem: 1. A ação criminosa é visualizada pela autoridade (ou por qualquer um do povo), sendo que esta se coloca em perseguição ao agente e, ao fim da mesma, consegue capturá-lo, ou 2. A ação criminosa não é presenciada pelo perseguidor, mas este, “por motivos outros”, põe-se em perseguição a alguém
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CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el Processo Penal, v. II, p. 75. CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el Processo Penal, v. II, p. 79. 249
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que, “por determinadas circunstâncias”, seja, presumidamente, autor do delito. A primeira situação não acarreta maiores problemas, eis que a mesma traz em si, ainda que de forma velada, o respeito à forma estrita do flagrante, qual seja, “certeza visual da ação criminosa”. Através desta visualização, o perseguidor terá, quando da efetiva prisão do indivíduo, a certeza quanto à autoria e materialidade do fato, relativizando, somente, a inocência propriamente dita. Em verdade, estar-se-a versando sobre o flagrante próprio. A segunda hipótese, entretanto, merece ser contrariada através do destaque da afirmação de Coutinho, para quem nosso diploma processual encontra-se “(...) marcado pela concepção fascista do processo penal e ancorado na tradição inquisitória, inclusive da fase processual da persecução, só não percebida por todos em razão da pouca perquirição que se faz das suas matrizes ideológicas e teóricas, a começar pelo velho Código de Processo Penal italiano e seu inescrupuloso difusor e defensor, ‘camìcia nera’ de todos os instantes, Vincenzo Manzini”.71 Nesta seara, como considerar-se em “flagrante” alguém que, além de não ter sido visto cometendo o ato, é perseguido “logo após” o mesmo? Que espécie de direito estar-se-ia resguardando? Apenas por curiosidade, o antigo CPP trazia consigo, pelo menos, a exigência do “clamor público”, sendo que o mesmo poderia ser representado por qualquer manifestação de vontade, desde que por alguém que, efetivamente, houvesse visualizado o delito. Por óbvio não se pretende a volta de tal “clamor” para legitimar dita espécie de flagrante, eis que, como facilmente se depreende do conjunto até agora escrito, dita modalidade não se coaduna – com ou sem “clamor” – com 71
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COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: um problema às reformas processuais penais, Escritos de Direito Penal e Processo Penal em homenagem ao professor Paulo Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 140. Continua o autor, em referência a Manzini e aos reflexos fascistas em nossa legislação: “Que ele foi um vigoroso articulador teórico do processo penal italiano não se pode negar; mas que era um terrível fascista – e expressa isto em sua obra – também não. Pior, porém, é o que se passa com a doutrina nacional, alienada em relação a problema do gênero, como sucedeu, por infelicidade – não se pode crer em outro fundamento – com José Frederico Marques, o primeiro grande escritor, no Brasil, de um direito processual penal que queria superar a base praxista ritualística de antes da polêmica Windscheid ´versus´ Muther e, por isso, ajudou a formar toda uma geração de processualistas que, não se dando conta das raízes espúrias do ramo, não poucas vezes pregam uma democracia processual com um discurso fundamentalmente antidemocrático”.
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os objetivos de tal prisão. Entretanto, que espécie de “evolução” legislativa é esta que retira uma garantia individual de seu texto (eficiente ou não, o clamor, como afirmado, significava a visualização do delito, ou seja, era, ainda que precária, uma garantia ao preso)? Frente às considerações supra, tem-se que as mesmas observações realizadas junto ao inciso segundo do artigo 302, CPP, aqui se reiteram; como atestar-se a existência de periculum libertatis e fumus comissi delicti ante um fato que ninguém viu? Que espécie de prova decorre da prisão de alguém em tais circunstâncias e, indo além, se facilmente se conclui pela fragilidade dos elementos colhidos em tal situação, como se legitimar a prisão em flagrante? Nos dizeres de Carnelutti, “(...) no es expuesto concluir que la extensión del concepto de la ‘cuasi flagrancia há llegado así a ser excesivo y el derecho de la persona há resultado así exageradamente sacrificado a las conveniencias del proceso penal”.72
7.3.4. Flagrante Presumido (Inciso IV) A última hipótese de flagrante contemplada em nosso Código se configura quando, nos dizeres da lei, o agente “é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da infração”. Cabem aqui, sem dúvida, todas as críticas já tecidas ao inciso segundo e à hipótese ventilada às “presunções do ato” constantes em inciso terceiro, onde o agente é perseguido sem que, para tanto, tenha ocorrido a visualização do ato por parte de uma testemunha. A “presunção” ora suscitada não se presta à satisfação do periculum libertatis e do fumus comissi delicti, erguendo sua base, tão-somente, em um juízo de valor que se realiza sobre a pessoa a ser presa e sobre elementos circunstanciais que possam estar em sua posse. Nesta esteira de raciocínio, Sznick observa que “...estamos aqui diante de uma ‘fictio juris’, uma ficção do direito onde se equipara algo com a realidade (...) o fato de alguém ter o produto do crime não diz ser ele o autor do crime, pois pode ser o receptador ou alguém com quem o criminoso deixou as coisas (...) é uma circunstância indiciária mas não é prova. As coisas e objetos mesmo que tenham relação aparente com o crime não têm, em si, caracteres próprios da evidência que
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CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el Proceso Penal, v. IV, p. 80. 251
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existe no flagrante ‘in faciendo’, ou seja, no flagrante real, verdadeiro”.73 Tais considerações, repita-se, se aplicam aos itens já abordados neste capítulo, eis que a essência das mesmas reside na falta de certeza visual do ato e seu autor. Vaz, abordando a precariedade da prova obtida nas circunstâncias citadas, declara: “Em verdade, o encontro de alguém, após um crime, com os objetos, armas e instrumentos do mesmo crime desperta suspeita ou a presunção de que esse alguém é o autor do crime que foi praticado ou o cúmplice. Mas, por isso mesmo que há uma presunção é que a prisão não deve ser efetuada”.74 Barros, por sua vez, é quem explicita, de forma contundente, a idéia ora esposada: “(...) a fundada suspeita contra o conduzido a que se refere a lei (art. 304, § 1o, do CPP), notadamente em se tratando do flagrante presumido ou quase-flagrância, deixa uma relativa margem de arbítrio à autoridade policial (...) a prisão em flagrante na hipótese focalizada é afrontosa à liberdade individual e importa sacrifício idêntico ao que resulta da prisão preventiva compulsória, medida contra a qual se rebela atualmente a consciência jurídica dos povos civilizados (...)”.75 Por todo o afirmado é que se conclui que a referida modalidade de flagrante acaba por ir de encontro à estrutura condicionante dos princípios elencados em nossa Carta Magna. Depreende-se, pois, que tanto a hipótese do inciso III (flagrante impróprio) quanto a hipótese do artigo IV (flagrante presumido) atingem frontalmente os direitos básicos do indivíduo não apenas por desprezarem, de forma absoluta, o preceito constitucional da presunção de inocência, mas, indo além, por elasticizarem dita prisão em acordo com a conveniência do caso concreto. Se, em um regime fascista, tal passo é facilmente explicável, não há como se entender a contínua aplicação das mesmas em um Estado que traz como premissa maior o respeito ao indivíduo.
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SZNICK, Valdir. Liberdade, Prisão Cautelar e Temporária, 2a ed. São Paulo: Universitária, 1995, p. 370. VAZ, Augusto. apud SZNICK, Valdir. Liberdade, Prisão Cautelar e Temporária, p. 371. BARROS, Romeu Pires C. apud SZNICK, Valdir. Liberdade, Prisão Cautelar e Temporária, p. 372.
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8. Considerações Finais Muito embora tenhamos observado que: (a) nossa Carta Constitucional seja clara em relação aos princípios que visa preservar enquanto reguladora de uma Sociedade Democrática de Direitos; (b) que o princípio da presunção de inocência deve ser observado tanto em relação à aplicação do direito material quanto do processual, significando, neste último caso e, dentre outras conseqüências, conferir-se ao acusado o tratamento que se dá a alguém inocente; (c) que dito princípio somente poderá ser relativizado frente ao princípio da proporcionalidade e às circuntâncias do caso concreto; (d) que o flagrante derivado da certeza visual do ato presume, somente, e de forma precária, a culpa do agente frente ao caso; (e) que as demais formas de flagrante presumem não apenas a culpa, mas, também, a própria realização e autoria do ato e que, por isso, não podem ser aceitas como legítimas frente aos mandamentos constitucionais, temos que os operadores jurídicos, acostumados ao trabalho na esfera penal, bem sabem que nosso diploma processual, ainda que informado por uma matiz fascista, continua sendo largamente utilizado, em suas disposições, por parte de nosso Poder Judiciário, sendo esta, inclusive, a denúncia e crítica elaborada no presente trabalho. Os motivos que levam a tal constatação são diversos; analisou-se a profunda ruptura que se constata entre os ideais Iluministas e o quadro social que hoje se impõe, com a falência da pena de prisão, a “morosidade” processual, a crescente sensação de insegurança coletiva e, fundamentalmente, o olhar da mídia sobre o tema, pautando, através de manchetes escandalosas, os movimentos políticos de segurança pública. No caso específico da prisão em flagrante, demonstrou-se que, ante tais situações, tal instituto, assim como as demais prisões provisórias, acaba por extrapolar sua função jurídico-processual, transformando-se em verdadeiro instrumento administrativo a ser utilizado como símbolo de eficácia, por parte do Estado, no combate à criminalidade. Tais constatações, entretanto, referem-se, tão-somente, aos resultados perceptíveis de uma situação que denominamos “exaustão de paradigmas”. O panorama social em que hoje nos encontramos submersos nada mais é do que conseqüência da complexidade do mundo atual e da exaustão dos paradigmas Iluministas no trato com a mesma; concordamos com os doutrinadores que explicitam tal tese, informando que as diretrizes políticas, científicas e culturais erigidas há dois 253
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Breves Considerações sobre o Flagrante
séculos passados encontram-se em um estado de tensão permanente, prontas a se romperem. É de se marcar que a visão humanística propagada pelo iluminismo, em que pese o tempo já passado desde a Revolução Francesa e os incríveis avanços científicos levados a cabo em século XX, continua a fomentar a estrutura do Estado Moderno. O paradigma da razão, a dicotomia entre sociedade e indivíduo, a ilustração do átomo, etc., ainda são os elementos balizadores da sociedade atual. No entanto, e exatamente pelas modificações havidas no mundo e nas relações interindividuais, indivíduo/Estado e indivíduo/natureza, o pensamento binário resultante do século XVII já não suporta explicar os fenômenos ora existentes. As relações tornaram-se cada vez mais complexas (em verdade, sempre o foram; no entanto, a percepção de tal complexidade é que veio à tona), e o pensamento fulcrado na tese e antítese encontra-se superado. Cada vez mais as teses já trazem dentro de si suas próprias contraditas e, inobstante tais constatações, o homem continua utilizando, para si e para a sociedade, os mesmos paradigmas ventilados pela renascença. Entende-se que homem precisa, efetivamente, de “novas explicações”, já não lhe bastando a ciência moderna e seu fruto maior, a dialética. A racionalidade, base da qual surge a igualdade e, conseqüentemente, a sociedade moderna, encontra-se em questão, e Damasio adverte que “a perspectiva tradicional sobre a natureza da racionalidade não poderia estar correta”.76 Em fins de século XIX, Freud “descobre” o inconsciente; passa-se a verificar que o homem age da forma que se vislumbra não apenas motivado por pensamentos frios, calculistas, eminentemente racionais, mas sim por uma mistura de ingredientes onde os sentimentos detêm lugar de honra. Em suma, não é dotado de livre-arbítrio ou, pelo menos, o conceito do que venha a ser tal fato encontra-se modificado. Coloca-se em dúvida a base social erigida através de um pacto racional, eis que a racionalidade necessária a tanto é inexistente. O homem, que passou dois séculos negando sua transcendência, “matando sua alma”, se descobre, em
século XXI, imerso em grandes tribos unificadas por sentimentos que lhe são atávicos enquanto ser humano. Seguindo-se tal esteira de raciocínio, depreende-se que a sociedade, ao revés de uma criação exclusivamente racional, detém como elementos fundadores mitos irracionais, condicionantes, estruturadores das gerações futuras. Exclui-se a dialética, a lógica binária; alma e corpo não se antagonizam, pelo contrário, se conjugam, assim como corpo e espírito, crença, emoção e razão.77 A identidade social passa a demonstrar sua importância junto à formação da identidade individual, em clara oposição ao “átomo” preconizado pelos renascentistas. Não se torna possível, contemporaneamente, considerar-se o homem de forma isolada, e sim enquanto integrante de um grupo social, percebendo-se, aqui, o surgimento de um “neotribalismo”,78 onde o grupo se sobrepuja à figura do indivíduo. Na medida em que se “descobre” a relevância fundamental da sociedade na existência do indivíduo, a polêmica dicotômica continua acesa, só que invertendo a importância dos atores. Passa-se a questionar o valor absoluto outrora fornecido a este último, surgindo teses no sentido de que, em acordo com a pergunta de Elias, o homem é apenas o meio utilizado para a manutenção de um fim diverso, representado, este, pela unidade social. Neste sentido, de Durkheim a Luhmann, produzem-se teorias hoje denominadas sistêmicas, que fulcram suas conclusões na autopoiese biológica preconizada por Humberto Maturana e Francisco Varela.79 Para os defensores de tal linha de pensamento, a sociedade, efetivamente, é a fonte geradora de todas as outras circunstâncias que implicam “ser-se humano” e, sob tal viés, o homem, enquanto ser individual, é encarado como uma peça de engrenagem voltada ao funcionamento do sistema. A importância da “visão sistêmica” frente ao tema proposto no presente trabalho é singular. Se nossa realidade demonstra que o
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DAMÁSIO, Antônio R. O Erro de Descartes, emoção, razão e o cérebro humano. Trad. Dora Vicente e Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 11. No entanto, este mesmo autor adverte que durante a maior parte do século XX, a emoção não teve espaço nos laboratórios. Dizia-se que era subjetiva demais. A emoção encontrava-se no pólo oposto ao da razão, sendo esta, de longe, a mais refinada das capacidades humanas, e presumia-se que a razão era totalmente independente da emoção”.
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Esta é a idéia central utilizada por MAFFESOLI, Michel, em O Tempo das Tribos, o declínio do individualismo nas sociedades de massa. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. Denominação utilizada por MAFFESOLI, Michel, em O Tempo das Tribos, o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Consoante o ensinamento de MARIOTTI, Humberto, no artigo Autopoiese, Cultura e Sociedade. Http://www.geocities.com/complexidade autocs.html., acesso em fevereiro de 2002. 255
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“sistema penal” – entendido este, nas palavras de Zaffaroni, como “(...) controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca desde que se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena (...)”80 – se concretiza através de um “(...) altíssimo custo de vidas humanas (...)”,81 deve-se perceber que esta visão sistêmica preconiza um novo viés, onde, ainda nos dizeres do autor “(...) o sistema penal pode ser sem dúvida observado por outro ângulo, não tão desfavorável ou, inclusive, favorável ou ‘otimista’. Esta perspectiva verifica-se quando o sistema penal é analisado pela ótica do ‘sistema’, ou seja, do ponto de vista do funcionalismo sistêmico, por exemplo”.82 Entretanto, adverte Zaffaroni, “(...) este ‘otimismo’, no entanto, tem um preço que não estamos dispostos a pagar: o imediatismo do homem e seu deslocamento do centro de interesse do discurso penal, a conseguinte amoralidade do discurso e, por último, o cancelamento do conceito de ‘homem’ como ‘pessoa’, para reduzi-lo a um ‘subsistema’”.83 A obsolência do Estado enquanto “resguardo do corpo social”, o “estado de emergência” sentido por nossa população, em suma, a percepção consciente ou inconsciente de que os sistemas racionais do humanismo não satisfizeram seus objetivos, são itens que acabam por se traduzir em uma necessidade de respostas imediatas ao problema da segurança pública, enfrentando-se aqui, inclusive, uma contradição ontológica, eis que esta “resposta” deve vir justamente de quem, até agora, falhou em prestá-la. Concordando-se com o trecho já destacado de Delmanto Júnior, a prisão provisória, neste caótico cenário, aparece revigorada, um “instrumento dentro de um instrumento”, apto a contornar as garantias fulcradas e duramente conquistadas através das revoluções renascentistas e, desta forma, saciar esta necessidade de punição e segregamento que o corpo social reclama. Neste sentido, Lopes Júnior: “Essa grave degeneração do processo permite que se fale em verdadeiras penas processuais, pois confrontam violentamente com o caráter e a função instrumental do processo, configurando uma verdadeira patologia judicial, na qual o processo penal é utilizado como uma punição antecipada, instrumento de perseguição política, intimidação policial, gerador de estigmatização social, inclusive com um
degenerado fim de prevenção geral. Exemplo inegável nos oferecem as prisões cautelares, verdadeiras penas antecipadas, com um marcado caráter dissuatório e de retribuição imediata”.84 Percebe-se que, em uma sociedade amedrontada, onde os paradigmas modernos já não mais se prestam aos fins propostos, o deslocamento do indivíduo do centro de preocupação jurídica para a condição de “subsistema” acaba por se tornar uma manobra necessária ao continuismo do exercício arbitrário de poder. Nesta seara, o Estado, no intuito de prestar satisfação – simbólica, frise-se – aos interesses do grupo, ultrapassa os limites que lhe são juridicamente impostos, transformando o indivíduo, porventura “cliente” do sistema penal, em exemplo de que este mesmo sistema ainda está em funcionamento. Inserida nesta ótica, a prisão em flagrante, como já afirmado, transforma-se em excelente instrumento de expiação. Considerando-se que, junto ao imaginário coletivo, o flagrante significa, exclusivamente, certeza visual de um crime, torna-se claro que, através do mesmo, o Estado demonstra sua eficácia institucional, transmitindo a mensagem de que conseguiu exercer a correta defesa dos não-desviantes frente ao “criminoso”. Por óbvio, as demais hipóteses, calcadas somente em presunções, acabam por trazer consigo o mesmo efeito, eis que – e verifica-se, aqui, o poder dos canais midiáticos – não se passa a informação de que o indivíduo foi preso por uma ilação de quem o deteve, mas, somente, de que foi preso em “flagrante”. Nesta violenta equação, as hipóteses previstas junto ao art. 302, CPP, ainda que absolutamente distintas pelo viés jurídico, geram idênticos efeitos quando observadas pelo prisma social, ou, em outras palavras, está-se diante de um caso onde “(...) a verdade se converte numa questão de funcionalidade”.85 Desta maneira, o processo penal – repete-se – se transforma em excelente instrumento de “defesa social”, surgindo, daí, a visão “otimista” analisada por Zaffaroni, pois, em nome da funcionalidade do sistema, sacrifica-se o indivíduo. De tal conseqüência é que se discorda. Ainda que se faça novamente presente a incógnita do “quem somos”, arrebata-nos a crença de que a história da humanidade serve como lição. Sempre que o indivíduo foi desprezado em nome de algo maior, se concretizaram massacres que temos anotado em nossa memória, sendo que, em
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 70. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas, p. 156. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas, p. 156. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas, p. 156.
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LOPES JÚNIOR, Aury. O Fundamento da Existência do Processo Penal: Instrumentalidade Garantista. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas, p. 87. 257
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grande parcela, esses infelizes episódios se geraram contra o próprio corpo social que integra a Instituição. Sem dúvida a humanidade encontra-se frente a um novo obstáculo: os paradigmas do Iluminismo de séculos XVII e XVIII, ultrapassados, precisam sofrer uma reavaliação e, conseqüentemente, encontram-se sujeitos a excessos teóricos, sejam em prol da sociedade, seja em resgate do indivíduo. No entanto, crê-se que o início desta nova ciência deve romper com o dualismo preconizado tanto em século XVIII pelos iluministas quanto em século XX, pelos sistêmicos, e ELIAS já aponta para tal caminho ao indagar: “Mas e se uma compreensão melhor da relação entre indivíduo e sociedade só pudesse ser atingida pelo rompimento dessa alternativa ou isto/ou aquilo, desarticulando a antítese cristalizada?”86 Ante um mundo sem fronteiras definidas, mesmo que imersos em uma névoa social, política cultural, desagregados de um saber recémconstituído mas ainda não cientes de formas que possam supri-lo de forma adequada, acredita-se que pelo menos um dos pontos deste novo caminho é não se desprezar o já ocorrido. Endossando o pensamento de Elias, espera-se que seja possível uma convivência harmônica entre estes dois ”seres artificiais” que nos fazem o que somos, quais sejam indivíduo e sociedade. Espera-se, efetivamente, que o homem detenha competência o suficiente para realizar a conjugação entre seu ser e os terceiros que o cercam e dão forma ao ente social. Caso contrário, a história continuará imersa em uma simulação, uma paródia de fatos já acontecidos e superados que continuam a se repetir por falta de coragem em provocar-se a mudança, com o gravame de que, já tendo tais fatos ocorrido anteriormente, não ser mais possível à humanidade escusar-se atrás da máscara da ignorância. Por força de tal conclusão, unida à esperança de que a crise de paradigmas hoje enfrentada não deve trazer como conseqüência o abandono de um saber já constituído, mas, sim, uma evolução deste mesmo saber, é que, especificamente no caso da prisão em flagrante, acredita-se na invalidade das presunções já destacadas. Se é verdade que o corpo social reclama a prisão de agentes como forma de expiação, não menos verdade é que, ao se desprezarem as garantias básicas erigidas em prol deste mesmo agente, estar-se-á incorrendo
em severo retrocesso, voltando-se aos fundamentos de Estados totalitários. Tal situação, além de não servir como resposta para o vazio que nos é imposto ante a exaustão iluminista, traz consigo as mazelas já experimentadas em continente europeu, através das grandes guerras, em continente sul-americano, através de ditaduras que tanto conhecemos, e em outras partes do mundo, onde a força do colonialismo ceifou povos em nome de um bem maior. Se o objetivo do Estado, em seu nascedouro, foi a contenção da arbitrariedade e da violência, não se pode permitir que dita criatura acabe por se voltar contra seus criadores. É por isso que, novamente, e em nome de uma minimização da crise hoje enfrentada, propugnamos, em caráter penal e processual penal, pelos ideais do Garantismo.
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ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos, Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 65. 259
Perspectivas de Controle do Crime Organizado na Sociedade Contemporânea: Da Crise do Modelo Liberal às Tendências de Antecipação da Punibilidade e Flexibilização das Garantias do Acusado Francis Rafael Beck
1. A Globalização e seus Influxos sobre e Estado e o Direito (Penal) Embora se possa identificar algumas características do modelo globalizador1 e, até mesmo, apontar-se conceitos,2 não há como se crer que esse processo seja linear ou consensual. Os vários aspectos sob os quais a globalização pode ser enfocada justificam o relevante número de teorias a seu respeito, cada uma a contribuir – em maior ou menor proporção – para a compreensão do fenômeno como um todo. A análise do fenômeno globalizador, portanto, deve ser feita com cautela – especialmente diante da fácil possibilidade de que seja ele utili-
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Entende Arnaud que é possível falar-se especificamente de globalização quando um certo número de condições são preenchidas. Em síntese, são elas: 1) mudança nos modelos de produção; 2) desenvolvimento de mercados de capitais com fluxo livre de investimentos sem que as fronteiras dos Estados sejam levadas em conta; 3) expansão crescente das multinacionais; 4) importância crescente dos acordos comerciais entre nações que formam blocos econômicos regionais de primeira importância; 5) ajuste estrutural passando pela privatização e pela redução do papel do Estado; 6) hegemonia dos conceitos neoliberais em matéria de relações econômicas; 7) uma tendência generalizada em todo o mundo à democratização, à proteção dos direitos humanos, a um renovado interesse pelo Estado de direito; e 8) o aparecimento de atores supranacionais e transnacionais promovendo essa democracia e essa proteção aos direitos humanos (ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização: lições de filosofia do direito e do Estado. Tradução Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. Introdução. s/p). Em uma tentativa de definição do fenômeno, sugere Albrow que “globalização” é o processo pelo qual a população do mundo se torna cada vez mais unida em uma única sociedade, indicando que a criação de uma sociedade mundial já não é o projeto de um Estado-nação hegemônico, mas o resultado não-direcionado da interação social em escala global (ALBROW, Martin. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1996, p. 340). 261
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Perspectivas de Controle do Crime Organizado na Sociedade Contemporânea
zado para justificar, acriticamente, todos os grandes males da atualidade e com amparo em todos os campos do conhecimento por ele afetados. Alçando as rupturas epistemológicas e paradigmáticas verificadas na sociedade contemporânea para o âmbito da teoria geral do Estado (se é que se entenda possível falar-se de uma “teoria geral do Estado” nos dias atuais), não há como continuar a crer na existência de um ente (o Estado) do qual emana um poder único, absoluto, exclusivo. A crise dos Estados nacionais, a alteração da noção clássica de soberania e a transformação das fontes e instâncias formais (estatais) de resolução de conflitos fazem com que o poder outrora tido como soberano passe a ser compartilhado com (se não “apoderado” por) novos atores de destaque no cenário internacional. A constatação de que o Estado já não mais consegue regular a sociedade e a economia com base em seus instrumentos tradicionais faz com que ele caminhe na direção (entendida como inevitável) da desregulamentação, acompanhada, no campo jurídico, de uma tendência explícita à descentralização, desformalização, deslegalização e desconstitucionalização. Os novos conflitos surgidos na sociedade atual – associados a uma intervenção reguladora cada vez mais pálida dos órgãos estatais – desafiam a capacidade do sistema jurídico posto, que não raro se mostra inapto a superá-los. Nos termos de parte de artigo assinado pelo “Subcomandante Marcos” (um dos líderes da rebelião rural de Chiapas, México):
Por outro lado, o crescente emaranhado das relações econômicas fez com que aflorasse um campo praticamente não explorado para a prática de ilícitos, sem fronteiras geográficas, e que fugiram do âmbito do controle estatal. Dessa forma, os fenômenos econômicos da globalização e da integração econômica geraram a aparição de uma nova concepção do delito, centrada particularmente nos elementos “organização”, “transnacionalidade” e “poder econômico” (completamente distintos da idéia de delinqüência como fenômeno marginal). Com efeito, para Silva Sánchez,4 do ponto de vista estrutural, as características mais significativas da criminalidade da globalização são duas: por um lado, se trata de uma criminalidade, em sentido amplo, organizada (a produzir resultados lesivos capazes de aparecer em separado, tanto no espaço como no tempo, da ação dos sujeitos mais relevantes do plano delitivo); de outro, a criminalidade da globalização é uma criminalidade de sujeitos poderosos, caracterizada pela magnitude dos seus efeitos – normalmente econômicos, mas também políticos e sociais – com capacidade de desestabilização geral dos mercados e corrupção de funcionários e governantes. Utilizando-se do que tem sido estabelecido pelo sociólogo alemão Ulrich Beck acerca do modelo teórico da “sociedade de risco”, Mendoza Buergo5 focaliza a atenção – quanto às influências dessa concepção no terreno penal – na ampliação das fronteiras do punível e no aprofundamento da orientação à prevenção e à mudança do papel que se atribui ao controle penal de conflitos. Como extensão, a observância do aumento da intervenção penal para a prevenção de riscos, à custa de mudanças importantes na estrutura e nas garantias do Direito Penal. Assim, logo pode ser percebido que a tendência de flexibilização da intervenção do Estado para a solução dos conflitos em quase todas as áreas do Direito não foi alçada ao campo penal. Os novos crimes, as penas majoradas, a flexibilização de garantias e princípios, os novos métodos de investigação (não raramente de questionável constitucionalidade) possuem muito mais um caráter simbólico (dentro do discurso de que “algo precisa ser feito”) do que, efetivamente, um caráter “prático”, como desejado por não poucos políticos, juristas e
No cabaré da globalização, o Estado passa por um striptease e no final do espetáculo é deixado apenas com as necessidades básicas: seu poder de repressão. Com sua base material destruída, sua soberania e independência anuladas, sua classe política apagada, a nação-estado torna-se um mero serviço de segurança para as mega-empresas... Os novos senhores do mundo não têm necessidade de governar diretamente. Os governos nacionais são encarregados da tarefa de administrar os negócios em nome deles.3
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Cf. Sept pièces du puzzle néolibéral: la quatrième guerre mondiale a commencé. Le Monde Diplomatique, agosto 1997, pp. 4-5. Apud BAUMANN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 74.
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SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 1999, pp. 69-71. BUERGO, Blanca Mendoza. El derecho penal en la sociedad del riesgo. Madrid: Civitas Ediciones, 2001, pp. 23-24. 263
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formadores de opinião (independentemente das conseqüências daí advindas). Como aduz Raúl Zaffaroni,
demasia o rol das dificuldades – manter-se os princípios que presidem à definição da autoria singular, quando (...) existirá as mais das vezes uma radical distância temporal e espacial entre a acção e o resultado (trate-se de resultado de dano ou de resultado de perigo) em que se consubstanciam e se exprimem os grandes riscos?7
las leyes penales son uno de los medios preferidos del estado espectáculo y de sus operadores “showmen”, en razón de que son baratas, de propaganda fácil y la opinión se engaña con suficiente frecuencia sobre su eficacia. Se trata de un recurso que otorga alto rédito político con bajo costo. De allí la reproducción de leyes penales, la descodificación, la irracionalidad legislativa y, sobre todo, la condena a todo el que dude de su eficacia. 6 De fato, o Direito Penal clássico-liberal, da forma como hoje está posto, não demonstra estar preparado para o controle da criminalidade globalizada, fazendo com que os princípios da razão ilustrada tenham aparentemente se tornado verdadeiros obstáculos para o aparelho repressor. Pertinentes, portanto, os questionamentos de Dias (ainda sem respostas consolidadas): Como poderão os “novos” ou “grandes” riscos (...) ser contidos ou obviados por um direito penal que continue a ter na individualização da responsabilidade o seu princípio precípuo e cujo objecto de tutela seja constituído por bens jurídicos individuais reais e tangíveis (e portanto “actuais”), quando o problema posto por aqueles riscos é por essência indeterminado no seu agente e na sua vítima? Como poderão manter-se exigências (...) como a dos critérios de aferição da causalidade, da imputação objetiva, do dolo e da negligência, do erro e da consciência do ilícito? Como pode continuar a manter-se a idéia (...) de que o delito doloso de acção constitui a forma “normal” e paradigmática de aparecimento do crime, quando a contenção dos grandes riscos exige, pelo contrário, uma criminalização expansiva dos delitos de negligência e de omissão? Como poderão finalmente – para não alargar em
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalización y sistema penal en America Latina: de la seguridad nacional a la urbana. A legislação brasileira em face do crime organizado. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v. 5, no 20, pp. 13-23, out./dez. 1997, pp. 19-20.
Os questionamentos, no mínimo, merecem um aprofundamento crítico. De qualquer forma, o ponto crucial parece residir na necessidade ou não de se abrir mão das garantias em prol de uma maior “eficiência” no controle da criminalidade organizada transnacional, bem como na eventual avaliação das garantias a serem restringidas ou flexibilizadas. A explosão de leis e reformas (muitas vezes de outras reformas) para legitimar e dar causa jurídica às novas necessidades de controle social, com a renúncia de princípios da razão ilustrada, decorrem do fato de estes terem supostamente se tornado “inadequados” por não mais assegurarem um “adequado” controle social. Mesmo se referindo à situação mexicana (que, com pouca diferenciação, poderia ser estendida à situação da maioria dos países latino-americanos), afirma Vidaurri8 que os princípios jurídicos da modernidade nunca chegaram a se estabelecer de fato, e agora ainda se verifica a paulatina supressão dos mesmos sem que sequer tenham logrado sua plena vigência.
2. O Crime Organizado como Fenômeno Contemporâneo No que tange especificamente ao crime organizado, a reunião de um grupo de pessoas para a prática criminosa, de forma mais ou menos organizada, ou mesmo a atividade criminosa em larga escala, não podem ser considerados fenômenos recentes, eis que verificados inúmeros exemplos ao longo da história.9 Entretanto, o crime organi-
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DIAS, Jorge de Figueiredo. O Direito Penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade de risco”. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 9, no 33, jan./mar. 2001, pp. 45-46. VIDAURRI, Alicia González. Globalización, post-modernidad y política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 9, no 36, pp. 9-32, out./dez. 2001, p. 11. Em verdade, como lembra Mannheim, a participação de duas ou mais pessoas na prática do crime é tão antiga quanto o próprio crime (MANNHEIM, Hermann. Criminologia comparada. Tradução J. F. Faria Costa e M. Costa Andrade. Lisboa: Fundação Calouste 265
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zado de que agora se trata é uma categoria recente, típica da sociedade atual, que se utiliza da globalização e da evolução tecnológica para assumir uma feição diferenciada, muito mais complexa e gravosa do que qualquer outro possível precedente.10 Em relação às tentativas de sua conceituação, qualquer dos ensaios verificados até o presente momento pecam pela restrição ou pela amplitude demasiada na delimitação dessa forma de crime. Isso porque o crime organizado é um gênero do qual são espécie diversos crimes, dotados das mais distintas variedades e formas de aparição, não raro semelhantes em apenas alguns poucos aspectos. As pesquisas empíricas encontram-se ainda em um estágio inicial, buscando resultados e respostas mais objetivos e esclarecedores.11 Portanto, é falacioso o pressuposto de que pode ser encontrada uma definição única – que não seja por demais vaga e imprecisa – para essa forma de delinqüência. O que se torna possível é a aproximação do seu conteúdo. Ademais, o fenômeno sofre mutações em uma velocidade
surpreendente,12 pelo que qualquer conceituação, por mais razoável que pudesse se apresentar, acabaria por enrijecer historicamente o seu objeto, tornando-o ultrapassado desde a sua elaboração. A tarefa resta facilitada quando se trata de enumerar as características dessa modalidade de crime. Mesmo assim, nenhum estudo assume a finalidade de esgotar esse rol.13 Dentre os pontos de identificação mais lembrados em relação a esse modelo criminoso podem ser destacados: 1) estrutura plúrima hierarquizada e permanente; 2) finalidade de lucro ou poder; 3) utilização de meios tecnológicos; 4) conexão com o poder público; 5) internacionalização; 6) uso da violência ou intimidação; 7) cometimento de delitos com graves conseqüências sociais; e 8) emprego de lavagem de dinheiro. As duas primeiras características podem ser tidas como básicas, fundamentais para a configuração de uma organização criminosa. As seis restantes seriam características complementares, restando tanto mais caracterizada a atividade criminosa organizada quanto mais fossem verificadas no caso em análise.
3. O Caminho Fácil das Normas Emergenciais
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Gulbenkian, [s. d.]. v. II, p. 953). Acrescenta Herrero Herrero que a delinqüência organizada existiu sempre, da mesma forma que sempre existiu a atividade lícita organizada. Ambas em função da tendência do homem em planejar suas tarefas, sobretudo quando trabalha em grupo. O que ocorre é que, nas sociedades contemporâneas, a delinqüência organizada em sentido específico, ou qualitativamente organizada (em oposição à delinqüência de baixo grau de organização, inerente, de alguma forma, a qualquer classe de delinqüência coletiva ou associação delitiva), alcançou dimensões extremamente vastas (HERRERO, César Herrero. Criminologia. Parte general y especial. Madrid: Dykinson, 1997, p. 475). Ademais, o crime em larga escala também não é um fenômeno recente. Em uma perspectiva histórica, o contrabando, por exemplo, teve momentos de alta dose de sofisticação, como no caso das grandes quadrilhas que atuavam na França durante o antigo regime. Os piratas dos séculos XVI e XVII, por sua vez, tinham uma organização ainda mais estável, contando com o apoio de algumas nações e uma estrutura de trabalho que contava com receptadores para as mercadorias roubadas e portos seguros (MINGARDI, Guaracy. O Estado e o crime organizado. São Paulo: IBCCrim, 1998, p. 47). Raúl Zaffaroni é enfático em afirmar que “o ‘organized crime’ como tentativa de categorização é um fenômeno de nosso século e de pouco vale que os autores se percam em descobrir seus pretensos precedentes históricos, mesmo remotos, porque entram em contradição com as próprias premissas classificatórias. É absolutamente inútil buscar o crime organizado na Antigüidade, na Idade Média, na Ásia ou na China, na pirataria etc., porque isso não faz mais que indicar que se há olvidado uma ou mais das características em que se pretende fundar essa categoria, como são a estrutura empresarial e, particularmente, o mercado ilícito (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. “Crime organizado”: uma categorização frustrada. Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro: Relume/Dumará, ano 1, v. 1, pp. 45-67, 1996, p. 46). Cf. HASSEMER, Winfried. Três temas de Direito Penal. Porto Alegre: FESMP, 1993, pp. 66-67.
Diante de um outro prisma analítico, o desenvolvimento cada vez mais complexo do crime organizado, associado às raras notícias de investigação eficiente, colheita de provas suficientemente incriminadoras e punição dos indivíduos responsáveis – especialmente em relação àqueles que ocupam o topo da pirâmide estrutural – denunciam que as formas jurídicas oficialmente utilizadas para o controle da criminalidade de massa, da maneira como se encontram dispostas, não se mostram adequadas para aplicação no âmbito da criminalidade organizada.
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A cada dia, existe a possibilidade de surgimento de novas formas de criminalidade organizada, potencializadas pela constante evolução tecnológica. Quase como um grave vírus, que cada vez aparece em uma nova roupagem, pouco se sabe sobre “como”, “onde” e “quando” age e, principalmente, quais as “formas para isolá-lo e controlá-lo”. Por outro lado, são sabidas as devastadoras conseqüências que ocasiona ou pode ocasionar. Cf. GÓMES MONT, Fernando. La procuración de justicia: problemas, retos y perspectivas. Legislación vigente y poder de la delincuencia organizada: necesidad de reformas. México: Editorial Amanuense, 1994, p. 405; REALE JÚNIOR, Miguel. Crime organizado e crime econômico. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 4, no 13, pp. 182-190, jan./mar. 1996, pp. 184-185; MINGARDI, 1998, pp. 8190; KAISER, Günter. Introduccion a la criminologia. 7. ed. Madrid: Dykinson, 1988, p. 225; e FRANCO, Alberto Silva. Um difícil processo de tipificação. Boletim IBCCrim, no 21, p. 5, [s. d.]. 267
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A constatação desta crise estrutural, associada ao medo dessa nova forma de delinqüência14 (diariamente explorados pelo poder mediático), acaba se tornando a principal responsável pelas mais radicais alterações e exacerbações do poder de polícia e do próprio Direito Penal nos últimos tempos. Princípios de garantia material e processual são limitados ou mesmo afastados. Cada dia mais se avança em direção a um direito especial ou de exceção (emergencial),15 correspondente a um desvio dos padrões tradicionais do sistema repressivo, estabelecendo um subsistema que se afasta das normas e princípios válidos para a normalidade.16 O atual debate sobre política criminal veicula a impressão de que a solução do problema consiste em conferir às autoridades da segurança pública os instrumentais irrestritos (ou quase) que sempre almejaram.17
Nesses casos, como afirma Ferrajoli,18 a “razão de Estado” passa a prevalecer sobre a “razão jurídica”. Todavia, prossegue o autor que a razão de Estado é incompatível com a jurisdição penal do moderno Estado de Direito, de forma que quando ela intervém – como no Direito Penal de emergência – para condicionar as formas de justiça, ou pior, para orientar um processo penal em concreto, já não existiria mais jurisdição, mas sim outra coisa: arbítrio policial, repressão política e regressão neo-absolutista do Estado a formas pré-modernas. Ao mesmo passo, o Direito Penal passa a antecipar drasticamente a sua função repressiva. Mendoza Buergo19 estabelece que a tendência da política criminal é se voltar a um Direito Penal “preventivo” (e não mais apenas repressivo) com acentuado adiantamento da proteção penal, freqüentemente utilizando o recurso da formulação de delitos de perigo – inclusive de perigo abstrato – bem como a configuração de novos bens jurídicos universais de vago conteúdo. Em outras palavras, é propensa a proteger mais e distintos bens. Mais: os protege antes, em um estado anterior a sua lesão, flexibilizando – também dessa forma – os pressupostos clássicos de imputação objetivos e subjetivos, assim como princípios garantistas próprios do Direito Penal de um Estado de Direito. No que tange à esfera processual, ensina Salo de Carvalho20 que a tendência passa a ser a de fomentar (manter) sistemas inquisitoriais, suprimindo os direitos de ampla defesa. Em nome da eficácia e da luta contra a impunidade, diminuem-se substancialmente garantias como as
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Como refere Sica, diante da escalada do crime, todos se sentem vulneráveis, vítimas em potencial e colocados em estado de beligerância contra o “inimigo”. De fato, a manipulação do medo – que, embora sendo um sentimento natural do homem, o afasta da realidade e do discernimento e, vivido coletivamente, gera a angústia, diante da qual o perigo se torna tanto mais temível quanto menos claramente identificado – e das angústias populares não é novidade na história, muito embora tenha ela abstraído a relação e a distinção entre a “necessidade de segurança” e o “sentimento de medo”, que visivelmente se embaralham no sentimento coletivo (SICA, Leonardo. Direito penal de emergência e alternativas à prisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 78-80). Para Choukr, a idéia de emergência está atrelada à idéia de urgência (e, num certo sentido, à de crise), a algo que, de forma repentina, surge de modo a desestabilizar o status quo ante e os padrões normais de comportamento e possibilidade de manutenção das estruturas. Ademais, a expressão se atrela à necessidade de uma resposta pronta e imediata, que deve durar enquanto o estado emergencial perdura (CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pp. 1-2) Como estabelece Adriasola, esta postura não importa aceitar a renúncia às garantias do Direito clássico, mas apenas reconhecer a sua “insuficiência” diante desta nova realidade criminal. Se trata, em última análise, de uma decisão de política criminal que os legisladores e operadores de Direito deverão adotar ou rechaçar, não deixando de reconhecer o autor que o direito emergencial quebra todo o paradigma do Direito Penal e Processual Penal liberal, destinado a garantir a esfera de liberdade do indivíduo frente ao Estado (ADRIASOLA, Gabriel. El nuevo derecho sobre toxicos y el lavado de dinero de la droga. Montevidéo: Fundacion de Cultura Universitaria, 1994, p. 97). O pânico que se instaura na população é aproveitado por movimentos políticos que apresentam um “remédio milagroso” – amparado na ideologia da repressão – que nada mais é do que o velho regime punitivo-retributivo, que agora recebe o nome de “Movimento de Lei e Ordem”. Alegam seus defensores que a violência somente poderá ser controlada através de leis severas, que imponham, por exemplo, a pena de morte e longas penas privativas de liberdade (eis que a violência também seria decorrente do tratamento benigno dispensado pela lei aos criminosos que, em virtude disto, não lhe teriam respeito). Estes seriam os únicos meios eficazes para intimidar e neutralizar os
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criminosos, bem como de “fazer justiça às vítimas” e aos “homens de bem”, ou seja, aos que não delinqüem. Essas idéias, que são rechaçadas pelos intelectuais, liberais, são tentadoras para o povo, que exige uma solução imediata para o problema da segurança pública (ARAUJO JUNIOR, João Marcello de. In: ARAUJO JUNIOR, João Marcello de (Org.). Sistema penal para o terceiro milênio. Atos do Colóquio Marc Ancel. 2. ed. Rio de Janeiro: Revam, 1991, pp. 65-79, pp. 70-71). FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoria del garantismo penal. 3. ed. Madrid: Trotta, 1998, p. 814. A contradição fundamental entre a razão de Estado e o Estado de Direito, para Ferrajoli, reside no fato de que, enquanto no primeiro o critério utilizado é o da subordinação dos meios (indeterminados e não regulados) à consecução dos fins políticos cuja formulação se confia – realística ou historicamente – à pessoa do soberano (titular do poder estatal); no segundo, ao contrário, existe a subordinação dos fins políticos ao emprego dos meios juridicamente preestabelecidos (fechados e determinados, eis que vinculados à lei). BUERGO, op. cit., pp. 44-45. CARVALHO, Salo de. As reformas parciais no processo penal brasileiro. In: UNISINOS. Anuário do programa de pós-graduação em direito. Mestrado e doutorado. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 321. 269
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da presunção de inocência e do contraditório (gradual inversão do ônus da prova e inserção de juízos de periculosidade), da individualização (taxação cada vez maior das penas), da oralidade (ampliação das formas escritas), da imparcialidade do juiz (gestão da prova pelo órgão julgador) e da idoneidade da prova (admissibilidade de provas tradicionalmente consideradas ilícitas e/ou provas ilícitas por derivação). Considerando que o crime organizado continua sendo uma categoria ainda desconhecida, em vias de construção, todo tipo de testes e de experiências (quanto às respostas estatais para o problema) vem sendo adotado. Na falta de recursos e mecanismos mais sofisticados, a tendência tem sido a simplificação (do problema e da solução), o engano (que se dá pelo direito penal simbólico), a improvisação (mediante intervenções militares), a reação violenta (esquadrões da morte, chacinas, linchamentos) ou a sugestão de medidas flagrantemente inconstitucionais (como pena de morte, prisão perpétua, punição penal do menor de dezoito anos, inversão do ônus da prova, eliminação da publicidade, do devido processo penal, fim do sistema acusatório etc.).
mediante uma identificação adequada dos mecanismos envolvidos na atuação do crime organizado.
Porém, as características desta forma de delinqüência, associada às dificuldades de seu controle, não justificam a adoção de legislações substantivas ou adjetivas de emergência e, muito menos, o obscurecimento de garantias individuais há séculos consagradas.21 Referindo-se ainda à suposta “praticidade” da redução das garantias, Cervini22 destaca que não é admissível que, para contemplar o adjetivo (dificuldades probatórias), se termine por desprezar o substantivo (princípios dogmáticos). O Direito Penal não deve e nem pode ser responsabilizado por essas dificuldades probatórias, principalmente tendo em conta que elas podem ser normalmente superadas
4. Os Rumos (Viáveis) do Direito Penal em Relação ao Crime Organizado Diante do exposto, pode-se extrair a conclusão de que a sociedade contemporânea vive um verdadeiro paradoxo na proteção de seus bens jurídicos fundamentais, o que é chamado por Oliveira Terra23 de “dilema instrumental”. Com efeito, o Direito Penal liberal não existe apenas para proteger a sociedade, mediante o sancionamento daqueles que ousem infringir uma norma jurídico-penal. As idéias de igualdade e liberdade, estampadas especialmente durante o Iluminismo, conferiram ao Direito Penal um caráter formal menos cruel do que aquele observado durante o período absolutista, mediante a imposição de limites à intervenção estatal na esfera do particular. Em outras palavras, o Direito Penal passou a ter a característica, concomitante, de “combater” o delito e limitar o poder interventivo do Estado.24 Na lição de Geraldo Prado,25 a consolidação da modernidade proporcionou a formação de uma estrutura de direitos e garantias de natureza penal que, ao lado de controlar a resposta estatal aos atos criminosos, atenuando-lhe a brutalidade, buscou definir o Estado como entidade cujos atos de seus agentes deveriam situar-se nos marcos de uma legalidade prenhe de legitimidade e conformada eticamente. Dessa forma, prossegue o autor, os atos de repressão, apuração e punição das infrações penais e de seus autores não poderiam ser, de forma alguma, equiparáveis aos atos dos próprios agentes de delito. Diante destas constatações, a questão que se estabelece é a de valorar até que ponto o sistema penal se encontra em condições de fa-
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Para Streck, não é segredo que, historicamente, o direito tem servido, de forma preponderante, muito mais para sonegar direitos do cidadão do que para salvaguardálos (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 58). CERVINI, Raúl. Criminalidad organizada y lavado de dinero. In: COPETTI, André (Org.). Criminalidade moderna e reformas penais: estudos em homenagem ao Prof. Luiz Luisi. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 77.
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TERRA, Willian de Oliveira. Inovação legislativa em matéria penal: uma delicada solução no combate ao delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 3, no 12, pp. 201-205, out./dez. 1995, p. 202. BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal. Parte Geral. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. v. 1, p. 9. PRADO, Geraldo. Da lei de controle do crime organizado: crítica às técnicas de infiltração e escuta ambiental. In: WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Escritos de direito e processo penal em homenagem ao professor Paulo Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, pp. 125-137. 271
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zer frente à criminalidade organizada com amparo em um instrumental penal garantista. As opções de respostas elaboradas pela doutrina podem esquematizar-se em três grandes linhas. Para a primeira delas, os enfoques do Direito Penal garantista devem ser igualmente observados em relação às novas formas de delinqüência, aplicando-se os instrumentos de dogmática e princípios de atribuição já conhecidos, mesmo que se cogite que esse modelo não possibilite um resultado eficaz. A segunda, em contrapartida, sustenta uma flexibilização de tais instrumentos, regras e princípios já assentados, com intenção de controlar mais eficazmente as formas de criminalidade hoje verificadas, adaptando o Direito Penal aos novos tempos. A linha derradeira sustenta a renúncia da expansão dos preceitos penais a estes novos âmbitos de atuação, por considerar que não correspondem eles à tarefa própria do Direito Penal, que com isso perderia a sua identidade e justificação.26 Entre os anseios de expansão irrestrita da intervenção penal (Direito Penal máximo e antigarantista) e a necessidade de preservação do núcleo tradicional do Direito Penal – amparado na função exclusiva de proteger subsidiariamente os bens jurídicos fundamentais e de defender direitos, liberdades e garantias individuais – como propõem, dentre outros autores, Winfried Hassemer e Luigi Ferrajoli, existem posições intermediárias, como a defendida por Jesús-María Silva Sánchez, tida como de “expansão moderada”, ou de “dupla velocidade”. Hassemer27 sustenta que o Direito Penal por ele chamado de “moderno”, além de demonstrar traços empíricos, é acompanhado por outras três características principais: a proteção dos bens jurídicos (que deixa de ser um critério negativo para se tornar um critério positivo de incriminação), a prevenção (modificando os princípios da igualdade e da uniformidade de tratamento) e a orientação pelas conseqüências (deslocando a igualdade e a retribuição do injusto para a margem da política criminal).
Para o autor, o caminho viável para restringir o âmbito da atuação penal – e, ao mesmo tempo, tutelar os bens jurídicos que surgem de forma crescente – seria transferir determinada parcela da tutela jurídico-penal – aquela a que o Direito Penal clássico não parece apto a controlar – para o âmbito do Direito Penal Administrativo. Esse novo campo do Direito, chamado por Hassemer de “direito de intervenção”, ao mesmo tempo em que não aplicaria as sanções mais gravosas do Direito Penal, seria embasado em garantias reduzidas e orientado pelo perigo. Tornar-se-ia, assim, na opinião do penalista da escola de Frankfurt, um modelo “mais eficaz”.28 Na posição de Silva Sánchez,29 a abusiva expansão do Direito Penal conferiu-lhe cargas incapazes de serem suportadas. O conflito entre um Direito Penal “amplo e flexível” e um Direito Penal “mínimo e rígido” deve alcançar um ponto médio “funcional e suficientemente garantista”. Assim, o modelo do “Direito Penal de duas velocidades” resguarda para o sistema clássico de imputação os delitos aos quais são atribuídas penas privativas de liberdade. Para os demais, seria admitida uma “flexibilização controlada” dos mesmos critérios de responsabilização.30 Este sistema seria dotado de um “cerne”, ao qual restariam mantidos os princípios do Direito Penal clássico, e de uma “periferia”, especialmente dirigida à proteção contra os grandes e novos riscos, e onde aqueles princípios se encontrariam limitados ou transformados, dando lugar a outros com menor intensidade de garantias (princípios estes ainda pertencentes ao Direito Penal, embora substancialmente aparentados com os princípios do direito sancionatório de caráter
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Cf. BUERGO, op. cit., pp. 60-61. Ainda em atenção às três grandes linhas trazidas a lume, é alentadora a conclusão dos participantes do XVI Congresso da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP) que, no que tange às garantias do acusado no crime organizado, estabeleceu que há necessidade de assegurar o Estado de direito com os princípios e garantias que lhe são inerentes. Cf. HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, no 8, 2002. (no prelo).
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Cf. HASSEMER, op. cit., 1993. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Op. cit., pp. 124-125. Em resumo, para Silva Sánchez, “en la medida en que la sanción sea privativa de libertad, una pura consideración de proporcionalidad requeriría que la conducta así sancionada tuviera una significativa repercusión en términos de afectación o lesividad individual; a la vez, procedería – precisamente por lo dicho – mantener un claro sistema de imputación individual (personal). Ahora bien, en la medida en que la sanción no sea privativa de libertad, sino privativa de derechos o pecuniaria, parece que no habría que exigir tan estricta afectación personal; y la imputación tampoco tendría que ser tan abiertamente personal. La ausencia de penas ‘corporales’ permitiría flexibilizar el modelo de imputación. Con todo, para dotar de sentido a este nivel sí sería importante que la sanción se impusiera por una instancia judicial penal, de modo que retuviera (en la medida de lo posible) los elementos de estigmatización social y de capacidad simbólico-comunicativa proprios del Derecho penal” (SILVA SÁNCHEZ, op. cit., pp. 126-127). 273
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administrativo). Para esta (dupla) via, todos os comportamentos ameaçados com pena privativa de liberdade deveriam ser imputados junto ao “cerne” do sistema, por razões de defesa dos direitos, liberdades e garantias. Ao manter as duas velocidades de atuação penal dentro de um mesmo sistema, o modelo de Silva Sánchez renuncia à teoria do Direito Penal como uma teoria geral e uniforme, com a suposta vantagem – em relação à concepção de Hassemer – da manutenção da judicialização (imparcialidade) das decisões e do significado penal dos tipos e das sanções. Na proposta de Ferrajoli31 – denominada de “garantista”, “cognitiva” ou de “legalidade estrita” – o modelo-limite (apenas tendencialmente e jamais perfeitamente satisfatível) é consubstanciado em dez axiomas ou princípios axiológicos fundamentais, expressados nas máximas latinas: 1) Nulla poena sine crimine (princípio da retributividade ou da sucessividade da pena ao delito); 2) Nullum crimen sine lege (princípio da legalidade no sentido lato ou estrito); 3) Nulla lex (poenalis) sine necessitate (princípio da necessidade ou da economia do direito penal); 4) Nulla necessitas sine injuria (princípio da lesividade ou da ofensividade do evento); 5) Nulla injuria sine actione (princípio da materialidade ou da exterioridade da ação); 6) Nulla actio sine culpa (princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal); 7) Nulla culpa sine judicio (princípio da jurisdicionalidade); 8) Nullum judicium sine accusatione (princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação); 9) Nulla accusatio sine probatione (princípio do ônus da prova ou da verificação); 10) Nulla probatio sine defensione (princípio do contraditório, da defesa, ou da refutação). Como aduz Salo de Carvalho,32 a teoria do garantismo penal se propõe, antes de mais nada, a estabelecer critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloque a “defesa social” acima dos direitos e garantias individuais, fazendo com que os direitos fundamentais atinjam o status de intagibilidade. Sendo o Direito Penal um “remédio extremo”, devem ser deixados para a esfera do ilícito civil (quando os prejuízos forem reparáveis) ou
do ilícito administrativo os delitos de mera desobediência, os fatos que lesionam bens não essenciais ou os que são, só em abstrato, presumidamente perigosos. No mesmo sentido, é totalmente descabida a utilização do Direito Penal para “reforçar” a obediência de obrigações civis ou administrativas, sem qualquer menção à idéia de bem jurídico ou lesividade da conduta.33 Atentando para as perspectivas de reforma da legislação, entende Ferrajoli34 ser necessária uma nova codificação dirigida a restaurar (com as garantias para os cidadãos) a legitimação formal e substancial da jurisdição. Quanto à forma, cumpre ser reabilitada a lei penal dos maciços processos de descodificação, da linguagem obscura e plurívoca, que a torna incapaz de oferecer a certeza ao cidadão ou de impor limites ao arbítrio judicial (quanto aos delitos), bem como da sua excessiva severidade (quanto às penas). Quanto aos conteúdos, impõese a recuperação de uma dimensão axiológica à altura dos valores da Constituição, mediante a seleção de todos (e apenas) os bens jurídicos merecedores da tutela penal. Isso significa, para o autor, além da indicação dos já referidos bens jurídicos, despenalizar todos os crimes menores, das contravenções aos crimes punidos com simples penas pecuniárias; ampliar a esfera da tutela civil e administrativa; suprimir as figuras penais elásticas e indeterminadas; expulsar do sistema toda forma (manifesta ou oculta) de responsabilidade objetiva ou coletiva; reduzir as penas pela metade (como já ocorre hoje de fato) e estabelecer um limite máximo para qualquer delito de não mais de dez anos.35 Os três modelos apresentados, embora não se encontrem imunes a críticas, apresentam possíveis e razoáveis caminhos a serem adotados no controle da criminalidade organizada. Diante de uma perspectiva questionadora, no pensamento de Hassemer o Direito Penal Administrativo herda toda a problemática derivada da delinqüência atual. Embora facilitada a punição administrativa pela simplificação dos pressupostos de responsabilização e redução das garantias, ainda parece distante da realidade a forma como o Estado será capaz de instrumentalizar esse modelo. Isso 33
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FERRAJOLI, op. cit., p. 93. CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 17.
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Cf. FERRAJOLI, Luigi. O direito como sistema de garantias. In: OLIVEIRA JR., José Alcebíades de. O novo em direito e política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, pp. 89-109. FERRAJOLI, 1998, pp. 834-835. Ibid., pp. 834-835. 275
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porque, além de permanecerem presentes os problemas estruturais já identificados quanto ao controle dessa forma de criminalidade mutante e ainda por demais desconhecida (especialmente a falta de recursos financeiros e tecnológicos e a baixa especialização técnica dos agentes persecutórios), outros ainda seriam criados, principalmente quanto à decisão de quais garantias seriam flexibilizadas e quais seriam os novos conceitos, princípios e regras de imputação deste novo ramo do Direito a ser constituído. Não muito diferentes são os comentários que podem ser direcionados ao direito de dupla velocidade de Silva Sánchez. Todavia, com o agravante de que esse modelo cindiria o próprio Direito Penal em dois hemisférios diferenciados (trabalhando de forma dinamicamente distinta), tornando problemáticas as confusões que seriam criadas na distinção de cada um dos pólos, principalmente nas já imagináveis zonas limítrofes. Em relação à teoria de Ferrajoli, não raro é ela acusada de ser demasiadamente “liberal”, radical e fantasiosa.
semeou uma crise de confiança no próprio Estado, cada vez mais evidente e propagada. Das três concepções destacadas, o garantismo é o que melhor parece responder racionalmente ao norte a ser perseguido no controle do crime organizado. Embora se trate de um tipo ideal, que nunca será realizado em sua plenitude,37 a formulação garantista do Direito Penal pressupõe, antes de mais nada, o fim da emergência, expurgando do sistema o seu caráter ingênuo, irracional, político e simbólico. Dessa forma, a manutenção das garantias básicas do indivíduo se tornaria o pressuposto de qualquer (novo) modelo (que venha a ser) adotado. A crítica do Direito Penal e das estruturas à sua disposição – provavelmente atualizando seus conceitos e paradigmas, bem como ampliando seus tentáculos em direção a outras ciências – se torna definitiva para a obtenção do padrão a ser utilizado. Já é passado o tempo em que se pôde admitir ou consentir que os problemas sociais mais graves e complexos poderiam ser resolvidos pelo Direito Penal, como num passe de mágica, independentemente do custo dessa “solução”. No mesmo diapasão, a ignorância e o medo exagerado do crime organizado, associados às já por demais conhecidas dificuldades no seu controle – dificuldades essas que, em última análise, são eminentemente estruturais –, não podem servir de subterfúgio para uma reforma mais ampla do sistema penal, sobretudo se contaminada pelos ideais emergenciais (irracionais) tendentes a uma antecipação da tutela penal e flexibilização das garantias dos cidadãos.38
5. Considerações Finais O Direito Penal da globalização, em uma suma do que já foi até aqui tratado, ao combinar o adiantamento da tutela penal com a configuração de novos bens jurídicos e a flexibilização das estruturas e princípios do Direito Penal consubstanciados pelo Estado de Direito, acabou por ampliar demasiadamente o modelo de imputação amparado na idéia de dano ou lesão, criando assim um direito preventivo simbólico, ineficaz e contraproducente,36 por falta de autoridade e legitimidade. A própria população já desvelou essa falácia. A sucessiva edição de leis penais “heróicas” e “solucionadoras dos problemas” passou não só a deixar de servir para acalmar a população (é tradição no Brasil dizer-se que “as leis são boas”, no entanto “não são cumpridas”) como
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Por mais que se recalcitre na disseminação das idéias de maior rigor repressivo e dramatização da violência, não existe qualquer comprovação de que leis dessa natureza tenham a capacidade de sobrestar o crescimento ou de reduzir o ritmo das taxas de criminalidade. Ao revés, os índices crescem, se tornam estáveis ou mesmo se reduzem sem qualquer relação com a exacerbação do poder punitivo incutido à legislação penal (Cf. FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: anotações à Lei 8.072/90. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000).
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Para Salo de Carvalho, o seu objetivo é demonstrar a constante tensão entre dois modelos diversos e assimétricos de percepção da realidade jurídica e política (garantista e inquisitorial), procurando otimizar ao máximo a estrutura tutelar dos direitos fundamentais. Ao mesmo tempo, impõe limites à lei e ao próprio juízo, restringindo o poder punitivo e garantindo os indivíduos contra qualquer tipo de violência, pública ou privada (CARVALHO, Salo de. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 69). Para Figueiredo Dias, o novo século e o novo milênio “devem assistir à persistência da função do direito penal de exclusiva tutela subsidiária de bens jurídico-penais tanto individuais e pessoais como sociais e transpessoais; porque essa função é exigida pela persistência do ideário personalista, pelo património irrenunciável dos direitos humanos, numa palavra, pelo quadro axiológico de valores que nos acompanha desde o século XVIII e deve ser aperfeiçoado no futuro – mesmo num futuro onde tenha mudado radicalmente a relação entre o Homem e a Natureza. O Direito Penal deve continuar a resguardar-se de tentativas de instrumentalização como forma de governo, de propulsão e promoção de finalidades da política estadual, ou de tutela de ordenamentos morais – porque aí mesmo abdica o movimento de secularização que se apresenta como um dos 277
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A estratégia penal pode ser complementada por outras formas de controle que passem, por exemplo, por uma maior transparência do setor financeiro e por uma ampliação da normativização administrativa dos “comportamentos-meio” para a atividade da criminalidade organizada, especialmente mediante o corte dos canais de comunicação com a legalidade econômica. O que não se deve fomentar é a crença de que somente através da destruição das bases de legitimação da intervenção penal é que se obteria algum êxito no controle dessa forma de criminalidade. Nas palavras de Choukr,
direta com a diminuição da criminalidade que, na sua constituição, é mais lógica e funcional que o Estado.39
Se o sistema repressivo oferece algo de positivo, na relação custo-benefício com a ruptura do processo cultural da normalidade, sua desvantagem é notória. Seu emprego não compensa o desfazimento do sistema jurídico garantidor porque, na essência de sua correta aplicação, ele traduz o caminho adequado para a composição legítima do convívio social. (...) Rigorosamente falando, o crime organizado, suas variantes e alarmantes conseqüências não foram causados por qualquer dos direitos fundamentais. Suas soluções não passam, por certo, pela violação destes. E mesmo no processo, para fechar o foco no tema mais direto da obra, nenhuma das garantias do chamado “due process of law” é responsável pelo suposto fracasso no combate a essa forma de criminalidade. Obedecer aos princípios fundamentais (...) não significa compactuar com o caos propagandeado. Ao contrário, violálos fecha a última porta de racionalidade que resta ao sistema. Por outro lado, incrementar tribunais com poderes secretos (vide lei brasileira de combate ao crime organizado), com juízes e promotores ocultos, admitindo indevidas inversões de ônus da prova, tolerar provas ilícitas para encobrir a ineficiência estatal de equipar material e profissionalmente os quadros de segurança pública, não tem qualquer relação factores mais importantes da superação da razão instrumental. A dogmática penal deve evoluir, fornecendo ao aplicador critérios e instrumentos que não podem ser decerto os dos séculos passados como formas adequadas de resolver os problemas do século XXI; mas sem por isso ceder à tentação de ‘dogmáticas alternativas’ que podem, a todo momento, volver-se em ‘alternativas à dogmática’ incompatíveis com a regra do Estado de direito e, como tal, democraticamente ilegítimas (DIAS, op. cit., p. 65). 278
Nunca é demais lembrar que os laços de direitos e garantias referentes ao Direito Penal não são movidos, simplesmente, por sentimentos “caridosos”, destinados a dar um tratamento humanitário aos “azarados” que caíram na malha do aparato criminal. Na verdade, ao defender-se um sistema controlado por princípios e normas preestabelecidas, está-se objetivando a defesa de todos os cidadãos, especialmente aqueles que não fazem parte da clientela do Direito Penal.
Referências Bibliográficas ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização: lições de filosofia do direito e do Estado. Tradução Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. ADRIASOLA, Gabriel. El nuevo derecho sobre toxicos y el lavado de dinero de la droga. Montevidéo: Fundacion de Cultura Universitaria, 1994. ALBROW, Martin. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. ARAUJO JUNIOR, João Marcello de. Os grandes movimentos da política criminal de nosso tempo: aspectos. In: ARAUJO JUNIOR, João Marcello de (Org.). Sistema penal para o terceiro milênio. Atos do Colóquio Marc Ancel. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991, pp. 65-79. BAUMANN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. Parte Geral. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. v. 1. BUERGO, Blanca Mendoza. El Derecho Penal em la sociedad del riego. Madrid: Civitas Ediciones, 2001. CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. CARVALHO, Salo de. As reformas parciais no processo penal brasileiro. In: UNISINOS. Anuário do programa de pós-graduação em direito. Mestrado e doutorado. São Leopoldo: Unisinos, 2001, pp. 303-344. 39
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Perspectivas de Controle do Crime Organizado na Sociedade Contemporânea
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PARTE III EXECUÇÃO PENAL
O Discurso Ressocializador e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana Natalia Gimenes Pinzon “Passarinho, que logras docemente Os prazeres da amável inocência. Livre de que a culpada consciência Te aflija, como aflige o delinqüente. Fácil sustento e sempre mui decente Vestido te fornece a Providência; Sem futuros prever, sua existência É feliz, limitando-se ao presente. Não, assim, ai de mim! porque sofrendo A fome, a sede, o frio, a enfermidade, Sinto também do crime o peso horrendo. Dos homens me ordena a iniqüidade, A calúnia me oprime; e, ao fim tremendo Me assusta uma espantosa eternidade”. Bento Figueiredo Tenreiro Aranha
Breve Nota Introdutória A justificativa ressocializadora da pena encontra guarida em muitas legislações penais. Além disso, ela vem mascarada pela sua finalidade humanitária, como atenuante para a punição e servindo aos fins da defesa da sociedade. Em um Estado Democrático de Direito laico, como o previsto pela Constituição pátria, que tem como cerne a proteção dos direitos fundamentais, dentre eles a liberdade de consciência e a de religião, torna-se necessário problematizar a violência estatal com a ingerência no eu do mais fraco na relação, que, neste caso, é o apenado. Assim, questionamos a justificativa ressocializadora da pena enquanto imposição estatal de uma moral religiosa, intentando atingir a alma do condenado/apenado por violar o princípio da dignidade da pessoa, especialmente quando da realização dos laudos/pareceres técnicos em que se exige o arrependimento do apenado para que ele obtenha parecer favorável para galgar etapas na progressividade do sistema de execução penal. 285
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1. Contextualização da Temática à Luz da Modernidade e da Contemporaneidade Vivemos, a partir do século XVI, grandes alterações no espírito humano. A Modernidade, advinda de um processo de secularização que negou a autoridade divina sobre os negócios mundanos, surge como paradigma em que o homem passa a ser o construtor do mundo. Esse homem se pensa como liberdade e vontade; logo, é ele o responsável pelo devir. Tal responsabilidade é advinda de uma concepção de racionalidade e de empirismo, o grande dilema da Modernidade. Por isso, não podemos falar de Modernidade como um todo uno e coerente; bem pelo contrário, ela se apresenta cheia de paradoxos. Aliada à idéia de Modernidade está a necessidade da cientificidade, da segurança, da certeza, e da verdade, pois é justamente a adoção do método científico que seria capaz de reduzir a complexidade para melhor controlar o universo. No entanto, com a Contemporaneidade e seus questionamentos acerca da complexidade, da instabilidade, do caos e da reinserção da flecha do tempo, acabamos por ver que o rigor da certeza, da segurança, da verdade e da cientificidade, promessa da Modernidade, restou desmoronado. Vivenciamos um período em que não podemos mais falar em certezas, em verdades, nem mesmo em probabilidades, apenas em possibilidades, que levam em consideração aquilo que pode ocorrer e o que pode não correr. Assim, permeada pela complexidade, devemos admitir que a Contemporaneidade é tudo o que está posto, ou seja, que várias são as lógicas que devem conviver ao mesmo tempo, e algumas delas ainda observam pressupostos do paradigma da Modernidade. Nesse diapasão se encontra o Direito, especialmente o Direito Penal, que é moderno e propugna ainda pela segurança e pela certeza, muito embora estejamos conscientes de suas limitações.
2. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Liberdade de Consciência e Religiosa A noção de dignidade humana vem de longa data. No entanto, foi apenas com o renascentista Pico della Mirandola que tal expressão ganhou o cunho que adotamos no presente artigo: dignidade da pessoa humana enquanto calcada em um humanismo laico. Foi justamente na Renascença que o homem, ainda sem negar a Deus, dá-se conta de que 286
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possui um lugar mundano por sua própria dignidade, passando inclusive a realizá-la concretamente. Neste período, tomou-se consciência que o homem tem capacidade de modificar o universo, não devendo ser um mero expectador.1 Para Pico della Mirandola, a temática da dignidade do homem é um problema da razão, da liberdade humana e do ser. Há, então, uma afirmação da razão; logo, situada no paradigma da Modernidade. E é justamente esta capacidade racional que proporciona ao homem tomar consciência de sua dimensão como ser livre. O homem passa a ser visto como “a única criatura que é liberta da natureza determinante; ele é autor, projeto de si mesmo”.2 Nos séculos XVII e XVIII, dentre os jusnaturalistas, destacou-se Immauel Kant. Ele concebia a dignidade a partir da autonomia ética do ser humano, considerando-a como fundamento de sua dignidade, além de sustentar que o ser humano não pode ser tratado meramente como objeto.3 Kant defendia, além disso, que o homem, enquanto ser racional, existe como fim em si mesmo, e tal existência possui em si mesma um valor absoluto, e é sempre fim em todas as suas ações, o que leva a poder ser fundamento para um imperativo categórico. Assim, os seres racionais, chamados de pessoas, se diferenciam das coisas porque “sua natureza os distingue como fins em si mesmos, ou seja, como algo que não pode ser usado meramente como meio”.4 1 2 3
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NOGARE, Pedro dalle. Humanismos e Anti-Humanismos: Introdução à Antropologia Filosófica, pp. 62-63. NOGARE, Pedro dalle. Humanismos e Anti-Humanismos: Introdução à Antropologia Filosófica, pp. 13, 26, 27 e 64. PÉREZ LUÑO, Antonio E. Los Derechos Fundamentales, p. 31. Pufendorf resumiu na dignidade humana o postulado do qual deriva seu sistema de direitos naturais. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 32. KANT, Immanuel. Fundamentación de la Metafisica de las Costumbres, 1996, pp. 81, 92, 102, 103, 104 e 119, tradução nossa. Kant utiliza como segundo critério para diferenciar o direito da moral os imperativos, que podem ser hipotéticos ou categóricos. Os imperativos categóricos dizem respeito ao imperativo moral, sendo entendidos como preceitos que prescrevem uma ação boa por si mesma. Neste sentido BOBBIO, Norberto, Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, pp. 104-105. Com o intuito de estruturar as bases de um “dever-ser” que se encontra na razão, Kant lança os pilares de sua filosofia prática. Teremos assim o imperativo categórico que se impõe a uma vontade afetada pela sensibilidade a fim de que os objetivos desta sejam os mesmos da razão. O primeiro desdobramento do imperativo categórico – “Age segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” – exige a conformação da vontade a uma lei universal, pois por esse procedimento (universalização) será possível 287
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Por fim, quando falamos em dignidade da pessoa humana não podemos olvidar que a pessoa não pode ser considerada apenas um meio, mas sempre um fim em si mesma. Com isso, o ser humano não é passível de qualquer espécie de coisificação e de instrumentalização.5 No entanto, definir o que entendemos por dignidade humana é tarefa das mais árduas. Com menos dificuldade, afirmamos que a dignidade é uma qualidade inerente ao ser humano, pois constitui o próprio valor que identifica o ser humano enquanto tal. Entretanto, isso não denota concretamente o que ela é. Podemos dizer que a categoria axiológica dignidade da pessoa humana é aberta, uma vez que reclama uma constante concretização e delimitação pela práxis constitucional.6 Contudo, para que tenhamos uma delimitação mínima do conteúdo da dignidade da pessoa humana, devemos partir do pressuposto de que ela é uma qualidade intrínseca do ser humano, não podendo dele ser retirada nem renunciada ou negociada. Justamente pelo fato de ser uma qualidade inerente à pessoa humana não podemos também pensar na possibilidade de ela ser criada por algum ordenamento jurídico, pois apenas deve ser protegida, respeitada e promovida, o que não denota sua absolutização.7 No Brasil, com a adoção do princípio da dignidade da pessoa humana pela nossa Constituição, em seu artigo primeiro, inciso segundo, como um dos fundamentos de nosso Estado Democrático de
Direito,8 acabou-se criando uma ordem livre, desvinculada de qualquer dogma ou religião, não bastasse a opção por uma concepção de Estado laico, não-confessional, em que não há posicionamento constitucional acerca de qualquer religião. Bem pelo contrário, é direito fundamental a liberdade religiosa, como veremos no decorrer do texto. Trabalhamos, então, a dignidade humana – laica – enquanto autodeterminação e autonomia, porém não queremos dizer que ela seja equiparada à liberdade, e sim que seu núcleo duro está nessa autonomia e autodeterminação, mas não se esgota aí. É claro que a liberdade e seus correlatos direitos são decorrências da própria dignidade, mas com ela não se confundem. Miranda afirma que a força da autonomia patenteia-se, sobretudo, na inviolabilidade de consciência, de religião e de culto, ficando claro que são as liberdades as que melhor espelham essa autonomia pessoal.9 Na esteira de Sarlet, concebemos que
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perscrutar as máximas a fim de verificar a possibilidade de se tornarem leis da ação, universais e necessárias. A esse procedimento formal Kant agrega um outro imperativo que aponta para um valor em torno do qual gravita a moral: o ser humano. Teremos assim outro desdobramento do imperativo categórico: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” A este, se segue um terceiro que vem formar a tríplice base do imperativo categórico: “A vontade não está pois simplesmente submetida à lei, mas sim submetida de tal maneira que tem de ser considerada também como legisladora ela mesma, e exatamente por isso e só então submetida à lei (...)” (p. 119). Dessa maneira o imperativo categórico vem garantir a universalidade, o ser humano como valor absoluto e a autonomia como marcas de uma moral fundada metafisicamente na razão. Além disso, estas são marcas da própria dignidade humana. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 35. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 41. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, pp. 41-42. Neste sentido também ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, pp. 38-39.
onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para a sua existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.10 Farias, ao falar que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do nosso Estado, acaba por dizer também que ela é um dos elementos imprescindíveis para a legitimação da atuação do Estado brasileiro. Com isso, ele advoga que uma ação do Poder Público que restrinja de forma intolerável ou injustificável a dignidade deve ser acoimada de ilegítima e declarada inconstitucional.11 8 9 10 11
BRASIL. Constituição Federal, p. 15. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 46. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais, p. 194. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 61. FARIAS. Edilson Pereira de. Colisão de direitos: a Honra, a Intimidade, a Vida Privada e a Imagem Versus a Liberdade de Expressão e Informação, p. 51. 289
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Assim, afirmamos que a dignidade humana tem uma aura superior, o que não supõe que ela seja um princípio absoluto. Conforme Farias, a despeito de a dignidade humana ser um valor inerente a cada pessoa, ela não é um princípio absoluto e está sujeita a ponderações. A relativização, de acordo com Sarlet, ou convivência harmônica do princípio da dignidade da pessoa, faz-se necessária em homenagem à igual dignidade de todos os seres humanos.12 Miranda, por sua vez, advoga que a dignidade da pessoa humana confere “unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais da Constituição portuguesa, ressaltando que a pessoa é fundamento e fim da sociedade e do Estado”.13 Podemos defender, então, que o Estado está proibido de ingerência naquilo que chamamos núcleo duro da dignidade humana, e que envolve a sua livre autodeterminação, especialmente no que concerne ao aspecto de suas convicções interiores, desde que não constituam ameaça concreta a bens protegidos juridicamente. Não podemos negar que, conforme Sarlet, o direito à vida, o direito de liberdade e de igualdade correspondem diretamente às exigências mais elementares da dignidade da pessoa humana. O autor ainda defende que, mesmo que sem equiparar dignidade e liberdade, podemos, no entanto, afirmar que “a liberdade e, por conseqüência, o reconhecimento e a garantia de direitos de liberdade constituem uma das principais (senão a principal) exigências do princípio da dignidade da pessoa humana”.14 Como sabemos, os direitos individuais chamados direitos negativos estão ligados aos direitos de liberdade. Tais direitos podem ser entendidos como “um conjunto de direitos cuja missão fundamental é assegurar à pessoa uma esfera livre de intervenção da autoridade política ou do Estado”.15 A liberdade de cada um não deve ser entendida apenas quanto ao aspecto de deslocamento, aquela de ir e vir. Falamos mormente de uma das mais nucleares liberdades do indivíduo: a liberdade de consciên-
cia.16 A liberdade de consciência engloba também várias facetas, dentre elas a liberdade de pensamento, a liberdade religiosa, a liberdade de expressão, e, principalmente, a liberdade de ser. Dessa forma, criase uma reserva de interioridade, em que a liberdade do homem é ‘total’, não sendo permitida a intromissão nem do Estado nem da Sociedade. A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo quinto, inciso sexto, explicita a inviolabilidade da liberdade de consciência e da liberdade religiosa, deixando bem claro o direito de ser como uma das garantias fundamentais do indivíduo, que, conforme o parágrafo único do artigo primeiro da Constituição de 1988, tem o poder de formar o Estado. Além disso, tal Constituição é laica, pois prevê a liberdade de manifestação religiosa. Aliás, vem de longa data a laicização do Direito, ou seja, a separação entre Direito e Religião, entre Direito e Igreja. A liberdade religiosa está no cerne da problemática dos direitos fundamentais. Não podemos falar nem em plena liberdade cultural, nem em liberdade política se não estiver assegurada a plena liberdade religiosa em todas as sua dimensões, restando, dessa forma, comprometidas as demais liberdades.17 Liberdade religiosa não pode ser entendida apenas como a nãoimposição pelo Estado de qualquer religião, ou que não seja proibida a profecia que qualquer crença. Tal liberdade vai bem além disso, e, conforme Miranda,
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ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales, p. 109. FARIAS, Edimilsom Pereira de. Colisão de Direitos, p. 52. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 77. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, p. 101. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais, p. 180. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, pp. 99 e 107. BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, p. 113.
por um lado, consiste em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem em termos razoáveis; e, por outro, consiste em o Estado não impor ou não garantir com as leis o cumprimento desses deveres.18 Miranda ainda defende que o Estado não pode, mesmo concedendo o direito de as pessoas terem sua religião, colocá-las em situações que as impeçam de praticá-la, nem ele próprio se transformar em polícia das consciências a fim de assegurar o cumprimento pelos fiéis dos deveres de quaisquer confissões.19 A neutralidade laicista 16 17 18 19
Neste sentido também BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, p. 113. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais, p. 405, 407 e 408. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais, p. 409. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais, p. 409. 291
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serve como garantia da liberdade e da igualdade, assim como faz parte da própria coerência do Estado Democrático de Direito, propiciando o pluralismo tão necessário à consecução desse Estado. Conforme Cosimo, do ponto de vista jurídico, a consciência deve estar de acordo com o patrimônio de convencimento interior, cuja tutela é essencial para a preservação da dignidade da pessoa humana. Quando a liberdade de consciência corre qualquer perigo, o Direito deve protegê-la. Além disso, para ele, cabe ao Direito procurar respeitar e defender os convencimentos de natureza moral, ideal, religiosa, filosófica, dentre outros que estão no íntimo da própria consciência.20 Neste diapasão, o império do direito termina onde se inicia a consciência. E essa afirmação só pode ser feita graças à distinção entre direito e moral, essa entendida como religiosa, em que se distingue pecado de delito, preceitos basilares da civilidade jurídica moderna. E essa tutela da esfera da consciência é vista no resguardo da liberdade religiosa, em que se tem por escopo a proteção das convicções de consciência religiosa das pessoas.21 Há uma esfera, então, que é a da autodeterminação, em que não há a permissão de podermos sequer cogitar a possibilidade de ingerência do Estado no foro íntimo da pessoa, nem a imposição de algum dogma a ela, muito menos religioso. Alexy inclusive defende a esfera mais interna como âmbito último intangível da liberdade humana, que não está suscetível nem a ponderações, o que deve ser visto também com algum cuidado. Com isso, repudiamos repúdio à ingerência que possa levar à coisificação e à instrumentalização do ser humano, pois as pessoas são os fins em si mesmas, inclusive os criminosos.22
tratamento, dentre outros, para designar uma das finalidades da pena, quer seja, a intervenção estatal sobre o indivíduo no momento da execução penal,23 em que se pretende “transformar o criminoso em não-criminoso”.24 Passaremos a adotar o vocábulo ressocialização quando nos remontarmos a essa intervenção, especificando ainda mais o que entendemos como ressocializar a seguir. Em um primeiro momento, convém destacarmos que não analisaremos a possibilidade de ressocialização de alguém através da pena de prisão, nem adentraremos a velha e conhecida abordagem de que a pena de prisão não ressocializa. Trabalharemos com o prisma da possibilidade ou não de imposição dessa ressocialização quando da progressividade da execução penal. Muito embora haja diversos significados do termo ressocialização, sua origem remonta à idéia de prevenção especial da pena. Mapelli Caffarena ensina que podemos sistematizar o aprendizado sobre a caracterização da ressocialização em três grandes grupos, divididos segundo seu objeto, isto é, o homem, a sociedade e a relação homemsociedade.25 O presente artigo tratará do primeiro objeto, em que se tem a ressocialização orientada ao delinqüente. A ressocialização orientada ao delinqüente/apenado está prevista em nossa legislação na Lei de Execução Penal (LEP) – Lei 7.210, de 11/7/84 – tanto na sua exposição de motivos, quanto em seu artigo primeiro. Conforme seu artigo primeiro, uma de suas preocupações é “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”,26 que denota seu intuito de corrigir e educar o delinqüente para resguardar a comunidade, embora não use o vocábulo ressocializar. Nas palavras de Muñoz Conde, “reeducação, reinserção social, levar, no futuro, com responsabilidade social, uma vida sem delitos; em uma palavra: ressocialização do delinqüente”,27
4. A Progressividade do Sistema de Execução Penal Brasileiro e seus Reflexos não Laicizados 4.1. A Finalidade Ressocializadora da Pena
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A doutrina tem utilizado diversos termos, como reeducação, reinserção social, ressocialização, correção, reabilitação, melhora, 20 21 22
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COSIMO, Giovanni di. Coscienza e Costituzione, pp. 3-4. COSIMO, Giovanni di. Coscienza e Costituzione, pp. 9 e 16. ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 350. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, p. 33.
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MAPELLI CAFFARENA, Borja. Principios Fundamentales del Sistema Penitenciario Español, p.4. THOMPSON, Augusto. Quem são os Criminosos ? O Crime e o Criminoso: Entes Políticos, p. 97. MAPELLI CAFFARENA, Borja. Principios Fundamentales del Sistema Penitenciario Español, pp. 4-90. O autor preleciona que três podem ser os objetos da ressocialização: a) o delinqüente, tratado especificamente em nosso trabalho, que diz com o delinqüente; b) a sociedade, que deve ser o centro neurálgico da problemática ressocializadora; e c) o conflito homem-sociedade, em que o objeto da ressocialização deve centrar-se nesse conflito. MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal: Comentários à Lei 7.210, de 11/7/84, p. 33. MUÑOZ CONDE, Francisco. La Prisión como Problema: Ressocialización Versus Desocialización, p. 70, tradução nossa. 293
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O Discurso Ressocializador e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
são expressões que, quando aparecem nas legislações de execução penal, têm por intuito dar à execução da pena privativa de liberdade uma função reeducadora e corretora do delinqüente, o que nos remete à prevenção especial positiva, e isso ocorre em nossa LEP, segundo dito anteriormente. Logo, a ideologia do tratamento, que tem por escopo a recuperação do delinqüente para a sociedade,28 é uma das finalidades da nossa Lei da Execução Penal. Além disso, podemos dizer que é latente a adoção dos princípios de Defesa Social29 por nossa Lei de Execução, que são, dentre outros, “a proteção dos bens jurídicos e a reincorporação do autor à comunidade”, uma vez que com a adaptação do condenado ao meio social visamos à defesa da sociedade. Segundo Mapelli Caffarena, essa doutrina propõe esclarecer que a pena só tem fundamento na ordem social, na correção e na ressocialização do delinqüente, e não na ordem jurídica e sua defesa como categoria independente.30
aplicabilidade ou não dos preceitos fundamentais esculpidos em nossa carta Magna. A LEP traz, segundo Wolff, um modelo penal integrado que pretende atingir tanto a prevenção do crime como a recuperação do criminoso, reeditando o modelo da criminologia etiológica, em que julgamos o mérito interno do apenado e as probabilidades de sua nãoreincidência. Esses julgamentos internos, cuja ocorrência se dá especialmente quando dos incidentes da execução,33 que dizem respeito ao direito dos presos, estão baseados em “olhares morais e moralistas que objetivam auferir o grau de transformação operado na interioridade da pessoa preso”.34 Falar da ressocialização genericamente na Execução Penal, em nossa opinião, é tarefa talvez inócua e impossível de ser visualizada concretamente, mas convém ressaltar que, conforme Wolff, a proposta ressocializadora se expressa através da perspectiva de prevenção especial a qual seria operacionalizada, segundo a LEP, basicamente por quatro áreas distintas: classificação/individualização da pena, atendimento técnico, trabalho e ensino regular profissionalizante.35
4.2. A Ressocialização na Execução da Pena Privativa de Liberdade Existem grandes obras e debates a respeito dos fins da pena em que teóricos divergem drasticamente quando falamos qual teoria da pena deve ser adotada para justificar o ius puniendi estatal. No entanto, é justamente na fase da execução da pena, especialmente da pena privativa de liberdade, que teremos a instrumentalização de tais teorias, sem falar que é na execução que o condenado tem uma situação de maior vulnerabilidade. Podemos dizer, inclusive, que a fase da execução da pena acaba por se converter em um “drama ignorado ou escondido”, justamente quando deveríamos ter uma maior preocupação de tutela dos direitos fundamentais da pessoa humana.31 Além da exigência de uma maior preocupação com a tutela dos direitos do preso em razão de sua vulnerabilidade, convém destacarmos que, segundo Rodrigues, “no plano inter-relacional é nela que se joga o destino do sistema penal”32 e, por que não, da própria
Em razão dessa dificuldade que se nos apresenta, optamos por trabalhar especificamente com a abordagem de cunho “ressocializador” que aparece quando dos incidentes da execução, especialmente no que concerne ao sistema progressivo adotado pela LEP, que envolve a progressão de regime e a concessão do livramento condicional. Dessa forma, questionamos a ressocialização enquanto imposição de crenças ou convicções íntimas ao recluso, principalmente quando essa imposição vem mascarada com determinada concepção religiosa. Segundo Rodrigues, defensora de um pensamento socializador36 para a execução da pena, tal socialização
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CERVINI, Raúl. Os Processos de Descriminalização, p. 32. MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal: Comentários à Lei 7.210, de 11/7/84, p. 33. MAPELLI CAFFARENA, Borja. Principios Fundamentales del Sistema Penitenciario Español, p. 27, tradução nossa. RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo Olhar sobre a Questão Penitenciária, p. 9. RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo Olhar sobre a Questão Penitenciária, p. 9.
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Dentre os incidentes da execução estão a progressão do regime e o livramento condicional. WOLFF, Maria Palma. Antologia de Vidas e Histórias na Prisão: Emergência e Injunção de Controle Social, p. 76. WOLFF, Maria Palma. Antologia de Vidas e Histórias na Prisão: Emergência e Injunção de Controle Social, p. 77. Para Rodrigues a prisão deve evitar a dessocialização do recluso e promover a sua socialização. Para ela ao visar-se um efeito socializador se pretende ‘fazer aceitar ao delinqüente as normas básicas e vinculantes que vigoram na sociedade’. Mas não toma 295
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não autoriza, numa palavra, a imposição coativa de valores ao indivíduo. Concebida de outra forma, seria totalitária e violaria o respeito pela dignidade humana, representada pela observância dos limites da personalidade moral.37
construídas com o intuito de recolher criminosos, e só no século XVIII elas realmente se difundiram de maneira marcante.40 Primeiramente, convém distinguirmos, na esteira de Zaffaroni, regime penitenciário de sistema penitenciário. Embora ambos digam respeito à execução penal, não se confundem, pois regime penitenciário significa “o conjunto de normas que regulam a vida dos reclusos, em estabelecimentos penais”, enquanto que sistema penitenciário referese às “diretrizes e elementos essenciais da execução das penas privativas de liberdade”.41 Pimentel também os diferencia alegando que os sistemas penitenciários “representam corpos de doutrinas que se realizam através de formas políticas e sociais constitutivas das prisões”, ao passo que os regimes penitenciários são “formas de administração das prisões e os modos pelos quais se executam as penas, obedecendo a um complexo de preceitos legais ou regulamentares”.42 Assim, no que concerne às formas políticas e sociais de cumprimento da pena privativa de liberdade, vários foram os sistemas adotados, todos implementados após a grande renovação que a prisão vivenciou com a obra de John Howard. Lançado em 1777,43 o livro de Howard chamava-se “the State of Prisions in England and Wales with an account of some goregn”,44 e teve a mesma importância de Beccaria para o estudo do problema criminal.45
Além disso, defendemos que é necessário que haja, segundo Rodrigues, o respeito pela liberdade de consciência do recluso, a realização positiva dos direitos fundamentais do recluso e a obrigação constitucional de intervenção social do Estado.... O Estado contemporâneo, de natureza laica e secular, não se encontra legitimado para impor aos cidadãos códigos morais.38 Com isso, não podemos querer que o Estado, com a execução da pena, pretenda impor a transformação do homem criminoso em um bom pai de família, pois estaríamos ferindo seus direitos fundamentais, tais como a sua liberdade de consciência e, assim, sua dignidade humana. No entanto, não queremos, dessa forma, afastar do Estado seus deveres de prestação, especialmente de direitos sociais, que permitam que ele, querendo, conduza sua vida futura sem praticar crimes.39
4.3. Sistemas Penitenciários e sua Contextualização Considerando-se que a pena privativa de liberdade é o núcleo dos sistemas penitenciários na atualidade, e que trataremos especificamente da execução dessa pena, mister que façamos uma breve explanação a respeito de alguns sistemas penitenciários para entendermos sua contextualização e os relacionarmos com a progressividade prevista na legislação pátria. A pena de prisão teve suas origens na Idade Média, mais especificamente nos mosteiros, nos quais os monges ficavam recolhidos às suas celas a fim de que meditassem e se arrependessem de seus pecados. No entanto, foi no século XVI, especificamente em Londres, em Nüremberg e em Amsterdam, que as primeiras prisões foram
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por modelo “uma personalidade moralmente desvaliosa, mas simplesmente a personalidade que conforma a sua atuação com as exigências que o direito faz à conduta exterior dos cidadãos” . RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo Olhar sobre a Questão Penitenciária, p. 56. RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo Olhar sobre a Questão Penitenciária, p. 56. RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo Olhar sobre a Questão Penitenciária, p. 53. RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo Olhar sobre a Questão Penitenciária, pp. 53-54.
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PIMENTEL, Manuel Pedro. O Crime e a Pena na Atualidade, pp. 134-135. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral, p. 796. PIMENTEL, Manuel Pedro. Sistemas Penitenciários. Revista dos Tribunais, p. 265. Pimentel fala que sistema é gênero, enquanto que regime é espécie, pois os regimes cabem dentro do Sistema Penitenciário. PIMENTEL, Manuel Pedro. O Crime e a Pena na Atualidade, p. 134. BUSTOS RAMÍREZ afirma ter sido a obra publicada em 1976, ao passo que BITENCOURT que a data de sua publicação é 1977. BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Manual de Derecho Penal Espanõl: Parte General, p. 454. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas, p. 39. Influenciado por Beccaria, Howard teve grande importância para a humanização e racionalização das penas, pois defendia que se deveria construir estabelecimentos adequadas para o cumprimento da pena privativa de liberdade, bem como que as prisões deveriam cobrir as necessidades alimentares, higiênicas e médicas dos apenados. Além disso, ele considerava o trabalho obrigatório, mesmo que penoso, se isso possibilitasse a regeneração moral do recluso, assim como considerava a religião meio adequado para sua instrução e moralização. Pregava ainda o isolamento, que favorecia, segundo ele, o arrependimento e o combate à promiscuidade. Podemos afirmar que, para Howard, a prisão deve proporcionar a reforma do réu. Neste sentido BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas, pp. 39-45. BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Manual de Derecho Penal Espanõl: Parte General, p. 454. 297
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Essa organização do cárcere público através de um sistema é uma criação eminentemente moderna. Muito embora Howard tenha influenciado os sistemas vindouros, na sua época ainda não havia um sistema penitenciário, pois os detentos eram colocados em lugares comuns, com pessoas que não cumpriam necessariamente penas criminais, em que não havia nenhuma espécie de ação específica que lograsse os resultados pretendidos com a prisão.46 Neste ínterim, e com a finalidade de estabelecer diretrizes para a execução da pena privativa de liberdade, surgiram os sistemas penitenciários. Os principais sistemas penitenciários adotados foram o sistema celular, o auburniano, o progressivo, o reformatório e o sistema de individualização científica. O primeiro deles, chamado celular, pensilvânico ou filadélfico, como o próprio nome sugere, foi implantado na Filadélfia, cidade do estado americano da Pensilvânia. Em 1775, Ricardo Windsor propôs o sistema solitário, que tinha como proposta principal o isolamento absoluto do sentenciado, de dia e de noite.47 Com ele intentava-se exercer sobre o recluso uma ação benéfica, em que, através do isolamento, houvesse a meditação e a sua regeneração moral. Essa idéia era derivada do pensamento de Howard, mas encontrou guarida na concepção religiosa protestante dos Quakers, uma cisão do puritanismo. Em um primeiro momento, foi proibido inclusive o trabalho, que veio a ser aceito apenas com o passar dos tempos, pois a principal aspiração desse sistema era o arrependimento através da meditação e da leitura de livros religiosos.48 Bitencourt defende que o verdadeiro sistema filadélfico só se iniciou em 1829, com a conclusão da Penitenciária Oriental, em que se aplicava um rigoroso sistema de isolamento, mas que permitia o trabalho nas celas.49 A conjugação de trabalho dentro da cela individual acabou por ocorrer em razão da necessidade da própria subsistência do apenado, pois ele acabava entretendo-se e fugindo da monotonia e da solidão.50 Enfim, podemos indicar como principal característica desse sistema o isolamento do apenado na cela em silêncio absoluto durante todo tempo da pena, que só era quebrado com as visitas dos visitadores,
pessoas incumbidas da tarefa de exercer uma influência educativa e moral, e com a permissão de pequenos passeios.51 Mesmo quando havia esses pequenos passeios, não era permitida a comunicação com nenhum outro recluso.52 Além do isolamento, devemos atentar para a finalidade que era atribuída à pena, pois a religião servia de instrumento para conseguir a recuperação do recluso, haja vista o fato de que, segundo Bitencourt,
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SOLER, Sebastian. Derecho Penal Argentino, Tomo II, pp. 426-427. LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal: arts. 28 a 74, vol. II, p. 89. LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal: arts. 28 a 74, vol. II, pp. 89-90. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas, p. 61. LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal: arts. 28 a 74, vol. II, p. 91.
quando se percebiam sinais de arrependimento nos que demonstravam haver encontrado o caminho seguro da ‘salvação espiritual’, chegava-se ao convencimento de que se havia produzido a reforma ou que se encontrava em etapa avançada do processo reeducativo.53 O segundo principal sistema adotado foi o Auburniano, praticamente contemporâneo ao anterior, mas que buscava superar as limitações e os defeitos do regime celular, bem como adequá-lo às necessidades econômicas da sociedade da época. Esse sistema foi iniciado, segundo Bustos Ramírez, por Elam Lynds na cidade de norteamericana de Auburn, no estado de Nova Iorque, em 1826.54 Como dissemos anteriormente, o sistema de Auburn tentou superar o problema do isolamento total do apenado por considerá-lo ineficaz, e aperfeiçoou-o com a implantação do trabalho comum, mas ainda em silêncio. Assim, vedava-se a comunicação entre os condenados, que deveriam trabalhar em conjunto, mas em silêncio. Caso desrespeitassem essa ordem, sofriam castigos severos, que chegavam às vezes a ser até brutais.55 Dessa forma, podemos trazer como características principais desse sistema o trabalho diurno em comum, porém em silêncio, apto a manter a idéia de isolamento moral, e a reclusão celular noturna.56 51 52 53 54
55 56
SOLER, Sebastian. Derecho Penal Argentino, Tomo II, p. 428. FONTÁN BALESTRA, Carlos. Tratado de Derecho Penal, Tomo III, p. 320. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas, p. 63. Prado defende que ele se iniciou em 1818. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral, vol. 1, p. 451. Bustos Ramírez discorda da data e situa seu início em 1823 por Elam Lunds, na prisão de Auburn. BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Manual de Derecho Penal Espanõl: Parte General, p. 455. Fontán Balestra ensina que a data correta é a de 1816. FONTÁN BALESTRA, Carlos. Tratado de Derecho Penal, Tomo III, p. 322. FONTÁN BALESTRA, Carlos. Tratado de Derecho Penal, Tomo III, p. 322. Neste sentido também ZAFFARONI, Eugenio Raul. Tratado de Derecho Penal: Parte General, Tomo V, p. 144. SOLER, Sebastian. Derecho Penal Argentino, Tomo II, p. 428. 299
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Logo, segundo Fontán Balestra, com o silêncio e com o recolhimento celular individual noturno, mantinha-se o propósito da emenda que já era perseguido no sistema filadélfico.57 Por outro lado, ele alega que o sistema auburniano não admitia misticismo e otimismo, ou seja,
Além disso, defendemos, ao lado de Bitencourt, que tanto no sistema filadélfico, como no auburniano, em que a pena tem um conceito predominantemente retributivo, está presente também a ideologia ressocializadora do recluso, quer com o isolamento, com o ensino dos princípios cristãos, da dedicação ao trabalho, quer com a imposição dos castigos corporais.60 O terceiro sistema penitenciário que se nos apresenta é o progressivo, baseado no sistema auburniano, muito embora não com a rigorosa regra do silêncio e da disciplina. Foi justamente na mesma época em que esse sistema passa a ser adotado que a pena privativa de liberdade encontra seu apogeu.61 Existem pelos menos duas espécies de sistemas progressivos, o inglês ou mark system e o irlandês. Genericamente, podemos dizer que o sistema progressivo se caracteriza por possuir diversas etapas do cumprimento da pena, que culmina com a liberdade antecipada. A progressão de uma fase à outra depende da conduta e do trabalho do apenado.62 Segundo Bitencourt, esse sistema consiste
não tinha uma orientação definida para a reforma do delinqüente, predominando a preocupação de conseguir a obediência do recluso, a manutenção da segurança no centro penal e a finalidade utilitária consistente na exploração da mão-de-obra carcerária.58 Foucault não o aceita como instrumento apto à reforma do delinqüente, mas apenas como meio eficaz para a imposição e a manutenção de poder. Quando fala da exigência de silêncio absoluto, ele afirma ser uma referência clara tomada ao modelo monástico; referência também tomada à disciplina da oficina. ... Mais que manter os condenados ‘a sete chaves como uma fera em sua jaula’ devese associá-los uns aos outros, ‘fazê-los participar em comum de exercícios úteis, obrigá-los em comum a bons hábitos, prevenindo o contágio moral por uma vigilância ativa, e mantendo o recolhimento pela regra do silêncio.... Esta regra habitua o detento a ‘considerar a lei como um preceito sagrado cuja infração acarreta um mal justo e legítimo’.59 Entretanto, podemos afirmar que, muito embora tal sistema não tenha como preocupação maior a emenda do apenado, mas sua utilidade econômica e sua obediência, ou seja, a disciplina e o poder, tais fins não se excluem. Ao lado dessa finalidade principal, utilitaristaeconômica e disciplinária, temos também aqui, como pano de fundo, o intuito de reforma do apenado. Inclusive até na citação de Foucault, que não vê tal possibilidade de reforma, podemos notar essa idéia como fator coadjuvante, pois ele cita como característica desse sistema o modelo monástico, que tem, por si só, a idéia de emenda incutida.
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FONTÁN BALESTRA, Carlos. Tratado de Derecho Penal, Tomo III, p. 322. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas, p. 71. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões, p. 200.
na distribuição da condenação em períodos, ampliandose em cada um os privilégios que o recluso pode desfrutar de acordo com sua boa conduta e o aproveitamento demonstrado do tratamento reformador. Outro aspecto importante é o fato de possibilitar ao recluso reincorporar-se à sociedade antes do término da condenação.63 Assim, tal sistema tem duas principais metas, que são, conforme Bitencourt, o “estímulo à boa conduta e a adesão do recluso ao regime aplicado”, bem como a reforma moral do apenado e “sua preparação para a vida futura”,64 notando-se, com isso, a idéia da ressocialização como carro-chefe. O sistema progressivo inglês teve como intuito a obtenção do aperfeiçoamento moral do apenado por meio de fases sucessivas, paulatinamente alcançadas.65 Esse sistema foi criado pelo Capitão
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BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas, p. 80. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas, pp. 81-82. SOLER, Sebastian. Derecho Penal Argentino, Tomo II, p. 428. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas, pp. 81-83. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas, p. 83. GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal, vol. I, Tomo II, p. 416. 301
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Maconochie e implantado primeiramente na ilha de Norfolk, em 1840, possuindo três fases: o isolamento celular absoluto, o trabalho comum sob a regra do silêncio durante o dia e a liberdade condicional.66 A grande inovação trazida por Maconochie foi o mark system, ou sistema de vales, em que se aferia o aproveitamento do preso e sua boa conduta, e levava-se em consideração a gravidade do delito para a determinação da duração da pena. Assim, quando o comportamento do apenado era positivo, ele recebia vales, quando negativo, perdia-os.67 Na primeira fase do isolamento celular, também chamado de período de provas, há a finalidade de propiciar a meditação a respeito de seu crime, nem há a visitação da administração celular que visa lhe influir moralmente.68 Adota-se, então, o sistema pensilvânico nesta primeira etapa. Na segunda fase, o período mais extenso, há o trabalho em comum em uma public workhouse e o isolamento apenas noturno, nos moldes do modelo auburniano. Dentro desse período, dividido em classes, o apenado vai acumulando vales, e, quando atingir um certo tempo e uma determinada quantidade de vales, ele ganha o ticket of leave e passa à etapa seguinte.69 Por fim, chegamos ao livramento condicional, concedido apenas àqueles que tiverem as condições já citadas, em que há a fruição da liberdade integral antes do cumprimento completo da pena. Dessa forma, esse sistema era mais benigno que os anteriores e propiciava a liberação antes do tempo final do cumprimento da pena, mediante boa conduta e eficácia do trabalho.70 O sistema progressivo irlandês foi criado por Walter Crofton, em 1857, que, devido ao sucesso alcançado pelo sistema adotado por Maconochie, o aprefeiçoou, inserindo mais uma etapa. Esse sistema possui quatro períodos diversos de cumprimento de pena, quais sejam, a segregação absoluta, a segregação celular noturna e a vida em comum durante o dia, com a obrigação do silêncio e do trabalho, a prisão intermediária, e, por fim, o período de livramento condicional. O primeiro e o segundo períodos são similares aos anteriores, uma vez que na primeira etapa se aplica também o sistema filadélfico, em que se observa o réu, por cerca de nove meses, e, na segunda, o
auburniano, no qual há o trabalho diurno em comum e em silêncio nas denominadas public workhouses. Essa segunda etapa é dividida também em quatro classes, e o apenado passa de uma a outra gradualmente, recebendo vales como prêmio de sua boa conduta e trabalho. Esses vales vão somando-se até atingirem a pontuação necessária para a progressão à próxima etapa, que é o trabalho ao ar livre em estabelecimentos agrícolas. Nessa fase há a preparação para a liberação do recluso mediante livramento condicional, pois não mais ele passará diretamente da fase da reclusão celular para a liberdade. Por fim, o apenado atinge o livramento condicional, etapa derradeira do sistema progressivo, em que ele atinge a liberação antecipada através da imposição de algumas condições, pois esse período ainda faz parte do cumprimento da pena. O alcance do livramento condicional depende do mérito do apenado, que é evidenciado segundo seu comportamento e seu trabalho, em que ele obtém um ticket of leave.71 Essa última etapa poderia ser revogada ou transformada em definitiva, dependendo do bom comportamento do liberado.72 O sistema dos reformatórios foi concebido nos Estados Unidos e teve por base o sistema progressivo. Inicialmente, ele foi direcionado aos adolescentes, mas passou a ser utilizado com adultos também, especialmente os mais jovens. Os reformatórios mais famosos foram o de Elmira, nos Estados Unidos, criado em 1875, e o de Borsal, na Inglaterra, implantado em 1901.73 Os reformatórios foram concebidos com o intuito de reeducação, e não de expiação, nos quais a pena era indeterminada, pois não se pode predizer o tempo que alguém levará para se emendar. Em tais reformatórios, pretendia-se instruir os reclusos através de uma educação moral, intelectual e física, em que se faziam conferências periódicas e práticas de ginástica.74 Assim, nos reformatórios, em que as idéias de Lombroso foram aplicadas, o tratamento era seu carro-chefe, pois pretendiam obter a reeducação social e até bons resultados financeiros.75
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FONTÁN BALESTRA, Carlos. Tratado de Derecho Penal, Tomo III, p. 323. PIMENTEL, Manoel Pedro. O Crime e a Pena na Atualidade, p. 140. GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal, vol. I, Tomo II, pp. 415-416. Neste sentido também BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas, p. 85. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas, p. 85. FONTÁN BALESTRA, Carlos. Tratado de Derecho Penal, Tomo III, p. 323.
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FONTÁN BALESTRA, Carlos. Tratado de Derecho Penal, Tomo III, p. 324. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral, vol. 1, p. 452. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral, p. 797. Ver também FONTÁN BALESTRA, Carlos. Tratado de Derecho Penal, Tomo III, p. 325. FONTÁN BALESTRA, Carlos. Tratado de Derecho Penal, Tomo III, p. 325. FERRI, Enrico. Princípios de Direito Penal, p. 345. 303
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Por fim, temos o sistema de individualização científica, conservador de muitas das características do sistema progressivo, porém que acabou por lhe flexibilizar. Houve a mudança de nome, segundo Bustos Ramírez, devido
A participação desses profissionais e a inserção dos exames de cunho técnico na execução da pena tiveram seu nascedouro com a exigência de cientificidade própria da Modernidade. A partir daí tivemos uma mudança de objeto da execução, em que se trocou o corpo do condenado pela perda de um bem ou de um direito, e agregou-se a esse deslocamento um sentimento de humanidade, que, na verdade, não é tão humano assim, porque se atingiu a alma do condenado e se fez isso de forma mascarada, e não mais exteriorizada como outrora. Logo, passou-se a invocar a alma do condenado tanto no tribunal quanto no exercício da punição, e isso foi feito mediante um laudo, de cunho técnico, que acabou por “dar aos mecanismos de punição legal um poder justificável não mais simplesmente sobre as infrações, mas sobre os indivíduos; não mais sobre o que eles fizeram, mas sobre aquilo que eles são, serão e possam ser”.80 Tal laudo técnico permitiu correlacionar o delito, da previsão legal, com outras coisas que não são o próprio delito, tais como comportamentos, maneiras de ser, tidos pelos técnicos como causas, motivação do crime, bem ao sabor da Modernidade, que buscava, para cada efeito, uma causa necessária. Além disso, foi esse exame que, conforme Foucault, “permite passar do ato à conduta, do delito à maneira de ser, e de fazer a maneira de ser se mostrar como não sendo outra coisa que o próprio delito, mas de certo modo do estado de generalidade na conduta de um indivíduo”,81 o que acaba levando a um exame que na verdade “permite constituir um psicológico-ético do delito”.82 Com isso, houve a legitimação, com seu saber científico, da extensão do poder de punir algo diverso da infração, pois se pretende, assim, fazer uso de um conjunto de técnicas no Poder Judiciário em que se visa transformar indivíduos em bons pais de família. Dessa maneira, com a inserção desse corpo técnico na execução, nas palavras de Foucault,
à negação de um sistema progressivo de fase de duração calculada de antemão e de progressão automática, e sua substituição por outro em que seus quatro graus de progressão se adequam aos tipos de estabelecimentos de regime fechado, ordinário e aberto, e com a liberdade condicional.76 A flexibilidade do sistema antes progressivo, e agora de individualização, estabeleceu, segundo Bitencourt, uma orientação científica do tratamento. Essa orientação é decorrente dos conhecimentos criminológicos que possibilitaram o ingresso de especialistas bastante diversos daqueles que o sistema progressivo clássico contemplava.77 Ferri, um dos grandes nomes da Escola Positiva Italiana, defendia que a execução da condenação deveria ser regida pela individualização do recluso, através da qual se deve adotar dois critérios fundamentais, quais sejam, a seriação antropológica dos presos e seu tratamento. Ele advogava ainda a necessidade da aferição da reeducação do apenado e de sua personalidade para que ele possa ser libertado antecipadamente.78 Com o ingresso dos profissionais supracitados,79 que são os técnicos do sistema – psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais –, houve uma modificação significativa dos sistemas penitenciários, pois, amparados pela técnica e pela cientificidade, passaram a fazer ingerências na interioridade dos apenados, visando conhecer a personalidade dos criminosos, e, dessa forma, exercer um poder invisível e violento, difícil de ser constatado. E é justamente esse poder que deu flexibilidade ao sistema, pois não basta mais o decurso do tempo, o bom comportamento e o trabalho para que se avance nas etapas; é necessário também um laudo/parecer técnico, que verse sobre a personalidade do apenado, sobre sua interioridade, aconselhando a progressão. 76 77 78 79
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BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Manual de Derecho Penal Espanõl: Parte General, p. 456, tradução nossa. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas, p. 88. FERRI, Enrico. Princípios de Direito Criminal, pp. 342-352. Não estamos querendo dizer que os técnicos ingressaram no sistema penal apenas com esse sistema. Muito pelo contrário, o ingresso no sistema penal de tais técnicos ocorreu já no século XVIII, mas estavam a serviço muito mais da disciplina e do controle do que de uma idéia de ressocialização e reinserção do apenado na sociedade.
não é mais um sujeito jurídico que os magistrados, os jurados, têm diante de si, mas um objeto: o objeto de uma tecnologia e de um saber de reparação, de readaptação, de reinserção, de correção. Em suma, o exame tem por função 80 81 82
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões, p. 20. FOUCAULT, Michel. Os Anormais, p. 20. FOUCAULT, Michel. Os Anormais, p. 21. 305
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dobrar o autor, responsável ou não, do crime, com um sujeito delinqüente que será objeto de uma tecnologia específica.83
dade de se considerar a execução de tal pena como um sistema, um tratamento que visasse à reabilitação do apenado.86 Assim, podemos afirmar que a idéia de individualização científica está estritamente vinculada à finalidade ressocializadora da pena. Ao lado disso, a progressividade do sistema penitenciário também está vinculada à noção de melhora do condenado, pois, segundo Antolisei, “o sistema progressivo implica uma gradual atenuação das limitações impostas ao condenado segundo se manifesta sua melhora, pretendendo preparar-lhe para o retorno à liberdade”.87 Com isso, o sistema da individualização científica está duplamente ligado à idéia de ressocialização, pois visa individualizar a pena para melhor tratamento e, dessa maneira, obter uma reinserção do apenado na sociedade, bem como adota a progressividade do regime, que tem ínsita a idéia de melhora e de readaptação. Seguindo a mesma orientação, Boschi afirma que
E isso acontece especialmente, conforme Foucault, quando deixamos nas mãos de pessoas, que não são os juízes da infração, o cuidado de decidir se o condenado merece ser posto em semiliberdade ou em liberdade condicional. O sistema de individualização científica, que não mais adota um parâmetro predeterminado apenas pelo comportamento, pelo transcurso do tempo e pelo trabalho para a progressão no cumprimento da pena, passa a exigir um parecer/laudo técnico favorável para que o apenado passe de uma etapa a outra na execução da pena. Logo, podemos afirmar, ainda na esteira de Foucault, que todas as ciências, análises ou práticas, com radical “psico”, têm seu lugar nesta troca histórica dos processos de individualização. O momento em que passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida, o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem memorável pelo homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis é aquele momento em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia do corpo político.84 Neste ínterim, tanto o tratamento individualizado quanto a realização da perícia penal, frutos na inserção dos técnicos na execução da pena, são, na verdade, nas palavras de Wolff, “estratégias de controle social no âmbito penal...e refletem a própria pena e os propósitos que a mesma se propõe a atingir”.85
4.4. A Progressividade do Sistema Penitenciário Brasileiro e o Sistema de Individualização Científica No decorrer do século XIX, com a afirmação da pena privativa de liberdade como base no sistema penal, começou-se a sentir necessi83 84 85
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FOUCAULT, Michel. Os Anormais, p. 27. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões, p. 161. WOLFF, Maria Palma. Antologia de Vidas e Histórias na Prisão: Emergência e Injunção de Controle Social, p. 87.
a essência do sistema de transferência progressiva do condenado do regime mais gravoso ao mais liberal reside na distribuição do tempo de duração da pena em períodos, cada um regido por regras próprias, todas orientadas na direção da recuperação da liberdade e da reincorporação do condenado ao mundo livre.88 Há vários autores que assinalam a adoção do sistema progressivo pela legislação pátria, dentre eles Boschi, Prado, Tucci e Cernicchiaro.89 No entanto, já Roberto Lyra, referindo-se ao Código Penal de 1940, dizia que aquele Código tinha sido original e adotado um sistema progressivo, e não o sistema progressivo, pois era flexível e realista.90 Assim, a despeito de haver quem defenda que o Código Penal brasileiro e a Lei de Execução Penal adotam o sistema progressivo, entendemos mais adequado defender, ao lado de Albergaria e de
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BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas, p. 82. ANTOLISEI, Francesco. Manual de Derecho Penal: Parte General, p. 510, tradução nossa. BOSCHI, José Antonio Paganella. Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 334. BOSCHI, José Antonio Paganella. Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 334; PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral, vol. 1, p. 454; TUCCI, Rogério Lauria. Progressão na Execução das Penas Privativas de Liberdade. Revista dos Tribunais, p. 271; CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Pena – Progressão de Regime. Revista Jurídica, p.33. LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal: arts. 28 a 74, vol. II, p. 116. 307
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Mirabete,91 que o fazem nas entrelinhas, a adoção do sistema de individualização científica, que na verdade é o sistema progressivo flexibilizado pela introdução dos técnicos na execução penal, pois eles realizam a individualização da execução penal mediante a classificação dos apenados e emitem pareceres/laudos para fins de progressão de regime – fechado, semi-aberto e aberto – e da concessão do livramento condicional. A individualização da pena na execução está, então, imbricada com a ideologia do tratamento, pois é necessário conhecermos o apenado para melhor tratá-lo, o que se faz, em um primeiro momento, com a sua classificação quando da entrada no sistema prisional. Tal individualização tem sido justificada em face da igualdade das pessoas, levando-se em conta suas intrínsecas diferenciações, o que por si só é paradoxal, pois em razão dessa pretensa igualdade diferente pretende-se tratar os apenados para, de certa forma, vir a homogeneizá-los, torná-los normais. O artigo quinto da Lei de Execução Penal, a (LEP), prevê a classificação dos condenados para fins de individualização da pena. Essa individualização deve ser realizada por uma equipe técnica e científica, única capaz de suprir as exigências de previsibilidade, de certeza e de segurança, próprias da Modernidade. A classificação que o artigo supracitado fala deve ser feita pela Comissão Técnica de Classificação, CTC, composta por, no mínimo, dois chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social, e se realiza conforme os antecedentes e a personalidade do apenado. Assim, a LEP propõe a individualização e a classificação dos apenados em três oportunidades: primeiro, com a confecção de um dossiê de individualização da pena realizada pela CTC, por ocasião da elaboração do programa individualizado de tratamento, com o qual se procura conhecer as características e necessidades desse preso, que ocorre com a realização de um exame criminológico; segundo, com o acompanhamento do preso na execução feito pela CTC, através de um parecer, em que há a contraposição com os dados iniciais, permitindo a feitura de um documento apto a auxiliar a decisão judicial sobre as mudanças de regime92 e o trabalho externo; terceiro, quando da
elaboração de um exame para fins de concessão de livramento condicional, em que se realiza uma “investigação dinâmica do ato criminoso e de suas motivações”.93 Segundo Wolff, tal exame é o de personalidade, consistente “na realização de um inquérito sobre o agente para além do crime cometido, sendo um exame de personalidade submetido a esquemas técnicos de maior profundidade nos campos morfológicos funcional e psíquico”,94 que culmina com o laudo da Equipe do Centro de Observação Criminológica, o COC. Interessa-nos, neste trabalho, analisar o sistema meritocrático que fora instaurado na execução penal através da premiação ao apenado e, assim, a possibilidade de galgar etapas na progressividade do sistema. Como já foi mencionado anteriormente, esse sistema, que está calcado na individualização científica, visando ao tratamento do apenado e, com ele, sua ressocialização, leva em consideração o aconselhamento técnico para progressão de regime e para concessão de livramento condicional, ambos inseridos em uma concepção progressiva de cumprimento de pena. É justamente essa participação técnica que
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ALBERGARIA, Jason. Das Penas e da Execução Penal, p. 28; MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal, p. 260. A progressividade de regime do sistema de individualização científica está prevista no artigo 112 da Lei de Execução Penal, que diz que: Art. 112. A pena privativa de liberdade
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será executada em forma progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinado pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e seu mérito indicar a progressão. Parágrafo único. A decisão será motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico, quando necessário. BRASIL. Lei de Execução Penal, p. 392. Assim, para que o apenado progrida de regime, que ele passe do regime fechado para o semi-aberto e do semi-aberto para o aberto, é necessário que ele cumpra os requisitos objetivos e os requisitos subjetivos, bem como que seja realizado um parecer pela Comissão Técnica de Classificação, que é composta, dentre outros, por assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras. O requisito subjetivo diz mormente ao mérito do apenado, que é avaliado por esses técnicos e que acaba por condicionar a progressão. O livramento condicional também está inserido na progressividade do sistema, sendo a sua última etapa. Cordova considera o fundamento do livramento condicional a emenda do culpável, e defende que na fase da execução da pena deve haver a individualização e a adequação da pena “aos fins de um tratamento correcional progressivo”. Logo, podemos afirmar que o nascedouro da idéia de livramento condicional está relacionado ao fim da pena enquanto tratamento correcional. Dessa maneira, o livramento condicional é sempre a última fase do regime progressivo da pena privativa de liberdade, uma vez que ‘testa’ a emenda do apenado e o prepara para a sua posterior vida em sociedade. Logo, ela é uma etapa extrapenitenciária do tratamento correcional do culpado que pressupõe a emenda do apenado para sua concessão, em que há uma liberdade condicional, vigiada e revogável. Neste sentido CORDOVA, Frederico. La Liberdad Condicional, pp. 28-30. WOLFF, Maria Palma. Antologia de Vidas e Histórias na Prisão: Emergência e Injunção de Controle Social, p. 251. WOLFF, Maria Palma. Antologia de Vidas e Histórias na Prisão: Emergência e Injunção de Controle Social, p. 251. 309
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acabou por dar flexibilidade ao sistema progressivo clássico, pois não basta mais o preenchimento dos requisitos de bom comportamento e trabalho eficaz para a progressão automática, como ocorria com os sistemas progressivo e irlandês. É necessário, além do preenchimento daqueles requisitos, que o apenado demonstre estar se ressocializando, o que é aferido mediante a realização de exames que versam sobre a interioridade do recluso. Assim, no aconselhamento técnico leva-se em consideração o mérito do apenado. O mérito, em uma concepção filosófica, é o título para a obtenção da aprovação, a recompensa, o prêmio.95 Ele, então, diz respeito ao merecimento, que, neste caso, importa a habilitação do condenado à progressão. Esse merecimento, no entanto, é aferido levando-se em consideração os valores intrínsecos, morais e laborais que demonstram se o apenado merece ou não a progressão.96 E para tal aferição é realizado, necessariamente, um parecer/laudo técnico, que versará sobre a interioridade do apenado, e, muitas vezes, sobre seu arrependimento ou não em relação à prática do delito. Calcados em decisões do Tribunal de Justiça do RS, que serão explicitadas no decorrer do trabalho, podemos afirmar que os técnicos não raramente se utilizam do arrependimento do apenado quando da realização do parecer que lhes cabe. Exatamente quando da execução desses pareceres/laudos que o corpo técnico realiza ingerência indevida na interioridade do apenado, pois leva em consideração a assunção de seu delito e seu arrependimento para aconselhar-lhe o benefício. Esses laudos/pareceres baseiam-se tanto no delinqüente quanto no delito por ele praticado, em que se analisa as causas e os efeitos do crime, através de uma investigação médica, psicológica e social, bem interadas com a proposta da Escola Italiana, principalmente de Ferri.97 Assim, podemos afirmar que se realiza um diagnóstico da interação delito-delinqüente, segundo Carvalho, “desde uma matriz criminológico-administrativa psiquiatrizada (criminologia clínica)”.98
Ferrajoli assinala que “os benefícios estão condicionados, em um sistema de pena flexibilizada, à boa conduta do réu, ou ao seu arrependimento, ou a outros semelhantes juízos de valor em torno da sua personalidade”.99 E essa flexibilização, para ele, não torna a pena menos despótica que as penas arbitrárias pré-modernas, pois aqui há um poder imenso e incontrolável.100 Além disso, justamente essa possibilidade de flexibilização é que impede a violação da liberdade interior do detento, em que se retira
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MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal, p. 264. TUCCI, Rogério Lauria. Progressão na Execução das Penas Privativas de Liberdade. Revista dos Tribunais, p. 272. MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal: Comentários à Lei no 7.210 de 11/7/84, p. 54. CARVALHO, Salo de. Práticas Inquisitivas na Execução Penal (Estudo do Vínculo do Juiz aos Laudos Criminológicos a partir da Jurisprudência Garantista do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul). CARVALHO, Salo de (Org.). Crítica à Execução Penal: Doutrina, Jurisprudência e Projetos Legislativos, p. 147; e CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias: uma Leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil, p. 197.
o direito de cada um ser e de permanecer ele mesmo e por isso a proibição ao Estado de intrometer-se na personalidade psíquica do cidadão e de transformá-lo moralmente mediante medidas premiais ou punitivas aplicadas a ele pelo que ele é e não pelo que ele fez.101 Tomando-se como ponto de partida algumas decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul acerca do arrependimento do apenado, problematizamos a possibilidade de tal ingerência violenta pelo Estado frente à laicização do Direito Penal e ao princípio da dignidade da pessoa humana, ambos amparados em nossa Constituição. Citamos, então, algumas ementas de decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul quando interposto Agravo de Execução para concessão de Livramento Condicional em que não se admite tal ingerência, como: “Super-valorização do fato delituoso, de que resultou condenação, exigindo os peritos que o apenado assuma o delito e se arrependa. O Estado não está legitimado a modificar a personalidade do agente e a prisão não é ‘lavagem cerebral’. A aferição do mérito do condenado se funda em sua conduta presente. Divergência entre as visões jurídico-penal e psiquiátrica. A negativa de concessão do benefício da progressão de regime não pode prosperar ante a alegação de que o apenado não demonstra arrependimento ou lhe falta perspectiva.
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FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale, p. 406, tradução nossa. 100 FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale, p. 406. 101 FERRAJOLI, Luigi. La Pena in una Società Democratica. Questione Giustizia, p. 536, tradução nossa. 311
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Laudos que opinam pela denegação da progressão de regime unicamente pelo fato de o réu continuar a negar responsabilidade pelos delitos a que foi condenado... Inconsistência da conclusão que não pode obrigar um homem a se desmentir”.102
admitiu sua culpa, não se arrependeu do que fez e, por isso, está dando sinais de que não está se ressocializando, isto é, de que a pena não está cumprindo com seus fins. Na esteira de Ferrajoli, quando há o julgamento da interioridade da pessoa, e a perquirição de seu arrependimento, estamos diante de um poder ilimitado, que acaba produzindo uma instituição carcerária total e devassa porque “reduz a pessoa à coisa, colocando-a inteiramente nas mãos de um outro homem e, por isso, ferindo sua dignidade, qualquer que seja, ainda que o mais sábio e honesto, que vá decidir”.105 Segundo o autor, a liberdade pode ser definida como ter a certeza de expectativas, a imunidade de intervenções arbitrárias, a faculdade de poder pensar e de ser o que se quer ser sem temer estar lesionando a lei.106 Assim, há uma ingerência indevida no eu do apenado quando se considera o arrependimento para fins de averiguação, se voltará ou não a delinqüir, e se, então, poderá progredir. Dessa forma, denotamos um discurso não laicizado no Direito Penal e na Execução Penal, muito embora nossa Constituição, posterior a essas leis, tenha feito claramente a separação entre Estado e Igreja, adotando, logo, uma concepção laica de Estado. A introdução do corpo técnico na execução penal foi imbuída pelos ideais de neutralidade e de cientificidade, próprio da Modernidade, mas, com seu discurso psico – psiquiatrizante, psicologizante –, acabou por propiciar uma análise do eu do apenado, fazendo uma averiguação valorativa a respeito do ser do outro, que, por si só, já afasta as premissas de neutralidade. O maior problema talvez tenha sido que, através desse discurso, todo o processo de execução, não só a manifestação da CTC e do COC, mas também a do Ministério Público e a do Judiciário, acabou sendo impregnada por essa postura. E o mais perverso ainda é que a promessa e a justificativa de tal neutralidade acabaram por se misturar com os resquícios da fusão entre Estado e Igreja que ocorrera outrora, pois se perquire do arrependimento do apenado, o que remete para a assunção de uma culpa judaico-cristã, de cunho eminentemente religioso, misturando uma concepção de pena enquanto prevenção especial positiva, reeducadora, expiatória e de emenda.
“AGRAVO DE EXECUÇÃO. PROGRESSÃO E SERVIÇO EXTERNO. CONDIÇÕES PESSOAIS. O arrependimento do condenado refoge aos objetivos da pena. Ao Estado incumbe propiciar ao apenado condições de reinserção social, sem violentar sua consciência pessoal. O Estado Social de Direito intervém, para proteger (a sociedade) e promover (o indivíduo condenado), fazendo da execução “treinamento” para a liberdade. E o Estado Democrático de Direito preconiza o direito à divergência (pluralismo). A progressão ao regime semi-aberto não implica soltura do apenado”.103 “AGRAVO – PROGRESSÃO DE REGIME CARCERÁRIO – LAUDOS DESFAVORÁVEIS POR AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE JUÍZO CRÍTICO DE ARREPENDIMENTO, POSSIBILITADOR DE REINCIDÊNCIA E FUGA. PROGRESSÃO CONCEDIDA, DADA A ILICITUDE DO ESTADO EM DETERMINAR ORIENTAÇÃO DE VIDA AO CONDENADO. AGRAVO PROVIDO”.104
Em tais decisões interessa-nos, especificamente, a exigência de que o apenado assuma o delito que cometeu e se arrependa, dando mostras, assim, de que não voltará a delinqüir e que está preparado para galgar uma etapa na progressividade do sistema. Neste ínterim está a problemática acerca da violência e da justificabilidade dessa ingerência no eu do apenado, na medida em que se exige dele o arrependimento. Ou seja, podemos averiguar que os técnicos não raras vezes concluem pelo não-aconselhamento da progressão ou da liberdade condicional do apenado sob a alegação de que ele não 102 CARVALHO, Salo. Apêndice Jurisprudencial. CARVALHO, Salo (Org.). Crítica à Execução Penal: Doutrina, Jurisprudência e Projetos Legislativos, pp. 217-225. 103 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Execução no 70 000 658 047. Agravante: Claudemar Antônio Oliveira de Souza. Agravado: Juízo de Execuções Criminais. Relator: Tupinambá Pinto de Azevedo. Porto Alegre, 29 de março de 2000. 104 BRASIL. Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo no 296 011 967. Agravante Luiz Arthur Schons. Agravada: A Justiça. Relator: Marco Antonio Ribeiro de Oliveira. Porto Alegre, 18 de junho de 1997. 312
105 FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale, p. 407, tradução nossa. 106 FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale, p. 407. 313
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4.5. O Binômio Culpa (Judaico-Cristã)/Arrependimento Na fase de execução da pena notamos a perversidade do discurso das doutrinas que a justificam, da sua prática e de suas influências, que aparecem mascaradas, mas acabam por condicionar a concessão de benefícios aos apenados. O problema já encontra guarida na própria concepção de benefício, e não de direito do apenado, pois remonta à uma idéia de favor, de recompensa por estar se comportando conforme o padrão de normalidade estabelecido. Infelizmente, a condição pessoal meritocrática inclui, muitas vezes, o arrependimento do apenado, ou seja, a assunção de sua culpa – judaico-cristã – para receber parecer favorável à progressividade no sistema. A exigência da assunção da culpa pelo apenado para concessão de tal benefício é uma sombra dos domínios de outrora da Igreja sobre o Estado e o Direito, fere sua liberdade de consciência e alcança também o princípio da dignidade da pessoa. Assim, questionamos a legitimidade dessa prática – arrependimento e ingerência no eu e, dessa forma, a ressocialização – por ferir o princípio basilar da dignidade da pessoa humana. Colada ao arrependimento está a idéia de pecado, o que nos possibilita afirmar que há, aqui, uma mistura da concepção de delito, eminentemente jurídica, e de pecado, de cunho religioso. O pecado é uma realidade que marcou a história das religiões, especialmente do judeu-cristianismo. Como as religiões possuem um caráter savífico, “ignorar o pecado seria esvaziá-las do cerne de sua mensagem”, pois, mesmo o pecado não sendo o centro do cristianismo, ele é a sua sombra, e “sem o ressalto desta sombra não é possível perceber onde se coloca a luz”.107 Com isso, podemos concluir que é justamente da noção do pecado e da possibilidade de sua redenção que encontramos a explicação para o cristianismo108 como em nenhuma outra religião com tanta ênfase, pois na sua concepção a meta da religião é a redenção da alma,109 e sua influência sobre o Direito ainda está presente, 107 MOSER, Frei Antonio. O Pecado: do Descrédito ao Aprofundamento, p. 17. 108 É por isso que Nietzsche, partindo da própria vida para construir os valores de uma nova cultura, concebe a vida sem o sentimento de culpa da moral cristã, pois para ele a existência não pode se transformar em expiação – muito embora se queira que isso ocorra no decorrer da execução da pena. Assim, ele rejeita a idéia de pecado original e o postulado de salvação por Cristo. Para ele não há pecado da vida, e, por isso, não precisa haver salvação. SOUSA, Mauro Araujo. Introdução. In: NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, p. 25. 109 Neste sentido também FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo, p. 227. 314
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principalmente na Execução Penal, apesar da Modernidade e da laicização. Entretanto, a separação entre Estado e Religião, entre Direito e Religião, vem já de longa data, conforme já exposto; tentando afastar a fundamentação do Estado no teológico, Feuerbach alega que, quando a moral é fundada sobre a teologia, o direito sobre instituição divina, então pode-se justificar e fundamentar as coisas mais imorais, mais injustas, mais vergonhosas. Eu só posso fundamentar a moral na teologia quando eu mesmo já determino a essência divina através da moral.110 O pecado sempre marcou presença na história da Humanidade, às vezes com características de tabu, mancha, desordem, às vezes como culpabilidade.111 Os cristãos se deparam com um mistério112 que marca a concepção humana, apresentando-se sob três diferentes aspectos, quais sejam, o mistério do mal, o mistério do pecado original e o mistério do pecado atual. Resumidamente, tratamos do mistério do mal quando tentamos entender as raízes profundas do pecado, pois todos os pecados são uma manifestação de um mal e estão relacionados ao “insondável mistério do Deus-Criador e de seus projetos”.113 Muitas são as perquirições a respeito desse mal, pois é difícil atrelar o mal a Deus, que, segundo Santo Agostinho, só seria capaz de ser causa do mal que o homem sofre quando tem de aplicar os castigos que ele mereceu.114 Já por pecado original, ou de raiz, podemos entender aquele vinculado a um dos livros-fonte sobre o mal: Gênesis. Nesse livro, os males físicos aparecem dependentes do mal moral – o pecado, especialmente o original –, e com o agente do mal, o demônio.115 Na verdade, podemos generalizar e dizer que a idéia de pecado original
110 FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo, p. 312. 111 MOSER, Frei Antonio. O Pecado: do Descrédito ao Aprofundamento, p. 23. 112 O mistério ultrapassa qualquer tentativa de justificação, pois eu estou envolvido com ele, o que faz com que ele perca sua significação e seu valor inicial, transcendendo qualquer técnica de explicação. Ele não é inacessível, mas inesgotável. MOSER, Frei Antonio. O Pecado: do Descrédito ao Aprofundamento, p. 47. 113 MOSER, Frei Antonio. O Pecado: do Descrédito ao Aprofundamento, p. 46. 114 NETTO, Geraldino Alves Ferreira. Sentimento de Culpa e Religião. In: SILVA, Antonio Franco Ribeiro da (Org.). Culpa: Aspectos Psicanalíticos, Culturais & Religiosos, p. 74. 115 MOSER, Frei Antonio. O Pecado: do Descrédito ao Aprofundamento, p. 54. 315
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possibilita sua universalização e a conseqüente necessidade de salvação.116 A idéia de pecado original, vinculada a Adão e Eva, que, ao desejarem, conheceram o bem e o mal, acaba por responsabilizar a criatura pela causação do mal, por um abuso de vontade, pois o Criador deu tanta liberdade à criatura que possibilitou que ela dele se afastasse. Santo Agostinho defende que a pecaminosidade original não é evitável, exceto o que ocorreu com a Virgem Maria, mas o pecado atual pode ser evitado: eis aí o seu fundamento de responsabilização e a vinculação com o livre-arbítrio.117 Por fim, podemos afirmar que, na concepção cristã, o pecado original remonta a uma dimensão ontológica, sendo constitutivo da condição humana, o que acaba por gerar um impacto sobre o pecado atual.118 Então, o pecado atual está influenciado pelo pecado original. Conforme Moser, enquanto a graça é a possibilidade de diálogo com Deus, o pecado atual é a sua impossibilidade, e, com ela, a incapacidade dinâmica de amar, que só pode ser superada à medida que nos inserimos em Cristo.119 E a mensagem de Cristo é de graça e salvação, pois com ele se ressalta o trinômio Criação-EncarnaçãoRedenção, indissociavelmente unidos. Com o batismo, somos inseridos em uma Igreja, e passamos a viver com Cristo,120 que nos purifica da culpa original e que é capaz de nos redimir, com a confissão, que é uma espécie de assunção dessa culpa judaico-cristã, responsável por nosso afastamento do bem, e com o arrependimento de nossos pecados. No entanto, para que ocorra essa redenção, e haja iluminação do drama do pecado, devem estar presentes a conversão, a consciência e a penitência. O pecado e a conversão são faces da mesma moeda, pois sem a possibilidade de conversão o pecado seria uma sina para o todo e sempre, logo, insuportável para os seres humanos. Porém para falar em pecado e conversão é necessário atentarmos para a consciência, pois ela é a instância imediata das decisões humanas. Assim, há a necessidade da formação dessa consciência. E, em terceiro lugar, temos o sacramento da penitência, em que há uma reconciliação
através do sacramento da confissão, uma vez que requer o reconhecimento expresso do pecado e o pedido de perdão.121 Já Jaspers trabalha com a concepção de culpa moral, baseada na própria consciência, e de culpa metafísica, cuja instância se remete a Deus, fazendo uma ligação entre elas quando vem a afirmar que “se nós homens pudéssemos nos liberar daquela culpa metafísica seríamos anjos e os outros conceitos de culpa – criminal, política e moral – já não teriam objeto”.122 Neste diapasão, o autor, quando trabalha com as conseqüências de cada espécie de culpa, que para ele são quatro, diz claramente que a conseqüência da culpa criminal123 é um castigo que “pressupõe o reconhecimento do culpável por parte do juiz em sua livre decisão e não o reconhecimento por parte do réu de que tenha sido justamente castigado”, enquanto que a da culpa moral surge com a consciência, e com ela o arrependimento e a renovação, e, por fim, a da culpa metafísica aparece como uma transformação da consciência em si humana ante Deus.124 Dessa maneira, nota-se que a concepção de Jaspers já traz uma nítida diferenciação entre culpa criminal – culpabilidade – e culpa judaico-cristã, que não poderão ser confundidas no momento da execução penal, como tem ocorrido. Na medida em que se exige que o apenado confesse, ou seja, assuma a sua culpa judaico-cristã, como se tivesse cometido um pecado, para então considerá-lo arrependido do que fez e assim haver a indicação favorável para a concessão de um direito seu, estamos mascarando uma concepção religiosa com a execução de uma pena legal. Então, com a aferição do arrependimento no momento da execução penal pelo técnico que a detecta através de uma espécie de confissão de pecado cometido pelo apenado, ele passa a sugerir a concessão de um benefício, como se estivesse se colocando no lugar de Deus, amparado por sua técnica, fruto de uma racionalização também
116 MOSER, Frei Antonio. O Pecado: do Descrédito ao Aprofundamento, p. 78. 117 NETTO, Geraldino Alves Ferreira. Sentimento de Culpa e Religião. In: SILVA, Antonio Franco Ribeiro da (Org.). Culpa: Aspectos Psicanalíticos, Culturais & Religiosos, pp. 71-73. 118 MOSER, Frei Antonio. O Pecado: do Descrédito ao Aprofundamento, p. 113. 119 MOSER, Frei Antonio. O Pecado: do Descrédito ao Aprofundamento, p. 113. 120 MOSER, Frei Antonio. O Pecado: do Descrédito ao Aprofundamento, p. 118. 316
121 MOSER, Frei Antonio. O Pecado: do Descrédito ao Aprofundamento, pp. 282-283. 122 JASPERS, Karl. El Problema de la Culpa: sobre la Responsabilidad Política de Alemania, p. 55. 123 Ele define a culpa criminal de seguinte maneira: “Os crimes consistem em ações demonstráveis objetivamente que infringem leis inequívocas. Instância é o tribunal que, em um processo formal, estabelece fielmente os fatos e aplica depois as leis que lhe correspondem.” JASPERS, Karl. El Problema de la Culpa: sobre la Responsabilidad Política de Alemania, p. 53. 124 JASPERS, Karl. El Problema de la Culpa: sobre la Responsabilidad Política de Alemania, p. 57. 317
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sacra, e concedendo o perdão, para que então o ex-pecador ganhe o Reino dos Céus, ou seja, a progressão dentro do sistema. Como se não bastasse isso, é justamente a aferição do arrependimento que denota se o apenado está ou não se ressocializando, o que acaba por vincular a idéia de tratamento e de uma resposta adequada a ele à concessão do “benefício”, e ao cumprimento da justificativa da pena.
gica, que ao invés de acrescentar dignidade, acaba por usurpar-lhe, pois, na esteira de Rodrigues, que visivelmente apregoa pela lei kantiana, “o indivíduo não poderá ser objeto de uma pena cuja finalidade aniquile sua liberdade e o degrade a outro meio de realização desse fim”.126 A nossa Lei de Execução Penal prevê o tratamento do apenado associado àquela finalidade ressocializadora da pena, que só é admitido se for voluntário e se a sua não-aceitação não lhe trouxer conseqüências negativas. Logo, não pode ser considerado como justificativa de uma pena, pois independe do poder do Estado. O tratamento deverá ser sempre um direito do recluso e dessa maneira, não pode ser um dever imposto a ele coativamente, pois poderíamos possibilitar que houvesse a manipulação sobre sua personalidade, afetando sua consciência e sua escala de valores. Conforme Rodrigues,
Considerações Finais Vivemos em um Estado Democrático de Direito laico. Com a Modernidade e com a laicização do Estado e do Direito, não podemos mais admitir resquícios da moral religiosa em nossa legislação, especialmente nas áreas penal e processual penal. Devemos, então, lutar para a efetiva laicização desses institutos, o que não quer, de forma alguma, sugerir uma neutralização, separação entre Direito e ética, pois a própria história já provou amargamente a sua inviabilidade. Entretanto, falamos não de uma ética religiosa, mas de uma ética laica, dessacralizada. Segundo o laico, há uma só história, que tem como guia a nossa razão, que não é aquela infalível, e sim a que, segundo Bobbio, “extrai da experiência os dados a partir do qual pode refletir”. Então, na concepção laica, não há a dimensão da crença num resgate final, na salvação, pois, conforme o autor, não pode haver salvação numa visão do mundo em que não existe sequer a idéia da culpa originária, que teria maculado para sempre toda a humanidade desde a origem e ao longo dos séculos. Para o laico, a história não se desenrola segundo um percurso predeterminado, e já traçado desde o início, entre uma culpa original e uma redenção final. É uma história de eventos de que se pode, ainda que nem sempre, encontrar a concatenação das causas, mas em que não se pode chegar à atribuição de culpas.125 Entendemos, então, que a pena, além de ter como finalidade a limitação da violência tanto privada quanto estatal, é um meio que está a serviço da convivência humana e que se justifica na proporção que a torne viável. Por isso, não cabe ao Direito Penal ter finalidade pedagó125 BOBBIO, Norberto. Elogio da Serenidade e Outros Escritos Morais, p. 23. 318
o ‘direito a não ser tratado’ é parte integrante do ‘direito de ser diferente’ que não pode ser posto em causa nas sociedades pluralistas e democráticas do nosso entorno cultural. A afirmação do princípio do tratamento voluntário é uma evidência, segundo a dimensão de ‘direito’ do recluso conferida à socialização e entendida esta como emanação do princípio da dignidade da pessoa humana. O que converte em inconstitucional um tratamento coativo.127 Dessa forma, como o tratamento do recluso é um direito que ele tem, e, por isso, só pode ser voluntário, a exigência para a obtenção de um parecer favorável que se vê nos laudos e nos pareceres de o apenado mostrar que está se ressocializando, ou seja, que mudou, que se transformou em um bom pai de família, ou pior, que se arrependeu do que fez, mostra-se ainda mais injustificada. Além de transformar um direito do apenado em um dever de modificar-se, acaba por ferir a própria liberdade de consciência e religiosa, pois a idéia de arrependimento, como já falamos, tem suas raízes na culpa judaicocristã e na necessidade de sua assunção para o perdão divino e a paz eterna, que estão na esfera da religião, e não do Direito.
126 RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo Olhar Sobre a Questão Penitenciária, p. 58. 127 RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo Olhar Sobre a Questão Penitenciária, p. 59. 319
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O Discurso Ressocializador e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
Podemos perceber que com a necessária assunção da culpa judaico-cristã e com seu posterior arrependimento, que violam a liberdade de consciência e de crença religiosa, para a feitura de um laudo ou de um parecer favorável, de fato o que ocorre é, nas palavras de DaMatta, que a “inversão vem depois do reforço. Somente depois que se acentua a posição de pecador a comunhão é realizada e o perdão, concedido”.128 Na verdade, com a assunção da culpa judaicocristã e com o arrependimento do crime cometido, o que sucede é que a concessão da progressividade acaba por se tornar uma forma de reforçar a diferença entre os normais e os criminosos-pecadores, e, com isso, promover a homogeneização de todos como bons pais de família.
______. Lei de Execução Penal: Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2002. ______. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Execução no 70 000 658 047. Agravante: Claudemar Antônio Oliveira de Souza. Agravado: Juízo de Execuções Criminais. Relator: Tupinambá Pinto de Azevedo. Porto Alegre, 29 de março de 2000. ______. Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo no 296 011 967. Agravante Luiz Arthur Schons. Agravada: A Justiça. Relator: Marco Antonio Ribeiro de Oliveira. Porto Alegre, 18 de junho de 1997. BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Manual de Derecho Penal Español: Parte General. Barcelona: Ariel, 1984. CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias: uma Leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. ______. Práticas Inquisitivas na Execução Penal (Estudo do Vínculo do Juiz aos Laudos Criminológicos a partir da Jurisprudência Garantista do Tribunal de Justiça do RS). In: CARVALHO, Salo (Org.). Crítica à Execução Penal: Doutrina, Jurisprudência e Projetos Legislativos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. ______. Teoria Agnóstica da Pena: o Modelo Garantista de Limitação do Poder Punitivo. In: CARVALHO, Salo (Org.). Crítica à Execução Penal: Doutrina, Jurisprudência, Projetos Legislativos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Pena: Progressão de Regime. Revista Jurídica, Proto Alegre, no 252, ano XLVI, 1998. CERVINI, Raúl. Os Processos de Descriminalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. CORDOBA, Frederico de. La Liberdad Condicional. La Habana: Cultural, 1943. COSIMO, Giovanni di. Coscienza e Costituzione: i Limite del Diritto di Fronte ai Convincimenti Interiori della Persona. Milano: Giuffrè, 2000. DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma Sociologia do Dilema Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. DIAS, Augusto Silva. A Relevância Jurídico Penal das Decisões de Consciência. Coimbra: Almedina, 1986. FARIAS, Edimilsom Pereira. Colisão de Direitos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1996.
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Natalia Gimenes Pinzon
O Discurso Ressocializador e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
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O Processo de Execução Penal e a Violência Estatal Paula Gil Larruscahim Mas de um a cem, a minha chance é zero Será que Deus ouviu minha oração? Será que o juiz aceitou minha apelação? Racionais MC’S. Diário de um Detento.
Introdução A partir de pesquisa realizada junto à Vara de Execuções de Porto Alegre, em que foi realizado o percurso de 142 pedidos de livramento condicional, oriundos de 104 processos de execução penal, coloca-se mais uma vez em pauta para discussão a relação que se dá entre o poder da perícia na execução penal e a atividade do julgador. Pode-se dizer que o percurso processual desses pedidos está inserido no contexto de um processo marcado por linhas inquisitoriais, de cunho autoritário, em que o julgador, em vez de prestar um exercício legítimo da jurisdição, atua, na verdade, como uma espécie de repetidor de juízos periciais. Assim, somada à violência inerente à pena privativa de liberdade, fundada no sistema meritocrático e disciplinar, tem-se a violência do processo que, em vez de se constituir em instrumento da jurisdição, possibilitando a garantia aos condenados do contraditório, da ampla defesa e de um direito à prova, acaba por legitimar práticas institucionais arbitrárias que operam como instrumento de ingerência sobre a interioridade e a subjetividade do condenado.
1. Natureza Jurídica do Livramento Condicional: Direito ou Benefício? O livramento condicional, considerado como o último estágio do sistema progressivo, é estabelecido pela LEP no artigo 131 e regulamen325
Paula Gil Larruscahim
O Processo de Execução Penal e a Violência Estatal
tado pelo CP, no artigo 83. A idéia de que o livramento condicional é um benefício e não um direito corrobora perfeitamente a concepção de que a pena é tratamento, de que o condenado é um objeto sobre o qual incide esse tratamento, e de que o processo de execução penal, alheio às garantias constitucionais, não tem a finalidade de instrumentalizá-las. Assim, é preciso antes de tudo definir a natureza jurídica do livramento condicional: é um direito subjetivo que possui o condenado à pena privativa de liberdade igual ou superior a dois anos, mediante o cumprimento de algumas condições impostas que são agora discutidas e pontuadas. Entende-se aqui direito público subjetivo, nos termos de Jorge Miranda:1 “Significam direitos subjetivos atribuídos por normas de Direito público, abrangendo situações jurídicas ativas das pessoas frente ao Estado”. Desse modo o livramento condicional é uma situação jurídico-processual, que se estabelece entre o condenado e o Estado na prestação da jurisdição. Portanto, o livramento condicional “é um direito do condenado, e não uma faculdade judicial”.2 Zaffaroni, que também considera o livramento condicional como parte da execução penal, dentro de num regime progressivo, esclarece que é um direito do apenado, na medida em que este cumpra os requisitos legais para exigi-lo:
A partir de uma visão jurisdicionalizada do processo de execução penal e reconhecido o estatuto de direito público subjetivo que se confere ao livramento condicional, é necessário pontuar os órgãos envolvidos para sua apreciação, bem como o procedimento adotado pelo sistema jurídico para o processamento dos pedidos formulados. Quanto à formulação do pedido, tem-se atualmente, como titulares, o próprio condenado, os órgãos da administração (inclusive a CTC, conforme o artigo 6o da LEP), o Ministério Público (artigo 68, II, “e”,da LEP) e até mesmo o próprio juiz, que poderá conceder de ofício (artigo 66, III, “e”, da LEP). Formulado o pedido, os autos do processo devem ser encaminhados obrigatoriamente ao Conselho Penitenciário, que é um órgão consultivo e fiscalizador da execução penal (artigo 69 da LEP). Uma das tarefas do Conselho é a de emitir pareceres sobre o livramento condicional (artigo 70, I, da LEP). Segundo o parágrafo único do artigo 83 do Código Penal, nos casos em que o crime for doloso e cometido com violência ou grave ameaça, é obrigatória a aferição do requisito subjetivo, que indique através da prognose de não-reincidência que o condenado não voltará a “delinqüir”. No entanto, de acordo com os dados da pesquisa, pode-se observar que dificilmente o magistrado decide sem uma opinião da CTC e/ou da COC: dos 142 pedidos analisados, constatou-se que 44 decisões foram emitidas com base em laudo da COC e 23 com base no parecer da CTC. Obrigatória é também a emissão de um parecer do Ministério Público, que, mesmo tendo o poder de propor o livramento condicional, opinará pelo seu deferimento ou indeferimento, podendo, inclusive, requerer laudo da COC e parecer da CTC. De acordo com o devido processo legal que impõe o contraditório e ampla defesa, a cada passo dado durante esse procedimento a defesa deveria ser intimada para tomar ciência e, querendo, manifestar-se. No entanto, como já foi possível observar, não é assim que ocorre. Finalmente, cumpridos todos esses requisitos, os autos do processo devem ficar conclusos, para que o juiz se manifeste através de uma decisão concedendo ou não o livramento condicional. Para análise da possibilidade de concessão do livramento condicional, tanto o magistrado quanto o Ministério Público e Conselho
A faculdade do juiz ou tribunal se reduz em constatar a presença dos requisitos legais, e que, de modo algum, se trata de uma faculdade discricionária, que o órgão jurisdicional pode exercer irresponsavelmente. O arbítrio judicial na apreciação desses requisitos é igual àquele que tem na apreciação de qualquer outro estabelecido pela lei para produção de qualquer efeito. Tal arbítrio não pode se converter em arbitrariedade, o que seria inadmissível num sistema democrático de governo.3
2. Procedimento para o Livramento Condicional Devido à condição de benefício à qual é relegado o livramento condicional, assim como tantos outros direitos, não há na LEP, nem no CPP, um dispositivo que trate do procedimento. 1 2 3
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MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, p. 54. SHECAIRA, Sérgio Salomão e CÔRREA, Alceu. Teoria da Pena, p. 348. ZAFFARONI, Eugenio e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. pp. 802-803.
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Paula Gil Larruscahim
O Processo de Execução Penal e a Violência Estatal
Penitenciário devem considerar dois requisitos: um objetivo e outro subjetivo.
honesto, comportamento satisfatório durante a execução da pena e um requisito específico nos crimes dolosos contra a vida, que é a chamada prognose de não-reincidência. A avaliação dos bons antecedentes para concessão de livramento condicional diz respeito somente aos casos em que o condenado for não reincidente em crime doloso, que deverá ter cumprido, no mínimo, um terço da pena. Cezar Bittencourt5 ensina que “devem ser considerados como antecedentes, para essa finalidade, aqueles fatos ocorridos antes do início do cumprimento da pena, mesmo que tenham ocorrido após o fato delituoso que deu origem à prisão, o que já não pode ocorrer por ocasião da dosimetria e aplicação da pena”. Salo de Carvalho ensina que “são características intrínsecas à antecedência criminal a amplitude, a negatividade, a subjetividade, a relatividade e a perpetuidade”.6 Ainda que não seja possível a valoração de fato delituoso após aquele que deu origem à prisão, a avaliação dos antecedentes em qualquer momento processual vai contra a vedação constitucional da pena perpétua (artigo 5o, XLVII, “b”), ao princípio da secularização e ao da presunção de inocência que, segundo Adauto Suannes, a hipótese de valoração dos antecedentes só poderia ocorrer em relação “a condenação criminal definitiva anterior ao fato ora em julgamento”.7 Já os questionáveis requisitos bom desempenho no trabalho e a aptidão para prover a própria subsistência com trabalho honesto refletem a lógica meritocrática e anti-secular adotada pelo sistema de execução brasileiro, bem como remetem à questão sobre o trabalho na prisão ser um direito ou um dever e não constituem objeto de análise da pesquisa. Assim, dentre esses requisitos, constitui objeto específico do estudo o comportamento do preso na instituição, que pode ser atestado pela casa prisional e através de uma perícia: o laudo da COC e/ou parecer da CTC, que farão uma análise não apenas do comportamento carcerário, mas também da vida do preso no que diz ao seu entorno e à sua vida antes da prisão, muitas vezes com um diagnóstico futuro, que é a prognose de não-reincidência. Da amostra que representa o universo de pesquisa, 142 pedidos de livramento condicional, excluindo-se os casos em que o preso não
2.1. Requisitos Objetivos O requisito objetivo diz respeito ao lapso temporal, isto é, ao tempo de cumprimento da pena que é dividido conforme alguns critérios estabelecidos pelo artigo 83 do Código Penal: • Mais de um 1/3 se o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes; • Mais de 1/2 se o condenado for reincidente em crime doloso; • Mais de 2/3 da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza. Do universo dos pedidos analisados, verificou-se que 48% das decisões desfavoráveis foram em razão do não-cumprimento do requisito objetivo, ou seja, faltava tempo de cumprimento da pena no momento do pedido. Outro aspecto objetivo considerado para a concessão do livramento condicional é a possibilidade de reparação do dano que, em decorrência da natureza seletiva do sistema penal, é praticamente inócuo, já que grande parte da população carcerária brasileira é efetivamente pobre.4 Assim, verificado o cumprimento do lapso temporal mínimo, passa-se à aferição de um segundo requisito, o subjetivo.
2.2. Requisitos Subjetivos O requisito subjetivo é dado através dos seguintes parâmetros estabelecidos em lei: bons antecedentes, bom desempenho no trabalho, aptidão para prover a própria subsistência com trabalho 4
328
Na Penitenciária Estadual do Jacuí, por exemplo, “a direção do estabelecimento realizou um levantamento sobre a situação econômica e social dos detentos com 991 internos. Descobriu que 988 deles eram miseráveis e que 3 integravam as camadas médias da sociedade. Na PEJ não há um preso rico sequer” (COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. II Caravana Nacional de Direitos Humanos: uma amostra da realidade prisional brasileira, p. 73).
5 6 7
BITTENCOURT, Cezar. Manual de Direito Penal, p. 644. CARVALHO, Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo. pp. 42-43. SUANNES, Adauto. A Irrelevância dos Antecedentes Criminais do Réu, p. 240. 329
Paula Gil Larruscahim
O Processo de Execução Penal e a Violência Estatal
teve o direito concedido em função do lapso temporal, que foi igual a 48% dos pedidos, verificou-se que o restante, os casos em que havia preenchimento do requisito objetivo, em 21 pedidos havia parecer da CTC e em 42 pedidos havia laudo da COC.
dade da perícia no processo, não será possível falar de um direito à prova, pois a refutabilidade das assertivas formuladas pelos peritos é requisito essencial para a legitimidade da própria perícia: O que se exige é a clareza na resposta dos quesitos, a precisão e segurança nas conclusões, que devem ser sempre motivadas, com uma exposição sincera e franca dos fundamentos, apoiados, naturalmente, em bases científicas. Deve ser evitada a linguagem preciosa e rebuscada, tornando espinhosa e enfadonha a compreensão do relatório, que há de ser sucinto (as divagações tiram a força da argumentação), mas completo e rico em minúcias, sem proxilidade ou verborréia.9
3. Discussão dos Resultados da Pesquisa 3.1. Prestabilidade do Laudo ou Parecer como Meio de Prova para Aferição do Requisito Subjetivo para Concessão de Livramento Condicional A partir da realização da pesquisa, foi possível vislumbrar uma alternativa para o problema da perícia na execução penal: a primeira, e talvez a mais viável, consiste em excluir do sistema de execução a produção de laudos ou pareceres que tenham por finalidade constituirse em meio de prova, ou seja, que tenham como objetivo principal aferir a subjetividade do preso, usando-a como condição para a concessão ou denegação de direitos públicos subjetivos, como é o caso do livramento condicional. Assim, uma possível opção para a atividade dos técnicos na execução penal seria a de colocá-los à disposição do condenado que voluntariamente optaria por aderir a um programa transdisciplinar que o preparasse à reinserção social, bem como o assistisse no curso da execução.8 Na hipótese de o sistema continuar estruturado na atual forma, isto é, em que os laudos e pareceres são utilizados como meio de prova e como instrumento de auxílio para aferição do requisito subjetivo na apreciação de direitos do condenado, devem ficar subordinados às regras do devido processo legal, do direito à prova, do contraditório e da ampla defesa. No entanto, percebe-se que um problema ainda persistiria: enquanto o conteúdo da perícia técnica continuar versando sobre a interioridade do condenado e não sobre fatos históricos, que é a finali8
330
Nesse sentido Carmen Silva de Moraes, partindo do pressuposto de que a pena é um mal, conclui que a ressocialização não deve ser abandonada, desde que não deixe de ser vista como uma proposta, um oferecimento que o sentenciado é livre para aceitar ou não, pois, vista a pena como um mal, nada impede a introdução nela de elementos que tenham a pretensão de favorecer o delinqüente (BARROS, Carmen Silva de Moraes. A Individualização da Pena na Execução Penal, p. 214).
Desse modo, ainda que a defesa fosse sempre intimada dos laudos e pareceres, para manifestação sobre seu conteúdo, inclusive formulando quesitos sobre os pontos que não ficassem devidamente esclarecidos e fundamentados, pergunta-se: como formular quesitos e estabelecer um contraditório sobre enunciados cujo teor só é apreensível para os profissionais que possuem formação técnica específica na área? Com base no levantamento empírico e teórico, percebe-se que o sistema de execução penal brasileiro, marcado pela inquisitoriedade, administrativizado e medicalizado, é incapaz de fornecer mecanismos que restrinjam e limitem os espaços de arbítrio do poder estatal, bem como de direcionar o processo de execução penal no sentido de instrumentalizar as garantias constitucionais dos condenados. Assim, é perfeitamente possível pensar o sistema de execução penal como uma teia que se fixa a partir do emaranhado de diferentes discursos sobrepostos, a que Foucault denominou de dispositivo: (...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos.10
9 10
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. pp. 576-577. FOUCAULT, Michel. Sobre a História da Sexualidade, p. 244. 331
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O Processo de Execução Penal e a Violência Estatal
Nessa perspectiva, Foucault constata que a prisão passa a desempenhar um papel muito específico: preencher estrategicamente o dispositivo, pois “a prisão funcionou como filtro, concentração, profissionalização, isolamento de um meio delinqüente, que passou a ser reutilizado com finalidades políticas e econômicas diversas”.11 Trancafiados nos muros da prisão, esses meio-delinqüentes, à margem de todos os direitos constitucionais, inclusive de um devido processo legal, continuam cumprindo o papel de atestar e auto-afirmar “a sociedade formada pelos cidadãos de bem”. Nessa ótica “a prisão representaria o símbolo da sociedade perfeita. Entretanto, Miriam Guindani atenta para o fato de que nessa tentativa de determinação de normalidade não houve espaços para a diferença, produzindo-se a equivalência generalizada, isto é, um nivelamento onde todos seriam iguais, em que se tornou ‘a’ maior de todas as violências”.12
Quanto à relação de vinculação entre os pareceres do Conselho Penitenciário e os laudos da COC e parecer da CTC, pôde-se verificar, através da aplicação do Teste Exato de Fischer, que, em ambos os casos, não há associação estatisticamente significativa entre os pareceres do Conselho Penitenciário e os pareceres da CTC, pois o coeficiente de concordância foi igual a 0,337 e p = 1.
3.2. A perícia e os órgãos da execução penal
Tabela III – Distribuição dos pedidos de livramento condicional segundo o parecer do Conselho Penitenciário e o parecer da CTC. Parecer do Conselho Penitenciário
Parecer do CTC
Favorável
Total
Desfavorável
N
%
N
%
Favorável
4
57,1
0
0,0
4
50,0
Desfavorável
3
42,9
1
100,0
4
50,0
Total
7
100,0
1
100,0
8
100,0
N
%
3.2.1. Relação dos pareceres do Conselho Penitenciário com os laudos e pareceres técnicos Como já referido anteriormente, é requisito legal e obrigatório a manifestação do Conselho Penitenciário no processamento dos pedidos de livramento condicional. No entanto, dos 142 pedidos analisados somente 46 continham o parecer do Conselho Penitenciário, ou seja, 32,9%. Tabela II – Distribuição dos pedidos de acordo com o número de pareceres do Conselho Penitenciário Parecer do ConFreqüência selho Penitenciário Consta 46
32,4
32,9
94
66,2
67,1
Total válido
140
98,6
100,0
Total geral
332
Percentual Válido
Não consta Sem resposta
11 12
Percentual Geral
2
1,4
142
100,0
FOUCAULT, Michel. Sobre a História da Sexualidade, p. 245. GUINDANI, Miriam. Prisão: Um Fio Articulado à Rede de Relações de Violência Social, p. 178.
O mesmo pode-se dizer da relação entre os pareceres do Conselho Penitenciário e os laudos da COC: não há uma relação estatisticamente relevante entre as variáveis, pois o coeficiente de concordância resultou em 0,099 e p=0549. Tabela IV – Distribuição dos pedidos de livramento condicional segundo o parecer do Conselho Penitenciário e o laudo da COC. Parecer COC
do Parecer do Conselho Penitenciário Total Favorável
desfavorável
N
%
N
%
Favorável
5
27,8
0
0,0
5
23,8
Desfavorável
13
72,2
3
100,0
16
76,2
Total
18
100,0
3
100,0
21
100,0
N
%
Desse resultado encontrado na pesquisa, pode-se deduzir que não há efetivamente uma relação de dependência entre os pareceres do 333
Paula Gil Larruscahim
O Processo de Execução Penal e a Violência Estatal
Conselho Penitenciário com os laudos da COC e pareceres da CTC, respectivamente. No entanto, o reduzido número de pedidos em que houve manifestação do Conselho Penitenciário que, segundo o artigo 70, I, da LEP é obrigatória, reflete a situação de contingência do processo de execução penal, que parece transcorrer à revelia de princípios processuais mínimos, como o contraditório e ampla defesa, impossibilitando, assim, a efetivação de uma estrutura processual dialética e instrumental de direitos e garantias.
Assim pode-se afirmar que o restante, os 33 pedidos em que não houve manifestação do Ministério Público, estão no mínimo irregulares, ou, na hipótese de ter havido prejuízo, nulos. Por outro lado, ao relacionar-se as variáveis correspondentes ao parecer do Ministério Público e aos laudos da COC e parecer da CTC, verificou-se existir nitidamente uma relação de dependência entre as variáveis.
3.2.3. Relação dos Pareceres do Ministério Público com os Laudos e Pareceres Técnicos O Ministério Público possui e desempenha ao mesmo tempo duas funções na execução penal: A primeira é a de figurar como parte no processo de execução penal relativamente aos incidentes da execução. Eduardo Cavalcanti infere que “a ausência do Ministério Público, nesses casos, pode suscitar a nulidade do processo, caso ocorra prejuízo”.13 A segunda função desempenhada pelo respectivo órgão durante o curso da execução penal é na “defesa dos interesses transindividuais dos presos”.14 Atentando-se para o fato de que o parecer do Ministério Público também é obrigatório no processamento de pedidos de livramento condicional, apurou-se que dos 142 pedidos, em 109 constava a manifestação ministerial. Tabela V – Distribuição dos pedidos de acordo com o número de pareceres do Ministério Público
13 14 334
Parecer do MP Parecer do CTC Favorável
Favorável
Total
Desfavorável
N
%
N
%
N
%
18
90,0
4
40,0
22
73,3
Desfavorável
2
10,0
6
60,0
8
26,7
Total
20
100,0
10
100,0
30
100,0
Quanto à relação entre o parecer da CTC e o parecer do MP, foi aplicado o Teste Qui-Quadrado, em que p=0,004 e o Coeficiente do Concordância Kappa resultou em 0,526, ficando demonstrada a associação entre os pareceres do MP e da CTC. Tabela VII – Distribuição dos pedidos de livramento condicional segundo o parecer do MP e o laudo da COC. Parecer do COC
Parecer do MP Favorável
Total
Desfavorável
N
%
N
%
N
%
Favorável
7
41,2
3
21,7
10
21,7
23,2
Desfavorável
10
58,8
26
78,3
36
78,3
100,0
Total
17
100,0
29
100,0
46
100,0
Freqüência
Percentual Geral
Percentual Válido
Consta
109
76,8
76,8
Não consta
33
23,2
Total geral
142
100,0
Parecer do MP
Tabela VI – Distribuição dos pedidos de livramento condicional segundo o parecer do MP e o parecer da CTC.
CAVALCANTI, Eduardo. O Ministério Público na Execução Penal. p. 437. CAVALCANTI, Eduardo. O Ministério Público na Execução Penal. p. 436.
Da mesma forma foi aplicado o teste em relação aos pareceres do MP e os laudos da COC: através do Teste Qui-Quadrado, obteve-se o seguinte resultado: p= 0,014 e o Coeficiente de Concordância Kappa = 0,337. 335
Paula Gil Larruscahim
O Processo de Execução Penal e a Violência Estatal
Conclui-se a partir desses dados que a amostra analisada apresentou um resultado estatisticamente relevante, ou seja, pode-se afirmar que os laudos e pareceres técnicos, de um modo geral, determinam de alguma forma o resultado das manifestações ministeriais.
Assim, para além da discussão acerca da natureza jurídica da perícia – se constitui meio de prova ou meio de avaliação da prova –, certo é que, no processo de execução, a perícia assume verdadeiro poder decisório. O fio condutor do presente trabalho de estudo e investigação residiu na hipótese de que a perícia acaba assumindo um poder de determinação sobre o resultado das decisões judiciais em sede de execução penal, no que tange a direitos postulados pelos condenados no curso do processo e, no caso específico, o livramento condicional. Com base nos dados trazidos pela pesquisa e desde a aplicação dos testes, verificou-se que os coeficientes de contingências apontados são estatisticamente relevantes, a ponto de ser possível afirmar que existe relação entre os resultados das decisões judiciais e os pareceres da CTC e laudo da COC:
3.2.4. O Poder das Perícias: Verificação da Vinculação entre os Laudos da COC e Pareceres da CTC e as Decisões Judiciais Antes de proceder à análise da relação entre as decisões judiciais e a perícia técnica, é de se atentar para o fato de que em 35 pedidos formulados não houve decisão judicial, ou seja, sequer houve prestação da jurisdição por parte do Estado. Tabela VIII: Distribuição dos pedidos de acordo com o número de decisões judiciais Decisão Judicial
Freqüência
Percentual
Percentual
geral
válido
Consta
106
74,6
75,2
Não consta
35
24,6
24,8
Total válido
141
99,3
100,0
Sem resposta Total geral
1
0,7
142
100,0
Assim como o livramento condicional não é um benefício, mas um direito, a prolação da sentença não é um favor que o magistrado presta arbitrariamente ao jurisdicionado, é um dever. Nesse sentido, Adauto Suannes faz um questionamento que é inevitável: “Se o Estado, por intermédio do juiz, age arbitrariamente, como esperar que o cidadão comum aja não-arbitrariamente?”15 A problemática que envolve a produção da prova pericial na execução penal não se restringe somente à perícia propriamente dita, sejam os laudos ou os pareceres. A perícia em si pode até ser inócua (caso não seja utilizada como meio de prova para a avaliação de direitos); a questão é também o poder que a ela é conferido. 15 336
SUANNES, Adauto. Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal, p. 220.
Tabela IX – Distribuição dos pedidos de livramento condicional segundo o parecer da CTC e a decisão final Parecer da CTC Decisão Favorável
Favorável
Total
Desfavorável
N
%
N
%
N
%
16
88,9
2
40,0
18
78,3
Desfavorável
2
11,1
3
60,0
5
21,7
Total
18
100,0
5
100,0
23
100,0
Para análise da relação entre as variáveis parecer da CTC e decisão final, foi aplicado o teste Exato de Fisher, cujo coeficiente de contingência resultou em 0,439, demonstrando que há, efetivamente, associação entre os pareceres emitidos pela COC e as decisões judiciais. Procedeu-se à análise somente nos casos em que existiam em um mesmo pedido pareceres da CTC e a decisão final. Assim, verificou-se que, de um universo de 23 pedidos de livramento condicional, 78,3% das decisões favoráveis foram apoiadas em pareceres também favoráveis da CTC, enquanto 21,7% das decisões desfavoráveis foram baseadas em pareceres contrários à concessão do livramento condicional. 337
Paula Gil Larruscahim
O Processo de Execução Penal e a Violência Estatal
Observa-se que a relação de concordância entre essas duas variáveis é quanto à concessão dos pedidos formulados, ou seja, quanto ao deferimento. Tabela X – Distribuição dos pedidos de livramento condicional segundo o laudo da COC e a decisão final Parecer da COC Decisão
Favorável
Total
Desfavorável
N
%
N
%
Favorável
8
72,7
13
39,4
21
47,7
Desfavorável
3
27,3
20
60,6
23
52,3
Total
11
100,0
33
100,0
44
100,0
N
%
Na apuração da existência de vínculo entre as variáveis representadas pelo laudo da COC e a decisão final, aplicou-se o Teste Qui-Quadrado de Independência, cujo coeficiente de contingência resultou em 0,408. Na aplicação deste tipo de teste, o coeficiente para ter um grau de significância estatístico deve ser “aproximadamente” maior do que 5,5%. Na análise das respectivas variáveis, embora o resultado do teste tenha chegado a 4,08%, é possível afirmar, em uma estimativa não tão exata, mas aproximada, que existe uma associação entre as variáveis. Assim, de uma amostra de 44 pedidos em que constavam concomitantemente o laudo da COC e a decisão judicial, 47,7% das decisões foram favoráveis, enquanto 52,3% foram desfavoráveis. Do exposto, conclui-se que a autoridade que dispensa ou nega um benefício penal, de qualquer forma que se chame, com base exclusivamente nesse tipo de perícia, não comprova fatos em regime de contradição ou publicidade, senão que valora e julga diretamente a interioridade das pessoas; não decide sobre a comissão de um delito, isto é, sobre uma hipótese empírica e refutável, como exige o caráter cognitivo próprio da jurisdição, senão imediatamente sobre a “ausência de periculosidade” de um homem, sua “boa conduta”, seu “arrependimento superveniente” ou sobre outras valorações análogas não verificáveis por sua natureza.16
16 338
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. pp. 408-409.
Considerações Finais: Muito Além do Poder da Perícias e do Decisionismo Judicial Conforme foi possível observar na análise realizada, as principais regulamentações do sistema de execução penal assemelham-se a uma colcha de retalhos aleatoriamente costurada: de um lado, a LEP, que, embora prime pela jurisdição, guarda uma matriz etiológica e inquisitória; no mesmo sentido o CP e o CPP, que fornecem o suporte para a manutenção dessa ordem autoritária. De outro modo, a CF/88, que, mesmo implementando garantias, continua afastada da realidade que permeia tanto a prática judiciária, quanto a técnica. Da interface entre o levantamento dos dados e o aporte teórico desenvolvido nessa pesquisa observou-se que o processo de execução penal é calcado no sistema inquisitório, bem como retoma o sistema da prova tarifada, o que torna a jurisdição inviável. Isso significa dizer que a violência no processo de execução penal vai muito além da matriz decisionista, em que o modelo de juízo é marcado por um subjetivismo e por um exercício de poder ilimitados. Um modelo de juízo cognoscitivista, que impõe ao juiz o princípio da estrita jurisdicionalidade e que exige a refutabilidade e a verificabilidade das hipóteses acusatórias, é ainda um ideal a ser alcançado. Do mesmo modo é o problema que envolve a perícia técnica, que tem o condão de definir decisões judiciais justamente em razão da adoção desse modelo de juízo autoritário e subjetivista. O problema dos laudos e pareceres técnicos não diz respeito somente ao seu conteúdo, mas também à forma como é manipulado. Atente-se para o fato de que o juiz não é obrigado a formar sua convicção com base na prova pericial. Porém, se o fizer, fica compelido a demonstrar o caminho mental percorrido que o motivou a adotar o laudo ou parecer como razão decisória. E mais, é necessário que essa fundamentação seja passível de refutação e verificação. Nessa perspectiva, Ricardo Falbo informa que as decisões judiciais servem como um termômetro do funcionamento do sistema judiciário: Procede a um só tempo simbólica e violentamente porque decide muito mais centrado na autoridade pura do que na razão cognitiva e, assim, não explicita os critérios e os motivos pelos quais decide e, quando o faz, recorrendo ou não às 339
Paula Gil Larruscahim
O Processo de Execução Penal e a Violência Estatal
expressões cidadão e/ou cidadania para fundamentar suas decisões, age mecanicamente. Sua ação mecânica consiste em fazer migrar para o campo decisório argumentos ou discursos que pertencem muitas vezes a outros campos igualmente simbólicos e violentos.17
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Vol. II. 1. ed. Campinas: Bookseller, 2000. FALBO, Ricardo Nery. Cidadania e Violência no Judiciário Brasileiro. Porto Alegre: Fabris, 2002. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoría del garantismo penal. Tradução: Perfecto Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayón Mohino, Juan Terradillos Basoco e Rocío Cantarero Bandrés. 4. ed. Madrid: Trotta, 2000. FOUCAULT, Michel. Sobre a história da sexualidade. In: Microfísica do Poder. Tradução: Roberto Machado. 17. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979. GUINDANI, Miriam. Prisão: um fio articulado è rede de relações de violência social. In: DESAULNIERS, Julieta (org.). Fenômeno: uma teia complexa de relações. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2000. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. 2. ed. Lisboa: Coimbra, 1998. SHECAIRA, Sérgio Salomão e CÔRREA, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. ZAFFARONI, Eugenio e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
Porém, como falar em cognoscitivismo, jurisdição e direito à prova se muitas vezes os pedidos sequer são apreciados? Mais uma vez, Ricardo Falbo ensina que “o maior ou menor grau de eficácia do sistema judiciário como guardião da cidadania, em razão de sua função institucional, decorre do maior ou menor grau de violência simbólica de suas práticas e discursos jurídicos”.18 O condenado é um sujeito que não possui local de fala no processo de execução penal. É tratado como um objeto sobre o qual recai não só a pena privativa de liberdade, mas toda uma série de subpunições, que fortuitamente vão somando-se durante o curso da execução. Assim, o processo de execução penal parece se desenrolar como um “monólogo esquizofrênico”, em que o Estado, em uma paródia de jurisdição, dita aleatoriamente as condições em que o condenado deverá cumprir sua pena, que, como num golpe de sorte, se torna incerta, indeterminada e extremamente arbitrária.
Referências Bibliográficas BARROS, Carmem Silva. A Individualização da Pena na Execução Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. BITTENCOURT, Cezar. Manual de Direito Penal. Parte Geral. Vol. I. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002. CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias: Uma Leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. CAVALCANTI, Eduardo. O Ministério Público na Execução Penal. In: CARVALHO, Salo de. (org.) Crítica à Execução Penal: doutrina, jurisprudência e projetos legislativos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. Relatório da II Caravana Nacional de Direitos Humanos: uma amostra da realidade prisional brasileira. Brasília, 2000.
17 18 340
FALBO, Ricardo Nery. Cidadania e Violência no Judiciário Brasileiro. pp. 59-60. FALBO, Ricardo Nery. Cidadania e Violência no Judiciário Brasileiro, p. 59. 341
A (I)Legitimidade do Processo de Imposição das Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro: Diagnóstico Garantista Ronya Soares de Brito e Souto “(...) é bem de mito que se deve falar quando se faz passar por natureza aquilo que é conceito por liberação de uma verdade o que é reconstituição de uma moral, por cura espontânea da loucura aquilo que talvez não passe de sua secreta inserção numa realidade artificiosa”. Michel Foucault
1. Medidas de Segurança – Breves Incursões Históricas O desatino, durante longo período que antecede seu aprisionamento, ocupou grande espaço no mundo da literatura e das artes: a era medieval representou a fase áurea de manifestação da loucura (as questões acerca da (des)razão do louco eram cotidianamente apresentadas de forma artística à população). Em fins do período medieval e início da Renascença, era tema central gerador de grandes reflexões nos teatros, nos discursos literários e obras de arte. Dentre tais manifestações algumas recebem maior ênfase na análise de Foucault, como “A Cura da Loucura” e “A Nau dos loucos”, de Jerônimo Bosch, e “O Elogio da Loucura”, de Erasmo de Roterdan. Foucault ressalta a atenção atribuída à questão da loucura na Europa de fins da Idade Média proclamando que: A denúncia da loucura torna-se a forma geral da crítica. Nas farsas e nas sotias, a personagem do Louco, do Simplório, ou do Bobo assume cada vez maior importância. Ele não é mais, marginalmente, a silhueta ridícula e familiar: toma lugar no centro do teatro, como o detentor da verdade – desempenhando aqui o papel complementar e inverso ao que assume a loucura nos contos e sátiras.1 1
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 14. 343
Ronya Soares de Brito e Souto
A (I)Legitimidade do Processo de Imposição das Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro
Bem antes de ser identificada e suprimida pelos estatutos médicos do século XIX, a individualidade do louco e o seu reconhecimento enquanto pessoa já haviam sido solidificados nas sociedades medievais – a loucura era considerada elemento “essencial na obra da razão; através dela, e mesmo em suas aparentes vitórias, a razão se manifesta e triunfa. A loucura é, para a razão sua força viva e secreta”.2 Essa atmosfera de olhares críticos, fascinados e curiosos sobre a Loucura rendeu a ela uma racionalidade peculiar. Era situada em uma relação eterna com a razão, em que ambas representavam uma a medida da outra. A Loucura também adquiriu “status” de um saber estranho que o homem racional jamais alcançaria – era uma forma de razão: a do desatino, situação bem retratada na obra de Erasmo de Roterdan, que é iniciada com a denuncia da constante presença da questão da Loucura na vida cotidiana daquele período, nos seguintes termos:
A partir do racionalismo cartesiano, o cientificismo da modernidade5 teve as primeiras elaborações de uma construção filosófica que culminaram, posteriormente, no positivismo científico. O homem é colocado no centro do mundo. Apropria-se de todas as coisas e a partir deste local passa, agora, a construir o que é verdadeiro, certo, científico, confiável ou não. O lugar privilegiado, conforme leciona Boaventura de Sousa Santos, afasta o indivíduo das incertezas, globalizando e universalizando padrões de conhecimento e de comportamento desvelando um modelo
As pessoas deste mundo falam muito de mim, e estou a par de todo o mal que se ouve falar da Loucura, mesmo entre os loucos. E no entanto sou eu, e mais ninguém que alegro os Deuses e os homens. Hoje mesmo isto é amplamente comprovado, pois me bastou aparecer diante deste numeroso auditório para surgir em todos os olhos a mais resplandecente alegria. Imediatamente, vosso rosto ergue-se para mim e vosso amável riso aplaudiu-me todo contente.3 Todavia, a despeito deste espaço de racionalidade conquistado pela loucura, o antropocentrismo moderno cartesiano4 – emergente com a decadência da estrutura social medieval – ruma em direção à consolidação de uma tradição intelectual na qual o homem pode se descobrir e posicionar-se frente aos outros e às coisas enquanto sujeito cognoscente diante de um objeto, sendo capaz, a partir de sua própria razão, de compreender a realidade e de produzir conhecimento.
2 3 4
344
Idem, p. 35. ROTERDAN, Erasmo de. Elogio da Loucura. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 5. A razão cartesiana é como que um ponto de partida através do qual o homem é libertado das inseguranças e constrói uma práxis interpretativa e de compreensão do mundo na qual ele pode se auto-excluir das obscuridades e das questões ocultas e incompreensíveis da existência: passa de contingência a verdade e razão de seu próprio mundo.
totalitário, na medida em que nega o carácter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas. É esta a sua característica fundamental e a que melhor simboliza a ruptura do novo paradigma científico com os que o precedem.6 O império da razão – moderna (unidimensional) – transforma a diferença em desrazão, exilando qualquer possibilidade de creditar-lhe algum resquício de manifestação válida. Alasdair MacIntyre despende severas críticas a esta práxis epistemológica em que a supressão e o aniquilamento da diversidade ocorrem de forma imperceptível à maioria dos sujeitos que, inseridos em tal paradigma de globalização e padronização dos significados, não possuem o distanciamento suficiente para perceber que essa crença na sua habilidade de compreender tudo sobre a cultura e a história humanas, independente de quão estranho lhes possa ser, aparentemente é uma das crenças definidoras da cultura da modernidade. Isto é evidente na maneira de ensinar e escrever a história da arte, de modo que os objetos e os textos produzidos por outras culturas são submetidos ao nosso conceito de arte, permitindo-nos expor o
5
6
A racionalidade moderna – fruto do jusnaturalismo racionalista que rompe com a tradição de bases teológicas, fundando a idéia de direito natural baseado na razão humana – é a científica, oriunda das ciências exatas (a matemática) que transportam seus métodos de investigação ao conhecimento das ciências humanas. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 13 ed. Porto: Afrontamento, 2002, p. 10. 345
Ronya Soares de Brito e Souto
A (I)Legitimidade do Processo de Imposição das Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro
que, de fato, eram tipos de objetos muito diferentes heterogêneos sob uma única rubrica estética.7
forma de purificação e imersões são capazes de exemplificar as formas de tratamento médico utilizadas em tais Instituições.9 Estas transformações sociais deixam facilmente perceptível a aproximação que se pretendeu, com o advento da modernidade, da figura do louco à do pobre desempregado e delinqüente, ou seja, insinua-se um parentesco “simbólico” entre desrazão e inadaptação social – quiçá sugere-se aproximação entre as concepções de delito e doença, que servirá de base a futuras ideologias punitivas. O Internamento representou o momento em que a loucura perdeu o contato com o mundo livre que lhe era reservado na Idade Média. Agora definitivamente, o mundo da razão se afasta do desatino reservando a este o espaço institucional do confinamento eterno. Quando nestes “Grandes Hospitais” – sustentáculo à estrutura de controle social – passa a imperar a ética disciplinar laborativa, instituise a seguinte lógica de controle: primeiramente as massas de desempregados eram absorvidas e, posteriormente, fora dos períodos críticos, adotava nova dinâmica utilitária – laborava-se no sentido de reinserir esta força de trabalho ociosa ao sistema produtivo. Contexto em que o louco (até então confundido e esquecido em meio à massa de excluídos) é individualizado por sua inaptidão ao trabalho: separa-se o joio do trigo. Assim, no interior das instituições hospitalares, a pobreza reaproveitável (indigência positiva, útil) é diferenciada da inutilizada (doença). A dicotomização utilidade/inutilidade é feita a partir da natureza do miserável – separa-se o “pobre válido” do “pobre doente”.10 Neste momento, como aduz Foucault:
Em meio a este novo contexto, a epistemologia abandona a investigação de todo conhecimento situado no plano da desrazão, e com isso a loucura adquire nova conotação social. Passa, então, a ser associada à incapacidade de controle sobre as próprias idéias, sendo, portanto, inaceitável atribuir-lhe qualquer resíduo de racionalidade. O louco foi expropriado da possibilidade de alcance e domínio da verdade: seqüestra-se sua diversidade; e sua psiquê, antes vista como razão aguçadora de fascínio, admiração, curiosidade e, até mesmo, culto artístico, passa agora à desrazão – espaço do desprezível, incapaz, inútil. Paralelamente a toda esta transformação de olhares sobre a questão da loucura nas estruturas ideológicas de formação do conhecimento, também no plano empírico (e evidentemente que não em uma relação cronológica rígida com as transformações acima apontadas) podemos identificar uma conjuntura de mudanças. Com o desaparecimento do grande mal representado pela lepra, assiste-se à reocupação das inúmeras instituições que existiam em toda a Europa (com a finalidade de excluir, afastar os leprosos do convívio social) pelas novas faces alvo da exclusão social: pobres, vagabundos, presidiários, loucos e portadores de doenças venéreas serão os novos destinatários dos Leprosários – agora denominados de Hospitais Gerais8 –; iniciam-se a Grande Internação e o recrudescimento do controle punitivo. Neste contexto, a loucura – da mesma forma em que é extirpada da estrutura racional de compreensão do mundo e produção do saber – é eliminada do meio social, passando a integrar, juntamente com os demais sujeitos objetos do controle social nos confins dos Hospitais Gerais e Casas de Misericórdia, o alvo de toda sorte de punições e torturas veladas sob a denominação de tratamento médico: métodos como transfusão de sangue no combate à melancolia, utilização do ferro como panacéia para todos os males, ingestão de sabão como
Pela primeira vez, a loucura é percebida através de uma condenação ética da ociosidade e numa imanência social garantida pela comunidade de trabalho. Esta comunidade adquire um poder ético de divisão que lhe permite rejeitar, como num outro mundo, todas as formas da inutilidade social. É nesse
9 7 8
346
MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual a racionalidade. São Paulo: Loyola, 1991, p. 413. Rapidamente tais instituições reaparecem no cenário Europeu – em Paris os de maior expressão eram Bicetrê e Salpêtriere – fenômeno bem descrito por Foucault ao registrar em ordem cronológica a reabertura de algumas destas instituições. FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 51.
10
Dentre os vários e detalhados relatos de Foucault acerca dos procedimentos utilizados para a cura e dominação da loucura, para além dos acima citados, chama a atenção o controle das cóleras e melancolias através da regulação dos movimentos, técnica na qual um pilar perpendicular é fixado no teto e no assoalho; amarra-se o doente numa cadeira ou numa cama suspensa a um braço horizontal móvel ao redor do pilar; graças a uma ‘engrenagem um pouco complicada’, imprime-se à máquina o grau de velocidade desejado (FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 321). FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 409. 347
Ronya Soares de Brito e Souto
A (I)Legitimidade do Processo de Imposição das Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro
outro mundo, delimitado pelos poderes sagrados do labor, que a loucura vai adquirir esse estatuto que lhe reconhecemos.11
criminologia positivista é marcantemente assimilada pelos sistemas penal e processual penal brasileiros.
Esta (re)velação do papel da loucura no contexto social encontra junto à Psiquiatria – que prenuncia a caminhada rumo à conquista do reconhecimento de seu saber específico no mundo científico – sólido aparato teórico. Nesta (re)descoberta da Loucura, impulsionada pelo discurso da necessidade de tratamento, surgem os grandes asilos do século XIX. Na esfera penal, os postulados da Escola Positiva em pleno estudo e desenvolvimento clamam pela interferência de “ciências” que se enveredem no estudo das estruturas psíquicas do indivíduo. Assim, o aparato repressivo, a partir de um sustentáculo teórico que conquista o respaldo de cientificidade, instrumentaliza silenciosos mecanismos que objetivam a estigmatização de determinadas parcelas da população: loucos e doentes mentais, drogados, deficientes físicos, alcoólatras, ciganos, mendigos, vagabundos, pedintes, homossexuais, prostitutas etc. Em tal conjuntura uma coisa é certa: tanto à Psiquiatria quanto ao Direito Penal era imprescindível consolidar a ideologia da periculosidade social, para a solidificação de seus saberes – poderes – como eficazes ao sistema de controle social. Diferentemente do medievo, em que o homem delinqüente era associado à figura do pecador e o louco era sujeito de uma razão específica, agora o primeiro passa a ser concebido como ser anormal – determinado por causas que extinguem a liberdade de vontade, e o segundo desaparece enquanto indivíduo, segregado no plano da nãorazão e objetificado nas instituições asilares. Deslocando o foco do debate para a realidade latino-americana, é fácil observar a independência territorial e administrativa representada pelo suposto fim do colonialismo; transforma-se em meros discursos sem efetividade empírica em face da subordinação econômica e ideológica mantida com os países centrais, que se arrasta até os tempos atuais. A ideologia de controle – gerada em contexto social europeu – se desvela na realidade brasileira: estrutura social e de poder distanciadas de sua base originária. Como veremos no próximo ponto, a
2. Medidas de Segurança – Abordagem Etiológica na Legislação Penal Brasileira Desde o brutal aniquilamento das populações indígenas na América Espanhola (imediatamente rotuladas como primitivas e carecedoras de domesticação e civilidade), até a negação e demonização de suas culturas,12 bem demonstradas nos textos das atrozes Ordenações do Reino, que o sistema de controle social brasileiro bebe em fontes européias soluções e respostas para os seus complexos problemas. E a incorporação das Medidas de Segurança na legislação penal pátria não percorre caminhos diferentes, pois, como preconiza o catedrático italiano Luigi Ferrajoli: El mayor impulso a la introducción de las medidas de seguridad en nuestro ordenamiento, o cuando menos a su legitimación ideológica, fue, sin duda, el dado por la Escuela Positiva o antropológica del derecho penal, que como ya hemos visto, substituyó la responsabilidad por la periglosidad y consideró al delito como síntoma de patología psico-somática, que, en cuanto tal, debe ser tratado y prevenido, mas que reprimido, con medidas pedagógicas y terapéuticas dirigidas a neutralizar su etiología.13 Primeiramente, podemos observar que a legislação de 1830 (de cunho essencialmente liberal e fortemente influenciada pelos teóricos da denominada “Escola Clássica”) tratou a matéria de forma bastante superficial. 12
13 11 348
Idem, p. 73.
Cf. LAS CASAS, Frei Bartolomé. Brevíssima Relação da Destruição das Índias: O Paraíso Destruído. Trad. Heraldo Barbuy, 6a ed. Porto Alegre: L± TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. São Paulo: Martins Fontes, 199; e, SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Da ‘Invasão’ da América aos Sistemas Penais de Hoje: O Discurso da ‘Inferioridade’ Latino-Americana. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Fundamentos de História de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 1986, p. 778. 349
Ronya Soares de Brito e Souto
A (I)Legitimidade do Processo de Imposição das Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro
Em tal estatuto, não era aplicada ao inimputável sanção de cunho punitivo, como pode ser observado no caput de seu artigo 10. Os inimputáveis não eram julgados criminosos, mas sim entregues às famílias ou às casas a eles destinadas, conforme preceitua o artigo 12 do mesmo estatuto. Tobias Barreto, em sua forma peculiar de analisar as questões jurídicas de seu tempo, lança comentários acerca dos dispositivos legais do Código Criminal do Império, destinados aos alienados mentais. Ao tratar especificamente sobre a questão da loucura, o autor tece crítica preliminar à vagueza da definição legal onde se acha a expressão “loucos de todo o gênero”, afirmando que, ao mesmo tempo em que é por demais genérica, não é capaz de abranger “todos os casos possíveis de irresponsabilidade por desarranjo na economia psychica”.14 Já naqueles tempos, ao criticar a obra de Lombroso, Tobias Barreto indiretamente também critica a vindoura absorção dos postulados da Escola Positiva e suas conseqüências – denunciava a existência de uma certa pretensão da Medicina de que o Direito pudesse ser considerado totalmente dependente de seus diagnósticos no que se referisse a questões de inimputabilidade. Nas palavras do jurista, “a obra do sábio italiano ressente-se deste defeito. Nella se nota que o psychiatra quer destronar o jurista, a psychiatria quer tornar dispensável o direito penal”.15 Todavia, a despeito do respaldo consagrado àquela legislação – tida por renomados juristas como evoluída e libertária, incorporando em seu texto a luta em defesa dos direitos e das garantias individuais do cidadão, como a irretroatividade da lei, a liberdade de crença religiosa e o princípio da culpabilidade –, as transformações sociais, políticas e econômicas brasileiras daquele momento (que têm grande marco na desagregação do regime socioeconômico escravocrata) impulsionam um discurso de recrudescimento punitivo e controle social para o qual o Código de 1830 passa a ser insuficiente. Naqueles tempos, como bem relata Julius Martins Teixeira:
brasileiros vistos como suspeitos preferenciais. Sem ter mais a propriedade direta do trabalhador, o sistema precisava criar uma estratégia de repressão contínua fora dos limites da unidade produtiva.16
A preocupação principal de garantir que, com a abolição da escravidão, os negros continuassem sujeitos ao trabalho, criou a estratégia da suspeição generalizada, com os afro-
14 15 350
MENEZES, Tobias Barreto. Menores e Loucos. Obras completas. Direito. Rio de Janeiro: Edição do Estado do Sergipe (ECE), 1926. vol. V, p. 52. Idem, pp. 73-74.
Deste modo, a partir do Código Penal de 189017 inicia-se a incorporação da ideologia da Escola Positiva e do saber da Psiquiatria – aparatos discursivos necessários à institucionalização jurídica das Medidas de Segurança – na legislação penal pátria. Afirmação nitidamente retratada no texto do artigo 29 da legislação acima mencionada ao proibir que os loucos fossem julgados determinava seu recolhimento em “hospitais de alienados, se o seu estado mental assim exigir para a segurança do público”. O Código já prevê também a aplicação de sanção penal por motivo de vadiagem. Neste período (proclamada a República e abolida a escravidão), diante da necessidade de romper com o passado colonial e de encontrar meios eficazes para o controle social (direcionado às categorias étnicas de negros e índios), alguns estudiosos brasileiros socorreram-se da antropologia positivista italiana, mormente das teses e estudos empreendidos por Lombroso, para realizar uma temerária classificação humana entre raças superiores e inferiores, com base exclusiva em características físicas e diferenciações mentais das diversas etnias.18 Para aquele momento histórico era importante forjar a responsabilidade pelos diversos problemas enfrentados nas sociedades latinoamericanas, afastando os motivos reais – dependência econômica e
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TEIXEIRA, Julius Martins. O homem síntese, crime e loucura. In: Discursos sediciosos: Crime Direito e Sociedade, Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia, 1996, no 2, v. 1, p. 306. Alvo de severas críticas, o Código Penal de 1890 sofreu inúmeras alterações e complementações, dentre as quais, no específico, vale mencionar o Decr. no 1.132, de dezembro de 1903, no qual, segundo Galdino Siqueira, já se providenciava sobre o recolhimento de não imputáveis perigosos a hospitaes de alienados, emquanto não fossem creados manicômios criminaes (SIQUEIRA, Galdino. Código Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Livraria Jacyntho, 1958, p. 130). Neste aspecto é significativa a obra de Nina Rodrigues, psiquiatra baiano, que, seguindo a linha racista francesa, desempenha minuciosos estudos acerca das diferenças raciais nos quais, não raras vezes, atribui a índios e negros toda a responsabilidade pelos atrasos culturais, políticos e econômicos do país (ver do autor: RODRIGUES, Raimundo Nina. Os Africanos no Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília e As raças humanas e, A Responsabilidade Penal no Brasil. Salvador: Editora Guanabara). 351
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política do capitalismo europeu, injustiças sociais provenientes do próprio modelo social de subordinação e exclusão – e centrando suas causas em características individuais dos grupos marginalizados. Assim, o discurso de depreciação da censura penal retributiva e a deslegitimação do sistema penitenciário como instrumento de combate à criminalidade, em acelerado processo de expansão, rumam em direção à criação do contexto propício à recepção definitiva da ideologia perigosista da Escola Positiva no sistema punitivo brasileiro. Momento em que, como reflexo dos movimentos que ocorriam na Europa e em toda a América Latina, inicia-se no Brasil a exaltação da Psiquiatria como instrumento eficaz de diagnose e de combate à criminalidade.19 A utilização do método indutivo experimental no estudo da delinqüência é fortemente nutrida pela Psiquiatria, que passa a atuar junto ao Direito construindo um novo e importante espaço de poder. Como saber imprescindível ao paradigma etiológico, a Medicina Psiquiátrica busca fortalecer cada vez mais sua vinculação com as ciências jurídico-penais, impondo-se como fonte “científica” necessária – fator que se torna evidente nas palavras de Heitor Carrilho, ao lamentar o exíguo espaço de que desfruta a Psiquiatria na análise direta do indivíduo delinqüente, com a seguinte advertência:
Prosseguindo rumo à solidificação de uma estrutura de controle social cada vez mais repressiva, pela primeira vez, teremos no anteprojeto de Código Penal concebido por Virgílio de Sá Pereira (1927) a proposta concreta de institucionalização das Medidas de Segurança. Nessa época, a ideologia da segregação defensiva de alienados perigosos já se encontrava em acelerado processo de implementação empírica: conforme noticia Heitor Carrilho, antes do Código Penal de 1940, já haviam sido inaugurados no Brasil e se encontravam em pleno funcionamento quatro manicômios judiciários, alguns anteriores até mesmo ao anteprojeto de Sá Pereira: o do Rio de Janeiro – 1921; o do Rio Grande do Sul – 1925; o de Minas Gerais – 1929; e o de São Paulo – 1933.21 Todavia, a consolidação das Medidas de Segurança como forma de sanção penal só se dará na legislação penal de 1940, com a incorporação do sistema dualista de sanção penal (o duplo binário): aplicação subseqüente de penas e medidas de segurança a imputáveis. Nesse momento, passam a conviver contraditoriamente pena e Medida de Segurança, institutos fundados em noções antropológicas totalmente distintas que geram concepções humanas teratológicas e antagônicas onde o sujeito é ao mesmo tempo considerado como pessoa dotada de livre-arbítrio e capacidade de autodeterminação, portanto, plenamente culpável e, por outro lado, despido de suas características humanas, acometido por um determinismo inato em que o delito se torna sintoma de periculosidade, contra a qual a sociedade deve-se colocar em estado de vigília através de medidas de neutralização e tratamento.
Se o conhecimento da psychologia e da psychiatria se diffundisse de modo mais seguro entre os magistrados, as indicações resultantes dos depoimentos dos indiciados teriam um valor de orientação dos mais notáveis. Pena é que no modo de gravar ou, usando e expressão technico-forense, na maneira de reduzir a termo os depoimentos, se deformem as associações de idéias de quem depõe, gravando-se somente o pensamento que se lhe atribúe – o que equivaleria a dizer – se altere a significação psyquiátrica do depoimento. Do contrário, um repositório precioso de indicações psychopathologicas resultaria destes documentos.20
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Além de Nina Rodrigues, alguns médicos brasileiros vinculados ao movimento criminológico da época – listados por Rosa del Olmo – podem ser aqui lembrados:, Oscar Freire, Afrânio Peixoto e Leonidio Ribeiro. OLMO, Rosa del. América Latina y su Criminología. México: Siglo veintiuno, 198, p. 140. CARRILHO, Heitor. Aspectos Médico-Legaes das Eschizophrenias. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, 1930, p. 5. Acerca dos primeiros tempos de conflitos
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entre saberes psiquiátrico e jurídico que impulsionaram, inclusive, o surgimento dos manicômios judiciários no Brasil, um rico relato apresentado por Sérgio Carrara demonstra com exatidão a subordinação do segundo ao saber do primeiro nesta relação de definição sobre alienação. O exemplo utilizado diz com a história de Custódio Serrão que apesar de considerado louco pelo Judiciário e encaminhado aos hospitais psiquiátricos era devolvido à Casa de Detenção por não ser dado como tal pela Psiquiatria e, sintetizando o debate ali travado, o autor ressalta que as razões do conflito “de ordem disciplinar, moral e científica que já haviam sido apontadas juntava-se finalmente um problema de ordem jurídico-política. Aceitar o resultado do processo de Custódio Serrão, mantendo-o no Hospício, era aceitar uma submissão perigosa dos peritos aos juízes, dos asilos aos tribunais. CARRARA, Sérgio. Loucura e Crime: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998, p. 176. CARRILHO, Heitor. Manicômios Judiciários. In: Justitia (08). São Paulo: Serviço de Documentação Jurídica do Ministério Público, 1944, pp. 64-65. 353
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Com a reforma legislativa de 1984, a transformação do sistema binário em vicariante – vista como o grande avanço da legislação penal e fundada sob o discurso de ineficácia da aplicação de medidas de segurança a imputáveis – ao propiciar a manutenção de tais medidas no sistema penal continua, conseqüentemente, sustentando a prevalência de um modelo criminal periculosista – o Direito Penal de Periculosidade – em coexistência paradoxal com o Direito Penal de Culpabilidade, único compatível com o Estado Democrático de Direito. A presunção de periculosidade, ainda que agora vestida em nova roupagem como periculosidade criminal – intentando-se com tal predicação sugerir uma restrição pelo novo critério imposto: o cometimento de ilícito típico pelo inimputável –, nada mais é do que a sobrevivência da velha e malfadada periculosidade social de outrora. É sempre a mesma, abstrata e improvável, potencialidade delitiva a fundamentar a segregação de determinada classe de indivíduos. Em suma, ao defender a periculosidade criminal para inimputáveis, mantém-se fecunda a ideologia de periculosidade social do extinto sistema do duplo binário. Agora, de maneira aproximada àquela relatada por Foucault em “História da Loucura”, vê-se o louco abandonado, sozinho, às mazelas das instituições manicomiais e ao arbítrio do poder psiquiátrico. Assim, institucionalizadas, as Medidas de Segurança, sob o manto dos procedimentos administrativos (tanto na legislação de 1940 quanto após a reforma de 1984), continuam sendo aplicadas na ausência de qualquer fiscalização de cunho judicial, sem qualquer observância das formas legais estipuladas à imposição das sanções penais. Ali o doente fica à mercê do discricionário poder psiquiátrico e suas formas de tratamento – castigo – em um sistema de imposição de sanção penal que renega a matriz garantista e acusatória recepcionada pela Constituição Federal de 1988 – questão a que passaremos no próximo ponto do trabalho.
que se percorreu em busca da solidificação de sua definição. Desde o termo temibilitá, esboçado por Garófalo, até as ferrenhas discussões em congressos de criminologia, podemos seguir com Zaffaroni o raciocínio de que “una de las pretensiones más ambiciosas de esta criminologia etiológica individual equívoca fue la de hacer realidad el viejo sueño positivista: medir la peligrosidad”.22 Ao nominar o prognóstico de periculosidade – baseado no estudo de numero de casos e causas de reincidência – de “perigosómetro”, narra o procedimento em etapas mediante as quais, a partir da análise da reincidência, se “construye uma tabla, se suman las causas presentes y ausentes en cada caso futuro y se obtiene el porcentaje, o bien se asigna un número de puntos a cada ‘causa’ y se suman los puntos aunque hubo algunos más complicados”.23 A absorção do postulado perigosista como estratégia de combate à criminalidade acarreta a profusão de regras e técnicas incertas, temerárias e ilegítimas de controle social, onde o sujeito é portador de uma periculosidade social da qual jamais poderá se subtrair. Mais, como já referido, ante a complexificação das explicações ao desvio criminal, o modelo (perigosista) imprescinde do apoio do aparato prático e discursivo, de lege ferenda, preconizado pelas novas ciências criminais: submete-se o condenado a um verdadeiro check-up antropológico onde a averiguação do grau de sua periculosidade social exige a submissão à miscelânea de exames desde a ótica da Anatomia, passando pela Psicologia, Patologia e Psiquiatria. No sistema processual e executório de aplicação das Medidas de Segurança no ordenamento jurídico pátrio, tal premissa é nitidamente verificável: a Psiquiatria se sobressai àqueles outros setores do conhecimento, passando a desempenhar importante função na elaboração de laudos e aferição de prognósticos de periculosidade. Devido à legitimação científica de seu discurso, a ela, e somente a ela, é conferido o poder de dizer sobre a inimputabilidade do cidadão que comete delitos. A partir de então, influencia, quando não determina, o tipo de decisão e a qualidade da sanção a serem proclamadas pelo magistrado (sentença absolutória ou condenatória,
3. As Medidas de Segurança em uma Abordagem Garantista No sistema punitivo brasileiro o desdobramento da incorporação dos postulados – causais-etiológicos e de periculosidade –, oriundos da Escola Positiva, impõe profunda transformação estrutural. A insegurança acarretada pela adoção do critério da perigosidade social fica bem demonstrada na própria trajetória histórico-doutrinária 354
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crimonologia: Aproximación desde un margen. Santa Fé de Bogotá: Editorial Temis S.A., 1993, p. 244 (ver também TERRADILLOS BASOCO, Juan. Peligrosidad social y Estado de Derecho. Madrid: Akal Editor, 1981). Ibidem. 355
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imposição de pena ou Medida de segurança), bem como o tipo de tratamento a ser imposto. O paradigma criminológico penal positivista, estruturado na vinculação da aplicação das Medidas de Segurança ao pressuposto da periculosidade social, abre incontroláveis espaços de abuso de poder ao Estado. Tal modelo pressupõe fatalmente um sistema processual cognitivo e de execução penal essencialmente inquisitório – em que as garantias processuais limitadoras da interferência estatal são completamente banalizadas –, marcadamente antigarantista, antidemocrático, portanto. A recepção empírica deste aparato ideológico no Direito Penal e Processual Penal brasileiro debilitou a estrutura acusatória do sistema processual na fase de conhecimento e de execução penal, pois mitigou os limites garantistas ao exercício da jurisdição e vulnerou a ampla defesa e conseqüentemente o contraditório entre as partes pela diversidade de matérias provenientes de áreas de conhecimento alienígenas, que se prontificam a interferir na questão criminal. Antes mesmo da abordagem sobre os aspectos atinentes à execução das Medidas de Segurança, é possível constatar a administrativização do poder de punir estatal já no momento cognitivo do processo, com a possibilidade de instauração do incidente de insanidade mental a qualquer tempo no transcorrer do mesmo. Eis a primeira violência ao sistema acusatório: a oficiosidade do magistrado em argüir o incidente, rompendo com a base principiológica democrática do referido sistema: o princípio dispositivo impositor de constante distanciamento do julgador para com as atribuições persecutórias próprias do acusador em qualquer momento do jogo processual. É inegável que o incidente de insanidade mental representa a possibilidade de verdadeira acusação e condenação do sujeito com base em pressuposto abstrato (a periculosidade) e por peculiaridades psíquicas inaveriguáveis dentro da estrutura de contraditoriedade jurídico-processual penal. Não obstante, impõe-se ao condenado a submissão a um sistema segregacional altamente estigmatizante que diante das inconstitucionais omissões legislativas ordinárias – como a indeterminação do período de internamento e a ausência de parâmetros prescricionais – pode, muitas vezes, ser mais severo do que o encarceramento imposto pela pena.24
Assim, a partir do resultado negativo do incidente, é iniciado um paradigmático processo de supressão de garantias constitucionais aos cidadãos inimputáveis. Confinados no interior dos hospitais psiquiátricos, são entregues aos poderes de psiquiatras, a quem é vinculada, a partir de então, a possibilidade ou não de restauração da liberdade de tais cidadãos. Tais constatações, nitidamente perceptíveis nos comandos do artigo 175 da Lei de Execução Penal (averiguação de periculosidade, relatório administrativo e necessidade de perícia psiquiátrica com vinculação do magistrado a ela), são suficientes a fomentar a crítica garantista, para a qual seguiremos os caminhos traçados pelo mestre da Universidade de Camerino ao denunciar que “las medidas de seguridad carecen de todos los requisitos garantistas – retribucion, estrita legalidad y estrita jurisdicionalidad”25 – vulnerações que passaremos a explorar de forma sucinta. Na execução das Medidas de Segurança os órgãos administrativos gozam de extensa liberdade de atuação sustentada sob o argumento de que “el internamiento psiquiátrico no es un procedimiento penal, no se aplican las rigurosas garantias procesales que se hallan en el proceso penal ordinário”.26 Tudo isso coloca em risco a tutela jurisdicional imposta pelo artigo 5o, XXXV, da Constituição Federal – fundamento basilar do Estado Moderno. O procedimento psiquiatrizado acarreta substancial teratologia na estrutura processual penal, de viés acusatório e garantista. A interferência psiquiátrica inviabiliza um sistema recursal que garanta verdadeiramente a ampla defesa, obstaculizando, desse modo, o princípio da presunção de inocência, primado elementar do sistema processual garantista, pois torna irrefutáveis as hipóteses apresentadas pelos laudos, em face dos limites da área de conhecimento dominada pelos sujeitos processuais (acusador, defensor e magistrado).
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Um clássico exemplo dos excessos cometidos na imposição das Medidas de Segurança é o caso do famoso e lendário assassino Febrônio Índio do Brasil, que tendo sua insa-
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nidade proclamada pela própria defesa, atestada e endossada pela Psiquiatria, foi encontrado, ainda vivo, por Peter Fry confinado entre os muros do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, onde passou mais de meio século de existência – quase o dobro da pena máxima permitida ao imputável. O relato é fornecido por Peter Fry, ao prefaciar a obra de Sérgio Carrara – CARRARA, Sérgio. Loucura e Crime: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998, p. 17. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Op. cit., p. 783. ZAFFARONI, Eugênio Raul. Sistemas Penales y Derechos Humanos en América Latina (Primer Informe). Argentina: Depalma, 1984, p. 102. 357
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Por conseguinte, quedam também prejudicados a necessária discricionariedade inerente ao ato de julgar e o primado da fundamentação das decisões (princípio da livre convicção motivada). Com o desconhecimento da matéria tratada pelo laudo, ao juiz resta como única hipótese de viabilização do processo a incorporação do juízo proferido pelo psiquiatra. Assim, o que se observa no Processo Penal brasileiro é que “a função do juiz fica reduzida a acolher os laudos e com isso há a perigosa fundição do modelo jurídico com o discurso da psiquiatria”.27 É o que Aury Lopes Junior denomina de “ditadura do modelo clínico”.28 Em tal estrutura não há fatos a declarar, mas sim uma qualidade a declarar – a de pessoa socialmente perigosa.29 Na mesma linha, a motivação das decisões não consegue romper com a mera adesão ao resultado dos laudos; portanto, padecerá, sempre e sempre, de nulidade insanável (agressão ao art. 93, IX, da CF). De acordo com Salo de Carvalho,
O início e a interrupção da aplicação das Medidas de Segurança vinculadas legalmente, respectivamente à analise dos pressupostos de periculosidade presumida e cessação da periculosidade do internado, são frutos da incorporação de inseguros fundamentos ontológicos na identificação de delitos e na proposição de sanções penais (criados e defendidos pelo ideário da Escola Positiva). Os postulados lesionam o princípio da taxatividade das sanções possibilitando, enquanto não se considere cessada a periculosidade, a imposição da segregação penal ad aeternun, ou melhor, ao livre alvedrio de juízes e psiquiatras. Uma vez que o sistema penal impõe limite máximo à execução de sanção penal pelo condenado (30 anos) e que a individualização da sanção é garantia tutelada constitucionalmente, é de fácil dedução a inconstitucionalidade da aplicação de qualquer sanção por tempo indeterminado no sistema penal pátrio: tal prática vulnera para além dos já mencionados os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, humanidade, dignidade humana e mínima intervenção, todos corolários do princípio da legalidade. Por outro lado, no atinente ao princípio da retribuição, temos, primeiramente, que a prorrogação da imposição das medidas de segurança mediante reexame da periculosidade representa a principal prática processual violadora do princípio aqui tratado, pois prescinde da comprovação de fato delituoso previsto em lei para que se mantenha a aplicação da sanção penal. Nesse momento, o único requisito que importa é a avaliação da periculosidade social, passando ela a ser suficiente, por si só, para manter o cidadão inimputável sob poder persecutório estatal. Outro aspecto merecedor de especial atenção no momento executório das Medidas de Segurança são os procedimentos a que se refere o artigo 178, da LEP. Ali se impõe como condição de concessão de liberdade ao internado sua submissão aos critérios de concessão do sursis. Tal (re)condicionamento à liberdade do internado rompe drasticamente com o princípio da retribuição – princípio que constitui o primeiro axioma do sistema SG desenvolvido por Ferrajoli e por ele considerado como primeira e fundamental garantia do Direito Penal em razão da qual
desde a reforma do sistema penal/penitenciário o juiz não decide mais, apenas homologa laudos técnicos, visto ser informado por um conjunto de microdecisões (micropoderes) que sustentarão “cientificamente” seu ato. Perdido no emaranhado burocrático, o ato decisional torna-se impessoal e inverificável, sendo inominável o sujeito prolator.30 Quanto ao princípio da legalidade – outro primado fundante do Estado Democrático de Direito – na lógica do sistema SG idealizado por Ferrajoli –31 impõe como condição de sua efetividade a observação dos seguintes teoremas: nulla lex poenalis sine necessitate, sine iniuria, sine actione, sine culpa, sine iudicio, sine acusacione, sine probacione e sine defensione. A cominação da sanção penal deve estar sempre vinculada taxativamente à prática de um delito descrito em lei.
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LOPES JÚNIOR, Aury. A Instrumentalidade Garantista do Processo de Execução Penal. Op. cit., p. 470. Ibidem. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Op. cit., p. 783. CARVALHO, Salo de. Práticas Inquisitivas na Execução Penal (Estudo do Vínculo do Juiz aos Laudos Criminológicos a partir da Jurisprudência Garantista do Tribunal de Justiça do RS). In: CARVALHO, Salo de (org.). Crítica à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 149. Idem, p. 95.
nadie pode ser castigado más que por lo que ha hecho (y no por lo que es) – sirve precisamente para excluir, al margen de cualquier posible finalidad preventiva o de cualquier otro 359
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modo utilitarista, el castigo del inocente aun cuando se le considere de por sí malvado, desviado, peligroso, sospechoso o proclive al delito.32
O jurista italiano, deslegitimando as versões tradicionais do utilitarismo penal – denominado por ele de “utilitarismo às medias” – propõe inovação na estrutura utilitarista de fins e justificações da ingerência punitiva, onde a tutela alcança, para além dos ofendidos pelos delitos (vítimas), também os atingidos pela violência das reações públicas ou privadas – último aspecto que fixa o limite máximo da ingerência penal. Este segundo parâmetro utilitário preconizado por Ferrajoli: o menor mal-estar necessário aos que cometem delitos, funda a inovação garantista na qual a pena, como sustenta o autor, agrega dupla finalidade preventiva,
Portanto, em contrapartida ao benefício que representa na imposição da pena, a presença de tal instituto no sistema de execução das Medidas de Segurança não pode ser vista com olhar libertário, pois aqui adquire conotação completamente diversa: acarreta inadmissíveis prejuízos ao cidadão-internado por acumular a imposição disfarçada de Medidas de Segurança pessoais não detentivas com a detentiva já cumprida – bis in idem intolerável no sistema penal e processual penal democráticos de direitos. Com tais considerações, constatamos então que a imposição de Medidas de Segurança presente na legislação penal pátria encontra-se amarrada a um modelo punitivo anti-secular no qual o inimputável é submetido a valorações e intromissões na subjetividade das mais variadas formas, a partir de um tratamento processual desigual e desumano. Posta a análise, alcançamos a conclusão de que urge a (re)adequação principiológica garantista e acusatória do sistema de imposição de sanções penais aos cidadãos considerados inimputáveis. Para tanto, o modelo de sistema penal e processual garantista defendido por Luigi Ferrajoli, que, assentado no princípio da secularização,33 preconiza o afastamento de qualquer ingerência arbitrária, proveniente de juízos morais nas liberdades subjetivas do indivíduo, defende a proteção aos direitos humanos de ambos os pólos da relação penal (a vítima e o delinqüente) como limite à ingerência persecutória estatal.
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FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 369. Acerca do princípio da secularização, vale lembrar a abordagem realizada por Salo de Carvalho, para quem “o princípio está incorporado em nossa realidade constitucional, não sendo dedutível dos demais valores e princípios, mas sendo ‘o’ princípio do qual aqueles são dedutíveis. Nesse sentido, a categoria correspondente a um dos núcleos substanciais do ordenamento jurídico, juntamente com os preceitos preambulares da Constituição (o pluralismo, a fraternidade, o pacifismo e a igualdade) e com os ‘fundamentos’ estabelecidos no art. 1o (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, pluralismo político). Tais princípios, ou valores constitucionais, sedimentam os pilares axiológicos sob os quais está fundada a república, conformando a estrutura jurídica basilar do Estado, diluindo e contaminado sua carga valorativa às demais esferas normativas”. CARVALHO, Salo de e CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, pp. 12-13.
la prevención de los delitos y la de las penas arbitrarias – están conectadas sobre esta base: legitiman conjuntamente la “legitimidad política” del derecho penal como instrumento de tutela de los derechos fundamentales, definiendo éstos normativamente los ámbitos y límites de aquél encuanto bienes que no está justificado lesionar ni con los delitos ni con los castigos.34 Seguindo esta linha teórica – de proteção do débil em cada momento de interferência punitiva –, a instrumentalização garantista do processo de aplicação e execução das Medidas de Segurança requer a afirmação da Constituição como instrumento de controle material da ingerência punitiva – com suporte no princípio da secularização (rígida separação entre Direito e Moral) –, vetando o abandono do cidadão à sorte de regras fundadas em pressupostos empíricos extralegais, abertos e incertos. Leis ou decisões, de quaisquer ordens, que não tenham por fim regular comportamentos, mas sim constituir estados pessoais estigmatizantes, que imponham sanção ao sujeito por aquilo que é, e não pelo que fez, rompem com os postulados laicos do Direito Penal iluminista.
4. Conclusão A ideologia periculosista impulsionada por questões sociais (indígenas, escravatura, imigração, exploração econômica, necessidade de exclusão...) acarreta na legislação punitiva brasileira a incor34
Idem, p. 335. 361
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poração de estratégias de controle, defendidas pela Escola Positiva, fundadas na periculosidade do indivíduo e, conseqüentemente, psiquiatrizadas. Assim, desde a autoritária legislação penal de 1940 até os discursos neodefensistas incorporados pela reforma de 1984, os direitos fundamentais dos inimputáveis vêm sendo suprimidos por práticas direcionadas a partir dos estudos e investigações oferecidos pela criminologia no modelo integrado de ciências criminais, em que – negada a noção de livre-arbítrio, sendo o sujeito naturalmente determinado ao desvio – a perigosidade assumirá o posto de pressuposto da sanção penal e da própria definição de delito. Neste contexto, garantias processuais basilares do sistema processual acusatório (como os princípios da legalidade e jurisdicionalidade e os demais que deles derivam) essenciais ao Estado Democrático de Direito (incorporado pela Constituição de 1988) são vulneradas no processo de imposição de Medidas de Segurança por ingerências de cunho ontológico e substancialista que objetificam os indivíduos. Ante tal constatação, podemos afirmar com convicção que restam deslegitimadas todas as normas de qualquer natureza (penal, processual ou executória), presentes na ordem jurídico-penal brasileira, que preconizem interferência de cunho moralizante ou regenerativo ao inimputável – portanto, padece também de vício de inconstitucionalidade a finalidade preventiva especial positiva conferida às Medidas de Segurança – na mesma linha, é flagrante a deslegitimação das práticas dos poderes públicos que atuam na execução de tais Medidas. A possibilidade de (re)legitimação garantista do sistema brasileiro de aplicação das Medidas de segurança, seguindo os traços seculares fundantes do Estado Democrático de Direito, exige em primeira mão duas providências: a deslegitimação e conseqüente afastamento do pressuposto da periculosidade do sujeito (critério formalmente diferenciador da imposição de sanções penais – penas e Medidas de Segurança) e o abandono das práticas psiquiatrizadas de controle. O olhar sobre aqueles que se acham fora do circuito da lógica racional capitalista de produção – no particular, os insanos – deve ser pautado pela sensata constatação de que a intervenção penal é, historicamente, imprescindível estratégia de controle social (do poder dominante) dirigida a determinados grupos sociais aos quais resta
como legado apenas o abandono no interior das instituições de inocuização.35
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Referências Bibliográficas ANDRADE, Vera Pereira Regina de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Introdução à Sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1999. CARRARA, Sérgio. Loucura e Crime: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998, p. 176. CARRILHO, Heitor. Aspectos Médico-Legaes das Eschizophrenias. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, 1930. ________ . Manicômios Judiciários. In: Justitia (08). São Paulo: Serviço de Documentação Jurídica do Ministério Público, 1944, pp. 64-65. CARVALHO, Salo de e CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, pp. 12-13. ________ . Práticas Inquisitivas na Execução Penal (Estudo do Vínculo do Juiz aos Laudos Criminológicos a partir da Jurisprudência Garantista do Tribunal de Justiça do RS). In: CARVALHO, Salo de. (org.). Crítica à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 1986. FOUCALT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2000. LAS CASAS, Frei Bartolomé. Brevíssima Relação da Destruição das Índias: O Paraíso Destruído. Trad. Heraldo Barbuy, 6a ed. Porto Alegre: L&PM. LOPES JÚNIOR, Aury. A Instrumentalidade Garantista do Processo de Execução Penal. In: CARVALHO, Salo de. (org.). Crítica à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
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Nesta perspectiva ANDRADE, Vera Pereira Regina de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997; e BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Introdução à Sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1999. 363
Ronya Soares de Brito e Souto
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HIV/AIDS e Cárcere: Uma Leitura de sua Complexidade no Contexto das Ciências Criminais Thaís Prestes Veras
1. O Mundo Velado do Cárcere: Suas Interfaces e a Incidência do HIV/AIDS A instituição prisão foi sempre uma realidade no processo evolutivo das sociedades, pois como afirma FOUCAULT1 “conhece-se todos os inconvenientes da prisão e sabe-se que é perigosa, quando não inútil. E, entretanto, não vemos o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução de que não se pode abrir mão”. Leciona BITTENCOURT que “até fins do século XVIII a prisão serviu somente aos fins de contenção e guarda de réus para preserválos fisicamente até o momento de serem julgados ou executados. Recorria-se durante esse longo período histórico, fundamentalmente, à pena de morte, às penas corporais (mutilações e açoites), e às infamantes”.2 FOUCAULT admite que foi na passagem do século XVIII para o século XIX que uma nova legislação define o poder de punir como uma função geral da sociedade que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros e na qual cada um deles é igualmente representado; mas, ao fazer da detenção a pena por excelência, ela introduz processos de dominação característicos de um tipo particular de poder, uma injustiça que se diz igual, um aparelho judiciário que se pretende autônomo, mas que é investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares, tal é a conjunção do nascimento da prisão, pena das sociedades civilizadas.3
1 2 3 364
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 208. BITTENCOURT, César. Falência da Pena de Prisão, p. 14. FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 207. 365
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O Cárcere como Instituição Total
Es preciso reconecer que la carcel há sido siempre en oposición a su modelo teorico e normativo, mucho mas que la privación de un tiempo abstracto de libertad. Inevitablemente há conservado muchos elementos de afflición física, que se manifiestan en las formas de vida y de tratamiento y que difieren de las antiguas penas corporales solo porque no estan concentradas en el tiempo, sino que se dilatan alo longo de la duración de la pena. Además, a la afloción corporal la pena carcelaria anade la aflicción psicológica: la soledad, el aislamiento, la sujección disciplinária, la perda de la sociabilidad y afectividad y, por conseguinte, de identidade, además de la aflicción específica que va unida a la presentión reeducativa y en general a cualquier tratamiento dirigido a plegar y a transforma a la persona del preso.7
A Lei de Execução Penal, em seu art. 62, define a prisão como um tipo de organização destinado ao condenado, ao submetido à medida de segurança, do preso provisório, do egresso. Analisando o posicionamento de vários autores em relação ao cárcere, evidenciamos que, efetivamente, este apresenta um perfil de instituição total. ERWIN GOFFMAN considera a prisão como instituição total. Segundo o autor, “uma instituição total é um local de residência e trabalho, onde um grande número de indivíduos, com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla, por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”.4 E confirmando ainda mais as características das prisões como instituição total, HULSMAN reconhece que
THOMPSON admite que:
as regras da vida na prisão fazem prevalecer relações de passividade, agressividade e de dependência-dominação, que praticamente não deixam qualquer espaço para a iniciativa e o diálogo; são regras que alimentam o desprezo pela pessoa e que são infantilizantes O clima de opressão onipresente desvaloriza a auto-estima, faz desaprender a comunicação autêntica com o outro, impede a construção de atitudes e comportamentos socialmente aceitáveis, para quando chegar o dia da libertação. Na prisão, os homens são despersonalizados e dessocializados.5 ZAFFARONI admite que a prisão é uma instituição total, onde “o preso ou prisioneiro é levado a condições de vida que nada têm a ver com as de um adulto. É ferido na sua auto-estima de todas as formas imagináveis, pela perda de privacidade de seu próprio espaço, submissões e revistas degradantes e submetido a uma cultura de cadeia distinta da vida em liberdade”.6 FERRAJOLI caracteriza, de forma explícita, o cárcere como instituição total, quando afirma:
4 5 6 366
GOFFMAN, Erwin. Prisão e Convento. p 11. HULSMAN, Louk. Penas Perdidas, p. 63. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em Busca das Penas Perdidas, p. 135.
A característica mais marcante da penitenciária, olhada como um sistema social, é que ela representa uma tentativa para a criação e manutenção de um grupamento humano submetido a um regime de controle total, ou quase total. As regulações minuciosas estendendo-se a toda a área da vida individual, a vigilância constante, a concentração de poder nas mãos de uns poucos, o abismo entre os que mandam e os que obedecem, a impossibilidade de simbiose de posições entre os membros das duas classes, tudo concorre para identificar o regime prisional como um regime totalitário.8 Há, entre os autores, como um consenso quanto ao caráter coercitivo e maléfico do encarceramento. Todos os aspectos negativos apresentados por diferentes autores nos levam a concluir que a prisão é uma instituição total, segundo o modelo teórico proposto por GOFFMAN e, por conseguinte, não é um instrumento adequado para a obtenção de resultados positivos sobre o recluso.
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FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p. 412. THOMPSON, Augusto. A Questão Penitenciária, p. 22. 367
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Entretanto, apesar de todo ceticismo negativista em relação ao cárcere, ao menos teoricamente lhe são atribuídas finalidades, definidas nas políticas dos diferentes sistemas penitenciários. Dentre as finalidades definidas em relação ao cárcere está a de ressocialização do condenado, que vem gerando discussões polêmicas. Variáveis como condições de meios inadequadas, insuficiência de recursos e de pessoal especializado e a quase nula participação da sociedade estão no foco das discussões. Por outro lado, há os que apregoam uma oposição entre pena e tratamento, o que pode levar à neutralização de qualquer tentativa ressocializadora. Retratar a realidade carcerária não é tarefa fácil, sobretudo quanto à precariedade e incerteza das informações disponíveis, muitas delas oriundas de órgãos não oficiais. Realmente, várias instituições nacionais e internacionais têm realizado estudos analítico-críticos com o objetivo de, retratando a realidade carcerária, alertar sobre as condições desumanas em que vivem os apenados. Dentre estas, destacam-se: o Instituto LatinoAmericano para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente – ILANUD – que, em 1997 publicou “Sistema Penitenciário: Mudança do Perfil dos anos 50 a 90”, como resultado de uma pesquisa, onde traça um panorama comparativo da evolução do Sistema Penitenciário nesse período. No mesmo ano, a Pastoral Carcerária, da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, apresentou um relatório crítico-analítico da Campanha da Fraternidade, que teve como lema “A Fraternidade e os encarcerados: Cristo liberta de todas as prisões”; a Human Rigths Watch, em 1997-8, realizou uma pesquisa em nível nacional, apresentando suas conclusões no documento “O Brasil atrás das grades”. Esse relatório baseia-se na pesquisa realizada através de visitas a quarenta estabelecimentos penitenciários brasileiros nos estados de Amazonas, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, São Paulo e Brasília, assim como em uma vasta gama de materiais suplementares. No Brasil, o Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN –, órgão da Secretaria Nacional de Justiça, fornece dados sobre a realidade prisional, mais numa dimensão estatística e não descritiva da dinâmica intra muros. No Rio Grande do Sul, merece destaque o Relatório Azul, elaborado pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa.
O Relatório Azul, segundo MARCOS ROLIM, “oferece à consideração pública um informe eloqüente sobre as dimensões da barbárie contemporânea, aquela construída sobre a ruína dos direitos e garantias fundamentais”.9 Mais recentemente (ano 2000) a II Caravana Nacional de Direitos Humanos realizou uma inspeção em dezessete instituições prisionais, localizadas em seis estados das regiões nordeste, leste e sul, com o objetivo de propor uma amostra da realidade prisional brasileira. Assim, a realidade constatada não difere do que já fora retratado, nos relatórios da HRW, da CNBB e da Anistia Internacional, sobre o sistema carcerário. Todos apontam como problemas crônicos a superlotação, as péssimas condições de higiene e da estrutura física, a deficiência de pessoal especializado, a falta de atendimento médico, a ociosidade, os altos índices de moléstias infectocontagiosas, como tuberculose, e AIDS, alto consumo de drogas (notadamente os injetáveis) e álcool. E desabafa, ao final do trabalho: “A sensação que temos é a de que conhecemos um sistema absolutamente ‘fora da lei’. Os imperativos definidos pela LEP são solenemente ignorados em todos os estados. Os presídios brasileiros são uma reinvenção do inferno. A resultante, entretanto, não é uma construção metafísica ou uma especulação religiosa. Aqui, os demônios têm pernas e visitam os presos a cada momento”.10 As expressões de ROLIM nos levam a imaginar cenas surrealistas que, infelizmente, são a realidade, a que são expostos os presos no Brasil.
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A Incidência do HIV/AIDS na Realidade Carcerária Desde o início da epidemia, observou-se a manifestação de AIDS em internos de sistemas prisionais, tendo como principais determinantes da infecção o compartilhamento de seringas no uso de drogas injetáveis e as relações sexuais desprotegidas. Desde então, já se previa que este grupo social, dadas as condições institucionais desfavoráveis à adoção de condutas mais seguras, tornar-se-ia, preferencialmente, vulnerável ao HIV. A previsão se confirmou. Pouco tempo depois de surgirem os primeiros casos, já se registravam em vários estudos, realizados em presídios dos Estados 9 10
ROLIM, Marcos. A Ética do Cuidado. Relatório Azul, p. 13. ROLIM, Marcos. II Caravana Nacional de Direitos Humanos: Uma amostra da realidade prisional brasileira, p. 15. 369
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Unidos, França, Espanha, Itália e outros níveis de infecção com valores que oscilavam entre 10 e 20%. No Brasil, apesar da impossibilidade ótica e metodológica de se estabelecer uma taxa de infecção dos detentos do país, alguns estudos resultaram em valores bastante variáveis que chegaram a tingir 20% nas grandes metrópoles.11 Relativamente à AIDS, na atualidade, considerando a realidade prisional, qualquer indivíduo que ingresse no sistema, seja por ter cometido um delito, seja na situação de preso provisório, tem grande possibilidade de se contaminar pelo HIV. É o que confirma SANCHEZ ao expressar que:
contempla analfabetos e até 8 anos de escolaridade e apenas 26% dos sujeitos possuem ensino médio e nível superior. A maioria provém de classes menos favorecidas, sob o aspecto socioeconômico.13 Na realidade carcerária, esse perfil parece não mudar; entretanto, quanto ao número de portadores, as informações são escassas. A falta de informações precisas encontra sua justificativa no ordenamento jurídico nacional, pois a Constituição Federal em seu art. 5o, inc. X, ao elencar os direitos e garantias individuais, preceitua que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Esse preceito veta a realização de testes de detectação da soropositividade, a não ser por ato voluntário. Assim, a legislação preserva a cidadania, mas acaba por contribuir para a imprecisão quanto ao mínimo de portadores encarcerados. Entretanto, alguns dados têm sido divulgados. CESAR CALDEIRA, através de um estudo, realizado em 1993, informa que, no Complexo Carandiru, estimava-se uma cifra de 1.580 a 2.740 portadores do HIV/AIDS, representando 22% para os pessimistas e 38% para os otimistas, da massa carcerária.14 Em São Paulo, no biênio 1993 – 94, a incidência de casos de HIV soropositivos era de cera de 1 para cada 6 presos (a média da população do país era de 1 : 345 habitantes). No caso de AIDS, a proporção era de 1 : 52 presos (e na população geral era de 1 : 5344). Os dados referidos evidenciam, num curto espaço de tempo, um acréscimo significativo da infecção.15 No Rio Grande do Sul, um estudo de soroprevalência, realizado no presídio de Porto Alegre, registrou que 32,70% daquela população carcerária é portadora do HIV/AIDS e que 57,10% dos reclusos com tuberculose são soropositivos. O relatório das atividades do Hospital Penitenciário de Porto Alegre, no período de 1998 a maio de 1999, registrou 120 óbitos, 18 deles tiveram como causa mortis a AIDS e 27, problemas pulmonares. Segundo informações médicas, obtidas por infecções pulmonares e por broncopneumonias, em geral podem estar relacionados com a AIDS.16
En la atualidad existe un acuerdo generalizado en admitir que el de la transmisión del SIDA constituye en prisión un riesgo mucho mas elevado que en otros ambientes sociales. ... Varios factores actuan a modo de potenciadores de la difusión de la enfermidad. De una parte, el hacinamiento, con la conseguinte perdida de una minima intimidad y la falta de higiene, numero muy elevado de sujetos consumidores de droga por via parenteral, practicas homosexuales ya sean estas consentidas, ya forzadas. De otra parte, la extracción social y cultural de buena parte de los reclusos, que provoca un desconocimiento superior al medio encuanto al origen, formas de contagios, alcance de la enfermidad y medidas de prevención. Finalmente, el clima conflictivo de no pocos centros que propicia frequentes riñas y agresiones con derramamiento de sangre.12 A análise de SANCHEZ possui elementos comuns ao Sistema Penitenciário Brasileiro quanto aos fatores condicionantes da infecção do HIV/AIDS. O perfil do portador de HIV/AIDS é traçado por CARMEM DHALIA. Embasada em dados do Ministério da Saúde, informa que, desde o início da epidemia, o grupo etário mais atingido situa-se na faixa etária de 20 – 39 anos, perfazendo 70% do total de casos notificados até 20/02/2000, com baixo índice de escolaridade: 74%
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COORDENAÇÃO NACIONAL DE DST/AIDS. Prevenção das Doenças Sexualmente Transmissíveis e da AIDS, Junto às Populações Confinadas. SANCEZ, Jesus Maria. Problemas Jurídico-penales del SIDA, p. 132.
14 15 16
DHALIA, Carmem. AIDS no Brasil. Situação e tendências. In: Direitos Humanos, Cidadania e AIDS, pp. 21-22. CALDEIRA, Cesar. Caso Carandiru: Um estudo sócio-político, p. 182. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO RS. Relatório Azul, p. 362. 371
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Enquanto fora do sistema prisional houve uma diminuição na “causa mortis” pela infecção pelo HIV, no sistema prisional constatouse um acréscimo aproximado de 50%.17 Os dados revelados indicam que a epidemia do HIV/AIDS no cárcere vem aumentando, com o que concorda NEWMAN “El SIDA, un problema no suficientemente hablado pero si respirado em las carceles, adquere sin pausas dimensiones de catástrofe”.18 Também fato digno de registro é a informação da HRW de que em Brasília todo ano cerca de 1.200 presos portadores de HIV são liberados, tornando-se agentes de contaminação. O maior responsável pela transmissão do HIV/AIDS é o sujeito que, dolosa ou imprudentemente, realiza atos que, de modo direto ou imediato, provocarão o contágio, seja através de relações sexuais, seja pelo uso compartilhado de seringas e agulhas contaminadas.
THOMPSON considera que: Talvez o mais penoso de todos os sofrimentos da prisão esteja conectado com a proibição de relações heterossexuais. Não apenas pelo fato em si, mas, também, em face das inúmeras e variadas conseqüências que daí decorrem. A impossibilidade de sustentar a família, de obter recursos à sua custa, de tomar decisões, de ser responsável por suas coisas, de escolher a própria roupa, vem juntar-se o impedimento de possuir uma mulher – tudo gerando, no preso, o sentimento da castração simbólica. Sua masculinidade está posta em jogo e, com ela, obviamente seu autoconceito. Apelando para a prática do homossexualismo, na forma ativa, torna-se viável minorar a angústia provocada. Penso que, de um ponto de vista genérico, será esta a explicação mais adequada para justificar o comportamento de quem se dedica à pederastia ativa exclusivamente enquanto habita a prisão.19
Condicionantes Comportamentais da Contaminação pelo HIV/AIDS Sexualidade A questão sexual é, reconhecidamente, um dos graves problemas que afetam o cotidiano das prisões, cujas deficiências estruturais propiciam a promiscuidade das relações interpessoais. Alijado de seu ambiente familiar e social, o preso, imerso num mundo peculiar, assentado em regras próprias impostas pela massa carcerária, poderá conter seus desejos, reprimir seus impulsos sexuais ou envolver-se, voluntariamente ou sob coação, em práticas homossexuais. Estudiosos do comportamento humano reconhecem que a atividade sexual é absolutamente imprescindível para a saúde psíquica do preso. A abstinência, sobretudo, quando prolongada, gera problemas não só no plano individual, provocando desequilíbrios psicológicos e favorecendo comportamentos condenáveis, como também no plano coletivo, dando causa a um clima de agressividade, de tensão e a conseqüentes distúrbios intra muros.
THOMPSON coloca de forma bem clara que o problema do homossexualismo é uma realidade, pois “uma densa nuvem de mistério cobre o assunto, sendo difícil recolher dados a respeito20 e admite que, de todas as peculiaridades que distinguem o estranho mundo dos presos da comunidade livre, esta é a mais cuidadosamente resguardada pelo sigilo”. A fim de minimizar o problema, uma das alternativas propostas são as visitas íntimas. Um alto funcionário do sistema carcerário de São Paulo declarou aos pesquisadores da HUMAM RIGHTS WATCH em 1977 que “a visita íntima ou conjugal fora uma revolução nas prisões, pois o fato de manter relações com mulheres fazia com que os presos deixassem de estuprar outros detentos”. A visita íntima é adotada em maior ou menor amplitude na América Latina. Nos Estados Unidos, em vários Estados. No Brasil, a visita íntima está prevista no art. 14 da Lei de Execução Penal, como um direito do preso, o que foi ratificado na Resolução no 1, de 30 de março de 1999, do Conselho Nacional de Política
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Id. Ibid, p. 366. NEWMAN, Elias. Cárcel y Sumisión, p. 48.
THOMPSON, Augusto. Op. cit., pp. 70-71. Ibid, p. 71. 373
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Criminal e Penitenciária e no art. 33 das regras mínimas para o tratamento do preso. À direção do estabelecimento prisional cabe a responsabilidade do controle administrativo da visita íntima, bem como o esclarecimento aos condenados e parceiros sobre os meios de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, sobretudo a AIDS.
Considerando a alta incidência de usuários de drogas injetáveis (UDI), os Projetos de Redução de Danos estão sendo discutidos e aceitos nos diversos setores da sociedade. Recentemente, um comitê de especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS) utilizou o termo “Redução de Danos” no sentido de prevenir as conseqüências adversas do consumo de drogas, sem objetivar primariamente a redução desse consumo. Uma das estratégias incluía a troca de seringas usadas por seringas estéreis. A Redução de Danos vem provocando uma série de questionamentos de várias ordens, muito deles embasados, apenas, na incompreensão da real natureza e dimensão da drogadição na sociedade em geral e na brasileira em particular.
Drogadição No sistema carcerário, a drogadição apresenta alto índice de incidência. Infelizmente, não há dados estatísticos oficiais e as inferências embasam-se na observação empírica do dia-a-dia da vida prisional, onde fica evidente que tanto o consumo como o tráfico de drogas ocorrem com freqüência. SALO DE CARVALHO, referindo-se a esta problemática, assim se expressa: Na esfera do Sistema Penal, a criminalização da droga representa um dos maiores problemas na atualidade. Além do gravíssimo efeito perverso da militarização e conseqüente restrição dos direitos e garantias individuais, a criminalização potencializa no seio das agências penais uma série de práticas reprováveis e ilegais: corrupção, tráfico de influências, produção de provas ilícitas, negociatas et coetera. Em relação ao sistema carcerário, a quantidade de presos condenados à espera de julgamento reflete uma realidade inadmissível, pois a circulação de entorpecentes nos presídios e delegacias é notória. Alia-se a este fato a cifra de que 97% dos processados por drogas na América Latina são consumidores e pequenos comerciantes e não os traficantes que compõem quadrilhas e bandos.21 A fim de fazer frente à epidemia do HIV/AIDS, várias alternativas intervencionistas vêm sendo acionadas, tanto em nível internacional, como nacional e da sociedade civil com efetiva participação das ONGs. 21 374
CARVALHO, Salo de. A Política de drogas no Brasil.
Implementação da Política da CN DST/AIDS no Âmbito Carcerário A Coordenação Nacional do DST/AIDS, através de publicações, não só retrata a situação epidemiológica, como propõe alternativas de ação, para que os órgãos responsáveis pela saúde, nas diversas unidades da federação, elaborem e implementem programa de prevenção do contágio pelo vírus HIV, como de apoio aos doentes. Este órgão define os fundamentos básicos de sua atuação junto às populações em situações de cumprimento de pena privativa de liberdade, segundo dispositivos legais emanados do Art. 5o da Constituição Federal, do Art. 14 da Lei de Execução Penal e das Diretrizes Básicas de Política Criminal e Penitenciárias do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça que, em seu art. 25, determina “realizar programas de prevenção e tratamento do DST/AIDS e dependência química nas unidades penais”. A CN DST/AIDS elaborou uma série de medidas para enfrentar o HIV/AIDS, na prisão: a) Sensibilização dos gerentes dos sistemas prisionais, através de reuniões com diretores de presídios; b) treinamento de funcionários e prisioneiros para realizar técnicas de prevenção, oficinas sobre aconselhamento, sexualidade e uso de drogas; c) produção de materiais educativos, como cartilhas, cartazes, vídeos para serem utilizados nos presídios de todo o país, através das Coordenações locais; 375
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d) distribuição de medicamentos e preservativos para os detentos, através das Coordenadorias Estaduais. O material é oriundo do Ministério da Saúde.
Posteriormente, a Assembléia Geral da ONU, através das Resoluções no 2.858, de 20 de dezembro de 1971, e no 3.218, de 6 de novembro de 1974, recomendou a edição das Regras Mínimas em matéria de justiça penal, no âmbito das nações. O cerne destas Regras Mínimas consiste em assegurar ao preso todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. O Brasil, como país membro signatário, aprovou, sob a responsabilidade do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso, em 1994. Segundo NELSON JOBIM, então Ministro da Justiça, as regras mínimas traduzem a conquista de uma antiga aspiração nacional e une à elevação teórica uma grande importância prática. Preservam, com sabedoria, o interesse coletivo da segurança dos cidadãos, ante o resguardo essencial das garantias e dos direitos da pessoa submetida a uma pena privativa de liberdade. Estas regras estão constituídas em 65 artigos distribuídos entre 27 capítulos. Dessa forma, a posição jurídica do recluso quanto aos direitos fundamentais está ancorada na Constituição Federal de 1988, no Código Penal, no Código de Processo Penal, subsidiados pela Lei de Execução Penal e as Regras Mínimas para Tratamento dos Presos. Referente ao recluso portador do HIV/AIDS, estigmatizado sob dois aspectos – o de cumprimento de pena privativa de liberdade – e o de pertencer a um grupo minoritário vulnerável –, são garantidos os mesmos direitos, atribuídos aos demais apenados. Em relação aos objetivos do presente trabalho, serão analisados aqueles direitos que dizem mais de perto à situação do recluso portador do HIV/AIDS: a) Art. 5o, no título dos direitos e garantias fundamentais “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Às pessoas contaminadas pelo HIV são assegurados os mesmos direitos de qualquer outro cidadão, salvo os atingidos pela sentença e pela lei. b) Art. 5o, inciso III, “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano degradante”. A tortura é considerada uma ofensa à dignidade humana. As torturas não são só físicas, mas também simbólicas. Assim, a discriminação ou segregação do soropositivo caracterizam desrespeito a seus direitos de cidadão. c) Art. 5o, C.F., inciso X – “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas..”.. d) O Código de Ética Médica, em seu art. 5o, prescreve que é vedado ao médico revelar informações confidenciais, obtidas através de exames clínicos ou laboratoriais de seus pacientes, salvo se o silêncio colocar em risco a vida do paciente.
Significativa tem sido a contribuição de organismos internacionais no estabelecimento de medidas intervencionistas em relação à epidemia do HIV/AIDS, quer para os infectados em geral, quer para a população carcerária. Essas medidas são expressas em recomendações que servem de subsídios para os países membros elaborarem suas políticas de prevenção e assistência sanitária aos reclusos que já estão contaminados. As recomendações propostas, porém, não significam uma intromissão no ordenamento penitenciário dos países membros, a quem cabe a decisão de adaptá-las a sua realidade.
Os Direitos Fundamentais do Recluso Portador do HIV/AIDS ANABELA MIRANDA DE RODRIGUES22 leciona que a defesa da posição jurídica do recluso veio culminar na sua consideração como portador de direitos fundamentais inerentes à consideração do homem no mundo atual e a que indissociavelmente se lia, sem dúvida, uma mudança essencial de enfoque das relações especiais de poder. Abandonada a teoria clássica que situava certas relações de vida no domínio do “não-direito” e rejeitada a tese de que os cidadãos, que são regidos por estatutos especiais, renunciam aos direitos fundamentais ou ficam numa situação de sujeição que implica restrições de direitos, surge, no domínio jurídico, a unanimidade de posições que ao recluso é assegurado o gozo dos direitos fundamentais, normalizados em estatutos legais. No IV Congresso das Nações Unidas sobre “Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente”, realizado em Kioto, no Japão, em 1970, alertou-se para a importância de ser implementado, em todos os países, um corpo de princípios para orientar os limites do poder-dever de punir, no relacionamento do Estado com o homem-preso, em decorrência de exigências constitucionais e legais.
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RODRIGUES, Anabela Miranda. A Posição Jurídica do Recluso na Execução da Pena Privativa de Liberdade, p. 165.
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e) O Código Penal, art. 154, veta a revelação, sem justa causa, de segredo de que tenha conhecimento em razão de função, ministério, ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem. Esses dispositivos são de fundamental importância para os soropositivos, pois a esses cabe decidir a respeito de quem desejam informar sobre sua condição sorológica, exercendo, assim, seu direito à confidencialidade. Esse direito, porém, não é absoluto; deve-se revelar a condição sorológica toda vez que a confidencialidade pode colocar alguém em risco de contaminação, pois a legítima defesa da vida é considerada bem maior. Os instrumentos jurídicos relacionados subsidiam o encaminhamento de situações como:
Apesar de todos estes aparatos de proteção aos direitos do soropositivo, em cumprimento da pena privativa de liberdade, a realidade nos evidencia que, por condições estruturais de várias naturezas, os direitos humanos dos presos são desrespeitados, como bem leciona Salo de Carvalho: “No interior do Sistema prisional, no qual as relações doentias do poder se produzem e reproduzem, constata-se absoluta incapacidade de garantias dos direitos, dado a inviabilização do direito à legalidade, através de mecanismos de obstrução de jurisdição”.23 Não obstante o processo formal de jurisdicionalização, instituído pela Lei de Execução Penal, criando alguns canais e instrumentos para a tutela do apenado, as reivindicações da massa carcerária são sufocadas ou desprezadas pelas autoridades administrativas e judiciárias, sob alegação de necessidade de manutenção da ordem, expressos pelos signos da disciplina e segurança. Como forma de garantia de direito à dignidade humana do preso portador do HIV/AIDS, em estágio avançado ou terminal da doença, a discriminação positiva aponta algumas alternativas, como a aplicação dos institutos de Prisão Domiciliar e até indulto, como forma de tratar diferenciadamente uma minoria, quando a diferença é objetivamente justificável por uma razão de fato existente no contexto prisional. O preso, apesar de estar regido por estatutos especiais que restringem os direitos previstos na Constituição e nas leis, não perde, além da liberdade, sua condição de pessoa humana e a totalidade dos direitos não atingidos pela condenação. Dessa forma, segundo ANABELA RODRIGUES, atualmente surge, em definitivo, delineada na teorização jurídica, a unanimidade de posição que vê o recluso como sujeito de direitos e a dignidade humana como limite absoluto das restrições. Aos portadores do HIV/AIDS, duplamente penalizados – pela perda de liberdade e a doença –, o Estado tem o dever de implementar programas de prevenção, apoio e tratamento. Tais programas devem seguir as recomendações de organismos internacionais como a Organização Mundial de Saúde, a Organização das Nações Unidas e organismos nacionais como a CONAIDS que, através da coordenação Nacional do DST/AIDS, define os fundamentos básicos da política de intervenção junto às populações confinadas.
1. Testagem compulsória do HIV. É legalmente vedada a prática de exame compulsório, para detecção de anticorpos do vírus HIV, sem prévio conhecimento e autorização do indivíduo. O respaldo legal desse direito está contemplado no art. 5o, inciso II, da C.F., “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa”. Código Penal, art. 146 e Lei no 4.898/65, que tratam do constrangimento ilegal e de abuso de autoridade, respectivamente, Código de Ética Médica, art. 46. 2. Divulgação de resultados de testes sem consentimento do portador. Esse tipo de violação pode trazer uma série de danos às pessoas que vivem com HIV/AIDS, pois a revelação da condição sorológica sem o consentimento expresso do portador pode trazer complicações emocionais, com prejuízos irreversíveis, inclusive a “morte social” que acelera a “morte biológica”. Ressalte-se, porém, que esse direito não pode ser confundido com o dever de notificação compulsória de infecção (de forma não personalizada) às autoridades sanitárias, como subsídios para planejamento de políticas públicas para seu controle. Acrescentando-se a estes direitos, ressalte-se os de assistência médica especializada, fornecimento gratuito pelo Estado de medicamentos específicos, bem como informações sobre formas de prevenção e controle. 378
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CARVALHO, Salo. Pena e Garantias. 379
Thaís Prestes Veras
HIV/AIDS e Cárcere
Para tanto, é indispensável a parceria com organizações não-governamentais – ONGs, com a sociedade civil e pessoas vivendo com AIDS.
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O Suplício de Tântalo: a Lei 10.792/03 e a Consolidação da Política Criminal do Terror Salo de Carvalho e Alexandre Wunderlich Em maio de 2003, após manifestação pública do Prof. René Ariel Dotti no Congresso Brasileiro de Direito e Processo Penal realizado em Salvador, um grupo de juristas preocupados com o rumo da Política Criminal nacional criou o MOVIMENTO ANTITERROR (MAT). Coordenado pelo advogado carioca Luís Guilherme Vieira, e contando com o apoio dos principais institutos nacionais – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (!TEC), Instituto Carioca de Criminologia (ICC), Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP), Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ) e Instituto de Ciências Penais de Minas Gerais (ICP/MG) –, o MAT professou objetivo de “sensibilizar os poderes do Estado, os administradores e trabalhadores da justiça penal, os meios de comunicação, as universidades, as instituições públicas e privadas, e os cidadãos de um modo geral, para a gravidade humana e social representada por determinados projetos que tramitam no Congresso Nacional e que pretendem combater o aumento da violência, o crime organizado e o sentimento de insegurança com o recurso a uma legislação de pânico”.1 Em realidade, o que mobilizou o grupo foi a tramitação no Congresso Nacional de projeto de Lei que instituía o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), normativa cujo conteúdo criava, no caótico sistema penitenciário brasileiro, uma forma absolutamente desumana de apartação da pessoa presa rotulada como “ameaça à segurança social”. O projeto era baseado em Portaria que o Governo do Estado de São Paulo havia instituído para “controlar” uma série de incidentes em seu sistema carcerário. A Portaria nominara o RDD, criando inúmeras restrições aos direitos dos presos considerados “perigosos”, inclusive ao direito de defesa, pois limitou sobremaneira o contato com o
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CARTA DE PRINCÍPIOS DO MOVIMENTO ANTITERROR in: Revista de Estudos Criminais (10), Porto Alegre: !TEC/PPGCCrim PUCRS/Notadez, 2003, p. 07. 383
Salo de Carvalho e Alexandre Wunderlich
O Suplício de Tântalo
advogado. Apesar da absoluta ilegalidade do ato, sobretudo porque a Lei de Execução Penal delegava ao Poder Público Estadual apenas a atribuição de disciplinar as sanções e os procedimentos de apuração de faltas leves e médias, restringindo, pelo princípio da legalidade, ao Legislativo Federal a disciplina dos fatos considerados como falta grave, o RDD alcançou eficácia na condução da execução da pena dos suspeitos de participarem de organizações criminosas. Com forte apoio dos meios de comunicação de massa, alguns parlamentares assumiram o compromisso de universalizar o regime diferenciado via Lei Federal. O plano de generalizar o RDD atingiu seu ápice quando os veículos de comunicação passaram a vincular a imagem do advogado com a do réu/condenado preso – principalmente nos casos de tráfico ilícito de entorpecentes e tráfico de armas. Assim, o elo do advogado com o criminoso passou a reforçar, no senso comum teórico do homem da rua (every day theories), a obrigação de restringir ao máximo os “demasiados” direitos do preso (provisório ou condenado) possibilitados pela “branda” legislação vigente. O solo discursivo necessário para brotar a legislação de pânico estava fértil: cultura de emergência fundada nas premissas “impunidade” e “aumento da criminalidade”, e a vinculação destes fatores (impunidade e alta criminalidade) ao “excesso de direitos e garantias” do réu/condenado. A resposta contingente seria conseqüência natural: em 02 de dezembro de 2003 é publicada a Lei 10.792, que altera a Lei de Execução Penal e o Código de Processo Penal. Não obstante consolidar alguns posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários de vanguarda que vinham sendo adotados por magistrados com compromisso constitucional,2 o Poder Público vez mais recorreu ao apelo simbólico das Leis de ocasião para entorpecer a sociedade civil com respostas ineptas. Nesta ação meramente cênica, algumas migalhas servem como mecanismo retórico para minimizar os efeitos perversos da Lei 10.792/03. Na verdade, o recente texto delimita uma forma de execução da pena totalmente inédita, visto que consagra
em Lei o suplício gótico vivido pelos condenados nos presídios brasileiros. Se
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Neste sentido, ver as alterações no art. 112 da LEP, que determina a fundamentação das decisões judiciais e estabelecimento do contraditório prévio nos incidentes de execução; a modificação no art. 185 do CPP que, ao tratar do interrogatório, determina a obrigatoriedade da presença do advogado e a concessão do direito de entrevista reservada do acusado com o defensor antes do depoimento pessoal, bem como a regulamentação do direito ao silêncio. Decisões, com fundamento constitucional, que contemplam a integralidade das alterações mencionadas, conferir em CARVALHO, Amilton Bueno. Garantismo Penal Aplicado. RJ: Lumen Juris, 2003.
antes ainda havia possibilidade de desqualificar a desumana realidade carcerária nacional invocando a LEP, com sua alteração, a tragédia é subsumida à Lei. Não nos referimos, logicamente, a eventual legitimidade que a Lei 10.792/03 estaria auferindo à péssima “qualidade de vida doméstica” imposta ao preso. Certamente nosso legislador não encontraria palavras para descrever a fétida realidade prisional; não teria coragem de redigir texto cujo conteúdo produzisse a adequação da Lei ao cotidiano de ostentação do sofrimento; não realizaria o ato de desvelar o gozo da “opinião publicada” ao ver seus excluídos penarem corporalmente. A Lei sempre foi um não-lugar, ou seja, algo que se projeta como conquista; algo que não se tem, mas que se deseja; algo que inexiste, mas que projeta uma ação. A Lei 10.792/03, ao incorporar o RDD na (des)ordem jurídica nacional, vinculando o ingresso do preso no regime diferenciado quando forem “suspeitos de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organização criminosa, quadrilha ou bando” ou no caso de apresentarem “alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade”, manifesta o assentimento dos Poderes Públicos com práticas regulares nas penitenciárias nacionais: arbitrariedade na adjetivação dos atos cotidianos dos presos em decorrência da imprecisão dos termos regulamentadores (v.g. suspeita de participação e envolvimento a qualquer título, alto risco para a ordem, incitar movimento para subverter a ordem e a disciplina etc.); minimização dos direitos de defesa na averiguação das faltas disciplinares; abusos na dilatação do tempo predeterminado da sanção disciplinar. Muito embora tenhamos como clara a inconstitucionalidade da Lei, visto que a manutenção de pessoa em isolamento por até 360 dias não pode receber outra denominação senão a de pena cruel, vedada pela Carta Constitucional (art. 5o, inciso XLVII, CR), tememos que nossos Tribunais, a começar pelas Cortes Superiores (STF e STJ), inebriados pelos discursos de emergência, não utilizem os mecanismos de controle de constitucionalidade e, por conseqüência, acolham a barbárie posta em Lei como se fosse mera técnica pedagógica de isolamento. Tudo porque não é preciso ser ‘expert’ da área da saúde para notar que “o isolamento celular diuturno de longa duração é um dos instrumentos de tortura do corpo e da alma do condenado e 385
Salo de Carvalho e Alexandre Wunderlich
manifestamente antagônico ao princípio constitucional da dignidade humana”.3 A admissão passiva de Leis penais que diariamente incrementam e sofisticam nosso inquisitivo sistema processual – seja na fase cognitiva ou na esfera de execução penal –, fruto da aceitação de parte de nossa doutrina nas reformas pontuais da Legislação, acarreta na concordância com a lógica sancionatória de Tântalo. Condenado aos infernos por ter furtado víveres do banquete dos Deuses, Tântalo foi sentenciado a eterna fome e sede. Sempre que se aproximava do lago a água lhe fugia, e no momento em que chegava próximo à árvore dos frutos esta era alçada a uma altura que não podia alcançar. A metáfora ganha contornos de realidade, pois o mito do suplício de Tântalo parece retratar nossa cruel experiência punitiva: longe de ser projetada uma reforma humanista fundada na principiologia constitucional, a Lei dobra a punição, condenando o cidadão preso, para além da privação da liberdade, à inexaurível situação de penúria.
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CARTA DE PRINCÍPIOS DO MOVIMENTO ANTITERROR, op. cit., p. 9.