HOMEM PLURAL
BERNARD LAHIRE
HOMEM PLURAL Os determinantes da ac;:ao
Tradu~o
iii
de Jaime A. Clasen
EDITORA
Y VOl...
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HOMEM PLURAL
BERNARD LAHIRE
HOMEM PLURAL Os determinantes da ac;:ao
Tradu~o
iii
de Jaime A. Clasen
EDITORA
Y VOlES Petropolis 2002
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, COLEC;:ii.o CI£NCIAS SOCIAlS DA EDUCAC;:ii.O Coordenadores: Maria Alice Nogueira e Lea Pinheiro Paixao
o sujeito da educat;iio Tomaz Tadeu da Silva (org.) Socioiogia da educa¢o - Dez anos de pesquisa Varios autores Neoliberalismo, qualidade total e educat;ao Tomaz T adeu da Silva e Pablo Gentili (org.) Teoria crftica e educat;oo Bruno Pucci (org.) Curricula - T eoria e hist6ria Ivor F. Goodson
educac;ao Alain Coulon A estruturac;ao do discurso pedag6gico Basil Bernstein
Etnometodologia e
Conhecimento oficial
Michael W. Apple Escritos de educQt;Qo Maria Alice Nogueira e Afranio Catani (orgs.) Familia e escola - Trajetorias de escolarizat;ao em camadas medias e populares Maria Alice Nogueira, Geraldo Romanelli e Nadir Zago (orgs.) A escolariza<;iio das elites Ana Maria Fonseca de Almeida e Maria Alice Nogueira (orgs.) Homem plural - Os detenninantes da ac;ao Bemard Lahire Dados Intemacionais de Cataloga~o na Publica-rao (CIP) (camara BrasUeira do Livro. SP. Brasil)
Lahire, Bernard Homem plural : as detellTlinantes da a¢o / Bernard Lahire; tradu¢o de Jaime
A. Clasen. -
Petropolis, RJ : Vozes, 2002. Titulo original: L'homme pluriel : les ressorts de \'action Bibliografia
ISBN 85.326.2739-0 1. T eoria da a¢o I. Titulo CDD-lll
02-2797 indices para catitlogo sistematico: 1. A¢o : T eoria : Filosodia 2. T eoria da a¢o : Filosofia
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• © 1998 by Editions Nathan, Paris Titulo original frances: L'homme pluriel- Les ressorts de l'action Direitos de publica<;iio em lingua portuguesa: Editora Vozes Uda. Rua Frei Luis, 100 25689-900 Petr6polis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pod era ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletronico ou mecanico, incluindo fotoc6pia e grava~ao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissao escrita da Editora. Editora~iio
e org. litera ria: Heloisa de Queiroz Laos
ISBN 85.326.2739-0
Este livro fai campasta e impressa pela Editara Vazes Uda.
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gra~as
oi sobretudo ao Instituto Universitario da Franc;a que pude dispor do tempo e dos meios. necessarios para desenvolver as pesquisas e reflexoes que estao na base desta obra. Agrade~o de modo especial a Aaron Victor Cicourel, professor na universidade de San Diego, e Troy Duster, diretor do Institute for the Study of Social Change e professor de sociologia na universidade de Berkeley, por terem tornado possivel minha frutuosa estada em Berkeley em fevereiro e mar~o de 1997. Isto permitiu que eu trabalhasse ativamente na prepara¢o e na reda¢o desta obra.
As proposi~6es, argumenta~6es e i1ustra~oes que serao Iidas neste Iivro sao, de alguma maneira, 0 desdobramento das que estao contidas no artigo intitulado "Elementos para uma teoria das formas socio-historicas do ator e da a¢o" que fOi publicado na Revue europeenne des sciences sociaTes (tomo XXXIV, 1996, n. 106). Que esta revista, e principalmente seu diretor Giovanni Busino, encontre aqui a expressao de minha sincera gratidao por ter permitido a publica~ao desta etapa crucial de meu trabalho.
As reflexoes cientificas enriqueceram-se por ocasiao das exposi~6es orais e das rea~oes espontaneas que suscitaram. Mais ainda, por ocasiao dos dialogos informais e animados. E por isso que devo lembrar todos aqueles que me deram oportunidade para falar de meus trabalhos, em andamento ou acabados, e dentre eles particularmente Jean-Claude Passeron, Fran~ois de Singly, Jean-Michel Chapoulie e Jean-Pierre Briand, Anne-Marie Chartier e Jean Hebrard, Benoit Falaize, Samuel Johsua, Marie Bonafe, Claire Meljac, Maria Thereza Fraga Rocco e Beatriz Cardoso.
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A Nathan, meu filho
"Donni direto durante esses dois dias de viagem para a Sicilia, de onde nao voltaria mais depois da morte de minha mae. Alguem me chamou. Nao entendi bem quem loi, mas deixei a minha casa em Roma. Desde que cheguei a esta casa nao me sentia sozinho. Alguma coisa movia-se na sombra, nos cantos dos quartos, que me olhava, me espiava com tal insistencia que acabei voltando. - Mas claro, mamae, foi
voce que me chamou.
- Fui eu, Luigi. - E essa e a tua musica. Eu a reconhe~o. Lembro-me de quando voce a cantava para n6s. - Eu chamei voce para Ihe dizer tudo aquilo que nao pude Ihe explicar porque voce estava longe, quando parti dessa vida. - "Ter a
lor~a",
e isto que voce quer dizer hoje, mamae.
- Voce ri de mim ... Nao, Luigi, nao chore. - Choro porque voce nao pode mais pensar em mim. Quando voce se sentava la, naquele canto, eu muitas vezes me dizia: Era meu apoio na vida, meu conforto. Agora que voce morreu, e nao pensa mais em mim, eu nao mais estOll vivo para voce. Nunca mais estarei.
- Meu filho, eu me canso rapidamente tentando acompanhar 0 teu discurso. Tudo licou muito dificil para mim. No entanto eu acho que posso ainda dizer algo para voce: aprenda a ver as coisas com as olhos dos que nao veern mais, voce pro-
vara a dor, e claro, mas essa dortomara as coisas mais sagradas e mais belas. Talvez seja para Ihe dizer isto que liz voce vir ate mim. - Mamae, agora sei 0 que os seus olhos veem. A vela deste barco, nao e? Cem vezes voce nos faloll dessa viagem famasa, e cern vezes eu a quis escrever". (Extraido de Kaos, filme de Paolo e Vittorio T aviani, baseado em Les Nouvelles pour une annee, de Luigi Pirandello) .
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SuMAmo
Proscenia, 9 Ato I - Esbo<;o de uma leoria do ator plural, 15 Ato II - Reflexividades e l6gicas de a<;ao, 101 Ato III - As formas de incorpora<;ao, 159
Ata N - Oficinas e debates, 187 Bibliograjia, 215 indice,229
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Noo podemos nos orgulhar de urn espirita cient/fico enquanto nao estiuermos seguros, em todas os momentos da vida rejlexiua, de reconstruir todo 0 nosso saber (Gaston Bachelard. La formation de /'esprit scienti!ique).
o desenuoluimento da
teoria da energia cinetica deve mais ao desejo de Lefbniz de ter razdo contra Descartes que d /idelidade respeitosa dos cartesianos para com a jfsica do mestre; as notas acerbas que Gronet e Maspero se dedicam no rodapJ sao mais importantes para a sinologia do que os panegiricos dos seus respectiuos prefaciadores (Jean-Claude Passeron. 0 raciocfnio socioIOgico).
Contra toda apariincia, este texto nao e, propriamente falando, urn texto teorico. Isto e, nao defende urn ponto de vista fechado, avan<;ando os resultados da pesquisa empirica - 0 que corresponde ao que se entende comumente por teo ria -, mas prop6e urn quadro de reflexao, tra<;a novas pistas de investiga¢o e se esfor<;a por nunca universalizar os achados cientificos sobre os quais se fundamenta, sejam eles restritos ou amplos. Num sentido particular do termo, portanto, este texto nao e te6rico. Nao pode nem quer sii-Io e defende a ideia segundo a qual todo quadro interpretativo deve ser modificado em fun¢o dos objetos estudados. Uma teoria (urn sistema conceitual, urn paradigma, urn modele interpretativo ou explicativo) realmente se apresenta, muito amiude, como uma visao urn pouco misteriosa e original do mundo social. Quanto mais original, estranha e parcial ela e, menos se percebem seus fundamentos e mais ela exerce seu poder de sedu¢o ou de fascinio. Uma teoria e, entao, urn olhar que pretende cobrir a totalidade do mundo social e resolver todo problema usando as mesmas respostas cujas origens ignora e cujos limites nega. Neste sentido, existe apenas teoria total, nunca parcial. Em todo caso, era desta maneira que eram concebidas as "grandes teorias". Epossivel sucumbir aos encantos do inconsciente e do misterio. Tambem se pode preferir a lucidez, a c1areza e 0 pragmatismo cientifico. Hoje as teorias do ator (ou da escolha) racional, do habitus, do ator estrategista, do ator em intera¢o, da experiiincia e dos mundos vividos, etc., objetivamente se op6em sem, na verdade, se afrontar ou se confrontar dentro de urn espa<;o cientifico onde as argumenta<;6es cruzadas e os resultados de pesquisas empiricas
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comparadas permitiam alguns avan~os. Ese poderia estabelecer para a sociologia a mesma constata~ao que Jean-Pierre Cometti faz para a filosofia: "A filosofia tornou-se, paradoxalmente, urn campo da atividade intelectual onde a discussao tende a ser inexistente, vantajosamente substituida pelos comentarios diligentes suscitados pelas convic~oes prilVias em tomo das quais se constituem consensos insulares" (Cometti, 1996: 21). As teorias da a~ao e do ator, comumente, opoem-se em redor de uma serie de tens6es interpretativas, a saber, tens6es entre as teorias que privilegiam a unicida-
de, a homogeneidade do ator (de sua identidade, de sua rela~ao com 0 mundo, de seu "ego", de seu sistema de disposi~oes ... ) e as que nos descrevem uma fragmenta~ao infinita de "egos", de papeis, de experiencias ... ; tensoes, ainda, entre as teorias que dao urn peso determinante ao passado do ator e as que fazem de conta que naD existem; tensao, enfim, entre as teorias da ayao consciente, do ator estra-
tegista, calculador, racional, vetor de intencionalidades ou de decisoes voluntarias (e que as vezes acreditam que podem deduzir dessas capacidades calculadoras, conscientes, racionais ... uma liberdade fundamental do ator) e as teorias da a~ao inconsciente, infraconsciente au naG consciente que apresentam as ac;6es como
ajustamentos pre-rellexivos as situa~oes praticas. Ao longo desta obra usaremos a palavra "ator" num sentido que nao e particularmente familiar para nos devido aos seus la~os implicitos com as ideias de "Iiberdade" e de "racionalidade" que certas teorias da a~ao acabaram impondo, mas que tern a vantagem de funcionar junto com 0 termo "a~ao". As teorias sociologicas em circula~ao falam diversamente de ator, agente, sujeito, individuo, membra, autor, ser social, pessoa, personagem, etc. Marca~ao de terrttorios, desencadeadores de rellexos teoricos condicionados, as palavras designam 0 "homem nas formas de vida social" e geralmente servem tambem de balizas dassificatorias. Ao usa-las, os proprios autores escolhem se (deixar) dassificar, dedinar de sua identidade danica, indicar seu campo de perten~a e seus adversarios potenciais, fechando-se antecipadamente, antes mesmo de fazer uma afirma~ao sobre 0 mundo social, no espa~o limitado das escolas, correntes ou tradi~oes teoricas. Ao reter o termo "ator", nao se trata, para nos, de desenvolver a metafora teatral (ator, cena, papel, replicas, bastidores, cenarios, scrip!...) ou propor uma enesima versao da teoria do ator livre e (portanto!) racional, ou das teorias romanticas do homem "atorde seu destino", mas usar uma rede relativamente coerente de termos: "ator", "a<;30". "ato", "atividade", "ativar", "reativar" ... Mas como evitar as associa~oes
automaticas de ideias Iigadas a palavra "ator" sem exigir explicitamente que 0 leitor leia aqui este termo fora de suas conota~oes polemicas habituais (por exemplo, antiagente), que nao temos nenhuma inten¢o de reativar? Toda reflexao e necessariamente elaborada na rela¢o critica a outras rellexoes. Nada mais comum do que isto. No entanto, a "disputa" e estigmatizada num mundo academico, que geralmente produz mais 0 consenso de fachada e 0 assassinato nos bastidores, a hipereufemiza¢o dos julgamentos publicos e a extrema violencia dos "golpes" ou das conversa~oes "privadas" do que 0 interesse e a paixao pela discussao argumentada ou pela critica viva das teses (e nao, como se pensa, das pessoas que as sustentam). A critica e respeitavel e deve ser reabilitada. 10 j
Nesta obra nao discutimos com a mesma intensidade e a mesma sistematicidade 0 conjunto das teorias da a~ao existentes no campo das ciencias sociais, mesmo que estejam todas presentes em algum grau em nossa reflexao. Assim reivindicamos a liberdade da escolha de nossos dialogos. Eo a teoria da pratica e do habitus desenvolvida por Pierre Bourdieu que nutriu, principalmente, nossa propria posi¢o sociol6gica. Confrontar-se com esse pensamento nao e, contudo, em nossa opiniao, discutir uma teoria inteiramente igual as outras. De fato, ao contrario do que pode nos levar a pensar uma certa forma de democracia interpretativa, nada se equivale no universo das interpretac;oes em ciencias sociais (Lahire, 1996b). Pierre Bourdieu parece ter proposto uma das orienta~oes teoricas mais estimulantes e mais complexas em ciencias sociais. Uma das que integram 0 maximo de sutilezas teoricas e metodologicas (principalmente por ter sabido trabalhar sociologicamente grande quantidade de problemas filosoficos) na grande corrente das sociologias criticas (criticas das formas de exercicio do poder, das estruturas de desigualdade e das rela~oes de dominaC;ao). Na Fran~a, a sociologia de Pierre Bourdieu e ora detestada (ate ignorada), ora venerada. Deixando de lade a primeira atitude totalmente negativa, notar-se-a que a adora¢o nao combina muito com a vida cientifica. As vezes e preciso ate manter uma certa distancia social (relacional) para ousarfazer certas perguntas, para sercapaz de contradizer, refutar, completar, matizar 0 pensamento de urn autor. Portanto, esta obra convida a pensar, ao mesmo tempo, com e contra (ou, no mais das vezes,.diferentemente de) Pierre Bourdieu. Dado que somos convidados a nao "ter medo" - como Foucault dizia do pensamento de Nietzsche - "de utilizar, deformar, fazer gemer e protestar" (Bourdieu & Wacqant, 1992: 11), entao nao temeremos exercer nossa atividade critica. No lundo, a (mica coisa que verdadeiramente importa e 0 resultado da discussao. Por outro lado, ao se concordar em considerar 0 fato de que 0 autor desta obra tambem esta repartido, dividido; que as criticas que talvez fa~a a outros autores sao, em grande parte, dirigidas a ele mesmo e que, atraves delas, procura conveneer tanto a si mesma como as ieitoresj ao se concordar em admitir que este texto e tanto urn dialogo interno entre diferentes "partes" do autor como um dialogo entre ele e os autores citados; entao talvez Ihe concedamos mais facilmente 0 direito a critica'. De maneira mais geral, argumenta-se e critica-se na propor¢o em que se interiorizaram os raciocinios feitos e desenvolvidos pelos outros em toda a sua complexidade e sem caricatura. A incorpora¢o sistematica dos "pontos de vista" cientificos mais diversos sobre 0 mundo social e a melhor forma de estar em condic;oes de desenvolver, por sua vez, urn "ponto de vista" proprio.
o esbo~o de uma teoria do ator plural, as reflexoes sobre as diferentes formas de reflexividade na a¢o, sobre a pluralidade das logicas da a¢o, sobre as formas da incorpora¢o do social e 0 lugar da linguagem no estudo da a¢o, e dos processos de interioriza¢o que propomos, foram elaborados com 0 cuidado constante 1. "Quando eu era urn 'realista cientifico', estava profundamente perturbado pelas dificuldades do realismo d· entlfico. Agora que renunciei ao realismo cientifico, tenho tenivelmente consd~ncia do que pode ser atraente na concep~ao realista cientifica da filasafia. Espero que este livro revele pelo menos em parte essas 'tens6es'"
(Putnam. 1990, 15).
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de nao conservar urn (mico tipo de ac;ao na
cabe~a
e teorizar por generalizac;ao
abusiva, mas, ao contrario, de fazer variar sistematicamente os casos possiveis, as vezes ate aos casos-Iimites e quase absurdos (0 raciocinio ab absurdo e uma boa
maneira de captar a logica dos casas normais que comumente se furta ao olhar), apoiando-nos em pesquisas empiricas diversas, as nossas e as de numerosos QU-
tros pesquisadores em ciencias sociais. Esta atenc;ao a diversidade do real permite, pOT urn lado, evitar que se teorize inconscientemente, ista
e, se generalize indevi-
damente urn caso particular do real, como faz a maioria das teorias evocadas, e, por outro lado, se adivinhem por tras de cada teoria dessas os exemplos, os casas ou as series de casas relativamente Iimitados que elas descrevem ou dissecam sem o saber. Para grande parte delas, as tensoes conceituais reproduzem de modo definitivo, na ordem teorica, dileren<;as sociais reais, a saber, dileren<;as entre tipos de a<;ao, dimensoes da a<;ao ou tipos de atores.
o conjunto desses desdobramentos desemboca no programa de uma sociologia psicologica, que lomece as condi<;oes de urn estudo sociologico cada vez mais Singular do social. "Toda sociologia e uma psicologia, mas uma psicologia sui generis", afirmava Durkheim. De fato, as teorias sociologicas da a~ao - pelo menDs as mais complexas delas - ha muito tempo lazem parte dos modelos de luncionamento cognitiv~, mental e corporal tirados das ciencias psicologicas (da psicologia experimental ate a psicanalise) sem, todavia, nunca ter verdadeiramente controlado esses emprestimos e, sobretudo, sem te-Ios submetido a prova das pesquisas empiricas par nao estarem no centro dos modelos de explicac;ao sociologica. Se, conseqilentemente, nesta obra, recorremos a diversos trabalhos psicologicos (psicologia cognitiva, psicologia cultural, psicanillise ... ), nao e para importar fraudulentamente produtos (conceituais) ilicitos, mas para de novo questionar 0 que tinha sido silenciosamente tornado ha varias decadas desses campos de pesquisa, principalmente dos estudos piagetianos. Tratava-se de abrir diferentes caixinhas lechadas na decada de 70 e que desde entao nunca foram abertas. Tudo se passa como se uma parte da sociologia vivesse das aquisi<;oes da psicologia, em parte superadas, em parte postas hoje em dlivida (como poderia ser diferente?), como que enquistadas em suas teorias da a<;ao e da cognic;ao. Entao seria preciso voltar a todas as evidencias deixadas inquestionadas e que eram apenas resumos das aquisi<;oes cientificas tiradas de uma parte dos trabalhos psicologicos de uma dada epoca - as no<;oes de esquemas, de transleribilidade ou de Iransponibilidade dos esquemas, de transferencia analogica, de aplicac;ao geral e sistematica dos esquemas. Tambem se pode julgar surpreendente 0 lato de que, quando os debates filosoficos andam bern - particularmente nos paises de lingua inglesa - no tocante a explica<;ao disposicional, a impermeabilidade entre 0 universe filosofico e 0 universo sociologico e tal que impede que esses debates tenham algum eleito esclarecedor sobre as praticas sociologicas. Nao que os sociologos devam deixar que Ihes sejam impostas teorias sociol6gicas pelos filosolos, mas a filosofia - uma parte das reflexoes filosoficas em todo caso - contribui, as vezes, para esclarecer de maneira litil os conceitos utilizados pelos sociologos em suas pesquisas sobre 0 mundo so-
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, cia!. Na Franc;a se instalou urn medo tal em tomo da ideia de a sociologia recair na filosofia social (0 que evidentemente nao e desejilVel) que uma grande parte dos sociolcgos vive permanentemente na rna consciencia teorica. Qualquer discussao conceitual so pode ser suspeita de "intelectualismo", de "verborreia inutil" ou de "rna filosofia". Eclaro que os mesmos sociologos que gritam contra 0 teoreticismo (insulto academico supremo em certos clas da tribo dos sociologos) nao se preocupam em teorizar, pais, como se diz, e sempre a teoria dos "outros" que e Dca e verbalista ... Sobre aqueles que refletem sobre sua disciplina, seus saberes ou seus metodos, paira hoje uma suspeita de inutilidade, de gasto luxuoso de tempo, que marcaria uma ausencia de trabalho de pesquisa ou a chatea~ao do trabalho "de campo". Alguns desqualificam antecipadamente toda reflexao teorica, metodologica ou epistemologica como futil, esteril, pretensiosa ou prolixa. Evidentemente esses sao sempre os que tern urn interesse todo particular em manter a situa~ao da ordem cientlfica, cuja teoria, metodologia e epistemologia decorrem naturalmente. Nao tern nenhum interesse em ver a chegada de novas reflexoes (for~osamente pretensiosas, malevolas ou estupidas), sobretudo quando elas abrangem caixas conceituais que se acreditava que estavam fechadas para sempre. A desqualifica~ao e sempre mais dificil e, em todo caso, e for~ada a mostrar seu motor quando os que come~am a relletir nao abandonaram 0 caminho da pesquisa e voltam a ela mais animados quando suas reflexoes coletivas melhoram a qualidade de seus trabalhos empiricos e amplificam a sua imagina~ao sociologica em materia de constru~ao dos objetos. A reflexao teorica, metodologica ou epistemologica, quando e li~ao tirada do trabalho de pesquisa e convite a voltar a profissao, nao tern nada de urn antecedente inevitavel e urn pouco terrorista a pesquisa, que impediria a propria investiga~ao por medo da falta cometida. Por outro lado, sua desqualifica00 sistematica e uma forma disfar~ada de terrorismo intelectua!. Para delinear uma teoria do atorplural, encontramos apoios sociologicos, antropol6gicos, historicos, filosoficos e psicologicos (e principalmente tornados dos trabalhos de pesquisadores norte-americanos), trouxemos a contribui~ao das reflexoes criticas de Marcel Proust desenvolvidas em seu Contre Saint-Beuve, mas tambem as analises sociologicas atuais que seu escrito literario muitas vezes contern. Da sociologia francesa podemos reivindicar a heran~a (antes mesmo da de Durkheim) de Maurice Halbwachs, sensivel em suas analises sobre a multi pIa pertenc;:a dos atores individuais, suas sodalizac;:6es sucessivas ou simultaneas em varios grupos e a pluralidade dos "pontos de vista" que podem mobilizar. As referencias ou os pontes de apoio que solicitamos nao sao homogeneos nem sequer inscritos num unico campo de saber. lnscrevemos nossa atividade plenamente no espa~o do saber sociologico. Nao se sentira nenhum perfume de interdisciplinaridade ou de pluridisciplinaridade nessas aparentes misturas, que sempre sao postas a servi~o da constru~ao coerente da reflexao sociologica. Tambem se pode achar estranho 0 fato de aparecer na lista de assuntos de uma obra, que quer falar de "a~ao", reflexoes sobre as experiencias literarias (eos sonhos acordados), sobre as praticas escolares e as praticas comuns da escrita ou ainda desenvolvimentos relativos aos processos de incorpora~ao. Cremos que a 13
leitura do conjunto da obra fara cair a inquieta~ao ou a surpresa iniciais e levari! 0 leitor it conclusao de que os diversos elementos - aparentemente fora do assunto - sao, afinal, uteis e ate necessarios para elaborar nosso discurso sobre 0 ator plural e a pluralidade das logicas da a~ao. Mas 0 leitor podera legitimamente se perguntar pela utilidade extracientifica de uma teoria sociologica da a~ao e do ator. De fato, parece que as diversas descri~6es e analises da a~ao tern sempre - implicita ou explicitamente - correlatos 50ciologicos. Segundo se compreende desta ou daquela maneira os determinantes, as molas da a~ao, as maneiras de transformar ou de manter a situa~ao atual das coisas, de modificar ou de conservar os comportamentos, podem ser muito diferentes. Pois as teorias da a~ao, no fundo, sao sempre teorias politicas. Respondendo it pergunta "0 que e agir?", elas preparam 0 terreno para a reforma das maneiras de agir. Ao se estar em condi~6es de captar os processos que levam os atores de uma sociedade a agir como agem, entao e possivel agir sobre as suas a~6es e modifica-Ias'. Perspectiva fascinante mas tambem perigosa (sempre sao possiveis os usos menos democraticos do conhecimento sociologico) que merece estar aberta, ainda que fosse so para oferecer meios de se opor aos efeitos de todas as techne (politicas, culturais, simbolicas, educativas) de manipula¢o, inseparaveis dos modos contemporaneos de exerdcio do poder. T ratar dos programas e das matrizes de socializa¢o dos atores e, como observava ja 0 autor de Etica a Nicomaco, leva-los a agir de outra forma, de uma maneira que se possa esperar que seja mais virtuosa e democratica: "Por for~a de enfrentarmos situa~6es perigosas enos habituarmos ao medo e it audacia, tomamo-nos corajosos ou pusilanimeso Nao e diferente no tocante ao desejo e it colera. Uns chegam it temperan~ e it do~ura, outros it intemperan~a e it irascibilidade, pOis as maneiras de uns e outros se comportarem e diferente. Numa palavra, atividades semelhantes criam disposi~6es correspondentes. Tambem precisamos exercer nossas atividades de maneira determinada, pois as diferen~s de conduta criam habitos diferentes" (Aristoteles, 1995: 46).
2. Por isso Pierre Naville escrevia que "uma das finalidades de uma verdadeira ciencia do comportamento e a transfonna~ao da personalidade" (1942; 237).
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Esboc;o de uma teoria do ator plural
Dai decorre que uma teona da ac;:ao nao deveria ser abstrata ou especulativa ao ponto de nos impedir de atingir a compreensao dos aspectos mais concretos da "verdadeira vida" ou da "vida em geral". Lenda certas teorias da ac;:ao, e fa.eil perder-se em suas abslrat;6es e seus densos comentarios orientados para quest6es criadas por Qutros tooricos. De tal maneira que, ap6s ter lido esses textos, e preciso dar urn salto imaginativo para mergulhar de novo nos acontecimentos, nas situa~5es.
nos problemas, nas paix6es e nas Iutas das
pessoas reais, de suas instituiC;6es e outros coletivos (Anse1m L. Straus. Continual Permutations of Action).
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CENA 1
o ator plural Aqueles que se poem a controlar as a~6es humanas encontram 0 maximo de dificuldade em remenda-fas e Ihes dar 0 mesmo brilho, pais elas comumente se contradizem de maneira tao estranha que parece imposslve! que eTas sejam partes do mesmo conjunto (Montaigne. Essais, Uvro segundo),
DA UNICIDADE
De modo semelhante ao globo terrestre, 0 conjunto das diversas teorias da ac;ao tern dois grandes p610s: 0 da unicidade do ator e 0 de sua fragmentac;ao intema. Por urn lado, se esta a procura de sua visao do mundo, de sua relac;ao com 0 mundo ou da "f6rmula geradora de suas praticas" e, por outro lado, admite-se a multiplicidade dos conhecimentos e do saber-fazer incorporados ou incorporados, das experiencias vividas, dos "eus" ou dos "papeis" incorporados pelo ator (reperl6rio de papeis, estoque de conhecimentos, reserva de conhecimentos disponiveis ... ). Nos dois casos, porem, a escolha da unicidade ou da fragmentac;ao da-se a priori; ela constitui urn postulado nao discutido e funda-se, em cerlos casos, mais sobre pressupostos eticos do que em constata<;oes empiricas.
o interesse principal da primeira posic;ao esta bern expresso por Pierre Bourdieu quando ele explica que a sua teoria do habitus' permite "construir e compreender de maneira unitaria as dimensoes da pratica que freqilentemente sao estu-
* 0 tenno latina habitus esta sempre transcrevenclo 0 tenno que Bourdieu aclotou. A palavra "habito" esta tra· . duzindo, sistematicamente, habitude (N.T.),
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, - - - - - - - - - - - HOMEM PLURAL - - - - - - - - - - -
dadas em ordem dispersa" (Bourdieu & Wacquant, 1992: 107)1. Mas, ao mesmo tempo, isso leva, sem duvida, a insistir exclusivamente demais no aspecto "sistematico" e "unificador" do habitus: "0 gosto, propensao e aptidao a apropria~ao (material e/ou simbolica) de uma classe determinada de objetos ou de praticas classificadas e classificadoras, e a f6rmula geradora que esta no principio do estilo de vida, conjunto unitilrio de preferencias distintivas que exprimem, na l6gica especifica de cada urn dos subespa~os simb6licos, mobiliario, roupa, linguagem ou hexis corporal, a mesma inten~o expressiva. Cada dimensao do estilo de vida 'simboliza com' os outros, como dizia Leibniz, e os simboliza: a visao do mundo de urn velho marceneiro, sua maneira de gerir seu or<;amento, seu tempo e seu corpo, seu usa da linguagem e suas preferencias indumentarias, estao inteiramente presentes na sua
etica do trabalho escrupuloso e impecavel, do cuidado, do caprichado, do acabado e sua estetica do trabalho, que faz com que ele me~ a beleza de seus produtos pelo cuidado e pela paciencia que eles exigiram" (Bourdieu, 1979: 193-194). Este tipo de exemplo, que as vezes condensa ou cumula 0 conjunto das propriedades estatisticamente mais ligadas a urn grupo social, e util para ilustrar modelos macrossociol6gicos. No entanto, pode se tomar enganoso e caricatural quando nao tern mais 0 status de exemplo, mas e tornado como urn caso particular do real. Porque a realidade social encamada em cada ator singular e sempre menDs lisa e menDs simples que aquele. Alem disso, se os cruzamentos das grandes pesquisas nos indicam as propriedades, atitudes, praticas, opinioes, etc., esta-
tisticamente mais ligadas a este grupo social ou aquela categoria social, nao nos dizem que cada individuo, que comp6e 0 grupo ou a categoria, nem sequer a maioria deles, reune a totalidade, nem mesmo a maioria, dessas propriedades.
Se fosse esperado 0 contrilrio (que e 0 que fazem muitos aprendizes sodologos mas, digamos tambem, muitos soci61ogos profissionais), entao 0 encontro com as pesquisas (os individuos em sua singularidade irredutivel) seria totahnente desconcertante. Quantos estudantes de ciencias sociais se lamentam por nao terem selecionado, na popula~ao estudada, "operarios verdadeiros", "quadros verdadeiros" ou "artesaos verdadeiros", acreditando que 0 problema e metodol6gico quando de fato se trata de erro de concep~o do mundo social? 0 que fazer com os atores que nao combinam a totalidade das propriedades que caracterizam 0 grupo em seu conjunto? 0 que fazer com os operarios nao qualificados que leem muito mais do que 0 esperado e que bagun~m a problematica te6rica imaginada sobre os gostos e desgostos de classe? Com aqueles que, em certos pontos, em certos dominios, parecem mais pr6ximos dos empregados ou das profiss6es intermediarias? Nao se trata de questionar de novo a existencia de atores correspondentes ao modele do artesao citado (0 qual a pesquisa permite que 0 soci610go encontre), mas de acentuar aqui 0 fato de que todos os atores nilo sao todos feitos no mesmo molde. Este mobiliza urn esquema fenomenol6gico que encontramos exposto na 1. As vezes, parern, se passa da plUd~ncia construtivista (e a construc;ao cientifica que e unitaria) para a ideia mais realista segundo a qual a unicidade esta na realidade social. Entao 0 conceito de hftbito tern a fumrao de
"dar canto da unidadede estilo que une as praticas e os bens de urn agente singular ou de urna cJasse de agentes" (Bourdieu. 1994a: 23),
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filosofia de Husserl, a saber, a ideia de unidade fundamental da subjetividade: "Quem poderia querer separar a subjetividade cognoscente da subjetividade afetiva, da subjetividade que asp ira, que deseja, que quer e que age, da subjetividade que, seja em que sentido for, avalia e atua em vista de urn lim? .. a subjetividade nao se decomp6e ... em elementos separados que se justapunham como partes exteriores entre si na mesma subjetividade" (Husserl, 1990: 66-67). A heran<;a Iilosofica, que nao apresenta problema em si, exigiria, no entanto, ser validada empiricamente de preferencia a ser considerada pertinente a priori. Isto nao provaria que a subjetividade nao funciona por simples empilhamento ou estocagem de conhecimentos e de experiencias mas, sim, pela sintese e unilica"ao? Se 0 postuJade (que deveria ser uma hipotese) de coerencia e de homogeneidade dos diferentes tipos de experiencias incorporados (sob a forma de esquemas) e, sem duvida alguma, intelectualmente mais sedutor do que 0 do esfacelamento, do estilha"amento ou do fracionamento generalizado (e e preciso se interrogar sobre quais sao os fundamentos sociais do exercicio de urn tal poder de sedu<;ao), todavia deve encontrar no trabalho empirico os elementos de confirma<;ao. Ora, como veremos, a psicologia experimental', mas tambem uma parte da psicologia cultural contemporanea, produz bastantes resultados cientilicos tangiveis, que questionam seriamente as premissas da unicidade. Diante de tais resultados das pesquisas a hipotese, ela tambem sedutora, toma-se extremamente embarac;osa. Com rela<;ao as teorias do cognitive style (Berry, 1976; Witkin, 1967), por exemplo, que descansam na ideia segundo a qual urn mesmo estilo cognitiv~ estaria no principio das mais diversas condutas cognitivas dos sujeitos, os psicologos evidenciaram, com estudos empiricos, as incoerencias estilisticas de urn dominio (por exemplo, perceptiv~) para outro (por exemplo, socio-interacional), bern como incoerencias em materia de estilo de resposta nas diferentes tarefas que se sup6e que pert en cern ao mesmo dominio cognitiv~ (por exemplo, reconhecimento de formas) (Cole, 1996: 94). Mas ve-se 0 mesmo tipo de contesta<;ao tanto na antropologia como na historia. Numerosos antropologos partem do principio de que a sOciedade, a comunidade, a tribo, etc., que eles estudam sao realidades for<;osamente homogeneas nas quais cada situa"ao e homologa a todas as outras. Esta suposta homologia de situa<;6es (de ambitos de praticas) permite pensar que se poderia reconstruir, no estudo de uma unica situa<;ao, urn modele reduzido ou uma metaiora da sociedade em seu conjunto (por exemplo, a rinha de galos em Bali ou 0 teatro de marionetes como metaiora ou metonimia da sociedademalinesaemCliffordGeertz).No fundo, porem, nao se tern, mutatis mutandis,
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mesma esquema interpretativo
na teoria do habito, nao mais em escala da sociedade global, mas na escala de urn "estilo de vida" Iigado a uma "c1asse de condi<;6es de existencia "? Cada dimensao do estilo de vida "simboliza com" os outros e os "simboliza", assim como cada dominio de praticas numa sociedade esta em rela<;ao metaforica com respeito a to2. Hit cerca de vinte anos de distancia, Pierre Bourdieu nao aceitava como verdadeira uma certa psicoiogia. Dirige a sua critica primeiro it "atomizac;ao de uma psicologia social" (1979: 193) que "quebra a unidade da praticaM e depois it "visao atomistica que cetta psico!ogii). experimental propae" (1997: 79),
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dos os outros. 0 que pode parecer terrivelmente homogeneizador num caso (a sociedade) parece incontestado no outro (0 habito, 0 estilo de vida). Em hist6ria, tambem, a critica da no~ao de "mentalidade", feita por Geoffrey E.R. Lloyd, visa ainda as concep~6es unitarias e homogeneizadoras que freqilentemente estao Iigadas a ela. Realmente e dificil validar historicamente a ideia da existencia de uma "mentalidade (mica" num grupo ou num individuo, seja qual for a atividade social considerada. "Desde urn ponto de vista particular, falar de mentalidades nao apenas nao permite fazer uma analise exata, mas e tambem definitivamente enganoso. T rata-se de diversidades entre os diferentes tipos de comunica~ao dentro de uma mesma cultura e de uma mesma epoca ... Podemos estar certos de que aqueles que participam das assembleias politicas e dos tribunais, e que assistiam aos debates dos sofistas, nao se comportavam sempre dessa maneira resolutamente agonistica. Nao faziam sempre 0 espirito critico contribuir na avalia~ao dos testemunhos e dos raciocinios como faziam freqilentemente nesses contextos. Se a racionalidade, no sentido de uma €Xigencia de dar conta - logon dfdonai -, era geralmente a palavra de ordem das pesquisas de estilo novo e do debate politico, isto certamente nao significava 0 fim da irracionalidade, e os mesmos grupos que utilizavam a palavra de ordem eram justamente capazes de ignora-Ia ou de suspender os criterios que implicava, e isto nao apenas no ambito da politica, mas tambem no da ciencia" (1993: 215). Lloyd insiste tambem no fato de que as mesmas popula~6es que se apropriavam de certos aspectos do pensamento racional podiam perieitamente continuar, por outro lado, a aderir- na praticaa cren~as magicas e religiosas. Uma parte deles podia entrar no pensamento racional e outra parte ficar no pensamento magico porque esses "pensamentos" estavam Iigados a contextos sociais "bern delimitados socialmente" (ibid.: 216). Em vez de evocar mentalidades gerais, Lloyd prefere prudentemente apelar para a analise hist6rica dos contextos sociais nos quais essas "mentalidades" sao enunciadas, manifestadas e desenvolvidas (as" circunstancias de sua formula~ao", os "tipos de intera¢o social" .. .)'. Portanto, as teses da unicidade e da homogeneidade (tanto da cultura como do atar) nao tern nenhuma evidencia.
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A UNICIDADE DO SI-MESMO: UMA lLUSAO COMUM SOCIALMENTE BEM FUNDAMENTADA Urn nome proprio
e umo coisa extrema mente
importante num romance, uma coisa capital. Niio se
pode mais mudar urn personagem de nome do que de pele. E querer branquear urn negro (Gustave Aaubert. Correspondance a Louis Bonenfant).
Contra a tese da unicidade, Erving Goffman - entre outros - faz a critica das do ator que, segundo ele, reunem de certa forma as concep-
concep~6es unitarias
3. Uoyd indica mais geralmente as problemas que estao Iigados "a inferencia para com a cren~ a partir da cren~a para pretensos processos de pensam~ntos subjacentes" (ibid.: 17).
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comuns do si-mesmo: "Acaso nao pressupomos que todos os seus atos, que refletem 0 mesmo estilo, serao marcados pelo mesmo selo? E se cada seqUencia de atividade, inscrita em seu meio ambiente, traz a marca daquilo que a produziu, nao temos base para dizer que cada enunciado, cada ato fisico numa situa~ao dada lan~a suas raizes numa identidade pessoal que de vez em quando vern lan~ar urn olhar furtivo sobre 0 papel exercido? Esta e uma maneira muito comum de focalizar a nossa percep~ao do outro. Aplausos, pois, para 0 si-mesmo. Sendo assim, procuremos reduzir todo esse clamor" (Goffman, 1991: 287). Procurar "a" f6rmula geradora das praticas de urn atar, reconstituir "0" estilo ("cognitivo" ou "de vida"). que perdura e se manifesta nos dominios mais diferentes de atividade, nao e compartilhar a i1usao comum da unicidade e da invariabilidade? Sabe-se muito bern que os "lunaticos", os "birutas", os "oportunistas" ou os "camale6es,,4, aqueles que mudam de opiniao em fun~o de seu interlocutor e da situa~ao, nao tern boa reputa~ao. Eles se op6em aqueles que tern urn comportamento "franco" e que podem proclamar 0 seu orgulho de nao serem modificados ("influenciados") pelas situa~6es mais diversas em que se encontrarem. Tudo se passa como se houvesse urn ganho simb6lico e moral (como lembram os termos de inconstancia, de versatilidade ou de infidelidade a si mesmo) especifico em se pensar "identico" ou "fiel" a si mesmo em todo tempo e lugar, sejam quais forem as acontecimentos vividos au as provas sofridas ("eu nao mudei", "sou sempre 0 mesmo")" Quantas biografias de artistas ou de intelectuais destacam como urn tra~o dos mais positiv~s 0 fato de a personagem ter tido, no fundo, apenas uma s6 ideia ou uma s6 dire~ao de pensamento que desenvolveu durante todo 0 seu percurso (o romancista que sempre escreveu apenas 0 mesmo Iivro, 0 artista que pin-
tou sempre a mesma tela ... )! Lembrando a constru~ao social (e literaria) representada pela "experiencia comum da vida como unidade e como totalidade", Pierre Bourdieu tenta escapar da ideia de urn eu reduzido a "raps6dia das sensa~6es singulares" invocando 0 habito como "principio ativo, irredutivel as percep~6es pas. sivas, da unifica~o das praticas e das representa~6es" (1986a: 70). 0 conceito de habitus (a sociologia) vern assim - para nao conceder nada ao empirismo - em socorro de uma i1usao socialmente bern fundamentada (0 senso comum)'. Goffman, portanto, de novo critica vigorosamente esses mitos comuns da identidade pessoal invariavel: "0 que respigamos ai remete, e claro, a urn si-mes4. wNossa maneira comum eir atras das inc1inal;oes de nosso apetite,
a. direita, aesquerda, a montante, a jusan-
te, confonne 0 vento das ocasioes nos leva. Pensamos no que queremos a.penas no instante em que queremas e mudamos como aquele animal que toma a cor do lugar oode se amaita" (Montaigne, 1965; 17). 5. 56 a mudanc;:a facional, quer dizer, Jundada no razelO, e comumente percebida de modo mais positiv~ que "a teimosia esrupida" (psicol6gica) apesar da evidencia do erro cometido; "apenas os imbeds nao mudam de ideia". Principalmente esta formula e ritualmente lernbrada pelos politicos mais oportunistas justamente para escapar de ser enquadrado na figura da "biruta" que tern 0 vento como (mico prindpio de orienta~ao. 6. Ja era isso que ele afinnava ao declarar que queria "encontrar oque ha deverdade na aproxima~o caracterlstica do conhecimento comum, a saber, a intui~o da sistematicidade dos estilos de vida e do conjunto que as constituern. Para isso e preciso voltar ao princfpio unlficadore criadorda pratica, isto e, ao habitus de classe como fonna incorporada da condi<;:ao declasse e dos condicionamentos que ela impae; portanto. construir a c1asse objetiva como conjunto de agentes que sao postos em condi,,6es de exisMncia homogenea e produzem sistemas de disposi,,6es homogeneas, prpprias para criar praticas semelhantes" (1979; 112).
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mo ah,m da situa¢o, mas um si-mesmo que fiutua em cada nova situa¢o. Eis 0 que as situa~6es podem fazer para nos. Eis por que nos as achamos absorventes (como urn romance). Mas nao ha nenhum motivo para pensar que esses peda~os de si-mesmo que se oferecem a outrem, essas pequenas revela~6es a proposito do que somos em outras cenas, tem algo em comum" (1991: 291). No entanto, nao se pode deixar de perceber imediatamente 0 risco invers~, 0 de cair numa especie de empirismo radical que captaria apenas uma pulveriza~ao de identidades, de papeis, de comportamentos, de a~6es e de rea~6es sem nenhuma especie de liga~ao entre eles7 • Mas esta ilusao cientifica (que a sociologia deve levar em conta na sua interdo mundo social, mas na qual nao deve trope~ar) nao deixa de ter fundamento social. Existem muitas institui~6es permanentes como tambem numerosas ocasi6es mais efemeras de celebra~ao da unidade do si-mesmo. A come~ar pelo "nome proprio", que consagra a singularidade inteira da "pessoa". Estas coordenadas pessoais e afetivas com as quais seus portadores identificam-se simbolicamente (ao contrilrio das identifica~6es numeradas, mais precisas e singulares, mas que se prestam menos as proje~6es/identifica~6es: numero da carteira de identidade, do CPF, da carteira de trabalho ... ) ou nas quais se projetam - e que parecem evocar imediatamente, aos olhos daqueles que os conhecem, a totalidade de uma pessoa - sao espantosas abstra~6es unificadoras com rela~ao a diversidade da realidade social. Enquanto crian~a, adolescente, pai de familia, namorado, jogador de futebol, colecionador de selos, partidario politico ou operario de sua empresa, 0 mesmo corpo biologico sera designado pelo mesmo nome e sobrenome8 • Eclaro que a abstra¢o chega a tomar corpo, sustentada pela evidencia da unidade biologica do corpo. SOcialmente, porem, 0 mesmo corpo passa por estados diferentes e e fatalmente portador de esquemas de a~ao ou habitos heterogeneos e ate contraditorios. o realismo do nome e pennanentemente refor~do pelas perguntas administrativas (publicas e privadas), que sao ordens para infonnar a sua identidade e lembrar a singularidade desta ultima, seja pelas multiplas cooulas de identidade (carteira de identidade, passaporte, certificado de residencia, carteira de habilita¢o, carteira de trabalho, carteira de grupo sangOineo, etc.), que freqilentemente so remetem a si mesmo (por exemplo, na carteira de identidade: 0 nome, sobrenome, porte fisico, sinais particulares), seja por algumas coordenadas espa~o-temporais preta~ao
7. Sem contestar absolutamente a legitimidade da diferencia<;ao mais sutU da realidade social, parece-nos que a fragmental;3o infinita toma dificil a estrutura<;ao dos objetivos da pesquisa. Compreendemos a inten¢o de Jean-Claude Kaufmann, quando escreve: "A cada lugar do cicio, a cacla etapa do cicio de circula~o, a parte do si-mesmo colocada na dan<;a com a objeto ediferente, as balizas detenninam urn encadeamento particular de gestos. 0 individuo da ncite, que deixa sua roupa suja amontoacla no quarto, nao e 0 inclivlcluo da manha, que poe esse monte na maquina de lavar. Ele naa toea as coisas da mesma maneira, com as mesmas ideias na
caber;a. t de fato outro, nwn outro sistema de pensamento e de ar;ao, mudado pela percepr;ao diferente dos mesmos objetos" (1997: 43). Mas nao seguimos 0 movimento do autor. 8. t preciso lembrar, no entanto, que apenas os homens pennanecem, em nossas fonnar;oes socia is, como por· tadores do mesmo nome e sobrenome durante toda a vida. 0 sobrenome das mulheres podem mudar por ocasiao do casamento.
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e nacionais (por exemplo, data e lugar de nascimento, nacionalidade, endere~o do domicilio)9. Eainda 0 nome que fornece a base da representa~ao manuscrita estilizada (e por isso indissociilVel da pessoa singular e de seu corpo) constituida pela assinatura, marca singular por excelEmcia. 0 nome e 0 sobrenome, a assinatura,
estes sinais semanticamente fracos pretend em nos encerrar totalmente e sao os unificadores sum3rios mais poderosos de nossa identidade pessoal.
Aos atores sao dados outras ocasiiies e outros meios de reduzir a diversidade das praticas e dos acontecimentos individuais it unidade de urn si-mesmo coerente e unificado, pelo menos em certas dimensiies suas (escolares, prolissionais, familiares, amorosas ... ). Pode-se pensar no curriculum vitae (que acompanha a racionaliza~ao e a tecniciza~ao da entrada no mercado de trabalho) como tecnica de apresenta~ao de si ou nos diferentes "relatos de si" produzidos nas confidencias feitas a pessoas pr6ximas (amigos ou membros da mesma familia) ou, mais raramente, a desconhecidos (relatos de vida solicitados por pesquisadores em ciencias sociais ou "ouvidos" pelos pSic610gos, psicanalistas, especialistas do trabalho sociaL), que dao possibilidade aos atores de elaborar sinteses parciais, colocar ordem e coen2ncia cnde necessariamente nao havia
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Sao, enfim, os generos mais oficiais
formados pelos e1ogios funebres, pelos necrol6gicos, pelos panegiricos, pelas biografias oliciais, etc., que fomecem modelos de apresenta~ao totalizadora, unificadora. Em todo caso, pode-se dizer que 0 trabalho necessario para manter a i1usao
e muito mais trabalhoso para os atores ao se inscreverem precoce e duravelmente em grupos e universos sociais multiplos, heterogeneos e contradit6rios.
Se a primeira tradi~ao confere urn peso grande demais it unidade, it unicidade, a segunda da importancia demasiada it fragmenta~ao. Alinal, tem-se 0 direito de recusar duplamente, tanto a "f6rmula", 0 "sistema" ou 0 "principio" unificadores como a fragmenta~ao generalizada ou 0 fracionamento disseminador. Deste ponto de vista, e de maneira muito fina que Pierre Naville evocava, ha mais de cinqUenta anos, a multiplicidade de nossos sistemas de habitos incorporados Iigados aos diferentes dominios de existencia e universos sociais que atravessamos: "Nele
(0 individuo preciso) encontram-se sistemas de habitos mais ou menos coordenados e, antes de tudo, habitos prolissionais, que sao a base da existencia social. Mas ha toda uma especie de outros comportamentos: conjugal, parental, religioso, politico, alimentar, ludico, etc. Em suma, a personalidade e a soma das atividades reveladas pela observa¢o direta do comportamento durante urn periodo suficientemente longo para fomecer dados certos; dito de outro modo, e apenas 0 produto final de nossos sistemas de habitos" (1942: 220-221). A pertinencia particular9. Sabemos muito bern que nao estar "inscrito", fiear amargem das inscrir;oes oficiais, estar "sem documento", estar fadado a uma especie de inexistencia simb6!ica e social.
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10. 0 problema essencial apresentado pelo "relato de vida" aos pesquisadores em ciencias sociais e 0 da varia~ao das sinteses totalizadoras segundo 0 momento no percurso (profissional, familiar, cultural, etc.) que e solicitado. Por exempio, no caso do percurso conjugal do tipo "periodo feliz de casamento"/"periodo de div6rcio litigioso"/"constitui¢o entusiastica de um novo casamento", a mesma pesquisa poderia, confonne o momento em que se situa 0 relato de vida, fazer tr~ relatos biograticos muito diferentes: 1) 0 relato de uma hist6ria conjugal feliz; 2) 0 relato de uma longa descida aos infernos; 3) relato de urn percurso juncado de prova~6es (talvez necessarias para de fato saborear a felicidade ... ) acrescentadas, que deram um novo animo para uma nova vida muito mais apaixonante...
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---------------------- HOMEMPLURAL ---------------------mente grande da formula~ao de Naville ficara clarissima nos desenvolvimentos ulteriores. Por enquanto basta acentuar a articula~ao feita pela cita¢o entre os sistemas de habitos e de dominios de praticas. POis, nas duas tendencias teoricas antes citadas, podemos censurar nao 0 fato de teorizar de uma maneira ou de outra, mas teorizar de maneira geral e universal, como se os atores, sempre e em todos os lugares, devessem corresponder ao modele do ator que elas fabricaram. Ou, a questao da unicidade ou da pluralidade do ator e tanto uma questao historica (ou empirical como uma questao teorica. Portanto, a pergunta deve ser colocada nestes termos: quais sao as condi~6es socio-historicas que tomam possivel um ator plural ou um ator caracterizado por uma profunda unicidade? AS CONDIC;:OES S6CIO-HIST6ruCAS DA UNICIDADE E DA PLURALIDADE Essa variaqQo e contradilSdo que se (Montaigne. Essais, Uvro I1),
ve em n6s ...
Creio, senhores, que ndo se deve medir a idade de uma civilizat;ao peto numero de contradit;6es que eta acumufa, pelo numero de costumes e de crent;as incompatiueis que ali se encontram e moderam-se mutuamente; pera pluralidade das fi/oso/ias e das esteticas que coexistem e coabitam no mesma cabet;a (paul Valery. Variete, I, IV).
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Definitivamente, para se tratar urn ator portador de um sistema de disposic;6es au de esquema homogeneo e coerente, sao necessarias condic;6es sociais to-
talmente particulares, que nao estao sempre reunidas, ou so estao reunidas excepcionalmente. Emile Durkheim, que utilizava a no~ao de habitus no sentido de uma rela<;ao muito coerente e durilVel com 0 mundo, evocava este conceito a proposito de duas situa~6es historicas particulares: as "sociedades tradicionais" e 0 "regime de intemato". No primeiro caso, Durkheim escreve: "0 menor desenvolvimento das individualidades, 0 aspecto mais fraco do grupo, a homogeneidade das circunstancias exteriores, tudo contribui para reduzir as diferen~s e as varia~6es ao minimo. 0 grupo realiza, de uma maneira regular, uma uniformidade intelectual e moral, da qual so encontramos raros exemplos nas sociedades mais avan~adas. Tudo ecomuma todos" (1985: 7). E, sem duvida, nao e por acaso que Pierre Bourdieu reatualizou a no¢o de habitus para captar justamente 0 funcionamento de uma sociedade tradicional fracamente diferenciada, a saber, a sociedade cabila. Do fato da grande homogeneidade, da grande coerencia e da grande estabilidade de condi~6es materiais e culturais da existencia e dos principios de socializa¢o dai decorrentes, os atores modelados por tais sociedades estao dotados de um estoque particularmente homogeneo de esquemas incorporados de a~ao. No segundo caso, Durkheim emprega 0 termo habitus a proposito da educac;ao crista como educayao que envolve a crian<;a inteira e cuja influencia e (mica e
constante.O habitus, em Durkheim, corresponde perfeitamente a situa¢o de in-
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temato. 0 intemato e 0 pensionato mais a escola, onde 0 aluno fica enclausurado; e uma verdadeira institui~ao total no sentido de Goffman (1968). Modelo reduzido de comunidade indiferenciada, a institui~ao total deve, todavia, sua originalidade e sua excepcionalidade ao fato de estar incrustada numa sociedade com forte diferencia¢o. Como as sociedades tradicionais", ela caracteriza-se por urn numero restrito de atores e pela intera~ao freqUente desses mesmos atores em todos os dominios da exist en cia, dominios que, no exterior, sao vividos muito freqUentemente em lugares e com atores diferentes (em nossas atividades profissionais, lddicas, familiares, esportivas, religiosas, etc., habitualmente somos levados a freqUentar atores e lugares - mais ou menos institucionais - diferenciados). Em compensa~ao, ela deve lutar contra os contatos possiveis dos atores da institui¢o com o mundo exterior (e seus valores ex6genos) e compreende, no entanto, duas grandes categorias de atores: os que organizam a institui¢o e os que passam pelo programa de socializa~ao. A institui~ao total 03, portanto, urn mundo que se apresenta como "total" e dnico no ambito de uma sociedade diferenciada. Eesta institui~ao que constitui "0 meio natural de realizar integralmente a no~ao crista da educa¢o" (Durkheim, 1990: 139). "Para poder agir tao fortemente nas profundezas da alma, evidentemente e preciso que as diferentes influencias as quais esta sujeita a crian~ nao se dispersem em sentidos divergentes, mas sejam, ao contrario, energicamente concentradas para urn mesmo fim. 56 se pode chegar a este resultado fazendo as crian~as viverem num mesmo ambiente moral que sempre esteja presente a elas, que as envolva em toda parte, de cuja a¢o elas nao podem, por assim dizer, escapar" (ibid.: 38). Entao a educa¢o esta, escreve ainda Durkheim, "organizada de maneira a poder produzir 0 efeito profundo e duravel que se esperaria dela" (p. 39). ConseqUentemente, os individuos 56 podem ter disposi~6es sociais gerais, coerentes e transponiveis de uma esfera de atividade a outra ou de uma pratica a outra, se - e somente se - suas experiencias sociais forem sempre govemadas pelos mesmos principios. Longe de ser urn caso comum, poderia antes se tratar, aqui, de uma exce¢o hist6rica12. Alem disso, Erwin Panofsky designava muito claramente, em seu celebre Arquitetura gotica e pensamento escoic'istico, como uma "exce¢o" 0 contexto hist6rico que estudava e que permitia explicar a profunda homologia de estrutura entre a arte g6tica e a escolastica a partir do esquema do "habito mental" ou da "for~ formadora de habitos" (habit-forming force). Ora, a observa¢o de Panofsky merece ser levada a serio em vez de considerar esta confissao de excepcionalidade do periodo e da zona geografica estudada como urn simples efeito ret6ri-
11. Ulf Hannerz escreve com justic;a que Wo exemplo mals extrema da socieclade tradicional OU, para os detentos, a instituil;ao totalitaria sem nenhuma vida subterranea" representaria "uma sociedade queseria apenas uma (mica e mesma cena" (1983; 290). Porem mesmo para representar as socledades menos diferenciadas,
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modele da "cena (mica" ainda e caricatural demais, convindo muito as sociedades animals oode os
membros estao em intera/fao constante entre 5i, sem enquadramento institucional que permita distinguir os tempos da pratica e evitar a invasao a tode momento, em cada intera/fao, de nao importa qual membra. 12. Durkheim precisa bem a excepcionalidade hist6rica dessa realiza¢.o ao lembrar que este "sistema de internato frances vern desse arnor exagerado da ordern, dessa paixao pela regulamenta~ao unifonne, de que a universidade do seculo xv esteve anirnada a urn Wau que nao encontramos alhures" (1990: 142).
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co produzido pelo autor para chamar a aten<;iio do leitor para seu objeto de pesquisa. Para poder obselvar uma tal "for~a formadora de habitos" e preciso que as condi~oes socio-historicas se prestem a isso, e e isto que Panofsky nos diz ao ins istir sobre a particular homogeneidade das condi~oes historicas nas quais vivem os arquitetos da epoca, homogeneidade que e 0 fruto de um monop61io educative: "Se muitas vezes e dificil, ou impossivel, isolar uma for0 formadora de habitos (habit-forming force) dentre muitas outras e imaginar os canais de transmissao, 0 periodo que vai de cerca de 1130-1140 ate cerca de 1270 e a zona de 'cento e cinqUenta quilometros em tomo de Paris' sao uma exce~ao. Nessa area restrita, a escolastica tinha monopolio da educa<;iio" (1967: 84). Redator do posfacio, Pierre Bourdieu inspirou-se amplamente na sociologia implicita de Panofsky para explicitar e fortalecer a sua teoria do habitus. Mas em seu comentario Bourdieu nao acentuava a excepcionalidade do contexto historico estudado. Se 0 tivesse levado em conta, sem duvida teria tido que relativizar a unicidade, a durabilidade e a transponibilidade dos esquemas ou das disposi~oes constitutivas do habito. Paradoxalmente, os primeiros trabalhos do mesmo autor sobre a Argelia dos anos sessenta poderiam te-Io levado a construir uma teoria do ator e da a~ao mais sensivel a pluralidade dos esquemas de experiencias incorporadas e das for~as formadoras dos habitos13. De fato, em Le Deracinement, Pierre Bourdieu & Abdelmalek Sayad analisavam a situa~ao de "desdobramento que fomecia, em geral, ao colonizado a saida pela qual ele escapava das contradi~oes de uma existencia dupla" (Bourdieu e Sayad, 1964: 59). Mas eles oscilavam, conforme os momentos da obra, e de maneira particularmente interessante entre este modelo do "desdobramento" (mental e social) que supoe que os atores do mundo social poem em a<;iio maneiras de pensar e de agir diferentes e freqUentemente contraditorias dentro de universes socia is diferentes (0 universo familiar e 0 universe do colono) e 0 do "sabir* cultural" que implica muito na mistura, na confusao dos generos e registros e, finalmente, na contradi,iie dentro de cada prtitica 14 •
13. Pode-se, rea1mente, de cetta maneira, jogar Bourdieu contra Bourdieu para progredir na reso\U(;:ao do problema da unicidade e da pluralidade do ator, seguindo, por outro lado. tambem aqui, urn conselho de orlenta~ao gera\ no trabalho reflexivo muitas vezes oferecido por este autor, cujo prop6sito as seus mais fieis epigonos nao estaa em condi~oes de por em a~ao. "Faz-se a ciencia - e sobretudo a sociologia - tanto contra a sua fonnac;ao como com a sua forrna¢o" (1982b; 9) .
• Jargao misturado de arabe, frances, espanhol, italiano, falado na Africa do Norte e Oriente Mooia.
14. "Em suma, por nao falar bem as duas linguas culturais para mante-Ias c1aramente separadas, estll. condenado as interferencias e as contradi~6es que fazem 0 sabir cultural" (Bourdieu & Sayad, 1964: 167-168); "como 0 subproieUllio, 0 campones falsamente ocupado se refere constantemente quando vive, pensa ou julga a sua condi~o com duas l6gicas diferentes e ate opostas" (ibid.: 164-165). "Os modelos de comportamento e 0 ethos econ6mico importados pela coionizac;:ao coexistem, em cada sujeito, com os modelos e 0 ethos herdados da tradi~ao ancestral. Segue-se que os comportamentos, as atitudes au as opinioes aparecern como fragmentos de uma lingua desconhecida, incompreensivel tanto por quem conhecesse sO a lingua cultural da tradic;:ao quanto por quem se referisse apenas alingua cultural da colonizac;:ao. As vezes sao as palavras da lingua tradicional que sao combinadas segundo a sintaxe modemai as vezes e 0 contrario e, as vezes, e a propria sintaxe que aparece como 0 produto de uma conbinac;:ao" (p. 163).
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o contramodelo desses casos de desdobramento ou de sabircultural for~ado, imposto pela situa~ao de coloniza~ao, reside evidentemente no antigo universe cultural, tradicional, supostamente homogeneo e coerente. "0 que e, de fato, a niya, no~ao quase intraduzivel, se nao uma certa maneira de ser e de agir, uma disposi~ao permanente, geral e transponivel frente ao mundo e aos outros homens?" (ibid.: 88). "Porque 0 seu ser e, antes de tudo, uma certa maneira de ser, um habitus, uma disposi~ao permanente e geral diante do mundo e dos outros, 0 campones pode continuar campones mesmo quando nao tem a possibilidade de se comportar como campones" (p. 102). Portanto-e sobre 0 modele da sociedade camponesa argelina tradicional, sociedade com fraca divisao de trabalho, que se construiu a teoria do habitus, juntamente com 0 caso do desdobramento ou do sabir cultural respaldado por situa~6es hist6ricas excepcionais e um tanto terato16gicas. 0 paradoxo reside no fato de ter, no final das contas, retido 0 modele de habitus adaptado da aproxima¢o das sociedades fracamente diferenciadas (pre-industriais, pre-capitalistas) para fazer 0 estudo das sociedades com forte diferencia¢o que, por defini~ao, produzem necessariamente atores mais diferenciados entre si, tambem intemamente. Mas que diferen~ ha entre, por um lado, as sociedades tradicionais demograficamente fracas, com interconhecimento forte, onde cada um pode exercer um controle sobre 0 outro, onde a divisao do trabalho e a diferencia~ao das fun~6es sociais e das esferas de atividade sao pouco desenvolvidas (sendo, de fato, impossivel distinguir as esferas de atividade economica, politica, juridica, religiosa, moral, cientifica, filos6fica ... c1aramente separadas umas das outras), onde a estabilidade e a durabilidade das condi~6es as quais estao sujeitos os atores durante toda a sua vida sao maximais, onde nao se encontram muitos modelos de sOcializa¢o diferentes, concorrentes, contradit6rios, e, por outr~ lado, as sociedades contemporaneas, incomparavelmente mais extensas do ponto de vista tanto espacial como demografico, com forte diferencia~ao das esferas de a~ao, das institui~6es, dos produtos culturais e dos modelos de socializa~ao e com menos estabilidade das condi~6es de sOcializa¢o? Entre a familia, a escola, os grupos de iguais, as muitas institui~6es culturais, os meios de comunica¢o, etc., que sao muitas vezes levados a freqilentar, os filhos de nossas forma~6es sociais confrontam-se cada vez mais com situac:;:6es heterogeneas, concorrentes e, as vezes, ate em contradi¢o umas com as outras do ponto de vista de socializa~ao que desenvolvem. Observaram-se acima as dificuldades hoje encontradas pelas institui~6es totais que sonham com um mundo e uma socializa¢o homogeneos numa forma~ao social profundamente diferenciada e com principios de socializa¢o heterogeneas. Mas existe urn outro tipo de universe social, isto
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universe profissionai,
particularmente quando se trata de uma profissao dotada de urn "sentimento de grupo", que - nos Iimites sociais e mentais bem especificos, pois os atores nunca sao redutiveis a seu ser profissional- reproduz dentro das sociedades diferenciadas as condi~6es de socializa¢o relativamente coerentes e homogeneas. Ea Maurice Halbwachs que se devem as analises sociol6gicas mais penetrantes sobre esses universos profissionais corporativos. Antes de tudo, "todo homem que entra numa profissao deve, ao mesmo tempo em que aprende a aplicar certas regras
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prilticas, deixar-se penetrar por esse sentimento que pode ser chamado corporativo e que e como que a memoria coletiva do grupo profissional". Este espirito de grupo explica-se pelo longo passado da func;ao, pelo fato de que "os homens que a desempenham estao em rela~oes freqilentes ... que eles realizam as mesmas operac;:6es OU, em todo casa, operac;6es da mesma natureza, e tern
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sentimento
continuo que suas atividades combinam-se em vista de uma obra comum", mas tambem porque "sua func;ao distingue-se das outras fun~oes do corpo social, e e importante, no interesse de sua profissao, nao se deixar obscurecer, mas marcar e
acentuar essas diferen~as" (1976: 242-243). E Halbwachs mostra imediatamente a fragilidade de um tal empreendimento numa sociedade diferenciada onde 0 "espirito" desses "corpos profissionais" e potencialmente contestavel ou esta em concorrencia pelas logicas heteronimas, e tanto mais porque os membros desses grupos nao pertencem exclusivamente a eles e porque vivem, dentro do proprio ambito de sua atividade profissional, em contato perrnanente com os nao profissionais, que nao participam dos mesmos valores.
Entao os membros do grupo sao obrigados a criar separa~oes institucionais se nao quiserem ser penetrados por logicas exogenas. 0 contato prolongado com essas outras logicas efetua-se no ambito das trocas regulamentadas, institucionalizadas, que situam os leigos no terreno dos profissionais, e nao no terreno dos encontros de igual para igual, no decorrer das intera~oes onde todos os pontos de vista se equivalem. Por exemplo, urn juiz devera escutar as logicas extemas no ambito de sua logica propria e nao entrar em dialogo com essa logica extema: "Entao se pode perguntar se 0 contato prolongado, muitas vezes renovado, com homens dominados por outros pensamentos e outros sentimentos, nao corre 0 risco de amortecer e diminuir, entre os que presidem as fun~oes, 0 esplrito profissional. Para resistir aqueles que, muitas vezes, Ihes opoem cren~s e tradi~oes coletivas, e preciso que se apoiem em cren~as e tradi~oes proprias ao seu grupo. Noutros termos, 0 judiciario, por exemplo, e obrigado a interportoda especie de barreiras entre seus membros e os membros dos grupos aos quais fazem justi~, para resistir as influencias de fora, as paixoes e aos preconceitos dos queixosos. E por isso, pela roupa, pelo lugar que ocupam na sala de julgamento, e pelo conjunto do tribunal, que se toma sensivel a distancia que separa 0 grupo dos juizes de todos os outros. Epor isso que a comunica~ao entre 0 juiz e as partes nao e feita na forma de uma conversa, como nos outros grupos, mas atraves de urn interrogat6rio, au por escrito, seguindo certas formas, ou por intermedio de procuradores ou advogados" (ibid.: 243-244). Existem, igualmente, universos familiares culturalmente nao contraditorios, compostos de adultos muito coerentes entre eles, onde varios principios de sociaIizac;ao nao se sobrepoem, mas exercem seus efeitos sOcializadores sobre as crian~s de maneira regular, sistematica e duravei. Mas esses universos familiares, que tendem objetivamente, mais uma vez, para 0 modele da institui~ao total, encontram mais ou menos as mesmas dificuldades sociais para perdurar. Uma pesquisa pennite observar, por exemplo. as graus mais au menos eIevadas de energia e de coerencia educativas no tocante apratica da escrita e da leitura, as densidades e as coerencias mais ou menos fortes no trabalho
educative (lahire, 1995d). Os estimules a leitura e a escrita podem ser mui-
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tos: iniciac;ao precoce a leitura e a escrita (as vezes com a aquisi~ao de metodas de leitura), impressos usados para prolongar discussoes familiares, tern3S escalaTes OU visitas cuiturais, assinatura precoce de diferentes revistas infantis que cria, bern cedo, a necessidade na criamp (alguns pais descrevem a espera das revistas no tim do mes como momentos de exulta¢o), Iivros e revistas oferecidos por ocasiao de diferentes momentos importantes da vida da crianc;a, (perda de urn dente, aniversario, festa, nota boa, natal, etc.), freqUencia abiblioteca para acostumar a crianc;a ao iugar e ao universo da cultura impressa, fonnac;ao precoce de uma biblioteca infantil pessoal, ieitura de hist6rias it noite ou em diferentes momentos do dia, consulta freqGente do dicionario, integrac;ao progressiva na troca de correspondencia (da assinatura it escrita inteira de cartas ou de cartces postais), convite a fazer rascunha para controlar ou levar a controlar seus erros eventuais, presente de cademos de endere<;o e de telefone ou agendas que convidem a escrever, incentivo a escrever pequenos text os, a fazer urn diario durante as ferias, a escrever pequenas mensagens ou anotar telefonemas, etc. Conforme a intensidade e a regularidade dos incentiv~s, as crian<;as sao sujeitas a matrizes de socializa<;ao a escrita mais ou menos implac6veis. Certos pais nao cedem em sua luta diaria pela acultura<;Ao de seus filhos, outros reconhecem seu abandono de certas solicitac;6es ou de certas vigilancias (deixar de mandar escrever textos, de acompanhar it biblioteca, de perguntar sabre certas palavras dificeis ou de ler. etc.) ou descrevem uma diminuiC;ao na insistencia, outros, enfim. nao estao em condic;6es favoraveis OU mio tern a competencia necessaria para estimular as mhos a nao ser atraves de ordens.
o investimento educativo em ambiente burgues as vezes parece proximo dos superinvestimentos escolares e culturais dos ambientes intennooios, mesmo se todo 0 trabalho educativo realizado possa ser negado enquanto tal (entao sao acentuados os aspectos IDdicos ou afetivos dos momentos passados junto). No entanto, 0 trabalho educativo objetivamente realizado mostra bern que a "heranc;a do capital cultural" nunca se da "naturalmente", inclusive nas familias mais abastadas. E impressionante constatar quanto a "transmissao" desse capital obedece a urn trabalho incessante. diario, de longo alcance e as vezes doloroso tanto para os filhos como para 15 os pais • Por exemplo, uma crianc;a (8 anos, pais medicos) reclama quan-
15. Quando, nos levantamentos estatisticos, se pergunta aos estudantes para classificar wna lista de atividades que compreende os temas seguintes: jogar, praticar wn esporte, ver televisao, escutar mUsica e ler, notam-se daramente varia!;Oes confonne 0 ambiente social da familia, mas obsetVa'"Se tambem que a leitura nunca e colocada na cabe<;a da hierarquia das prefer~cias. A leitura esta, portanto, c1aramente desligada da escola, inclusive par parte dos jovens dos meios culturalmente mais bem-dotados, e nossas entrevistas mostram bern quanto a produ¢o de wn gosto pela leitura de textos, bem como nwnerosos outros aspectos da educa!;aO dos mhos, supOe urn combote e uma ascese da parte dos pais. Combate para fazercom que leiam as crian~ que preferem }agar, combate para fazer com que leiam outra coisa aiem de revistas em quadrinhos, combate para integrar a leitura nos momentos comuns da vida familiar. Quando se pergunta aos estudantes sabre a sua prefer~cia em materia de g~ero de leitura, constata'"Se que em taclas as ambientes sociais sao as hist6rias em quadrinhos que estao em primeiro lugar (cerca de dois tel"!;os em taclas os ambientes). Tambem, quando se pergunta se mant~m conversa!;oes "literarias regulares, ocasionais ou sao inexistentes, percebe-se que a homogeneidade social prevalece sabre a heterogeneidade social (Singly, 1990b: 71·83). h
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do a mae Ihe diz para consultar 0 dicionario, e esta nos diz que, mesmo que isto nao va tao bern. "e assim que se aprende". Ela mesma nao hesita em falar de "combate" diaria a prop6sito dos exercicios refeitos no fim de semana e que nao podem ser sempre vividos de modo atraente pelas crian~s. Tambem se poderia lembrar 0 estimulo a escrever cartas au as apelos a ieitura quando as mhos, particularmente as rapazes, preferem, por exemvepia, jogar futebol. Tambem se pade perguntar se a atitude amadora zes descrita em sociologia da educa<;iio au da cultura nao uma ilusao de 6tica, eo soci6logo partilha da i1usao que as atores querem dar mas, tambern e sobretudo, dar a si mesmos. De fato, basta objetivar, quer dizer, descrever com precisao e sistematicamente certas situac;6es do dia-a-dia para fazer aparecer 0 trabalho educativo escondido, e tambem a disciplina educativa subterranea, necessarios para ter filhos com alto desempenho escolar e com gosto da leitura e da escrita16.
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As densidades ou as coerencias educativas mais fortes, que sup6em uma presen<;a constante e se realizam no mais das vezes quando as maes "escolheram" nao trabalhar para se dedicarem inteiramente a educac;ao dos filhos, conduzem a uma especie de controle muito cerrado do programa implicito e/ou explicito de sociaJiza~ao (por exemplo, no tocante a inculcac;ao de gostos e de competencias em materia de praticas de escrita e de leitura, afastamento voluntario da televisao ou do aparelho de som ou controle muito estrito dos programas vistos, Jimita~ao da propensao dos filhos a ler apenas histarias em quadrinhos, controle - tanto estilistico como tematico - da escolha dos Iivros lidos pelos filhos, etc.). Apesar desse acompanhamento cerrado das experiencias familiares de socializa~ao, que exigem um verdadeiro espirito de combatente educativo no dia-a-dia, os filhos vivem situa<;6es sociais extrafamiliares que tomam particularmente dificil a tarefa dos adultos.
o problema tearico e histarico dos fundamentos sociais da unicidade (ou da homogeneidade) pode ser apresentado tomando emprestadas as palavras humoristicas de Roger Benoliel & Roger Establet: "A produ~ao de habitus homogeneos em todas as esferas da vida e um sonho de professor. As transposi~6es culturais desejadas ou programadas op6em-se muitas resistencias: interesses sociais mobilizados em dire~6es opostas, publicos indiferentes, materiais culturais rebeldes, fontes de legitimidade competitivas. De um lade as inten~6es de prisioneiros escolares, do outro, a vida social ao ar livre" (1991: 29). E certamente nao e 0 Estado que esta em condi~6es, como as vezes se diz de maneira abstrata e superficial!7, de compensar a multiplicidade e a heterogeneidade dos universos sociais (e das experiencias sociais e socializadoras) por um trabalho de homogeneizac;ao do conjunto dos habitus nacionais. 16. Estes fatos sao confinnados pelos estudos rea1izados por Roger Establet (1987: 200-232). 17. No Estado Pierre Bourdieu v~ a meio do qual as sociedades diferenciadas esUio dotadas para "impor e ... ineulcar de maneira universal estruturas eognitivas e avaliativas identicas ou seme1hantes". que com isso desempenham um pape1 semelhante aos ritos de instituiyj,o nas sociedades poueo diferenciadas: "Como estrutura organizacional e instancia reguladora das praticas, ele exeree permanentemente uma ayj,o fonnadara de disposi<;6es duraveis, atraves de tOOas as leis e as disciplinas corporais e mentais que imp6e unifonnemente ao eonjunto dos agentes" (1994: 124-125).
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A coenzncia dos habitos ou esquemas de a~ao (esquemas sensorio-motores, esquemas de percep~ao, de aprecia¢o, de avalia~ao ... ), que cada ator pode ter interiorizado, depende, portanto, da coerencia dos principios de socializa~ao aos quais esteve sujeito. Uma vez que urn ator foi colocado, simultanea ou sucessivamente, dentro de uma pluralidade de mundos sociais nao homogeneos, as vezes ate contraditorios, ou dentro de universos sociais relativamente coerentes mas que apresentam, em certos aspectos, contradi<;6es, entao trata-se de urn ator com
o estoque de esquemas de ac;oes ou habitos nao homogeneos, nao unificados, e com praticas conseqiientemente heterogeneas (e ate contraditorias), que variam segundo 0 contexto social no qual sera levado a evoluir. Poder-se-ia resumir tudo isto dizendo que todo corpo (individual) mergulhado numa pluralidade de mundos sociais estfl sujeito a principios de socializa¢o heterogeneos e, as vezes, contraditorios que incorpora.
Mais que considerar a coerencia e a homogeneidade dos esquemas que compoem 0 estoque de cada ator individual como a situac;ao modal, a que e mais freqiientemente observavel numa sociedade diferenciada, achamos que e preferivel pensar que esta e a situa¢o mais improvavel, mais excepcional e que e muito mais
comum observar atores individuais menos unificados e portadores de habitos (de esquemas de aC;ao) heterogeneos e, em certos casos, opostos, contraditorios. A PLURALIDADE DOS CONTEXTOS SOCIAlS E DOS REPERT6ruos DE HABrros Somas todos pedat;os de terra, e de contextura tao informe e diuersa que coda pet;a, coda momento, faz seu jogo. Encontranrse tontas diferent;as de nos para nos mesmos como de nos para outro. Magnam rem puta unum hominem agere (Montaigne. Essais.
livro segundo).
Esta heterogeneidade das experiencias socializadoras, que muitos pesquisadores redescobrem hoje, Maurice Halbwachs ja colocava no centro de sua reflexao sobre a memoria. De fato, Halbwachs lembra que "cada homem esta mergulhado, ao mesmo tempo ou sucessivamente, em varios grupos" (1968: 67-68) e que os grupos nao sao homogeneos nem imutaveis (ibid.: 76)18. Esses grupos, que sao os quadros sociais de nossa memoria, sao, pais, heterogeneos, e as indivi-
duos que os atravessam durante urn mesmo periodo de tempo ou em momentos diferentes de sua vida sao, portanto, 0 produto sempre variegado dessa heterogeneidade dos pontos de vista, das memorias e dos tipos de experiencia. 0 que vivemas com nossos pais, na €Scola, no colegio, com os amigos, com colegas de tra-
IS. Isto significa que nbs nunca estamos totalmente no mesmo grupo em momentos diferentes da hist6rla desse grupo (por exemplo. dais mhos pertencentes a uma mesma fratria nunca nascern nem vivem exatamente na mesma familia).
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balho, com membros da mesma associa.;ao politica, religiosa ou cultural, nao e necessariamente cumulavel e sintetizavel de maneira simples ... Sem ser preciso postular uma 16gica de descontinuidade absoluta ao pressupor que esses conceitos sao radicalmente diferentes entre si, e que os atores saltam a cada instante de uma intera~ao a outra, de um dominio de existencia ao outro, sem nenhum sentimento de continuidade, pode-se pensar - e constatar empiricamente - que todas essas experiencias nao sao sistematicamente coerentes, homogeneas nem totalmente compativeis e que, no entanto, n6s somos seus portadores. Halbwachs ja tra~va os contomos de uma visao dinamica, sensivel a heterogeneidade e a pluraIidade das experiencias 19 • Sabe-se, com certeza, que os momentos na vida de um ser humane onde se formam seus diferentes habitos, seus diferentes repert6rios de habitos nao sao todos equivalentes. Por isso comumente se separa 0 periodo de socializa~ao "primario" (essencialmente familiar) de todos aqueles que se seguem e que se chamam "secundarios" (escola, grupo de iguais, trabalho, etc.). Se esta distin.;ao e importante, por lembrar que, nos primeiros momentos da socializa~ao, a crian~ incorpora, na maxima dependencia socioafetiva em rela.;ao aos adultos que a cercam, "0 mundo, 0 unico mundo existente e concebivel, 0 mundo simplesmente" (Berger & Luckman, 1986: 184) e nao urn universo percebido como relativo e, portanto, especifico, ela leva muitas vezes a se representar 0 percurso individual como uma passagem do homogeneo (0 submundo familiar que constitui as estruturas mentais mais fundamentais) ao heterogeneo (os multiplos subuniversos que urn ator freqiienta ja constituido e que nao e mais fundamentalmente modificado, ou, em todo caso, nao tao profundamente como em seu primeiro universe de referencia). Ora, diferentes fatos empiricos vem contrariar este tipo de representa~ao esquemMica. Antes de tudo, a homogeneidade do universo familiar e pressuposta e nunca demonstrada. Entretanto, que a heterogeneidade seja relativa ou que leve as contradi~6es e conflitos familiares mais exacerbados (por exemplo, 0 caso das situa~6es familiares que levam a uma especie de "divisao do eu" na crian~a), ela esta sempre irredutivelmente presente no amago da configura.;ao familiar, que nunca e uma institui.;ao total perieita. Mas a sucessao ou a "superposi.;ao" primaria-secundaria e freqiientemente questionada pela a~ao socializadora muito precoce (e, em certos casos, cada vez mais precoce) de universos sociais diferentes do universe familiar ou de atores estranhos ao universe familiar. Acontece isto com a experiencia da amamenta.;ao (alguns dias ou algumas semanas ap6s 0 nascimento), da creche (apenas alguns
19. Halbwachs - que fora nomeaclo professor de psicoiogia social no College de France poueos meses antes de sua deportaJ;ao - acabou senclo pouee seguido na FranJ;a. Pode-se considerar - com 0 risco de chocar uma parte dos soci61ogos franceses - que e numa parte da socio\ogia americana contemporfulea, nascicla do in-
teracionismo. que este tipo de interesse pOde perdurar ate hoje. Por exemplo. Anselm L. Strauss faz desta muitipertencra, a munclos e submundos sociais (nem sempre compativeis entre eles e as vezes ate em relat;6es conflituais) tuna das condiJ;oes fundamentais da vida social contemporanea (1993: 41-42). Em com· pensa~ao, ele acentua 0 fato de que poucas forrna~oes sociais sao compostas de atores que atuam e participam num s6 universo social.
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meses ap6s 0 nascimento da crian~a), ou da escola maternal (a partir dos dois anos de idade). Ora, e impossivel agir como se os programas de socializa~ao implicitos desses diferentes atores ou universos sociais fossem for~osa e sistematicamente harmoniosos com rela¢o ao universe familiar. Como nao ver que, colocada na creche desde muito cedo, a crian~ aprende desde os primeiros meses de sua vida que nao se espera a mesma coisa dela e que nao e tratada identicamente "aqui" e "la"? Peter Berger e Thomas Luckman, lembrando 0 caso de uma babit proveniente de urn mundo social muito diferente do mundo dos pais da crian~a, falavam ate da possibilidade de uma "socializa~ao falha", que resulta "da media~ao de mundos altamente contradit6rios pelos outros significativos no curso da socializa~ao primaria" (ibid.: 229-230). Sem introduzir a no~ao (normativa) de "falho", e preciso constatar que a experiencia da pluralidade dos mundos tern todas as chances, em nossas sociedades ultradiferenciadas, de ser precoce. Enfim, as socializa~6es secundarias, mesmo realizadas em condi<;6es socioafetivas diferentes, podem questionar profundamente e fazer competi~ao com 0 monop6lio familiar na socializa¢o da crian~a e do adolescente. Os casos de "desclassificados pelo alto", que evocaremos mais adiante, sao urn exemplo dos mais flagrantes. Portanto, vivemos (relativamente2~ simultanea e sucessivamente em contextos sociais diferenciados. Pode, por exemplo, tratar-se de institui<;6es sociais classicas (em tomo das quais a sociologia organizou uma parte de seus campos de trabalho): a familia, a escola, 0 universe profissional, a igreja, a associa¢o, 0 clube esportivo, 0 mundo da arte, da politica, do esporte, etc. Mas esses diferentes universos sociais nao sao equivalentes. Por exemplo, ao passo que 0 ambito familiar (em todas as suas variantes observaveis) esta, em nossas sOciedades, entre as matrizes socializadoras mais universalmente espalhadas, a igreja ou 0 clube esportivo sao nao 56 universes sociais freqUentados por apenas uma parte dos atores de uma sociedade, mas sao as lugares cnde certos atores exercem a sua atividade social principal (0 padre, 0 treinador esportivo). Em certos universes sociais e possivel ser "consumidor", espectador ou amador enquanto outros sao produtores e profissionais. Mas tal distin<;ao nao tern sentido para 0 universo familiar ou para 0 universe de uma empresa.
Esses universos as vezes se organizam - mas nao sistematicamente - sob a
forma de campos (de for~s e de lutas) no sentido que Pierre Bourdieu da a este termo. 0 processo hist6rico de diferencia~ao das esferas de atividade nao e, em todo caso, redutivel ao aparecimento de "campos sociais" relativamente aut6nomos como espa~os estruturados de posi<;6es, com suas implica~6es, suas regras de jogo, seus interesses, seus capitais e suas lutas especificas (entre os diferentes agentes dominantes e dominados que se esfor~am por manter e ate melhorar a sua posi¢o) que tern como parte a estrutura (desigual) de distribui¢o dos capitais.
20. Ao contrfuio do que escreveu James M. Ostrow - "Sou branco, jucleu, proveniente de urn bairro abastaclo, fitho de advogado, sou urn homem, urn marida, urn pai, um professor, urn cotega; sou tudo isso ao mesmo tempo" (1990: 81) -, n6s nao somas exatamente tudo isso "aD mesmo tempo", mas (aD menos para uma
parte dessas qualidades) geralmente em
momento~ e
em iugares diferentes do dia.
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o universe familiar, por exemplo, nao e, propriamente falando, um campo, como tambem os encontros ocasionais de amigos num bar, as encontros amorosos au
as prilticas de velejar no verao ou de escalar nao constituem situac;6es que possam ser atribuidas a um campo social particular. Ao contriuio do que as formulas mais gerais podem fazer pensar, nem toda interaC;ao social, nem toda situaC;ao social pode ser atribuida a um campo. Os campos estao essencialmente relacionados ao dominio das atividades "profissionais" (e "publicas") e muito particularmente as atividades dos "agentes" em luta no interior desses campos, isto e, dos produtores (versus consumidores, espectadores ou pessoas que participam no campo mas mlo estao particularrnente envolvidas nas iutas no interior desses campos: auxiliares administrativos, pessoal de servic;o, operarios ... ). Campo do poder, campo politico, administrativ~, jomalistico, campo editorial, campo literario, teatral, campo da historia em quadrinhos, da pintura, da alta costura, campo filos6fico, cientifico. campo das ciencias sociais, campo universi-
tario, campo das grandes escolas, campo religioso, juridico, esportivo, campo dos agentes de gerenciamento da velhice ... Notar-se-a que certos campos sao subcampos de outros campos (0 campo sociologico e urn subcampo do campo das ciencias sociais, que
eurn subcampo do campo cientifico e/ou do campo universi-
tario, que e um subcampo do campo de produC;ao cultural, que e um subcampo do campo do poder, que faz parte do espac;o social). Por outro lado, certos campos sao construc;6es cientificas da realidade que nao coincidem totalmente com os cortes feitos para constituir outros campos (por exemplo, tanto 0 campo juridico como 0 campo medico, incluem uma parte daquilo que constitui, por sua vez, 0 campo universitario, mas tambem elementos extra-universitarios). Notar-se-a tambern que certas praticas ou certos objetos pertencem a varios campos ao mesmo tempo (por exemplo, um romance pertence ao campo literario, mas tam bern ao campo editorial) e que uma mesma pessoa fisica pode pertencer a varios campos ao mesmo tempo (campo politico e campo cientifico; campo filosofico, literario e teatral...). Constatar-se-a, porem, sobretudo, que grande numero de atores estao fora de campo, imersos num grande" espac;o social" que ja nao tern como eixo de estruturac;ao senao 0 volume e a estrutura do capital possuido (capital cultural e capital economico). Ha muita energia cientifica dedicada a aclarar as grandes cenas do poder, mas pouca para compreender aqueles que montam as cenas, organizam 0 cenario ou fabricam seus elementos, varrem 0 palco e os bastidores, fotocopiam as documentos e digitam as cartas, etc., e que,
as vezes, assistem aos es-
petaculos ou consomem os produtos dos produtores (Ieem romances, ensaios filosoficos, obras de ciencias socia is, tiras desenhadas dos jomais ... vao ao teatro ou ao museu, votam e veem os politicos na teievisao, vao as casas de repouso au levam para ia seus pais, praticam esporte au fazem uma denuncia, vao a igreja e enviam seus filhos ao catecismo ou ao estudo do Corao, assistem a desfiles de moda na televisao ou veem as fotografias de manequins nas revistas, etc.); ha pouco interesse tambem para compreender a vida fora de cena ou fora de campo dos produtores do campo.
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E e extremamente revelador, dada esta exclusao dos "tempos fora de campo" e dos "atores fora de campo", sendo que essa sociologia nao apenas se interessa pela situa~ao dos que "nasceram no campo" ou "nasceram no jogo" (filho de universitario que se toma universitario ... ). mas tambem generaliza. as vezes abusiva-
mente, este modelo de ator. "A ii/usia e uma especie de conhecimento que esta fundado no fato de ser nascido no jogo, de pertencer ao jogo por nascimento. Dizer que conhe~o a jogo desta maneira quer dizer que 0 tenho na pele, no corpo, que ele joga em mim sem mim, do modo como meu corpo responde a uma oposi~ao antes mesmo de eu a ter percebido como tal" (Bourdieu, 1989b: 44). Ou ainda: "Por que e importante pensar 0 campo como um lugar no qual se nasceu e nao como um jogo arbitrariamente instituido? (ibid.: 49).
A teo ria dos campos resolve uma serie de problemas cientificos, mas cria outros na medida em que: 1) ignora as incessantes passagens operadas pelos agentes que pertencem a um campo entre 0 campo dentro do qual sao produtores, os campos nos quais sao simples consumidoreslespedadores e as multiplas situac;6es que nao sao referiveis a urn campo, reduzindo
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ator a seu ser-como-mem-
bro-de-um-campo; 2) negligencia a situa¢o daqueles que se definem socialmente (e se constituem mentalmente) fora de toda atividade num campo determinado (e o caso ainda de numerosas donas-de-casa sem atividade profissional ou publica") e 3) considera os fora de campo, os sem grau, a partir dos padroes de medida que sao padroes sociais de medida de poder (diploma, renda, etc.), definindo seu "habitus" pela falta de posses, por sua miseria e pela sua situa¢o de dominados22 • Por todos estes motivos, a teoria dos campos (seria preciso sempre falar da teoria dos campos do poder) nao pode, certamente, ser uma teoria geral e universal, mas representa uma teoria regional do mundo social23. Se prlncipalmente os habitus, como sistemas de disposi~oes, sao especificos aos campos, pode-se legitimamente perguntar pelo que se constitui cognitivamente, afetivamente e culturalmente fora desses campos. Uma vez que se compreenderam os funcionamentos cognitivQs-sociais encarnados nos corpos singulares, nao se pode reduzir os atores aos seus habitus de campo na medida em que suas experiencias vao alem daquelas que podem viver no ambito de um campo (sobretudo quando estao fora de campo!). Quando se evoca, por exemplo, 0 habitus literario de um romancista, e possivel perguntar-se em que medida este ultimo importa a este sistema de disposi~oes sem toda uma serie de situa~6es sociais (principalmente familiares) situadas fora de campo. 0 conjunto de seus comportamentos sociais -
21. Leslie McCall (1992) nota que ern Bourdieu "a estrutura socia\. .. e definida peJas profiss6es e pe!os capitais que €Staa associados a eta" eque 0 habitus reveste uma dimensao "em grande parte publica". ConseqUentemente, as praticas sociais das mulheres, que estao muito presentes nas esferas privadas, pouca entram em jogo na definh;:ao - profissional e publica - do espa<;:o social pelo soci610go. 22. 0 autor campara "a interpreta<;:fio do texto de uma entrevista com um simples leigo" com a da "obra de urn autor celebre" e diz que este segundo caso "apresenta problemas particulares" sobretudo par causa "do fato de seu autor pertencer a urn campo" (Bourdieu, 1992: 418, nota 25). 23. E poder-se-ia dizer que isto nao e tao ruim.
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seja qual for 0 dominio de existencia considerado - e redutivel a realiza~ao concreta desse sistema de disposi~6es? A observa~ao dos comportamentos reais mostra que tal pressuposi~ao esta longe de ser automatica e de se confirmar. 5e tomarmos 0 nosso microscopio, poderemos distinguir tambem, dentro desses espa~os institucionais e espaciais separados e relativamente divididos em compartimentos aparentemente homogeneos, diferen~as intemas importantes nos tipos de intera~o que se dao ali, nas situa~6es sociais que vivem (uma discussao na hora do cafezinho entre colegas nao e uma reuniao oficial, nem 0 tempo de trabalho solitario ou em grupo). Por exemplo, longe de constituir realidades homogeneas, as configura~6es familiares populares, que tivemos oportunidade de estudar em sua rela<;3o com
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universo escoiar, permitiram veT mais de urn caso
de heterogeneidade (Lahire, 1995a). A crian~a pode estar cercada de pessoas que representam principios de socializa~ao, tipos de orienta~o em rela~o a escola, muito diferentes, ate opostos. A oposi~ao ou a contradi~o pode estabelecer-se, segundo os casos, entre 0 controle moral muito estrito e a indulgencia, entre a "diversao" e 0 "esfor~o escolar", entre uma sensibilidade muito grande para com tudo 0 que se ref ere a escola e uma sensibilidade pequena, entre gosto pela leitura e uma ausencia de pmtieas e gosto pela leitura, etc. Em todos os casos, e bastante raro encontrar configura~6es familiares absolutamente homogeneas, tanto cultural como moralmente. Poucos sao os casos que permitiriam falar de urn habitus familiar coerente, produtor de disposi~6es gerais inteiramente orientadas para as mesmas dire~6es. Muitos filhos vivem concretamente dentro de urn espa~o familiar de socializa~ao com exigencias variaveis e com earacteristicas variadas, onde coexistem exemplos e contra-exemplos (urn pai analfabeto e uma irma na universidade, irmaos e irmas com born exito escolar e outros "fraeassados", e assim por diante), espa~o familiar onde se entrecruzam principios de socializa~ao contraditorios. Com 0 conjunto dos membros da familia, muitas vezes encontram-se diante de urn amplo leque de posi~6es e de sistemas de gostos e de comportamentos possiveis. Existem mais possibilidades de encontrar elementos contraditorios em familias numerosas onde varias gera~6es vivern sob 0 mesma teta, Oll que tern, POT muitas razces, tias, tias, primos, primas,
avos da
crian~.
Porque nao nos ocupamos, nos centextos sociais em questao, com posiC;6es
identieas ou semelhantes (podemos ser ou ter sido diversamente "filho ou filha" , "aluno all aluna", "colega de escola", "pai au mae", "amante", "goleiro/a" , "membro de uma associa~ao", "fiel de uma igreja", "colega de trabalho", trabalhador/a", and so on), vivemos experiencias variadas, diferentes e, as vezes, contraditorias. Urn ator plural e, portanto, 0 produto da experiencia - amiude precoce - de socializa~ao em contextos sociais multiplos e heterogeneos. No curs~ de sua trajetoria ou simultaneamente no curso de urn mesmo periodo de tempo, participou de universos sociais variados, ocupando ai posi~6es diferentes. Poder-se-ia, conseqiientemente, aventar a hipotese da incorpora~ao, por eada ator, de uma multiplicidade de esquemas de a~ao (esquemas sensorio-moto-
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res, esquemas de percep<;iio, de avalia<;iio, de aprecia~ao, etc.), de habitos (hflbitos de pensamento, de Iinguagem, de movimento ... ), que se organizam tanto em repert6rios como em contextos sociais pertinentes que aprendem a distinguir - e muitas vezes a dar nome - atraves do conjunto de suas experiencias socializadoras anteriores. Se retomarmos a metaiora do "estoque,,24, entao diremos que este estoque (como conjunto de mercadortas disponiueis no mercado ou numa loja e como lugar de conserva<;iio de produtos a espera) distingue-se do simples" empiIhamento", do "monte" ou do "montao" em que aparece organizado sob a forma de repert6rios sociais (como existem repert6rios alfabeticos ou 16gicos que classificam os elementos segundo urn prindpio alfabetico ou 16gico, pode-se utilizar a metaiora do repert6rio s6cio-16gico) de esquemas, repert6rios distintos uns dos outros mas interligados e tendo, sem duvida, elementos em com urn. Os repert6rios de esquemas de a~ao (de habitos) sao conjuntos de sinteses de experiilncias sociais que foram construidas/incorporadas durante a socializa<;iio anterior nos ambitos sociais limitados/delimitados, e aquilo que cada ator adquire progressivamente e mais ou menos completamente sao tanto habitos como sentidos da perten~a contextual (relativa) de terem sido postos em pratica. Aprende/compreende que aquilo que se faz e se diz em tal contexto nao se faz nem se diz em outro contexto. Este sentido das situa~6es e mais ou menos "corretamente" incorporado (depende da variedade dos contextos encontrados pelo ator em seu percurso e das san~6es - positivas e negativas - mais ou menos precoces que Ihe foram dirigidas para indicar os Iimites amiude imprecisos que nao devem ser ultrapassados). Para seguir ate 0 fim a metaiora do estoque, poder-se-ia dizer que 0 estoque e composto de produtos (os esquemas de a<;iio) que nao sao todos necessarios em todo momento e em todo contexto. Depositados (deponere) no estoque, estao disponiveis, a disposi~ao, na medida em que se pode dispor (disponere) dele. Estes produtos (da socializa<;iio) destinam-se muitas vezes a usos diferentes, postos temporaria e duravelmente em reserva, a espera dos desencadeadores de sua mobiliza<;iio. Enfim, as transferencias e transposi~6es (anaI6gicas) dos esquemas de ac;ao sao raramente transversais ao conjunto dos contextos sociais, mas efe-
tuam-se no interior dos limites - imprecisos - de cada contexto social (e, portanto, de cada repert6rio).
o MODELO PROUSTIANO DO ATOR PLURAL Na critica que Marcel Proust faz do "metodo Sainte-Beuve", esbo~a uma teoria implicita e parcial, mas muito sugestiva, do ator plural, i5to e, do ator que se revela plural e diferente segundo os dominios de exis!encia nos quais e socialmente levado a evoluir. Proust define 0 "metodo Sainte-Beuve" afirmando que ele con-
24. Da "loja de imagens auditivas" aU do "reservat6rio" de Bergson
as metaforas do corpo como "dep6sito" em
Bourdieu, passando pela "reselVa de experi~ncias" de SchOtz, as metaforas da "estocagem" sao comuns em sociologia. Mas. ao se correro risco de empregar tuna metMora, e preferivel tentar segui-la ate 0 lim (inclusive para encontrar 05 limites),
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siste "em nao separar 0 homem da obra". Ao apresentar assim 0 ceme de sua critica, Proust nao apenas se baseia numa boa parte das ciencias sociais e humanas
(hist6ria e sociologia da arte, principalmente) que se eslor~am, justamente, em nao separar a obra do homem, mas a critica que desenvolve nao pode deixar de parecer, aos olhos dessas mesmas ciencias, como um caso tipico de idealismo e de irrealismo artistico (a rea~ao de um homem de letras que nao aceita que the sejam lembradas as condi~6es de produ~ao da obra literaria). Definitivamente,. nao se trata disso. Ao contrario da maneira como a apresenta, 0 metoda que discute sup6e que se julgue a qualidade literaria da obra a partir daquela que se acredita desvendar atraves dos comportamentos sociais publicos (ou mundanos) de seu autor (um homem "de qualidade" s6 pode escrever literatura de qualidade). Para contra-argumentar, Proust e levado a desenvolver a ideia de uma pluralidade de "mim" posta em jogo nos dominios de praticas dilerenciados: "Este metodo desconhece aquilo que uma rela~ao um pouco profunda conosco mesmos nos ensina: que um livro e 0 produto de um outr~ eu dilerente daquele que manifestamos nos nossos habitos, na sOciedade, nos nossos vieios" (Proust, 1971: 221-222). A situa~ao de quem escreve um texto literario nao tem nada em comum com a situa¢o que 0 cotoca na presen~ dos amigos, do seu editor, das rela~6es mundanas ... e, no lundo, nao e absolutamente 0 mesmo homem que age em todos os casos. Se Sainte-Beuve se engana profundamente, e porque acredita poderjulgarum "eu" a partirdas observa~6esdosoutros "eus": "E porque naoviu o abismo que separa 0 escritor do homem do mundo, por nao ter compreendido que 0 eu do escritor nao se mostra nos seus livros, e que ele apenas mostra aos homens do mundo (ou mesmo a esses escritores que se tomam escritores apenas sozinhos) que um homem do mundo como eles, inaugurara esse lamesa metoda que, segundo Taine, Bourget, tantos outros, e a sua gl6ria, e que consiste em interrogar avidamente, para compreender um poeta, um escritor, aqueles que 0 conheceram, que se relacionaram com ele, que poderao nos dizer como ele se comportava na questao das mulheres, etc., isto e, precisamente em todos os pontos em que 0 eu verdadeiro do poeta nao esta em jogo" (ibid.: 225).
Eclaro que Proust, que coloca a cria~ao literaria acima de tudo, isto e, no alto da hierarquia existencial, ilude-se sobre a ideia do "eu verdadeiro" do escritor, que se encontraria numa especie de dialogo "verdadeiro" de si para si ("0 som verdadeiro de nosso cora~ao"). 0 "eu" que produz as obras nao e mais "profundo", mais "autentico" ou mais "verdadeiro" que 0 "eu" que age e interage fora do tempo da pr6pria escrita. Ademais, preso na diferen~ de operar entre 0 "literario" ("a esfera em que se escreve") eo" extraliterario", Proust desenvolve uma acuidade visual particulannente forte para 0 que e do primeiro dominio, mas pennanece cego as diferen~s intemas ao "extraliterario" , concedendo sem duvida terreno ao adversario (Sainte-Beuve). Em vez de falar "do eu exterior" (tomado como um bloco maci~o e indiferenciado), seria preciso (mas nao e 0 seu principal cuidado) distinguir "os eus" que se exprimem nos diferentes dominios da existilncia extraliteraria. Mas uma vez desembara~ada de sua concep¢o hierarquica e de sua tenden-
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cia dicot6mica a nao perceber que as diferen~as entre 0 eu literario eo" eu exterior", a analise prollstiana revela-se uma verdadeira pequena j6ia te6rica para
captar a pluralidade intema dos atores sociais. "0 eu que produz as obras e ofuscado para esses camaradas pelo outro, que pode ser muito inferior ao eu exterior de muita gente" (p. 222). Nestas condi~6es, como se pode julgar corretamente 0 trabalho litera rio de Stendhal, de Baudelaire ou de Balzac com base no que se conhece deles do ponto de vista das rela~6es que mantinham com certos contemporaneos seus? Ao contrario de Sainte-Beuve, e preciso perguntar qual e 0 dominio especificamente literario no qual se coloca 0 escritor em cada momento em que escreve. Em tempo algum Sainte-Beuve parece ter compreendido 0 que ha de particular na inspira~ao e no trabalho literario, e o que 0 diferencia inteiramente das ocupa~6es dos outros hom ens e das outras ocupa~6es do escritor. Ele nao estabelecia fronteira entre a ocupa~ao literaria onde, na solidao, fazendo calar essas palavras que sao tanto dos outros como nossas, e com as quais, mesma s02inhos, julgamos as coisas sem sennas nos mesmos, remetemo-nos face a face canoseo mesmas, procuramos Qllvir, e produzir,
o som verdadeiro de nosso
cora~ao
- ea
conversa~ao"!
(p. 224).
o caso de Baudelaire tomado como exemplo por Proust revela a este respeito uma grande agudeza de analise. Baudelaire, lembra Proust, escreveu cartas extremamente deferentes e amaveis a Sainte-Beuve esperando obter uma boa crttica dele. Seja qual for a interpreta~ao que se possa dar a tais atos (sinceridade de Baudelaire ou politica cinica), Proust diz que eles provam a diferen~a entre 0 que Baudelaire escrevia e 0 tipo de comportamento que podia desenvolver ante uma crttica diferente de seu tempo. "Tudo isto vem em apoio do que eu te dizia, que 0 homem que vive num mesma corpo com grandissimo genic tern pauca rela~ao com ele, e e a ele que seus intimos conhecem, e por isso e absurdo julgar, como Sainte-Beuve, 0 poeta pelo homem ou pelo dizer de seus amigos. Quanto ao pr6prio homem, e apenas um homem, e pode perfeitamente ignorar 0 que quer 0 poeta que vive nele" (p. 248).
Depois Proust desenvolve, em algumas linhas, 0 esbo~o de uma teoria do homem plural composto de "varias pessoas superpostas". "Como 0 ceu da teologia cat6lica, que se comp6e de varios ceus superpostos, nossa pessoa (na) aparencia que nosso corpo Ihe da com sua cabe~a que circunscreve uma pequena bolha de nosso pensamento, nossa pessoa moral. .. comp6e-se de varias pessoas superpostas. Isto talvez seja mais sensivel ainda para os poetas, que tem mais um ceu, um ceu interrnedio entre 0 ceu de seu genio e 0 de sua inteligencia, de sua bondade, de sua fineza cotidianas, e a sua prosa" (p. 249). Somos, portanto, plurais, diferentes nas diversas situa~6es da vida comum, estranhos as outras partes de n6s mesmos, quando estamos investidos em tal ou tal dominio da existencia social. Atentos, como dissemos, as diferen~as intemas as situa~6es da escrita, Proust toma sua lupa de analista para distinguir no poeta 0 eu-que-escreve-em-verso (Musset escrevendo Balada d lua) do eu-que-escreve-em-prosa (Musset escrevendo ensaios crtticos ou seus discursos para a Academia). Mas se 0 poeta que escre-
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ve em prosa ja e muito diferente daquele que equando escreve em verso, a fortiori, no homem, no homem da vida, dos jantares da ambi¢o, nao resta mais nada, e e a ele que Sainte-Beuve pretende perguntar pela essencia do outro, do qual nao guardou nada" (p. 250). Esta intui¢o te6rica da pluralidade das "pessoas", dos "eus" (ou do fracionamento da pessoa) - diriamos que sao resumos de experiencias incorporadas - na unica e mesma pessoa biol6gica, levara 0 Proust-romancista a distinguir freqUentemente as diferentes facetas de urn personagem lembrando 0 "Swann de Buckingham Palace" ou a "Albertina vestida com 0 casaco impermeavel dos dias de chuva" (Nicole, 1981: 200-216) e a por em cena os erros de julgamento que os diferentes personagens cometem uns frente aos outros (tomando deles s6 0 que eles apresentam de sua personalidade nos contextos singulares) para destacar a sua relativa heterogeneidade intema25. DMSAO DO EU E CONFUTO PSiQUICO: 0 CASO DAS TRAVESSIAS DO ESPAC;:O SOCIAL Gada ambiente e percebido d luz do Dutro ou dos outros, 00 mesmo tempo que d sua luz, e tem-se a impressdo que se resiste a ele. Sem duvida, desse con/lito ou dessa combina<;do de io/lw?ncias, cada uma de/as devia resultar mais clara. Mas dado que esses ambientes se con/rootam, tem-se a impressao que nao se esta comprometido nem com um oem com 0 outro. Sobretudo, 0 que acontece no primeiro plano e a estranhezo da situa<;ao em que se eocontra, que basta para obsorver 0 pensamento individual (Maurice Halbwachs. A memoria coletioo).
Em casa, eu /azia gestos sem pensar, assim que saio pela porta, do lado de fora, condeno minhas maneiras, mas nao sei como me comportar (Annie Ernaux. Os armarios vazios).
A tradi¢o que comumente prega a unicidade do ator estaria pronta a admitir como unica exce~ao a regra aquela que pode ser considerada de algum modo
25. George Herbert Mead (1863-1932), contemporfuleo de Marcel Proust (1871-1922), prop6e uma teoria das udiversidades dos si-mesmos" que se revela muito semelhante. Segundo ele, "as tipos de re\a~6es que mantemos variam de acordo com as diferentes indivlduos" e uma "personalidade multip!a e, em certo sentido, nonnal" (1963: 121). De maneira geral, 0 trabalho literario de Proust e sua exposi!;ao da pluralidade sincr6nica e diacrOnica do ator devem, sem dUvida, muito a psicologia do seu tempo e principalrnente aos trabalhos de ThOOdule Ribot sobre As doenr;as da personalidade(1885). Ribot sustenta que "a observa¢,o vulgar nos mostra quanto 0 eu normal perdeu de coesao edeunidade" eque "em cada urn den6s ha tendfu)· cias de todo tipo, todos os contrarios possiveis, e, entre estes contrarios, todas as nuan~as intermedias, e, entre estas tendencias, todas as combinal;6es. Se os moralistas, os poetas, os romancistas, os dramaturgos nos mostraram a saciedade esses dois ellS em luta no rnesrno eu, a experiencia vulgar e ainda rnais rica. Eta nos mostra varios, cada urn exduindo os outros, desde que passa para 0 prirneiro plano" (citado em Raj· mond & Fraisse, 1989: 40). Ademais, a ideia da existenda de rnultiplas "provincias do eu" esta proposta pelo psic61ogo Ignace Meyerson (1888-1983) . .Ct. Malrieu 1996.
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como dependente - num ou noutro grau - de uma forma de patologia mental ou de sofrimento identitario. Reconduzindo os casos de pluralidade interna ao mode10 da "divisao do eu"" e do "conflito psiquico", ela se tranqiiiliza de certo modo ao (se) dizer implicitamente que 0 "normal" (no sentido de mais freqiiente), e por isso a "lei", esta do lade da unicidade. Freud, com efeito, designou pela expressao "divisao do eu" a ideia de "coexistencia, dentro do eu, de duas atitudes psiquicas no lugar da realidade exterior" , atitudes "que se ignoram mutuamente" (Laplanche & Pontalis, 1990: 67-68)27. 0 sujeito e trabalhado, assim, por urn conflito interno dentre duas puls6es, dois desejos, dois sentimentos diante de situa,6es que e levado a viver. Ele vive fatalmente no sofrimento (mais ou menos grande) essa tensao perpetua28 , que em certos casos pode levar as portas da esquizofrenia. Mas este tipo de pluralidade, alias totalmente essencial a apreender, nao pode ser tornado como 0 modele geral da pluralidade interna do ator. Em contrapartida, e urn caso particular do modele do ator plural tal como 0 concebemos. De fato, 0 primeiro limite da ideia de divisao e justamente que 0 multiplo esta alojado na figura do duplo e na oposi,ao binaria (desdobramento da personalidade, dilerna * como dupla obriga,ao, dupla consciencia, jogo duplo, etc.). Ora, 0 ator plural nao e obrigatoriamente urn agente duplo. Ele incorporou muitos repertorios de esquemas de a,ao (de habitos29) que nao sao, obrigatoriamente, produtores de (grandes) sofrimentos na medida em que podem coexistir pacifica mente quando se exprimem em contextos sociais diferentes e separados uns dos Qutros, au con-
duzir apenas a conflitos limitados, parciais, em tal ou tal contexto, em tal ou tal dominio da exislencia (por exemplo, numerosas mulheres que se encontram entre a vontade ou a necessidade do trabalho externo e 0 desejo ou a necessidade de investimento domestico vivendo, nos dois espa,os, "formas de opressao" diferentes - McCall, 1992). Mas se nao ha urn desdobramento, se, conseqiienternente, ha apenas urn so conflito central, e se este conflito psiquico interne provoca sofrimento, e porque a pluralidade interna dos esquemas de a,ao (ou de habitos) acabou tornando impossivel a ilusao identitaria da unidade de si-mesmo e coloca urn problema de coeren-
26. "Clivage du mai" - foi assim que Pierre Bourdieu, bern recentemente, chegou a evocar a ex.istfulcia de ~ ha-
bitusdivididos, dilacerados,levando sob a forma de tensoes e de contradi~6es a marca das condi~6esde formal;a.o contradit6rias cujo produto sao" (1997: 79).
27. Aqui poder-se-ia perguntar pelas condil;oes hist6ricas de surgimento do interesse cientifico pelo desdobramento da personalidade e por aquila que sera chamado de "esquizofrenia". Esta
e uma das Ii-
nhas de pesquisa s6cio-historica do programa de pesquisa que estamos realizando no Instituto UniversiUliio da Fran~. 28. Pierre Bourdieu fala "dos habitus dilacerados, entregues acontradi~ao e adivisao contra si mesmo, geradora de sofrimentos" (1997; 190).
'* "Dilema" estil traduzindo "double contrainte" que, por sua vez, traduz a expressao inglesa "double bind", a ordem dupla em que uma se opoe a outra, deixando a pessoa confusa. 29. Ao invesde falarde "conflito psiquico" oude "conflito intemo", parecemais exato falardeconflitosde habitos (de pensamento, de gosto, de linguagem, de movimento corporal ... ) ou de esquemas de a~o.
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cia psiquica ao ator'". Tudo se passa como se os multiplos repertorios que ordenam 0 estoque de esquemas incorporados estivessem todos cindidos em duas partes, tornando possivel em cada contexto, a cada instante, a atualiza~ao de esquemas de a~ao contraditorios. A heterogeneidade do estoque de esquemas de a~ao incorporados pelo ator nao da sistematicamente lugar a tais reparti~6es e a tais conflitos de identidade e psiquicos. Ela e, mais comumente, compativel com a ilusao - bern fundamentada - da coerencia pessoal, da identidade a si mesmo. Para que 0 ator nao possa mais dar a si mesmo a ilusao da unidade de si, de uma relativa coerencia identitaria, e para que a contradi~ao principal apare0 sob a forma de uma dupla identidade de "uma conversa¢o interna entre diferentes segmentos do eu" (Berger & Luckman), seria preciso que vivesse experiencias de socializa~ao totalmente particulares. Geralmente, 0 ator tera de ser submetido, de maneira bastante precoce, a experiencias socializadoras sistematicamente contra-
ditorias. A situa~ao pode ser interna a urn universe (por exemplo, 0 dilema exercido dentro do pr6prio universe familiar, e mlo necessariamente representado pelo
pai e pela mae) ou pode por em cena dois grandes universos contraditorios (por exemplo, 0 universe familiar popular e 0 universe escolar, no caso dos "bolsistas" que se tomam "transfugas de classe"). No caso daqueles que sao chamados, conforme as situa~6es, de "transfugas de classe", os "desclassificados pelo alto", os "desenraizados", os "autodidatas", os "bolsistas", os "portentos", e que sairam de suas condic;6es originais pelo caminho escolar31 , trata-se de uma clara oposi~ao entre duas grandes matrizes de socializa~ao contraditorias (0 universe familiar e 0 universe escolar), cujos valores simb6licos sao socialmente diferentes no ambito de uma sociedade hierarquizada (prestigioso/desvalorizado; alto/baixo; dominante/dominado ... ), que leva a heterogeneidade dos habitos, dos esquemas de a~ao introjetados a se organizarem sob a forma de uma divisao do eu, de urn conflito interne central que organiza (e embarac:;a) cada momento da existencia. Entretanto, mesma nesse caso, 0 conflito interior pode ser apaziguado e nao conduz sempre (isto depend era da hist6ria pr6pria
30. As
contradi~oes
au as dilemas podem tambem ser coracteristicas de
posi~6es
sociais "nonTlais". Hoje se
pode pensar em certos pequenos executivos (agentes administrativQs e contramestres) espremidos entre as
l6gicas sociais das posh;6es hierarquicamentesuperiores e as 16gicas das posi~6es subaltemas. Mas tambem pode ser lembrado 0 caso do artista da corte no seculo XVIII estudado por Norbert Elias a partir do caso de Wolfgang Amadeus Mozart (1991 b). Como todos as artistas, Mozart ocupa uma posi~ao subaltema com rela~ao ao "establishment da corte". Enquanto mUsico, e urn servidor urn pouco mais prestigiado que outros (cocheiro, cozinheiro, ourives). Como burgues da corte, vive em dais universos sociais: urn universo burgues e urn universo da nobreza da corte no seio da qual deve respeitar normas especificas de comportamento. Ora, Mozart (superprotegido par seu pai) nunca conseguiu assimilar completamente essas normas e se can· siderar verdadeiramente urn subaltemo (escreveu a seu pai que tinha horror a "rastejar"). Sua biografia for· nece urn caso de interioriza~ao dos canones musicais mais altos e nobres sem incorporar costumes que, geralmente, as acompanham. Ser teratol6gico, Mozart p05sui urn saber musical que implica uma profunda in· corpora~ao de gOSt05 nobres (tanto para e1e como para as nobres, a opera esta na cimeira das categorias de obras), mas conservou a estilo do comportamento de urn plebeu. T eve dificuldade sobretudo de esconder a sua franqueza, pais os comportamentos da corte exigem rela~oes mais eufernistas (nao chocar, serdiploma· ta ... ). Oas normas da corte ele 56 adota os aspectos mais exteriores (roupa) mas nao as conduta5. 31. Sabe-se pouca coisa das ascens6es sociais pela via econ6mica na medida em que esses casos de mobilida· des sociais ascendentes deixam poucos testemunhos escritos e por isso chamam pouca aten~o.
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de cada ator) as maiores dissocia~6es psiquicas e as torturas mentais mais extremas. Assim, Richard Hoggart lembra certos "desclassificados pelo alto" que nao vivem seu percurso social com tanto sofrimento, certos administradores ou altos funcionarios ou 0 jovem que "sera capaz de se sentir a vontade com seu pai operario e respeitar a sua irma frivola ou seu irmao mais novo brilhante" (Hoggart, 1970: 348). Pierre Naville, que definia a personalidade individual como 0 conjunto mais ou menos coordenado dos sistemas de habitos que incorporamos dentro de diferentes grupos sociais, em contextos sociais variados, colocava tambem as bases
de uma compreensao dos casos dos "transfugas". De modo difer~te do ator "cuja integra~ao e adapta~ao momentanea sao satisfatorias" e para quem "a situa~o acarreta ... a predominancia de um certo sistema de habitos" ("diz-se que 0 homem 'esta no seu negocio'. Age quod agis!"), certos atores veem "um ou varios sistemas de habitos" dominar "segundo a situa~ao e suas exigencias" e ate, em certos casos, entrar em confiito, em contradi~o (" ora tranqiiilas, superadas, ora exacerbadas"). Neste ultimo caso pode-se ate constatar "interferencias" entre os dois sistemas de habitos contraditorios: "um estimulo dado pode provocar, ainda que parcialmente, dois tipos de rea~6es antagonicas" e produzir "a hesita~o, 0 tremor, a indecisao, a ina~ao" (1942: 231)32. Maravilhosa analise da paralisia ou do incomodo ocasionado pela competi~ao dos esquemas de a~ao naqueles que incorporaram, nos mesmos repertorios, esquemas de a~ao contraditorios. Quando cada situa~o social e percebida, apreciada, julgada, avaliada a partir de dois pontos de vista opostos e concorrentes, a ambivalencia cria 0 sofrimento. Se os esquemas de a~ao opostos pudessem sempre corresponder a contextos sociais distintos e separados, se eles se referissem sistematicamente as praticas sociais, aos domi-
nios de atividades muito c1aramente diferenciadas, entao nao se assistiria a uma especie de competi~ao e de oscila~ao constante, mas a um verdadeiro desdobramento pacifico (entre "aqui" e "Ia"). Por exemplo, os goslos culturais socialmente diversificados aplicam-se tambem aos objetos, ou categorias de objetos (moveis, roupa, decora~ao interior, etc.), identicos de um grupo social (de origem) ao outro (de acolhida) e nao somente aos dominios de priltica diferentes. Sucessivamente, mas em parte tambem simultaneamente socializados, em universos onde os habitos de gosto sao diferentes e ate socialmente opostos, os "transfugas de c1asse" oscilam de maneira permanente - e as vezes mentalmente esgotante - entre dois habitos e dois pontos de vista. De fato, os transfugas passam, permanentemente, durante a sua travessia do espa~o social, de uma situa~ao de coexisWncia pacifica dos hilbitos incorporados a uma situa~ao conflitual. Annie Ernaux, em Os armarios vazios, descreve desta maneira 0 seu periodo de infancia como um periodo de coabita~ao serena: "Era 0 periodo bom, entre oito e doze anos. Eu oscilava entre dois mundos, atravessava-os sem pensar neles. Era suficiente nao se enganar, as palavradas, as express6es sonoras nao deviam sair de mim, ligadas aos cantos esverdeados dos quar-
32. Naville lembra tamhem a existencia de "tentativas de predominanda dupla, tripla (e as vezes multipla) dos sistemas de habitos" (1942: 222), sem, infelizmente, se deter em exempios .
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tos, ao guisado grudado que eu raspava no fundo da cac;arola" (1974: 71). E 0 tempo em que a crianc;a aprende, sem muito sofrimento, a atualizar esquemas de ac;ao diferentes em funC;ao do contexto e, portanto, a exercer uma especie de controle sobre si. "Um belo equilibrio durante alguns anos. Duplo, ate a sexta serie sem dificuldade ... Os dois mundos lade a lado sem incomodar demais" (ibid.: 73). De um lade a familia, do outro lado, a escola. De um lado 0 oral mais ligado ao universo familiar e que ainda nao esta muito investido na escola, do ~Utro, 0 escrito ligado apenas ao contexto escolar e que permite mais facilmente a formaC;ao de novas maneiras de dizer, novos habitos linguageiros (Bemstein, 1975). "Eu empregava minhas novas palavras apenas para escrever, restituia a elas sua (mica fonna
possivel para mim. Nao chegava ate a boca. Expressao oral desajeitada apesar dos bons resultados, escreviam as professoras na cad em eta escolar ... Levo em mim duas linguagens, os pequenos pontos negros dos livros, os gafanhotos malucos e graciosos, ao lado das palavras gordas, grossas, bern apoiadas, que se afundam no ventre, na cabec;a, fazem chorar, no alto da escada, sobre as caixas de biscoito, rir debaixo do balcao ... " (Emaux, 1974: 77). Richard Hoggart exprime isso de outra maneira: "0 bolsista pertence, de fato, a dois mundos que nao tern quase nada em comum, 0 da escola e 0 do lar. Uma vez no colegio, ele aprende depressa a utilizar duas pronlincias, talvez ate a se compor em dois personagens e a obedecer alternativamente a dois codigos culturais" (Hoggart, 1970: 352).
Eclaro que ha estranheza da situac;ao escolar vista, percebida e sentida atravils dos repertorios de esquemas de ac;6es constituidos essencialmente no ambito socializador familiar. "Havia algo de bizarro, de indescritivel, a desterritorializaC;ao completa. Nada semelhante ao cafe Lesur, a meus pais, as colegas ... Nem sequer a mesma lingua. A professora fala lentamente, em palavras muito longas, ela nunca procura apressar-se, gosta de conversar e nao como minha mae. 'Pendurem a roupa no varal!' Minha mae grita quando venho do jogo: 'Nao amasse 0 seu paleto. E isso que te dara posiC;ao? . .' Hfl urn mundo entre as duas ... Este mal-estar, este choque, tudo 0 que as professoras diziam, a proposito de qualquer coisa, eu ouvia, olhava, era leve, sem forma, sem calor, sempre cortante. A verdadeira linguagem eu ouvia em casa, 0 vinho, a came, 0 beijo ... Todas as caisas estavam la, os gritos, as caretas, as garrafas viradas. A professora falava, falava, e as coisas nao existiam ... A escola dava a ideia de continuidade, como se fosse divertido, como se fosse interessante, como se estivesse tudo bem. A propria professora fazia a sua emissao de radio, ela lia historias torcendo a boca e rolando bolinhas de pedra para imitar 0 lobo mau. Todo mundo ria, eu tambem ria, a forc;a. Os animais falantes nunca me interessaram. Eu pensava que ela gozava de nos ao contar essas besteiras. Ela pulava tao bem na cadeira que eu achava que ela era um pouco parada, abestalhada, e que nao adiantava contar historias de lobos e cordeiros" (Emaux, 1974: 53-54). Mas ainda nao se colocava a questao da "escolha" de urn ou do outro mundo de referencia. Depois, ao se confirrnar 0 SllCesSO escolar, eo universo escolar que predomi-
na e se toma 0 "ponto de referencia". "Agora so existem os livros de escola, 0 resto eu comec;ava a nao ver" (ibid.: 85-86). "No momento da comunhao solene, da entrada na sexta serle, comeGou a crescer esse sentimento bizarro de nao estar
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exatamente em parte alguma, exceto diante de urn dever, uma composi~ao, urn Iivro no canto do patio, debaixo das coberturas, na quinta-feira e no domingo, escondida no alto da escada. Come~ava a nao ver nada. A ignorar. A loja, 0 cafe, os clientes, e ate meus pais. Nao estOll ai, estOll nos meus deveres, como dizem, nos meus
livros. 'Alinal, voce nao esta ruim?' Falo cada vez menos, isso me inita" (p. 91). Edilicil nao se initar com seus pais quando sao cada vez mais vistos pelos olhos de urn outr~ univers~, a partir de outras maneiras de dizer, de ver, de fazer e de sentir. Mas tambem e dificil esquecer a Iiga~ao indestrutivel, familiar e afetiva, que Iiga pais e filhos. Porque seus pais estao nela, atraves de todos os habitos que ela construiu atraves das rela~6es com eles, despreza-Ios e desprezar a si mesma ... "E a mim que odeio. Subi neles, eles penam no balcao e os desprezo ... Talvez tenha sido eu que impedi que eles comprassem uma bela loja" (p. 164).0 tnl.nsfuga ou 0 "bolsista" sente-se, pOis, "cortado em dois", "sentado entre duas cadeiras" (p. 181), pertencendo a "dois mundos ao mesmo tempo" (Hoggart, 1970: 350)33. Para voltar ao nosso ponto de partida, a saber, a impossibilidade de fazer dos casos de "divisao do eu" urn paradigma geral para uma abordagem da pluralidade do ator, poder-se-ia observar 0 fato de que, como todo ator, os "transfugas de classe" conhecem bern outras contradi~6es ou diferencia~6es intemas (em termos de esquemas de a~ao e de repertorios de esquemas). Entretanto, focalizam-se na contradi~ao principal que ocupa 0 proscenio, isto e, a sua consciencia. Esquecer as outras diferen<;as, aquelas que nao aparecem c1aramente, conscientemente, aos olhos do ator, aquelas que so se revelam na analise resumida de longas entrevistas34 ou apos observa~6es diretas e sistematicas dos comportamentos em contextos sociais variados, revelando as muitas pequenas contradi~6es que a pesquisa nao percebeu, sua heterogeneidade comportamental, seria dar muito valor it subjetividade consciente do ator e it i1usao socialmente mantida da coerencia e da unidade do si-mesmo.
33. Ap6s terem side instalados na nova condi~ao social, as "transfugas" nao estao, por isso, em paz com 0 seu passado. ConsetVam 0 sentimento de uma "insatisfa¢o" perpetua e de ansiedade que pocle levar, as vezes, ate 0 "desequilihrio patoi6gico" (Haggart, 1970; 348); "cortado, pe10 menos culturalmente, de sua classe de origem", a "transfuga" esta sempre "tenso e contraido entre as burgueses" (ibid.: 359). 34. Para quem concorda em ve.-Ias e revela-Ias, as contradi~6es, as omissoes, os silencios e os lapsos estao presentes em toda entrevista aprofundada e urn pouco longa. Mais que os pr6prios discursos, e a pratica de interpretac;ao hornogeneizadora que apaga todo trac;o incOrnodo ou constderado insignificante (no mode10 te6rico escolhido) de sua presenc;a. Por outro lado, ficando na ordem do discurso, a pratica das entrevistas cruzadas, como as que fizemos em Tableaux de families. Heurs et ma/heurs seo/aires en milieux popu/aires (1995a) com professores, pais e filhos, permite reconstruir pacientemente contextos sociais heterogeneos.
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CENA2 Os determinontes do 0<;:60 PRESEN<;:A DO PASSADO, PRESENTE DA A<;:AO
Pode-se distinguir duas grandes tendencias entre as teorias da a~ao e do ator. De um lado estao os modelos que conferem um peso determinante e decisiv~ ao passado do ator, e de modo mais particular a todas as primeiras experiencias (no mais das vezes consideradas homogeneas) vividas na primeira infancia (por exemplo, as diferentes teorias psicologicas oU neuropsicologicas, a teoria psicanalitica1 e a teoria do habitus".)' e, do outro lado, os modelos que descrevem e analisam momentos de uma a~ao ou de uma intera~ao ou uma dada situa~ao de um sistema de a~ao sem se preocupar com 0 passado dos atores (teoria da escolha racional, individualismo metodologico, interacionismo simbolico, etnometodologia). No primeiro caso, as experiencias passadas estao no principio de todas as a~6es futuras. No segundo caso, os atores sao seres desprovidos de passado, obrigados apenas pela logica da situa¢o presente: intera~ao, sistema de a~ao, organiza¢o, mercado, etc. Na primeira ordem, negligencia-se freqtientemente 0 estudo da "ordem da intera~ao", das caracteristicas singulares e complexas do contexte prag1. J. Laplanche eJ.-B. Pontalis indicam, todavia, que com a ideia de "retoque posterior" do passado (de reinscri~ao dos trac;os mnesicos) Iigado a urn novo acontecimento ou a novas situac;6es, Freud proibe "uma Interpretac;ao sumaria que reduziria a concepC;ao psicanaUtica da hist6ria do sujeito a urn determinismo linear que
considerasse apenas a ac;ao do passado sobre
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presente" (1990: 33-34).
2. Em Cadres et mecanismes de /a socialisation dans 10 France d'aujourd'hui (1977: 81-82), Jean-Claude Passeron exprimia muito claramente, nurn paragrafo intitulado "A primeira socializayao: para uma soclologia das experi~nclas originarias", acompanhado Implidtamente por numerosos soci61ogos franceses da epoca e por muitos outros ainda hoje: "0 objeto mais c1aramente design ado pela interrogac;ao te6rica para a pesqui sa ernplrica e, sern dUvida, a socializac;ao exercida nos tr~ primeiros anos da infancia, pois tanto a psicanalise como as teorias antropol6gicas e sociol6gicas da constituic;ao da personalidade social concordam, em tennos diferentes, ern conferir uma importancia prototipica as experi~cias originarias". Eo que mais recentemente diz tambem urn autor norte-americano, Peter E.S. Freund: "A qualidade, 0 grau e a intensidadeda construC;ao social e da interac;ao biossocial dependem do tempo e do momenta da socializac;ao. Estamos mais abertos quando somos muito jovens do que quando somos adultos. A socializac;ao come;a quando 0 organismo hU mano esta inacabado... A socializac;ao primaria tern urn irnpacto profundo sobre 0 organismo" (1988: 848). 4
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matico, imediato da a<;ao e, na segunda ordem, negligencia-se voluntaria ou involuntariamente tudo aquilo que, na a<;ao presente, depende do passado incorporado dos atores. Sem duvida, os modelos do "atortodo inteiro na intera<;ao" ou na "situa<;ao do momento", que 0 definem por seu lugar, seu papel, sua posi<;ao exclusivamente nesse momento presente, produzem conhecimentos sobre 0 mundo socia\. No entanto, nao e dentro desta tradi<;ao sociologica que temos inscrito nossos trabaIhos de pesquisa e nossa reflexao cientifica. Estas sociologias do ator sem passado sao bastante formais e vazias do ponto de vista da analise dos atores e se interessam, no fundo, menos pelo ator agindo do que pela a<;ao per 5e (seus contextos, seu curso, suas modalidades, sua gramatica), seja qual for 0 passado do ator que a efetua. Uma sociologia sem 0 peso de qualquer teoria da memoria, do hllbito e do passado incorporado, uma sociologia de inspira<;ao, de algum modo, antiproustiana ... Mas
e tao legitima como outras literaturas para inspirar outros soci61ogos.
Nossa inten<;ao e tratar teoricamente a questao do passado incorporado, das experiencias socializadoras anteriores, evitando negligenciar ou anular 0 papel do presente (da situa<;ao) fazendo como se todo nosso passado agisse "como um so homem", em cada momento de nossa a<;ao; deixando pensar que seriamos, em cada instante - e iniciassemos a cada momento -, a sfn tese de tudo 0 que vivemos anterionnente e que 5e trataria entao de reconstruir esta sintese, este principia unificador, esta formula (magica) geradora de todas as nossas prilticas. De fato, a questao do peso relativo das experiencias passadas e da situa<;ao presente para explicar as a<;6es esta fundamentalmente ligada a questao da pluralidade intema do ator, tambem ela correlativa a pluralidade das logicas de a<;ao nas quais 0 ator foi e e levado a se inscrever. Com efeito, se 0 ator e 0 produto de uma condic;ao familiar homogenea e univoca de existencia x, e durante a sua vida encontra apenas situac;oes identicas au analogas a x, entaD passado e presente sao um. Nao mais existe diferen<;a nenhuma entre 0 que 0 ator conheceu anteriormente e 0 que conhece atualmente e observa-se entao, segundo a expressao de Pierre Bourdieu inspirando-se na fenomenologia, uma profunda rela<;ao de cumplicidade ontologica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas da situa<;ao social, cumplicidade que esta na base da illu5io, isto e, da rela<;ao encantada a situa<;ao - 0 atar vive a situa<;ao como 0 peixe na agua. Entao nao ha mais, propriamente falando, nem passado nem presente (e 0 que diz, exatamente, uma formula do tipo: "[habitos) ajustados por antecipa<;ao as situa<;6es nas quais funcionem e cujo produto sao", 1997: 174), pois 0 atorviveu e continua a vivernum espa<;o social homogeneo que nunca se transforma. Numa formula do tipo "passado que sobrevive no atual e que tende a se perpetuar no futuro atualizando-se em praticas estruturadas segundo seus principios" (1980a: 91), pressup6e-se a homogeneidade, a unicidade do passado e liga-se prematuramente 0 problema do encontro entre urn "passado incorporado" e um "presente" diferentes ou contraditorios. Portanto, a articula<;ao passado-presente so toma todo 0 seu sentido quando "passado" (incorporado) e "presente" (contextual) sao diferentes, e a articula<;ao toma-se particularmente importante quando os proprios "passado" e "presente" sao fundamentalmente plurais e heterogeneos. Se a situa<;ao presente nao e negli-
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genciavel, e, porum lado, porque existe a historicidade que implica que aquilo que foi incorporado nao e necessariamente identico ou esta em rela~ao harmoniosa com 0 exigido pela situa~ao presente e, por outro lado, porque os envolvidos nao sao "urn", ista €:, nao sao redutiveis a uma formula geradora de suas praticas, a uma lei interna, a urn nomos interior. 5e as praticas "nao se deixam deduzir nem das condi~6es presentes, que aparentemente as suscitaram, nem das condi~6es passadas, que produziram 0 habitus, principio duravel de sua produ~ao" (ibid.: 94), f6rmula perfeitamente equilibrada a qual e dificil nao aderir, 0 modelo teorico proposto implica na maioria das vezes uma relativa primazia das experiencias passadas na medida em que estas estao "no principia" nao 56 da compreensao das experiencias uiteriores, mas tam-
bem de sua sele~ao (de sua aceita~ao ou rejei~ao, de seu evitamento ... ): "De modo diferente das avalia~6es eruditas, que sao corrigidas apos cada experiencia segundo as regras rigorosas de calculo, as antecipa~6es de habitos, especie de hipoteses praticas baseadas na experiencia passada, conferem um peso desmesurado as primeiras experienciasj realmente sao as estruturas caracteristicas de uma c1asse determinada de condi~6es de existencia que, atrav€s da necessidade economica e social que fazem pesar sobre 0 universe relativamente aut6nomo da economia domestica e das rela~6es familiares ou, melhor, atrav€s das manifesta~6es propriamente familiares dessa necessidade extema (forma da divisao de trabalho entre os sexos, universe de objetos, modos de consumo, relaC;:6es com os parentes, etc.), produzem as estruturas do habitus que estao, por sua vez, no principio da percep~o e da aprecia~ao de toda experiencia ulterior" (p. 90-91). Ou ainda: "0 peso particular das experiencias primitivas resulta, de fato, em sua essencia, do fato de que 0 habitus tende a garantir sua propria constancia e sua propria defesa contra a mudanc;:a atrav€s da sele~o que faz entre as informa~6es novas, rejeitando, em caso de exposi~ao fortuita ou for~ada, as informa~6es capazes de questionar a informa~ao acumulada e, sobreludo, desfavorecendo a exposi~o a tais informa~6es. [Entao Pierre Bourdieu da um exemplo de homogeneidade.) Pela 'escolha' sistematica que faz dos lugares, dos acontecimentos, das pessoas suscetiveis de serem freqUentadas, 0 habitus tende a se proteger das crises e dos questionamentos criticos garantindo para si urn meio ao qual est!! previamente tao adaptado quanto possivel, quer dizer, um universo relativamente constante de silua~6es proprias a reforc;:ar suas disposi~6es oferecendo 0 mercado mais favoravel para seus produtos" (p. 102). AS MUITAS OCASIOES DE DESAJUSTAMENTO E DE CRISE
5e 0 autor tem razao em sublinhar a propensao dos atores em querer evitar as
crises majores, ista e, as situac:;6es que contrariariam muito fortemente ou duravel-
mente seu programa de socializa~o incorporado, nao somente confunde propensao (ou desejo dos atores) e situac;:6es reais (que nao permitem sempre tais evitamentos nem deixam verdadeiramente escolha aos atores), mas esquece a existencia de muitas crises polimorfas, que fazem 0 dia-a-dia dos atores. Com efeito, fOi para privilegiar as grandes crises, ligadas a transforma~6es importantes de po-
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sociais no espa~o social ("salvo transtomo importante (uma mudan~a de posi¢o, por exemplo), as condi~oes de sua forma¢o sao tambem as condi~oes de sua realiza~ao", Bourdieu, 1997: 178), que se acabou negligenciando todas as crises pequenas ou medias que os atores sao levados a viver dentro de uma sociedade diferenciada. Considerando apenas certos deslocamentos importantes no espa~o social em termos de volume e de estrutura de distribui~ao do capital possuido (casos de decadencia social ou de grande mobilidade social vertical ascendente), acaba-se esquecendo que existem tambem deslocamentos e/ou mudan<;as no universo familiar (tornar-se pai, divorciar-se ... ), no universo das amizades,
etc., mas tambem na ordem socioprofissional (perda do emprego, mudanca de empresa, mudan~a de ramo profissional ou de tipo de emprego). Assim, privilegiando 0 caso das situa~oes "felizes" onde, como diz Naville, "0 homem esta no seu negocio", 0 modele do ajustamento magico dos habitos incorporados as situa~oes (com as quais 0 ator se confrontou)3 permanece cego as suas muitas ocasioes de desajustamento, de soltura, produtoras de crises e de reflexoes - as quais evidentemente nao devem ser entendidas como reflexoes eruditas ou metafisicas - sobre a a~ao, sobre os outros e sobre si. Crises de adapta~ao, crises da Iiga~ao de cumplicidade ou de conivencia ontologica entre 0 incorporado e a situa<;ao nova, essas situa<;6es sao numerosas, multifonnes e caracterizam a condi~ao humana nas sociedades complexas, plurais e em transforma¢o. 0 modelo do ator feliz, "em seu negocio", que se sente "como urn peixe na agua" porque esta feito para a agua e a agua esta feita para ele, ator nao tensionado ou trabalhado por outras pulsoes, habitos incorporados ou tendencias, mas inteiramente na sua a¢o, este modele no fundo corresponde mais ao que se pode imaginar da vida de urn animal em seu elemento natural do que da vida de urn homem. Apenas para lembrar, pode-se fazer uma lista - sem duvida nao exaustiva dos casos de desvio, desatrelamento ou de desajustamento que a observa~ao do mundo social permite distinguir. 1) As situa~oes de contradi~oes culturais for~adas nas quais os atores nao podem fazer outra coisa que viver de modo duravel uma situa¢o em contradi¢o cultural com 0 que eles incorporaram ate entao (por exemplo, 0 caso dos numerosos alunos obrigados a freqUentar de modo duravel mesmo quando a escola os poe verdadeiramente em crise, 0 "fracasso escolar" e as suas diversas manifesta~oes sao a expressao de uma tal situa~ao de crise [Lahire, 1993al ou a situa¢o dos indios do Mexico, entre os seculos XVI e XVIII, aos quais os espanhois impuseram formas culturais ocidentais [Gruzinski, 1988]);
2) os deslocamentos individuais ou coletivos mais ou menos forcados de urn universe social para outro (por exemplo, hospitaliza~ao por muito tempo, servi~o militar, prisao, imigra¢o, agrupamento/deslocamento de popula~oes ... );
3. Se Pierre Bourdieu precisa recentemente que se trata de urn "caso particular mas particuiannente freqiiente" (1997; 174), a ret6rica da portadeixada entreaberta nao muda nada pelo fato que nao se tenninaria de citar as te~:tos oode 0 autar faz disso 0 modelo geral de todas as praticas. Pode-se comparar aqui a falta ao principia de caridade e falta ao principio de nao-contradirao.
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3) as rupturas biograficas ou transforrna~6es importantes nas trajet6rias individuais (por exemplo, decadencia social brusca ou desclassifica~ao pelo alto, casa4 mento, div6rcio au separac;ao , nascimento do primeiro mho, aposentadoria, perda do emprego)'; 4) os desvios entre certas propriedades sociais do ator e as de seu meio social, desvios que lembram aos atores a ausencia de "cumplicidade ontol6gica" entre uma parte de suas disposi~6es e a situa~ao que os atores vivem (por exemplo, ser o unico advogado negro num grande escrit6rio de advocacia em Nova York; uma mulher owpar uma posi~ao profissional socialmente considerada como masculina e vice-versa6 j vir de uma comunidade religiosa au etnica e freqlientar, depois de urn casamento misto, membros de Dutra comunidade7, etc.); 5) as tens6es entre os habitos (tendencias) concorrentes, que levam a viver constantemente em desvio e na rna conscil3:ncia permanente (e 0 caso das mulheres divididas entre 0 seu papel domestico e seu papel profissional ou 0 caso, ao mesmo tempo pr6ximo e muito diferente, dos pais investidos em sua esfera profissional, que vivem na ma consciencia sua ausencia do lar e da educa~ao dos fiIhos, mas que, inversamente, pensam no seu trabalho - que nao progride - quando dedicam certos momentos a familia); 6) os multiplos pequenos desvios (que provocam pequenos estados de crise: nervosismo, sentimentos de mal-estar, raiva, enfado, fugas, distra~ao, etc.) entre experH~ncias passadas incorporadas e situac;6es novas; essas situac;6es nao sao necessariamente novos questionamentos profundos de situac;6es de socializac;ao vividas anteriormente, mas tambem nunca as confirrnam na sua integralidade e sup6em incorpora<;6es suplementares heterogeneas mas nao contraditorias; 7) as adapta~6es minimas sem convic~ao (com distancia em rela,ao ao papel) possibilitadas pelo fato de 0 estoque de esquemas incorporados nao ser perfeitamente homogeneo e permitir que os atores se ap6iem numa parte deles para "suportar" temporaria e duravelmente uma situa~ao e se adaptar a ela sem muito sofrimento (sobretudo se os outros esquemas incorporados conseguem atualizar-se de outro modo, em outros contextos, em outras situac;6es sociais). 4. Leslie McCall cita 0 caso de uma mulher mu<;:ulmana - Shabano - casada ha quarenta anos, com villios filhos eque se ve "ejetada" da sua casa ap6s urn div6rcio. Essa ruptura pOe bruscamente emquestao as rotinas co· muns da vida cotidiana e os valores que levavam consigo e provoca em Shabano uma consdfulcia aguda {"'a sharp consciousness") da situa~ao das mulheres numa cultura patriarca!. Saindo dessas situac;:oes de domina· das, essas mulheres podem, alguns anos mais tarde, dizer: "nao era eu!" Leslie McCall condUi dizendo: "Que· bra·se a cumplicidade ontol6gica entre 0 habitus e 0 campo: 0 ajustamento nao esta mais em condic;:6es de explicar a relac;:ao entre as posic;:oes e as disposic;:6es" (1992: 849). 5. E nao e por acaso se e em algum desses grandes momentos que mais amiUcle balizam·se a prAtica do diario pessoal: divorcio, aposentadoria, passagem da adolescencia, etc. (Fabre, 1993: 82). 6. Ver 0 estudo de Christine L. Williams sobre mulheres na Marinha au sobre homens praticando (1989).
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7. Os romances de Albert Memmi (1984) e de Degracia (1968) sao belos exemplos de tais desvios. "Quando estou na tua casa, com amigos cristaos, sinto-me sufocada, sem jeito, porque sempre me fazem perguntas. Sinto-me obrigada a responder com mentiras a essas perguntas. Quando estOll de volta num ambiente judeu, tambem nao me sinto avontade, pois tenho a sentimento de que nao pertenc;:o mais inteiramente a essa comunidade. Entao digo para mim: teu lugar e em lugar nenhum. E fico triste" (Degracia. 1968: 96).
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Esses desvios e situa~6es de crise raramente estao isolados e podem combinar-se a vontade, agravando as preocupa~6es, multiplicando os pequenos ou grandes sofrimentos, as interroga~6es e as reflexoes sobre sua a~o e tomando a existencia pesada e opressiva.
Por isso I? impossivel dizer - a nao ser de modo muito aproximado, muito abstrato e muito esquematico - que "a mesma historia habita ao mesmo tempo 0 habitus e 0 habitat, as disposi~6es e a posi~ao, 0 rei e sua corte, 0 empresario e sua empresa, 0 bispo e 0 bispado" e que "num certo sentido a historia comunica-se consigo mesma, reflete-se na sua propria imagem" (Bourdieu, 1981). Isso significaria, por exemplo, que 0 empregador I? redutivel a sua atividade de empresario e que nada perturba esse miraculoso ajustamento de seu habitus de empregador a sua empresa. t preciso que ele tenha, de certo modo, "nascido" (e se criado) na empresa. Se a formula do ajustamento e da correspondencia disposi~6es-posi~0 . (ou, por outro lado, disposi~6es/condi~6es de existencia) I? interessante teorica8 mente, no entanto ela nunca etota1mente verificavel empiricamente au historicamente, e
e por essa razao que as disposi<;6es naG Coram constituidas numa (mica
situac;ao social, num unico universo social e numa (mica "posic;ao" social. Urn ator
(e suas disposi~6es) nunca pode, pois, ser definido por uma so
"situa~ao"
nem se-
quer por uma serie de coordenadas socia is. A PLURALIDADE DO ATOR E AS ABERTURAS DO PRESENTE Aquele, que ontem vistes tao auenturoso, noo estranheis se 0 uirdes tambem po/troo amanha: ou a co/era, ou a necessidade, ou a companhia, ou 0 vinho ou 0 som de uma trombeta 'he deram coragemj noo e uma coragem leila com discursos; essas circunstancias 0 teriam enfraquecido; ndo serio de admirar se ele se tornasse outro por outras circunstancias controrios (Montaigne. Essais, livro segundo).
o "presente" tem mais peso na explica~ao dos comportamentos, das praticas ou das condutas, se os atores sao plurais. Quando estes foram socializados em condi~6es particularmente homogeneas e coerentes, suas rea~6es as situa~6es novas podem ser muito previsiveis. Em compensa~o, quanta mais os atores sao o produto de formas de vida sociais heterogeneas, atl? contraditorias, tanto mais a logica da situa~ao presente desempenha um papel central na reativa~ao de uma parte das experiencias passadas incorporadas. 0 passado, portanto, esta "aberto" de modo diferente segundo a natureza e a configura~ao da situa~ao presente. 8. Por isso Roger Brubaker observa, a partir dos resultados fomecidos na La Distinction, que as rela<;6es entre os indicadores selecionados pelos soci61ogos para "medir" as condi<;6es de existeocia e as que selVem para apreender suas disposi<;6es sao "discouragingly we~k" (1985: 762).
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Mais do que supor a sistematica influencia do passado sobre 0 presente ou, dito de outro modo, mais do que imaginar que todo 0 nosso passado, como urn bloco ou uma sintese homogenea, influencia a cada momento sobre todas as nossas situa~oes vividas (as abordagens estatisticas, probabilistas, nos ensinam que 0 passado de urn ator abre - e fecha - SeU campo de possibilidades presentes, mas em nenhum caso podem descrever a rela~ao passado-presente em temnos de causalidade, por exemplo), 0 campo de investiga~ao proposto aqui levanta a questao das modalidades de desencadeamento dos esquemas de ac;ao incorporados (produzidos no decorrer do conjunto das experiencias passadas) pelos elementos ou pela configurac;ao da situac;ao presente, isto e, a questao das maneiras como uma parte - e somente uma parte - das experiencias passadas incorporadas e mobilizada, convocada e despertada pela situac;ao presente. Se quisennos examinar mais de perto, este interesse cientifico ja esta presen-
te nas reflexoes sociologicas baseadas em estatisticas, as quais, seguindo 0 usa rotineiro e preguic;oso que consiste em utilizar invariavelmente a lista classica das variaveis independentes (categoria socioprofissional, grau de estudo, sexo, idade ... ), procuram determinar as variaveis mais pertinentes em fun~ao da especificidade de seu objeto. T rata-se, a cada vez, por urn lado, de encontrar as variaveis mais pertinentes em func;ao do objeto estudado, isto e, as que resumem melhor a serie particular, especffica dos resumes de experiencias (ou esquemas) ativados no caso bern preciso estudado (pratica cultural, consumo de alimentos, comportamento familiar...) e criam as diferenc;as maximas dentro da popula~ao estudada. Por outro lado, trata-se de detemninar 0 indicador mais adequado dos contextos favoraveis ou desfavoraveis a ativa~ao ou desencadeamento dos esquemas em questao" Ainda quando as variaveis classicas continuam "funcionando" bern, 0 sociologo sempre deve perguntar-se pelo que, em tal variavel, explica as diferenc;as constatadas neste ou naquele domfnio particular. Por serem sistematicamente (mais all men os) discriminantes, as varh3.veis sinteticas acabam nEW nos dizendo nada sobre 0 funcionamento do mundo social. Por exemplo, as pesquisas historicas tendem a mostrar a ausencia de uma relac;ao direta entre alfabetiza~ao (ou capacidade de escrever) e praticas da correspondencia. Tudo se passa como se "0 dominio de uma capacidade (de escrever) em si nao fosse suficiente para suscitar a sua mobilizac;ao na pratica. Para isso sao necessarias outras razoes. 0 desenclave econ6mico e social, que multiplica as cir-
cunstancias em que escrever uma carta e uma necessidade, que abre espa~os ha muito tempo fechados em si mesmos, que leva necessariamente as rela~oes a distancia, e uma dessas" (Chartier, 1991: 12). 0 mero contexto institucional favoravel (uma boa rede de agencias de correios) por si so nao constitui urn poder desencadeador suficiente (" A forte densidade dos primeiros nao significa sempre fortes indices para os correios", ibid.: 19). Verificamos, na Fran~a contemporanea, que, ao nivel de diploma equivalente, as mulheres sao muito mais praticantes da escrita
9. Fai isto que realizamos a prop6sito do mundo dos estudantes tornando 0 peso relativQ, segundo as domlnios ou as dimens6es das praticas escalaTes, da situa~ao escalar universiUnia e da situal;ao social "exterior" (Lahire, 1997a).
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domestica que os homens, desenvolvendo as suas competencias muito mais por posic;ao intrafamiliar que por forma~ao escolar (Lahire, 1993d; 1995b e 1997b). Observa-se, paralelamente, confusao semelhante dos efeitos de competencias escolares a prop6sito das prilticas de leitura: alunos que obtem boas notas em frances nao sao necessariamente grandes leitores e podem ate, para uma parte nao negligend"vel deles, ser leitores fracos (Singley, 1993a). Segundo os casos (os objetos, os dominios de pratica ... ), variaram as variilVeis que pennitem explicar com o maximo de pertinencia os desvios nas prilticas. Como diz com muita justeza 0 soci6logo americana Anselm L. Strauss, essas condi~6es sociais (a classe social, 0 sexo ... ) "podem ser condi~6es importantes ou insignificantes segundo os contextos especificos da vida social que estao em condi~ao ou nao de influenciar" (Strauss, 1993: 211)10. Se a situa~ao em si nao explica nada, e ela que abre ou deixa fechados, desperta ou deixa em estado de vigilia, mobiliza ou deixa como letra morta os habitos incorporados pelos atores l l Tanto negativamente (pelo fato de deixarem "inexprimidos" ou "inatualizados") como positivamente (pelo fato de permitirem "exprimir" ou "atualizar"), os elementos e a configura~ao da situa~ao presente tem um peso inteiramente fundamental na cria~ao das praticas. E e exatamente isto que a pSicanalise freudiana confirma quando constata que "uma lembran~a pode ser reatualizada num certo contexte associativD, ao passo que, num outro contex-
to, sera inacessivel a consciencia" (Laplanche & Pontalis, 1990: 491). E e paradoxalmente em Henri Bergson, geralmente considerado como um autor anti-socioI6gico, que podemos buscar os elementos de uma analise sociol6gica da rela~ao entre 0 presente e 0 passado. Transformando levemente certas f6rmulas do fil6sofo (e deixando de lade outra parte delas 12), pode-se dizer que 0 presente (a situa~ao presente) tem 0 poder de "deslocar 0 passado" e de s6 deixar vir a ele as lembran~as ou os habitos suscetiveis de "caberem" na "atitude presente" (" 0 que, conseqiientemente, parece a percep~ao presente do ponto de vista da a~ao a realizar"). Esta mesma "atitude presente" ("as necessidades da a~ao presente") possui tambem 0 poder negativo de "inibi~ao" do que, do passado incorporado, nao pode encontrar, em tal contexto, 0 caminho de sua ativa~ao. Eo "do presente", escreve Bergson, "que parte 0 chamado ao qual a lembran~ [poder-se-ia dizer 0 mesmo do habito] responde" (1908: 97, 165, 167 e 184).
10. Pierre Bourdieu evoca (em Labov, 1983: 71) 0 "peso relativo" do nive1de instrut;ao ou da origem social segundo 0 ambito cultural considerado (pintura e cinema, par exemplo). Poder-se-ia dizer que nao sao as esquemas ou hftbitos culbJrais que sao ativados em todos as casas. 0 campo cinematografico, au melhor ainda, 0 das atividades esportivas, pode ativar g05t05 culturais construldos em seu universe social de origem, ao
passe que 0 ambito literario desencadeara os esquemas escolannente adquiridos. 11. E importantedeixar claro que e raro - mais adiante sera dado urn exemplo com a caso de estudantes universitanos -que os atores fa~am "escolhas" dedeixar em estado de vigilia ou de atival;ao os hftbitos ou esquemas da experiencia. Na grande maioria dos casos, e a situal;ao que "decide" sabre essas inibi~oes e €SSes desencadeamentos. 12. Bergson emprega f6nnulas que parecem em total contradiyj.o com as elementos que destacamos. Par exemplo, escreve que "nosso carater, sempre presente em tOOas as nossas decisoes, e a slntese atual de todos os nossos estados passados", ou ainda, que 0 homem "ajunta", "organiza a totalidadedesua experiencia naqui!o que chamamos de seu carMer" (1908: 158 e 189).
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Eo bastante surpreendente ver como a tradic;ao sociolagica, que poe 0 acento no "peso do passado", pode, no final das contas, negligenciar 0 papel da situac;ao presente que "decide", nao obstante, muitas vezes, 0 que do passado poden" ressurgir e agir na ac;ao presente. Eo este 0 caso quando Pierre Bourdieu evoca a analise que Erich Auerbach propoe de uma passagem de 0 passeio 00 farol de Virginia Woolf para conduir pela importancia do passado nas ac;oes e reac;oes comuns (Bourdieu & Wacquant, 1992: 99). 0 exemplo revela tambem a importfulcia do acontecimento desencadeador (por exemplo, provar urn par de meias). Tambem e suficiente pensar nesses esquemas de ac;ao que nao encontram mais - devido a transformac;oes sociais radicais ou transplantes individuais mais ou menos forc;ados de urn universe social a outro (por exemplo, prisao,longa hospitalizac;ao, imigrac;ao, situac;ao de guerra, brusca decadencia social ou fulgurante ascensao sociaL) - as condic;oes de sua atualizac;ao feliz, harmoniosa, para recordar ou se convencer da importancia da situac;ao presente. D1SPOSI<;:OES SOB CONDI<;:AO
A caracterfstica essencial de um termo disposicional - a saber, seu aspecto condicionof - se Sj en tao bjdiminui-se no maioria das vezes para dar lugara um "ata" incondicional (J. van Heerden & AJ. Smolenaars. "On traits as dispositions: an alleged truisml. Desconhecer que as disposi<;6es resultam deste exercicio continuo da atividade e 0 Jato de urn esp/rito completamente estupido (Arist6teles. Etica a Nic6maco).
As "disposic;oes" fisicas (por exemplo, fragilidade, inflamabilidade, elasticidade, solubilidade ... ) ou sociais (disposic;oes a agir, sentir, avaliar, pensar, apreciar dessa ou daquela maneira) nunca sao diretamente observadas pelo pesquisador. Elas sao inobservaveis enquanto tais (0 que os lagicos empiristas como Quine nao deixaram de acentuar - Crane, 1991: 1), mas considera-se que estao "no principio" das praticas observadas. 0 pesquisador, em definitivo, reconstruiu-as com base em 1) a descric;ao (ou reconstruc;ao) das pmticas, 2) a descric;ao (ou a reconstruc;ao) das situac;oes nas quais essas praticas desenvolveram-se, e 3) a reconstruc;ao dos elementos julgados importantes da histaria (itinemrio, biografia, trajetaria, etc.) do praticante. Seria uti! continuar a falar de "disposic;ao", se acaso houvesse percepc;ao de que este termo e mais util a retarica tea rica que a compreensao e a explicac;ao das praticas sociais? Trata-se urn conceito uti! ernpiricarnente, sem 0 qual a pesquisa, ou os relatarios de pesquisa nao seriam 0 que sao, ou trata-se do que Michel de Certeau nao hesitava em chamar de "realidade mistica ", uma "casa suplementar" (entre estruturas e praticas) da qual 0 socialogo precisaria para completar a sua teoria (Certeau, 1980: 118-123)?
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Nao sao os lilosolos contemporaneos que vem apoiar a saciolago em diliculdade com esta questao, pois se lor procurado, encontram-se tanto argumentos em deslavor dessa no~ao como argumentos a lavor. Assim, Jacques Bouveresse, seguindo Hilary Putnam, nota que para certas atitudes praticas, como a que consiste em saber utilizar uma Iinguagem, "uma descri~ao do conhecimento pratico que toma possivel a pratica em questao corre 0 risco de nao ser afinal muito dilerente de uma descri~ao apropriada da propria pratica" (1995: 582). De lato, 0 que loi dito alem disso ao se lalar de "compelencias IingUisticas" ("disposi~6es" para produzir enunciados IingUisticos) para" explicar" as "performances IingUisticas" dos sujeitos lalantes? Aqui nao se esta longe da virtus dormitiva do opio. Mas Bouveresse desenvolve 0 argumento enos permite esclarecer 0 problema ou, em todo caso, coloca-Io melhor: "As explica~6es em termos de 'disposi~6es' ou de 'habitus', por nao poderem ser 0 objeto de uma caracteriza~ao sulicientemente independente da simples descri~ao do genero de regularidades comportamentais as quais dariam lugar, podem evidentemente ser suspeitas de permanecerem essencialmente verbais. Como observou Quine, uma explica~ao disposicional se parece com um reconhecimento de divida que se espera ser capaz de remir um dia produzindo, como laz 0 quimico para um predicada disposicional como 'soluvel na agua', a descri~ao de uma propriedade de estrutura correspondente" (ibid.: 592-93). a exemplo quimico nos parece totalmente esclarecedor e pode-se laze-Io trabalhar para tirar disso uma serie de conseqUencias. Imaginem 0 (muito) modesto protocolo experimental seguinte: toma-se um pouco de a~ucar e um copo cheio de agua, mergulha-se 0 a~ucar na agua e constata-se que se dissolve. Pode-se resumir 0 resultado da experiencia dizendo que a "qualidade" ou a "propriedade" do a~ucar e ser soluvel na agua? Pode-se dizer que 0 a~ucar "tem" esta propriedade ("solubilidade") no sentido de uma "potencialidade existente", de uma "polencia" antes de qualquer contato com a agua, retomando assim a distin~ao aristotelica leita entre "potencia" e "ato" (hexis e energeia)? Pode-se dizer que a "disposi~ao a ser soluvel" (solubilidade) e "revelada" pela agua? au ainda, que a "solubilidade" do a~ucar e "atualizada" no contato com a agua? Ea agua um simples terreno de atualiza~ao, um lugar de "revela~ao" de uma propriedade "em si", de uma propriedade substancial? au entao e a agua a reprodutora dessa "solubilidade", que nao pertence nem a agua nem ao ac;ucar, mas ao ponto de seu encontro? A agua nao tem 0 poder de dissolver todo produto; 0 a~ucar nao se dissolve no ar; nao haveria, portanto, nenhuma propriedade em si alojada em alguma parte no a~ucar e pode ate parecer desejavel heuristicamente, para nao reificar 0 produto com uma intera~ao, evitar lalar da "solubilidade" do a~ucar. Mas pode-se descrever, como come~amos a lazer, 0 ato de disso/w;iio do a(ucar na agua. A propriedade ou a disposi~ao em questao e uma "propriedade relacional", uma "propriedade de intera~ao" e parece prelerivel, as vezes, se ater a descri00 dos atos em vez de pressupor uma "potencia" "atualizando-se" na ocasiao (no "acidente" que a "ocasiao" constitui) do encontro com a agua. Em todo caso, atribuir uma substancia a um objeto ou uma "disposi~ao" a um ator e apostar (embora, em
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certos casos - as ciencias fisico-quimicas -, quem aposta esteja certo de ganhar, ao passo que em outros casos permanece no raciocinio probabilista) na propensao au na tendencia do objeto, da substancia ou do ator a agir (ou reagir) de uma cetta maneira em circunstdncias determinadas. Na ordem dos comportamentos sociais, selia muitissimo ingenuo jogar com (ou sobre) as palavras distinguindo retoricamente a que selia apenas 0 "desencadead or" ocasional desses comportamentos (0 acontecimento au 0 contexto) de seu "verdadeiro determinante" (a disposi~ao incorporada). De fato, nem 0 acontecimento "desencadeador", nem a disposi~ao incorporada pelos atores podem ser designadas como verdadeiros "deterrninantes" das praticas (0 que supolia a existi!ncia bastante improvavel de um modelo causal a a~ao humana). Com efeito, aqui a realidade e relacional (au interdependente). comportamento ou a a~ao e o produto de um encontro no qual cada elemento do encontro nao e nem mais
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nem menos "determinante" que 0 outro
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Colocando 0 acontecimento au 0 con-
texto desencadeador como uma simples "ocasiao" de Iiberar a potencia ou a potencialidade virtuais dos esquemas ou das disposi~6es, seria finalmente 0 modelo saussuriano da palavra como simples atualiza~ao (exemplifica~ao ou i1ustra¢o) da lingua (c6digo ou sistema) que seria sub-repticiamente posto em funcionamento. Mas sabe-se quanta esse modelo impediu, em seu tempo, 0 estudo das praticas de Iinguagem e dos contextos de enuncia~ao. Por outro lado, ao proceder dessa maneira, apaga-se completamente 0 fato de que a ausencia dos desencadeadores de acontecimentos ou contextuais em questao (ou a presen~a de outros tipos de desencadeadores) tern 0 poder negatiuo de deixar em estado de vigilia (ou de letra mortal ou de inibir, conforrne os casos, lembran~as, competencias, disposi~6es, atitudes, habitos e esquemas de a~ao. Como acentuam J. Van Heerden e AJ. Smolenaars, "e possivel imaginar que urn objeto ou que uma pessoa tenha uma certa disposi~ao que nunca se deixa ver (ou raramente) porque sua manifesta¢o e bloqueada por outros fatores" (1990: 299). Um plimeiro limite da compara¢o entre 0 peda~o de a~ucar e 0 ator, por um lado, a agua e a situa¢o presente, por outro lado, reside no fato de que 0 a~ucar nao tern "passado" e reagira, em qualquer agua (H 20), mais ou menos da mesma maneira. a~ucar nao constituiu a sua "disposi~ao a se dissolver" atraves da hist6ria dos contatos passados com a agua, ao passo que 0 ator e 0 produto de suas multiplas experiencias passadas, das multiplas aquisi~6es - mais ou menos acabadas - feitas durante situa~6es vividas anteliorrnente14. Portanto, entre 0 ator e as situa~6es sociais ha uma profunda conivencia, uma especie de comunhao natural,
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13. Em vez de "causa" au de "efeito", certos filosafos preferem falar, inclusive para realidades fisicas, de redprocal disposition partners: "Quando 0 sal dissolve-se na agua, a sal e a agua sao parceiros reciprocos" (Crane, 1996: 9), 14. Como escreveu Paul Ladriere: "Assim a pOOra. quese dirige naturalmente para baixo, nao poderia habituar-se a se dirigir para cima, mesmo que rnilhares de vezes tentassemos acostuma-Ia a isso atirando-a no ar. Quanta as virtudes, ao contrario, sua posse sUpOe um exerdcio anterior, como e tambem 0 caso para as outras artes. De fato, as coisas que necessitaram ser aprendidas para se fazer, e fazendo-as que as aprendemas" (1990: 24).
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sendo 0 ator 0 produto da incorpora<;ao de muitas situa<;oes. A ele poe-se a questao do modo de acumula.,ao-reestrutura.,ao das experiencias vividas e da atualiza<;ao desse capital de experiencias (incorporadas sob a forma de esquemas) em fun<;ao das situa<;oes encontradas. Urn segundo limite e que, se as disposi<;oes, sejam elas fisicas ou sociais, so se manifestam em condi<;6es ou circunstdncias particulares (por exemplo, a solubilidade do a<;ucar na agua; uma situa<;ao social S), 0 resultado do encontro e mais ambiguo quando se trata de disposi<;6es e de condi<;oes sociais. De fato, sempre ha a incerteza quanto a 1) 0 que, na situa<;ao S, 0 ator A vai "reter" e 2) 0 que, do ator A, sera desencadeado pela situa<;ao S. Nao e muito possivel encontrar "condi<;oes sociais" e "atores" tais que fosse possivel predizer com certeza a manifesta<;ao de uma disposi<;ao singular, como a dissolu<;ao do a<;ucar na agua. o determinismo sociol6gico nunea e tao univoco como 0 determinismo fisko au quimico (Becker, 1994). 0 comportamento de urn ator certamente e totalmente determinado socialmente, mas e impossivel prognosticar tao facilme~te como no caso da experiencia quimica 0 aparecimento desse comportamento. Isto e devido a complexidade social de uma situa.,ao (nunca redutivel pelo sociologo a uma serie limitada de parametros, ao contrario da redu.,ao da situa.,ao a uma formula do tipo H 20), que, ademais, nunca e totalmente identica as que 0 ator viveu anteriormente (diferente da agua, que continua identica a si mesma), mas tambem a complexidade intema de urn ator cujo estoque de habitos (de esquemas) e mais ou menDs heterogeneo. Levando em conta essas diferen<;as, 0 exemplo do a<;ucar e da agua mostra a tendencia ao verbalismo e a reifica<;ao que espreita aquele que fala rapidamente demais a linguagem das "disposi<;6es" substancializando realldades de intera<;oes.
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risco sempre e grande 1) de esquecer a dimensao condicional (circunstanciaI, contextuaL.) das disposi<;oes, 2) de evitar sua natureza cientificamente construida 15 ou 3) de dissociar progressivamente a palencia dos atos que a constituiram geneticamente. Os casas de abuso de linguagem (no sentido de Wittgenstein) sao muito numerosos entre os adeptos da explica<;ao disposicional em ciencias sociais. Por exemplo, ter-se-a comumente - e as vezes tambem cientificamente - a tenta<;ao de reificar em tra<;os de personalidade os comportamentos ou as atitudes de urn ator que sao 0 produto de uma socializa<;ao passada e da situa.,ao na qual 0 passado incorporado e atualizado. Diz-se, entao, de alguem que ele est€! "calmo", "ansioso", "desdenhoso", "agressivo", etc., quando estas "disposiC;6es" na~ sao
propriedades inscritas nele mas realidades relacionais (intera<;6es) que apenas sao observadas no encontro entre ele e alguma coisa ou alguem. Converter em linguagem disposicional (solubilidade, agressividade ... ) 0 que pode mais simpIesmente ser descrito como urn comportamento situado (dissolve-se na agua, foi agressivo para com 0 seu companheiro) nao aumenta nosso conhecimento do mundo so-
15.
Eevidente que as debates cientificos estejam, para cada estuda dado. abertos para a questao de saber se as series de fatos obselVados sao bem interpretaveis como manifestalfoes de uma mesma disposic;ao subjacente.
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cia!. De fato, se a disposi<;ao de um ator so se deixa ver nos momentos de a<;ao, nas multiplas praticas, entao se pode perguntar se a distin<;ao entre "disposi<;6es" e "praticas" e uti!. Em semelhante caso, sempre e preferivel privilegiar a descri<;ao precisa da a<;ao em seu contexto (Lahire, 1998b). Mas poder-se-ia dizer que, se a linguagem disposicionai nao acrescenta as vezes grande coisa a descric;ao circuns-
tanciada das a<;6es, tambem se pode dizer muito na medida em que transforma a disposi<;ao sob certas condi<;6es em disposic;ao geral e transponivel. Da agressividade para com 0 seu companheiro se passa - por generalizac;ao abusiva - a disposi<;ao agressiva geral para com outrem. Desde que se desliza das disposi<;6es sob condi<;ao para as disposi<;6es permanentes, generalizaveis e transponiveis, seja qual for a situa<;ao, isto e, desde que se negligencia a
c1ausula "sob certas condi<;6es",
diminui-se seriamente - e as ve-
zes ate se elimina - 0 papel do contexto. Por exemplo, ao omitir 0 fato de que as disposi<;6es sociais sao indissociaveis das a<;6es a partir das quais elas podem ser cientificamente construidas, mas tambem atraves das quais constituem-se geneti-
camente no corpo socializado, imagina-se a existencia de disposi<;6es que poderiam sempre ficar "em estado de virtualidade,,16 sem nunca se atualizar. Se a analise quimica ou fisica das propriedades de certas materias pode afirmar que uma substancia e soluuel (mesmo quando nunca foi colocada na agua) ou que um copo de vidro e quebrauel (sem nunca ter sido quebrado), porque essas propriedades (nao adquiridas) sao estaveis e identicas, 0 que dizer de uma proposi<;ao sociologica que consistiria em afirmar que uma pessoa e 16gica, sem nunca ter sido vista re-
alizar uma resolu<;ao logica de um problema ou sem terem sido colhidos testemunhos indiretos que afirrnem a existencia de tais situac;6es? Ter-se-a, igualmente,
tendencia a tornar as disposi<;6es incorporadas dos motores (interiores) da a<;ao, auto-alimentados, auto-suficientes: fora de todo contexto particular, a disposi<;ao parece ditar a sua lei, seu nomos sob a forma de uma injun<;ao forte, de um compulsivo "e mais forte do que eu". Da potencia (reconstruida) ao ato (observado e na base do qual reconstroi-se a dita potencia) parece que se acaba esquecendo que as palavras que foram escolhidas - ou que outros escolheram por nos - querem dizer e os la<;os entre os dois termos (potencialidade/manifesta<;ao? Causa/efeito? Supost%bservado?) permanecem problemilticos 17 • Nunca se pode evitar totalmente a explicac;ao disposicional quando se quer levar em conta experiencias passadas incorporadas por cada ator, mas e preciso uti-
Iiza-Ia com precau<;ao, sem generaliza<;ao abusiva, buscando sempre as manifes-
16. As disposi<;6es, escreve Pierre Bourdieu, ~s6 se revelam ese cumprem em circunsUincias apropriadas e na reJa~o com uma situa~ao. Pode acontecer entao que e1as fiquem sempre em estado de virtualidade, como a coragem guerreira na ausencia da guerra" (1997: 178). 11. "A dificuldade e que compreender nao e somente uma capacidacle, mas tambem um ato, e que nao conseguimos fazer uma imagem satisfat6ria da reJa~ao que existe entre 0 ate de compreensao e a capacidade que o toma possiveJ (compreender uma frase nao e compreender a linguagem no momento em que se compreende a frase)" (Bouveresse, 1987: 319).
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ta~6es e contramanifesta~6es dessas disposi~6es, circunscrevendo seus campos de ativac;ao e seus campos de inibic;ao. As vezes ate a noc;ao de disposic;ao e util para mostrar 0 que diferentes micropoliticas tem em comum 18 • Mas isto nunca deve dar ao pesquisador 0 direito de generalizar a for~ da disposic;ao que ele acreditou poder revelar como estando no principio de certas praticas, alem do campo das praticas envolvidas.
No entanto, apos ter observado a diversidade das praticas de um mesmo ator em situa~6es muito diferentes, pode-se reconstruir "disposi~6es gerais" que explicariam, alem das diferen~as visiveis, uma profunda unidade de atitude, de orienta~ao, de rela~ao ao mundo e ao ~Utro, par tras da bizarrice puramente fenomenal dos comportamentos? A ambi~ao teorica inteiramente legitima que escande esta vontade de captar Q "mola" fundamental da a~ao, 0 "principio" de todas as praticas, etc., nos reconduz a pergunta de partida no tocante a unicidade ou a pluralidade do ator.
o PODER NEGATIVO DO CONTEXTO: INIBI<;:ii.O E EXPECTATIVA
o presente define, delimita aquilo que, do passado incorporado, pode ser atualizado. Tomando as coisas de modo inverso, poder-se-ia dizer, como se faz comumente, que 0 presente e visto, percebido e interpretado atraves dos nossos resumos de experiencias passadas (apropriac;ao de uma situa~ao em fun~ao dos esquemas de percep~ao ja constituidos), mas entao se apagaria 0 papel ativo da situa~ao presente (de seus elementos e/ou de sua estrutura de conjunto) como estrutura de sele~ao, como filtro oferecendo a possibilidade a certos esquemas de se ativarem (de "se exprimir" de "se desabrochar"), mas fechando tambem toda possibilidade de "expressao" de "atualiza~ao" a outros esquemas. lsso significa muito concretamente - quase se poderia dizer: politicamente - que as situa~6es sociais (das mais fonnais e institucionais as mais infonnais) nas quais vivemos constituem
verdadeiros "ativadores" de resumos de experiencias incorporados que sao nossos esquemas de ac;ao (no sentido amplo do termo) ou nossos habitos e que dependemos assim fortemente desses contextos sociais (institucionais ou nao institucionais) que "tiram" de nos certas experiencias e deixam outras em estado de gestac;ao oU de vigilia. Mudar de contexto (profissional, conjugal, familiar, de amizade, religioso, politico ... ) e mudar as for~as que agem sobre nos. Ese essas for~as exigem, as vezes, de nos coisas que nao podemos dar, entao geralmente nao temos outras escolhas senao encontrar uma outra maneira de continuar a viver - 0 menos mal passivel - no mesmo contexto (adapta~ao minima), mudar de contexte (fuga) ou transforma-lo radicalmente para que seja
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t: assim que podemos falar de disposil;Oes asceticas e hedonistas para caracterizar as multiplos usos ou as nao usos das praticas da escrita no espa~o domestico. Em semelhante case a noylo de disposi~ao perrnite, nurn contexto de estudo bem circunscrito, naD dividir a analise pratica por pratica Oista de tarefas, lista de coisas a fazer, lembretes, agenda, calendario ... ), Todavia e impasslvel genera\izar essas disposh;oes para tOOas as dimens6es (nao eshJdadas) da existencia dos atofes <;nvolvidos na pesquisa (Lahire, 1993b e 1995b).
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mais suportavel (reforma ou revolu~ao). Da natureza dos contextos que somos levados a atravessar depende 0 grau de inibi<;iio ou de reca/que de uma parte mais ou menos importante de nossa reserva de competencias, de habilidades, de saberes, de conhecimentos, de maneiras de dizer e de fazer de que somos portadores (por exemplo, 0 caso das crian~s com sucesso escolar improvavel, dos triinsfugas de classe ou 0 das crian~as em dificuldades escolares obrigadas a recalcar sua habilidade verbal comum quando sao colocadas numa situa~o escolar de palavra, revelam, deste ponto de vista, um alto grau de recalcamento ou de inibi~o). Naquilo que a sociologia, apesar de urn contexto te6rico pouco favoravel, permitiu no entanto observar desses fenomenos, estao todos os casos de competencias, habitos, disposi~oes, esquemas ... inertes, entorpecidos, sonolentos, que sao postos a espera (de "sua hora") ou temporariamente ou mais duravelmente em suspenso. Sua reativa~ao pode depender da microssitua~o social (por exemplo, a intera~o com tal ator, em tal situa~o, que permite a atualiza~ao de esquemas ou de habitos que sao inibidos em outro tipo de intera~ao e/ou com outr~ ator), do dominio de praticas (por exemplo, por em a~ao, em materia de consumo alimentar, esquemas culturais diferentes daqueles que estavam em a~ao em materia de consumo cultural), do universo social (por exemplo, fazer no universe familiar ou no do lazer aquilo que nao se pode fazer no universe profissional), do grupo social (por exemplo, fazer em tal grupo social 0 que nao se faria em outro grupo social'~, ou ainda do momento no cicio de vida (por exemplo, habitos incorporados de maneira inconsciente na infiincia, ou durante 0 periodo de adolescencia20 reaparecendo - ap6s um periodo intermedio mais ou menos longo de sonolencia - num outr~ momento no cicio de vida: a instala~ao fora do apartamento familiar, 0 primeiro emprego, a vida a dois, a entrada no pape! de pai, a saida dos filhos da casa, a aposentadoria ... ). No ultimo caso, os atores podem ser portadores de habitos (de esquemas de a~ao) incorporados em sua infiincia e s6 se tomarao efetivos (e eficazes) em sua vida adulta. Entao esses esquemas de a~ao sao como produtos em expectativa (desencadeadores, detonadores, demandas, solicita~6es exteriores, contextos favoraveis), produtos (da socializa~ao) para usos diferentes.
19. Richard Hoggart explica, por exemplo. que os membros das classes populaTes podem infringirwn certo numero de "regras~ all negligenciar certos valores fundamentais de seu grupo quando estao em contato com outros grupos soclais situados do outro lado da barreira (n6s/e1esJ. De wn lado "nunca 'fazer sujeira com os colegas'" e, do Dutro, "enganar as 'outros'. empregadores au patroes": "nao se 'sunupia' nada do vizinho, mas 'rouba-se' tude 0 que se pode da 'caixa' ou da 'administra¢o'; nao se 'da facada' no colega. mas 0
quanta possivei no burgues (1970: 330). H
20. A adolescencia, periodo aitico por excelencia, constitul wn momento particulannente interessante para 0 soci6logo que estuda as fen6menos da incorpora¢o dos habitos. De fato, trata-se de urn tempo no cicio de vida durante 0 qual os habitos sao constituidos ao mesmo tempo apesar de e gra~as (ou pelo menos atraves de) a resist~ncia consciente que se opae vivamente. Recusa de arrumar 0 seu quarto, de escutar os conselhos dos pais, resistencia as diferentes leis familiares, os adolescentes nao interiorizam nada nesses momentos de crise dos habitos e exigencias, que veem se reativarcomo por encanto nos periodos ap6s a adolescenda. Contra seus pais, os adolescentes estao nos dais sentidos contrarios da palavra "perto de" e "aposto a".
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Observa-se, por exemplo, 0 comportamento duplo, ambivalente, das mulheres do rneio operinio que, por urn lado, trabalham como" espasas" para man-
ter seus maridos no tenit6rio do 1ar lutando contra a sua propensao a fugir do espac;o domestico para investir em diferentes espac;os exteriores (a ofieina,
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bar, os lugares de pesca au de cac;a, etc.) e, por outro lado, sao as primeiras, como "maes", a desenvolver em sellS filhos (mas nao nas fiIhas) 0 desejo de "sair" (Schwartz, 1990: 208). Os comportamentos, atitucles au praticas (como quiser) com respeito ao mesmo acontecimento se parecem diferentes confonne a identidade (de esposa au de mae) envolvida na situac;ao.
Sabe-se, tambem, que a vida de casalou a constituic;ao de uma familia, com o aparecimento do ptimeiro filho (como momentos particuiares do cicio de vida), podem transformar certas mulheres de maneira bastante surpreendente (principalmente para 0 seu drculo de amizade, isto e, para aqueles que a conheceram antes de se casar, em situac;ao de celibato, mas tambem para ela mesma). t esse caso, por exemplo, das mulheres que parecem ter rompido com 0 modele da mulher no lar representado por sua mae e que, por ocasiao de urn primeiro ou enesimo casamento, encontram comumente, banalrnente, esse papel tradicional cujos habitos tinham incor21 porado sem perceber durante a sua infancia e adolescencia . Assim a mesrna pessoa se mostra portadora de pelo menos dois esquemas de aC;ao domestica heterogeneos e, em func;ao do modo de interac;ao instaurado com o conjuge (esperando uma mulher ligada ao espac;o domestico ou muito atraida por uma carreira profissional), urn dos esquemas e ativado eo outro posto em vigilia (Kaufmann, 1994: 307). Confonne os casos, identidades diferentes, habitos incorporados diferentes. esquemas de a¢o interiorizados diferentes, e as vezes ate contradit6rios, encontram seu terreno de expressao em outros lugares que nao seja 0 espac;o domestico (a modo de compensac;ao) ou nos momentos particulares da vida de casal, de modo 22 conflituaJ ou pacific0 •
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Durante nossas proprias pesquisas sobre 0 comportamento escolar na escola elementar (Lahire, 1995d) pudemos constatar varia<;oes importantes de comportamento em func;ao da cena considerada. indicando at raves disso a ativac;ao de disposic;oes sociais e de esquemas de ac;ao diferentes confonne os contextos. Numa especie de dinamica de grupo proposta aos professores da segunda serie do ensino fundamental pediu-se que situassem de modo sistematico cada aluno seU do ponto de vista de categorias escolares
21. Por exemplo, uma das pesquisadas (44 anos, professora) de Anne Muxel explica como, apesar de seu discurso feminista cntico e de sua resistb1da ativa ate a idade de vinte anos ("Nao fiz nada, nem sequer cozinhar tun ova, ate a idade de vinte anos"), reencontrou seus habitos matemais ("cozinheira muito boa") sem esforc;o particular ("Por ter visto fazer muitas vezes, vinha automaticamente") com seu filho (1996: 87). J.-C. Kaufmann tambemdescrevea situac;a,o de urn pesquisado que vivia casado eque, porcausa de urn estagio em Paris, passou a viver sozinho varios dias por semana, ve ~voltar seus antigos (maus) habitos de solteiro que ele julgava ter esqueddo: SellS gestos de desordem se refaziam com uma familiarldade e facilidade espantosas" (1992: 92). 22. J.-C. Kaufmann evoca 0 ato falho de urna mulher que, embora devotada ao 1ar e a organizac;a,o domestica, esquece cada manha - como urn ate de resistb1cia ir;tconsdente - de passar a camisa do marldo.
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de percepyao23. As vezes coletamos respostas contraditorias, provocamos uma especie de microconflitos de avaliac;i:'io proveniente da percep<;ao de varios contextos escalaTes. Os professores que, tacitamente, ancoravarn no ambito da sala de aula e do tempo estritamente pedag6gico suas avaliac;oes e apreciac;6es, nao encontravam nenhum problema especial na realizac;ao dessa taTefa. Em compensac;ao, quando certa variedade de microcontextos escalaTes au de tipos de interac;ao escolar erarn levados em ccnta pelos professores, a dificuldade da classificac;ao podia tomar-5e insuperave1. Assim, urn aluno podia aparecer como "branco" num contexte (a sala de aula) e "negro" em outro contexte (0 patio do recreio).
Por exemplo, numa !ista de pares de adjetivos propostos, uma professora (escola privada cat6lica de Lyon) julga uma de suas alunas, Ana Sofia, positivamente: calma, polida, ativa (mas ineficaz), com bastante vontade de trabalhar quando esta em boas condic;6es, trabalhadora (unicamente quando esta num grupo afetivo excelente), participativa, disciplinada, estavel, nao e bagunceira, tern boa memoria, urn tanto rigorosa e "quadrada" e, lade negativo, timida, ansiosa, emotiva, pouco reflexiva, urn tanto "bebe", com falta de confianc;a em si, pede freqilentemente explicac;6es mas sobretudo afeic;ao, pouco autonoma no trabalho, ativa do ponto de vista da com preensao, irregular no esforc;o de trabalho, nao muito 16gica, nao muito culta mas particularmente curiosa, nao dedicada demais, regular na escola, pouco cuidadosa e influenciavel pelos colegas. No entanto, julga-a gentil e agradavel na intera~ao com os odu/tos, muito agressiva, muito desagradavel com os co/egos, resetvada com os odultos evalente com os co/egos. Mas, sobretudo, a professora insiste na mudanc;a radical de comportamento de Ana Sofia em c1asse e na hora do recreio: "Durante 0 recreio ela e taodijerente com os outros. E/o esborra sempre nos rapazes, ela It muito rapaz, gosta de jogar jutebol com os rapazes. Dirio que e/a tern urn lodo muito mascu/ino" _Segundo a situac;ao considerada, os qualificativos ernpregados poderiam ser muitas vezes opostos: "Dirio que poderia ser tudo ao contra rio" .
o mesmo tipo de situac;ao ocorre num outro contexte escolar totalmente diferente (escola publica da periferia de Lyon). Akim e urn aluno com dificuldade escolar mas nao da nenhurn problema it professora na sala de aula. Ao contrario de muitos alunos muito fracos na escola, que" nao vao conseguir nada de urn trabalho de grupo", mas, ao contrario, VaG "continuar passivos", Akim tern born relacionarnento com os colegas nos grupos. "Ele sabe perjeitamente integrar-se num grupo, sabe /icar no seu lugar, tern ate coisas a dizer" _Mas ele e qua1ificado como "especial" porque
23. Calma/agitado; atenta/distraido; gentil!agressivo; agradavel!desagradavel; polido/impalido; ativo/passivo; regular no esforc;:o de trabalho/irregular no esfon;o de trabalho; trabalhador/preguic;oso; bebe/maduro; seguro/medroso; reselVado/atirado; que participa/que nao participa; calmo/ansioso; muita vontade de trabalhar/pouca vontadede trabalhar; influenciavel pelos colegas/pauco influenciavel ... ; emotivo/nao particularrnente... ; aut6nomo no trabalho/nao aut6nomo... ; disciplinado/indisciplinado; estavel/instavel; serio/pouco serio; aplicado/pouca aplicado; cuidadoso/pouco cuidadoso; ardeiro/desordeiro; rapidollento; confiante em si mesmo/falta de confianc;:a ... ; boa mem6riaimem6ria ruim; espirito 16gico/falta de 100ica; pede muita explicayio/nao pede explicac;6es; dotado/pouco dotado; compreende facilmente/custa a compreender; "brilhante"/"esfoTf;ado"; rigamsa/pouco rigoroso; educado/pouco educado; curiosa/nao particularrnente ... ; refletido/irrefletido; organizado/pouco organizado; "imaginativo"/"quadrado'·.
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o seu comportamento na sala de aula e 0 contnlrio de seu comportamento durante 0 recreio: "En tao e uma crian<,;a, quando a gente 0 ue no recreia, a gente diz: 'deve ser horrfvel', pais e verdade que e insuportcwel, desaliava as pro/essores, as pessoas que nao conhecia. Quando esta no aula, e seu trabalho". Na hora do recreio as professores fiearn "horrorlzados" com 0 comportamento de Akim (" Eu a via lei ainda de manh6 cedo. Aproxima-se de urn aluno com seu jeito de mau e comec;a Q ameo<;6-10 ... "), mostra-se muito disciplinado na sala de aula: "No sala de Qula, se noo me Jaz nenhuma pergunta, nem noto que ele existe. Nao preciso fazer nada. Nada mesmo!" Sua professora reage claramente diante da lista de adjetivos que Ihe e submetida: "Aten<,;ao, ele e completamente diferente durante a aula e no recreio. Nada a ver! Durante a aula, quase noo 0 escuto (ao passo que no recreio) ele e bagunceiro agressiuo, Ifder, enfim, tudo 0 que ele noo e durante a aula". Parece que Akim conseguiu fazer uma divisao de seus habitos con forme a situa~ao (sala de aula ou patio de recreio), autodisciplinando-se durante a aula e deixando livres as suas disposi~6es mais agressivas durante 0 recreio ("um horror").
Uma questao importante, que 0 trabalho de Pierre Bourdieu e Abdelmalek Sayad a proposito da situa<;ao do campesinato argelino ja levantava objetivamente, e saber se os diferentes esquemas de a<;ao ou os diferentes habitos incorporados pelos atores no decorrer de suas experiencias passadas podem reatualizar-se nos mesmos contextos sociais (por exemp!o, 0 casal para os esposos) ou se a sua heterogeneidade ou 0 seu carater contraditorio sao tais que dao sustento apenas a vidas separadas em tipos de intera<;ao, de situa<;6es sociais, de grupos sociais ou de universos sociais dispers~s e relativamente compartimentalizados com pessoas diferentes, em lugares e tempos diferentes (por exemplo, 0 campones que avalia em dinheiro a sua produ<;ao agricola quando ela e vendida aos comerciantes, mas que permanece em sua logica pre-capitalista quando esta em sua familia ou comunidade24 . Neste segundo caso, somente uma parte do ser social se "realiza" no casal, uma outra parte se realiza na esfera profissional, uma outra, ainda, no exercicio de uma atividade cultural, etc., podendo 0 pesadelo - tanto no sentido proprio como no sentido figurado - ser, entao, a reuniao de todas as pessoas numa (mica e mesma situa<;ao2S • Com efeito, ao contrario do proverbio que afirma que "os ami24. Notar·se-a que esta biparti~ao de nossos raciodnios ordinarios e cornurn a nossas proprias fonna~oes sociais nas diferen~as que elas operam entre, por urn lado, os dons e contradons farniliares ou de amigos e, por outro lado, as intercarnbios comerciais. De modo mais geral, Fran~ois de Singly ve neste genero de tensao entre 0 €Spirito de concorrencia, de competi~ao, a busca de seu proprio interesse e a exigencia de "desinteresse", de "humanidade", de "arnor" ou de "amizade", urna caracteristica fundamental- raramente destacada - do individualisrno em nossas sociedades. As v€Zes este dilema encontra so!u~ao numa dissociac;:ao dos tipos de relacionamento com 0 outro entre a "vida privada" e a ·'vida publica" (1990a).
25. Ulf HanneTZ escreveu: "Existem situa~oes que eu preferiria manter separadas porque €las ape1am para climensoes de mim mesmo que sao contradit6rias, mas quese interpenetram e me obrigam a redistribuir todas as minhas mascaras. No pi~r dos casos, vivemos entao a experiencia do came!eao sobre uma superficie com todas as cores" (1983: 296). Analisando os romances de Albert Cohen, Ciara Levy mostra muito bern essa separa~ao que 0 chamado Solal elevado a viver para nao ter urn sentirnento de vergonha em relac;ao a uma parte de seus proximos, acrescida imediatamente da vergonha de ter vergonha: "Desde que compreendeu que as duas facetas de sua personalidade nao devem nunca entrar em contato em publico, Solal separa claramente a sua vida em duas partes - uma evivicla amaneira oddental e a outra a oriental, sem as duas nunca entrarem em colisao" (1998: 311-372).
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gas de meus amigos sao rneus amigos", condensando assim toda uma visao do comprometimento interpessoal, sempre identico a si mesmo, os amigos de meus amigos nao sao necessariamente amigos meus. De fato nao sao atores "inteiros",
com habitus homogeneos, que se relacionam, mas atores que se adaptam ou concordam entre si,
as vezes, em pontcs precisos e em situac;6es muito limitadas.
Este fato simples explica numerosos casos de intransitividade social (se x esta em boa rela~ao com y e se yesta em boa rela~ao com z, entao x nao esta necessariamente em boa rela~ao com z). CODE SWITCHING E CODE MIXING DENTRO DE UM MESMO CONTEXTO
Se nao houvesse senao urn campo de pesquisa para citar que ja trabalhou muito bern a questao da pluralidade dos habitos e de seus desencadeadores circunstanciado dentro de urn mesmo contexto, dever-se-ia falar dos muitos trabalhos da sociolingiilstica norte-americana. T rabalhando em contextos multiculturais (do ponto de vista das posi~ees socioeconemicas, mas tambem da origem etnica dos sujeitos falantes), os sOciolingliistas norte-americanos estudaram fatalmente, no terreno que lhes e pr6prio (as praticas linguageiras), 0 fenomeno da heterogeneidade dos habitos lingiilsticos/linguageiros incorporados. Assim John Gumperz notava que" os grupos minoritarios passam, de fato, uma grande parte de seus dias em lugares onde prevalecem as normas dominantes ... Essa justaposi~ao, simbolizada por urn vaivem permanente entre modes de a¢o e de expressees intemas ao grupo e externas, produz efeitos consideraveis sobre 0 comportamento cotidiano ... Os que pertencem aos grupos majoritarios e que nunca viveram essa disjun~ao entre comportamento publico e privado tern, geralmente, dificuldade em apreciar os efeitos" (1989: 80). Principalmente entre tais atores observam-se mudan~as de lingua de uma "frase" a outra (trata-se da alternancia de c6digo ou code switching), e ate durante a mesma "frase" (fala-se de mistura de linguas ou de code mixing). Essas mudan~as nunca sao 0 fruto do acaso ou de uma incoerencia devida aos contatos culturais repetidos com uma lingua diferente da lingua materna. 0 sujeito da conversa~ao, associado ao universe da lingua materna (por exemplo, 0 espanhol), pode bruscamente desencadear uma comuta¢o para essa lingua". Quando 0 tema da discussao se torna mais formal ou a rela¢o entre os dois interactantes e menos calorosa, menos amigavel, 0 sujeito bilingile pode passar de sua lingua materna para o ingles. Observam-se fatos semelhantes dentro de uma mesma lingua, entre os diferentes estilos de palavra (socialmente hierarquizados do mais prestigiado ao mais estigmatizado), como lembra William Labov relatando urn caso de desencadeamento subito de habitos linguageiros que estavam cuidadosamente mantidos inibidos ate entao gra~as a urn grande autocontrole (hipercorre¢o): "Entrevistei
26.
~Ideias e
experibldas associadas ao passado hispan6fono do locutor... desencadeiam uma comuta~ao em
espanhol" (Gumperz, 1989: 89).
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urn contramestre de estrada de ferro em Atlanta e minha mulher, que e soci610ga, entrevistou sua esposa. Sua esposa tinha urn nivel escolar elementar e uma origem social muito mais baixa que a sua posic;ao atuaJ. 0 que e de admirar, levadas em conta as caracteristicas sociais dessa locutora,
e que em seu discurso nao apa-
recia nenhuma negac;ao redobrada - forma muito estigmatizada em ingles - ate 0 momenta em que minha mulher Ihe fez uma pergunta sobre a cozinha: 'Voce mede as quantidades'? Espontaneamente ela respondeu: 'Honey, I don't mesure nothin' (literalmente: 'Querida, eu nao me~o nada'). Aqui a entrevistadora tocou num tema central da simb6lica da cozinha. Uma boa cozinheira nao mede. A medida esta Iigada a urn conhecimento superficial tirado de receitas culinarias. A simb6lica da cozinha vemacula implica no emprego da lingua vemacula, particularmente da dupla negac;ao" (Labov, 1983: 71). Mas, na analise antecipadora de David Efron (1941), encontrar-se-ia 0 prot6tipo de todos esses estudos sociolingUisticos. David Efron estuda os comportamentos gestuais, a respeito dos quais, num primeiro momento, levanta a hip6tese de que variam culturalmente, de urn grupo para outro. Para provar suas hip6teses ele inicia, essencialmente em Nova York (e secundariamente nos Adirondecks, Catskills e na cidade de Saratoga), uma serie de observa~6es diretas (e em situac;ao "natural", com pesquisados que nao sabem que sao observados, em casas, ruas, parques, mercados, teatros, lugares de culto, restaurantes, hoteis, locais de reuni6es politicas publicas, escolas, colegios e universidades, estancias ... ) habitos gestuais de varios grupos socioculturais. Trata-se dos "Eastern Jews" de origem litu€mia e polonesa e dos "Southern Italians" provenientes dos arredores de Napoles e da Sicilia, que, por sua vez, dividem-se em duas categorias, a saber, os "tradicionais" (que conservam os habitos de seus paises de origem ou do pais de origem de seus pais) e os "assimilados" (que estao mais ou menDs distanciados de seus grupos de origem, adotando os habitos norte-americanos, com 0 sentimentode estarem bern integrados). Se urn dos ensinamentos do estudo reside na constata~ao empirica de que 0 gesto nada tern de inato mas varia culturalmente, Efron no entanto considera que urn dos aspectos mais significativos do comportamento gestual dos italianos e dos judeus americanos reside na combinac;ao de gestos provenientes dos grupos oU comunidades de origem e de gestos pr6prios aos americanos de origem anglo-saxa. A este tipo de combinac;ao ele chama de "gestualia hibrida" (hybrid gesture) ou de "bilingtiismo gestual" (gestual bilinguism).27 Oscasos mencionados por Efron mostram bern como 0 que desencadeia 0 usa de tal ou tal registro gestual pode ser, segundo as situa~6es, 0 usa da lingua (usar os gestos italianos quando se fala italiano), 0 tema da discussao (quando esta particularrnente associado a uma cultura), 0 interlocutor (a origem cultural daquele que desencadeia espontaneamente o uso de habitos gestuais associados), 0 estilo do enunciado (uso de gestos norte-americanos quando se faz urn raciocinio argumentativo e gestos provenientes da comunidade judia no momento de uma enfase apaixonada). Efron indica ate a possibilidade de os atores incorporarem os habitos gestuais de mais de dois grupos.
27. A respeito da concepl;ao unificadora da cultura e Teveladora a maneira como Paul Cannerton relembra 0 trabalho de David Efron, evitando totalmente este ponto central de sua tese (1989; 79·82).
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o EQUILiBRlO INCERTO DOS ATORES Os estudantes universitarios devem enfrentar, pela primeira vez em seu perescolar, urn problema essencial em seus estudos. 0 problema que e resolvido imediatamente pelos estabelecimentos com fortes enquadramentos pedagogicos (liceus, cursos preparatorios para as grandes escolas, se~6es de tecnicos superiares, institutos universitarios de tecnologia ... ) consiste em organizar, em estabelecer 0 seu tempo diario, semanal e anual28. Ao deixar os estudantes "livres" para curs~
se organizarem e ocupar grande parte de seu tempo, a instituic:;ao universitaria os
deixa objetivamente livres para fracassar na resolu~ao pratica (cultural) deste problema. 5e os estudantes (que ainda sao bastante alunos) mais fortemente enquadrados pedagogicamente vivem longas seqiiencias de atividades unlvocas, por estarem obrigados a monoatividade - escolar - durante urn tempo relativamente longo, em compensa~ao, os das universidades enfrentam uma diliculdade (nova em seu percurso escolar), a saber, a existencia freqiiente, num universo academico - domestico" - de urn contexto de estudos escolar. Eles mesmos devem organizar os lugares e, sobretudo, 0 tempo especifico de estudo no interior dos espa~os-tempo, no mais das vezes, plurifuncionais, onde muitas atividades podem entrar em concorrencia dentro de uma mesma seqiiencia temporal. Por que se levan tar as 7 ou 8 horas da manha se 0 curso so come~ as 14 horas. Por que nao assistir televisao, conversar com os pais, innaos e irmas, ou com os amigos, uma
vez que a reda~ao sobre leituras feitas ou a prepara~ao dos exames de lim de ana podem (parecem poder) esperar? Quando a separa~ao, bern como as mudan~as do contexto escolar para 0 contexto nao escolar (e inversamente) nao sao mais objetivadas, institucionalizadas (como era 0 caso no liceu), entao se tomam problemas "pessoais" que cada estudante deve esfor~r-se por resolver. Como escreve Erving Goffman, se uma "atividade organizada coletivamente" esta "geralmente separada do fluxo dos acontecimentos por parEmteses au marcadores convencionais" e sao esses paren· teses convencionais que "delimitam a atividade no tempo dando-Ihe urn antes e urn depois" (Goffman, 1991: 246), entao os estudantes universitarios devem inventar tais marcadores de maneira a trabalhar fora de toda imposi¢o exterior e coercitiva de momentos particulares de trabalho. "A for~a de medir 0 tempo, de maneira a preenche-Io bern, acaba-se nao sabendo 0 que fazer com essas partes
28. A propria natureza do trabalho "pessoal" dentro dos diferentes estabeledmentos varia. Os obJetivos do Irabalho pessoal sao mais au menos explicitaclos pelos diferentes estabeledmentos de ensino superior, pelos diferentes trabalhos pessoais rnais au menos prescritos, pelas diferentes ohriga<;6es de entregar 0 trabalho pessoal com mais au menos freqUblcia. Assim, tuda ap6e a abjetiva langinqua da dissertaf;aa final nas faculdades de letras e de ciencias humanas, que deixam os estudantes "livres" para detennlnar os meios mais adequados de atingi-lo, as microobriga<;6es mais densas, que sao "deveres", exercicios au revis6es prescritas quasediariamente, principalmente nas classes preparat6rias. Enquanta os estudantes de p6s-graduayao sao levados a eles mesmos conduziro seu trabalho pessoal para atingir objetivas mais au menas cJaramente estabe1ecidos por seus professores, os alunas de ensino superior com forte enquadramento pooag6gico sao literalmente conduzidos pe1a instituif;ao e seu trabalha "pessoaJ" e, entao, em grande parte, urn trabalho dirigido. 29. 0 aloJamento pessoal e 0 domidlia paterno sao hoje, bem mais que a biblioteca ou 0 estabelecimenta universitario, os principais iugares de trabalha dos estudantes (Lahire, 1997a: 57).
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da dura~ao que nao se deixam mais dividir da mesma maneira, porque ai a pessoa esta entregue a si mesma e saiu-se de alguma maneira do corrente da vida social exterior. 1550 poderia ser urn oasis cnde, precisamente, se esquece 0 tempo, mas Dnde, em compensac;ao, a pessoa se encontra. Ao contrario, a pessoa sensivel
e
aquilo que sao os intervalos vazios, e entao 0 problema e saber como passar 0 tempo" (Halbwachs, 1968: 82). Os estudantes universitarios, e particularmente das faculdades menos enquadradas, distinguem-se, pois, entre si do ponto de vista do grau de autodisciplina, de self-government e de ascetismo que possuem em fun¢o de sua socializa~ao familiar e escolar anterior. Mais freqilentemente, porem, para alguns deles trata-se de recalcar ou inibirdisposi~oes hedonistas, das quais tern consciencia que atuam contra uma parte deles mesmos que deseja trabalhar. Pesquisas recentes em psicologia cognitiva tendem a mostrar que a crian~a, 0 adolescente e 0 adulto sao dotados de uma estrutura mental composta, na qual coexistem esquemas de percep~ao, de representa~ao e de a~ao heterogeneos, ate contradit6rios. Por ocasiao das tarefas a realizar, a inibi~ao dos "esquemas perigo50S" ou "desviantes" (do ponto de vista da natureza da tarefa), que coexistem com os esquemas pertinentes, permite que os sujeitos nao caiam na cilada que Ihes e feita. Assim, nao se assistiria, no quadro do desenvolvimento mental, a uma simples progressao linear dos esquemas inadequados para os esquemas mais adequados, mas a coexistencia de esquemas heterogeneos, logicamente contradit6rios (dos mais "racionais" aos mais "irracionais"). 0 exito da tarefa supoe, portanto, a ativa¢o dos esquemas pertinentes, mas necessita tambem da inibi¢o de esquemas concorrentes que, se fossem desencadeados, conduziriam ao erro de percep¢o e/ou ao fracasso de realiza~ao (Houde, 1995; Pascual-Leone, 1988, Pascual-Leone & Baillargeon, 1994). Portanto, se poderia dizer aqui que 0 sucesso reside, para uma parte dos estudantes, em sua capacidade de inibir disposi~oes sociais inadequadas (com rela¢o ao objetivo desses estudantes terem exito). Observa-se, enta~, uma verdadeira luta, as vezes muito consciente, dos estudantes contra uma parte deles mesmos, que eles fazem tudo para manter no sono. Para isso, eles 56 podem contar com uma coisa, 0 contexto de trabalho. Entao este e escolhido consciente e conscienciosamente - 0 que e uma situa¢o pouea corrente - de maneira a criar as condic;bes mais favorcweis, as mais propkias para haver disposiC;6es asceticas escalares e, inversamente, de maneira a evitar as tentac:;6es perigosas.
Assim, a escolha do trabalho na pr6pria universidade (na biblioteca ou numa sala de trabalho) as vezes e uma maneira intencional de evitar 0 espa~o domestico, lugar de tadas as (mas) tenta~oes e dos "maus habitos", concentrando urn numero maximo de desencadeadores de disposi~oes antiescolares ou de pretextos a nao trabalhar (televisao ou aparelho de som Iigados quase instintivamente, membros da familia que querem conversao e vern romper a continuidade do trabalho escolar, instrumentos de musica que convidam silenciosarnente a fechar os Iivros, geladeira que solicita a estar continuamente comendo ... ). 0 estabelecimento universitario permite colocar-se nas condi~oes 6timas para haver esquemas asceticos. No entanto, a biblioteca universitaria pode ser tambem 0 lugar de conversa informal com amigos, 0 que impede que 0 trabalho progrida. Entao e preciso escolher seus cole-
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gas de trabalho ou isolar-se nas baias de trabalho individual. Alguns estudantes tern consciencia das condi~6es nas quais podem tirar 0 melhor proveito deles mesmos (" Eu me conhe,o... ") e agem voluntariamente ("[550 me obriga", "isso me /or,a", "isso me leva a ... ") no contexto de trabalho. A escolha do lugar de trabalho e do arranjo da situac;ao de trabalho e Uma das tecnicas de dominio de si mesmo. Por outro lado, estando muitas vezes divididos do ponto de vista da oposic;ao entre as disposi~6es asceticas e as disposi~6es hedonistas, os estudantes podem, conforme mudem os encontros de urn ano para outro (andar com estudantes mais trabalhadores ou mais boemios), voltar a tomar gosto pelos prazeres extra-escolares (saidas notumas, sociabilidade de grupo, usa tranqiiilo do tempo, experiencias amorosas ... ) e deixar que se exprimam as disposi~6es hedonistas ate entao recalcadas ou em suspenso, ou, ao contrario, refor~r as suas disposi~6es estudiosas (entreajuda estudantil, discuss6es escolares motivadoras ... )30.
30. ObseJvam-se tais oscila~6es em materia de praticas domesticas. Cf. urn caso de oscilac;ao domestica entre "fazer de qualquer jeito" e "tudo deve estar impecavel" em Jean-Claude Kaufmann (1997: 154).
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CENA3 Analogia e transferencia A ANALOGIA pRATICA E OS DESENCADEADORES DA A<;:AO E DA MEM6RIA Nossa vida diciria se desenuolve entre objetos cuja presen<;a por si 56 conuida-nos a desempenhar urn popel. Nisso consiste seu aspecto de /ami/iaridade (Henri Bergson. Matiere et Memoire).
A ac;ao (a pratica, 0 comportamento ... ) e sempre 0 ponto de encontro das experiencias passadas individuais que foram incorporadas sob forma de esquemas de ac;ao (esquemas sens6rio-motores, esquemas de percep~ao, de avaliac;ao, de apreciac;ao, etc.), de habitos, de maneiras (de ver, de sentir, de dizer e de fazer) e de uma situa~ao social presente. Diante de cada situac;ao "nova" que se apresenta a ele, a ator agira "mobilizando" (sem necessaria consciencia dessa mobilizac;ao) esquemas incorporados chamados pela situac;ao. Nesta abertura do passado incorporado pelo presente, nesta mobilizac;ao dos esquemas da experiencia passada incorporados, a papel da analogia protica parece particularmente importante. Eo na capacidade para encontrar - praticamente e globalmente e nao intencionalmente e analiticamente - a semelhan~ (urn "ar de semelhan~" , diria Wiltgenstein) entre a situa~ao presente e experiencias passadas incorporadas sob a forma de resumos de experiencia que 0 ator pode mobilizar as "competencias" que permitem que ele aja de maneira mais ou menos pertinente (a vida social, de fato, nao e pobre em mal-entendidos, em "erros" dediagn6stico por parte dos atores - Gumperz, 1989).
o raciocinio pratico do tipo "isso se parece com", e que raramente precisa ser dito como tal, e urn raciocinio comumente aproximativo e variilVel. Pode perfeitamente bern negligenciar certos tra~os da situac;ao em curso para reter apenas urn esquema relacional geral (a rela~ao homen:'-mulher, a relac;ao mae-fiIha, a relac;ao
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superior hierarquico-subordinado, etc.), como tambem se ater a um detalhe totalmente descontextualizado do conjunto da situa~ao (um gesto, um cheiro, urn sabor, uma palavra, uma voz, um ruido, um objeto, um lugar - casa, paisagem, bairro -, uma fotografia, etc!. A analogia ou a semelhan~ nao sao, na maioria das vezes, os pensamentos como tais dos atores. Os atores pod em ate, em certos ca50S, ter a impressao de ja ter visto ou ja ter vivido a mesma situa~ao, de terem provado as mesmas sensac;oes, as mesmos sentiment OS, etc. Em suma, de terem desempenhado ou visto desempenhar a mesma cena num passado mais ou menos distante. o que, na ordem da lembran~, pode dar lugar a enuncia~ao de um "isso me lembra" (ao ver isso, ouvir aquilo, sentindo 0 cheiro de um perfume ... ), mais raramente se manifesta explicitamente na ordem da a~ao onde se trata mais de um "isto me faz agir deste modo ou desse modo", sendo 0 "deste modo" ou "desse modo" maneiras de fazer anterionnente adquiridas e mais au menos matizadas e
moduladas segundo as exigencias da situa¢o nova. T rata-se de uma especie de processo de aproxima~ao jurisprudencial (fracamente instrumentado) do "caso" presente e dos "casos" ja vividos (e que fazem "precedentes"), que reabre 0 passado para resolver um problema (mais ou menos novo para 0 ator) engendrado pela situa~ao presente ou, mais simplesmente, para reagir adequadamente a esta situa~ao. A metatora judiciaria - cujo limite reside no grau infinitamente mais fraco de objetiva~ao, de formalidade e de consciencia reflexiva das situa~6es mais comuns e menos institucionais - permite, no entanto, por urn lado, evitar 0 recurso por demais formal as teorias da a~ao invocando normas ou regras segundo as 2 quais os atores orientariam a sua ac;ao e, por Dutro lado, insistiT sabre a importan-
cia do presente na mobiliza~ao dos arquivos incorporados do passado. Se nao houvesse novos casas a "tratar", 0 passado nao seria mobUizado em fun¢o das caracleristicas proprias a logica desses casos novos. Sendo possivel insistir sobre a opera¢o de "reativa~ao do sentido objetivado nas institui~6es" (Bourdieu, 1980a: 96) pelo habitus como sensa pratico, nao se deve negligenciar a opera~ao inversa de reativa~ao do passado incorporado pelas institui~6es. Ao se apropriar de um objeto, uma situa~ao, uma institui~ao, urn lugar, 0 ator da vida aquilo que perma1. Anne Muxel (1996) faz uma abordagem fenomenol6gica e muito evocadora dessas diferentes maneiras de desencadear a lembran~. 2. Apesar de seus limites evidentes, a referenda jurisprudencial pennite mobilizar uma oposi<;ao hist6tica muito forte que distingue (e as vezes opoe) a direito anglo-saxao jurisprudencial do direito continental europeu, que provem do direito romano e se baseia num c6cligo que se considera passive! de ser aplicado a todas as circunstancias possiveis. 0 trabalho juridico consiste, no primeiro caso, em comparar cada situa<;ao nova com as situa<;oes semelhantes julgadas ate entao 06gica da analogia e do "precedente"). No segundo caso supoe a constru<;ao de regras (de leis) gerais, impessoais, universais, a partir das quais se deduzem as diferentes decisoes para os multiplos casas futuros. De urn lado, urn movimento que vai do caso particular para a caso particular; do outro, 0 que leva da regra geral aa caso que dal decorre (Weber, 1986). Ao ativar a metafora jutisprudencial, se quer fazer perceber a extremo fonnalismo das toorias da ac;ii.o que evocam, sem nennum sentido dadistin<;ao, a "norma" ou a "regra". Pelo uso demasiado, e!as acabam, porum lado, fazendo crer que os atores estariam, nas suas a<;6es mais comuns, nurn cansativo trabalho de acompanhamento ou de otienta¢o de sua conduta em fun<;ao de normas ou de regras e, por outro lado, nao permitindo mais ver, quando isso seria 0 mais util, os efeitas sociais especlficas da presen<;a eficaz de regras, au de normas expressas (esctitas) as quais e possivel refetir-se eque poclem ser respondidas, nas praticas. Ver a "regra escalar", Lahire, 1994a.
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neceria em estado de letra morta, mas inversamente, porque e colocado na presen<;a do objeto, da situa<;ao, da institui<;ao, do lugar, etc., e que desperta aquilo que, de outro modo, poderia ter permanecido temporariamente ou mais duravelmente em estado de vigilia.
o estudo de rela<;oes de interdependencia dentro de configura<;oes familia res faz aparecer, por exemplo, 0 fato de que certos tipos de conflitos entre casal (esposa-esposo) despertam, reativam conflitos filha-pai'. Em outros casos, ainda, a rela<;ao filha-pai e explicitamente evocada para falar da rela<;ao esposa-esposo pela entrevistada. 5e a primeira rela¢o possibilitou a segunda (tese comum da mulher que encontra em seu conjuge atitudes ou caracterlsticas lisicas que lhe "lembram" seu pail, a segunda reabre, de fato, mais ou menos conscientemente a primeira. As vezes, parern, 0 mesma casal que pade, em certas circunstfmcias, re-
ativar a rela<;ao filha/pai, reativara de preferencia a rela¢o mae/filho (sendo a mulher para 0 seu marido 0 que era a mae para seu filho)'. Nas inter-rela<;oes familiares, certas proximidades ou certas associa<;oes praticas de duas pessoas "empiricamente" diferentes tambem levam a viver uma rela<;ao com uma pessoa que pode estar ligada it hist6ria das rela<;oes com a outra. Eo caso de uma entrevistada nossa que se da conta, durante uma entrevista, do rancor que tern para com a cunhada (a mulher de seu irmao) e que, alem do mais, desenvolve uma agressividade para com a mulher do primo de seu conjuge, que ela parece perceber espontaneamente como uma especie de c6pia de sua cunhada. Assim ela pode, quase sem perceber, representar com a segunda pessoa cenas que ela habitualmente representaria com sua cunhada e a entrevista sociol6gica pade tomar-se, em caso se-
melhante, 0 momento de uma tomada de consciencia. Mas a analogia das situa<;oes pode ser ainda mais complexa e por em jogo os dois personagens de uma intera¢o. Assim, 0 relat6rio de uma pesquisa permitiu que reconstruissemos uma rela¢o vivida alguns anos antes. Os dois protagonistas da cena sao universitarios. 0 primeiro
e urn marroquino com menos de 30 anos,
que veio aFranlP por ocasiao de urn congresso. 0 outro euma francesa com cer-
ca de 50 anos, co-organizadora do congresso em questao. Durante 0 congresso, se estabelece uma cumplicidade amigavel (cujo principio podemos compreender). A segunda personagem convida 0 primeiro para jantar e descobrem, pouco a pouco, suas respectivas hist6rias. Ele e filho de um casal divorciado e viveu essencialmente com a mae. Por causa disso, mantem com ela Ja<;os muito fortes. Ela e divorciada ha cerca de dez anos e vive sozinha com 0 filho de 15 anos. Ora, 0 entrevistado (0 primeiro personagem) conta como viveu uma cumplicidade muito profunda, uma rela¢o de grande conivencia com essa pessoa que conhecia apenas ha alguns dias. A mulher que 0 recebia - sempre segundo 0 relato feito - parece ter vivido a mesma rela¢o um pouco fascinada. Tudo se passa como se dois 3. "Nota-se, pais, que as conflitos de Maria Una com seu marido reativam conflitos com 0 paL Trata-se, para eia, sempre de manter urn direito a ser independente contra uma amea~ de rea~ao par parte do homem"
(Schwartz, 1990, 2371. 4. "Sob aspectos essenciais da sua rela~ao com seu marido, a mulher ocupa tambem uma posi~o de mae hom610ga it posi¢o que desempenhava com seus mhos" (Schwartz, 1990: 177).
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desconhecidos, colegas universitarios durante um col6quio, representassem a cena mae-filho, porque os dois partilhavam uma situa<;:ao comum nas posi<;:6es familiares que ocupavam. Poder-se-ia dizer que 0 encanto ou a magia da situa<;:ao reside, aqui, no fato de que os atores estavam suficientemente conscientes para "fazer a diferen<;:a" ("Ele nao e meu filho", "Ela nao e minha mae") sem, no entanto, poderem fazer outra coisa que aproxima<;:6es praticas, analogias e associa<;:6es tacitas que os levam a dialogar no contexto de uma quase rela<;:ao mae-filho. As duas pessoas rapidamente evocadas aqui mantiveram sempre, tres anos depois do primeiro encontro, correspondencia escrita. A AGAO E A MEM6RIA INVOLUNTAruAs E logo, maquinalmente, abatido pelo dio sombrio e pela perspectioo de urn amanha triste, ievei aos Iabios uma colherada de ch6 onde deixara amolecer urn pedar;o de biscoito (Marcel Proust. A la recherche du temps perdu). Assim se forma uma experiencia de uma ordem totalmente di/erente e que se deposita no carpo, umo serie de mecanismos bem montados, com rea~6es coda vez mais numerosas e variadas as excitac;:oes exteriores, com respostas preparadas para urn numero coda uez maior de possiveis perguntas. {... J Esta consciencia de todo Urn passado de es/orr;os armazenados no presente e tambem uma memoria, mas uma memoria profunda mente diferente do primeira, tendendo sempre para a a~ao, assentada no presente eo/hondo apenas para 0 futuro (Henry Bergson. Matiere et Memoire).
Maurice Halbwachs explicava 0 "esquecimento" pelo desaparecimento dos marcos sociais da memoria que pennitem que mobilizemos e reativemos sem cessar nossas lembran<;:as. Se os grupos, as institui<;:6es, as pessoas, os objetos, etc., que sustentavam nossa memoria, desaparecessem, toda uma parte de nossa capacidade mnem6nica seria posta em questao nao porque tenha desaparecido, mas porque nao encontra, na vivencia atual, os elementos desencadeadores suscetiveis de trazer a consciencia 0 que parece entao definitivamente e desesperadamente esquecido (Halbwachs, 1076: 279). A simples reencena¢o num cenario comum (paisagem, espa<;:o urbano, apartamento ... ), a visao de um detalhe (um gesto, uma roupa ... ), uma situa<;:ao auditiva (uma voz, uma risada, um ruido ... ), gustativa ou olfativa (um gosto ou um cheiro naturais ou artificiais) podem desencadear uma lembran<;:a (e por isso mesmo provocar uma grande emo¢o), reabrir todo um passado que se julgava esquecido (0 "isto me lembra isso ou aquilo") ou instigar a a<;ao provocando a entrada em movimento de um esquema de a<;:ao, de um habito (0 "isto me faz agir desse ou daquele modo"). Como escreve Maurice Halbwachs a prop6sito da crian<;:a que "deixou
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uma sociedade para passar a uma outra" e que "parece, ao mesmo tempo, [ter] perdido a faculdade de se lembrar, na segunda sociedade, de tudo 0 que fez, de tudo 0 que 0 impressionou e que se lembrava sem dificuldade na primeira": "Para que algumas lembran<;as incertas e incompletas reapare<;arn e precise que, na sociedade em que se encontra atualmente, Ihe sejam mostradas pelo menos imagens que reconstituem durante urn momento em torno dele 0 grupo e 0 meio de onde foi arrancado" (ibid.: xv-xvi). Poder-se-ia, pais, evocar,
amaneira de Proust, as experiencias de a<;ao invo-
luntaria e de memoria involuntaria que fazem 0 comum de uma parte de nossa relac;ao com as situa<;6es sociais. Por memoria involuntaria Proust entende aquela memoria que nao e 0 produto de urn esfor<;o consciente, intelectual, mas de urn desencadeamento "espontaneo", muitas vezes misterioso para quem 0 vive, de fragmentos de passado incorporado. Sem ter voluntariamente, intencionalmente, conscientemente buscado, 0 ator e invadido por urn passado que se imp6e a ele sob 0 efeito de infimos estimulos exterioress Urn insignificante detalhe evocador, urn minusculo acontecimento aparentemente anodino (0 gosto de urn biscoito ou do cha, 0 perfume de flores, a visao de urn canape, do campanario ou de arvores, o barulho de uma colher no prato, 0 cheiro de uma casa, a topada no desnivel do chao, as cores roseas de uma lagoa, etc.) podem ativar uma sensa<;ao passada e, ao mesma tempo,
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conjunto das experiencias all do contexto que estavam asso-
ciadas a ele. Com 0 celebre episodio do biscoito amolecido, molhado no cha, temse 0 paradigma dessa memoria involuntaria. Urn cheiro, urn sab~r desencadeiam subitamente a lembran<;a de sensa<;6es analogas passadas' ou despertam essas sensa<;6es trazendo a consciencia "Cambray inteira", isto e, todo 0 contexto da epoca ao qual as sensa<;6es estao indefectivelmente Iigadas. Mais realista e justo que os romancistas realistas, que ordenam cronologicamente 0 seu relato destruindo os multiplos la<;os existente entre ac;ao presente e 0 passado remobilizado, negligenciando a incessante provoca<;ao do passado pelo presente, Proustjulgava a vida real "tao pouco cronologica, interferindo tantos anacronismo na sequencia dos dias" (citado em Raimond & Fraisse, 1989: 108). Mas e possivel pensar de modo semelhante 0 modele de ac;ao involuntaria: em lugar da lembran<;a esta urn esquema de a<;ao (urn habito) que foi desencadea7 • do pelo contato continuo com elementos do contexto que envolve 0 ator . E este
5. A este respeito James M. Ostrow dft urn belissimo exempJo de urn extrato de To the Lighthouse, de Virginia Woolf, onde se ve ressurgir urn tema da infancia de Cam, varios anos mais tarde, sem que Carn tenha necessi-
dade de procurar se "lembrar" de sua mae, pais 0 ambiente que e1a encontra esta "saturado da presen~ da mae" (1990, 47-48). 6. Anne Longuet Marx recorda que "Proust sempre definiu a metafora e a mem6ria involuntaria da mesma maneira, como a 'milagre de uma analogia', a encontro e a superposi~ao de dais objetos ou de duas sensa~6es"
(1986, 181). 7. Alias, nao e par acaso que Piaget pede, em certas f6nnulas nao muito felizes mas sintomaticas da proximidade das duas ordens de fen6meno Oembran~a e hbbito), escrever: "Primeiro a crian~a se limita a aplicar as esquemas que conhece I... Ja questao era justamente lembra-Ios no momenta certo e adaptb·los a situa¢.o
.tu.I"(1978, 201).
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tipo de a¢o que Bergson visava descrever' quando falava de urn "reconhecimento na instantaneidade, urn reconhecimento do qual apenas 0 corpo e capaz, sem que nenhuma lembranc;a explicita intervenha" e que "consiste numa aC;ao e m;'o numa representac;ao" (1908: 93). Isso certamente nao significa que nos deixamos guiar, no curso de nossa aC;ao, pelos diferentes estimulos sensoriais que encontramos em nosso caminho. Tais especies de atores - especie de vagabundos permanentes - nunca chegam a lugar nenhum e jamais chegam ao fim. Assim, no exemplo que Bergson da apos a definiC;ao ("Estou passeando numa cidade, por exemplo, pela primeira vez. A cada esquina hesito, sem saber para onde vou. Estou na incerteza e por isso penso que S8 poem altemativas ao meu carpe, que rneu movi-
mento
e descontinuo no seu conjunto, que nao hit nada, numa das atitudes, que
anuncia e prepara as atitudes futuras. Mais tarde, apos longa permanencia na cidade, circularei por ela maquinalmente, sem ter percepc;ao distinta dos objetos diante dos quais passo", ibid.: 93), parece eVidente que 0 ator pode bern ter decidido, intencionalmente, ir, por exemplo, ao seu lugar de trabalho. Mas 0 conhecimento pratico do trajeto, adquirido it forc;a de faze-Io, faz com que ele possa ser feito ao modo de ac;ao involuntaria. Decidido intencionalmente (0 que nao significa, tambem, "livremente") 0 trajeto que me conduz ao trabalho nao consiste, todavia, numa serie de atos voluntarios, intencionais e conscientes.
Mais do que se "Iembrar" das coisas do passado, isto e, "representar" para si o passado e manter uma rela<;ao mnem6nica com 0 passado, 0 atar "ve" seu pas-
sado (incorporado na forma de esquemas de a¢o, de habit os) ativado e desencadeado para agir. Mas e preciso ficar claro que esse "agir" nao esta limitado it a¢o "corporal" ou "gestual". 0 habito que acabamos de considerar, de que a ac;ao (como nas novelas ou filmes "de a¢o" onde "ha movimento", isto e, onde os acontecimentos espetaculares e fisicos encadeiam-se e afluem incessantemente) e necessariamente "ativa" (oposta a "passiva"), nos leva muitas vezes a negligenciar a ac;ao de pensar, de imaginar, de sonhar acordados (daydreams), de falar, de escrever, etc. Por isso e preciso entender a palavra "a¢o" no sentido amplo do termo: responder ou tomar a palavra, pensar ou imaginar mentalmente uma "coisa" au uma situa¢o, fazer urn ge5to, correr, andar, abaixar-se, voltar-se, virar-se, es-
quivar-se, saltar. .. A linha analitica de partilha entre a lembranc;a e a ac;ao indica simpiesmente a consciencia num caso e a ausencia de consciencia no Dutro casa
do passado" Ao se lembrar,
0
ator situa no passado imagens que Ihe surgem e se
8. Ressaltamos que as cita~6es de Bergson nao implicam em nossa adesao global as teses dele. Quer se tratasse do dualismo entre a lembranc;:a e 0 habito, dos "mecanismos motores" e das "imagens-lembran~asH, da ideia de uma "mem6ria verdadeira" ou de "Iembran~as puras", ou do Idealismo de certas proposi~oes, as reflexoes de Bergson nao nos parecem todas pertinentes. Mas e preciso reconhecer a este autor, mal amado pelos soci61ogos e pouco lido por razoes hist6ricas e institucionais facilmente imaginaveis, a justeza de certas f6rmulas suas que visam explicar 0 funcionamento da mem6ria-habito ou daquilo que ele chama ainda de "a mem6ria do corpo" ("conjunto dos sistemas sens6rio-motores que 0 habito organizou"). 9. Notar-se-a de passagem que, se "0 habitus como aquisic;.ao incorporada" e "preserl!;a do passado - au no passado - e nao mem6ria do passado" (isto e, nos tennos bergsonianos, mem6ria-habito e nao mem6· ria-lembran~a), entaD a teoria do habitus e impotente para pensar as "lembrant;as" (ou ela considera que essas Uitimas estao fora do campo de investigat;ao socioI6gica?), 0 que nao deixa de levantar um problema (ver Bourdieu, 1997: 251).
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impoem sob 0 efeito de urn disparador determinado. Ao agir (falar, pensar, deslocar-se ... ), 0 passado vern "expirar" (segundo 0 termo de Bergson) em sua a.;ao mas nao aparece como tal, ele e atuado ou desempenhado antes que representado ou rememorado. Nesses desencadeamentos de esquemas de a.;ao (habitos de pensamento, de linguagem, de movimento ... ) 0 passado esta ao mesmo tempo tao presente e tao totalmente invisivel, tao perfeitamente imperceptivel como tal que, de modo diferente da lembran<;a, confunde-se com a percep<;ao, a aprecia<;ao, 0 gesto ... "Mais habito que memoria, desempenha nossa experiencia passada, mas nao evoca a sua imagem" (Bergson, 1908: 164).
o PAPEL DOS IiABITOS Urn homem que se habitua a tudo, penso que esta e a melhor definit;ao que se pode dar do homem (Fiodor Dostoievski. Lembranc;as do coso dos mar/os).
Ao fazer uma pesquisa historica sobre 0 conceito de "habito" (habit) em sociologia, Charles Carnic concluiu que sao as lutas institucionais da sociologia (dominada) contra a psicologia (dominante, principalmente na sua dimensao behaviorista nos Estados Unidos) que explicam, em grande parle, a posi<;ao marginal que 0 conceito pede ocupar na sociologia (Carnic, 1986). 0 conceito foi, de algum modo, vitima da vontade de autonomiza<;ao-Iegitima<;ao da disciplina sociol6gica e de sua revolta antibehaviorismo. Ao abandonar 0 terreno de estudo do "habito" aos psicologos, os soci610gos, de cerlo modo - por razoes de estrategia cientifica -, perderam uma batalha para poder ganhar a guerra (reconhecimento-institucionaliza<;ao da disciplina); sacrilicaram uma parle do que poderia ter sido 0 seu territorio para garantir 0 exito de sua reivindica.;ao legitima de autonomia. As vezes e melhor perder uma parle do territorio e garantir sua independencia do que lutar em todos os campos e arriscar-se a tudo perder. Foi assim que a no<;ao de "habito" foi abandonada e reduzida a ideia de "rea.;ao mecanica a estimulos determinados", desprovida de reflexividade e auto-engendrada. No pensamento de numerosos sociologos americanos do come<;o do seculo, o termo "habito" estava obrigatoriamente Iigado a concep<;ao reducionista do behaviorismo em materia de estudo da a<;ao humana. Habitos e outros reflexos condicionados 56 eram aceitos pelos sociologos para os quais a a<;ao reflexa tinha uma imporlancia primordial. De W.I. Thomas e F. Znaniecki a T. Parsons, passando por R.E. Park e E.W. Burgess, sera lembrada, de maneira recorrente, a primazia e 0 lugar central da consciencia, da reflexao, dos elementos intelectuais da ac;ao, das regras conscientemente seguidas. etc., quer dizer, as dimensoes que, alinal de contas, nos diferenciariam do reino animal e da ordem psicologica. Mais do que de "habito", preferir-se-a falar de "atitude". Entao, por que voltarlO a uma no<;ao que parecia ter sido definitivamente enterrada? 10. Ver em J.e. Kaufmann (1997: 133-147) 0 capitui9 X dedicado ao habito.
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Em primeiro lugar, as razoes inversas daquelas que levaram ao seu abandono. Hoje a sociologia pode refazer os lac;os com a psicologia (nas suas diferentes formas: da psicologia experimental a psicologia cultural, passando pela psicologia clinical. Poder-se-ia, ate, dizer que ela deve fazer isso, se nao quiser continuar a viver com uma concepc;ao ultrapassada da psicologia enquistada nas suas teorias da ac;ao, da emoc;ao e da cognic;ao. Em seguida, porque, diferente da noc;ao de habitus, que
e a (mica -
com a da "rotina" utilizada por certos interacionistas
nOT-
te-americanos (Strauss, 1993) - a fazer referencia central aos habitos incorporados na sociologia contemporanea, a noc;ao de habito pennite evitar uma confusao fatal para a reflexao em ciencias sOciais, a saber, a confusao feita entre habito como modalidade da ac;ao, involuntario, inintencional, e 0 genero (reflexivo ou nao reflexivo) de habito (por exemplo, ter 0 habito de bater uma bola de futebol versus ter 0 habito de considerar gramaticalmente a linguagem). Assim 0 habito pode ser um habito de pensamento te6rico, um habito de reflexividade, de planificac;ao, de conceitualizac;ao, etc., e nao e, absolutamente, redutivel aos comportamentos pre-reflexivos. Um habito intelectual, culto, que supoe 0 mais alto grau de reflexividade, nao deixa de se realizar pre-reflexivamente nos raciocinios cotidianos dos pesquisadores. Uma pessoa erudita pode servir-se dos habitos especificos de reflexividade sem perceber, sem sequer pensar neles, sem nenhuma necessidade particular de reflexividade - e e isto que pennite agilidade em seu raciocinio. Ser reflexivo (num ponto, diante de uma situac;ao, uma obra, a prop6sito de um objeto, de um enunciado ... ) nao significa por reflexivamente em ac;ao a sua reflexividade, pois esta provem de habitos contraidos Oncorporados) no exercicio escolar prolongado, na conversac;ao familiar ou mundana, na leitura de obras cientificas ou filos6ficas, etc. Portanto, isso nao constitui um habito de genero pre-reflexivo como unico genero de habito possive!. Contrariamente a um usa muito difundido em ciencias sociais, nao oporemos 0 "habito" ou a "rotina" a "reflexividade" ou a "consciencia", mas falaremos de habitos corporais, gestuais, sens6rio-motores, etc., e de habitos reflexivos, deliberativos, racionais ou calculadores. A segunda especie de habitos nao e menos construida socialmente na repetic;ao e no treinamento fannais au informais
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o habito como esquema de ac;ao e que esta no principio de toda ac;ao involuntaria (semelhante a mem6ria involuntaria). Esta ligada a todo um passado socializador que 0 constituiu progressivamente, desde as primeiros passos, os primeiros
balbucios hesitantes, desajeitados, dolorosos ou lentos ate as praticas talentosas (sejam elas da ordem do gesto, da palavra, da percepc;ao, da avaliac;ao ... ). Para haver habito, esquema de ac;ao, e preciso, pois, a repetic;ao. "E nadando que se aprende a nadar". As f6nnulas aristotelicas da Etica a Nic6maco, convertidas em proverbio popular, dizem 0 essencial do modo de constituic;ao dos habitos. 50mente a acumulac;ao-repetic;ao (voluntaria ou involuntaria, organizada pedagogicamente ou tirada das experiencias sociais) de comportamentos, de praticas relati11. 0 modelo "hilbito au rotina"/"situat;ao de crise"/"reflexao ou consciencia" jil. est€!. presente na obra de Durkheim. Encontra-se, nao questionada, em James Dewey, Anselm L. Strauss e em Pierre Bourdieu.
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I !
vamente analogas pode constituir esses "resumos de experiencia", como belamente os chamava Piaget, que sao os esquemas de a~ao ou, dito de outro modo, os habitos. Freqiientemente eles sao tao bem interiorizados e naturalizados que se poderia ate crer que eles mesmos sao 0 seu proprio motor, esquecendo entao os desencadeadores infinitesimais que os ativam 12 . Quando sao postos em a~ao, desencadeados, os habitos gestuais, corporais, que estao suficientemente constituidos 13 , podem deixar 0 campo de consciencia livre para os habitos de reflexao, de conversa~ao intema, de sonho desperto, assim como urn piloto automatico num aviao desobriga os pilotos de uma parte de sua vigilfmcia atencional. t possivel concatenar de maneira bastante natural os gestos sem ter necessidade de mandar 0 corpo faze-los, sem que nenhum calculo consciente intervenha para gUia-Ios. Assim, podemos conduzir urn carro e ficar pensando em nossas preocupa<;6es profissionais ou familiares
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cozinhar e ao mes-
mo tempo pensar no que vamos fazer no fim de semana, c1assificar os assuntos enquanto preparamos mentalmente uma carta que devemos redigir, etc. No entanto, 0 habito de genero nao reflexivo e retificado sem cessar, corrigido e controlade pelo desencadeamento de habitos de reflexao no proprio tempo da pratica, pois as circunstancias da a~ao raramente permitem que a consciencia e a reflexao se ausentem completamente. Urn improviso, uma dificuldade que surge, etc., leva o habito nao reflexivo a coordenar-se, a unir-se a habitos mais reflexivos de condutao Longe de sobrecarregar a a¢o, de diminui-Ia ou ate de paralisa-Ia, a reflexao e a decisao refletida surgem para facilita-Ia e permitir que retome seu curso normal. DA TRANSFERtNCIA ANALiTlCA
ARElA«;:Ao DE ENTREVISTA
Nas reflexoes psicanaliticas acerca da "transferencia analitica" encontram-se observa~oes congruentes sobre a maneira como a memoria e a a¢o sao desencadeadas, permitindo que as situa~oes passadas (conflituais e muitas vezes recalca-
das) sejam reproduzidas, representadas (a~ao) ou re-evocadas (memoria) pela transferencia analogica, num contexto da rela¢o pSicanalista/paciente (Laplan-
12. Por exemplo, Paul Connerton critica a concep~ao dos habitos como competfuldas ou habilidades aespera de serem retomadas pela a¢o ("waiting to be called ito action") em circunstancias apropriadas ("on the appropriate occasion"). Connerton da 0 exemplodos "maus habitos" para sublinharo fato de que as httbi· tos sao tendfu1cias ou impulsos fortes para agirde uma certa maneira, ainda quando conscientemente 0 ator mio 0 deseja. Entao a dir~ao e para urn mooelo da autopropulsao e 0 habito incorporado nao tern necessi· dadedenenhum apoio, de nenhum encorajamento nem de nenhum desencadeador extemo (1989; 93),
13. Trata-se entao daquilo que certos psic61ogos chamam de "modulariza~ao"; "A modularizac;ao cobre todos os processos pelos quais um ato motor constitutivo de uma sequencia adquire wna reJativa constancia de dura~ao, dequantidade de energia requerida ede fonna, e acaba realizando-se sem que haja necessidade de intenup~ao para tratamento de uma infonna~ao" (Bruner, 1991; 146),
14. "Quando, por exemplo, 0 sinal muda para vennelho quando chego com meu carro, em geral nao de1ibero e, em seguida, escolho tirar 0 pe do acelerador e frear. De fato, a maioria das a~6es que executamos sao sem delibera~ao nem escolha. Na maioria dos casas, as habitos, os desejos e as impulsos predominam - agimos como se a fizessemos muito naturalmente, imediatamente, sem reflexao au especula~ao de qualquer tipo que seja" (Melden, 1968; 28),
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che & Pontalis, 1990; Bakhtine, 1980). A estrutura especifica dessa rela,ao constitui 0 contexto que provocara 0 "despertar", a re-atualiza,ao das experiencias passadas, sedimentadas. Ao modificar a configurac;ao das rela,oes analisante/analisado, se provocaria 0 surgimento de outros elementos desse passado e aqui se ve bem que a rela,ao passado-presente nao e simplesmente dedutiva, "saindo" 0 presente naturalmente, pura e simplesmente do passado. Freud faz uma diferen,a entre 0 que e da ordem da rememora,ao e 0 que e da ordem da repeti,ao transferencial. No primeiro caso, a rela,ao analitica, que deve ser feita numa especie de neutralidade analitica (onde a psicanalise se esforc;a, 50bretudo por suspender todo julgamento normativo - moral, religioso, cultural em reia,ao ao seu paciente), provoca 0 despertar de lembran,as seja pela tecnica da livre associa,ao a partir de urn desencadeador dado (palavra, imagem ... ), seja pela pr6pria rela,ao que se instaura entre os dois protagonistas da cena analitica. No segundo caso, em vez de se lembrar, 0 paciente poe-se a representar, na rela,ao com 0 psicanalista, uma rela,ao (conflitual) que tinha com seu pai, sua mae ou qualquer outra pessoa-chave de seu passado. Trata, assim, 0 analista, por analogia pratica, como um quase pai, uma quase mae, etc., e reproduz (nunca totalmente identical a rela,ao que tinha com eies. A abertura do passado por elementos desencadeadores ou pela forma da rela,ao que se instala entre 0 psicanalista e seu paciente tern, inevitavelmente, efeitos catarticos para este ultimo. Mas pode-se igualmente pensar na situa,ao mais banal para 0 soci61ogo, e raramente pensada como tal, de entrevista sociol6gica. No fundo, 0 entrevistado sempre diz sua "vida" (suas prilticas, suas opinioes, seus gostos, suas emo,oes ... ) atraves da estrutura de uma intera,ao pesquisador/pesquisado. A situa,ao de pesquisa tern, pois, urn papel importante na determina<;:ao de quem, no conjunto das experiencias passadas, sera efetivamente mobilizado. Portanto, ela desempenha um poderoso papel de sele,ao, que implica que uma parte das experiencias esta sumida, nao ativada e, as vezes, ate conscientemente morta (Singly, 1982). Essas experiencias podem reaparecer em outras ocasioes, se a nova situac:;ao
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A situa,ao de entrevista e como um quadro social particular no qual uma parte da "mem6ria" da pesquisa (de suas experiencias, de suas praticas ... ) vai poder atualizar-se. A rotina academica tende a pensar a entrevista como uma situa,ao que permite gerar uma informa,ao (opinioes, representa,oes, etc.) que preexistiriam a relac;ao de entrevista como um objeto encapsulado na cabe,a do pesquisado. 0 soci610go esta, entao, para as palavras dos pesquisados assim como 0 pescador esta para os peixes. Com uma boa tecnica, 0 pescador trara com sua rede os peixes preexistentes ao ato de pescar. Mas as palavras nao esperam (na cabe,a ou na boca dos pesquisados) que urn soci61ogo venha "coleta-las". Elas sao 0 produto do encontro de um pesquisado dotado de esquemas de percepc;ao, de apre-
15. Olivier Schwartz descreve a caso de uma muther ques6 tern urn discurso entico sabre a condir,:ao de seu rnarido quando eta esta sozinha com 0 pesquisador (1990: 237).
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cia~ao, de avalia~ao ... construidos no decorrer de suas multiplas experiencias sociais anteriores e de uma situa~ao social singular definida ao mesmo tempo por suas grandes propriedades discriminantes (que a distinguem de outras formas de rela~6es sociais e, principalmente, de outros esquemas de intera~ao verbal tais
como 0 interrogat6rio policial, a entrevista administrativa, a entrevista para emprego, a entrevista jomalistica, 0 exame escolar oral, a confissao religiosa, a cura
analitica, a conversa trivial, a troca de insultos rituais ... ) e por diversas outras prapriedades - longe de serem secundarias - ligadas as circunstfmcias da entrevista, ao seu lugar,
a maneira como 0
pesquisador S8 apresenta e conduz a entrevista,
etc. Quando 0 sociologo fixa para si mesmo 0 objetivo de captar as experiencias dos entrevistados, deve conseqUentemente se esfor~r por constituir urn dispositivo de desencadeamento dessas experiencias. Esse dispositivo pode basear-se na confian~a ou apoiar-se nos elementos mais materiais da situa~ao. Por exemplo, quando realizamos entrevistas sobre as praticas escolares mais cotidianas de professores que ensinavam em ambientes populares, tivernos a preocupac;ao de orientar as entrevistas para as situac;6es da sala de aula, suas praticas, para descri~6es
do desenralar das aulas, etc., pedindo amiude que os professores dessem exemplos. Citavam "de memoria", mas tambem se levantavam freqiientemente durante a entrevista para buscar cademos de alunos, urn manual escolar, 0 caderno de prepara¢o e mostrar exercicios feitos, "faltas", ler trechos dos textos dos alunos, etc. A quase totalidade das entrevistas era feita na sala de aula onde os professores, interrogados no seu ambiente profissional, sentiam-se visivelmente ain-
da tornados pelas "preocupa~6es" do dia, cercados de cademos, de fichas de prepara~ao, de manuais escolares e de diferentes materiais pedagogicos, que tinham sido utilizados no mesmo dia ou durante a semana. Estavam investidos em seu status de professor e a sala de aula dava a eVidencia a conversa e a apoiava imperceptivelmente a cada instante (Lahire, 1993a).
As experiencias evocadas pelo pesquisado, a maneira como da explica~6es, as experiencias intencionalmente mortas como aqueIas que inconscientemente
nao poderao aparecer, tudo isso dependera da propria forma que tomar a rela¢o social de entrevista, que constitui assim uma especie de filtra "decidindo" sobre 0 dizivel e 0 indizivel, favorecendo 0 enunciado de certos acontecimentos, mas tornando-se urn poderoso obstaculo a evoca¢o de outros acontecimentos, etc. Elementos tao evidentes como 0 sexo do entrevistado, sua idade, sua origem etnica ou sua origem social determinam tambem com muita for~ 0 tipo de discurso que poder€! ser mantido pelo pesquisado 16 • 16. Basta pensar na escolha "evidente" (mas que nenhum lingiiista, psicolingiiista ou psic61ogo tivera ideia de fazer antes dele) feita por William Labov (1976 e 1978) de pedir a urn pesquisador negro (e ele tambem proveniente do gueto) para gravar discursos "naturais" em vemaculo norte-americano dentro dos guetos negros de Nova York. Alias, quando fiz entrevistas com professoras (1983a) ou com pessoal especiaUzado das escolas matemais (1983b), grande parte das entrevistas devia sua riqueza - e acredito que tambem a sua qualidade - a uma especie de rela~ao as vezes nao dita, as vezes explidtamente evocada (''Tenho urn filho ou uma filha da sua idade"; "Voce me lembra meu filho") do tipo mae-filho. Essa transferencia da relaJ;iio mae-filho no contexto da entrevista sociol6gica fOi, as vezes, acompanhada de outras cumplicidades fundadas sobre experiencias familiares ou culturais comuns.
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UMA TRANSFERlBILlDADE RELATIVA
Epossfuel julgar urn homem pelos trat;os mais comuns de sua vida; mas, uisto a natural instabilidade de nassos cos tumes e opinioes, jreqiientemente me pareceu que mesmo os bons Qutores noD tern razoo em se obstinarem em fazer de nos uma contextura constante e solida (Montaigne. Essais, Livro segundo). Durante muito tempo a sociologia viveu na evidencia nao questionada da necessaria transferibilidade (transponibilidade) e do carater for~osamente "generalizavel" dos esquemas e das disposi~6es culturais. Na medida em que, mais uma vez, os soci6logos tomaram emprestado aqui - sem fazer muita referenda a isso -
dos achados cientificos de uma situa~ao hist6rica determinada das pesquisas psicol6gicas (essencialmente piagetianas), nao e inutil reabrir as portas da psicologia passada e contemporanea para questionar aquilo que funciona doravante no melhor dos casas como uma rotina academica teorica, que permite, apesar de tudo,
fazer um estudo das Iiga~6es e passagem de um dominio de atividade ou de existencia ao outro e, no pior dos casos, a maneira de um simples tique (mau habito) de Iinguagem sem nenhuma especie de conseqilencia em materia de estrutura~ao dos objetos de pesquisa e de produ~ao de conhecimentos sobre 0 mundo social. A volta para 0 recalcado (a psicologia) permite nao apenas situar a origem dos problemas colocados pelas no~6es de transferencia ou de transposi~ao, mas tambem sublinhar a crescente desconfian~a de uma parte dos psic610gos contemporaneos - preocupados em sair do laborat6rio e da 16gica da experimenta¢o para trabalhar outdoors, em contextos sociais variados e contrastados - em rela~ao a essas no<;6es.
Poder-se-ia chamar de "generaliza¢o abusiva ou prematura" (ou ainda "falta de modfzstia te6rica ") 0 problema essencial subentendido pelo uso das n~6es de "transferibilidade", de "transponibilidade" ou de "generalizabilidade". De fato, 0 deslizamento sutil e insensivel do potencia/mente transferivel e generalizfwel para a transferencia e a generaliza~ao empiricamente constatadas e atestadas e o problema. Nao e cientificamente contestavel que um esquema ou que uma dispOSi¢o estejam "dispostas" a serem ativadas em contextos diferentes daquelesmas analogos a eles - em que foram adquiridos, construidos e constituidos. Mais contestavel e a ideia segundo a qual esses esquemas ou essas disposi~6es seriam todos e em tadas as acasic5es transferiveis e generalizflVeis 17. Este simples deslizamento semantico acarreta uma serie de erras de interpreta~ao e muita pregui~a empirica no pesquisador. Ao passar diretamente ao "presumido transferivel e generalizavel", 0 pesquisador faz um curto-circuito no procedimento normal da pesquisa e evita a cansativa compara¢o das praticas de um dominio de atividade com 17. "Segundo este usa, 0 hflbito e urna disposil;:ao duravel e generalizavel que impregna a a~ao de uma pessoa num dominio inteiro da vida au, no caso extremo, durante toda a vida - neste caso 0 tenno chega asignificar a maneira, 0 espirito, a tendencia ou 0 perfil g~ra1 da personalidade" (Carnic, 1986: 1046).
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outro all mesma de uma situac;ao com Dutra, que e a (mica que permite dizer se a transferencia ou a generaliza~ao ocorreram (pregui~a empirical. Por outro lado, da analise dos comportamentos deduz com pressa demais a~6es e praticas de um ator ou de uma serie de atores num domInic de atividade, num contexto social au numa microssituQCQo determinada dos esquemas au das disposi<;6es gerais,
em suma, dos habitus que funcionariam igualmente por toda parte e circunstancia (erro de interpreta¢o). Nao se terminaria de citar artigos ou obras de ciencias sociais que fazem dedu~6es de uma entrevista ou da observa~ao de um ator, num tipo particular de contexto de disposi~6es supostas gerais e transponiveis. Diga-se o que se quiser, as ciencias sociais nao fazem melhor que 0 sensa comum com uma no~ao como a de "carater". Com a pequena diferen~ que a disposi~ao e explicitamente considerada como socialmente constituida atraves das condi~6es de existencia, 0 soci6logo generaliza e reifica, em tra<;05 disposicionais constantes,
permanentes e transponiveis, as atitudes, os tipos de rea~ao e de a~ao, etc., tirados da observa~ao direta dos comportamentos num contexto restrito ou, mais freqlientemente ainda, de sua reconstru~ao atraves da entrevista. Sao raros os trabalhos realizados por um mesmo ator (ou uma mesma serie de atores) em dominios ou situa~6es muito diferentes da pratica. Como, nessas condi~6es, pretender poder apreender urn habitus geral (urn sistema de disposi~6es) a partir do exame do comportamento observavel em circunstancias bern determinadas e Iimitadas?
As diferen~as de comportamento observaveis de urn contexto a outro seriam apenas 0 produto da refra¢o de urn mesmo habitus (de urn mesmo sistema de disposil8 ~6es) em contextos diferentes . 0 regime de transferencia generalizada impede, por conseguinte, que se conceba (e se observe) a existencia de esquemas de aplica¢o muito local (proprios a situa~6es sociais ou a dominios de atividade particulares), de modos de categoriza¢o, de percep~ao, de aprecia~ao, de avalia~ao ou de a¢o sensorio-motora parciais ligados a objetos ou a dominios especificos. Ao serem abusivamente generalizadas, as no~6es de transferencia e de generaliza~ao perdem a sua for~ imaginativa (aquela que atrai a aten¢o do pesquisador sobre os la~os analogicos de um dominio de praticas a outro) e tomam-se obstaculos teoricos para 0 conhecimento de uma parte dos processos observaveis no mundo social. A origem das concep~6es sociologicas francesas sobre a transferencia encontra-se essencialmente no psicologo Jean Piaget. Ele definia os "esquemas de a¢o" da seguinte maneira: "Chamamos esquemas de a¢o aquilo que, numa a¢o, e assim transponfuel, generalizauel ou diferenciavel de uma situa~ao a seguinte, ou, dito de outro modo, aquilo que existe de comum as diversas repeti~6es ou aplica~6es da mesma a~ao. Por exemplo, falaremos de 'esquema de reuniao' para as condutas como a de urn bebe que amontoa pe~as, de uma crian~a com mais idade que junta objetos procurando classifica-los, e encontraremos esse esquema em inumeraveis formas, ate em opera~6es logicas tais como a reuniao de duas classes (os pais + as maes ~ todos os pais). Igualmente, encontrar-se-ao 'esquemas de ordem' nas condutas mais disparatadas, como usar certos meios 'antes' de atingir 0 18. "0 mesmo habitus de classe privilegiada pode gerar opinioes politicas ou esteticas radicolmente opostas" (Bourdieu & Passeron, 1970: 51).
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lim, de classilicar as pec;as por ordem de grandeza, construir uma serie matematica, etc. Outros esquemas de ac;ao sao muito menos gerais e naG levam a operOl;6es interiorizadas tao abstratas. Por exemplo, os esquemas de balanc;ar um objeto suspenso, de puxar um veiculo, de visar urn objetivo, etc." (Piaget, 1992: 16, destacado por nos). Neste texto se reconhece a fonte principal da definic;ao mais "tecnica", isto e, mais precisa, do habitus em Pierre Bourdieu. Ora, esta delinic;ao do esquema de ac;ao chama particularmente a atenc;ao do Ieitor contemporaneo. Ai se encontra, de fata, ao mesmo tempo, 0 que Bourdieu tera retido de sua leitura de Piaget (primeira parte) e 0 que deixou de lade (segunda parte). No tocante a primeira parte da citac;ao, se reconhece a definic;ao do esquema como aquilo que e generalizitvel numa ac;ao e 0 que e transponivel de uma ac;ao a outra, mas encontra-se tambem a mesma certeza quanto a transponibilidade dos esquemas de uma situac;ao a outra e de um dominio de atividade a outro. Parece nao haver nenhuma duvida para Piaget (como tambem para 0 prestigioso seguidor) que 0 "esquema de reuniao" realizado pelo bebe amontoando pec;as sera mais tarde atualizado por ocasiao "de operac;6es logicas tais como a reuniao de duas classes"!'. 0 psicologo desenvolve uma concepc;ao ideal e linear do desenvolvimento da crianc;a. De fato, para ele "0 esquema sensorio-motor aplica-se a situac;6es novas e assim se dilata para abranger urn dominio mais amplo" (Piaget, 1978: 127). Atraves de suas multiplas experiencias, a crianc;a vai "generalizar 0 esquema" (ibid.: 202) ao aplicar a outros objetos, outras situac;6es, outros problemas (chupando 0 peito matemo, objetos postos na boca, seu polegar, sua lingua, sua mamadeira, etc., a crianc;a constitui cada vez mais 0 esquema de "chupar"). Ele se desenvolve por urn processo equilibrado de assimilac;ao das situac;6es aos esquemas incorporados e de acomodac;ao (de correc;ao) dos esquemas anteriormente adquiridos nas variac;6es e nas mudanc;as de situac;ao. Neste modelo, nao hit espac;o nenhum para algo que fosse da ordem da crise cognitiva ou sensorio-motora da crianc;a desprovida dos esquemas que perrnitem fazer frente a situac;ao. Uma "correc;ao sempre mais ativa dos esquemas" permite compreender "como as boas formas se sucedem as menos satisfatorias por uma acomodac;ao gradual das estruturas a experiencia e entre elas mesmas" (p. 344). 0 "novo" (a situac;ao presente) e forc;osamente remetida por assimilac;ao a "antiga" (0 esquema anteriormente adquirido) e a "diferenc;a" que 0 "novo" traz apenas conduz, por acomodac;ao, 0 esquema antigo para urn grau maior de generalizac;ao: "A medida que 0 objetivo novo se parece com 0 antigo, hit reconhecimento e, a medida que difere dele, hi! generalizac;ao do esquema e acomodac;ao" (p. 360). Tem-se ate 0 direito de perguntar como os novos esquemas podem constituir-se em tal modele de desenvolvimento, que privilegia a reproduc;ao-adaptac;ao de esquemas presentes bern no inicio do desenvolvimento da crianc;a e que, de correc;ao em reconhecimento, de acomodac;ao em generalizac;ao, de adaptac;ao em assimilac;ao, seguem a crianc;a, 0 adolescente e depois 0 adulto, dos primeiros jogos infantis e das primei19. Continua em suspense, no entanto, a questao de saber se e0 pesquisador que "ve" urn esquema de reuniao nas duas situal;oes ou se, de fato, do ponto de vista do funcionamento cognitiv~ da crian~a, hi! transferencia do mesmo esquema de situal;oes de manipulac;:6es materiais para as situac;:6es mais 16gicas e abstratas.
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ras manipula~6es as estruturas mais racionais e mais complexas da logica e da ciencia contemporanea. A ideia segundo a qual a acomoda¢o consistiria numa "extensao progressiva do esquema total, 0 qual se enriquece enquanto permanece organizado" (p. 121-122) e que, por sua vez, a "assimila~ao reprodutora", que "constitui os esquemas", e apenas "a tendencia de toda conduta e de todo estado psiquico a se conservar e a tirar, deste fim, sua alimenta¢o funcional no ambiente exterior" (p. 359-360), poderia reduzir-se a uma formula do tipo "como fazer 0 novo com 0 velho", ou melhor, "como continuar a fazer 0 velho a partir do novo". Mutatis mutandis, encontram-se mais ou menos as mesmos termos nas afirma<;6es de
Pierre Bourdieu: "Quanto ao principio dessa coerencia minima (da logica pratica), nao pode ser outra coisa que a prfitica analogica fundada na transferencia de esquemas, que e feita sobre a base de equivalencias adquiridas que facilitam a substituibilidade e a substitui~ao de uma conduta por outra e permitem controlar, por uma especie de generaliza¢o pratica, todos os problemas com a mesma forma suscetiveis de serem propostos por situa~6es novas" (Bourdieu, 1997: 71). Ese, em vez de se dilatarem, os esquemas estivessem simplesmente inibidos ou desativados para deixar 0 lugar para a forma~ao ou ativa~ao de outros esquemas"? E se existissem situa~6es que nao pudessem ser facilmente assimiladas pela crian~a ou pelo adulto porque os esquemas anteriormente adquiridos nao conseguem acomodar-se? Piaget parece ver apenas "acomoda~6es progressivas" no quadro de uma hierarquia bastante simples dos esquemas mais satisfat6rios para os esquemas menos satisfat6rios, dos mais eficazes ou adaptados aos menos eficazes ou adaptados. Mas 0 problema do soci610go reside no fato de que e socialmente dificil pensar uma tal hierarquia e uma tal homogeneidade de esquemas: 0 que eadequado para 0 ator enquanto pai (em rela~ao ao seu filho) nao 0 e enquanto filho (em rela~ao ao pail, 0 que e satisfat6rio ou pertinente em tal universo social (por exemplo, profissional ou escolar) nao 0 e mais no outro (por exemplo, familiar), etc. Os esquemas socialmente pertinentes dependem dos contextos sociais (microssituac;ao social, configurac;ao social, universe social especifico, campo ... ) em que se realizam. Em vez de se dilatar e generalizar-se, podem Iimitar-se a ser apenas esquemas sociais especificos, no dominio de validade bern circunscrito. 0 mesmo ator aprendera a desenvolver esquemas de a¢o (esquemas sensorio-motores, esquemas de percep~ao, de aprecia~ao, de avalia¢o ... ) diferentes em contextos sociais diferentes. Nao sera, for~osamente, inteiramente 0 mesmo enquanto pai, enquanto empregado de escrit6rio com seus colegas (diferente ainda na mesma situa~ao profissional, mas na presen~ de superiores hierarquicos), enquanto filho, enquanto membro de uma associa~ao ou de uma comunidade religiosa ... Cada contexto social pode (e trata-se de uma questao que a teoria nao pode nem deve decidir a priori) desencadear esquemas especificos. Acontece 0 mesmo com os esquemas sens6rio-motores mais elementares. Se, em tempo normal, "a 20. Como sugere uma parte da psico[ogia cognitiva: "0 desenvolvimento da racionalidade nao p<Xle reduzir-se it substituit;ao majorante de estruturas novas, sejam etas simh6licas ou subsimb6licas, mas 1... 1desenvolver-se e tambem e amiude inibir uma estrutura concorrente" (Houde, 1995: 3).
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vista de degraus e suficiente para desencadear os movimentos apropriados das pemas e dos pes no sujeito habituado a subir uma escada" (Piaget, 1978: 118), enquanto a visao de uma mao estendida diante de mim desencadeia espontaneamente 0 movimento de meu proprio bra~o e de minha mao, que, por sua vez, se estende, poder-se-ia imaginar 0 que produziria urn mundo psicologicamente mais rigido onde so 0 esquema "fechar a mao" teria sido adquirido e constituiria a resposta (mica a toda confronta¢o com "obstaculos" exteriores. Diante de urn lance de escada observar-se-iam, entao, improvaveis individuos estendendo 0 bra~o ... Mas, no mundo social, acontece que certos atores levantam a perna quando se Ihes estende a mao! Por distra¢o temporaria ou inadapta¢o social mais duravel, os atores podem ativar esquemas Gulgados) totalmente inadaptados a situa~ao e produzir comportamentos que podem provocar 0 riso (por exemplo, numerosos personagens de novelas em constante desvio com rela~ao as situa~6es que sao levados a viver21 ), irrita~ao (por exemplo, os transfugas de c1asse ou os filhos em "fracasso escolar" que freqiientemente dao respostas "fora do assunto", aparentemente absurdas e que estabelecem dialogos de surdos com os professores) ou medo (por exemplo, os casos de "Ioucura" ou de "delinqiiencia"). Tambem no mundo cientifico se e estigmatizado com tal rigidez cognitivo-social. Este e 0 caso de usos obsessivos de um metoda de pesquisa que os autores de Metier de socialogue (Bourdieu, Chamboredon, Passeron, 1973: 71) denunciavam. As crian~as de ambientes populares em situa~ao de "fracasso escolar", que temos estudado, as vezes sao levadas a viver situa~6es tao desconcertantes que a assimila¢o-acomoda¢o se tomou problematica para elas. Podem altemar entre varios casos: 1) levam as situa~6es escolares a sua logica propria, mas em compensa¢o conhecem san~6es negativas com rela~ao a essa reapropria¢o, esse desvio dos exercicios e deveres escolares (Lahire, 1993a)22; 2) eles tentam entrar, desajeitadamente, na nova logica e ai ainda passam por san~6es negativas (ainda que menos fortes que no primeiro caso); 3) uma parte deles conS'8gue, mais ou
21. Este
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case de certas novelas de Jean-Philippe Toussaint (1985, 1986 e 1988).
22. Eo case das manifesta~6es diversas das "dificuldades" escalares dos alunos provenientes de meios populares, que sao apenas a expressao de urn sentimento de estranheza experimentado em formas sociais particulares e da resistencia - naD necessariamente consciente - em rela¢o a essas fannas sociais? Aqueles que
nao podem entrar nas fonnas escolares de relaC;6es de aprendizagem e que "desinvestem" as praticas escalares, que se reapropriam pragmaticamente-diaiogicamente dos exerdcios escalaTes mais foonais e fazernpor necessidade de adaptac;ao - "imitac;6es" e "automatismos", conhecem a experiencia curiosa comum a todos as que sao obngados a entrar numa l6gica da qual nao tern os meios de compreender de maneira sis· tematica, que sao obngados a viver em fonnas, em relaC;ao aos outros, em que pennanecem estrangeiros. as Uautomatismos" au as "imitac;oes", que podem dar a ilusao do" exito" ao pennitirque esses alunos apre· sentem "bons" resultados, mesmo quando nao tern a dominio dos pnndpios de produC;ao escolar desses re-sultados. No entanto, it menor dlada escolar apresentada por urn novo exerddo, 0 "automatismo" aparece claramente e cessa de fazer ilusao, mostrando assim 0 fraco grau de dominio da situac;ao escolar au, mais precisamente, 0 carater extremamente pouco transfenvel dos conhecimentos, tiknicas, modos de radod· nio, habilidades escolares adquiridas. as comportamentos escolares que colocamos sob os tennos "desin· vestimento escolar", "imitac;6es orais" ou "automatismo" sao, no entanto, reveladoresdo esforc;o de adap· tac;ao a um universo escolar percebido como estranho e estrangeiro. Da mesma maneira, diante da constatac;ao da existencia de capaddades intelectuais especificas em praticas tao diferentes como "escrever uma carta" ou "ter urn livro de contas", a antrop61ogo ingles Jack Goody su· genu "que a generalizac;ao de capaddade mostrada par um individuo num dominio de atividades para au· tras esferas esta sujeita it duvida" (1994: 2~5).
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menos fragilmente, mais ou menos dolorosamente, construir esquemas culturais
especificamente escolares que estao em total ou parcial dissonancia em rela¢o aos esquemas anteriormente adquiridos no seio do universo familiar (entao se apoiam nas particularidades de suas configura~6es familiares e come~m a dar sentido a vida dupla que se inicia) (Lahire, 1995a). Enfim, a prop6sito da segunda parte da cila¢o de Piaget, nao hi! como nao natar 0 esquecimento por parte de Bourdieu da possibilidade aberta por Piaget de tomar esquemas menos gerais, mais especificos, que correspondam a situa~6es limitadas. Mas 0 proprio Piaget raramente se lembra do caso desses esquemas menos abstratos e menos gerais em suas defini~6es do esquema: "Chamamos de esquemas sensorio-motores as organizac;6es sensorio-motrlzes suscetiveis de aplica<;ao a urn conjunto de situa~6es analogas e que assim testemunham assimila~6es reprodutoras (repeti~ao das mesmas atividades), recognitivas (reconhecer os objetos atribuindo-lhes urn significado em fun~ao do esquema) e generalizadoras (com diferencia~6es em fun¢o de situa~6es novas)" (piaget, citado em Dolle, 1988: 61).
DOS ESQUEMAS GERMSAOS ESQUEMAS PARCYUS Os trabalhos psicologicos contemporaneos estao longe de confortar a ideia de urn processo transferencial generalizado. Assim, Jean Lave mostra que a transferencia de saber (learning transfer) atraves do tempo e de uma situa¢o it outra esta longe de ser urn fato evidente, inclusive quando se consideram os resultados das pesquisas dos teoricos da transferencia cognitiva (Judd, 1908; Thorndike, 1913; Simon, 1980). Por exemplo, em muitos estudos, os que passam por testes experimentais nos quais devem resolver problemas analogos (constituidos como tais pelos pesquisadores) nao conseguem transferir 0 modo de resolu~ao de urn problema ao outro quando nao se chama explicitamente a aten~ao deles para a liga¢o entre os problemas (Lave, 1988: 27). Mas se numerosos estudos p6em em duvida a evidencia da transferencia cognitiva em materia de resolu~ao de problema de uma situa~ao experimental a outra - mesmo quando essas situa~6es, contextualmente (trata-se de urn teste) e cognitivamente (urn mesmo tipo de tarefa: urn problema a resolver) homogeneas, sao concebidas para maximizar a probabilidade de apari¢o de uma transferencia (problemas formais distintos propostos imediatamente urn apos 0 outro, com indica¢o explicita de uma possivel transferencia)23 - a transferencia e ainda mais discutivel quando se refere a passagem de situa~6es experimentais ou escolares para situa~6es da vida diaria ou de uma situa¢o da vida cotidiana para outra. Por exemplo, mais do que transferencia das competencias aritmeticas escolarmente adquiridas para outras situa~6es da vida diaria que requerem uma atividade de ca1culo (como compras num superrnercado), observam-se praticas diferentes de aritmetica em situa~6es diferentes (ibid.: 63; Carraher, Carraher, Schliemann, 1985). 23. "1550 certamente nao deveria exigir esfon;os tao complicados para demonstrar as efeitos de transferencia casa se tratasse de fato do mecanisma principal de desenvolvimento do saber na teoria cognitiva e nas prati-
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cas de socializa~ao ocidentais. 0 que esta digressao antropol6gica nos ensina de novo pauca transferencia e nao ate que ponto ha muita" (Lave, 1988: 34).
e ate que ponto ha
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Mas a questao do carater generalizavel dos esquemas, bern como de sua transferibilidade, foi particularmente bern colocada e longamente trabalhada por pesquisadores que tentaram esclarecer os "efeitos cognitivos" das praticas da escrita. Urn dos pontos centrais dos trabalhos de Sylvia Scribner e Michel Cole (1981) consistiu justamente em por em evidencia a existencia de esquemas parciais, contextualizados, ligados a contextos bern especificos e cujo efeito nao se faz "sentir" (ou nao se "mede") alem desses contextos ("Em vez de mudan~as generalizadas na aptidao cognitiva, encontramos mudan~as localizadas nas habilidades cognitivas", ibid.: 23424). No debate entre psicologos, historiadores e antropologos, esses autores contribuiram para demonstrar 0 fato de que a presen~a da "escritura" em certas sociedades nao podia em nenhum caso constituir urn indicador da existencia de competencias ou de faculdades (meta)cognitivas gerais (ibid.: 229). Nas popula~6es Vai da Liberia, que eles estudaram, 0 uso de uma escrita de tipo silabico (e sem espa~o entre as palavras) e ao mesmo tempo ocasional, curto e tardio (pela idade de 20 anos). A sua aprendizagem se faz de maneira esporadica e ocasional (a necessidade de escrever uma carta, por exemplo, e a presen~a de urn amigo que saiba redigir cartas e disposto a mostrar como proceder). Em vez de serem ensinadas por elas mesmas numa rela~ao formal, institucional de aprendizagem", aprende-se a leitura e a escrita atraves das rela~6es interpessoais e inscritas nas praticas sociais particulares (uma "necessidade" particular de escrever) e sob formas de generos discursivos particulares (nao se aprende a ler e a escrever uma grande variedade de textos, mas a escrever ou a ler uma carta, uma lista de doadores e das dadivas estabelecidas p~r ocasiao de funerais, pianos, registros de transa~6es financeiras, de mercadorias ou de clientes ... ). Alem do mais, a vida social se organiza, em varios campos da pratica, fora de todo recurso as praticas da escrita e aos conhecimentos escritos. A maior parte dos processos de incorpora~ao efetua-se, assim, sem a media~ao da escrita (corpo de saberes objetivados pela escrita, praticas de escrita e de leitura associadas a esses conhecimentos ... ). Conseqiientemente, os contextos sociais dos usos da escrita permanecem relativamente marginais, ocasionais, e contrtbuem POllCO para produzir e reproduzir os
diferentes dominios da vida social. Compreende-se, imediatamente, muito bern, a ausencia de urn lugar e de urn tempo especificos de aprendizagem da escrita26 Partindo dessa situa~ao social objetiva, os efeitos cognitivos testados por Sylvia Scribner e Michael Cole dependem mais da ordem dos esquemas parciais, dos saberes particulares, restritos a situa~6es particulares, que da ordem dos esquemas 24. Da mesma maneira, diante da constata~ao da existencia de capacidades intelectuais especificas empraticas tao diferentes como "escreveruma carta" ou "ter urn livre de contas",
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antrop61ogo ingiesJack Goody su-
geriu "que a generalizal;ao de capacidades mostradas por um individuo num dominic de atividades para outras esferas esta sujeita a d6vida" (1994: 215). 25. Nao existem listas de silabas ou de sinais graficos que constituiriam 0 material basico de uma aprendizagem espedfica do ier-escrever. 26. Pudemos propor a sua anaiiseem Culture ecrite et inega/ites scola/res. Sociologie de l"'rkhec scolalre" d l'ecole primalre (1993a: 3640).
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gerais, duraveis e transponiveis (capacidades gerais para generalizar, para abstrair, para definir, para fonnalizar, para deduzir. .. ). Uma vez que os usos da escrita sao restritos, as esquemas adquiridos atraves desses usos 56 podem ser transferidos num numero reduzido de contextos ou de dominios de atividade bem circunscritcs. Inversamente, quando as contextos de uscs sao muito aumentados, as ocasi6es de transferencias de esquemas se multiplicam. Mas 0 que entao aparece claramente aos olhos dos pesquisadores e 0 fato de que as presumidas "capacidades gerais" medidas pelos psicologos (do genero das elaboradas por Binet e Simon) para os testes logicos ou psicologicos sao capacidades tao limitadas como as outras, mas socialmente muito mais valorizadas, a saber, capacidades de tipo escolar. Os Vai nao escolarizados nao tem bons resultados nos testes quando se trata de definir palavras, distinguir um objeto por seu nome, realizar raciocinios silogisticos au explicar 0 que nao acontece nos casos de
enunciados nao gramaticais, que sao competencias escolannente adquiridas. As ou os adultos escolarizados, treinados regulannente nesse tipo de exerci-
crian~as
cio, passam com sucesso nos testes na medida em que reconhecem imediatamen-
te, nas situa~6es-problemas propostos, os deveres escolares tacitos que ai se encontram. ConseqUentemente, nesses casos ha transferencia ana16gica de compe-
tencias escolares para situa~6es de teste. Mas, do ponto de vista de suas principais propriedades contextuais e cognitivas, os testes sao situa~6es quase escolares. Por exemplo, se os sujeitos escolarizados conseguem mais facilmente que os nao escolarizados fonnular veroalmente explica~6es sobre os motivos de sua resposta, e simplesmente porque "tais competencias sao exigidas pelo dialogo tipico professor-aluno dentro das salas de aula (... ). Os professores muitas vezes fazem aos alunos perguntas do tipo: 'Por que voce deu essa resposta?' Ou 'Va ao quadro e explique 0 que voce fez'" (Cole, 1996: 234). Michael Cole conciui, ironicamente mas com muito acerto, que a realidade que os psicologos constituem em "variavel dependente" (a bateria de testes) tem rela~6es intimas, ate incestuosas, com a realidade que a "variavel independente" (a escolariza~ao) encobre.
o que se passa, conseqiientemente, com a generaliza~ao dos esquemas ou da for~ dos
processos transferenciais? Evidentemente (mas a rotina acabou fazendo com que 0 esquecessemos), os esquemas se mostram tanto mais gerais porque encontram um maior numero de situa~6es sociais as quais podem ser aplicados ou nas quais podem ser mobilizados utilmente, adequadamente. Seu grau de transferibilidade ou 0 poder de seU carater generalizilvel nao depende, pOis, deles (de sua qualidade ou de sua propriedade intrinseca como Piaget os definia), mas das fonnas objetivas de organiza~ao da vida social que decidem a amplidao de sua transversabilidade (de sua transponibilidade). Um esquema de a<;ao (esquema sensorio-motor, esquemas de percep~ao, de avalia.;ao, de aprecia.;ao ... ) e geral quando encontra uma multidao de situa<;6es sociais propicias ao seu desdobramento (a sua transferencia); e parcial e local quando consegue ativar-se apenas em situa~6es limitadas, particulares e pouco freqiientadas no espa~o social. A genera, lidade (ou 0 carater parcial) de um esquema depende, pois, diretamente do grau de generalizaC;ao social e historica dos contextos nos quais e suscetivel de ser atualiza-
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do". E a questao de saber em que medida um esquema obse!Vado-reconstruido num contexto dado pode ser considerado como uma caracteristica cognitiva, sensorio-motriz ou afetiva central do ator, que sera posta em a¢o em toda uma serie de outros contextos, deveria ser posta e nao pressuposta pelo pesquisador. Quando ele esta na impossibilidade de responder a uma tal questao, este ultimo deveria esforglr-se, de todos os modos, para nao generalizar abusivamente aquisi~oes de conhecimento certamente Iimitadas, mas contextualmente pertinentes. Que os esquemas de a~ao (esquemas sensorio-motores, esquemas de motivade aprecia¢o ou de percep¢o) sejam sempre, num ou noutro grau, esquemas parciais, Iigados a um nome fin ito e Iimitado - mesmo se importante - de contextos de mobiliza~ao ou de ativa~ao, pode parecer evidente quando se toma, por exemplo, 0 caso das habilidades motoras. Aprender a esquiar ou a escalar um muro supoe a constitui~ao de uma serie de esquemas sensorio-motores particulares. Essas habilidades motoras (senso de equilibrio, de localiza~ao, flexibilidade, for~a muscular especifica ... ) comumente (exceto no caso de atividades profissionais ou quase profissionais que requerem tais capacidades: comandos florestais, salva-vidas em montanhas, bombeiros ... ) encontram, na vida cotidiana, poucas ~ao,
ocasi6es para se atualizar. Somente situac;6es excepcionais (por exemplo, no caso
da escalada, trepar numa a!Vore para buscar uma bola presa entre seus galhos ou para descer um gato apavorado) poderao mobiliza-Ias. Trata-se, como a oscila~ao de um objeto suspenso, a a~ao de empurrar um carro ou visar a um objetivo evocado por Piaget, de competencias especificas, Iigadas a contextos e dominios de praticas especificos. Fosse a situa¢o qual fosse, nao se teria a id€ia de pensa-Ios como esquemas de a~ao gerais e transponiveis. Mesmo 0 sentido do esfor~o, do treinamento ou da ascese adquiridos atraves do treino esportivo regular nao sera for~osamente transferivel a outros contextos sociais (por exemplo, profissionais, escolares ou domesticos). As vezes, uma parte dos esquemas sensorio-motores previamente constituidos na experiencia repetida da escalada ou do esqui, mas somente uma parte, pod era ser transferida ao pre~o de algumas adapta~oes a situa~oes novas, como por exemplo: passar do esqui alpino para 0 esqui aquiltico, da prancha a vela para 0 surfe, da condu~ao na Formula 1 para a condu~ao de carros em rali, da habilidade manual adquirida pela aprendizagem da costura para aquela requerida em certas industrias de montagem de aparelhos eletronicos, etc. De modo geral, uma parte dos psicologos se recusa a tratar dos problemas cognitivos (memoria, aten~ao, percep~ao, raciocinio, categoriza~ao ... ) "em geral", mas prefere considera-Ios como processos Iigados a "conteudos", aos dominios de saber ou de atividade sempre especificos (Shweder, 1991; Loarer, Chartier, Huteau, Lautrey, 1995). Em vez, por exemplo, de falar de "mem6ria" 27. Mas seja qual for 0 seu carater geral, as esquemas sempre estao marcados pelas e ligados as circunstancias (conteDdo de saber, tipo de atividade, dominic de existencia, etc.) singulares de sua constitui~ao. Estes "resumas de experiencia" conservam sempre em 5i 0 tra~o da natureza da experiencia atrav€s da qual sao constituiclos. teste fato que explica que se podem descobrir num mesmo inclividuo g05t05 au disposh;6es culturais disparatadas confonne a dominic cultural considerado: ao entrar numa disposil;ao estetica em materia de leitura literaria (por raz6es de forrnac;ao escolar), urn mesmo ator pode iniciar uma disposic;ao etico-pratica, menos escotarizada, quando ve televisao ou vai ao cinema.
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ou de "capacidade mnemonica" , os pesquisadores preferem falar de "formas especializadas da memoria" apropriadas a atividades especificas. Conforme os dominios a que se referem, os atores apresentarao resultados mnem6nicos "mais ou menos" bons e nunca lhes pode ser atribuida uma (boa ou rna) memoria "em geral"28.
DO REGIME DE TRANSFERENCIA GENERALIZADA AO REGIME DE TRANSFERENCIA UMITADA E CONDICIONAL Nao sou do opinioo que este julgamento que se fez de S%des, de ter argumentado su/iciente para 0 governa das eoisas domesticas, contra a acuso($QO de seu jilho, por ter vista uma de suas tragedias. Nem encontra a conjetura dos Parianos, enuiados para reformor os Milesianos, bastante para a consequencia que e1es tiueram. Visitando a ilha, eles notaram as terras mais bem cultivadas e casas de campo me/h~r gouernadas; e, tendo registrado 0 nome dos senhores delas, como jizeram do conjunto dos cidadiios no cidade, nomearam aqueles senhores como novas gouernadores e magistrados; julgando que, cuidadosos de seus neg6cios priuados, eles 0 sedam dos publicos (Montaigne. Ensaios, livro segundo).
Voltando ao nosso ponto de partida, pareceria presun~oso agir como se todo esquema fosse generalizavel, de aplica~ao sistematica e universal, seja qual for 0 dominio de pratica: considerado: "0 habitus, enquanto disposi<;iio geral e transponivel, realiza uma aplica<;iio sistematica e universal, estendida alem dos limites daquilo que foi diretamente adquirido. (... ) e que faz com que 0 conjunto das prilticas de urn agente (ou do conjunto dos agentes que sao 0 produto de condi~6es semelhantes) sao ao mesmo tempo sistematicas enquanto sao 0 produto de aplica~ao de esquemas identicos (ou mutuamente conversiveis) e sistematicamente distintos das praticas constitutivas de outro estilo de vida (... ) habitus diferentes, sistemas de esquemas geradores suscetiveis de serem aplicados, por simples transferencia, aos dominios mais diferentes da pratica" (Bourdieu, 1979: 190). Quando Urn sociologo postula a existencia de tais processos sociocognitivos, ultrapassa perigosamente 0 conjunto das precatadas e cansativas analises empiricas (sempre em curso, e preciso lembrar?) que, como vimos,lanc;am sobre cada termo empregado (esquema, transferencia, transposi<;iio sistematica, disposi<;iio geral, aplica<;iio sistematica e universal, etc.) a sombra da duvida e da interroga<;iio contextualizada. Ao universalizar os conhecimentos adquiridos de uma situa<;iio (nao inteiramente completa, e evidente) da psicologia contemporanea (piagetiana), se tera importado na sociologia, sob forma reificada, indiscutida e imutada ha mais de vinte anos, conceitos psicol6gicos que eram - como todo conceito cientifico - apenas es28. "Por exempio, os Vai sao capazes degravar listas impressionantes de nomes de clas Vai, ao passo que sao incapazes de se iembrar de certas infonnac;oes numa, situac;ao experimental" (Goody, 1994: 216).
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pecies de resume da situa~ao dos trabalhos psicologicos entre os mais avan~ados na questao. Alem do mais, basta retomar 0 exemplo da "escrita" dado por Pierre Bourdieu (ibid.: 193), seguindo Merleau-Ponty29, para i1ustrar "as transferencias de urn campo ao outro dos mesmos esquemas de a~ao" para se explicar 0 limite do modelo da transferencia generalizada. A maneira de tra~ar graficamente as letras conserva sua coerencia atraves das varia~6es de suporte ou de instrumenlo da escrita. Mas chegar-se-ia a dizer que as mesmas disposi<;:6es em a<;:ao na escrita manuscrita encontram-se no conjunto dos outros comportamentos sociais (personaIidade, estilo, carater ... ), 0 que constitui a hip6tese - cientificamente das mais contestilVeis - da grafologia? Se podem existir disposi<;:6es ou esquemas gerais e transponiveis, que" colorem" quase cada momento da eXistencia, que atravessam todos os dominios e que constituem a base do que comumente se chama "personalidade" (acento, prosodia, maneiras de se portar ou de rir ... ), esta situa~ao nao somenle nunca pode ser pressuposta e deve ser constatada empiricamente pela observa00 sistematica dos comportamenlos, mas nao deve ser urn obslaculo para 0 estudo dos esquemas mais parciais, "locais" au contextualizados.
o processo de transferencia analogica continua sendo, como vimos, urn dos principais meios para os sociologos de explicar 0 funcionamento cognitiv~, sensoria-motor, apreciativo, emocionai, etc., dos atores, mas essa transferencia nunca
se realiza, seja qual for 0 dominio de atividade ou a situa~ao considerada (regime de transferencia generalizada).Trata-se de uma transferencia limitada e condicional (condicionada pelas situa<;:6es sociais).
29. "Nossa escrita ereconhecidase tra~mos as letras no papel com tr~ dedosda mao ou noquadro, com giz, usando todD 0 nossa bra~o - porque nossa corpo nao a detem como poder de circunscrever urn certa espa-
c;o absoluto, em condic;oes das de uma vez por todas e por meio de certos mtisculos com exclusao dos QUtros, mas como uma patencia geral de farmular urn tipo constante Ide gestos?) mediante todas as transposi~oes que poderiam ser necessarias" (Merleu-ponty, 1992: 107-108).
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CENA4 A experi€mcia liter6ria: leitura, sonho e atos falhos
Eles los feitores} nao seriam, em minha opiniao, leitores meus, mas os proprios leitores deles mesmos, seodo 0 meu liuro apenas urna especie daqueles vidros de aumento como os que 0 oculista de Combray o/erecia a urn comprador; gra~as aD meu livro eu Ihes forneceria 0 meio de fer neles mesmos. De sarte que noD Ihes pedirio que me louvassem ou me denegrissem, mas apenas que me dissessem se as palavras que 1eem neles mesmos sao exatamente as que eu escrevi (Marcel Proust, Em busea do tempo perdido).
Ao come~ar a trabalhar sobre a leitura, e mais precisamente sobre os modos populares de apropria<;iio dos textos, fomos amplamente guiados por urn esquema interpretativo filos6fico e sociol6gico, a saber, a opoSi<;iio entre disposi~oes esteticas e disposi~oes etico-praticas. Sob fonnas variadas, esta dicotomia encontra-se tanto nas analises de critica estetica de Mikhail Bakhtine como na sociologia da produ<;iio e do consumo cultural de Pierre Bourdieu. A disposi~ao estetica supoe que a fonna artistica (0 estilo, a maneira, a representa<;iio ... ) seja privilegiada em rela~ao ao conteudo ou a sua fun<;iio e nisso se oporia a disposi<;iio etico-pratica que rejeita a dissocia<;iio fonna/fun<;iio, fonna/conteudo, modo de representa~ao/conteudo representado, etc. Mikhail Bakhtine descrevia 0 modo de ver etico-pratico como 0 ponto de vista daqueles que se orientam no mundo social atraves de "categorias cognitivas micas e praticas (as do bern, do verdadeiro e das fina-
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Iidades praticas)" (Bakhtine 1984: 109) e que, por isso, vivem mais as historias (ouvidas,lidas ou produzidas) do que iniciam uma rela¢o propriamente estetica. Assim, a crianc;a que joga com os camaradas a brincadeira de ser "0 chefe dos bandidos vive sua vida de bandido por dentro. Epelos olhos do bandido que ve 0 segundo garoto passar correndo diante de urn terceiro garoto, que e 0 viajante [... ). A rela¢o que cada urn deles tern com 0 acontecimento da vida que decidiram jogar - 0 ataque a diligencia - e apenas 0 desejo de tomar parte no acontecimento, 0 desejo de viver esta vida na qualidade de participante [... J. Essa rela¢o com a vida, que se manifesta no desejo que a propria pessoa tern de vive-Ia, nao e uma rela~ao estetica com a vida; neste sentido, 0 jogo e da mesma natureza que 0 sonho ou a leitura ingenua de urn romance que faz com que 0 leitor se identifique com 0 personagem principal para viver, na categoria do eu, a sua realidade e a sua vida interessante, ou, dito de outro modo, que se sonha simplesmente sob a dire¢o de urn autor, mas isso nada tern a ver com 0 acontecimento artistico" (ibid.: 89)'. Estavamos em busca da recusa "de toda especie de pesquisa formal" (Bourdieu 1979: 33-34) nos modos de leitura dos meios populares e a encontramos, mas com urn sentimento de insatisfa~ao num ponto do raciocinio. De fato, nao dispunhamos de urn estudo sociol6gico comparavel ao nosso sobre os modos de leitura "nao populares". Pois de urn lade estavam os resultados de uma pesquisa empirica sobre as maneiras de ler em meios populares e, do ~Utro, pressupostas leituras cultas estabelecendo uma "disposi¢o estetica". Como tinhamos previsto, nossos leitores recem-diplomados investiam em suas diferentes leituras da imprensa uma vontade de ancoragem dos textos numa outra realidade que nao a realidade textual; numa configura¢o prMica (livros e revistas praticos destinados a se tomar prMicas), num espa~o conhecido, vivido Oomais locais, noticias de "falecimentos-nascimentos-casamentos", variedades ...l. no mundo natural e fisieo (Iivros e revistas de divulga¢o cientifica) ou nos quadros, esquemas de experiencia passada ou presente (romances, biografias e autobiografias ... ). Seu modo de leitura dos textos Iiterarios nos parecia particularrnente revelador dessa disposi~ao etico-pratica, supondo uma participa¢o, uma identifica¢o, uma ancoragem do texto nos elementos da experiencia cotidiana passada ou presente. A ancoragem da leitura numa realidade diferente da realidade Iiteraria explicava 0 fato de que 0 tema, 0 assunto e os efeitos do real produzidos pelo estilo e/ou pelo contexto (pela televisao se conhece a pessoa que escreve 0 romance ou a autobiografia) muitas vezes eram postos a frente do autor, do estilo, que nunca eram mencionados, quando se tratava de romances, das correntes Iiterarias au das editoras. Leitu1. Este tipo de leitura encontra-se encenado no romance de Bernhard Schlink, Le Liseur{1996}, Hanna, analfabeta, faz seu jovem amante, Michael, ler textos em voz alta e reage as aventuras dos personagens como se fossem personagens reais.
"E uma ouvinteatenta. Sell risa, seus suspirosdedentro esuas exc1ama~oes indig-
nadas ou entusiasmadas nao deixavam nenhuma duvida: ela acompanhava a a¢o com paixao e considerava as duas heroinas como duas bobas. A impaciencia que ela tinha as vezes em me pedir que continuasse era porque ela esperava que essas personagens acabariam, necessariamente, parando com suas besteiras. 'Nao, nao e possive!'!" (ibid.: 46). "[A proposito da leitura do Proprio para nada de Eichendorff) ela reclamava por nao ser proprio para nada, de nao fazer nada de born, de nao ser capaz de nada e de nao querer mudar" (Ibid.: 58).
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ra pragmaticamente ancorada que se opae, portanto, segundo toda evidencia, as formas de leitura literariamente ancorada, tomando sentido em relac;ao a outras leituras, num funcionamento de referencias literarias relativamente autanomo ... (Lahire 1993b: 101-127; 1993c e 1995c). No entanto, quando se sai do terreno da presumida "disposic;ao eslEitica" para o do estudo empirtco das leituras de leitores com diplomas superiores, a decep~ao te6rica e grande. Os leitores mais diplomados culturalmente fazem como nossos leitores dos meios populares: mergulham nas situa~aes, identificam-se com os personagens, amam-nos au detestam-nos, antecipam 0 que vai acontecer Oll ima-
ginam 0 que eles mesmos fariam, apreciando ou desaprovando a moral da hist6ria, sentem as emoc;oes, riem au choram ao ler romances ... A ieitura estritamente
estetica nao esta ausente de seus discursos (da mesma mane ira, alias, que os leitores populares podem evocar 0 "belo estilo" ou a "bela escrita"), e podem se comprazer em comparar as autores au as correntes literarias, mas certamente nao
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isto que os prende e os liga nas hist6rias que leem. Esta leitura-referencia, esta leitura estilistica existe, mas de fato caracteriza essencialmente os leitores profissionais: os leitores produtores e, particularrnente, os que pertencem as vanguardas literarias', que colocam sociologicamente 0 estilo antes de qualquer coisa; leitores-cnticos que ritualmente lembram que "pouco importa a hist6ria, contanto que haja estilo". Portanto, a oposi~ao sobre a qual nos apoiavamos nao era aquela que acreditavamos. Tratava-se daquela que separa os leitores leigos, exteriores as implica~aes do campo literario, simples consumidores e espectadores (abandonados, como notamos anteriormente, pela teoria dos campos de produc;ao cultural), dos leitores profissionais, como agentes tornados nas lutas de concorrencia do campo (escritores, cnticos, jomalistas culturais, etc.). Em compensac;ao, os leitores leigos distinguem-se evidentemente entre si segundo 0 tipo de experiencias sociais ao qual sao sensiveis. Nao vivendo as mesmas vidas, as mesmas condic;6es sociais de existencia, nao tendo tido as mesmos itinerarios escolares, familiares, amorosos, profissionais, etc., as leitores nao tern
o gosto pelos mesmos tipos de hist6ria. Quando nossos leitores populares insistiam na rejeic;ao do "ficticio" das hist6rias "sem pe nem cabe~", designavamamiude temas ou assuntos muito distanciados deles (de suas experiencias sOciais) para verdadeiramente interessfl-los. Como apreciar as cenas de adultos em perpetua busca de si mesmos, colocando-se mil questaes metafisicas sobre a existencia, provando 0 sentimento do absurdo da vida, etc., quando se pertence a urn meio social onde essas cenas da vida cotidiana nao ocorrem? Como suportar as narra-
2. Poderiamos perfeitamente citar Gustave Aaubert, James Joyce, Alain Robbe-Grillet au Claude Simon considerando-os - sem razao - como tipos de te6ricos all ide61ogos da relac;ao culta com a Iiteratura. Por exemplo, Gustave Aaubert exprimia bem esta concep¢o esU~tica pura numa carta a Louise Colet datada de 16 de ja-
neiro de 1852: "0 que me parece born, 0 que gostaria de fazer, e urn livro sabre nada, urn livro sem liga¢o exterior, que estivesse bem consigo mesmo pela forc;a intema de seu estilo, como a terra sem ser sustentada esta avontade... t. par isso que nao ha sujeitos bons nem vil6es e que se poderia ate estabelecer como axiorna, colocando-se no panto de vista da arte pura, que nao existe nenhurn, sendo 0 estilo para ele apenas uma rnaneira absoluta de ver as coisas" (1980: 31).
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~6es das tens6es sem lim da vida amorosa burguesa e pequeno-burguesa quando nao se tem a mesma visao da vida amorosa ou conjugal? Eis onde se situavam alem das outras diferen~s Iigadas ao dominio de registros lexicos e sintaticos diferentes conforme 0 nivel de estudo dos leitores - as diferen~as reais entre os leitores leigos de Iiteratura. 0 gosto pelas "historias verdadeiras", "reais", "pe no chao" all pelo menos escritas como se fossem verdadeiras au reais3, e urn gosto relativamente universal entre os leigos (mesmo que ele nao se expresse dessa forma em todos os meios sociais). Aspecto popular, a perda de um filho, a droga, a vida com um filho deficiente, 0 tempo da ocupa~ao alema, as lutas travadas por uma mulher para encontrar seu filho ... em suma, todos os temas que poderiam por proximidade cultural e social tomar possivel a adesao, a participa~ao, a identifica~ao, positivas ou negativas, a historia e permitir assim fazer trobalhar, de um modo imaginario, os esquemas de sua propria experiencia, fazendo todos esses temas a alegria dos leitores. Nao sao apenas, como acreditamos antes de tudo, os leitores populares que fazem este tipo de leitura dos textos Iiterarios. Tais textos narrativos permitem que todos os leitores leiam ai modelos situacionais, modelos de comportamentos, solu~6es (rea~6es, comportamentos ... ) para situa~6es felizes, dificeis ou problematicas. Para todos, 0 romance (ou, mais raramente, 0 teatro), fomece situa~6es-tipo, papeis, encadeamentos possiveis de a¢o (esquemas sensorio-motores, esquemas de percep¢o, da avalia¢o, de aprecia~ao, etc.). Por todos pode ser lido como um manual ou um guia de trato social, atraves da qual se ensaiam, numa especie de aproxima~ao jurisprudencial entre situa~6es vividas (passadas ou presentes) e situa~6es escritas, novos papeis, novas (possiveis, imaginaveis au inacesslveis) situa<;6es. Alem do mais, 0 romance pode desempenhar um papel reparador, terapeutico, para dramas da existencia ("ajuda enormemente nos momentos dificeis", diz uma leitora), permitindo que troba/he sua vergonha, sua experiencia dolorosa para a aceitar melhor, para tentar dar sentido ao que parecia insensate e insuportavel (por exemplo, a morte de alguem proximo, uma separa~ao dolorosa ... )4. Com base nos conhecimentos atuais sobre os investimentos na leitura Iiteraria, pode-se levantar a hipotese de que as situa~6es de desajustamento, de desvio, que provocam crises mais au menos fortes S , sao ocasi6es partkuiarmente propicias a este tipo de trabalho simbolico. Os momentos de rupturas biograficas e identitarias (divorcio, separa~ao, morte de uma pessoa proxima, etc.), certos grandes momentos no cicio de vida (periodo de adolescencia, "aprendizagem" do papel de mae ou de pai, aposentadoria ... ) sao circunstancias favoraveis ao apa-
3. "Como se", pais, no fundo, a que e pesquisado e tanto 0 "real" au 0 "veridico" (que leva a ler biografias romanceadas, documentarios, livros de hist6ria, hist6rias vividas num drama qualquer) como 0 efeito de real ou o efeito de autenticidade (que leva a ler romances sabendo que isso nao existiu mas que esta escrito de tal rnaneira que "se cr~:"). De mooD que 0 leitor pode "fazer como se" lesse hist6rias reais, verdadeiras, aut~ticas, sem jamais ser completamente enganado por seu carater ficticio. 4. Eric Schon (1993) evoca 0 pape1 da leitura na fonna~o do si-mesmo das crian~as e dos adolescentes. Entre os jovens entrevistados pelo autor, as mo<;as "privilegiam a leitura a fim de ajuda-Ias a 'assumir' situa<;6es anaI09as em sua vida do dia-a-dia" (ibid.: 32). 5. Ver aCima, "As muitas ocasi6es de desajustamento e de crise".
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recimento de leituras deste tipo". Nos tempos da crise (por exemplo, os adolescentes lendo romances que mostram situa~oes analogas as que eles vivem ou pensam viver) ou passado 0 fato (por exemplo, leitura por pessoas sem raizes de romances que Ihes lembram a sua regiao ou seu pais de origem abandonado varios anos antes), a leitura permite elaborar-reelaborar os esquemas de experiencias e as identidades. Mas nem todos os romances podem desempenhar esta fun~ao em todos os leitores, em nome do dominio lingiiistico-estilistico que supoem da parie do leitor (esta e a primeira barreira de acesso ao livro - pelo c6digo lingiiistico - que depende do tempo escolarmente passado lendo textos lexicalmente e sintaticamente complexos) e em nome dos temas que desenvolvem, das experiencias que relatam (e a segunda barreira, que depende dos estoques de esquemas incorporados pelos diferentes leitores em func;ao de suas experiencias sociais anteriores). Evidentemente, as dais tipos de obstaculo as vezes se combinam. mas nao sistematicamente (e 0 problema se apresenta de maneira mais viva para os leitores menos escolarizados do que para os outros, na medida em que 0 primeiro tipo de obstaculo Ihes impede de apreciar a "hist6ria", enquanto os leitores mais escolarizados podem ler certos textos sem sentir nenhuma dificuldade lingiiistica, ao mesmo tempo em que constata sua insensibilidade em relac;ao ao "conteudo"). A "sensibilidade" dos diferentes leitores aos textosdepende essencialmente nao da correspondencia termo a termo (por exemplo, os operarios gostam dos romances que falam da condi~ao operaria, as mulheres, dos romances que falam das mulheres, os cat6licos ou os judeus das obras que apresentam personagens cat6licos ou judeus ... ) entre situac;oes escritas e situa~oes vividas, mas da possibilidade de 0 leitor entrar - com algumas modificac;oes ou transforma~oes imaginarias - no mundo do texto (Ricoeur 1985: 228-263). A simples analogia, mesmo muito longinqua e vaga, de situa~oes permite esse trabalho de imagina¢o do leitor. A rela¢o amorosa entre um homem e uma mulher, que se desenrola na Idade Media inglesa ou na Nova York do seculo XXI, nao impede que um jovem frances do seculo XX "se veja ai". 0 gosto por tal ou tal obra literaria nao supoe, portanto, uma simples semelhan~ entre 0 mundo do leitor e 0 mundo do texto; a analogia mais aproximativa, mas distante e a mais vaga e amplamente suficiente para produzir a emo~ao literaria. Poder-se-ia ate dizer que a emo~ao literaria produz-se na confluencia do pr6ximo e do distante, do mesmo e do outro, do semelhante e do diferente. Interessante porque "Iembra" uma situac;ao vivida, 0 encanto do texto literario reside, todavia, no afastamento que 0 separa dessa mesma situa¢o. A pessoa se reconhece ao mesmo tempo em que descobre outros universos, encontra-se 0 conhecido atraves da descoberta de personagens, de lugares e de situac;oes desconhecidos. o sentido das leituras, ou melhor, as experiencias que os leitores vivem com livros, saO questoes que os soci610gos praticamente deixaram de lado. Ate agora, a sociologia da leitura esteve amplamente marcada por uma sociologia do consu6. Nossas pesquisas mostram, por outro lado, que as proprias circunstcmcias de rupturas, de desvio au de crises sao propicias a se manterdifuios pessoais por partedos atores que anterionnente adquiriram uma certa facilidade de escrita. Entao 0 diaria e urn cataiogo de situa~6es vividas escritas, relidas e retrabalhadas au de situa~6es ficticias preparadoras de a~6es reais. Ele e 0 lugarda reflexividade sabre si. seu passado e seu futuro.
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mo cultural. 7 Os textos sao muitas vezes reduzidos aos nomes de seus autores, aos seus titulos ou as categorias genericas as quais se considera que pertencem (romance sentimental, romance policial, Iiteratura c1assica ... ) e essas inforrna<;6es funcionam apenas como indicadores de sua legitimidade cultural mais ou menos grande. Esta redu<;ao da realidade dos textos perrnite que se ponham estes primeiros indicadores em rela<;ao com outros indicadores sOciodemograficos (categorias socioprofissionais, nivel de diploma, faixa etaria, sexo ... ). As pesquisas' perrnitem estabelecer sem surpresa que se Ie mais a medida que se vai para as categorias 50cioprofissionais que sup6em altos capitais culturais (os donas da industria e do comercio juntam-se aos mais fracamente dotados em capital cultural no tocante as praticas entre as mais distintivas dos grupos fortemente providos de capital cultural). Fazem aparecer ainda mais c1aramente 0 efeito especifico do nivel de estudo quando medem estatisticamente, a partir do nivel de diploma possuido, as freqiiencias da priltica de leitura. Quanto mais se sobe na hierarquia dos diplomas, mais possibilidade se tem de encontrar leitores fortes ou muito fortes, pessoas que trocam Iivros, que os compram com freqiiencia, que VaG a biblioteca ao menDs uma vez por semana e leem Iivros relacionados ao seu trabalho ... Tudo isso nao tem nada de admiravel na medida em que a leitura (as bases da leitura, bem como certos modes especificos de apropria<;ao dos textos~ e ensinada na escola; na medida ainda em que a escola perrnanece a matriz de socializa<;ao fundamental ao Iivro. Mas 0 gosto pela leitura de uma obra Iiteraria particular nao pode, absolutamente, ser deduzida de urna disposi<;ao cultural (estetica ou etica) e, portanto, de um volume (mais fraco ou mais forte) de capital cultural. Nao e muito atribuivel a um unico criterio social de especifica<;ao, a saber, a posi<;iio no espa<;o social. Este gosto ou esta sensibilidade Iiteraria, que pode variar individualmente segundo 0 momento na trajetoria social do leitor, segundo sua situa<;iio social no momento da leitura (crian<;a, adolescente, adulto, idoso ... ; vivendo como solteiro, casado ou divorciado1"l, segundo sua perten<;a sexual, segundo as experiencias sociais que 0 marcaram duravelmente ou que 0 absorvem no periodo da leitura, de modo algum e redutivel a um simples efeito de legitimidade (leitores legitimos leem obras legitimas), mas depende, como dissemos, do estoque de resumos de experiencia incorporados. Portanto, a leitura como experiencia social nao e aquela considera7. ExceI;ao e 0 trabalho de Jacques Leenhardt e Pierre J6zsa (1982), bem como as reflexoes de Frant;ois de Sin-
gli (1993b). No entanto, entre as trabalhos inovadores dos historiadores da leitura (Chartier 1993 e 1996) encontram-se as pesquisas de socioiogia da recep¢o cultural. Cf. sobretudo Passeron e Pedler 1991. De nassa parte, introduzimos essas reflexoes sobre a experiencia literaria no quadro mais geral de uma socioJogia dos usas sodais da eserita (produzidos au recebidos),
8. Ver, por exempio, Donnat e Cogneau 1990.
9. Sabre as maneiras escalares de definir a leitura, ver AM. Chartier e J. Hebrard (1989 e especialmente "Traisieme partie: Discours d't:coJe", p. 169-394).
10. Por ocasiao de uma conferencia - "Mundo de leitura e mundo do texto: ieituras e leitores na Renascen<;aproferida na Villa Gillet, Lyon, janeiro de 1993, Roger Chartier evocava a importancia da idade e da situa<;ao familiar para compreender 0 interesse par certos generos literarios na Espanha do seculo. Atravessando os rneios sociais cJassicamente divididos, os romances de cavalaria., par um lado, e a literatura devota. par outr~, circulam entre os leitores mais jov~ns e solteiros ou mais idosos e casados ou vilIVOS".
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da a partir de uma sociologia do consumo cultural. Ela entra em pe de igualdade nos quadros de uma teoria da a<;ao assim como n6s a concebemos. As aprecia<;6es emitidas sobre os Iivros ou sobre os generos Iiterarios "em geral" dependem amiude de uma 16gica muito diferente da realizada a prop6sito de uma obra singular. A tarefa do soci610go da experiencia Iiteraria singular parece, portanto, indispensavel se quisermos ir alem dessas especies de "jogos de sociedade" muito imateriais que as pesquisas sobre as praticas culturais prop6em freqUentemente aos pesquisados: 0 que voce pensa de ... ? 0 que voce prefere? Classifique as obras na ordem decrescente de sua preferencia ... Procedendo assim, tem-se todas as chances de apenas captar a Iiga<;ao entre obras mais ou menos legitimas, e publicos mais ou menos dotados em capital escolar (sabendo que raramente se interroga sobre a natureza - cientifica ou Iiteraria, por exemplo - deste capital). Mas isto nada nos informa sobre as praticas e sobre as recep<;6es efetivas cujos conteudos e formas sao c1aramente menos explicaveis pelos efeitos da socializayao escolar. Ademais, se a experiencia Iiteraria pudesse reduzir-se a quest6es de legitimidade cultural, nada poderia nos fazer distingui-Ia de uma experiencia reIigiosa, cientifica, magica, esportiva ou culinaria. Reduzindo tudo (tanto a realidade social dos leitores como os conteudos Iiterarios) a desvios de legitimidade cultural e, portanto, a espa<;os de posi<;6es hierarquizadas (mercado de bens simb61icos, espa<;o social), nada se capta dos conteudos de experiencia, tambim socialmente determinados, e se pode fazer totalmente abstra<;ao da natureza semi6tica da obra (pictural, textual, musical, teatral...). Os equivalentes estruturais (em termos de posiyao em seus campos esteticos respectivos) serao reagrupados sem mesmo se perguntar se nao se provoca uma fantastica abstra<;ao, uma formidavel desrealizayao do ponto de vista das experiencias feitas com as obras. Levadas a serio, as experiencias feitas com as obras mostram, ao contrario, que urn texto nao urn quadro, que nao urn filme, que tambem nao uma obra musical; mas, mais precisamente ainda, que urn Manet mlO urn Picasso, que urn romance de
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Proust na~ e urn romance de Balzac... Esta interrogayao nao conduz a urn positivismo simples, mas obriga 0 soci610go a redimensionar os objetos que ele pode construir se quiser captar urn pouco que seja do que as pessoas fazem com as obras, qual e sua rela<;ao efetiva com as obras, quais sao as recep<;6es reais (e nao intencionadas, ou sonhadas pelos criticos, produtores culturais, autores ou editores) das obras. Anselm L. Strauss, no inicio de sua carreira, come<;ou a estudar os devaneios, os sonhos despertos (daydreams) de seus estudantes (1993: 6). As cenas imaginarias projetadas nesses momentos de inatividade, de distrayao (em relayao a uma a<;ao principal), ou que acompanham gestos feitos sem necessidade de uma grande atenyao consciente, dividiam-se em duas categorias: os "sonhos despertos antecipat6rios" (anticipatory daydreaming) com os quais os atores constroem pequenos cenarios nos quais ensaiam ou desempenham papeis futuros (certos, provaveis ou esperados), imaginando que poderiam agir ou reagir de tal ou tal maneira em tal circunstancia, e os "sonhos despertos retrospectivos" (retrospective daydreams), nos quais os atores juntam cenas que viveram e que os contrariaram ou constemaram, imaginando como as cQisas poderiam ter sido diferentes. Po-
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der-se-ia ampliar a ideia de Strauss pensando que os devaneios retrospectivos podem perfeitamente bern estar ligados a cenas prazerosas, agradaveis, que 0 autor relembra - como se repassasse uma cena de filme particularmente apreciado, embora com possiveis modifica~oes - sem cessar "na cabe~a". Ora, essas primiciasabandonadas em seguida por Strauss - de uma sociologia dos sonhos despertos podem inspirar urn programa de pesquisa sobre a sociologia da experiencia literaria. Com efeito, as obras literarias fornecem apoio para tais sonhos despertos. Mais que criar "com todas as pe~as" seus cenarios, em vez de buscar em suas experiencias passadas para "repassar" cenas vividas, as atores podem apro-
priar-se das cenas, intrigas, personagens, encadeamentos de a~oes ... que outros escreveram para eles e continuar a fazer trabalharem os esquemas de SUas experiencias pessoais.
Portanto, os textos literarios sao desencadeadores de sonhos despertos que permitem fazer uma volta a, prolongar, acompanhar ou preparar a a~ao. Longe de ser uma atividade passiva e desconectada dos cursos da a~o, a leitura tern posse da a~ao. As vezes os leitores procurarao livros com 0 desejo de "fazer trabalhar" tal ou tal tipo de experiencia (por exemplo, 0 caso das maes de familia que buscam hist6rias com cenas de problemas de adolescencia; ou das mulheres divorciadas que apreciam as hist6rias de conflitos conjugais ... ), mas podem sempre sair de suas leituras com outras situa~oes passadas reativadas e nas quais nao pensavam mais, com outros cenarios possiveis que lhes permitissem despertar e testar certas pulsoes suas que tinham permanecido insatisfeitas, "ensaiar"" papeis muito improvaveis au Qutros possiveis num futuro mais all menos pr6ximo. Nos
livros se tomam tantos recursos para escapar (fala-se de "evadir-se"), dar sentido (e as vezes sublimar) a realidade mon6tona, aborrecida, dolorosa, como para se preparar para enfrentar as situa~oes mais problematicas, embara~osas, tristes ou penosas. 0 "mundo dos textos" esta tao intimamente misturado com as experiencias do leit~r que este, as vezes, pode nao conseguir distinguir, como observa Maurice Halbwachs, uma lembran~ pessoal de uma cena liten,ria analoga. "Primeiro Ii urn certo numero de relatos, reais au ficticios, onde se descrevem as impressoes de uma crian~ que entra pela primeira vez numa escola. Pode muito
11. Pode ser encontrado urn modelo de escrita fundado sabre 0 "ensaio" . ou experiencia, nos Essals de Mon· taigne. Os exempla citados pelo autor sao aque1es que fazem eco as suas proprias experiencias, como acentua Fausta Garavini: "Mas como encontrar a si mesmo a nao ser identificando-se com 0 agente de uma a<;2oo ou 0 sUjeito de urn ato moral, em suma, com 0 personagem de um relato? Os 'exemplos' nao respon· dem, em Montalgne, anecessidade de compor um mosaico de variedades ede contradi(foes da natureza hu· mana em geral, inten¢.o habitual dos compiladores. Ele nao os escolheu ao acaso; 'Prefiro obselVar os exemplos que vejo'. Essas anedotas significam que 0 sujeito esta diretamente concemido pelas atitudes que obselVa em seus semelhantes e que registra como tantos testemunhos de disposi(foes que reconhece em 51 mesmo, ou, ao contrario, tendencias que Ihe sao estranhas. Que ele renita assim sobre a diversidade e as in· coerencias de nossa natureza e, de certa fonna, secundario. 0 ponto principal e a questao que surge em cada exemplo: oque farei eu, Michel de Montaigne, em circunstancias analogas? Interroga¢o que resume, no limite, toda a empresa dos Essais: 'ensaiar' e, tambem, colocar-se na pe\e dos outros ('Eu me insinuo pe\a imagina(fao, muito bern no lugar deles'), e tentarviver, por intennooio de outrem, todas as experiencias que nao se pOde viver em seu cotidiano, e ampliar a sua vida real para as dir€(foes infinitas de suas vidas pos· slveis. Aquele que renunciou a ser sempre urn s6 e mesmo homem encontra nos protagonistas dos exemplos 0 meio de ser v€uias pessoas" (1995-96: 15·723c).
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bern ser que, quando eu os Ii, a lembranc;a pessoal que guardava de semelhantes impress6es se tenham fundido com a descri~ao do livro. Eu me lembro dessas descri~6es, e talvez seja nelas que esteja conservado, e eu tenha relembrado sem 0 saber, tudo 0 que subsiste de minha impressao assim transposta" (1968: 59). Os primeiros passos de uma sociologia (norte-americana) dos sonhos e dos devaneios confirmam amplamente a proximidade das situa~6es de leitura e de 50nho (sobretudo quando esta desperto). Em ambos os casos - experiencia literaria e experh~ncia onirica -, as atores projetam (ou se projetam em) cenas au situayoes
que estao muito profundamente relacionadas com eles. Por exemplo, urn soci610go, Delores F. Wunder, solicitou de irmaos e irmas de pessoas enfermas relatos de sonhos notumos ou despertos que eles podiam ter a prop6sito dessas pessoas doentes (1993). Os sonhos giram em tome de diferentes temas - antecipa~6es de certas cenas da vida cotidiana com a pessoa doente, encena~ao do sonhador como salvador que atrai 0 respeito por ter ido em socorro de urn doente, constru~ao de cenas onde 0 enfermo faz uma miraculosa volta ao normal, sentimentos de culpa por ele ser normal enquanto a pessoa esta doente, cena onde a pessoa doente morre12 ••• - que mostram 0 permanente trabalho simb6lico efetuado para permitir apoiar e, as vezes, ajudar a solucionar uma situayao difici!' A analise estatistica de milhares de sonhos revela como, seja qual for 0 aspecto estranho de alguns deles, eles estao sempre ligados a lugares, personagens, a~6es e emo~6es que constituem elementos ordinarios, familiares do mundo da vida nao sonhada"A situa~ao de leitura eurn quadro social, urn contexto social entre outros, mas nao totalmente "como" os outros. Como no sonho desperto ou no jogo (que sao situa~6es de "fazer-semelhante" por excelencia - Gollman 1991: 57-62), permite ensaiar papeis, manipular (representar, modificar, inventar) cenas, sem risco nem conseqUencia social imediata. E pode-se perguntar 0 que a confrontayao com 0 texto desencadeia do passado dos leitores, de suas experiencias sociais pessoais para dar-lhes a impressao, as vezes, de "melhor se conhecer" ou de se sentir "revelados a si mesmos" atraves dos livros [fralongo 1996). Aqui se poderia levantar a hip6tese segundo a qual, como nos sonhos e devaneios, resumes de experiencias (ou esquemas de a~ao) incorporados (quer se trate de puls6es, de motiva~6es, de disposi~6es ... ), que nao conseguem se atualizar nas diferentes formas de vida sociais nas quais 0 autor participa, podem conseguir ex12. "Os sonhos de certos pesquisados parecem ser antecipa¢es ou repeti~oes de experiencias que deverao en-
frentar no futuro, como a morte de urn ente querida. Quando se perguntou a urn dos entrevistados se sonhava com set! irrnao que safria de urn cAncer da coluna vertebral que progredia rapidamente, ele respondeu: 'Nao sei; somente sonhos de tipo dormido (sic). Vejo meus pensamentos ir nessa dim;;ao. As vezes me pergunta, apos sua ultima intelVen~ao cirurgica, como seria se elenao estivesse mais la, se a morte viesse.lsto
me perseguiu durante urn periodo. Isto me perturbou. 0 que farei? Como tudo isto afetaria a minha vida, minha familia? t: bastante m6rbido como reflOOo. Depois de ter pensado nisto, sinto·me calmo quando penso na possibilidade de que alguma coisa pode acontecer. Mas se isso acontecesse, penso que selia mais capaz de enfrentar a situac;ao do que antes. Nao selia 0 mesmo choque que antes'" (Wunder 1993: 121). 13. Muito freqilentemente as personagens dos sonhos sao membros da familia do sonhador. "Hall levanta a hip6tese de que sonhamos com membros de nossa famllia porque e com eles que estamos emocionalmente implicados e e para com eles que mantemos sentimentos misturados de afei~ao, antagonismo e de tensoes nao resolvidas (Hall 1966: 33)" (Wunder 1993: 1~8-119).
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primir-se na experiencia literaria. Como ja observamos, 0 ator plural pode ativar esquemas de a¢o (de disposi~oes ... ) diferentes e as vezes ate contradit6rias em contextos sociais diferentes. Assim e possivel que 0 pesquisador descubra, atraves de uma sociologia da experiencia e da sensibilidade literarias, dim ensoes e aspectos de pesquisas que necessariamente nao manifestam nas situa~oes sociais correntes.
Para prosseguir com a compara¢o com temas tratados pela psicanalise e melhor captar a especilicidade de nosso objeto, poder-se-ia dizer que, diferente da leitura de um texto literario ou do sonho, certas categorias de atos falhos podem ser sociologicamente interpretados como 0 surgimento de comportamentos ou de inten~oes (e por isso a ativa~ao de esquemas de a¢o) numa situa~ao social que deveria justamente - por motivos de nonnas sociais - proibir a sua presen~a (por exemplo, declarar a sessao encerrada quando e preciso, ao contrario, abri-la; esquecer de levar os exerdcios escolares para casa ... '4 0 ato falho consiste na infiltra¢o, num quadro social, de uma "inten~ao", de uma "atitude", de um "sentimento", au de uma "sensa<;ao", que 56 poderiam, ordinariamente - as nonnas 50-
ciais obrigam -, exprimir-se em outros quadros sociais (e bastante amiude de preferencia nos bastidores, no sentido de Goffman15 , e nao nas cenas oficiais). 0 esquecimento, 0 erro de leitura, 0 lapso, 0 ~xtravio de um objeto, um desdem na a¢o ... indicam amiude que 0 ator e trabalhado, em tal situa¢o social, por desejos, orienta~oes, inclina~oes, injun~oes e esquemas de a~ao diferentes. Freud falava da "interferencia de duas inten~oes" para delinir 0 ato falho. Quadro social singular, contexto particular de desencadeamento de uma parte dos esquemas de a¢o do leitor, a situa¢o de leitura de textos literarios revela-se - com algumas diferen~s - muito semelhante a do sonhador desperto. Esta proximidade aproxima, assim, a sociologia das sensibilidades literarias de uma sociologia dos sonhos despertos e, alinal de contas, de uma sociologia da a¢o16.
14. Encontrar-se-a urn caso semelhante de ato falho conteKtua\izado no Quadro n. 20 intitulado "Urn superinvestimento escolarparadoxal" em Tableau de families. Heurs e Malheurs scola/res en milieux populaires (199521; 217-225), 15. Etving Goffman explica assim: "Pode-se definir uma regiao posterior ou bastidores como urn \ugar em relac;ao com uma representa¢o dada, onde se tern toda a margem para contradizer cientemente a impressao produzida pela representac;ao" (1973: 110). 16. "Isto nao significa que eu negue a fato de que as sonhos despertos possam ser fUteis, engra~adas au simplesmente expressivas, mas eu me concentrava s,obre a sua re1a¢o com a a~ao" (Strauss, 1993: 6).
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Reflexividodes e 16gicos de 0<;60
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CENA 1 Escolo, oC;60 e linguogem A RUPTURA ESCOLAR COM 0 SENSO pRAnco
o homem passui a faculdade de construir linguagens, pelas quais coda sentido pode ser expresso, sem ter nenhuma n~ao oem da maneira como coda po/aura signifiea, nem do que signifiea, asslm como se fala sem saber como sao emitidos os sons particulares da po/aura (Ludwig Wittgenstein. Jnuestjga~6es filos6/icas).
De todos os grandes universos socializadores, e no universe escolar que se opera mais sistematicamente e de modo mais duravel a ruptura com 0 senso pratico Iingiiistico. Lugar comum, compartilhado durante urn tempo pelo conjunto de uma popula~ao, e, no entanto, impensavel na sua especificidade, na sua originalidade hist6rica e, no lundo, na sua estranheza radical. Pois 0 que acontece na escola, desde as escolas elementares (e muitas vezes ate antes), e no minimo bizarro, admiravel. Mas e deste modo que se deve olhar a escola, se houver urn minimo de desejo de compreende-Ia. Todo mundo sabe que a escola elementar e 0 lugar de ensino da lingua. Esta expressao "ensino da lingua", que deveria surpreender, e hoje urn lugar comum, uma evidencia. Ora, "ensinar uma lingua" nao significa "aprender a lalar". Por esta expressao a escola designa uma atividade especilica que consiste em lazer as crian~s entrarem num universe IingUistico estruturado: com letras, palavras, Irases, textos, regras de composi¢o de palavras, regras gramaticais, regras ortograficas, regras de textos (narrativos, descritivos, argumentativos ... ), etc. Nada comparavei com a entrada progressiva e insensivel nas trocas Iinguageiras, nas lormas de vida social sempre particulares, nada a ver com a interioriza¢o por parte da crian~ de esquemas de intera¢o verbal ou de fun~6es sociais da palavra pelo exemplo e pela pratica, por ouvir dizer e dizer. A situa¢o de ensino escolar e
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oposta as situa~oes que a fenomenologia nos descreve em materia de linguagem: "Come~o a compreender 0 sentido das palavras por seu lugar num contexto de a~ao e ao participar da vida comum" (Merleau-Ponty, 1976: 209), ou ainda: "Quanto ao sentido da palavra, eu 0 aprendo como aprendo a usar uma ferramenta, vendo-a ser empregada no contexto de uma certa situa~ao. Ela [a subjetividadel nao constitui a palavra, ela fala como se canta porque se esta alegre, ela nao constitui 0 sentido da palavra, ele brota para ela no seu comercio com 0 mundo e com os outros hom ens que 0 habitam, encontra-se na interse¢o de varios comportamentos, ele e, mesmo uma vez "adquirido", tao preciso e tao pouco definivel como 0 sentido de urn gesto" (ibid.: 462). A escola visa antes de tudo - antes mesmo da corre~ao da expressao - a uma rela¢o com a linguagem. Uma rela¢o reflexiva, distanciada, que permite tratar a linguagem como urn objeto, disseca-la, analisa-la, manipula-la em todos os possiveis sentidos e descobrir ai regras de estrutura~ao intema. Objetivar a linguagem e faze-la passar por uma transforma~ao ontologica radical. A crian~a estava na sua linguagem, doravante a crian~ tern a linguagem diante de si e a observa, divide, sublinha, classifica, poe em categorias. A crian~a se serve da linguagem para dizer ou fazer coisas e quase poderia ignorar a sua existencia, de tal maneira sua presen~a era indissoci;,vel das situa~oes, dos objetos designados, dos outros, das inten~oes, das emo~oes e dos atos. Doravante se faz com que ela tome consciencia da linguagem como tal, em sua materialidade e seu funcionamento proprio, e de fato ela nao e ensinada a se servir, nos contextos, de usos particulares, mas a descobrir ai as leis especificas de funcionamento, aver como serve. "Falar bern" nao e suficiente para fazer 0 born aluno. t preciso ser capaz de mostrar que se sabe 0 que se faz e como se faz. Do mesmo modo que Platao critica a mimesis dos poetas orais, pois nao bastava, segundo ele, reviver a experiencia, e preciso saber analisa-la, pensar no que se disse em vez de simplesmente dize-lo, separar-se do discurso tornando-se "sujeitos" que ficam no exterior do "objeto" para 0 considerar, avaliar (Havelock, 1963), assim a escola nao se satisfaz com urn sujeito falante que "se joga na palavra" (Merleau-Ponty, 1976: 461) em vez de fazer da palavra urn objeto de estudo e de interroga¢o, e ela se recusa a chamar de" dominio" aquilo que e dominado pre-reflexivamente. Se, como escreve R. Jacobson, "Peirce da uma defini~ao incisiva do principal mecanismo estrutural da linguagem quando mostra que todo signo pode ser traduzido por urn outro signo no qual esta mais completamente desenvolvido" (1981: 41), e preciso acrescentar que 0 semiotico descrevia sobretudo 0 funcionamento escritural-escolar da linguagem, aquele que 0 dicionario materializa, e nao urn "mecanismo" universallinguageiro.
Para ser rigorosos, teriamos que falar sempre, no tocante a escola, de "lingua" e nao de "linguagem". Uma "lingua", isto e, urn sistema de sinais que constitui "uma abstra¢o, conseguida a muito custo por procedimentos cognitivos bern deterrninados" (Bakhtine, 1977: 99), e exatamente aquilo com que os alunos sao confrontados na escola. Esta lingua e objetivada, materializada nos dicionarios, nos livros de ortografia, de gramatica, de leitura, etc. Ela efruto de urn longo trabalho historico que a tomou possivel. E, em primeiro lugar, 0 resultado de uma lenta
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invenc;ao da escrita alfabetica. Mais uma vez, parern, a escola encerra aqui urn instrumento que nao e mais percebido como urn instrumento cultural Urn pouco curioso. mas como urn objeto banal. natural. A escrita alfabiltica? Uma replica perfeita da palavra. No entanto. teria sido precise erudi¢o. analise. invenc;6es multiplas para conseguir este sistema de signos alfabeticos. Porque as primeiras escritas - na Mesopotamia e no Egito por volta de 3000 aC - comec;aram como escritas que se c1assificam diversamente como piclograficas. ideograficas ou logo-silabicas. Escritas e quase pinturas de coisas. as representa<;6es graficas vao progressivamente se esquematizar. se des-motivar (nao se reconhecera mais 0 perfil de uma montanha no sinal que designa a montanha) e pouco a pouco iniciar uma lenta progressao rumo a uma fonetiza<;ao sem nunca se tamar totalmente, sistematicamente foneticas. Por esses sistemas de escrita, as sumerios e as egipcios sao dotados de meios de analise da Iinguagem. Constituem a sua primeira objetiva¢o. A escrita divide a cadeia sonora, 0 fluxo continuo de enunciados orais, em sinais des-
continuos e leva a tomar consciencia desta realidade que se chama "termo" e que nao preexistia a sua descoberta pela escrita. 0 nosso costume de escrever (com a conven<;ao de deixar urn espa<;o em branco entre os vocabulos) nos da 0 sentimento de que falamos com "termos" e nada vemos de extraordinario nessa inven¢o logografica da unidade "termo". Mas. ao pensar assim. invertemos - tanto ordinaria como cientificamente1 - 0 curso real da hist6ria; doravante pensamos a palavra atraves das categorias que a escrita permitiu constituir. Antes da escrita. nenhum termo. nenhuma silaba. nenhuma frase ...• mas usos variados da Iinguagem que nao permitem agir sobre esta enquanto tal. 0 meio desaparece em prol dos fins (diversos) que realiza. Quando os escribas escrevem Iistas (semanticas ou graficas) de termos. destacam 0 que vivia ate entaD em contextos de enunciac;ao espedficos e extraem os "term os " dos enunciados nos quais estavam comumente. Dupla abstra¢o. portanto. Do contexto de enuncia<;ao (e dos sujeitos falantes) e do contexto do enunciado. E e esta dupla abstra¢o que constitui 0 que se pode chamar de "lingua". Uma vez objetivada. a Iinguagem pode passar por tratamentos que nao eram pensaveis ate entao eo grande trabalho de arruma¢o. arranjo ou c1assifica<;ao come<;a. 0 qual representa os primeiros passos rumo a uma ciencia da Iinguagem'. Longe de ser uma replica. urn fixador. urn simples registro da "palavra". foi a escrita que permitiu a conquista e 0 dominio simb6lico. reflexivo. 1. A escrita sera pensada, durante urn tempo muito longo, como "derivada" e "exterior" a "lingua oral". Sua in-
ven<;ao deixaria assim intacta uma "lingua oral" preexistente a ela. Tanto em Rousseau, Condillac, Warburton, Locke, Leibniz, Hegel como em F. de Saussure, a "escrita" e concebida de urn ponto de vista instrurnentalista como "representa~ao" da "lingua". "Representa~ao", "veiculo". "tecnica de comunica~ao", "replica", "meio de expressao", todas estas imagens e metaforas aniquilam definitivamente toda possibilidade de pensar a escrita como desenhando uma especie de espa~o homogeneo, continuo do sentido. Mas 0 privilegio conferido a "voz" com rela~ao a "escrita", em numerosos discursos eruditos, nao deve ser levado, se podemos dizer assim, ao pe da letra. Por exemplo, ao contrario de suas inten~oes manifestas, F. de Saussure, como muitos outros antes e depois dele, nao cessa de tratar, sem 0 perceber, da escrita, da lingua escrita, das praticas de escrita e da rela~ao com a linguagem fonnada em praticas de escrita. 2. "Os homens que inventaram e aperlei~oaram a escrita foram grandes lingilistas e foram eles que criaram a lingliistica" (Meillet, 1912-1913: CXIVl.
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No come~o do seculo VIII aC, os greg os passam da silaba como unidade grafica para a "Ietra", que representa uma formidavel abstrac;ao (Havelock, 1981: 55-56). Verdadeira analise fonetica da palavra, a escrita alfabetica opera uma clara distinc;ao entre 0 sentido e 0 som, os signos e seus referentes. Doravante, a linguagem e objeto de todo tipo de reflexoes (gramaticais, logicas, retoricas ... ), que formam progressivamente corpos de saberes relativamente autonomos sobre a "lingua" 1 au antes - pais esses saberes nao vern se enxertar numa lingua preexis-
tente - que constroem a lingua de maneira mais ou menos diferenciada. 0 sistema da lingua se complexifica, cresce 0 numero de possiveis classifica~oes de um mesmo signo lingtiistico. Sao postos em \ista ou em tabelas, explicitando as analogias, as contradi~oes, os contrastes e as diferen~as. Podem-se fazer classifica~oes fonologicas, morfologicas, semanticas, logicas, gramaticais, retoricas ... E e esta realidade erudita que tomamos hoje por uma replica natural da palavra'. E esta mesma realidade que se torna 0 objeto de um ensino sistematico dentro do universo escolar. Desde os seis anos de idade (e cada vez mais precocemente), colocam-se as em situa~oes semelhantes as que viveram ha varios milhares de anos escribas ou "sabios" (filosofos, gramaticos, retoricos, logografos). Eles descobriram imediatamente a realidade propriamente fonologica, aprendendo a decompor, a analisar 0 !luxo sonoro. Exercitam-se em separar os termos (Chervel, 1981: 31-32) (e as resistencias infantis a esta separaC;ao lexicallembra ainda hoje quanto a no~ao de "termo" e cultural- Lahire, 1993a: 104-113), em classifica-Ios segundo diferentes principios, em combinar letras para fazer palavras, em montar termos para fazer "frases", estas unidades puramente gramaticais, que incluem pelo menos um sujeito e um verbo, comec;ando com uma maiuscula e terminando com um ponto. Quer se trate da realidade fonologica, ou da realidade gramatical, os alunos de fato nao se servem da linguagem em situa~6es ordinarias onde ela tem sempre uma fun~ao social, mas manipulam, deslocam, transformam, analisam, classificam os elementos da linguagem para experimentar a existencia de um sistema de signos. Conforme os casos, concentram a sua atenc;ao somente sobre 0 significante (por exemplo, nos exercicios de reconhecimento de letras, de silabas, de sons ou nos exercicios de comblnac;ao de letras e de silabas) ou exclusivamente sobre 0 significado (por exemplo, para classificar os termos segundo um principio semantico qualquer). Encaram os diferentes sinais do ponto de vista de sua func;ao gramatical (por exemplo, sujeito ou verbo?) ou de seu arranjo textual (por exemplo, introduc;ao-desenvolvimento-conclusao). 0 aluno entra - com mais ou menos facilidade segundo seus pais forem ja 0 produto de uma longa escolarizac;ao ou nao - num universe complexo, 0 da lingua, que nao e 0 da linguagem comUm produzida sem pensar nas multiplas situac;6es da vida diaria. crian~as
3. Como obSeIVatnos mais acima, temos realmente a tend~ncia de inverter a curse hist6rico das coisas pensando que a escrlta e apenas uma simples replica da palavra. quando 0 motivo e que temos 0 costume de perceber a palavra atraves das categorias que a escrita alfabetica e a gramatica nos pennitiram construir (ista e, Ietras, suabas, tennos, frases ... ) que podemos crer que a palavra e a escota se parecem como duas gotas d'agua.
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Portanto, 0 aluno nao aprende a falar, aprende a construir, a desconstruir e a reconstruir, a combinar (por exemplo, letras, termos, grupos de termos, frases ... ), a transformar (por exemplo, par a frase em forma interrogativa, par no passado composto, encontrar 0 masculino ou 0 plural de ... ), a ordenar ou a reconhecer signos segundo principios de ordenac;ao diferentes (por exemplo, classificar na lista de termos come~ando por "p", na lista de nomes de animais, na lista de adjetivos, de adverbios, de sujeitos ou de verbos ... , sublinhar os complementos de objeto direto .. .), a compor frases com a ajuda de elementos designados pelo nome das caixas nas quais se aprendeu previamente a par em ordem (por exemplo, urn sujeito + urn verbo + urn complemento circunstancial de lugar), e assim por diante. T 0dos os signos lingUisticos (mesmo aqueles que sao desprovidos de sentido, como as letras e uma grande parte das silabas) tern urn lugar virtual nas diversas caixas onde podem ser reagrupados segundo 0 caso. Essas caixas sao listas ou paradigmas que permitem constantemente ter 0 controle de uma linguagem-objeto dividindo-a de mil maneiras e designando suas coordenadas. Urn termo pode ser reconhecido e classificado a partir de uma ou varias de suas grafias, de sua fun~ao gramatical, de sua familia de termo, de seus homonimos, de seus sinonimos, etc. o termo nao esta em contato com uma situac;ao, articulado com urn gesto, uma pessoa, imbricado numa inten~ao ou numa emoc;ao. Eum elemento suscetivel de ser balizado, nomeado, distribuido, transformado, deslocado. 0 mesmo vale para o exame oral escolar e a produ~a(j textual chamados, as vezes, muito curiosamente, "expressao oral" e "expressao escrita" e que nao tern justamente nada da expressao espontanea dos sentimentos ou das experiencias. Falar explicitamente, e de maneira gramaticalmente completa e c~rreta (Lahire, 1991a), introduzir, conduir, precisar, pontuar, saber guardar
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longo de todo 0 relato, privilegiar a coerencia e a autonomia de sua construc;ao textual (Lahire, 1992), tudo isto participa do jogo consciente de construc;ao e pouco da ligac;ao com os habitos linguageiros pre-reflexivos, desencadeados em situa~oes apropriadas. No fundo, a escola faz da linguagem 0 objeto de uma atenc;ao particular, de uma manipulac;ao consciente, voluntaria e intencional (para falar como Vygotsky, 1986). A escola desenvolve uma atitude reflexiva para com a linguagem objetivada, posta a distancia, considerada como urn objeto estudavel em si mesmo e para si mesmo a partir de multiplos pontos de vista. Ha uma diferen~a radical entre 0 dominio pratico da linguagem nos multiplos usos comuns de linguagem (0 sentido lingUistico pratico) e 0 tipo de dominio simb6lico (poderia de fato haver outros tipos) que a escola propoe (os pedagogos falaram amiude na hist6ria deste segundo dominio, que vern ordenar e racionalizar 0 que depende do simples habito, do simples uso) na aprendizagem da leitura e da escrita aifabetica, no ensino da gramatica e da ortografia ou no ensino da produc;ao oral ou textual. Mais do que a simples tomada de consciencia de urn meio que 0 uso tende a fazer esquecer ou a confundir com inten~oes, emo,oes, objetos, pessoas, situa~oes ... , trata-se da descoberta de urn sistema (com suas unidades e suas regras) totalmente inedito para a crian~a. Universo de cultura escrita, a escola e 0 lugar central onde se tenta sistematica e duravelmente tomar as crian~as conscientes da linguagem multiplicando
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os angulos de ataque da Iinguagem per se por um trabalho permanente sobre ela por meio de exercicios, de perguntas e de repeti~oes reflexivas corretivas incessantes; lugar onde se rompe, ao mesmo tempo, com as praticas de Iinguagem "espontaneas", "ordinarias".
as trabalhos que se esfor~am por medir os efeitos cognitivos da escola mostram todos que as crianc;as ou os adultos escolarizados reunem sempre, melhor que os outros, as tarefas que necessitam de explica~ao verbal (por exemplo, explicar por que uma proposi~ao e gramaticalmente c~rreta ou incorreta e nao simplesmente julgar a corre~ao ou incorre~ao gramatical dessa proposi~ao), que pedem que se produzam instru~oes verbais explicitas (por exemplo, em rela~ao a um jogo controlado praticamente) ou que supoem que se atenha unicamente a mensagem verbal na resolu~ao de um problema (por exemplo, 0 caso dos silogismos) (Scribner & Cole, 1981; Goody, 1994: 244). Por exemplo, num estudo sobre os maias e os mesti~os da peninsula de Yucatan, D. Sharp, M. Cole e C. Lave mostram que os menos escolarizados e os nao escolarizados resolvem silogismos mais geralmente apelando para informa~oes cotidianas sobre 0 mundo do que se atendo s6 as informa~oes contidas no enunciado do problema. A um silogismo do tipo - "Se Joao eJose bebem muita cerveja, 0 prefeito da cidade fica bravo com eles. Neste momento Joao e Jose estao bebendo muita cerveja. Voce acha que 0 prefeito ficara bravo com eles?" - alguns respondem que ha tantos homens que bebem cerveja que nao veem motivo para 0 prefeito ficar bravo com Joao e Jose (Cole, 1996: 82-83) ... N6s mesmos colocamos em evidencia, num trabalho de observa¢o de tres anos em salas de aula, que os alunos em dificuldade escolar na escola elementar sao os que nao conseguem manter a Iinguagem a distancia, a considera-Ia como um objeto estudavel per se: dificuldades em analisar a cadeia sonora nas primeiras aprendizagens da leitura e da escrita por nao poderem manter sua aten¢o no nivel fonol6gico, colagens persistentes ou divisoes inadequadas dos "termos", problemas de compreensao em leitura Iigados em parte ao fracasso da pesquisa intertextual dos indices que permitem construir 0 sentido do texto, dificuldades no dominio da analise gramatical e reapropria~oes pragmaticas de certas questoes gramaticais, fraco dominio metalingUistico dos termos do vocabulario, que podem ser dominados praticamente, numerosas faltas de ortografia (sobretudo gramaticais) que indicam um insuficiente dominio dos paradigmas e das rela~oes sintagmaticas que Iigam os elementos de paradigmas diferentes, expressao oral onde predominam 0 impiicito, 0 gesto, as mimicas, as posturas, as entonac;:oes, que parecem "pobres" aos olhos dos professores que privilegiam 0 explicito (a riqueza lexical e sintatica) e, enfim, produ~ao de textos implicitos e aparentemente incoerentes pois nao se centram na fonna textual (por exemplo, "confusao dos tempos", mais justaposi¢o que organiza~ao textual de "ideias", profusao de fatos nao Iigados entre si de outro modo que pelo fato de se terem sucedido num mesmo periodo temporal. .. ). Todas essas manifesta~oes de fracasso escolar nos lembram - pela resistencia que revelam com rela¢o a formas escolares de aprendizagem e saberes escolares - a originalidade e a especificidade do universo escolar.
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Ao obselVar duravelmente rea~oes de alunos em crise face a vontade pedag6gica de fazer com que penetrem nesse sistema de signos representado pela lingua, pode-se chegar a duvidar das teorias IingGisticas formalistas e estruturais do sistema IingGistico. Pode-se estar certo que urn dos elementos que explica que Ludwig Wittgenstein tenha abandonado a "sua atitude especulativa e hiperteorizante" do Traclalus logico-philosophicus seja a sua experiencia de professor de 1920 a 1926 em escola primaria rural (Bouveresse, 1987: 569). Alias, nao e por acaso que tenhamos podido utilizar - sem inicialmente conhecer este dado biografico numerosas notas filos6ficas do mesmo autor para i1ustrar comportamentos de alunos em dificuldade com os exerdcios e as questoes escolares'. SAUSSURE OU A TEORIA PURA DAS pRATICAS ESCOlARES SOBRE A liNGUA
Poderiamos condensar nosso argumento dizendo que a escola e profundamente saussuriana5 (e, ao mesmo tempo, antipragmiltica e antifenomenol6gica) ou, inversamente, que a teoria saussuriana
e a mais escoIar das teorias sobre os
fatos Iinguageiros. De fato, a teoria IingOistica elaborada por Saussure descreve muito exatamente 0 modo de tratamento escolar da Iinguagem. Eo Mikhail Bakhtine, crttico acerbo do formalismo em IingGistica e defensor de uma concep~ao pragmatica e dial6gica das prilticas Iinguageiras, que nos ajuda a fazer aparecer este la~o nao suspeitado entre Saussure e escola. Bakhtine censura 0 "objetivismo abstrato" saussuriano de tratar "unidades de lingua" e nao "unidades da troca verbal". A unidade de lingua e a "proposi~ao". "Ela nao e delimitada, em seus dois extremos, pela altemancia dos sujeitos falantes, nao est€> em contato imediato com a realidade (com a situa~ao transverbal) e tambem nao tern uma rela~ao imediata com os enunciados de outrem, nao possui uma significa~ao plena e e inapta a suscitar a atitude responsiva do outro locutor, isto e, determinar uma resposta. A proposi¢o, enquanto unidade de lingua, e de natureza gramatical e tern fronteiras, urn termin~, uma unidade, que sao da al~da da gramatica" (Bakhtine, 1984: 280-281). A critica bakhtiniana consiste, portanto, em dizer que Saussure faz as unidades de troca verbal (os "enunciados") passar por uma transforma~ao radical que se poderia chamar de "gramaticaliza¢o". Esta opera~ao desconecta 0 enuncia-
4. Por exemplo, para ilustrar as casas de mal-entendidos em toma da oposiy1.o compreensao passiva, gramatical, paradigmatica/compreensao ativa, dial6gica, pragmatica, tinhamos nos referida it situa~ao que L. Wittgenstein descreve a prop6sito de urn "garoto que devia indicar se as verbos em certos exemplos de frases deviam tamar a voz ativa ou a voz passiva e quebravam a cabec;a perguntando-se. por exemplo, se 0 verbo
'dorrnir' significava alguma eclsa ativa au passiva" (1986: 137). Os alunos quecometem tais mal-entendidos reapropriam-se de categorias gramaticais, de questoes gramaticais (supondo urn ponto de vista sabre a linguagem enquanto tal, como universo autonomo) a partir de uma refQ(;iio pragm6t!ca com a finguagem (linguagem indissociavel de uma situa¢o possivel. real ou imaginaria) (Lahire. 1993a: 181-182). 5. Poderiamos dizer, tambem. piat6nica, se nos referinnos ao magnifico trabalho de E.A. Havelock, Preface to Plato (1963).
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do de toda situa~ao social e de todo locutor e 0 converte num objeto que nao tem nem destinatario nem destinador e que nao suscita nenhuma rea~ao verbal ou nao verbal particular ("a enuncia~ao isolada-congelada-monologada, tirada de seu contexto linguageiro e real" - Bakhtine, 1977: 107). Uma proposi~ao do tipo "0 papa morreu" nao desencadeia, assim, nenhuma emo~ao nem rea~ao particular na medida em que e apenas um exemplo de gramatica 6 0 lingUista trata com a mesma atitude neutralizante as proposi~6es "0 papa esta morto" ou "0 papa esta vivo", as quais, se foss em enunciadas numa situac;ao social particular, pro-
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duziriam, sem nenhuma duvida, efeitos bem diferentes. Para ele sao simples atualiza~6es, ilustra~6es de uma 56 e unica estrutura gramatical: sujeito - verboatributo. A "compreensao responsiva ativa", que 0 enunciado implica, op6e-se a "compreensao passiva" (Bakhtine, 1984: 289) que convem aquele que trata a lingua matema como uma "lingua morta", isto e, como 0 objeto de multiplas disseca~6es. Mas a escola nao procede de maneira diferente que 0 lingUista visado por Bakhtine, e a teoria lingilistica saussuriana e um maravilhoso instrumento de descri~ao de praticas escolares de ensino da lingua. Os alunos aprendem, ao entrar na escrita alfabetica, a distinguir 0 significante (a imagem acustica), 0 significado (0 conceito) e 0 referente, a fazer a diferen~a entre as unidades desprovidas de sentido (as letras e uma grande parte das silabas) e as unidades de sentido (os tenTIos), aprendem a classificar os diferentes elementos do sistema lingilistico em listas, paradigmas (rela~6es paradigmaticas') e a combina-los entre si (rela~6es sintagmilticas'), utilizam 0 "tesouro comum" dos signos lingtiisticos que 0 dicionario materializa muito concretamente, etc. Alem do mais, dicionarios e manuais de gramatica dao uma ideia bastante justa do que e a lingua saussuriana como sistema de signos. A partir de urn numero limitado de fonemas e possivel produzir um numero ilimitado de cadeias sonoras, a partir de urn numero limitado de tenTIOS e de um numero limitado de regras (gramaticais) de combina~6es pode-se produzir uma infinidade de atos de palavra. E nao e por acaso que um conjunto fechado de urn sistema de signos, onde 56 entram as rela~6es intersignos, pode levar a pensar num "c6digo matematico" (Bakhtine, 1977: 88) e p6de-se ver na "algebra" uma espede de "ideaI16gico" da gramatica (Vendreyes, 1968: 174). A teoria saussuriana da lingua nao pode, todavia, ser considerada como uma teoria universalmente pertinente na medida em que, saida do universo escolar (ou de universes eruditos muito proximos), ela estiola-se e perde de repente seu poder descritivo.
6. Sabemes que as primeiros escribas faziam eKercicios muito fonnais, copiando e recopiando os names dos
meses, Iistas de nomes numa ordem arbitrariamente escolhida. frases modelos ("os caes ladram", "as gatos mlam"), ele. (Goody, 1994, 169). 7. "Ao contrario, a rela!;ao associativa une tennos In absentia numa serle mnem6nica virtual" (Saussure,
1972,171). 8. "A reia1tao sintagmatica esta in praesentia, repousa sobre dais Oll rnais tennos igualmente presentes numa selie efetiva"; "Colocado num sintagma, urn teona adquire valor apenas porque esta oposto ao que precede au aa que segue, ou a tooos as dais" (Saussure, ~ 972: 170-171),
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No entanto, Bakhtine nao lira todas as conseqUencias te6ricas da constata~ao que faz. Como outros te6ricos atentos aos la~os entre a linguagem e as alividades sociais, as situa~6es de enuncia¢o, etc. (pragmaticas, fonomenol6gicas ... ), fica no meio do caminho te6rico a percorrer'. De algum modo esta errado em nao ver como Saussure tern parciaimente razao, neste casa, no tocante ao universe escolar. As vezes a linguagem se nos apresenta como algo embara~oso, com seus principios, suas regras, suas l6gicas intemas de funcionamento. Eexatamente a experiencia que vivem os alunos na escola elementar quando aprendem gramatica, or-
tografia ou, mais simplesmente ainda, quando aprendem a ler e a escrever. Efalso afirmar que "a consciencia subjetiva do locutor nao se serve da lingua como de urn sistema de formas normalizadas" (Bakhtine, 1977: 99) ou dizer que "nao ha analise que possa tomar clara a linguagem e exp6-la diante de n6s como urn objeto" (Merleau-Ponty, 1976: 448), pois e muito rigoroso 0 que a escola ou a lingUistica saussuriana praticam comumente. Saussure certamente nao tern razao fora dos
muras do universo escolar - e seus contraditores tern razao em sublinhar as Iimites
de seu modele - mas nao deixa de ser pertinente para compreender a maneira completamente surpreendente como a escola trata a linguagem. Bakhtine rejeita a teoria saussuriana argumentando que" 0 resultado e uma teoria completamente falsa da compreensao" (1977: 106). Ora, se a lingUistica saussuriana for tomada pelo que ela e, a saber, uma especie de teoria pura das praticas escriturais escolares, uma especie de explicita~ao conceitual de urn conjunto de praticas escolares da lingua e de uma rela¢o escolar (e escritural) com a linguagem, entao e preciso admitir seu interesse cientifico especifico. Cego por sua critica 'O , Bakhtine parece esquecer suas pr6prias analises da rela~ao entre a lingUistica, filha da filologia, e a escola: "As inscri~6es tiradas de documentos heuristicos transformam-se em amostras escolares, em classicos da lingua. 0 segundo problema fundamental da lingUistica, criar a ferramenta indispensavel para a aquisi¢o da lingua decifrada, codificar essa lingua a lim de adapta-la as necessidades da transmissao escolar, marcou fortemente com seu selo 0 pensamento lingUistico. A fonetica, a gramatica, 0 lexico, estas tres divis6es do sistema da lingua, os tres centros organizadores das categorias lingUisticas, formaram-se em fun~ao das
9. Encontra-se uma cntica semelhante emitida par David Sudnow; "Quase sem exce¢o, a analise contemporanea do discurso oral objetiva 0 discurso, privando-o inteiramente de suas caracteristicas de movimento motivado, que constituem as qualidades experimentais essenciais. Qualquer um tala e Sell discurso e transforrnado, pela pr6pria linguagem, em texto. Em lugarde fluxo e refluxo circulando de urn lugar a outro (uma realiza~ao continua e em desenvolvimento que consiste em rnovimentos inteiigentes, indo de urn lugar para 0 outro e organizados no plano temporal) temos imediatarnente a ver com urn 'texto', uma cole;ao silenciosa, im6ve\, de objetos visiveis sobre a pagina. Somos confrontados - na analise transfonnacional, na analise sociolingOistica, na analise dos discursos quotidianos - com uma gama de objetos visiveis. sao examinados a vontade, inspecionados de todos os pontos de vista, e como s6i acontecer quando 0 pensamento modemo critica as objetos visiveis, nomeiarn-se as diferentes partes - aqui urn pronome, ia urn nome, urn morfema, e assim por diante. Essas classifica~oes e 'partes do discurso' (erro de designa¢o por excelencia) sao, em seguida, sujeitos a urn tratarnento taxonomico exaustivo utilizando a mesrno sistema de movimentos que se procura analisar. Assim esses objetos visiveis se tornam a realidadedo discurso. 1... 1Mas falar e mover-se" (1978: 86). T odavia Sudnow nao ve como a escola procede exatamente da mesma rnaneira que a lingtiistica que ele critica. 10. Isto vale tambem para as obselVa~oes criticas bakhtinianas de Pierre Bourdieu a prop6sito da maneira gramariana de tratar a Iinguagem (1980a: 53).
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duas tarefas atribuidas a lingiiistica: uma heuristica e a outra pedag6gica" (Bakhtine, 1977: 107). Se a lingiiistica corresponde as demandas escolares, nao se pode afugenta-Ia com urn simples gesto de mao qualificando-a como "teoria falsa da compreensao".O "erro" cientifico relativo da IingOistica estrutural corresponde, de fato, a uma realidade social, a realidade do trabalho escritural-escolar sobre a lingua e da rela~ao escritural-escolar com a linguagem. AS CONDI<;OES SOCIAlS PARA SAIR DO SENSO pRATICO
A rela¢o reflexiva com a linguagem, que a escola ao mesmo tempo constr6i e solicita, e progressivamente elaborada atraves de exercicios, de questoes, de situa~6es, de corre~oes, contribuindo todas elas para chamar a aten¢o da crian~a para as propriedades especificas do sistema de signos lingOistieos. Eo a socializa~ao prolongada num tal universo social que perrnite que os atores adquiram uma serie de habitos reflexivos em materia de praticas linguageiras. Nem todos os alunos estao destinados a se tomar gramaticos, lingiiistas ou fil610gos profissionais, nem todos poderao apropriar-se com tanta facilidade dessas situa~oes escolares, no entanto todos passam duravelmente (pelo menos dez anos, entre os seis e os dezesseis anos) por exercicios que sao 0 fruto do trabalho milenar dessas comunidades eruditas. Mais tarde manejarao a escrita, que rec1ama sempre urn minimo de consciencia metalingiiistica, quer se trate de redigir (ordem textual), de fazer uma frase (ordem gramatical) ou simplesmente de praticar ortografia (ordem lexical e ortografica). Portanto, a rela~ao distanciada com a linguagem nao e elaborada em nao importa que condi~ao, de nao importa que maneira, atraves de nao importa que tipo de pratica ou de exercicio. T rata-se precisamente de exercicios escolares que se ap6iam num sistema de inscri¢o-objetiva~ao da linguagem (a escrita alfabetica) e sobre corpos de saberes escriturais acumulados (gramaticais, ortograficos, estilistieos, alfabeticos-foneticos ... ) que constituem como que olhares reflexivos especializados e relativamente autonomos lan~ados sabre aspectosparticulares ou dimensoes singulares da linguagem. Por conseguinte, tudo parte da escrita alfabetica que, como vimos, nao tern nada de uma duplicata natural da palavra, mas e, antes, urn instrumento de objetiva~ao da linguagem e a base de seu dominio simb6lico - e de sua aprendizagem. Os saberes especializados sobre a lingua variam historicamente (por exemplo, a gramatica fOi, pela primeira vez, introduzida na Fran~a a nivel elementar nas associa~oes escolares do come~o do seculo XIX) e poderiam ser outras. Poder-se-ia imaginar, por exemplo, que a escola elementar possa substituir em parte 0 ensino da gramatica (cuja fun.;ao e indissociflVel do ensino da ortografia, Chervel, 1981) pelo da ret6rica. As mudan.;as seriam ao mesrna tempo importantes e secundarias em rela~ao a atitude reflexiva que se quer desenvolver. Eis as condi~oes inseparavelmente sociais e intelectuais da constru¢o de uma rela~ao reflexiva com a linguagem. Se insistimos nas condi~oes concretas da constru~ao social de uma tal rela~ao com a Iinguagem, e porque existe urn ponto de vista divergente sobre esta questao 112
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que coloea no ceme do problema uma suspensao da urgencia temporal e urn distanciamento das necessidades economicas. Dispor de tempo e nao estar submisso as necessidades praticas (concebidas como necessidades economieas) da existencia seriam as duas grandes condi~oes de forma¢o da rela¢o reflexiva e separada da linguagem como a disposi~ao estetica, a visao escolastica, etc. Ea tese raramente sujeita a critiea - sustentada por Pierre Bourdieu e que nos parece, ao mesmo tempo, abstrata e imprecisa. Por exemplo, a rela~ao estetica com as obras, que constitui a forma ou 0 meio (iconico, verbal, escritural.. .), eomo primeiras em rela~ao a sua fun~ao e ao seu conteudo, e que supoe que a linguagem seja 0 objeto de uma aten~ao especifica, necessita, certamente, de tempo, de estar fora da "pressao da urgencia temporal I... J que impede de parar nos problemas interessantes, de retoma-los varias vezes, de voltar atras" (Bourdieu, 1980a: 47) e, por conseguinte, dispor das condi~oes econ6micas favoraveis, que afastam as preocupayoes pn3ticas, imediatas da existencia. Mas implicam, tambem e sobretudo, urn trabalho especifico sobre a linguagem enquanto tal, trabalho que se tornou historicamente possivel pela interven~ao da escrita e pelos multiplos desdobramentos eognitivos dos saberes escriturais. De fato, a "saida da necessidade eeonomica", a "suspensao ou prorroga~ao da necessidade economiea" ou "a distilncia objetiva e subjetiva da urgencia pratiea" (Bourdieu, 1979: 56) nao bastam para explicar a rela¢o distanciada com o mundo, a razao te6riea, escolar, eseolastiea, distanciada, ou ainda a disposi¢o estetiea. 0 soci610go nao pode, para compreender 0 que podem ser tais disposi~oes, fazer economia da analise das praticas de linguagem atraves das quais tomam forma. Se fosse de outro modo, nao se compreenderia que as eategorias sociais mais afastadas das necessidades economicas imediatas, mas em parte desprovidas de diplomas (os donos da industria e do comercio) compartilham, no mais das vezes, seus juizos, gostos ou pmtieas culturais com as fra~oes populares mais despossuidas de capital economico (e de capital escolar)." No entanto, a interpreta~ao sociol6gica dessas disposi~oes escolastieas continua a se apoiar na redu¢o da sociedade numa escala que seria, a medida que se aproxima do vertice, cada vez menos sujeita as urgencias praticas: "A medida que nos afastamos das regioes inferiores do espa~o social, caracterizadas pela brutalidade extrema das for~as economicas, as incertezas se reduzem e as press6es da necessidade economica e social
diminuem; eonseqilentemente, posi~oes definidas de maneira menos estrita, e que deixam mais liberdade de jogo, oferecem a possibilidade dt! adquirir disposi~oes mais livres das urgencias pratieas, dos problemas a resolver e ocasioes a explorar, e como que ajustadas de antemao as exigencias tacitas dos universos escolastieos" (Bourdieu, 1997: 28-29). Nao que este modelo te6rico seja contestavel em si, pois descreve bem uma parte do que e 0 mundo social visto sob seu angulo economico. Simplesmente the falta pertinencia para explicar tais disposi~oes. Fal11. Basta ler as quadros estatisticos fomecidos em La Distinction para se convencer do fato de que e a experientia escalar (mais ou menos lon9a) que e detenninante neste caso e nao a posiyl.o social geral no esp,u;:o social (classes superiores, medias ou popu]ares) ou a volume do capital economico (1979: 38-39).
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ta-lhe principalmente a distin~ao entre os regulares (intelectuais, eruditos ... ) e os seculares 12 (por exemplo, os grandes donas da industria e do comercio), que, mais afastados ainda das preocupa~oes economicas pessoais (seu grande capital ecanomico permite que eles "mandem ver" I nao estao menos envolvidos nos desafios economicos e sociais, na ac;ao secular mais premente, que nao Ihes deixa muito la-
zer (nem vontade) de cultivar uma rela¢o reflexiva com a linguagem, uma disposi<;ao estetica all uma relac:;ao te6rica com as situa<;6es. Como atores, vivem na
maior cornodidade material, mas, como hom ens de a<;30, vivem implicados nos neg6cios do mundo econ6mico.
Do ponto de vista da experiencia escolar obrigatoria para todos, a suspensao das condi~oes economicas de exislencia e partilhada pelo conjunto das crian~as de uma mesma gera~ao. De origem popular, pequeno-burguesa ou burguesa, as crian~as e adolescentes estao todos protegidos permanentemente da necessidade de trabalhar e de enfrentar os acasos da existencia. Em compensa~ao, estao muito desigualmente preparados culturalmente, por sua socializa¢o familiar, para construir uma rela¢o reflexiva com a linguagem. No entanto, quando, apesar dos obstaculas culturais iniciais, tern exito, a sua origem social e a rnodestia econ6mica das condi~oes de vida nao impedem que desenvolvam suas competencias escalares e eruditas (ver Hoggart, 1991 13). Por outro lado, no tocante aos adultos, a diminui~ao do tempo de trabalho semanale anual do conjunto dos assalariados permite, cada vez menos, supor urn efeito direto do tempo (dedicado a "ganhar sua vida" ou livre das pressoes economicas) sobre as condutas e atitudes culturais. 0 "tempo livre e liberado das urgencias do mundo que toma possivel uma rela~ao livre e liberada dessas urgencias e do mundo" (Bourdieu, 1997: 9) nao basta para explicar as emergencias de visoes escolasticas. Pode 0 tempo nao ser dedicado aos lazeres ou as ocupa~oes bastante distanciadas das questoes esteticas, especulativas ou escolares? No Iundo, porem, em tal esquema interpretativo, a escala e pensada como urn lugar irreal, socialmente OU, mais eXatamente, economicamente em impedi-
menta: "a situa¢o escolastica (cuja forma institucionalizada e representada pela escola) e Urn lugar e urn momento de falta de gravidade social" (ibid.: 25). Dizer que a aprendizagem escolar esta "livre da san~ao direta do real" (p. 29) au que se distingue das "situa~oes reais", e pressupor que ha, por urn lado, 0 "real" e, por outro, que nao ha (p. 29), e se pergunta 0 que ele e 14 Pois e a economia que fixa, define, no modele explicativo, a natureza e a qualidade do "real". "De fato, as aprendizagens, e sobretudo as exercicios escolares como trabalho ludico, gratuito, realizado ao modo da 'faz de conta', sem risco (economico) real. .. " (p. 25-26). Oreal, 0 peso social, a necessidade imediata sao economicos e, tendo saido desse 12. Utilizamos esta distin¢o em Les manieres d'etudier{1997a: 137-138 e 159). 13. A familia Hoggart, composta da mae e seus tres filhos, e sustentada pela par6quia, pelo Comite des Gardi~ ens e pela assistencia publica, e vive em condic;oes materiais muito preciuias. 14. Aqui a anaIiseerudita nao se distinguede uma parte das criticas pedag6gicas intemas dirigidas aescola. Esta seriao lugardo "gratuito", do "futU", do "artificial", do "inautentico" ese oporia a "vida" - qual? - queseria o lugardo "real", do "util", do "funcional" do "~atural", do "autentico". etc.
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real, cai-se na ausencia de gravidade, no gratuito, no faz de conta, no ludico, etc. Mas como pensar urn exercicio escolar particular como, por exemplo, aquele que Austin da para exemplificar 0 que ele entende por "visao escolastica" (scholastic view), a saber, "0 fato de decompor urn termo, fora de qualquer referencia ao contexto imediato, em Vez de apreender ou simplesmente utilizar 0 sentido desse termo que e diretamente compativel com a situa<;ao" (p. 24), em rela<;ao as necessidades imediatas da economia? A redu<;ao economista da realidade social de modo algum permite compreender a passagem da rela<;ao nao reflexiva, pragmatica, com a linguagem (aquela que os fenomen610gos e os pragmilticos descrevem) para a rela<;ao reflexiva com a linguagem15. Evocar a libertac;ao das urgencias econ6micas para compreender tais exercicios escolares ("a neutraliza<;ao das urgencias e dos fins praticos e, mais precisamente,
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fato de ser arrancado por urn
tempo mais ou menos longo do trabalho e do mundo do trabalho, da atividade seria, sancionada por uma remunera<;ao em dinheiro ... " (Bourdieu, 1997: 29) e como tapar 0 sol com a peneira. Nao se esta negando a importancia da economia ao afirmar que ela nao tern nenhum efeito direto sobre 0 tipo de rela<;ao que se mantem com a linguagem e que e preferivel captar a sociogenese dos saberes e das tecnicas-exercicios, que sao produtoras de uma rela<;ao reflexiva com a linguagem, a acreditar ter analisado a.essencia de todos os exercicios escolasticos classificando-os globalmente de "ludicos", "gratuitos", fazendo a economia de uma observa<;ao das praticas escolares e da elabora<;ao de uma teoria das praticas escolares). Definitivamente, designar com as mesmas expressoes ("disposiC;ao distante, gratuita, separada" ou "visao escolastica") urn exercicio escolar realizado na escola elementar, uma pergunta de sondagem politica, a concepc;ao mais vanguardista no campo da literatura ou da pintura, acaba fazendo delas expressoes "amorfas" no sentido weberiano. 0 prazer te6rieo que se pode provar ao arar com os mesmos arados terrenos tao diferentes e inversamente proporcional ao poder heuristieo dos eoneeitos. Portanto, e preciso voltar a analise empirica de praticas singulares e 56 se permitir generaliza<;oes prudentes e limitadas.
15. Encontrar-se-ia a mesmo economismo nos trabalhos sobre a Argeiia que explicavam as disposic;oes radonais pelas condic;6es materiais da existencia. Assim, "0 calculo racional, primeiro manejado de modo imaginario eabstrato, encama-se progressivamente na conduta, aproporc;ao que a melhoria das condic;6es materiais pennite" (Bourdieu, Darbel, Rivet, Seibel, 1963: 342). Na epoca 0 autor evocava 0 "patrimonio obje-
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tivado de Dutra dvUiza¢o, a heranc;a de experifulcias acumuladas, tecnicas de remuneraC;ao ou de comercializac;ao. metodos de contabilidade, de calculo, de organiza¢o, a sistema importado pe1a colonjza~ao" que "aparececomoumjogo infinitamentecomplexo no qual as trabalhadores estao lan~dos" (ibid.; 313). Mas este aspecto das coisas aparecia, nurn contexto cientifjcamente dado, como secundario. Hoje nos parece central se quisennos captar as modalidades precisas de constitui¢o das disposi~6es au dos esquemas. E nao e casual que as pequenos camponeses, os peqUenos artesaos e comeTciantes argelinos incapazes de uma conduta racional eram, alem de estar em condil;oes econ6micas instilveis e precarias, no mais das vezes, analfabetos.
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CENA2 As praticas ordinarias de escrito em 0<;00 Creio que a banalidade e muito anormal (Sir Arthur Conan Doyle. Une affaire d'identite).
Nao e 0 objeto que importa, mas 0 a/ho. Se 0 a/ho estiuer lei, 0 objeto sera encontrado, e se voce ndo tiver 0 a/ho, seja qual/or 0 objeto, uoce nao 0 encontranl Ici (Hadar Dostoievski. Diorio de um escriudo).
Nao se estudam objetos tao comuns e aparentemente insignificantes como Iistas de compras, Iistas de tarefas, itinerarios de viagem, pequenas notas em agendas, calendarios ou em simples pedac;os de papel a nao ser com segundas intenc;6es te6ricas. Poder-se-ia, de fato, perguntar-se pela legitimidade cientifica a ser dada a objetos de pesquisa tao pequenos. Mais de urn soci610go - com seu (born) senso pratico de soci610go - detectaria imediatamente 0 objeto sociologicamente suspeito, socialmente sem risco, minusculo e longe demais dos debates te6ricos "de lundo" que atravessam a disciplina. A dignidade academica desejaria que se estudassem apenas objetos socialmente (simbolicamente) dignos de interesse. As praticas de escrita aparecem assim, ao entendimento academico, como urn objeto "bizarro", "insignificante" e sem importancia diante dos "grandes problemas" ou dos "grandes temas" instituidos. Definitivamente, urn objeto tipico para 0 antrop6logo. Acontece assim com a vita academica e com 0 faro de bons pesquisadores que buscam e encontram os "bons objetos", que se parecem com "objetos muito bons" do soci610go e que, porque correspondem muito perfeitamente a isso, acentuam a preguic;a interpretativa e raramente fazem avanc;ar 0 conhecimento sociol6gico. No entanto, e possivel que se esteja inclinado a pensar que os grandes problemas te6ricos podem e devem ser colocados a partir do estudo de objetos aparen-
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temente menores e que estes nao implicam nem na busca de um exotismo interior nem na pesquisa sistematica das margens. Com Pierre Bourdieu, pode-se preferir "buscar a solu~ao de tal ou tal problema canonico em estudos de caso" (1992: 250) a permanecer fechado para sempre entre os quatro cantos dos textos comentados e re-comentados. A segunda inten~o te6rica, que sempre guardamos no espirito quando pesquisamos a escrita (seja escolar, profissional ou domestica), e a questao do senso pratico. Pouco a pouco, de entrevista em entrevista, de obl serva~ao em observa~ao, de analise de caso em analise de caso , pareceu-nos que as praticas comuns de escrita constituem, no fundo, fantasticas exce~oes de formidaveis contra-exemplos em rela~o ao que a teoria da pratica ou do senso pratico descreve. Estas praticas representam verdadeiras rupturas com rela~ao ao senso pratico, com a 16gica pratica, e podem ser compreendidas a partir da rela~ao negativa que mantem com a mem6ria pratica, incorporada, do habitus. Tomam possivel 0 dominio simb6lico de certas atividades, bem como sua racionaliza~ao. Sem esta questao fundamental do senso pratico, no centro da teoria da a~o, o pesquisador apenas percebe os tra~os mais salientes destas praticas e s6 pode chegar a tipologias formais um pouco fracas, sem jamais ver 0 que elas tem em comum. Entre as muitas escritas domesticas distinguir-se-ao, por exemplo, aquelas que sao (quase) obrigat6rias (por exemplo, preencher ou redigir documentos administrativos diversos) das quais dependem habitos sociais. Destes (Mimos ainda se poderiam separar as praticas "familiares" (por exemplo, listas de tarefas, notas no calendario familiar, encomendas por correspondencia, arquivamento de papeis administrativos, escrita ou c6pia de receitas de cozinha, etiquetagem de produtos alimentares ... ) das praticas mais "pessoais" (por exemplo, anota~6es numa agenda pessoal, palavras cruzadas ... ), das praticas "esteticas" (por exemplo, escrever hist6rias, poemas, can~6es, manter um diario pessoal...) das praticas "funcionais" ou "utilitarias" (por exemplo, calculos de contas familiares, ter um "cademo de bordo" para 0 carro ... ), das praticas regulares (por exemplo, correspondencias familiares, pequenas palavras entre membros da familia, lembretes escritos, listas de coisas a fazer. .. ) das praticas ocasionais (por exemplo, lista de coisas a levar na viagem, itinerario quando se vai viajar, anota~6es no album de fotografias ... ). Esobretudo perguntando pelas disposi~oes indissociavelmente sociais e mentais (em rela~ao ao tempo, ao espa~o, a linguagem, a si e ao outro) que elas tornam possivel e, em grande parte, constituem 0 que se pode captar da 16gica social dessas varias praticas. MEM6RIA INCORPORADA, MEM6RIA OBJETIVADA
Para come~ar, e preciso levar muito a serio a interpreta~ao end6gena que consiste em alguem dizer que nao escreve em sua vida domestica, que nao utiliza 1. Nossas reflex6es apoiam-se sabre as resultados de vltrias pesquisas (no total, cerca de 100 entrevistas e 500 questionarios) dedicadas as praticas de escrita domestica em meios sodais variados. Estas foram realilaclas com a ajuda eficaz e penta de Lue Bourgade (1993) e de Mathias Millet (1993).
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esses pequenos meios de objetiva~ao porque as capacidades mnemonicas ainda estao boas. De fato, os que nao tern 0 costume de escrever lembretes, listas de tarefas, de coisas a fazer, de tomar nota ao falar ao telefone ou antes de uma conversa telefonica, de fazer anota~6es em agenda ou calendario, etc., evocam freqUentemente sua "boa memoria". Alguns que praticam isso falam tambem, por exemplo, da agenda como "memoria central" (segundo a expressao de uma mulher com forte capital escolar) ou reconhecem a falibilidade de uma memoria por demais incerta. Tanto de uma maneira como de outra, sendo adepto disso ou rejeitando totalmente, as escritas comuns parecem, nos lugares comuns, estar no centro da questao da memoria: memoria objetivada, ela diferencia-se da memoria incorporada. As maes de familia "em tempo integral", que estao constantemente preocupadas com 0 grupo familiar, as vezes nao tern tanta necessidade de escrever as coisas, a sua mem6ria incorporada est;§. mobilizada, pennanentemente ativada.
Uma mae, cujo marido e operario especializado, declara: "Tenho uma boa memoria. Eu me lembro de tudo 0 que fa~o. Sou eu que lembro a ele [seu maridol: •voce tem que fazer ista, aquila'. Entao eu sou a memoria. Sim, guardo tudo de cabe(a". Quando se tern a ocasiao freqUente de fazer 0 levantamento, na pratica domestica diaria, da situa~ao do estoque de produtos alimentares, a memoria incorporada e constantemente ativada e a lista de compras escrita toma-se menDs necessaria ("[ao passar pelas prateleirasl eu me lembro do que tenho e do que nao tenho em coso"). Os homens que abandonam amplamente 0 territorio das escritas domesticas (Lahire, 1993d; 1995b e 1997b) "justificam" sua posi~ao principalmente invocando uma especie de allivez masculina ou de honra masculina ligadas a memoria incorporada. A memoria oral, viva, intemalizada parece ser um trunfo e uma allivez especificamente masculina. As mulheres notam assim a memoria excepcional, de "elefante", de seus maridos, que nao anotam nada, ao contrario delas que "nao tern cabe~a". t dificil julgar a pertinencia dos discursos comuns sobre a "boa memoria masculina" e sobre as dificuldades das mulheres de "reter". As mulheres nao so tern que pensar em coisas (familiares) com que os hom ens nao precisam se preocupar e que nao precisam guardar na memoria, mas tambem as mulheres que afirmam que seus maridos nao anotam nada porque "se lembram" podem muito bem escrever no lugar deles para que nao esque~m certas coisas, contribuem assim, sem perceber, para criar 0 mito do marido que "tem uma boa memoria" (elas fazem listas de tarefas para seus maridos quando fazem compras ou escrevem para eles listas de coisas a fazer ou compromissos). As vezes sao os proprios maridos (ou os filhos) que pedem a suas esposas (ou maes) que Ihes lembrem certas coisas e/ou as anotem. De qualquer modo, do ponto de vista masculino, recorrer a escrita parece ser uma prova de "fraqueza". Escrever as coisas para lembrar-se delas ja e correr 0 risco de nao fazer a memoria funcionar. Percebe-se isto muito bem quando 0 marido censura a mulher por querer que os fiIhos se acostumem a escrever para se lembrarem ao inves de incita-Ios a fazer fundonar a sua memoria.
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Ao estudar as escritas e leituras profissionais de operarios pouco qualificados (Lahire, 1993b: 57-73) constatamos que, ligado a sua maquina e a seus colegas de trabalho, preso a urn modo mimetico de internaliza"ao do trabalho, 0 operario so era levado a ler e escrever em raras ocasi6es. De fato, se tornarmos 0 caso dos pIanos de montagem e de certas fichas tecnicas (fichas de acornpanhamento que indicam 0 nome das diferentes pe~as de urn aparelho), contrariamente ao que se poderia pensar urn pouco ingenuamente no come~o, 0 usc do plano ou da ficha nao e, aos olhos dos operarios, 0 sinal de uma qualifica"ao mais alta ou de uma maior competencia. Exatamente ao contrario, esta pratica
e vista como coisa de princi-
piante. A medida que 0 operario experimentado reconhece imediatamente 0 tipo de aparelho a montar a partir das pe~as separadas que Ihe sao enviadas, nao tern nenhuma necessidade de consultar as instru~6es ou ler 0 nome do tipo de apareIho. De fato, quanto mais competente se e, menos se tern necessidade de ler uma instru~ao ou uma ficha de acompanhamento. 0 que esta escrito, neste caso, e claramente associado aos iniciantes que, por falta de priltica, podem ter necessidade de instru~6es escritas para Ihes lembrar ou indicar 0 que correriam 0 risco de esquecer au ainda nao incorporaram totalmente.
Mais que isto, muitas
afirma~6es
indicam uma critica clara do uso das instruaiem disso, e naD fazer esfor~o para se lembrar. 0 escrito e pensado, entao, como podendo destruir ou enfraquecer as capacidades (valorizadas) de memorizar. Nesta perspectiva, a planta da maquina, 0 escrito, sao apenas sucedaneos, ajudas exteriores, muletas para a memoria falha dos iniciantes, que nao possuem 0 trabalho interiorizado, que nao tern a planta "inscrita" na memoria e, de fato, para os que nao incorporaram os habitos de montagem. Entao chegamos, atraves da questao das praticas da escrita, ao problema do senso pratico, pois a escrita parece intervir quando 0 senso pratico incorporado nao e suficiente. A escrita e percebida, portanto, por Uma parte dos entrevistados - em geral mais situados nos meios populares que nos meios forternente dotados escolarmente, em geral mais homens que mulheres - como mais urn meio "para se lembrar". Desde que a escrita so e percebida em sua fun"ao mnemotecnica, ela e pensada como uma especie de paliativo para uma memoria deficiente. As praticas de escrita podem, pois, ser percebidas negativamente por aqueles que respondem orgulhosamente que "nao tern necessidade disso no momento", como se a questao fosse urn par de oculos para compensar a pouca visao ou uma bengala para ajudar a andar. Utilizar a escrita marcaria, portanto, a existencia de uma deficiencia, de uma dificuldade. Estas pesquisas assemelham-se, sem 0 saber, a critica feita por Platao em Fedro. Opondo a mneme como memoria viva a hypomenesis como rememora"ao e senha, Platao nos diz, pela voz de Socrates, que a escrita nao resolveu 0 problema da memoria viva e que, pelo contrario, contribui para destruir urn pouco mais libertando os homens da obriga"ao de se esfor~arem para se lembrar (certas pesquisas dizem ate "esfor~r-se" ou "obrigar-se" a nao escrever para fazer sua memoria "funcionar"). Todavia a ideia de que a escrita seria urn assunto de principiante nao e proprio do mundo operario e encontra-se nUm meio profissional tao distanciado da
<;6es. Ler as instru<;oes, diz urn OperanD, nao e trabalhar e,
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produ~ao material como 0 do professor de escola elementar. De fato, registra-se uma progressiva redu~ao - sem desaparecer totalmente - de uma parte da atividade da escrita profissional desses professores ao longo de toda a sua carreira (DeIon, 1997).0 diario e as fichas de prepara~ao pedagogica sao menos investidos com 0 passar do tempo. As razoes dessa progressiva elimina¢o sao relativamente simples.
Tais escritas sao antes de tudo urn meio de entrar no oficio de professor, de adquirir essa identidade. Especie de ritos de passagem, permitem que as principiantes sintam uma diferen~a com rela~ao ao que anteriormente estavam, investindo com meticulosidade e intensidade urn dos gestos de incorpora~ao a esse novo mundo profissional. A aplica~ao e 0 rigor sao aqui, em parte, os sinais de urn trabalho identitario. Mas escrever a que se vai fazer na semana ou no dia e tambem e sobretudo um meio de objetivar sob a forma de urn" emprego do tempo" e de ter presente ao alcance da vista 0 que nao foi ainda totalmente incorporado. Isto permite que se tome segura, que "se saiba onde 5e vai", que "se est6 no contexto", que se guie a propria a~ao, que se "planeje" a a~ao para ser "eficaz" e nao "naufragar" ou "perder pe". Se as professores pudessem dizer, com alguns anos de atraso, que no come<;o "0 gente se esfon;a muito" para "se ga ran tir" e estar "calma" durante a aula, reconhecem tambein que esta superprodu¢o escrita era urn "caminho indispensQvel": "Cuidadocom Q improvisac;ao, eu noo meaventuraria". Quando os ritmos, as progressoes, 0 sentido de inscri~ao no tempo curto da com os alunos, no tempo medio da organiza~ao do dia ou da semana e no tempo longo do programa do ana tiverem sido incorporados, a memoria interna substituira progressivamente a memoria objetivada externa. Os professores intera~ao
chamam ista - quase como as operarios - de "en trar no a/fcia", "adquirir expe-
riencia", "hiibito" ou "facilidade". Tendo evitado os riscos da improvisa~ao aventurosa (e perigosa) do inieio, os professores podem entao deixar bastante lugar para a improvisa~ao fundamentada na experiencia. Os primeiros tempos da abundancia das "anota,oes escritas" sao seguidos pela progressiva diminui¢o e pela "redu.;iio ao essencial" .. A progressiva redu¢o dessa escrita nao e, todavia, urn processo linear na medida em que cada mudan~a de nivel questiona de novo as rotinas anteriormente adquiridas, obrigando a "partir de novo praticamente do zero". For~ a se reconstituir urn novo capital de seqiiencias pedagogicas, de exercicios, de mini progressoes e, conseqUentemente, a reinvestir 0 tempo da prepara¢o escrita. Se, diferente do trabalho operario, a escrita nao desaparece totalmente, e simplesmente porque os materiais escritos destinam-se a outros: para eventuais substitutos, anota~oes para 0 inspetor. A escrita e mantida para permitir uma boa substitui~ao e para estar de acordo com 0 regulamento. RUPTURAS COMUNS COM 0 SENSO
pRAnco
to sobretudo a analise de urn extrato de entrevista que nos levou a colocar mais claramente 0 problema. Urn operario da constru~ao civil, com segundo grau, res-
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pondia assim a uma pergunta sobre 0 usa de agendas e calendarios: "Eu the digo jrancamente, eo instinto, e a memoria. A gente sobe que no proxima sernana tern tal coisQ a fazer, bem, a gente nao marco, a gente 56 marca ... Se h6. compromissos urn pouco mais longe, urn dentista que marCQ uma consu/ta para urn ... , urn oculista au qualquer coisa assim, que marco uma consulta para dois meses ou alga assim. Voce nao consegue se lembrar para dois meses, bem, a gente marca, a gente sabe que em tal data ... " Esem duvida a evoca¢o do "instinto", por parte desse operario, lembrando 0 vocabulario muitas vezes utiIizado para descrever 0 senso pratico, que pade nos dar 0 caminho. 0 entrevistado anota num calendario 0 escreve um lembrete quando se trata de compromissos distantes que ele pode esquecer. Mas para atividades habituais, repetitivas ou pr6ximas,
e, segundo suas palavras,
"0
instinto", a "memoria" que desempenha
0
seu papel. Ora, ha como que uma teo ria impifcita das prciticas comuns de escrita que interuem quando 0 senso prMico pode falhar ou noo ser suficiente. Uma grande parte dos atos antecipadores, pre-reflexivos, da pratica sao feitos sem que se tenha necessidade de escreve-Ios. Qualquer um que escrevesse coisas por demais "evidentes" seria imediatamente percebido como "doente", "velho", tendo perdido a mem6ria ou a "cabe~a". No mais das vezes, as praticas cotidianas sao efetuadas aquem de toda reflexao, numa reativa~ao pratica de habitos nao reflexivos incorporados sob forma de necessidades e de evidencias infraconscientes. Quem pensaria em anotar, por exemplo, "devo tomar banho, depois soltar 0 cao, depois comer, depois ir buscar as crianc;as na escola" e assim por diante? Pelo absurdo (ainda que 0 absurdo seja, como veremos, um caso do possivel) se toma consciencia do fato de que a evidencia do mundo e da maioria dos atos praticos na vida diaria sup6em uma especie de ajustamento nao consciente de um corpo socializado a situa~6es sociais. Outro exemplo "absurdo" que pode colocar no caminho do senso pratico eo da crian~ que fizesse para si sistematicamente Iistas de coisas a fazer ou lembretes. Uma mae de tres filhos (professora de alemao numa grande escola) desenvolve uma especie de miniteoria implicita das praticas comuns de escrita e da rela~ao infantil com 0 mundo quando ela explica que seus filhos nao fazem Iistas de coisas a fazer ou lembretes, pOis tem menos coisas para guardar na mem6ria e menos prepara~ao em suas atividades - preparadas para eles pelos adultos - que sao mais espontaneas que as dos adultos: "Eles noo tem projetos assim, coisas a fazer, telefonar para fulano ... Quando minha filha telefona, e assim: 'eu uou telefonar para fulana', noo e tres dias antes que ela decide, 'daqui a tres dias uou telefonar', e imediatamente". Os projetos dos adultos se op6em a a¢o imediata dos jovens, 0 pianejamento somente em sentido pratico. As praticas escriturais e graficas introduzem uma distancia entre 0 sujeito falante (ou 0 ator agente) e sua Iinguagem e Ihe dao os meios de dominar simbolicamente 0 que dominava praticamente ate entao, a saber, a linguagem, 0 espac;o eo tempo. Os meios de objetiva¢o do tempo (calendario, agenda, planejamento ... ), as Iistas de coisas a dizer ou a fazer (como pianos de ac;6es ou de palavras futuras),
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2 as itinerarios all as percursos trac:;ados , as diarios intimas e todas as formas es-
teticas de escrita (escrita de poemas, de hist6rias, de "literatura" ... ), etc., sao tantos instrumentos de dar forma a nossa temporalidade, nossa espacialidade e nossa linguagem, que sao exce~6es cotidianas com rela¢o ao ajustamento pre-reflexivo do senso pratico a uma situa~ao social. Observa-se a mesma diferen~a entre 0 tempo vivido "que passa" (polirritmico) e 0 tempo homogeneo e linear organizado gra~as a meios de objetiva~ao que, entre 0 trajeto espontaneo de um automobilista e 0 itinen3rio de viagem que planeja um percurso, prepara-o, divide-o em etapas ... ou entre a palavra espontanea em contexto de intera¢o e sua escrita elaborada, controlada ... As praticas de escrita constituem assim verdadeiros atos de ruptura frente ao senso pra.ticoj constituem atos que rompem com Q /ogicQ pratica de efetuat;ao das praticas no evidencia de coisas a fazer, rom-
pendo com a /6gica do senso pratico realizada na urgencia pratica da Q(;iio (Lahire, 1993c).
Vimos que existem muitos casos de desajustamento au de nao-coincidencia do estoque de esquemas incorporados e situa~6es sociais que engendram situa<;6e5 mais au menos fortes e mais all menos duraveis de crise3. Esses momentos
de desajustamento e de crise (a adolescencia e sua bagagem de conflitos e de sentimentas de incompreensao, urn divorcio, a passagem para a aposentadoria, uma doen~ grave que atinge 0 conjuge, que vem desorganizar a vida comumente vivida e romper os la~as de sociabilidade habituais, um profundo sentimento de solidao au uma falta de comunica~ao com entes queridas, desaparecidos ou distantes, um rompimento amoroso ... Allam, 1996) dao lugar, as vezes, quando estao reunidas as condi~6es favorilVeis 4 , a uma intensa produ¢o de escritos pessoais que vem compensar uma incerleza ou um vazio de identidade. Em compensa~ao, a ruptura com 0 senso pratico provocada pelo ajustamento reflexivo, planificador, calculador, etc., nada tem de uma situa~ao de crise, mas esta ligada a momentos comuns da vida social. A execu~ao de habitos reflexivos, planificadores ... de modo algum e um caso consecutivo a uma crise. Sup6e ate uma adesao pratica a atividade. Os desajustamentos ou desvios as vezes chegam a produzir buscas de identidade nos atores (entao, quem sou?), ao passo que as rupturas que evocamos
2. Itinerarios que se articulam com leitura de mapas. Ora, a banalidade do uso de mapas rodoviarios acabou fa-
zenda esquecer a revoluC;ao da relat;ao com 0 espat;o que urn tal instrumento de representa¢o miniaturizado do espa~o supOe, 0 mapa apresenta de maneira sin6tica, sob a {onna de uma s6 imagem visive! de um s6 golpe de vista, uma realidade espacial, geografica, que nao pode ser comumente percorrida senao de maneira descontinua, na sucessividade dos diferentes momentos de um deslocamento real no espa~o. Fantastica abstra~ao, ele deixa ver "tun simulacro visive! do que, na realidade, sempre escapou aos olhos humanos" (Jacob, 1988,275). 3. Cf. supra "As muitas ocasi6es de desajustamento e de crise", 4. Entre essas condi~6es e precise, certamente, lembrar a familiaridade com a escrita, que supoe ter adquirido escolannente urn certo dominio da lingua escrita (como confinnam os levantamentos estatisticos sabre 0 nivel de diploma dos pesquisados). Alem do mais, a pessoa que manUm urn diano nao pode estar totalmente esquecida de si, no sacrificio de si (de seu tempo e de sua aten¢o) em rela~ao aos membros do grupo familiar: a "enfamiliariza~aoM, da qual falava Richard Hoggart(1991), freia toda veleidade intimista eexplica a freqUente parada constatada do diario intimo por partedas mulheres no momento do casamento ou do primeiro filho.
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aqui nao levantam pergunta sobre 0 "porque" ou sobre os "fins" da a"ao (porque fa~o tal ou tal coisa?), mas permanecem freqilentemente no dominio do "como" (como fazer tal ou tal coisa?) e dos "meios".
Ereconstituindo pouco a pouco os diferentes casos possiveis de recurso a escrita no espa~o domestico que podemos por a luz a ruptura operada pela rela~ao com a l6gica do senso priltico5 • Mais que se fechar na ilusao do particular, e preferivel considerar que" 0 progresso da pesquisa depende de nossa capacidade de apreender urn largo leque de casos pertinentes" (Hughes, 1996: 87). T rata-se, entao, de praticar a varia"ao sistematica dos casos para atingir os casas-limite e, as vezes, ate os casos absurdos. Compreender as razoes por que urn caso e absurdo e, tambem, uma boa maneira de penetrar a l6gica dos casos normais. Por outr~ lado, toda vez que urn pesquisado diz que "s6 escreve quando ... ", 0 soci610go e posto na pista de uma propriedade singular de usos sociais da escrita comum. A condi~ao sine qua non indicada especifica 0 uso da escrita e define os limites do uso. "Eu nunca escrevo, exceto quando ... " ou "Escrevo sempre, exceto quan-
do ... " sao enunciados de aparencia banal, mas que constituem ajudas preciosas para 0 pesquisador. Se os pesquisados nao dizem, 0 soci610go devera, a for~ de comparaGao e de varia¢o dos casas, ele mesmo construir essas "condi<;6es" ou "contextos de uso".
"NATURALMENTE'"
"Naturalmente" e uma expressao da linguagem comum que pode ser objeto de urn comentario sociol6gico pois parece designar habitos nao reflexivos que dependem do senso priltico, isto e, da a~ao como ajustamento pre-reflexivo de urn corpo socializado (habitus) numa situa"ao social. Nos discursos dos pesquisados o "naturalmente" remete, em primeiro lugar e acima de tudo, a uma situa"ao onde nao e utilizado nenhum artefato cognitivo· nem nenhuma sofistica~ao tecnica, sobretudo nenhum meio de escrita. A ideia de que a escrita, a mem6ria objetivada, os meios de estocagem da informa"ao no exterior dos corpos, etc., sao artefatos 5.
Epreciso notarque urn des pressupostos de nossa grade de entrevista era 0 seguinte; a discussao deveconduziT a e Hear no nivel da realidade muito particular, a saber, 0 n'iveilinguageiro. Falamos, realmente, de prltticas de escrita a prop6sito de praticas muito diferentes na vida coticliana e nao tratamos de fato, diretamente e em
profundidade, de cada uma das dimens6es de ativiclades familiares com as quais estao ligadas as escritas domesticas (compras. viagem, relac;oes com a familia, com as amigos, etc.). Ora, este pacto tacito e rompido com bastante frequencia durante as entrevistas com familias popularesque, justamente, nao sAo grandes utilizadoras da eserita. Se falamos de listas de tarefas, os pesquisados acabam falando de compras, gostos alimentares de maneira autOnoma; se evocamos listas decoisas a levar para a aula, fomecidas pela escola, os pesquisados deslizam da escrita para a rea1idade da aula e comentam 0 acontecimento. 0 soci61ogo deve recentrar cada vez as afinnac;oes dos pesquisados sobre as praticas da escrita; cada assunto, cada tema pode ser co-mentado nao especificamente do ponto de vista das praticas da escrita, mas do ponto de vista dos sentimentos gerais que se tern a seu respeito. Mas, no fundo, 0 pacta tacito que subjaz ao conjunto da entrevista repousa sobre urna re1ac;ao com a linguagem, isto e, sabre a dissociabilidade da Unguagem por relac;:ao ao munclo de situac;oes, de acontecimentos, de coisas vividas. Romper 0 pacto significaque se resiste a essa dissociac;:ao . • Esta sulxlivisao foi adaptada. 0 titulo em frances e Faire comme (0. Em situac;oes seme1hantes de pesquisa, no Brasil se usa a expressao "naturalmente" ou semelhantes. 6. A prop6sito dos artefatos cognitivos ver Socioiogie du travail (1994) .
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cognitivos que constituem recursos em e para a a~ao, e interessante a medida que numerosos pesquisados pensam que s6 a mem6ria oral e autentica, natural. A escrita e uma maneira de "trapacear" com rela~ao as fraquezas ou aos Iimites da mem6ria oral. Neste ponto de vista, a no¢o de artefato cognitiv~ pelo menos permanece fiel a uma parte das representa~oes sociais (sendo a escrita colocada ao lade do artificio). as operarios nao qualificados descrevem muitas vezes 0 seu inicio no trabaIho dizendo que aprendem "naturalmente", "com os ontigos", "se virando",
"no trabalho", "vendo os outros fazer", "imitando" os que ja estao inseridos no trabalho e assim vao entrando na pratica do trabalho (Lahire, 19930. Nossos entrevistados as vezes falam da mesma maneira de diferentes aprendizagens que fizeram fora de qualquer situa~ao formal de ensino. as pesquisados designam muitas vezes as situa~oes em que se lembram ou agem sem ter recorrido a escrita, com a ajuda da mem6ria objetivada, como situa~oes em que se lembram e onde agem "naturalmente": reter urn itinerario ("olhou 0 mapa e reteve naturalmente"), fazer as malas "naturalmente" (sem nenhuma Iista), lembrar-se dos numeros de telefone "naturalmente" (sem agenda), aprender suas Ii~oes sem copia-Ias ("prefiro aprender naturalmente, mentalmente")' fazer as contas "naturalmente" (sem usar maquina de calcular nem caneta e papel), fazer as coisas "naturalmente" (sem anotar em agenda ou fazer Iistas), fazer as compras "naturalmente" (sem Iistas de compras), cozinhar "naturalmente" (sem ajuda de receita escrita) e assim por diante. A modalidade "naturalmente" pode tambem indicar uma situa¢o em que 0 grau da formalidade da escrita e menor. Por exemplo, alguem diz que escreve suas cartas "naturalmente" subentendendo "sem fazer rascunho", ou faz as suas anota~oes pessoais (" Mjo foi num diorio, foi escrito naturalmente, numa folha 501tao Nao foi de um diorio que precisei'" - mulher, contadora). A expressao pode, enfim, definir situa~oes onde a ordem nao e particularmente escolhida, cUidada, isto e, onde 0 ator nao pensa particularmente numa ordem particular quando realiza a sua a~ao: fazer suas Iistas de compras "naturalmente", "de qualquer jeito", sem ordem particular, colocar seus papeis administrativos "naturalmente" (sem refletir numa ordem particular de c1assifica~ao), "organizar" ou "por" seu correio "naturalmente" (agrupando-o sem 0 c1assificar), por as receitas "naturalmente", etc.
A MEM6RIA DO INCOMUM
Constata-se que - qualquer que seja 0 seu meio social- os pesquisados anotarao mais no calendario 0 momenta em que for preciso comprar urn bujao de gas ou 0 produto para a lavadora de lou~, pois isto s6 acontece bastante raramente, do que a hora marcada no cabeleireiro, que acontece ritualmente toda quarta-feira a tarde,au 0 aniversario de urn parente, que e uma data inesquecivel. Numa Iista de compras as vezes se escrevera apenas artigos que nao se tern 0 costume de comprar ("Acontece [que eu escrevaJ para nao esquecer coisas que eu nao tra-
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go sempre, por exemplo, as cereais de minha jilha ou coisas assirn, eu anoto, mas senaa eu sei 0 que fazer, noo marco sempre", assistente maternal, ex-contabi!ista}, que nao se compra "toda vez", que sao" especia is" , previstos especialmente para uma refei<;ao extraordinaria, "que naD sao sistematicos" e nos quais
"niio se pensa necessariamente", como diz uma pesquisada (medica). Para as compras, se pegara a !ista anual de material escolar. No calendario se anotarao "as coisas que saem do comum", mas evidentemente nao se tera a ideia de marcar, numa !ista de coisas a fazer, num calendario ou agenda: "Quinta-feira, 2 de juIho: comer ao meio dia". As "datas" de tal modo incorporadas que nem sequer sao pensadas como tais (por exemplo, aniversario de urn parente' ou, melhor ainda, 0 fato banal de tomar 0 cafe da manha ou tomar banho), opoem-se as datas que precisam ser anotadas num cademo, numa !ista de coisas a fazer, num calendario ou numa agenda pessoal (por exemplo, uma consulta com urn medico especialista); as compras comuns e regulares, que so exigiriam que se usasse 0 (born) senso pratico (farinha, oleo, a~ucar, manteiga,leite ... ) opoem-se as compras mais ocasionais em vista de uma refei~ao incomum que necessitam uma !ista detalhada; as coisas comuns nas quais se pensa naturalmente em levar quando se parte de ferias (por exemplo, roupa) opoem-se as coisas menos freqUentemente utilizadas mas que, no entanto, sao necessarias (por exemplo, farmacia).
o que se anota, 0
que exige inscri<;ao,
e, portanto, 0
extraordinario, 0 inca-
mum,o inabitual, 0 excepcional (versus ordinario, comum, habitual, banal). De fato, 0 carater inabitual ou excepcional so deve ser anotado quando 0 "acontecimento", a "informa¢o", all 0 "ato" singularizam-se e, desse modo, sao mais facilmente memorizados. Entre 0 ordinaria, 0 rotineiro, que sao realizados sem mes-
mo pensar neles, e
0
excepcional-singular estao todos esses pequenos aconteci-
mentos, que nao sao nem regulares e incorporados nem suficientemente excep-
cionais e singulares, que geralmente sao objeto de inscri~oes mais particulares. A1em do mais, a escrita comum do extraordinario e 0 unico caso de escrita que se relata no tratado de economia domestica de Xenofonte: "Enviamos a intendente todos os objetos que utilizamos apenas para as festas, as recep~oes ou as ocasioes excepcionais; depois que ela mostrou a situa¢o, fez 0 inventario completo e escreveu a lista, nos mandamos que desse cada objeto desses a quem tivesse necessidade dele, que se lembrasse de qual ela tinha dado a cada urn e depois, quando 0 objeto Ihe fosse devolvido, que 0 recolocasse no lugar onde 0 tinha pego" (Xenofonte, 1949: 74). E se ve bern a rela¢o que tern a lista de compras e a memoria incorporada nos casas em que as mulheres nos respondem que elas nao fazem listas de compras para elas mesmas, mas escrevem-nas para seu marido ou para os mhos, isto e, para aqueles que nao tern urn conhecimento pratico suficiente do universe dos 7. A intemaliza~ao das infonna~6es depende da rela~ao que se tern com 0 dominio de atividade ern questao. Assim, se as datas de aniversario de parentes sao geralmente conhecidasde cor e sern esfor~o particular pelas mulheres, que estao encarregadas da coesao do grupo familiar, nao 0 sao necessariamente do lado masculino. Assim, urn pesquisado (professor de alemao numa grande escola) escreve as datas de aniversftrio dos parentes pr6ximos em sua agenda.
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produtos domesticos e da situa"ao dos estoques para se permitir fazer compras "naturalmente", sem Iista. Aqui a escrita vern c1aramente compensar urn prograrna incorporado fraco. As vezes as Iistas sao ate muito complexas, quando as maes resolvem transmitir com exatidao a sua habilidade em materia de compras. Assim, quando uma mae de familia (vended ora na pastelaria familiar) manda a sua filha (de dez anos) fazer compras, faz uma Iista de compras para a menina nao esquecer nada, mas chega ate a desenhar uma planta do mercado para que ela tenha referendas: "Fiz para ela uma planta do mercado e Ihe disse: 'Em tallugar voce me compra isto"'. Preocupada com a qualidade dos produtos, envia a sua fiIha a comerdantes conhecidos e coloca na Iista as alternativas que ela comumente faz implicitamente (por exemplo, tal produto deve ser comprado com tal comerciante OU, se ele nao 0 tiver, deve ir a tal Qutro, e, enfim, se este produto nao estiver disponivel, nao deve comprar em lugar nenhum). Do mesmo modo, os itinerarios de viagem nao sao feitos quando 0 percurso a ser leito e intemalizado, comum, rotineiro. Esses percursos habituais mobilizam apenas habitos incorporados. Raciodnando pelo absurdo, eVidentemente nao se imaginaria que se pudesse fazer urn itinerario escrito a cada manha antes de partir para 0 trabalho para indicar as diferentes ruas e avenidas pelas quais se passa para ir ate la. Finalmente, e por raz6es analogas que certos pesquisados consideram totalmente inutil, ate absurdo, anotar nas fotografias ou nos albuns de fotos familiares os nomes das pessoas fotografadas: 0 fato de ser familiar ou muito conhecido e suficiente para reconhecer imediatamente os protagonistas. DURAC;:OES LONGAS E PREPARAc;:AO DO FUTURO
A escrita intervem, tambem, quando se trata de controlar dura<;6es relativamente longas e quando se imp6e a tarefa de preparar 0 futuro, situa<;6es que se op6em a imediatez das praticas cotidianas e a rela"ao imediata com 0 mundo. 0 calendario, a agenda e 0 planejamento, por exemplo, tomam possivel uma reparti"ao das atividades (individuais ou coletivas) no tempo objetivado e, ao mesmo tempo, uma planifica<;ao (ou uma volta) ao que foi feito, implicando uma rela"ao mais reflexiva com 0 tempo (passado, presente, ou futuro). 0 uso domestico da agenda ou do calendario esta com toda evidencia Iigado com 0 alongamento das dura<;6es a controlar e com a complexifica"ao das atividades a gerenciar nas sociedades onde a burocratiza"ao e a organiza"ao racional das atividades exigem cada vez mais 0 gerenciamento de longas dura<;6es dentro das quais sao planejadas reunioes, encontros, acontecimentos ... Sao inscritos de preferencia os comprornissos ou os acontecimentos distantes ("Tenho um calendario, mas e sobretudo para as coisas que estiio muito longe", diz uma dona-de-casa formada em contabilidade) que sao escritos em diferentes meios, desde os mais elementares (peda<;os de papel ou em envelopes) ate os mais elaborados (calendario, agenda ou computador). As praticas de escritas gerenciais-domesticas permitem tambem calcular, planejar, programar, prever a atividade e organiza-Ia num periodo de tempo mais ou
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menos longo. Elas preparam ou retardam a a,ao direta e suspendem em parte a urgencia pratica. A prepara,ao do futuro pode estar ligada ao orc;amento familiar ou pessoal. As vezes os pesquisados falam de "sistema" a proposito de seus metodos de gestao do orc;amento familiar, da import,mcia de "saber onde se estQ", de "saber 0 que se gastou" e se opoem a todos os que negam a possibilidade de prever, de caleular, de planejar, de gerir metodicamente a sua vida ("uiuer ao leu", "ndo ser metodico", "ser boemio", "oceltar as coisas como elas sao", "aproueitar a uida")'. As perguntas que fazem certos pesquisados ao fazer suas contas, ao "por de lado" , ao prever suas despesas - Quanto devo por de lade se eu quiser comprar moveis este ano? Se comprar as m6veis, quanta dinheiro sobrara para as ferias? Se eu assinar tal revista, poderei continuar a ir tao freqiientemente ao cinema? - estao perfeitamente inscritas no registro do projeto, "que coloca 0 futuro como futuro, isto e, como possivel (na medida em que pode acontecer ou nao), possivel que e posto como tal" (Bourdieu, 1989b: 19). Como tecnicas de autocontrole, as tecnicas de escrita implicam urn maior
controle dos desejos e pulsoes proprios. 0 livro de contas ou 0 caleulo do or,amento familiar, por exemplo, constituem concretamente meios de deixar para mais tarde compras que a logica da satisfac;ao imediata das necessidades tenderia a querer realizar instantaneamente. Atraves deles e toda Uma capacidade de adiar (seus desejos, seus impulsos ... ) e planejarque e construida e que nunca e adquirida antecipadamente: "Que horror! lela ril Eu fO(;o 0 or~amento, mas fa~o noo sei quantas vezes, mas nunca consigo manter. No come-;:o do mes eu pego e digo: 'neste mes eu fa~o, uou anotar todas as despesas', e quando chega 0 dia cinco au 0 dio seis do mes, acabou, as paginos come~am Q ficor em branco e noo para noo, todos os meses eu fa~o. Acho que no mes passado cheguei ate 0 dia seis" (mae de familia, casada com um comerciante). Do mesmo modo, as listas feilas, as programa,oes, que permitem lembrar-se das coisas a fazer e organizar-se para faze-las dependem da chamada d ordem dirigida a si mesmo. sao verdadeiras tecnicas de autocontrole, de autodisciplina. Assim, uma dona-de-casa (comerciante) redige listas de coisas a fazer a titulo de programas que sao lei e que funcionam como constantes chamadas a ordem: "Para me !azerver, poise born, as vezes, h6 coisasque agente nao tern vontade de fazer, e para mastrar a mim mesma que preciso fazer, que estava 16, e que se eu noo fizer urn outra fara, para me obrigar urn pouco". Quando a lista e dirigida a outro (uma domestica, por exemplo), seu carater coercitivo aparece claramente. Dirigido a si mesmo, 0 programa de trabalho aparece como uma ordem de si para si proprio (alguns falam tambem de "patrulhar-se"). Compreende-se entao 0 que querem dizer aqueles que, especialmente em ambientes populares, dizem que nao querem "ficar escrauos" de uma lista de coisas a fazer ou de urn programa. Percebem muito bern a rela,ao potencial de poder que se inscreve nessas listas/instru,oes, nesses programas!1eis.
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8. Parece que os quadros superiores sao, estatisticamente, os mais inclinados, entre os assalariados, a pensar e gerir a sua vida familiar cotidiana como wna "organiza~ao" e a cultivar uma fonna de ascese (Establet, 1987). No entanto, se as disposi~oes racionais domesticas estao desigualmente repartidas socialmente, as linhas di· visbrias nao seguem sempre as fronteiras das classes ou dos grupos sociais (Lahire, 1995b).
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A COMPLEXIDADE DAS PAATICAS A GERIR
As vezes a escrita se torna necessaria - aos olhos de alguns - desde que for preciso enfrentar a complexidade (multiplicidade e organiza~ao dessa multiplicidade) das praticas que "pedem" para ser organizadas ou que 0 podem ser mais facilmente pelo recurso a escrita (iistas diversas, agenda, calendario, livro de contas). Cerlas prilticas de escrita parecem ligadas a complexidade das atividades familiares. Epreciso poder gerenciar e coordenar os horarios profissionais e extraprofissionais dos adultos e das crian~as, bern como os inevitaveis imponderaveis da existencia ("H6 tantas coisas em que pensarque eu as anoto"; "As vezes, sim, quando de fato h6 muitas coisas a fazer, fa~o /istas. Aos domingos eu fa~o 0 meu planejamento do semana. Mas a lista, 'comprar pdo, manteigo, tudo is-
so' mio, absolutamente nao, mas anotaria 'jazercompras, passar no banco, ir ao medico, aD dentista', ista eu marco, nao detalhadamente, mas JOl;O pianos" - mulher, medica do trabalho). Quando se multiplicam as atividades ("coisas demais para pensar") e 0 tempo para faze-las e "contado" mas e preciso fazer tudo da melhor maneira possivel, 0 planejamento em agendas, calendarios ou listas de coisas a fazer podem progressivamente se impor como praticas necessarias
para evitar perder urn "tempo precioso" ("Sei que h6 muitas coisas a administraT, a gente sempre se esquece,.tem que ir busear Q Taupo que mandou passar h6 tres semanas, papeis a organizar au passar no banco ou sei 16 0 que. Porque sou obrigada a me organizar, senoo noo consigo. Anteontem fui obrigada a irds sete horas da tarde procurar fraldas para minha filha, porque nao tinha mais. [sso atrapalha meu tempo" - mulher que trabalha numa agencia de publicidade). 0 planejamento escrito, que evita 0 provisorio e vago, torna-se, muitas vezes, 0 meio de adquirir 0 controle indissociavelmente psicol6gico (ou simb6lico) e realiza situa<;:6es as vezes complexas. Quando os compromissos, reuni6es, deslocamentos, etc., se multiplicam, em momentos nunca identicos, entao a agenda, por exemplo, e utilizada. Esta pequena mem6ria objetivada permite que cerlas pessoas liberem a mem6ria viva e gerenciem a complexidade dos horarios, das atividades familiares (como 0 calendario familiar) mas sobretudo profissionais. Percebe-se c1aramente que a agenda e tanto mais exigida a medida que se dirige para profiss6es e/ou estilos de vida que multiplicam as atividades, as reuni6es, os encontros. A sociabilidade informal, improvisada entre amigos ou em familia, numa vida profissionalmente regulamentada pela rotina dos horarios fixos pelo empregador, nao necessita tanto do usa de urn tal instrumento. Do mesmo modo as listas (de coisas a fazer ou a dizer, de coisas a levar em viagem, de compras ... ) sao muitas vezes meios de fixar a<;:6es futuras, programas de a<;:6es, pianos. As listas de compras, por exemplo, estabelecem as vezes programas muito precisos de deslocamento nos supermercados (estante por estante) e assim se tornam "pianos cujo principio organizador e material e objetivamente apresentado, 0 que os torna mais aptos para regular a a""o, mais duraveis, mais completos e mais formais" (Goody, 1979; 230-231); "Eu classifieo, por exemplo, todos os laticfnios, os produtos de drogaria e, depois, do mesmo modo no
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meu carrinho, para ganhar tempo, born, quando estou no se~ao de drogaria, tenho Q minha /ista para coisas do drogaria, os cremes, se preciso de leite, de manteiga, de iogurte, nao misturo 0 leite com as esponjas, depois 0 cafe"
(professora de crian~as surdo-mudas); "Os produtos de limpeza de um lado, comec;o a dora volta, com minha /ista, pelo apartamento, alhando um pouco as reservas, banheiro, popel higiimico, olho debaixo do pia, en tao volta. t uma bela /is to, c1assijicada, porque sei que joi passar poraquela sec;iio" (mae de familia, casada com urn trabalhador em armazem). Elas tambem permitem "ganhar tempo", "economizar seus passos" ("Se nao a gente corre todas as prateleiras") e nao "esquecer nada" ("Porque se eu nao anoto, sempre esque~o alguma coisa" faxineira, casada com operario de fabrica). Todos os consumidores (todas as consumidoras) nao procedem, e claro, deste modo, mas seria interpretar mal uma boa parte da realidade social se nao se considerassem todos como sendo compradores colhendo automaticamente, naturalmente, por simples adapta~ao pre-reflexiva a situa~ao (a simples visao dos produtos, ou das prateleiras desencadeiam os gestos adequados), os produtos que se lhes apresentam' ...
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FORMAL E AS SITUA<;:OES TENSAS
A escrita esta, tambem, muito particularmente, ligada aos acontecimentos, encontros, prazos ajiciais, que se tern medo de esquecer (porque as conseqUencias do esquecimento poderiam ser graves), ou a situa~6es jormais e tensas, que e preciso enfrentar. Em caso semelhante, a escrita exerce uma inegavel fun~ao de seguran~a numa situa¢o de relativa tensao. Eo que se nota no caso dos encontros mais oliciais. As vezes sera preferivel escrever uma carta a algum orgao publico para explicar c~rreta e calmamente uma situa¢o delicada ou complexa a dar urn telefonema (onde se pode "perder 0 rumo"). Telefonar-se-a, mas apos ter preparado aproximada ou exatamente 0 que se quer dizer ao interlocutor para nao esquecer nada e ter certeza das reclama~6es. Quando 0 telefonerna e tenso, pode-se recorrer a escrita para evitar qualquer falha da memoria, que levaria a ter que telefonar para completar a informa¢o (uma mae de familia, com curso profissionalizante, declara a proposito das notas previas a urn telefonema: "1550 me aconteceu sim. Realmente, para coisas muito imporiantes, para telefonemas onde e preciso esperar uma hora, por exemplo, seguridade social
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coisas assim, mas Qcontece raramente,
anoto tudo 0 que devo dizer para naa esquecer, para dizer para mim mesma: 'des/iguei, esqueci de jalar 0 essencial"'). Portanto, quando a conversa e tensa, porque e rnais olicial, e que se apela para anota~6es escritas para gerir seu discurso. 0 habitus lingUistico, 0 senso lingUistico pratico nao e suficiente devido a ten9. Como dizem Bernard Conein e Eric Jacopin, "A rotina parece explicar bern 0 comportamento do cliente nas pratcieiras do supennercado. Ele utiliza algumas referendas espadais para encontrar os produtos, sem raciodnar ou deIiberar, pois cada gesto e controlado por uma percep1:;ao guiada por essas referendas" (1994,491).
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sao da situac;ao da fala. Alem do mais, os proprios pesquisados opoem a espontaneidade da conversa telefonica informal entre amigos ou membras da mesma familia e a tensao, que pode exigir a preparac;ao, dos dialogos com as administrac;6es ("Com a administrar.;ao sempre, mas com os amigos nao", explica uma dona-de-casa de nivel medio. Uma outra, detentora de diploma de estudo profissionalizante, diz: "Eu naD. As uezes misturo tudo, as vezes jalo com a madrinha de minha Jilha, mistura-se tudo, entao nos dUQs, de qualquer mane ira, falamos deste assunto, depois de outro assunto. Depois, afinal, a gente fala 0 que tinha para dizer"). A escrita permite, portanto, gerir de maneira mais precisa e ordenada 0 seu discurso na carta com argumentos ou nas banais anotac;oes antes de telefonar, quando 0 que se quer dizer nao deve ser impravisado e exige, ao mesmo tempo, uma organizac;ao precisa e uma certa exaustividade. Tais escritas implicam uma relac;ao com a Iinguagem particular: cuidado com a fonna, precisao verbal e discursiva, ordem de apresentac;ao ou exaustividadelO • Os pesquisados que detestam tais prilticas falam a Iinguagem do senso pratico, preferem a "improvisac;ao", a "espontaneidade", a fala natural (oposta a fala preparada e artificial). Os homens em meios populares sao as primeiros a afirmar a sua preferencia pelo contato au confrontac;ao direta, franca, cara a: cara, de viva voz e, portanto, "viril". com as administrac;oes, de preferencia a discursos orais preparados ou relac;oes a distancia que a escrita de cartas sUpoe (" Todas as minhas preocupac;6es se desfazem diretamente") (Lahire, 1997b)1l Assim como e nas situac;6es mais oficiais e/all mais tensas que se fazem anotac;oes antes de telefonar, observa-se mais freqiientemente 0 usa de "rascunhos" para redigir as cartas ou a releitura tendo em vista a correc;ao ortogratica nas situac;oes de escrita mais formais. A correspondencia epistolar informal entre amigos ou entre membras da mesma familia se distingue muito das cartas enderec;adas as 10. Certas ocasi6es de fala podem ser "preparadas" sem que se passe necessariamente pela escnta. Todavia, notar-se-a, por urn lado, que a escnta permite elevar 0 grau de precisao da prepara~ao e, por outro lado, como sugereJack Goody em varias ocasi6es ern seus trabalhos (ver sobretudo, 1994: 125-132), a existencia de uma cultura escnta tern conseqilencias cognitivas sobre a rela~ao com a linguagem, inclusive nas praticas "orais". N6s mesmos mostramos 0 carater profundamente escrltural da pratica €SColar "oral" da linguagem: nas estruturas da linguagem escolarmente aceitavel, mas tambem, e sobretudo, na rela~ao escolar com a linguagem (Lahire, 1993a: 193-242). 1 L Porexemp/o, uma pesquisada (agente de uendas) descreve 0 seu marido (cozlnheira) do seguinte mao nelra: "Quando ele telefona, ele sabe muito bem, como vau dizer, ele sabe muUo bern oque querdizer e nlnguem a distrai. Para mim e mais lacil. Eelequem vai a certos lugares, porque elesabe multo bem que e assim, e asslm e pronto, eo pessoo pode dizer 0 que quer, nao tem nada aver. E/e sabe muUo bem, e a certos lugores ele val, eu nao vou. Por exemplo, ele vai cuidar dos impostos. 'E assim, e assim, voce se engonou'. 'Descu/pe, mas naa me enganei'. 'Mas eu Ihe garonto, e naoquero en/rentar a 1110'. Ele passa no frente de todo mundo. Sim, e/e e audacioso {riso}.E e uerdade quando voce tern ra· zao, voce tern rozao, quando uoceest6. certo. Agenteestava certo, tinha ludoo queera preciso, e enviam popeis sem porar, para preencher, mas ele nunca preenche popel nenhum, ele vai. Quando ele voi e porque ele tem certeza, tern razQo. Na ultima vez, oconteceu exatamente isso, ele 10i, passou no Irente de todo mundo. E tudo acabou bern, e/e teve toda a razQo, recebemos cartas de desculpas e tudo 0 mals. Eu tenho certeza de que eu terla Ido duos au tres uezes. Mas com ele 101 osslm". Mais uma vez, os homens de ambientes populares engrossam 0 critica classica dingida aret6rica desde que foi inventado: somente os relacionamentos francos, espontaneos, diretos, improvisaclos senam aceitaveis (moral e politicamente). Cf. F. Desbordes, 1991: 26-27 e ~O.
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administrac;oes ou a desconhecidos. Esta logica de relac;oes francas e de relac;oes tensas, de interac;oes onde nao reinam as normas legitimas e espac;os de trocas onde as normas lembram a sua presenc;a, impoe-se seja qual for 0 ambiente social. As situa<;6es tensas imp6em a organizOI;ao, a preparaqao, a atenqQo, 0 cui-
dado, a preocupat;Qo. Tudo se passa como se a falta cultural fosse tanto mais grave porque era publica, isto e, sob 0 olhar exterior a interac;ao. Assim, quando as maes incitam seus filhos a prestar atenc;ao a ortografia ao escrever cartas, eles resistem muito particularmente quando se trata de cartas entre colegas, argumentando com as relac;oes francas, entre jovens, onde todo mundo cometeria muitas faltas. A diferenc;a entre os meios sociais reside no fato de que crianc;as e adultos das classes superiores estao mais freqiientemente em contato com situac;oes formais, inclusive no seio da familia. Algumas crianc;as desses ambientes interiorizam desde cedo 0 usa do rascunho quando se trata de escrever a uma tia, avo ou tia-avo exigente. A decisao "espontanea" de fazer um rascunho parece constituir uma priltica antecipadora com relac;ao as leituras exigentes por vir. Sabendo-se que sua produc;ao Iinguageira passa pelo olhar corretor de outrem, acaba-se incorporando um olhar corretor sobre sua propria produc;ao. No fundo, estas minusculas prilticas de escrita (anotac;oes antes de telefonar, sucessivos borroes de uma carta), que rompem com a espontaneidade da Iinguagem produzida em situac;ao de interlocuc;ao, sao verdadeiras tecnicas retoricas. Quebrando a logica da expressao direta, estas tecnicas Iibertam aqueles que as empregam do peso que recai sobre toda ac;ao espontanea, direta, nunca permitindo vol tar atras. A escrita e a preparac;ao escrita permitem tomar a distancia com relac;ao a situac;ao imediata de enunciac;ao e melhorar a Iinguagem acumulando as corre<;6es ate eliminar as escorias, os erros de apresentac;ao, as descuidos, as indetenninac;6es semanticas, etc. Ler, reler, substituir urn tenno por Qutro, corrigir a sintaxe, deslocar os argumentos au os fatas para ser mais incisivo au pertinente,
verificar que nao se esqueceu nada do que se queria dizer. .. A escrita permite selecionar, como no cinema, as melhores tomadas com a vantagem suplementar de
poder acumular as qualidades de uma tomada para outra. T rabalho acumulado no mesma espac;o,
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discurso eserite se distingue assim da ayao sem continuidade,
teatral, que exige lIexibilidade, adaptac;ao, senso de ocasiao (do kairos) e presenc;a de espirito. Como muito bem escrevia Charles Bally: "Ao se tomar a pena, coloca-se 0 tempo em seu jogo; pode-se, a vontade, relletir, escolher e combinar" (Bally, 1926: 128). As vezes 0 uso de anotac;oes antes de se dar um telefonema ou durante 0 proprio tempo da conversac;ao telef6nica, depende nao apenas do dominio de sua propria palavra, mas tambem da tecnica retorica de resistencia com relac;ao aos discursos administrativos: "Fat;o, dependendo para quem teleJono, se e alga muito importante. Porque em geral as pessoas tentam desviar a que voce quer dizer, eo que eu sempre penso. E para mim isto e verdade. E eu anata de maneira Q noo ser enrolado. Porque as pessoas te enrolam depressa, en/im, para certas coisas, sobretudo ao niuel da administrOt;aO, e um horror. Entao eu anoto. Ese mudam a can versa, eu volta atras e eu sou minha Jolha, Jat;o assim. Para que nao aconte~a que uo~e desligue e diga: 'Eu queria dizer isto
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mas disse aquila'" - mulher agente de vendas). Saber exatamente 0 que se quer dizer, nao perder 0 lio de sua queixa, resistir a retorica administrativa tortuosa, poder voltar atn)s e nao embarcar sem resistir no fluxo e refluxo da palavra do outro, da palavra administrativa, eis para que pode servir tambem a escrita. Toma-se entao uma tecnica de resistencia e de autodefesa. Durante toda a conversa telefonica ela "segue com os o/hos" 0 seu papel e nao se deixa conduzir para ca ou para la, onde ela nao pode ir. Do mesmo modo, uma outra pesquisada (comerciante) diz que anota durante a discussao as informa~6es que Ihe sao dadas e, se nao entende totalmente 0 que Ihe foi dito, essas anota~6es Ihe permitem pedir explica~6es imediatamente apos. A escrita toma possivel a volta ao que foi dito anteriormente e ajuda a nao se deixar levar pelo fio (ou perde-lo) da conversa. Permite controla-Ia, voltar a um "ponto" que um tra~o escrito tera isolado tendo em vista uma possivel volta: "Se h6. pontos que nao me parecem muito elaros, eu anoto e deixo Q pessoa jalor, e depois pet;o as esclarecimentos, mas, enfim, anoto". A PRESEN<;:A DO AUSENTE
Ao contrario do que nos podem deixar pensar as teorias interacionistas, que estudam apenas os encontros sociais all as reuni6es que necessitam a presen«;a
conjunta e imediata de pessoas que "se encontram mutuamente ao alcance do olhar e do ouvido", em limites fisicos relativamente restritos (GoHman), a co-presen~a dos corpos nem sempre e requerida na vida social. Pode dar-se atraves de telefonemas ou de mensagens escritas nas redes informaticas, secretarias eletr6nicas, telecopias e, mais tradicionalmente, correspondencias escritas. Para agir, certamente deve haver um corpo, mas a a~ao nao necessita sempre da presen~a imediata, in situ, desse COrp012.
Oeste ponto de vista, 0 recurso a escrita permite superar a ausencia do "dom da ubiqUidade" proprio da condi¢o humana. A escrita continua a marcar a nossa presen~a mesmo quando nosso corpo esta ausente. Ela compensa a ausencia corporal para continuar a exercer uma a~ao. 0 senso pratico nao pode atuar aqui pois 0 corpo, os habitos incorporados, nao estao em condi~6es de agir. No caso do testamento, por exemplo, as "vontades" de uma pessoa continuam a agir mesmo quando esta esta morta. De modo mais geral, as institui~6es - e de modo muito particular as institui~6es de saber - sao como que santuarios assombrados par mortos ou ausentes. Ha textos que obrigam a a¢o dos vivos mesmo quando os que os produziram nao estao mais la faz muito tempo. A escrita permite agir a distancia ou, em todo caso, fora da presen~ imediata daquele que quer agir. Pode-se lembrar aqui as hypomnemata, aquelas ordens escritas evocadas por Platao [Platao, Politico 295b-dj que os medicos ou professores de ginasio deixam antes de partir em viagem para que seus alunos ou clien12. Par isso se pode emitir alguma reserva sabre a primeira hip6tese da teorla da a~ao proposta por Anselm L. Strauss: "Nenhuma 01;00" (1933: 23).
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e possiueJ sem carpa,
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tes se lembrem de suas prescri<;oes. Tambem se pode pensar nas correspondencias escritas pelas quais os namorados se tomam presentes quando estao temporariamente afastados ou nas cartas pelas quais os migrantes franceses do seculo XIX puderam continuar a gerir a sua propriedade e, finalmente, manter 0 controle economico de suas propriedades ou de sua empresa". De maneira mais ampla, se pensara nas troeas epistolares que se tomaram necessarias sob 0 efeito do aumento das distancias ocorridas na vida economica e nas rela<;oes sociais. Igualmente, os poucos termos escritos troeados entre os membras da familia permitem marcar a sua presen<;a simb6liea afetiva (.. Born dia. Abra,o. Ate /0go"),lembrar coisas a serem feitas pelos filhos ou pelo conjuge ("apanhara roupa na passadeira", .. c%car 0 frango no forno as 19 horas, termostat 7"). Assim desempenham urn papel organizacional e afetivo inegavel no seio do universe familiar. De fato, quando a familia esta esfacelada, dispersa pelos horarios (escolares, profissionais ...) mais diversificados, os pequenos termos escritos deixados num lugar combinado (onde todo mundo passa: na mesa da cozinha, a entrada, perto do telefone ... ) contribuem para manter, apesar de tudo, os la<;os familiares. Estes termos, que contribuem para manter os la<;os materiais e simb61icos entre os membros da familia, estao, em grande parte, ligados a atividade feminina profissiona!. Para manter 0 papel que a divisao sexual do trabalho domestico Ihe confere, a mulher pode utilizar este meio para marcar a sua presen<;a apesar de estar ausente, para organizar as atividades familiares mesmo se nao estiver - mais - fisicamente presente ("Se me acontece, SOD pequenos termos. Por exemplo, meu marido noo estel, como sou Quxiliar domesticQ, as vezes me telefonam para
fazer uma faxina. Gera/mente termino em quatro horas, as vezes me dizem: 'Voce pode vir'. Entao deixo um recado: 'Esta tarde termino as seis horas ... em ta//ugar' ou 'Ncw esquecer de fazer isto, aquilo'. Ou um telefonema: 'F. preciso /embrar a tal hora ... "'). As maes estao tacita ou explicitamente enearregadas pelo grupo familiar da manuten<;iio e da recomposi<;iio das foryas de fusao (em oposi<;iio as for<;as de fissao e de estilha<;amento, Bourdieu, 1994: 11). Sao essencialmente elas que produzem estes reeados. Em geral, a troea e muito desigua!. Se as maes dao, nem sempre recebem em troca. Uma dona-de-easa (esposa de um advogado) faladesses reeados como urn meio de" acentuaro /0,0 entre os membras da familia", de conservar os la<;os familiares apesar das atividades diferentes e dos ritmos diferentes de atividade de uns e outros. Quando pelo menos um adulto esta constantemente presente em casa (e quando, alem do mais, os filhos nao tem 0 direito de sair sem autoriza<;iio dos adultos), os pequenos recados tomam-se inuteis e nao encontram muito seU contexto de perten<;a. A presen<;a corporal do adulto implica que todas as informa<;oes pos-
13. "Os migrantes nao se contentam em enviardinheiro para as seus. Continuam a gerif e dirigir sua propriedade. Os la~os que mantem com a familia e a sua cidade podem ser garantidos pe10s amigos que voltam ao pais. Mas 0 pedreiro que sabe ler e escrever e mantido a par do que acontece em sua terra. Pode, pois, manter 0 controle econ6mico da propriedade, regulamentar a distribui~ das culturas. fixar a datade ven::la e 0 pre;o dos animais" (Dauphin, Lebrun-pezerat, POijblan, 1991: 74),
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sam ser transmitidas diretamente, oralmente. Mas 0 uso de pequenos recados para lutar contra a ausencia corporal pode ser tambem urn uso voluntilrio da escrita para evitar intencionalmente a co-presen~a do destinador e do destinatario. Assim, quando acontece que uma crian~ (10 anos, 0 pai e desenhista industrial e a mae funcionaria publica) comp6e suas mensagens surpresas que seus destinatarios 56 devem encontrar em sua ausencia, joga bern com esta possibilidade oferecida pela escrita de marcar a sua presen~ na ausencia do seu corpo. 19ualmente, quando uma garota (10 anos, os pais sao professores numa grande escola) deixa recados escritos ao seu pai para pedir autoriza~ao para visitar as amigas, para evitar 0 face a face direto com 0 pai, que poderia nao dar a autoriza~ao (''As vezes e mais facil dizer certas caisas por escrito, quando a peSSOQ nao esta diante do gente, bem, ela compreende isso, entoo ela faz"). OS DESREGRAMENTOS TEMPORARIOS DO SENSO pRATICO
Sao casos-limite, mas particularmente interessantes, aqueles onde a escrita vern em socorro de atores que conhecem desregramentos do sensa pratico. 0 senso priltico e a mem6ria incorporada sao perturbados pelos momentos de panico (por exemplo, 0 nascimento do primeiro filho), de depress6es que se seguem a graves acontecimentos familiares (por exemplo, morte ou doen~a de urn familiar) ou profissionais (por exemplo, conflitos interpessoais muito pesados) que monopolizam toda a aten¢o, todo 0 campo da consciencia. Por exemplo, uma mae, medica, casada com urn diretor comercial, conta: "0 registro de minhas listas, creio que foi um ataque de depressoo que tive apos 0 nascimento de minhas fi/has. Eu me lembro que fazia listas para 0 dia seguinte, mas do esti/o lela ril 'passar 0 aspirador', lcomprar tal objeto', etc. Noo era para noo me esquecer, era para organizar 0 meu dia, para otimizar". Num Qutro caso, uma operaria
explica que, com preocupa~6es familiares e profissionais, it noite ela anotava: "Tomar banho, ir trabalhar, etc." A escrita vern, a cada vez, refor~ar urn funcionamento de habitus fraco. 0 que, comumente, funciona normalmente a base da adapta~ao pre-reflex iva de urn programa incorporado nas situa<;6es prilticas pode ser impedido em certas situa~6es excepcionais de desregramentos. Nestes casos-limite como em todos as casas evocados anteriormente, a escrita esta numa rela(oo negativa com a memoria incorporada. Quando a sensa pratico (0 habitus) nao basta para "Iembrar-se" ou para agir devido ao carater inabitual das coisas, ao alongamento das dura~6es a dominar e a necessidade de preparar 0 futuro, por causa da complexidade das atividades a gerir, devido a tensao provocada pela oficialidade da situa~ao, a ausencia do corpo, ou devido a perturba~6es/ desorganiza~6es mentais passageiras, entao se recorre a escrita. A mem6ria objetivada supre as falhas da mem6ria incorporada. Por urn lado, a escrita e consubstancial a formas de vida social que necessitam da objetiva~a.o na escrita para aliviar a memoria e organizar e planejar suas atividades. Permite por em forma, organizar, prever e planejar uma pratica fora dela, antes de sua efetua(oo e, ao mesmo tempo, desafiar ou desfazer a urgencia da prcltica que pesa sabre
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a at;ao. Ao objetivar a a<;ao por vir, as praticas da escrita operam urn distanciamento da pratica. Elas possibilitam nao apenas uma volta reflexiva a a<;ao, mas a sua prepara<;ao reflexiva 14 . Se, como escreve Pierre Bourc!ieu, "0 mundo social trata 0 corpo como urn lembrete" pois "inscreve ai, sob a forma sobretudo de principios sociais de divisao as quais a linguagem comum condensa em pares de oposi<;6es, as categorias fundamentais de uma visao do mundo" (1990; 11), quando 0 corpo encontra seus Iimites, 0 lembrete escrito fora do corpo comeya a encontrar sua pertinencia. Os atores sao muitas vezes apanhados no "fogo da a¢o" , mas as vezes estao tam bern fora dela (para prepara-Ia ou rememora-Ia, avalia-Ia, rediscuti-Ia, narra-Ia, comenta-Ia, teoriza-Ia ... ).
o usn DOS PLANOS: USTAS DE TODO TIPO Mais que postular, de preferencia a qualquer pesquisa empirica, 0 poder 50berano ou a ineficacia completa do plano, oU do planejamento da a<;ao, mais que fazer das no<;6es de "plano" ou de "planejamento" conceitos gerais de uma teoria universal da ac;ao, os pesquisadores em psico!ogia, em ciencias cognitivas
ou em sociologia ganhariam estudando os pianos efetivos (e principalmente os es1S critos) de que se servem ocasionalmente as atores para organizar a sua ac;ao . A Iista de compras, por exemplo, e urn meio de fixar e de guiar a<;6es futuras, urn programa de a<;6es, urn "plano". Certas Iistas de compras estabelecem, as vezes, verdadeiros programas de deslocamento dentro de grandes supermercados, estando as produtos c1assificados por prateleiras e seguindo-se na Iista como se sucedem os diferentes momentos do percurso feito na loja. Urn tal microdispositivo planejador permite muito concretamente que os (e, mais geralmente, as) que se setvem deles "economizem seus passos e seu tempo" , limitem seus posslveis es-
quecimentos no caso de nao prepara<;ao da a<;ao. Apenas considerando tais praticas, comuns mas observaveis, que se pode avanyar na resolu¢o de problemas te6ricos.
Para determinar 0 papel au os papeis, segundo a contexto estudado, do piano na a<;ao, e preciso, antes de tudo, constatar que ha "ayao" e "a¢o". 0 exemplo da descida em corredeiras de rios, que Lucy Suchman toma para fazer apare14. A ista podem ser acrescentadas as praticas de escrita que participam de uma reflexividade sabre si, de urn dominic de 51: diarios intimas, poesias, autobiografias. comenUuios proto-literilrios que acompanham as fotografias... (Lahire, 1993b: 148·151). 0 caso do diana pessoai mostra que, ailm de toda necessidade prclti-
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ca, os atores fazem valtas reflexivas sobre os acontecimentos felizes ou infelizes passados, preparam reflexivamente ac;oes (colsas a dizer ou a fazer) e principalmente interac;oes, ou inventam cenas e personagens fictidos (um namorado ou uma namorada, um(a) amigo(a), um innao mais vetha, uma inna mais velha ou um pai, etc.). A escrita pode intervir alem dos acontecimentos vividos, ajudando a ser mais forte, mais calmo, menos angustiado ... Pede tambem situar-se no curso destes e pennitir "retrabalhar" cenas fora da tormenta da ac;ao. Alguns escritores de diarios falam de voltas no passado registradas em seu diario com vistas a resolver situaC;oes problematicas presentes, realizando, como na leitura de textos literarios, aproximac;oes jurisprudenciais entre 0 passado e 0 presente. Tiram, pois, de sua propria experifu1cia objetivada, os pontos de apoio para a ac;ao futura. 15. A partir de uma sodologia dos regimes de a¢o, Laurent TMvenot (1995) adota a mesma atitude frente noc;ao de plano.
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cer a ineficacia pratica do plano 16, e muito diferente das compras em supermercados. As proprias condi~6es temporais das duas situa~6es fazem com que, no primeiro caso, 0 tempo seja tal que e impossivel imaginar poder consultar urn plano enquanto se desenrola a a~ao, ao passo que, no segundo caso, a lista elida no tempo - mais longo - da a~ao que consiste em fazer suas compras. Ao contrario do que pensa Suchman 17 , 0 plano e possivelmente consultilVel enquanto a a¢o se desenrola quando esta nao e uma a¢o de curta dura~ao realizada na urgencia. 0 que se pode mostrar atraves dos exemplos dados pelos pesquisados e 0 fato de que 0 planejamento e a rotina, reflexao e ajustamento pre-reflexivo, etc., nao sao incompativeis, mas que nao cessam de encadear-se, suceder-se na vida diaria.
Tomemos 0 caso do itinerario de viagem. Uma pesquisada (hoteleira) explica que fazer urn itinerario permite ganhar tempo com rela~ao a uma improvisa~ao total de visitas a lugares. Quando se sabe aonde se vai, necessariamente se perde menos tempo. 0 itinerario fica mais urn plano bastante f1exivel a medida que se adapta as circunstancias locais, a improvisa~ao em fun~ao das obriga~6es proprias as situa~6es efetivas, do que urn programa inflexivel, feito de instru~6es rigidas, imperativas. A pesquisada conta como seu marido e ela tiveram que modificar seu programa num ponto por terem avaliado mal as distancias. No entanto, ve-se bern nas afirma~6es dos pesquisados que a prepara¢o da viagem sob a forma de plano (cada dia esta prevista uma visita particular) induz igualmente a no~ao de "respeito ao plano". Quando nada esta previsto e fixado com antecedencia, ninguem pode pensar em ter cumprido (bern ou mal) 0 "programa". A1em do mais, os itinerarios mais rigidos e sistematicamente seguidos sao os que sao construidos em rel~o a experiencia pratica passada. Assim, quando urn casal de comerciantes (pasteleiros) ia de ferias para a Bretanha, seguia urn itinerario que ele havia fixado definitivamente por escrito numa cartolina. Entao 0 plano se tomava urn plano muito rigido na medida em que os atores se atinham ao plano e faziam cada ano as mesmas opera~6es ("Com um lugaronde a gente sempre para para 0 cafe da manhii, 0 mesmo lugar onde paramos sempre para merendar, para almo,ar, era sempre sistematico"). A sistematicidade e a regularidade de aplica~ao caracterizam a aplica¢o do plano previsto. Como seu marido e bretao e conhece bern as estradas, fora ele que tinha elaborado 0 itinerario definitivo. A fabrica~ao do plano, aqui, dependia de uma experiencia anterior ede urn conhecimento exato dos possiveis efetivos. Assim 0 marido selecionava, entre os possiveis itinerarios, aquele que a Pfi3tica das estradas 0 tinham levado a considerar como sendo
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mais "comado".
As listas de coisas a fazer, que a gente constroi para si mesmo para saber aonde se vai, para poder organizar-se, para nao esquecer de fazer tal ou tal coisa e tambem para ter 0 sentimento de avan~ar, sao pIanos suscetiveis de modifica-
16. 0 autOT torna 0 exemplo da canoagem em corredeiras em cuja ocasiao se trac;:aria urn plano antes da ayao propriamente dita para fixar as grandes manobras (Suchman, 1990). 17. "Elas (as previsoesj sao antes recursos que as atores constroem e consultam antes e apes a rea1izac;:ao da ac;:ao" (Suchman, 1990: 159).
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<;oes. Uma pesquisada (comerciante) faz este genero de !istas, que reunem as tarefas prolissionais e domesticas que ela tem para fazer. Ela procura !istar as coisas a fazer em fun<;ao de sua importancia e de seu grau de urgfmcia. Quando as tarefas de uma !ista nao puderem ser rea!izadas em sua tota!idade, a !ista e transferida para 0 dia seguinte, por exemplo. As planilica<;oes domesticas nunca atingem a rigidez das regras imperativas ou das instru<;oes obrigat6rias e deixam lugar a im18 provisa<;ao • "Nao se diz que os sigo d risca, porque as vezes e Q hora de preparar 0 cafe da manha, nao fiz 0 que estaua na minha lisla, enlaa fica para a dio seguinte au para de tarde. Mas, sim, fac;o muitas listas, enormemente, para eslar ceria de naa esquecer nada". Os habitos nao reflexivos incorporados (0 senso pratico) nao sao, pois, incompativeis com uma planifica<;ao da a<;ao que da 0 rumo, esbo<;a estrategias de conjunto, fixa os grandes contextos ou as orienta<;oes gerais sem nunca estar em condi<;oes de programar os menores detalhes das a<;oes (por exemplo, a !ista de compras permite classificar os produtos segundo as prateleiras, saber onde se esta, assegurar-se de que a tarefa terminou e que 19 nao se esqueceu nada, etc.) como no caso das checklists dos pilotos de !inha A mesma pesquisada da a exemplo de !istas de coisas a levar em viagem que mostra a articulayao de urn senso pratico de antecipa<;ao e de uma raciona!izayao desse Senso pratico. As !islas para viagens de ferias ou de fins de semana apresentam-se sob a forma de fichas cartonadas e correspondem a !istas-tipos cujo conteudo varia conforme se trata de uma estadia longa ou de um lim de semana, por exemplo, mas tambem segundo a esta<;ao durante a qual acontece a partida: inverno ou verao. Essas !islas permilem, portanto, de uma vez por todas, fazer rapidamente as malas sem precisar refletir 0 que ela deve levar (a reflexao pode ser "de uma vez por todas", sendo que as vezes seguintes eXigem apenas a leitura do prodUlo das reflexoes anteriores, 0 que constitui ao mesmo tempo urn ganho de tempo e uma !iberayao das capacidades intelectuais com rela<;ao ao trabalho reflexivol. Certos te6ricos da a<;ao poderiam pensar que 0 plano tem uma utilidade fraca diante da alealoriedade da a<;ao e das situa<;oes vividas. No entanto, a pesquisada ja levou em conta, na redayao de suas !istas, dados singulares tirados da experiencia passada, como 0 costume que as crian<;as tern de se sujarem. As !istas ja sao 0 produto de anlecipa<;oes praticas em fun<;ao do que se imagina, com toda proba18. "As instruc;6es intelV~ diretamente sobre a aC;ao edefinem 0 conteUdo da execU/;ao, querdizer, urna operac;ao precisa a realizar. quando as consignas qualificam as objetivos da tarefa mas pennanecem vagas no tocante arealizac;ao da ac;ao; dao uma orientac;a,o e deixarn urna parte a improvisac;ao atenuando 0 controIe" (Conein & Jacopin, 1993: 71-72).
19. "Urn born exemplo de intenupc;ao deliberada da atividade por motivos de seguranc;a, e a utilizac;ao de checklists nas industrias e, especiairnente, na aviat;ao civil. Neste dominio, a checklist e geralrnente consultada pe10s dais pilotos. Urn, Ie as itens da lista em voz alta enquanto a outr~ confinna e diz ern voz alta a indicat;ao de cada item amedida que se Ie. A finalidade destas at;6es e fort;ar uma intenup!;ao voluntaria consciente, do comportamento dominado, intelTomper de1iberadamente 0 fluxo normal da atividade. Os controles e as precaw;6es ligadas aseguraru;a deveriam acarretar perturbat;6es para suscitar um esfon;o de aten¢o consciente. As at;6es automaticas estao expostas a dais tipos de problemas: os elTos causados pelo esquecimento de uma at;ao (action slip) e as perturbat;oes causadas pelos acontecimentos extemos e por intenup!;oes. Mesmo a checklist pooe falhar em sua funt;ao. Ap6s usa-las milhares de vezes e ap6s anos de experiencia, a sua utiliza¢o pode tomar-se tao rotineira que e1a se toma automatica, 0 que pode ter conseqUencias muito graves" (Norman, 1993: 27-28~.
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bilidade, que poderia acontecer. Encontra-se exatamente 0 mesmo tipo de situa~ao com outra pesquisada (sem profissao, casada com urn professor de colegio) que redige uma Iista de coisas a levar em viagem em fun~ao de todo 0 seu saber situacional anterior, quer dizer, em fun¢o do que ela preve das provaveis situa~6es futuras, tais como os dias de frio, dias de chuva, etc. 0 proprio ato de escrever uma Iista sup6e que se p6e em pratica todo urn senso pratico de situa~6es, mas esse sensa pratico
e solicitado urn pOllea mais sistematicamente e explicitamente
do que quando e usado no "fogo da
a~ao".
Poder-se-ia mostrar situa~6es comparaveis com 0 uso do Iivro de contas, da agenda ou da Iista de compras. Todas essas analises fariam aparecer urn ponto importante - 0 "planejamento" nao se op6e
a"improvisac;ao" au ao "sensa prMi-
co" e ate repousa em grande parte em conhecimentos praticos incorporados. Uma "boa" planifica~ao e urn planejamento realista, que ja leva em conta, em grande medida, as press6es especificas as situa~6es reais. Nao se pode, porem, anular 0 papel especifico desempenhado pelos planejamentos que afirmam que, quaisquer que sejam os pianos projetados, a logica das situa~6es e das habilidades incorporadas realizadas no decorrer da a~ao seria 0 unico determinante da a~ao. o plano permite que se organize, que se precise 0 que foi feito e 0 quer falta fazer, que se tenha 0 sentimento de progredir, de saber aonde se vai e como (em que ordem) se vai poder proceder, etc. ConseqUentemente, mesmo quando as listas ou os pianos nao sao seguidos a risca, introduzem uma outra rela~ao com as atividades ordinarias e, principalmente, no futuro. Se os "grandes projetos" escritos nunca podem ser totalmente seguidos diante dos dados das situa~6es reais, com seus acasos especificos, 0 proprio fato de formular urn projeto tende a organizar a a~ao e a viver de maneira totalmente particular. Portanto, rna is que querer a qualquer pre~o reduzir a nada os efeitos (cognitivos, emocionais, sociais ... ) dos usos de pianos na a~ao postulando sua inutilidade desde que a a~ao e (verdadeiramente) 20 iniciada , podemos nos esfon;;ar em descrever tais efeitos circunstanciais que variam segundo os tip os de a~ao considerados. PERTINENCIA REIATIVA DO SENSO pRATICO
Orientando-se, a maneira dos fenomenologos, contra as concep~6es intelectualistas do tempo, Pierre Bourdieu escreve que" 0 tempo e engendrado na propria efetua~ao do ato (ou do pensamento) como atualiza~ao de uma potencialidade que e por defini¢o presentifica~ao de urn inatual e despresentifica~ao de urn atual, portanto, aquilo mesmo que 0 senso comum descreve como a 'passagem' do tempo. A pratica nao constitui - salvo exce¢o - 0 futuro como tal, num projeto ou num plano postos por urn ato de vontade consciente e deliberada" (Bourdieu & Wacquant, 1992: 112). Ora, e no "salvo exce~ao" que se podem por em perspectiva essas afirma~6es sobre 0 tempo. Se 0 plano e uma visao do futuro na qual 20. "Mas em nenhum caso - este e 0 ponto crucial- tais pIanos controlam a a~o, seja qual for a acep¢o da palavra 'controlar'. Seja qual for 0 numero au a extensao de seu usa eventual, as pianos param lit oode comet;a o trabalho de descida das corrooeiras" (Suchman, 1990; 158),
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o ate se pensa como colocando urn futuro e organizando todos os meios disponiveis com referencia a esse futuro posto como tal, como fim que deve ser explicitamente atingido, entao as praticas comuns de escrita que estudamos correspondem bern a esse exemplo. Ocalendario, a /ista de coisas a fazer, a agenda, a /isto de com pm, 0 itinerario, etc., sao instrumentos para dar forma d nossa tempora/idade, de constrw;ao social do tempo, que sao exce(oes catidianas e repetidas com rela(ao ao ajustamento pre-reflexivo de um habitus a uma situa(ao. Sao praticas comuns de constitui~ao do futuro como tal, num projeto ou num plano e, bastante comumente tambem, em praticas de racionaliza~ao21 (do tempo, das atividades, do dinheiro ... ). A incursao sociologica das praticas de escrita abre uma brecha na unidade da teoria da pr6tica au do sensa prcltico. Quando Bourdieu - seguindo nisso os ensinamentos de Jack Goody - acentua a importancia das praticas escriturais e grilficas que constituem os instrumentos eruditos de saida da rela~ao pratica para a pratica e de conquista de uma rela~ao te6rica para a pratica, de uma 16gica, de urn ponto de vista mais distanciado (Bourdieu, 1980a), ele esquece - mas como se pode esquecer isso a prop6sito de forrnac;6es sociais escolarizadas e com uma tradic;ao muito longa de alfabetizac;ao? (Furet & Ozouf, 1977) - urn ponto crucial. Estas tecnicas de objetivac;ao que sao as escritas, as diagramas, os quadros sinoticos, as listas, os plan os, os mapas, os modelos, as esquemas, os caiendarios, etc., nao sao instrumentos reservados aos eruditos. Certamente, estes as utilizam mais regularrnente e ha muito mais tempo do que outros atores, mas e facil mostrar que todas as tecnicas de objetivac;ao do tempo, da linguagem, do espac;o evocadas, que se pensa que destroem a relac;ao pratica com 0 mundo, por urn lado, foram inculcadas (com mais ou menos exito) pela instituic;ao escolar e, por outro lado, sao diariamente utilizadas pelos atores em sua vida familiar, profissional, ludica, etc. Como evocar 0 calendario, a Iista ou o plano utilizados no registro erudito sem imediatamente pensar nos calendarios e nos pianos de que se servem comumente os atores nao eruditos? Estando mais geralmente Iigadas a forrnac;ao escolar, essas tecnicas estao desigualmente repartidas socialmente, mas estao presentes, num grau ou noutro, em quase todos os lares desde que seus membros adquiriram as bases do ler-escrever. Evidentemente nao se trata aqui de projetar raciocinios eruditos em cabec;as leigas, mas de sustentar que as saidas do senso pratico sao freqlientes na vida cotidiana. A1em do mais, quais sao os fundamentos sociais das teorias da ac;ao racional senao a invenc;ao e 0 desdobramento hist6rico do mercado economico, do calculo mercantil, das tecnicas e estrategias de comercializac;ao, dos metodos de contabilidade22 , do planejamento economico ou burocratico, da racionalizac;ao da
21. Acantonadas durante longo tempo na ordem estritamente econ6mica, essas pn'lticas invadem, pela fo~a das coisas, 0 universo domestico. 22. A no~o - utilizada ou rejeitada - de "cllcub radonal", que faz parte do vocabulario da €conomia au de uma certa sociologia, pode seT utilmente posta em perspectiva ao se perguntar quais sao as tecnicas intelectuais e, principalmente, as praticas escriturais e graficas sem as quais nenhum calculo racional poderia existir. M. Weber ja evocava, em A etica protestante e a espfrito do capitalismo (l967), a existfu1da de uma contabiIidade radonal (regular, rigorosa ... ) como condi<;:ao da racionaliza<;:ao das praticas econ6micas.
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medida do tempo, do contrato mercantil juridicamente atestado, etc. Estas teorias, como aquelas que se opoem a elas (por exemplo, uma parte da fenomenologia, a teoria da pratica ... ) nao repousam no vazio, mas sistematizam aspectos diferentes de nossas formas de vida social, dimensoes diferentes de nossa rela¢o com o mundo social". Talvez 0 esfor~o de esclarecimento teorico que essas teorias representam seja incompativel com 0 senso da nuan~ ou da complexidade empirica, mas e for~oso constatar que conduz freqilentemente a generaliza~oes abusivas, visiveis desde que, em vez de se ficar enfeiti~do por teorias filosoficas, observa-se 0 mundo social urn pouco mais sistematica e seriamente. A polemica intelectualmente facil (mas socialmente dificil) contra as teorias da a¢o racional, planejadora, calculadora ... que em geral tern uma grande fraqueza teorica (mas grande for~a social), acaba conduzindo a nao querer ver 0 que ha de racional, de planeja· do, de calculado no mundo social. Nao se poderia fazer como se todas as inven~oes citadas (e muitas outras ainda) e sua multidifusao em grande escala tivessem deixado 0 mundo no mesmo estado de antes. A analise das praticas comuns de escrita conduz, portanto, a questionar de novo a universalidade da teoria da pratica. Afirmar imediatamente que toda a¢o e o produto da execu~ao de urn senso pratico, pre-reflexivo, nao intencional, infraconsciente, etc., que as a<;6es cotidianas encadeiam-se urnas
pecie de
improvisa~ao
as outras numa es-
permanente (movimento nao previsto e totalmente ima-
nente ao cursa das coisas),
e universalizar um. caso passiveJ e pennanecer cego a
uma grande parte das praticas sociais. 0 calendario, a lista de coisas a fazer, a agenda, a Iista de compras, 0 Iivro de contas, a carta, 0 diario intimo ou 0 itinerario de viagem sao exce~oes cotidianas em rela~ao ao ajustamento pre·reflexivo de urn habitus a uma situa~ao social. Fazer da teoria do habitus a teoria que explica "mais adequadamente a logica real das praticas" (Bourdieu & Wacquant, 1992: 107) e ter uma visao Iimitada do real. Por todos estes motiv~s, parece-nos que a teoria da pratica encontra seu campo de pertinencia ou de validade24 no estudo dos universos sociais com fraco grau de objetiva~ao, das sociedades que se dizem "sem escrita" (Lahire, 1993a). Voltando a genese da constru¢o do conceito de habitus, 0 proprio Pierre Bourdieu levou a relativizar seu ambito de aplica~ao. "As no~oes que elaborei aos poucos, como a no~ao de habitus, nasceram da vontade de lembrar que ao lade da norma expressa e explicita ou do calculo racional ha outros principios geradores de praticas. Principalmente nas sociedades onde ha poucas coisas codificadas. De modo que, para explicar 0 que as pessoas fazem, e preciso supor que obedecem a uma especie de 'sentido do jogo', como se diz no esporte" (1986b: 40). Nos universos muito fracamente codificados, desprovidos de numerosas tec-
23. Jiirgen Habennas observa, par exempio, que as teorias da atividade estrategica ~comportam hip6teses quanta a racionalidade que s6 se aplicam (aproximativamente) a setores limitados da realidade social" (1995,18). 24. Sabre a noc;ao de "campo de pertinfulcia" como ferramenta de reflexividade epistemol6gica, mas sobretudo como atitude concreta (historicizante) que 0 pesquisador tern com respeito as "teorias", veT infra, "Canteiro de obras e debates".
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nicas de objetivac;ao da cultura, "0 essencial e deixado ao sentido do jogo, a improvisa~ao" (1987: 99). 0 senso priltico, 0 dominio priltico, a rela~ao pratica com a pratica, a improvisa~ao, 0 ajustamento pre-reflexivo as situa~6es sao tantos termos ou express6es que descrevem perfeitamente a 16gica dos universes sociais com fraco grau de objetivac;ao e que provaram sua validade nos estudos dedicados a Kabilia. Mesmo afirmando que "a analise do sense pratico vai alem das sociedades sem escrita" (Bourdieu, 1986b: 41), 0 limite empirico da validade da teoria da pratiea esta doravante marcado, e seu autor pode ate convidar a "relletir sobre os modos de existencia diferentes dos principios de regula~ao e de regularidade das pratieas" (1987: 81) dentro de universos sociais mais ou menos codificados, funcionando mais ou menDs para a transmissao explicita, formal dos saberes ("Nas 50ciedades onde 0 trabalho de codifica~ao nao esta muito avan~do, 0 habitus e 0 principio da maioria das praticas", ibid.: 82). Eeste tipo de rellexao que iniciamos em nossas pesquisas sobre as pratieas da escrita (domestieas, escolares ou profissionais). Perguntar pelas condi~6es sociais para que 0 habitus (0 sense pratico, 0 dominio pratico) seja 0 principio gerador das praticas, levantar a questao das formas de vida sociais que permitem urn dominio simb6lico do existir, e permitir ultrapassar urn conceito pela pesquisa empiriea.
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CENA3 Plurolidode dos 16gicas de 0<;60 A AMBIGUIDADE DA pRATICA
Dos multiplos usos que se fazem dele nas ciencias sociais, 0 termo "priltica" nao esta desprovido de ambigiiidade. Ora ele se opee ao que dependeria do "discurso'" (as "praticas" e 0 "discurso"), ora se distingue de tudo 0 que e "teorico" (a priltica e a teoria), as vezes, ainda, designa de maneira generica as atividades sociais mais diversas (as praticas culturais, as praticas esportivas, as praticas economicas ... ). Quando Pierre Bourdieu fala "da logica da priltica" (1997: 69), situa assim "a pratica" em rela,ao a teoria, a "logica logica". A rela<;ao priltica com a pratica e profundamente diferente da rela<;ao teorica com a pratica, que 0 sociologo pee em a<;ao quando tenta compreende-las. Eantes de tudo para marcar esta diferen<;a essencial entre 0 erudito eo pn,tico, aquele que esta em situa<;ao de analisar e aquele que esta em situa¢o de agir, que Pierre Bourdieu construiu a sua "teoria da pratica": "E preciso fazer uma teoria dessa rela,ao nao teorica, parcial, urn pOlleD pe-no-chao, com 0 mundo social, que e 0 mundo da experiencia comum"
(1987: 31). Mas para ser totalmente aceitavel, 0 corte epistemologico e social entre a teoria e a pratica nao deveria, em primeiro lugar, ser concebido como uma separa<;ao consistente entre grupos de atores (atores teorizantes e atores praticantes). Por exemplo, 0 sociologo que se casa, pratica um esporte, toma uma posi¢o politicamente, compra m6veis au vai ao cinema, geraimente, nao tern uma relac;ao te6rica com a sua propria priltica. Como todo praticante, e movido pelos esquemas de ac;ao que incorporou no curso de suas experiencias sociais antetiores. As vezes
teorico, ele e freqtientemente praticante. Pode-se, pois, distinguir na pessoa culta, dois grandes tipos de casos: aquele no qual esta na situa<;ao do teorico e aquele no qual esta na situa<;ao do praticante. 1. Ver abaixo em "0 [ugar da linguagem".
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Mas as coisas se tornam urn pouca mais complexas quando se considera esse
mesmo sociologo no trabalho. De certo ponto de vista, escrevendo suas analises, ele esta, entao, numa rela<;ao priltica com a pratica. 0 que ele escreve e, antes, uma visao teorica (theoria) atemporal (ou destemporalizadora) e a distancia do que outros (e as vezes ele mesmo) fazem no mundo priltico, mas nao e menos orientado no tempo de sua escrita por urn sensa priltico do trabalho de sociologo. Sao, antes, habitos profissionais (conceituais, redacionais, estilisticos, tecnicos,
etc.) que ele mobiliza em sua priltica de escrita que nao esta separada das pressoes temporais. Aqui e dificil distinguir 0 teorico do priltico, que estao presentes na mesma peSSOQ e no mesmo momento, pais estas noc;6es sao fundamentalmente relacionais: ele e pratico em rela,ao ao seu ato de escrita (ou antes dela, de pesquisa), mas teorico em rela,ao as prilticas a proposito das quais escreve. 0 corte entre teoria e pratica, relac:;ao te6rica com 0 mundo e rela<;;:ao pratica com 0 mun-
do, logica logica e logica pratica nao e so e simplesmente urn corte entre duas realidades claramente distinguiveis (dois grupos de atores - teoricos/praticos - ou dois tipos de situa<;ao - 0 ator teoric% mesmo ator praticante), ela constitui tambern uma distin<;ao fonnal que pode ser aplicada a mesma situa<;ao, segundo 0 ponto de vista a partir do qual e vista. Como dissemos a proposito da no<;ao de habito, a sociologia confunde muito amiude 0 h!lbito como modalidade da a<;ao (involuntaria, nao intencional) e 0 genero de h!lbito (0 habito pode ser um habito de reflexividade ou nao). Par exemplo, 0 jogador de futebol tern 0 habito de bater (de maneiras diferentes) na bola e este gesto nao exige dele nenhuma reflexao, ou planejamento previo. Mas da mesma maneira, urn gramatico tern 0 habito de olhar gramaticalmente os enunciados (habito que se desencadeia sem esfor<;o reflexivo particular desde que esteja em situa<;ao de gramatico ou de filologo). Todavia, este habito e, antes, urn habito de reflexividade e de distanciamento da Iinguagem. Como 0 futebolista, 0 gramiltico e movido por habitos que constituem progressivamente uma "segunda natureza" sua. Ele os realiza sem pensar neles, sem se dar conta e sem ter a impressao de cometer urn ato excepcional. Ele nao se distingue absolutamente, deste ponto de vista, do jogador de futebol que evolui com facilidade no campo e bate facilmente na bola para coloca-Ia no lunda da rede. Todos os dois instalaram neles esta "segunda natureza" que e 0 habito, porque durante anos eles "treinaram", repetiram milhares de vezes movimentos do corpo ou opera<;oes gramaticais semelhantes e diferentes. 0 jogador de lutebol pode adquirir tambem (na sua profissao ou fora dela) habitos de reflexividade, 0 gramatico adquiriu (em sua profissao ou fora dela) habitos nao reflexivos, mas 0 que os separa e a parte do tempo levado por urn e por outro na incorpora¢o de habitos reflexivos ou nao reflexivos e, conseqi.ientemente, a parte que os h!lbitos reflexivos (planejamento, conceitualiza<;ao, teoriza<;ao ... ) tern no seu estoque respectiv~ de habitos incorporados. Se, por conseguinte, 0 h!lbito de genero pre-reflexivo nao e 0 unico genero de habito possivel, entao e necessario constatarque a teoria do habitus reduz 0 habito como modalidade da .a¢o a urn genero particular de habito, a saber, 0 genero nao reflexivo.
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Com efeito, Pierre Bourdieu construiu em grande parte a sua teoria da prillica e seu conceito de habitus contra as teorias intelectualistas da prillica, isto e, contra a ideia de uma prillica orientada racionalmente, intencionalmente, voluntariamente para fins explicitos, contra a ideia de uma reflexividade, de uma consciencia consciente, sistemillica e calculadora. A relac;ao pratica com a prillica e, assim, definida como uma compreensao imediata, cega a si mesma (uma douta ignorfmcia), uma consciencia nao consciente, sem conceito, pre-reflexiva, parcial (versus exaustiva e sistematica), vaga, nao intencional e iniciada na urgencia da ac;ao. Por outro lado, 0 autor utiliza ha tempo urn par teorico - controle prillicolcontrole simb6lico - que serviu, antes de tudo, para que se desse conta das diferenc;as entre os arbitrarios culturais dominantes e os arbitrarios culturais dominados. Ora, e a parasitagem da gestao te6rica geral relativa a teoria da pratiea (0 senso prillico, a relac;ao pratica com 0 mundo) pela questao das diferenc;as culturais entre os grupos ou as classes (controle praticol controle simb6lico) que acabou eausando problema. Se as condi<;6es materiais da existencia submetem, mais ou menos estreita-
mente, os hom ens a "urgencia da prillica" e tendem, assim, a impedir em alguns deles "a constituic;ao e 0 desenvolvimento da aptidao ao dominio simb6lico da prilliea" (Bourdieu & Passeron, 1970: 64-65), entao isso significa que os membros de diferentes grupos sociais sao mais ou menos movidos pelo sensa pratico e que alguns tern os meios, da parte das condic;6es materiais de existencia, mas tambem e sobretudo pelo fato dos instrumentos de reflexividade que conquistaram, principalmente na escola, de sair da 16gica do senso pratico em dominar simbolieamente 0 mundo, coloeando uma distancia entre eles e 0 mundo, entre eles e suas pri>tieas.
o conceito de habitus parece ora subsumir a oposic;ao dominio pratico/dominio simb61ico (ibid.: 62), ora volta-se ao primeiro termo da oposic;ao (0 habitus ou 0 senso pratico eo dominio pratic02). Ha entao, com toda evidencia, uma temivel contradic;ao que entra em ac;ao imediatamente. De fato, no segundo exemplo, o conceito de habitus esta definido exclusivamente como "dominio pratico" (ou sensa pratico), isto
e, como conhecimento sem consciencia, dominic ou contrale
pre-reflexivo e, por isso, nao se pode mais falar de habitus para dar conta de pratieas sociais - como as pratieas escolares (p. 62) - que funcionam no dominio simb6lico, consciente, racional... Bourdieu deixa perceber claramente que e assim que define habitus, pois admite que este possa estar "no principio" de certas pratieas (Bourdieu, 1987: 82). Convida, pois, como lembramos, a "refletir sobre os modes de existencia diferentes dos principios de regulac;ao e de regularidade das praticas" (Ibid.: 81) dentro de universes socia is mais ou rnenos codificados, funcionando mais ou menos com transmissao explicita, formal dos saberes, e precisa que "nas sociedades onde 0 trabalho de codifieac;ao nao esta muito avanc;ado, 0 habitus eo principio da maioria das praticas" (p. 82). Escreve tambem que "de
2. Por exemplo:
"0
sentido pratica,
OU,
preferindo-se,
0
que as esportistas chamam de sentido do jogo, como
dominio pratico a !6gica ou da necessidade imanente de urn jogo" (1980a: 77).
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modo algum esta excluido que as respostas do habitus sejam acompanhadas de urn caleulo estrategico que tende a realizar no modo consciente a opera~ao que 0 habitus realiza em outro modo" (1980a: 89). Haveria, entao, urn modo consciente que se distingue do modo pratico constituido pelo habitus: "0 ajustamento imediato entre 0 habitus e 0 campo eapenas uma das formas possiveis da a,iio, mesmo se e de longe a mais freqilente: 'n6s somos empiricos, dizia Leibniz - pelo que ele entendia prilticas -, em tres quartos de nossas a~6es"'. As orienta~6es sugeridas pelo habitus podem ser acompanhadas de caleulos estrategicos de custos e beneficios, que tendem a levar a urn nivel consciente as opera~6es que 0 habitus realiza segundo a sua pr6pria 16gica. Alem disso, os periodos de crise, nos quais os ajustamentos rotineiros das estruturas subjetivas e das estruturas objetivas sao bruscamente rompidos, constituem uma classe de circunstancias onde a escolha racional pode triunfar, pelo menDs entre aquelas dos agentes que tern, pode-se dize-Io, os meios deserem racionais" (Bourdieu & Wacquant, 1992: 107). Se, de fato, 0 habitus e esta experiencia pre-reflexiva nao te6rica ... , entao eclaro que todas as prilticas nao tern 0 habitus por principio de engendramento. No primeiro caso, parece que se subsume mais, sob 0 conceita de habitus, "habitus prilticos" (" habitus que funcionam mais geralmente no dominio priltico") e "habitus reflexivos" (" habitus que funcionam mais geralmente no dominio simb6Iico"), e a ideia segundo a qual 0 habitus poderia nao estar no principio de certas condutas nao tern, estritamente, mais nenhum sentido. A teoriado habitus admitiria, entao, mais varia~6es sociais importantes do ponto de vista da importancia relativa dos habitos de reflexividade e de dominio simb6lico nos programas de socializa~ao dos diferentes atores de uma sociedade. Este caminho nos parece 0 mais coerente, tendo feito cair as multiplas contradi~6es criadas pela primeira op~o. Ao se optar- como Bourdieu faz explicitamente - pela plimeira solu~ao, ha 0 confronto com urn pleonasmo (habitus pratico: "sensa pratico" pratico) e com uma contradi~ao (habitus reflexivo: pre-reflexividade reflexiva). E, sem duvida, por querer demasiadamente enfrentar problemas simultaneamente com a mesma ferramenta te6rica (resposta ao problema epistemol6gico concemente a rela~o dos eruditos com seus objetos; resposta as tealias da a~o racional; resposta ao intelectualismo; resposta aqueles que nao veem a desigualdade de distribui~o dos instrumentos de reflexividade) que a ferramenta pode acabar quebrando.
o MODELO ESPORTIVO DO SENSO pRATICO E SEUS LIMlTES Merleau-Ponty tomou 0 exemplo da rela~ao corporal que 0 jogador de futebol mantem com 0 campo de jogo para fazer 0 leitor perceber que 0 campo nao e urn "objeto" diante do qual estaria 0 jogador-sujeito, mas "0 termo imanente de suas inten~6es praticas": "0 jogador e ele sao uma coisa 56" (1978: 182-183). A teoria do sensa pratico explora generosamente 0 registro dos exemplos esportivos para
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HOMEMPLURAL ----------------------
levar a compreender a rela<;ao pratica com a pratica, 0 dominic pratico, evocan-
do, diversamente,
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jogador de tenis,
0
futebolista,
0
boxeur'.
o jogador de tenis, que se coloca num bom lugar para bater a bola, por antecipa~ao
pre-reflexiva e nao do modo da rela~ao reflex iva com 0 futuro (Bourdieu, 1997: 249), ilustra assim a rela~ao pratica ou ordinaria com 0 tempo: "Tudo 0 que quero dizer se resume na oposi¢o entre um projeto, ou um plano (0 plano e uma visao do futuro na qual 0 sujeito se pensa como colocando um futuro e organizando todos os meios disponiveis com referencia a esse futuro posta como tal, como lim que deve explicitamente ser atingido), e uma preocupa~ao. A preocupa~ao, ou a antecipa~ao do jogador esta imediatamente presente a qualquer coisa que nao e imediatamente percebida e imediatamente disponivel, mas que e, no entanto, como se ja estivesse la. Tomando 0 exemplo do rebote da bola, aquele que rebate a bola, age no presente em rela~ao a um futuro (preliro dizer porvir em vez de futuro) que e quase presente, que esta inscrito na propria fisionomia do presente, do adversario que e5M para correr para a direita. Ele na~ coloca esse futuro num projeto: ele pode ir para a direita ou nao ir para a direita ... Entao eu lan~o a bola para a esquerda porque ele vai para a direita, etc. Ele se deterrnina em fun~ao de um quase presente inscrito nopresente" (Bourdieu, 1989b: 21-22). Ou ainda, "Se voce qUiser fazer a experiencia, entreviste urn excelente jogador, nao importa de que esporte, e pergunte-Ihe: 'Voce fez isso em tal momento, como voce fez?' Voce vera que ha uma enorrne distancia entre esta especie de dominio pratico que se realiza na rela~ao imediata com um jogo pelo qual se e possuido, e que se possuiu na medida em que se e possuido por suas regularidades, suas tendencias, e um conhecimento de sujeito cognoscente que coloca 0 jogo como jogo, que coloca 0 jogo numa representa¢o do jogo, que faz um plano ... Ha um abismo entre os dois" (ibid.: 44-45). Nas condi~6es de um jogador de tenis em a~ao, compreende-se bem que ele nao tenha a possibilidade - pelo fato da urgencia da a¢o - de elaborar decis6es, de fazer pianos, pensar 0 futuro como tal e considerar racionalmente, conscientemente, os atos que poderia cometer, como na concep~ao de um projeto. 0 exemplo do esportista tomado no calor da a~ao e uma ilustra~ao perfeita do que e 0 senso pratico, a logica pratica, em suma, a prc:ltica (oposta a teoria): "As condi~6es do calculo racional nunca sao praticamente dados na pratica. 0 tempo e contado, a inforrna¢o e limitada, etc." (Bourdieu, 1987: 21). Outros autores, muito inspirados pela etnometodologia norte-americana, mas partilhando a mesma concep~ao da pratica, tambem tomam seus exemplos no mundo esportivo. Um dos mais comentados e 0 da canoagem em corredeiras desenvolvido por Lucy Suchman (1990).
3. De modo mais geral, a teoTia do sensa pn'ltico apoia-se na fenomenoiogia de Husser! ede Merleau-Ponty. Em "Le mort saisit Ie vif" (1980b, nota to, p. 7), P. Bourdieu se refere ao "ultimo Heidegger" e a M. Merleau-Panty, que "se esfon;avam por exprimir na linguagem da ontol09ia" e em terrnos de urn "aquem 'selvagem' ou 'barbara' I... 1da rela~o intencional com 0 objeto", 0 que ele proprio designa como re!a~ao "pratica" com 0 mundo.
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Esses exemplos ilustram "perfeitamente" a teoria da pratica de seus autores, mas sua "perfei<:;ao" as toma, ao mesmo tempo, suspeitos.
as autores nunca se
interrogam sobre os limites da compara~ao esportiva e sobre a especificidade dos exemplos tornados. Ora, a partir desses exemplos da a~ao, e colocando-se a questao de sua propriedade social especifica, 56 se pode ficar espantado com a redu~ao do mundo social que acaba sendo feila pelas teorias que the correspondem. Tudo se passa como se 0 mundo social fosse 1) urn mundo de urgencia constante; 2) urn mundo de atua~ao direta (como numa cena teatral diante do publico) onde nunca se pode refazer (repetir) 0 que se fez e onde nao se tern 0 direito ao erro; 3) urn mundo da confronta~ao permanente com situa~oes que se impoem e nas quais
e preciso improvisar (a metafora musical as vezes e acrescentada it me-
tMora esportiva). Tomando exemplos "de primeira mao", desemboca-se num dos erras epistemol6gicos mais correntes em ciencias sociais, que consiste em generalizar os casos particulares all, mais precisamente, generalizar uma variedade parti-
cular de casos, uma classe particular de contextos (Lahire, 1996b). 1) Em todos os casos, os exemplos descrevem atores verdadeiramente abocanhados pela a~ao, tornados no "calor da a¢o", na urgencia das coisas a fazer. A urgencia, portanto, e uma caracteristica importante das a<;:oes descritas; diz-se que elas constituem "uma das propriedades essenciais da pratica" (Baurdieu, 1980a: 138 e 1997: 70). Sem tempo para deliberar com conhecimento de causa diante de uma bola que vern a 100 ou 200 km por hora, sem escolha racional ou calculada possivel quando e preciso chutar entre dois jogadores e seguido por urn terceiro, sem plano ou projeto pensavel quando se esta no ringue diante de seu adversario au descendo as corredeiras. Ao contrario da ciencia das prilticas que e construida "ap6s a batalha" (1980a: 136), que dispoe de muito mais tempo e de meios - escriturais e grMicos - para destemporalizar a a¢o, "a" priltica seria for~osamente ligada a obriga~ao de agir "imediatamente, num piscar de olhos e no calor da a~ao, ista
e, em condi<;6es que excluem a distancia, 0
recuo, 0 sobrevoo,
o prazo, 0 afastamento" (Ibid.: 137). Mas por que a urgencia seria uma propriedade essencial de todas as praticas? Nem todas as a~oes correspondem a esse modelo. A a~ao nao e sempre redutivel ao gesto executado, a palavra enunciada ou a decisao tomada na urgencia. Ela pode durar alguns segundos ou estender-se por varios meses, ate varios anos. Nao se fazem compras como se desce em corredei-
ras, nao se constr6i uma casa como se bate uma bola de futebol, nao se prepara 4
urn col6quio cientifico intemacional como se boxeia num ringue.
4. Se wn universitario ou urn grupo de universitarios decidem por exemplo, montaT urn col6quio mun ano, sera preciso planejar as reunioes de prepara!;ao, prever a or!;amento, reservar 0 local, fixar as datas e os prazos para as propostas de comunica!;ao, etc. Todos estes sao atos que sao conscientemente colocados como tais tendo em vista atingir muito explicitamente urn fim conscientemente visado. Seria ridiculo, aqui, dizer que 0 coJ6quio acontecera simplesmente gra!;as a urn sentido do jogo (mesmo se 0 sentido do jogo universitftrio estara presente no momenta de serem constituidos, por exemplo, as mesas-redondas au os simp6sios), na rela!;aO imediata, obscura, pre-reflexiva dos habitus numa situa!;ao em que se estara sem que a pessoa 0 tenha visto como urn fim expJicito a atingir, como urn objetivo a realizar. ..
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Certamente, tudo depende da maneira como se divide a ac;ao considerada, mas certas ac;6es sao organizadas num tempo claramente mais longo que aquelas que nos sao dadas a ver nos exemplos de gestos esportivos. Nos diferentes esportes, a urgencia e mais ou menos grande, a ac;ao e mais ou menos de longa durac;ao, os tempos de pausa mais ou menos freqUentes e longos, etc. Conforme uma ac;ao for longa ou muito curta, ela autorizara mais ou menos 0 tempo da reflexao, da avaliac;ao, do calculo, da deliberac;ao, da solicitac;ao de conselhos, da negociac;ao e da discussao. As ac;6es mais longas, aquelas que se estendem no tempo, necessitam as vezes que se fac;am programac;6es, planejamentos, calendarios, projetos e, a posteriori, balanc;os ou avaliac;6es. Como observa Anselm L. Strauss, enviar 0 primeiro homem a lua, deste ponto de vista, foi uma das ac;6es mais planejadas, calculadas e cuidadosamente preparadas (1993: 53). Bem entendido, seja qual for a sua durac;ao, nem tudo pode ser intencional numa ac;ao e nao haveria sentido em supor isso. Um ator pode ter a intenc;ao de atingir um objetivo (por exemplo, ir a tallugar), sem programa deliberado que mencione exatamente todos os atos que devera realizar para chegar la. Sempre nos defrontamos com uma sutil mislura de habitos sensorio-motores e habitos planejadores ou reflexivos, e e totalmente absurdo pressupor que os atores nunca sao estrategicos, intencionais, etc., como postular que todos eles sempre 0 sao. Mas como nos atos falhos, os textos fomecem muitas vezes contra-exemplos flagrantes para fazer aparecer claramente a especificidade dos exemplos esportivos que dao: "Basta pensar na decisao instantanea do jogador de tenis, que vai a rede fora de tempo, para compreender que a decisao nao tem nada em comum com a construc;ao erudita que 0 treinador, apos analise, elabora para explicar e para dai tirarlic;6es comunicaveis" (Bourdieu, 1987: 21). Uma pergunta nao pode deixar de ser feita: por que a pratica do treinador nao constituiria um exemplo para uma teoria totalmente diferente da pratica? Uma teoria que afirmasse 0 carater refletido, deliberado - individual ou coletivamente - e menos premente da ac;ao? Por que um exemplo real seria menos pertinente que outro exemplo real? E perieitamente possivel, no caso de certas ac;6es, "superar os efeitos do tempo" (Bourdieu, 1980a: 137) utilizando meios que nao estao reservados apenas aos cientistas: pianos, mapas, esquemas, registros em video, diagramas, etc. Nem todas as ac;6es correspondem, pois - segundo toda evidencia -, ao modele da ac;ao urgente. 2) Os exemplos-modelos evocam, todos eles, ac;6es diretas, no tempo real onde 0 tempo as vezes e contado e limitado, nas condic;6es identicas aquelas que os atores de teatro conhecem na cena diante de um publico. Nenhum erro e permitido, nunca se pode refazer ou repetir 0 que se acaba de fazer. Tudo se passa como se 0 sociologo cineasta, que filma a ac;ao, privilegiasse essas cenas: a partida oficial de futebol, de tenis ou de boxe em publico, a canoagem em corredeiras real (e nao simulada), etc. Mais uma vez, os exemplos sao perfeitos para levar 0 leitor a compreender que "pego por esse de que se trata, totalmente presente no presente e nas func;6es praticas que ela descobre sob a forma de potencialidades obje-
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tivas, a pratica exclui 0 retorno a si (quer dizer, ao passado)" (Ibid.: 154). Isto nao acontece com urn dan~arino da 6pera de Paris que, no palco, recornece um gesto que teria sido mal executado. Ele deve continuar a sua a~ao reencontrando 0 ritmo. Para 0 jogador, que executou mal uma jogada, e impossivel dizer ao arbitro, como na filmagem: "Corta! Vamos repetir,,5. Mas 0 esportista durante a partida nao e exatamente 0 esportista no treino. Por que nao basear, aqui tambem, a sua teoria da pratica no modele do jogador no treino? Ele pode repetir quantas vezes quiser 0 mesmo gesto, parar para respirar, refletir no que acaba de fazer, mudar a sua maneira de pegar a raquete ou 0 estilo de jogo, receber os conselhos de seu treinador e discutir uma estrategia possivel com ele ou examinar diferentes casos e assim por diante. Um tempo menos premente, uma atua~ao que nao sera a mesma a ser feita durante 0 jogo, naquela hora, e onde a questao e "nao se enganar". Ao concentrar 0 olhar exclusivamente sobre a atua~ao, acaba-se esquecendo os tempos de prepara~ao, de treinamento propicios a reflexao'. Se, no momento em que 0 jogador esta no jogo, pode contar apenas com suas habilidades incorporadas, estas podern ser 0 produto de todo um trabalho de reflexao, de corre¢o, de calculo, de estrategia, etc., acumulado durante as horas de treino. 0 treinador pode racionalizar a priltica do jogador, fazer com que ele tome consciencia de seus golpes, de seus defeitos, de suas lacunas, pode "corrigir 0 tiro" orientando os habitos de jogo do jogador~ A a~ao executada na urgencia, no dia da partida, beneficia-se de toda esta prepara~ao que se faz "com 0 tempo", usando seu tempo, corrigindo pouco a pouco, atraves de muita repeti¢o, seus gestos, suas posi~6es, seus deslocamentos (com a ajuda do video, par exemplo), de seus encadeamentos de "golpes" ou de gestos, em suma, efetuando constantemente esta volta a si e ao passado que a teoria da pratica considera como por natureza impossivel em "a priltica". "Este senso pratico que nao se ernbara~ nem com regras nem com principios (salvo em caso de falha ou fracasso), menos ainda com calculos ou dedu~6es, de todos os modos excluidos pela urgencia da a¢o que 'nao sofre nenhum adiamento, eque permite apreciar imediatamente, de urn golpe de vista e no calorda a¢o, 0 sentido da situa~ao e produzir imediatamente a resposta oportuna. De fato, s6 esta especie de dominio adquirido, que funciona com a certeza automatica de urn instinto, pode permitir responder, instantaneamente, a todas as situa~6es de incerteza e as ambigUidades das praticas" (Bourdieu,
1980a: 177).
5. Note-se ainda que as jogadores tornados como exemplos sao, muitas vezes, "excelentes" ou "bons" jogadores. Cf., por exemplo, P. Bourdieu, 1987: 80.
6. Aqui se podeJia variar as praticas segundo 0 tempo de preparat;ao ou de treinamento que elas sup6em. Por exemplo, se existem lugares e tempos em que sao preparados 0 born tenista, 0 born futebolista, 0 born enge· nheiro, 0 born mecanico de autom6ve1, etc., nao existem Qutros "lugares" senao a nossa propria experi~ncia familiar e 0 exemplo dos papeis dos pais que a vida cotidiana pode nos fomecer oode se formaria 0 "born
pai". Difidtmente se imaginaria - e isso mereceria que houvesse uma jnterroga~ao sabre as motivos desta este em situa~ao de simula~ao. de treino. repetindo incansavehnente as gestos a fazer au nao fazer. as rea· ~oes a ter e a naa ter com 0 Sell filho.
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Quando I>. admitido, a volta a a~ao passada (mas nao sobre si') I>. pensada apenas no modo da crise dos automatismos, dos habitos ou da rotina. Somente quando 0 ator encontra diliculdades que 0 colocam em crise que ele come~ria a se questionar. Mas ve-se bern no exemplo do esportista que a volta (corretiva) sobre si e sobre a a~ao passada I>. uma condi~ao comum e normal de progressao e de melhoria dos habitos de jogo. AIl>.m disso, os atores voltam, as vezes, tambl>.m, 50bre sua a~ao passada para melhora-Ia ou retrabalha-Ia em sonhos despertos, para narra-Ia, para rir dela, para "transmiti" -Ia a sua descendencia, para ter a impressao de domina-Ia melhor (por exemplo, os diarios pessoais), etc. No entanto, 0 modele da a~ao "diretamente" nao I>. 0 unico modelo existente. Corresponde aos tempos de a<;6es oficiais executadas num tempo relativamente Iimitado (exames em tempos Iimitados, certos tipos de competi~6es, representa~6es teatrais ou coreogralicas, concertos de musica ... ), mas negligencia as situa~6es onde a repeti¢o, a corre~ao, a reflexao sao possiveis e atl>. procuradas (penodos de treinamentos esportivos, musicais, coreograficos, escalares, simuJa<;ao
de uma situa~ao real no contexto de uma forma~ao, rodagem de urn filme no qual as cenas sao repassadas tantas vezes quanta se desejar, a escrita de urn livro com
releitura, corre<;6es, rasuras, etc., e uma multidao de situa~6es da vida cotidiana em que se pode fazer de novo o que foi mal feito). 0 ator nao esta permanentemente colocado na situa~ao do jogador de tenis que deve cuidar e ter exito em cada "golpe" - que por isso adquire urn valor absoluto e unico, conduzindo a vitoria ou condenando pouco a pouco a derrota - sem possibilidade de erro, de retomada ou de volta atms. Por isso nao se pode fazer desse momento particular do curso da a~ao, ou desse tipo de a<;ao, a a¢o por excelencia. A vida social nao se desenrola em cada momento nas condi~6es de uma partida olicial diretamente. 3) A crer em certos exemplos, poder-se-ia imaginar que 0 mundo social e feito de confronta~6es permanentes com situa~6es nao escolhidas, que se imp6em aos
e preciso improvisar ao maximo. 0 ator improvisa amedida que realiza sua a<;ao, spur-of-the-moment, encontrando suas marcas no curso - nun-
atores e nas quais
ca previsto antecipadamente - da a¢o. Eo comparavel ao pianista de jazz que toca - 56 all coletivamente - improvisando sem nunca pader pensar, apresentar-se,
planejar suas a~6es futuras (Sudnow, 1978). Porque 0 tempo da a¢o e contado,
porque 0 ator vive na urgencia toclas as suas a<;6es, ele "vive no presente, agindo
continuamente em circunstancias imediatas" (Conein & Jacopin, 1993: 79; Agre & Chapman, 1987) a maneira do personagem Pengi tirado do jogo informatico. Uma vida exclusivamente no presente, voltada para a a<;ao, presa no fluxo continuo dos acontecimentos do mundo, das solicita~6es do meio ambiente que nao se dominam mas as quais se procura adaptar-se continuamente8 . As antecipa~6es 7. "De modo gerai, 0 habitus tern suas falhas, seus momentos enticos de desconcerto e deslocamento. A relac;ao de adaptac;ao imediata esta suspensa, num instante de hesitac;ao em que pode insinuar-se uma fonna de reflexao quenada tern a vercom ado pensador escolastico eque [... J esta uoltado para a pratica e nao para quem a realiza" (Bourdieu, 1997; 191·192). 8. "Viver puramente no presente, responder a urn estimulo por uma reaC;ao imediata que 0 prolonga, e pr6prio de urn animal inferior; 0 homem que procede assim e urn impu/sivo" (Bergson, 1908: 166).
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praticas sao possiveis, mas nenhum projeto, nenhum plano (ou planejamento), nenhum objetivo e visado. Em The Psychology of Everyday Things, Donald Norman escreve assim contra as teorias da ac;ao planificada: "Mais que se envolver num planejamento detalhado, as pessoas abordam sua atividade cotidiana quando a ocasiao se apresenta. Assim, nao modilicamos 0 curso de no 55 as ac;6es para ir a uma loja, biblioteca ou pass ear com urn amigo. Ocupamo-nos com nossas atividades e, se estamos perto de uma loja ou da biblioteca, ou a ponto de encontrar urn amigo, deixamos a oportunidade iniciar a atividade apropriada" (Norman, citado em Conein & Jacopin, 1993: 69-70). Por sua propria ingenuidade, esta citac;ao tipicamente apriorista faz aparecer muito claramente 0 fato de que todos os atores nao estao talhados sobre 0 modele descrito pelo autor. Urn ator urn tanto "boemio" e sem projeto particular, que se deixa levar pelo curso ininterrupto das coisas, improvisando segundo a oportunidade da situac;ao e que bern poderia - para 0 bern ou para 0 mal- nunca chegar ao seu lugar de trabalho, sequer a parte alguma ... A vida social, seja ela qual for, nunca e totalmente urn fluxo incessante e ininterrupto que levaria os atores numaseqOencia infinita de "golpes" pragmaticamente, contextualmente (no sentido do contexte imediato) dados ou jogados. Os atores nao vivem na improvisac;ao constante. 0 jogador de tenis, que deve improvisar seus gestos no campo em func;ao do estilo de jogo de seu adversario, na urgencia pratica da partida olicial, possui tambem urn plano previsto varios meses antes do tomeio de tenis em que deve jogar. FreqOentemente os atores tern que jogar com tempos curtos e tempos longos, taticas imediatas e estrategias a longo prazo. Por exemplo, Ana Maria Chartier & Florence Janssens mostram bern como os professores de escola elementar dao conta, incessantemente, de varios tempos ao mesmo tempo ("tempo estrategico do ana escolar" com "acontecimentos mobilizadores"; "tempo ritualizado" e "tempo tatico") em sua pratica pedagogica e explicam por que 0 observador exterior as vezes nao compreende 0 sentido dos atos, dos gestos ou dos dispositivos pedagogicos que se inscrevem nos contextos e nas perspectivas temporais diferentes. Este observa, num periodo dado, praticas cuja distribuic;ao ele ignora nos diferentes contextos temporais da a¢o que Ihes dao sentido (Chartier & Janssens, 1996). Segundo 0 contexto da ac;ao retido, segundo se privilegia mais 0 plano amplo que mostra urn esportista planejando sua temporada, treinando longamente e depois jogando suas partidas, ou entao 0 plano sobre uma fase do jogo durante uma partida (por exemplo, rebater a bola ou a antecipac;ao de rebater, se fara aparecer 0 planejamento, a previsao, a reflexao, a deliberac;ao, a representac;ao, a estrategia, etc., ou entao serao apagados todos esses elementos para fazer aparecer apenas 0 ajustamento pre-reflexivo (quase instintivo) a uma situa¢o em curso).
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INTENCIONALIDADE E ESCAlAS DE CONTEXTO
A questao da intencionalidade ou da inintencionalidade, da consciencia ou da ausencia de consciencia, nao se caloca de maneira geral au absoluta na ayaO mas
depende sempre da seqilencia da a~ao considerada: a~ao curta ou a~ao longa, ou a~ao complexa, a~ao ordinaria ou a~ao extraordinaria ... 0 dialogo de surdos entre as teorias da a~ao, que reservam urn lugar mais ou menos im-
a~ao simples
portante
a intencionalidade, it estrategia consciente, it consci(~ncia, etc., esta Jiga-
do ao fato de que muitas vezes nao falam absolutamente dos mesmos tipos de a~ao. Seus defensores tern em mente exemplos de a~ao tao heterogeneos e opostos que freqilentemente se assiste a urn confronto te6rico vao e esteril. Evocando trajet6rias intelectuais, Pierre Bourdieu escreve: "Portanto, primeira redu~ao que sujeita a redu~ao ao utilitarismo. Substitui-se uma rela~ao pelo futuro, pelo fim enquanto preocupa~ao, enquanto presen~a imediata a objetivos inscritos no presente, uma consciencia racional, calculadora, colocando os fins enquanto tais como possiveis. Eao fazer esse movimento que se e condenado ao
cinismo. 0 cinismo e 0 fato de colocar como tais fins inconfessaveis. Se minha analise e verdadeira, e possivel, por exemplo, estar ajustado as necessidades de urn jogo, fazer uma magnifica carreira academica, sem nunca ter sido preciso ca1-
cular para quere-Io. Isto talvez pare~ menos especulativo quando se trata de urn seminario de pesquisa, se, por exemplo, se discutir a analise de uma biografia universitaria ou os grandes lingilistas franceses do seculo XIX. Muito freqilentemente urn erra teorico, que muitos pesquisadores cometem, porque estao inspirados
(geralmente por urn desejo de desmitifica¢o), consiste em colocar como tendo sido os fins dos agentes (de Meillet por exemplo) 0 termo de sua trajet6ria. T ransformam 0 trajeto em projeto. Agem como se desde 0 momento em que escolheram urn patrono de tese, urn tema, uma disciplina, tinha a ambi~ao de se tomar 0 maior lingilista de seu tempo. Dao como principio das condutas dos agentes num campo (dois priores que brigam pelo baculo, ou dois universitarios que brigam para saber se a teoria da a~ao e esta ou aquela ... ) uma especie de consciencia calculadora cinica" (Bourdieu, 1989b: 23). Aqui a seqilencia da a~ao representa 0 conjunto de uma trajet6ria individual. Paradoxalmente, os diferentes momentos de uma trajet6ria poderao ser, as vezes, interpretados apoiando-se sobre exemplos de a~6es curtas e quase instintivas. Entao se dira, por exemplo, que, assim como 0 esportista nao "decide" bater na bola que vern muito rapida, assim urn ator nao constr6i estrategias conscientes para obter tal posi~ao de poder (economico, cultural, politico ... ). De fato, as a~6es muito curtas e as a~6es muito longas partilham muito freqilentemente essa propriedade que e tomar improvavel a intencionalidade ou a estrategia consciente. Mas a aparente similaridade dos extremos pode levar a pensar que todo 0 espectro das a~6es (dos mais simples aos mais complex os, dos mais curtos aos mais longos, dos mais provaveis aos menos provaveis, etc.) pode ser considerado da mesma maneira. Mas as coisas nao sao tao simples assim.
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Vejamos outros exemplos. Nao se pode, eVidentemente, decidir ir "fazer compras" como se decidiIia "entrar na universidade". A pIimeira a<;:iio e um fato banal, comum, aberto a todos os que podem ir a uma loja e que tem dinheiro para gastar. A segunda e c1aramente mais extraordinaria e nao esta disponivel ao que chega por pIimeiro. Do mesmo modo, decidir 0 caminho que vou fazer para ir de carro a Bordeaux, partindo de Lyon, nao e a mesma cOisa que "decidir", quando estou no final do ensino medio, entrar na faculdade de medicina. No primeiro caso, a situac;ao e, rnais uma vez, ccmum, relativamente corrente (as descolamen-
tos em autom6vel nao sao desafios sociais e politicos particularmente temiveis). No segundo caso, nao depende tudo da minha boa vontade ou de urn born planejamento. Sera preciso acumular uma serie de boas notas, principalmente em matematica, para pader passar 0 ensino media cientificQ, etc., e as condic;6es sociais
que podem permitir que eu chegue ao fim que me propus podem evoluir no tempo (por exemplo, posso perder meus pais e nao ter nem a motiva~ao nem os meios materiais para continuar meus estudos, etc.). Se na escala dos jogos sociais, que Bourdieu retem como contexto social pertinente, e diticil imaginar que os atores possam visar explicitamente os fins com muita antecipa~ao (acreditar que Meillet tinha boas notas na escola elementar para um dia poder entrar na universidade ... ), em compensa~ao, e muito facil ver que em diferentes ocasioes da vida comum os atores podem, inteiramente, "por os fins enquanto tais como possiveis" (por exemplo, tirar ferias na Bretanha ou na Espanha? fazer primeiro as compras ou os trabalhos domesticos? etc.). Nao se trata simplesmente dos mesmissimos tipos de a~ao. E para entender bern, basta imaginar um ator muito previdente na SUa vida domestica, gerindo racionalmente a organiza~ao familiar, as contas, os horarios, etc., fazendo listas de compras e listas de taretas, etc. Quem pensaria em qualificar 0 seu comportamento de "utilitaIismo cinico e calculador"? Tanto parece diticil de sustentar que Meillet preparava "seu golpe" desde a escola primaria, porque isso esta ligado a uma serie complexa demais de a~oes, porque se estende por urn periodo de tempo longo demais (quase uma vida), como nao e embara~oso dizer que alguem previu, calculou, planejou - com todo 0 cinismo possive!! - ir ao banco tal hora, passar depois na farmacia, etc. Se Bourdieu aborda a questao do cinismo, e se "calculo", para ele, eqilivale a cinismo, e porque ele nos coloca na ordem das posi~oes e das praticas que estao ligadas a fortes desafios sociais. Oizer que uma pessoa que se casa nao calcula conscientemente, como num verdadeiro mercado matrimonial, dizer que 0 acesSQ
a este ou aquele posto de prestigio nao tern necessariamente que ser visado intencionalmente para se realizar, etc., tudo isto esta relacionado com a~oes que se referem a ordem social e a sua reprodu~ao. Mas nem todas as a~oes sao tambem "hist6ricas"; elas nao se situam todas no plano dos grandes desafios sociais, das estrategias de reprodu~ao dos recursos, dos capitais, das estrategias de subversao ou de conserva<;:iio das hierarquias existentes... Em suma, porque as situa~oes evocadas estao pensadas exclusivamente ao nivel das trajet6rias e dos campos, com sua l6gica de lutas, de rela~oes de for~as, de reprodu~ao, etc., pode-se sublinhar - justa e freqUentemente - 0 aspecto nao intencional das praticas. Certamen-
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te a pessoa nao pode conduzir toda a sua vida dentro do calculo racional ou da inten~ao, mas numa vida (ou no contexto de uma trajetoria individual) nunca inteiramente controlavel, previsivel, planificavel, etc., os atores podem as vezes desenvolver inten~6es, pIanos, projetos, estrategias, calculos mais ou menos racionais, em tal ou tal dominio, por ocasiao desta ou daquela pratica'. Portanto, as observa~6es criticas sobre a intencionalidade e 0 calculo consciente valem para um tipo particular de a~ao, numa escala particular de constru~ao de contextos de a~ao, mas nao de maneira universal. PLURALIDADE DOS TEMPOS E DAS LOGICAS DA A<;:il.O
As teorias da a~ao e do ator nos mergulham seja na ordem da estrategia consciente, do calculo, da decisao racional, da reflexividade ou da intencionalidade consciente, seja no mundo do ajustamento pre-reflexivo, infraconsciente as situa~6es prilticas, do senso priltico e do sensa da improvisa~ao.
Como acontece com a tensao pluralidade/unicidade, nao se pode nem deve resolver definitivamente esta questao de um ponto de vista estritamente te6rico e de maneira polemica lO , mas pela pesquisa empirica, perguntando quais sao as condic;6es s6cio-hist6ricas que tomam passiveJ uma a<;ao racional, em quais situa~6es s6cio-hist6ricas os atorespodem por em a~ao estrategias completamente conscientes, agir de maneira intencional e calculada. Nada, na coerencia e argumenta~ao intema das teorias, pode decidir sobre a pertinencia de um ou de outro p610 dessa tensao. Aqui nao e inutil voltar a Durkheim. Quando Durkheim critica o recurso que certos contemporaneos seus fazem a noc;ao de "interesse" au de "maximiza~ao do lucro", nao 0 faz a partir de uma outra concep~ao das motiva~6es humanas, mas criticando 0 pr6prio Q priori. Falando da "economia pol1tica" , ele escreve que "ela colocava na base de todas as suas dedu~6es uma abstra~o que ela nao tinha a direito de utilizar, isto e, a no~o de um homem que, em suas a~6es, seria exclusivamente gUiado por seu interesse pessoal. Esta hipbtese nao pode ser colocada logo no come~o da pesquisa. Apenas observa~6es repetidas e compara~6es met6dicas podem permitir avaliar a for~ do impulso que este m6bil pode exercer sobre n6s (1975: 16). Durkheim poderia ter criticado esta teoria do "interesse pessoal" a partir de outra concep~ao do social, de outra teoria da pratica, mas toma, de fato, uma posi~ao bastante distanciada (e pertinente) ao nao re-
9. Nao ha como nao concordar com 0 ponto de vista matizado de M. Crozier & E. Friedberg, que colocavam assim a questao da racionalidade na a~ao: "Raramente 0 ator tern objetivos claros e menos ainda projetos coerentes. Eles sao multiplos, mals au menos ambiguos, mais ou menos explicitos, mais ou menos contradit6rios. Alguns mudarao no decurso da al;aO, alguns serao rejeltados, outros serao redescobertos, durante a ac;ao ou, as vezes, ate depois. Seria apenas porque conseqUencias imprevistas e imprevislveis de sua ayao obrigam a 'reconsiderar a posil;ao' ou a 'reajustar 0 rumo'. 0 que esta 'no meio' nwn momento sera 'fim' num ~Utro e vice-versa. $egue-se que seria i[us6rio e falso considerar seu comportamento como sempre refletido, isto e, mediatizado peto sujeito lucido que calcuta seus movimentos em func;ao de objetivos fixados no comec;o" (1977: 47). 10. Urn exemplo desta maneira de conceber 0 debate entre tearias da al;o3O, a partir da tearia do sensa pratico, pode ser lido em Wacquant & Calhoun, 1989.
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jeitar de inicio a nOC;ao de "interesse pessoal", mas a ideia de que se poderia ter esta no¢o como um a priori de toda pesquisa. Ele visa 0 a priori enquanto tal: "Nao comec;amos - explica ele - postulando uma certa concepC;ao a natureza humana para dai deduzir uma sociologia" (ibid.: 184).
o calculo, a razao, a racionalidade, 0 interesse, ou a estrategia nao estao no principio de todas as ac;oes possiveis. Em compensaC;ao, e possivel perguntar, por exemplo, quais formas sociais permitem que certos atores, em certas praticas suas, agem determinando "custos" e "beneficios". Entao a critica nao e enunciada a partir de outra concepC;ao a priori do principio de toda ac;ao humana. Trata-se de uma critica da muta¢o sob forma de conceito geral de uma categoria historicamente situada da a¢o humana". No entanto, querendo-se absolutamente, inversamente, conservar e defender uma concep¢o pratico-pratica da a¢o (pre-reflexiva, infraconsciente, etc.), passa-se ao lade de uma boa parte do que nossas civilizac;oes fizeram: 0 calculo, a estrategia (comercial ou militar), a previsao, a programaC;ao, 0 planejamento, 0 emprestimo a credito, a poupanc;a, a especulaC;ao teorica, a reflexao metalingOistica ou metadiscursiva, and so on and so forth. Mas um (mau) habito intelectualleva freqilentemente a fazer da "aC;ao" e da "reflexao" duas realidades obrigatoriamente distintas e cujo contato provocaria uma explosao. Mesmo ao se perguntar se nao haveria reflexao na ac;ao, admite-se tacitamente, por um lado, que a a¢o (mas que tipo de aC;ao l2 ?) seria pensilVel fora de toda reflexao e, por outro lado, que a reflexao em si mesma nao e uma a¢o. "Refletir ou agir, eis a questao" parece ser 0 slogan geralmente admitido neste assunto. Uma (a reflexao) impediria a outra (a aC;ao), a paralisaria (pensar no que se faz entravaria a aC;ao), e tanto uma como outra viveriam vidas separadas. A reflexao poderia intervir antes ou depois da a¢o (reflexao sobre a aC;ao passada ou futura) mas nunca durante (reflexao no tempo da a¢o). Uma das razoes desse dualismo um tanto simplista reside no fato de que a reflexao e entendida imediatamente (de maneira logocentrica) como uma reflexao teorica, erudita, raciona!. Implicitamente se considera que so essas praticas eruditas merecem 0 nome de "reflexao". Uma vez feita esta equivalencia - como se faz, como veremos, a equivalencia linguagem = linguagem teorica - entao e facil mostrar que os atores nao sao pequenos calculadores eruditos, que teorizam sobre seus atos, avaliam racio11. Entao a crltica do utilitarismo enunciacla a partir de urn antiutilitarismo, que pressupa€ outra conC€J)I;ao a priori da a~ao humana, nao emais pertinente. Opor it satisfa¢o calculadora dos interesses 0 wdesejo deum reconhecimento intersubjetivo" e afinnar que 0 wverdadelro motor da pratica social e a busca do prestigio au, mais modestamente, de uma identidade social toleravel" e acreditarque existem "motivos fundamentais
da 3y30 humana" au "verdacleiros motores" (Caille, 1988; 196) das praticas. Ora, as "motivos", as "motores" sao sempre produtos de fonnas de vida s6cio-hist6ricas. Se nao, Durkheim nao teria deixado de dizer a prop6sito do antiutilitarismo a que dizia do utilitarismo, a saber, que ele teoriza 0 que deseja. 12. "Os casas vao daqueles onde aparentemente nada significativo se produz, exceto a movimento eorporalreage-se quase automaticamente situac;ao na qual se encontra, guiado, por assim dizer, pe10 habito e pe1a acumulal;ao das experiencias passadas - aqueles que testemunham uma forl;a de espirito, um grande esfor1;0, lutas Interiores mobilizadas para resistir ao habito, para veneer as paix6es e as tentaI;6es ... Explicar sumariamente a coneeito da al;ao em teonos de fatores au processos psicol6gicos como se faz freqilentemente provem em parte da falha caracteristica da filosofia, que consiste em generalizar a partir de casas particulares" (Melden, 1968; 30-31)
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nalmente 0 pr6 e 0 contra, os beneficios e os custos, etc. ("Assim como ela 0 concebe, 0 ator nao passa da proje~ao imaginaria do sujeito erudito no agente que age, uma especie de monstro com cabe~a de pensador que pensa a sua pratica de maneira 16gica e reflexiva e com corpo de homem de a~ao comprometido na a¢o", Bourdieu & Wacquant, 1992: 98). Como nao vencer facilmente urn adversario tao caricatural (e as vezes tam bern caricaturizado) como a teoria da a¢o racional? De passagem, porem, a critica partilha com a teoria criticada a ideia segundo a qual a reflexao seria de natureza "erudita". Incompatibilidade entre a reflexao e a a¢o, redu¢o logocentrica da refIexao a reflexao erudita, e 0 que a seguinte cita¢o condensa: "De fato, pelo simples fato de pararmos para pensar sobre a nossa pratica, de nos voltannos para ela para a considerar, descrever, analisar, nos tor-
nomos de certa forma ausentes e tendemos a substituir 0 agente que age pelo "sujeito" que reflete, 0 conhecimento prittico pelo conhecimento eruditoque seleciona os tra~os significativos, os indicios pertinentes" (Bourdieu, 1997: 66). Se nao se reduzir a a¢o a a~ao de curta dura~ao, realizada na urgencia, sem possibilidade de retomada ou de repeti¢o, entao se compreende que a reflexao, inclusive a mais racional, possa intervir no cursa de uma ac;ao e ate a constituir
tempos ou eta pas obrigat6rias (por exemplo, organizar urn espetaculo ou preparar uma longa viagem, jogar xadrez em condi~6es de longa dura¢o ou construir uma estrategia de marketing). Mesmo, porem, quando a a¢o corresponde a a¢o descrita pela teoria do senso priltico, sempre existe uma refIexao pragmaticamente ancorada, indissociavel da a~ao em curso e dos elementos do contexto imediato e que nao necessita, necessariamente, de uma "pausa" na a¢o13, Portanto, uma teoria da a~ao deve integrar em seu programa cientifico 0 estudo das diferentes formas de reflexdo que agem nos diferentes tipos de a,do. As teorias da a~ao nao tern nada a ganhar ao adotar a estrategia da pseudo-supera¢o te6rica ou do acumulo dos contrarios. De fato, ao economizar os esclarecimentos te6ricos e semanticos necessarios a qualquer constru¢o do objeto (imediatamente percebidos como te6ricos), as vezes 0 soci610go prefere adotar a estrategia ret6rica ao mesmo tempo mais rentavel e menos custosa. Acredita poder "superar" as antinomias filos6ficas c1assicas contentando-se em acumular verbalmente termos opostos, dizendo uma coisa e seu (habitualmente considerado como) contrario, em vez de procurar as maneiras de dizer e de descrever 0 que evitaria 0 emprego dessas dicotomias mortais: dim que 0 boxe realiza a fusao "do corpo e do espirito, do instinto e da estrategia, da emo~ao e da racionalidade" (Wacquant, 1995b: 506); os "mecanismos corporais" e as "disposi~6es mentais" estao ai tao estreitamente sobrepostas que "apagam a distin~ao entre 0 fisico e 0 espiritual, entre 0 que depende das capacidades atieticas e 0 que tem faculdades
13. "Mesmo quando
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presente da ac;:ao e breve, as 'realizadores' podem as vezes chegar a pensar em suas
ac;:6es. Nos passes de uma partida de tenis, que duram urn micro-segundo, urn jogador experiente tern tempo para preparar 0 golpe seguinte. Seu jogo e melhor por causa dessa hesita~o momentanea, contanto que ele avalie corretamente 0 tempo disponivel para a reflexao e que integre a sua reflexao no f1uxo regular da a~o" (Schon, 1983: 279). Cf. tambem M. Detienne & J.-P. Vertant (1974).
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morais e da vontade" (Wacquant, 1989: 36). De maneira mais forte ainda, as vezes nao e mais 0 soci61ogo que realiza uma superac;ao te6rica das oposiC;6es, mas
o proprio ator ou sua pratica. "0 boxeur e uma engrenagem viva do corpo e do espirito que desafia a fronteira entre racionalidade e habito, que faz saltar a oposi~6es entre a a~ao e a representa¢o, que constitui uma supera~ao da oposi~ao entre 0 individual e 0 coletivo" (ibid.: 36-37). E aos poucos se descobre 0 conjunto de pares de opostos que estruturam as ciencias sociais e uma boa parte da filosofia, e sao desta maneira justapostos, alinhados, acumulados. Esta estrategia culmina - na imagem do ingEmuo perverso - no usa de oximoros (essas associac;6es de
duas palavras que tern sentidos parcialmente ou radicalmente opostos) que permitern dizer ao mesma tempo uma coisa e seu contrario colocando-se, S8 for preci-
so, em posi¢o de poder responder a todos os campos teoricos ao mesmo tempo sem ter nada de certo alem de cada urn deles tornados separadamente (entao 0 boxe e designado como uma pratica "eruditamente selvagem", ibid.: 47 1'). 0 ganho discursivo ou retorico e grande, mas 0 ganho de conhecimento da realidade empirica e particularmente fraco. Se e possivel estar de acordo sobre a estrategia cientifica do "nem ... nem ... ", que consiste em querer superar as oposiC;6es te6ri-
cas classicas (mesmo quando se trata de urn lugar comum filosofico por excel encia), ela nao deve conduzir a facilidade semantica do "ao mesmo tempo isto e aqui10", "uma coisa e seu contralia", "A e nao A", que confunde superac;ao te6rica e
colagem semantica, e ate contradi~ao logica. Afinal de contas, e possivel preferir a clareza semantica wittgensteiniana a vontade de acumula~ao retorica dos pares de opostos e a vitoria puramente retorica, que mais obscurece do que esclarece as realidades sociais e as interpreta~6es sociologicas. No entanto, e de capital importancia apreender da melhor forma possivel a parte reflexiva, calculadora, planificadora da a~ao (momentos em que a a~ao e preparada, calculada, planejada, mas tambem e refletida imediata ou posteriormente) e a parte de a¢o pre-reflexiva, nao planejada, nao calculada, segundo os tipos de a~ao e as categorias de atores considerados 1S Em vez de postular Q priori e de uma vez por todas a existencia de uma teoria da pratica singular (teoria do ator racional, teoria da a¢o planificada, teoria da decisao, teoria do jogo, teoria do sensa pratico, teoria da a~ao situada ... ), e preferivel reconstituir, segundo os universos sociais e as meios sociais, segundo as tipos de atores e os tipos de ac;ao,
14. Tambem em Bourdieu se encontra uma selie de oximoros: "estrategia inconsciente", "intencionalidade sem inten~o", "finalidade sem lim", wimprovisa~ao regulamentada", etc. Pierre-Michel tern razao ao evocar as conton;oes t€6ricas ou as tor~oes semanticas que realizam tais express6es. Uma analise precisa, escreve €Ie, "mostraria todo a esfon:;:o desenvolvido para conigir cada termo pe10 seu contrario" e faria aparecer opera1;oes comparaveis a uma "partida jogada por urn 56 jogador" (1997: 591·592).
15. Seria sujeitar-se a habitos tao maus de pensamento fazer este tipo de perguntas e proceder par verificac;ao emplrica e busca de contra-exemplos em vez de proceder par afirma
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os diferentes tempos da ac;ao e as diferentes 16gicas de a~ao - tempos da discussao, da deliberac;ao (Aune, 1977 e especialmente 0 capitulo III "deliberac;ao" acirna, e Melden, 1968), da preparac;ao, do planejamento, tempo de par em pratica esquemas de a~ao incorporados na urgencia relativa (segundo a natureza da ac;ao) acompanhados, as vezes, de tempos de pausa, de reflexao e de corre~ao, tempos da volta a ac;ao, a si, etc. Tambem e uti! interrogar-se sobre os tipos de a<;oes em que 0 ator calcula conscientemente, aqueles em que deve seguir escrupulosamente regras escritas, explicitas e conhecidas por todos, ou ainda onde as regras (ou os c6digos) existem mas sao menos obrigat6rios, fazendo voltar ou marcando a sua presen~a apenas nos casos de falhas graves, aqueles em que nao ha regra nem cillculo, etc. Em resumo, trata-se de desenvolveruma sociologia da pluralidode das logicas efetivas de a<;oo e do pluralidade das formas de rela<;oo d a<;oo.
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As formas de
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o lugor do linguogem o MUNDO DO SIL£NCIO Mergulhando suas ralzes na fenomenologia, uma parte da sociologia desenvolve a metafora da mudez e do corpo a corpo silencioso quando se trata de evocar os processos sociais de incorpOra~aOI. Indo contra todos os pensamentos filos6ficos, que em toda parte veem a consciencia reflexiva e 0 sinal, essas concepc;oes acabam caindo no excesso inverso e provocando uma cascata de confusoes elementares: confusao entre consciencia e consci(~ncia teorica, entre verbal e
consciente, entre Iinguagem e reflexividade, Iinguagem e teoria ... Do mesmo modo como todo estudo, que fala da Iinguagem, e sistematicamente suspeito de ser conivente com 0 linguistic turn (Lahire, 1994b). 0 partido cientlfico, serio, antiintelectualista, antiestruturalista leva, entao, a adotar sem discussao a Iinguagem do corpo, da pre-reflexividade e do mutismo. Como se 0 homem fosse urn animal sem Iinguagem, como se a Iinguagem fosse obrigatoriamente sinal de reflexividade e de distancia reflexiva, como se a Iinguagem estivesse sempre a certa distancia da a¢o, como se nao fosse ela mesma, quando ocorre, a<;ao, como se "es-
ludo da Iinguagem" significasse sistematicamente estruturalismo ou semiologia, como se "pensamento" significasse obrigatoriamente pensamento teorico, formal, sistematico, reflexivo ... , como se L.S. Vygostsky, M. Bakhtine, J. Goody, J.S. Bruner, B. Bernstein nunca tivessem existido ... As vezes se pode compreender a logica da "bengala torta num outro sentido", mas de tanto tentar torce-Ia, acaba-se quebrando.
1. A isto e preciso acrescentar a metaforadas grandes profundidades: "a ii/usia pugirtstica - a crenl;3 semi-articulada, quase corporal no valordo jogo e seus rlscos, inscrita profundamente no interior do COrpoH; "A ii/usia pugillstica encontra-se alojada profundamente no interior do corpo" (Wacquant, 1995b; 492-493); "The pugilistic ilIusio is found lodged deep within his body (Wacquant, 1995a; 88); "0 habitus pode sercompreendido como uma 'situayao sedimentada' virtual, alojada no mais profundo do corpa" (Bourdieu & Wacquant, 1992: 28); "a emoc;ao que atinge as profundezas dos dispositivos orgs'nicos" (Bourdieu, 1997; 168).
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Dar a linguagem (as suas diferentes fonnas e as suas diferentes fun<;:oes sociais e mentais) 0 seu lugar certo na analise dos fenomenos de incorporac;ao de habitos e de esquemas de a<;:ao supoe, portanto, definir-se ao mesmo tempo contra as medidas que a ignoram ou negligenciam, e contra as medidas que levam em conta ao fazer abstrac;ao de seu papel e de suas fun<;:oes na a<;:ao enos processos de incorpora<;:ao. Pensar a linguagem nao significa aderir automaticamente a imagem de uma sociedade como grande mercado de trocas semi6ticas ou como espa<;:o comunicacional de circulac;ao de infonna<;:ao, colocar a intencionalidade no ceme da a<;:ao ou adotar urn procedimento micro-socioI6gico. Nao se trataria de autonomizar a linguagem nem de Ihe conferir urn primado qualquer, menos ainda de propor uma hermeneutica sociol6gica que fizesse do mundo social urn texto ou urn livro a decifrar. As praticas sociais ou os cursos de a<;:ao efetuar-se-iam atraves das praticas linguageiras, mas necessariamente nao tern a sua produc;ao como finalidade. Mas nao e muito possivel fazer das praticas ou da incorpora<;:ao de habitos processos que se desenrolariam fora da linguagem numa rela<;:ao obscura e muda com omundo.
Seria preciso fazer uma analise de todos os encadeamentos sutis problematicos, que apagam os tra<;:os da linguagem nas praticas e que fazem desta urn equivalente de "reflexividade" ou de "distancia reflexiva" ao reduzi-Ia a uma de suas fun<;:oes sociais. Expressoes sociol6gicas como "a experiencia muda do mundo que naturalmente consegue 0 senso pratico" (Bourdieu, 1980a: 115), os esquemas que VaG "da pratica a pratica sem passar pelo discurso e pela consciencia" (ibid.: 124),0 "dominio simb6lico" como "consciencia e expressao verbal" (p. 125), "a cadeia continua das aprendizagens inconscientes que se realizam de corpo a corpo, e em tennos velados, na relac;ao freqGentemente obscura a ela mesma entre as gera<;:oes sucessivas" (Bourdieu, 1990: 30); "as ciencias sociais se esfor<;:am por fazer a teoria de condutas que sao produzidas, em sua grande maioria, aquem da consciencia, que sao aprendidas por uma comunica<;ao silenciosa, pratica, de cor~
po a corpo, poder-se-ia dizer" (Bourdieu, 1987: 214). Expressoes filos6ficas: "relac;ao muda com outrem" (Merleau-Ponty, 1992: 193); "0 sentir que se sente, 0 ver que se ve nao e pensamento de ver ou de sentir. mas visao, sentir, experiencia muda de urn sentido mudo" (MerIeau-Ponty, 1979: 303); "0 vivido mudo"' ... Na luta contra 0 intelectualismo, 0 intencionalismo ... acaba-se concedendo ao adversario as suas defini<;:oes do "pensamento" e da "linguagem", lan<;:ando entao 0 trigo com 0 joio (a linguagem OU 0 pensamento com a reflexividade, 0 te6rico, a intencionalidade, etc.), mais que fazer a critica das pr6prias redu<;:oes. Mesmo sendo o inspirador de numerosas f6nnulas sociol6gicas no assunto, MerIeau-Ponty admitiu 0 fato de que nao ha sensivel, perceptivel fora da linguagem, sendo que esta nao e necessariamente sin6nimo de atividade reflexiva. Libertava assim a questao da linguagem das concep<;:oes intelectualistas que combatia. Num curso sobre Husserl ele dira que "a linguagem esta 'entrela<;:ada' (ver/lochten) com nosso horizonte de mundo e de humanidade" e que "ela e levada por nossa relac;ao com 0
2. "0 que somas tentades a considerar como 0 vivido brute pressupoe freqGentemente, na realidade, a existencia de todo urn universo de conceitos e
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manejo de uma certa tecnica" escreve Jacques Bouveresse I
(1987,69).
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munda e
as autros", mas tambem que "a leva e a faz" (Merleau-Panty, 1982:
164). Como prova da cegueira empirica e interpretativa it qual conduz 0 modele de incorpora~ao silenciosa, pode-se tomar 0 exemplo de comentarios 50ciologicos sabre a incorpora~ao da profissao de boxeador, que repousam sabre esta concep<;ao eliminando, apagando a linguagem do objeto de investigac;ao. Ou enta~, tendo posto de lade de LUna vez por todas a linguagem (com 0 intelectualismo), 0 soci61ogo ve apenas que boa parte dos clados sabre os quais repousa a sua interpreta<;ao socio!6gica e constituida de clados Iinguageiros produzidos pelos investigados em situa<;ao (quando treinam, quando iutam oficiaimente, quando discutem entre si antes das partidas, durante as pausas ou nos momentos informais da vida do clube, etc.) ou fora de situa¢o (na conversa) eque esses "dados" sao indispensaveis tanto (0 que nao significa "da mesma maneira") para 0 leitor que procura compreender a pratica pugilistica como para 0 boxeador que incorpora sua profissao de boxeador. Sem fazer da Iinguagern, como Berger e Luckmann, 0 primeiro elemento de interiorizay103, se notara que 0 universo social do boxe nao pode ser integrado senao atraves de wna serie de praticas inclissociavelmente corporais e Iinguageiras4. Assim se pode reconstituir os diferentes tipos de linguagem que 0 autor cita pennanentemente, quase sem se dar conta. T rata-se, portanto, sempre, de comec;ar se destacando das ana.lises semio16gicas ou lingUisticas, daquelas que se detem no estudo do corpo como objete de discurso, etc., e afinnar que a aquisi<;:ao de uma "sensibilidade corporal especifica" a pratica pugilistica nao pode realizar-se par urn "ato de vontade" au par uma "transferencia consciente de infonnaC;ao" (quem duvidaria disto?), mas por uma "incorporac,:ao imperceptivel do esquema mental e corporal imanente it pra.tica pugilistica", que nao admite "mediac;ao discursiva ou sistematizaC;ao ,,5. Mas e somente por abuse de Iinguagem que se pode fazer passar como equivalentes semanticos as express6es "mediac;ao discursiva" e "sistematizay1a". E ignorar profundamente as diferentes tipos de usa da linguagem, desde a simples pontuac,:ao da pratica ate it fonnalizac;ao mais complexa, passando por todas as fonnas de discurso que organizam, descrevem, analisam, comentam ... a pratica. Em outra parte se dim que nao e possivel boxear "no papel" (Wacquant, 1989: 56). No entanto, se nao se aprende 0 boxe (pratica corporal por exceiencia) verbalmente ou nos livros, tambem nao se aprende boxe sem mediac;ao linguageira. Tuda indica que a incorporac;ao de habitos da atividacle de boxeador nao se realiza numa especie de corpo a corpo silencioso. 3. "E a linguagem que deve ser, antes de tudo, incorporada" (Berger & Luckmann, 1986: 185). 4. Ap6s ter redigido esta leitura critica, descobri um texto no fundo muito analogo de Jean-Paul Bronckart (1997) sobre Jean Piaget. Bronckart procede, com efeito, a uma releitura de um conjunto de situa(:oes de intera¢o adulto-crian(:a comentadas e analisadas por Piaget pondo it Juz, de maneira particularrnente clara, 0 lato de que 0 psic61ogo apaga ou negligencia a linguagem em sua interpreta(:ao das situa(:oes do ponto de vista de uma teoria do desenvolvimento da crian(:a (a forrna(:ao do simbolo). 5. "Adquirir a sensibilidade corporal especifica que faz 0 pugilista competente e um lento e longo processo que nao pode ser realizado por urn ato voluntario ou por tuna transferencia consciente de inforrna¢o. Necessita, antes, de uma incorpora(:ao imperceptive! do esquema mental e corporal imanente it prMica pugUlstica, que nao admite nenhuma media(:ao discursiva nem nenhuma sistematiza(:ao" (Wacquant, 1995a: 72).
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Em primeiro lugar, nao ha incorporac;ao dos htlbitos de "profissao" sem aprendizagem das palavras da profissao. No univers~ pugilistico, como em Qutros, aprende~se POllCO a POllCO 0 sentido (e 0 uso) de uma sene de verbos de a¢o e de nomes para designar os gestos essenciais (por exemplo, "assimilar sell jab". "encontrar a sua distancia". "respirar", "dtiblar", "shadow boxing", "sparring", "jab", "gancho", "direto", "guarda", "upper cut"), 0 nome dos objetos (por exemplo, "Iuvas", "sace de pancadas", "bandagens", "protetor de dentes"), de pap/ds (por exemplo, "sparring partner"), de tempo (por exemplo, "round") e dos lugares (por exemplo, "ginasio", "ringue"), que cornurnente sao usados na pratica. Embora seja tempo da urgencia pnltica, 0 combate nao e urn momento desprovido de toda linguagem. pelo contrario. Nao se trata de conversa¢o mundana entre os boxeadores, como se poderia pensar, mas de uma Iinguagem que provem dos treinadores, que pontua 0 combate, tenta corrigir os gestos e as posiC;6es do boxeador no proprio tempo do combate, encoraja 0 boxeador, lembra-lhe as coisas essenciais que pode esquecer na urgencia, comenta os golpes, recomenda alguns golpes, etc. Etambem urn meio de fazer 0 boxeador tomar consciencia de que pode perder a sua lucidez no combate. "Vira esse ombro, vai, mantem 0 queixo baixo, avanc;a com 0 jab, avanc;:a com 0 jab, 0 queixo esta muito alto, fac;a uma boa serie, vail Maos levantadas, maos levantadas'" (Wacquant, 1995a: 72). "'Maos no ar, maos no ar, Louie, maos no ar!' Esgo~la-se Smithie" (Wacquant, 1991: 29). Os comentarios dao a situaC;ao exata e os conselhos decorrentes da obselVaC;ao imediata sao dados em cada tempo de pausa. Eles sao tambem uma ocasiao de encorajar, de motivar: "'Voce est€!. muito longe, e preciso dar dois passos para frente. Bloqueia a direita e avanc;a mais urn pouco. Fecha bem 0 punho e nao te encolhas, voce estf> indo bem.' (... ) 'Respira forte, mais uma vez. Vai, Louie, voce vai ganhar este round'!" (ibid.: 30). E depois, seguem-se as palavras de comentarios que vern apos a luta e que preparam as proximas partidas: '''Lembre-se de manter a mao esquerda mais alta, Keith, quando voce sai do corpo a corpo. Voce ainda leva muitos golpes'. Depois que urn ferimento na mao interrompeu uma carreira promissora, Butch passou a ser conse1heiro tecnico espontaneo: 'Alguem que bate como Torres, voce deixa vir e contra-ataca com jabs secos. Visa bern o pescoc;o e bate repetidarnente como se quisesse atravessar'" (p. 18). Tanto durante 0 treino como durante a luta, a Iinguagern ajuda a incorporar (dar sentido, melhorar ... ) as experiencias que se pode fazer. Usa-se a analogia para designar encadeamentos c1assicos de gestos ("'0 gancho de esquerela e 0 direto de direita VaG junto, como mando e mulher' , explica-me Eddie, 0 vice-treinador", p. 17); sao duramente corrigidas as posiC;6es, os gestos, 0 titmo ("[0 boxeador trabalha no saeo de paneadas[ 'solta esse jab! E mande logo em seguida uma de direita' (... ) 'Mexe a cabec;a, sangue bom! Nao e urn saco que voce tern na frente, Louie, e urn hornem!' rosna DeeDee. 'Quantas vezes preciso te dizer que e preciso pensar. Pensar! E com a cabe~a que se boxeia''', p. 17). De maneira mais geral, apenas 0 discurso pode por em serie as experiencias e hierarquiza-Ias, atribuir a elas 0 respectivo valor: "esquece 0 ringue. E na penumbra an6nima e banal da sala de treinamento, ao mesmo tempo refugiO e oficina, que se forja 0 comba-
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tente. (.. ,) 'Voce ganha 0 combate no ginasio', repetem continuamente os antigos" (p. 16). Eimpossivel deduzir uma chamada aordem do tipo "Aqui nao e um clube de enconlros, ao lrabalho" (p. 18) a ideia segundo a qual a atividade de boxeador se faria sem media¢o discursiva. Se 0 corpo a corpo no tempo do combate nao e em si desprovido de media~6es de linguagem, e precedido e seguido de tempos menos "prementes" nos quais circulam comentarios, relatos e anedotas tipicas que lembram os valores da profissao, suas regras, a higiene que supoe, etc. As palavras enquadram a experiencia e continuam fora do gimlsio ("ser boxeador e uma profissao que te prende vinte e quatro horas por dia. E preciso estar sempre atento. Se voce quiser fazer isso direito, nao pede fazer outra coisa", p. 15). Deve lembrar a necessaria diela alimenlar, falar da dificuldade em rela~ao a abstinencia sexual recomendada tres semanas antes da luta e reiterar esta exigencia ou aconselhar 0 respeito pelas horas de sono. "0 sacrificio nao come~a nem acaba ao entrar na sala. '0 trabalho no ginasio e a metade do trabalho. A outra metade e a disciplina. Comer como se deve, donnir cedo, levantar-se bern de manha para a footing, afastar-se das mulheres e todo 0 resto - cuidar do corpo'. Alimento, sono, sexo - a santissima lrindade da ordem pugilislica" (p. 21). "10 IreinadorJ grila: 'Ier fome nao quer dizer nada! Ena cabec;a, isto nao existe - urn ponto, e tudo'. (... ) Shanti me chama a ordem: 'Agora deixa a tua mulher em paz, loUie, estamos apenas a tres semanas da luta'" (po 21). Os discursos comentam tambern os casos - infelizes - de infra~6es de alguns boxeadores a essas regras: "'0 sexo e urn monstro, cara. 1550 vai te matar. Digo isto porque experimentei' (... ) 'E urn prejuizo muito grande, Fred seria urn grande boxeador. Ele e muito forte, bate bern e sabe encaixar. Mas gosta demais das mulheres'" (p. 21). Os discursos miticos sao comuns em tomo da abstinencia sexual e da liga~ao que existiria entre as rela~6es sexuais e a perda da forc;a e da energia ... ("Quando voce goza, voce perde 0 sangue que vern da coluna vertebral", p. 21). Etambem nas conversas infonnais no ginasio que se incorporam os conhecimentos mais gerais sobre a morfologia dos boxeadores (Iipo de musculatura, lamanho, peso, elc.) e eslilo de boxe: "Esle ajuslamenlo do capilal corporal e do eslilo de boxe e sugerido nesle Irecho de uma conversa no ginasio, conversa durante a qual urn famoso empresario fala de urn lutador alto e magro conhecido p~r sua rapidez e alcance, mas sem forc;a corporal" (Wacquanl, 1995a: 69).
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As palavras dao sentido as experiencias e aos sofrimentos corporais vividos ou a viver ("tomar-se boxeador, preparar-se para uma luta, e como entrar numa ordem religiosa. Sacrificial A palavra volta constantemente na boca do velho lecnico DeeDee, que enlende do assunlo", Wacquanl, 1991: 14). Foi assim por ocasiao da primeira luta, quando 0 discurso visava preparar e dar sentido ao acontecimento: "Na tua primeira luta, voce tern dois adversarios, 0 cara diante de ti e a multidao. As vezes voce fica tao impressionado que nao sabe 0 que fazer. Foi assim que perdi as minhas duas primeiras lutas como amador. Fiquei tao deprimido depois que tive vontade de abandonar" (ibid.: 23).
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Como para a incorpora~ao dos habitos ligados a pratica do boxe, as pesquisas sobre outras praticas corporais constatam a presen~ polimorfa e plurifuncional da linguagem. Olhando-se de perto, a linguagem Gogos de Iinguagem muito variados) esta igualmente onipresente na aprendizagem da dan~a (Faure, 1994): dar nome aos passos, as posi~6es e gestos, usa de metaforas ou de analogias, explica~6es pedag6gicas e/ou eruditas (principalmente anatOmicas e fisiol6gicas), demonstra~6es, felicita~6es ou corre~6es verbais diversas, grava~6es em video comentadas, contagem para acompanhar 0 ritmo, etc. 0 corpo do dan~arino ou da dan~arina esta incessantemente objetivado no trabalho de incorpora~ao dos habitos sens6rio-motores. 0 uso do video ou do espelho para objetivar 0 seu corpo em movimento e marcar as "faltas" ou os gestos infelizes, 0 olhar sobre os outros como duplos de si mesmo para corrigir-se, as corre~6es verbais ou corporais explicitas feitas pelos instrutores, 0 usa de manuais de dan~ onde sao mostradas posi~6es corporais "boas" e "mas" ou ainda a objetiva¢o regular do corpo e 0 contrale de sua evolu~ao pelas pesagens freqiientes, tudo isto contribui para tomar 0 corpo como objeto de uma aten¢o e de urn cuidado especificos e para objetiva-Io no pr6prio pracesso de incorpora¢o. Constata-se, pois, que os pesquisadores podem confundir grasseiramente "media~ao discursiva" ou "linguagem" com "explica~ao verbal", "formal" e "radonal", "comentarios sabre a pratica", "teoria au reflexao sabre a pratica", etc.,
partilhando assim amplamente 0 sensa comum dos atores para os quais, freqiientemente, "falar e nao fazer nada", "conversar". Quando sao evocadas pelos pr6prios atores, a palavra ou a Iinguagem sao imediatamente concebidas como tempos aut6nomos que se op6em a pratica (" Quando voce fa/a, voce noo faz nada", diz urn operario especializadoque entrevistamos; "Chega de falatorio! Ao trabaIho!" pode-se ouvir num escrit6rio onde dois funcionarios estao conversando diante da maquina de cafe) e nunca como elementos totalmente incorporados a a¢o, ao trabalho, a atividade (Sharrock & Watson, 1990). Os investigadores que nao pesquisam esta concep~ao do sensa comum reformulam sem perceber, em linguagem mais erudita, as mesmas concepc;6es erroneas ("sem media~ao discursiva"). Constata-se 0 mesmo com os salineiros estudados por Genevieve Delbos & Paul Jorion, que acham que seu pai "nunca Ihes falava". "As vezes eu perguntava: 'Por que cortar aqui e noo M? E por que agora?' Coisas assim. Meu pai nunca falava. (... ) 'Meu Pai nunca falava'. Eo claro, nao para explicar, mas certamente para xingar, para proibir" (1984: 126). Confusao sempre e ainda entre "palavra" e "explica~ao", sendo que esta pode ser ordem, proibi¢o, xingat6rio ou comentario fora da pratica do oficio: "Nao se aprende a profissao em outro lugar senaa nas condic:;6es praticas de sell exercicio, mas aprende-se tambem por tudo 0 que ocorre na vida diaria, numa conversa casual que fala dele e de tudo, por exemplo" (ibid.: 140). Portanto, trata-se tambem de enquadramento e de recorte. Pois sempre se pode enquadrar urn momento silencioso da atividade, focalizar uma cena sem palavras, sem interven¢o verbal de qualquer especie. Mas bastara abrir levemente 0 quadro ou ressituar a cena num tempo mais longo para constatar que, se nao se fala no momento (0 que nem sempre e 0 caso), fala-se as vezes antes ou depois. 166
ATom DA PONTUA<;:AO DA A<;:AO
ASUA TEORIZA<;Ao
Longe de ser a primeira forma de intercambio Iinguageiro, a conversa,ao, como atividade aut6noma, espedfica, destacada de outras atividades sociais, e apenas urn modo muito particular de uso da Iinguagem. Freqilentemente a Iinguagem esta inserida, encerrada no curso da a,ao, contribuindo para fazer avan,ar, e modificar, etc., mas nao desalojada (e desalojavel) dos gestos, dos movimentos, dos deslocamentos, etc. Pode ser urn "auxiliar e urn marcador da a,ao", isto e, urn meio de chamar a aten,ao sobre 0 que ha de pertinente no que acontece (Bruner, 1991: 72). E nunca surge a pergunta sobre 0 que seria a a,ao mais pratica (a do boxeador, do operario, do salineiro) sem essa pontua,ao Iinguageira. Neste sentido, a Iinguagem e freqilentemente urn elemento constitutivo das praticas ou da a,ao que nao existiria sem ela. Ela nao se opoe a a¢o, mas e urn de seus motores. Para tomar urn exemplo de Basil Bernstein, "a Iinguagern dos membros de uma unidade de combate em manobra", que se caracteriza por "escolhas sintaticas e lexicais dadas" (1975: 192) e indissociavel da pr6pria mahobra, que 56 pode desenvolver-se, ser organizada, atraves desse tipo de Iinguagem. A pratica social chamada "manobra" e tramada pelas praticas de Iinguagem espedficas feitas de gestos, de gritos, de enunciados com sintaxe e com vocabulilrio determinados (pode-se, por exemplo, realizar uma manobra atraves das formas espedficas da Iinguagem poetical. Ao reduzir a Iinguagem a sua fun,ao de "comentario" ou de "relat6rio" da a,ao, acaba-se venda a Iinguagem apenas como in, out ou off. Encontra-se em Erving Goffman duas tendencias contradit6rias. Uma leva a absolutizar urn modo de utiliza¢o da Iinguagem ("Em surna, falar e dar conta de urn acontecimento passado, presente, condicional, futuro" , Goffman, 1991: 497; "0 que gostaria de fazer compreender, em suma, e que falar nao e dar uma informa¢o a urn destinatilrio, e apresentar urn drama diante de urn publico", ibid.: 499). A outra leva a lembrar que os quadros de atividade nos quais a Iinguagem se insere nao sao sempre conversacionais ("Observar-se-a igualmente que 0 mundo material pode fazer mais do que breves incursoes no mundo falado. E bastante corrente, com efeito, que a pr6pria estrutura do contato social poe em jogo antes movimentos materiais que verbais (ou gestuais). As palavras pronunciadas, portanto, ajustam-se numa sequencia cuja configura,ao e estranha a palavra. Urn born exemplo e 0 das rela,oes comerciais sem cerim6nia. 0 ciiente que se aproxirna de uma vendedora e coloca mercadoria sobre 0 balcaa realiza alga que pode ser interpretada como 0 primeiro movimenta de pagamento, pois e esse mesmo fata de calocar que provocara uma segunda fase da a,ao, a saber, a abriga¢o de a vendedora pesar, tirar a nata e embalar", Goffman, 1987: 45). Aa contrario do modele canversacional, que visa apenas intercambios Iinguageiros, a interven¢o verbal pode seguir-se a urn gesta ou uma a¢o. Pade tarnbem desencadear respostas nao verbais. Os psic6lagas que estudam a entrada na Iinguagem mostram bern a papel importante da Iinguagem em rela,ao a a¢o na desenvolvimenta da crian,a, inclusive na incorpara¢o de habilidades sens6ria-motaras. Ea casa, por exempla, das .-
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maes que, durante os jogos com 0 filho, servem-se da linguagem para "restabelecer a aten<;ao conjunta" (Bruner, 1991: 179). As mesmas maes marcam simbolicamente as diferentes etapas da a<;ao em curso e contribuem assim para dar forma material e simb6lica a a<;ao. 0 fato de uma a<;ao ser nomeada pelo adulto ou 0 "fim" de uma a<;ao (quando a crian<;a puxa, empurra, pega ... ) ser pontuada por urn som onomatopaico indicando a crian<;a exatamente 0 fim (e 0 sucesso) de sua a<;ao equivale a uma divisao feita pelo adulto, criando a descontinuidade no encadeamento continuo permanente dos gestos e dos movimentos. Ve-se perfeitamente bern que em tais casas a linguagem nao esta obrigatoriamente presente diretamente na a<;ao, mas que marca a sua presen<;a nas categorizac;6es implicitas
que 0 adulto, ao fomecer urn apoio, indica a crian<;a definindo inicio e fim da a<;ao (come<;ar a puxar - terminar de puxar; come<;ar a empurrar - acabar de empurrar; come<;ar a ficar em pe - terminar de ficar em pe, etc.). De maneira geral, antes mesmo de poder falar, a crian<;a esta colocada em esquemas de intera<;ao com 0 adulto, gUiados por este, e que sao indissociaveis de intera<;6es verbais ciassicas (pergunta/resposta, proposta/contraproposta, proposi.,ao/confirma.,ao ... ). Existe, pOis, uma analogia entre tipos de intera<;6es nao verbais ("formatos" de trocas, como sao as vezes chamados em psicologia; Garvey, 1974), mas estruturadas pelos adultos mediad ores que jil sao sujeitos falantes e que percebem 0 mundo - objetos, a<;6es ... - atraves das categorias de sua lingua, e pelos tipos de intera<;6es verbais que a crian<;a vai progressivamente integrar gra<;as aos adultos. Esses tutores pontuam as a<;6es das crian<;as com interven<;6es de linguagem e assim dao a elas urn meio de capta-Ia (Bruner, 1991). Ademais, parece que ao nomear - e fazer a crian<;a que sabe falar dizer 0 nome - as a<;6es, as series de gestos ou os "formatos" da atividade ("e 0 jogo de ... "), e facilitada a sua memoriza.,ao e sua repeti<;ao futura (sei fazer "isto" e "isso", reconhec;o e sei reproduzir urn "Ia<;o", urn "circulo". urn "quadrado", etc.).
Portanto, as capacidades de designa.,ao permit em, em certos casos, contribuir para fixar habitos. De fato, ao fomecer aos filhos uma linguagem adaptada a atividade, os adultos fomecem meios praticos (estenograficos e portaveis, incorporaveis) que 0 ajudam a organizar e estruturar sua atividade no futuro" Mas a linguagem tambem pode intervir no modo da recapitula.,ao, do com entaria au do registro-autentificac;a o7, ap6s urn acontecimento all uma ac;ao, au no
modo da delibera<;ao ou do planejamento tendo em vista uma a<;ao a realizar. Como vimos a proposito da escola, pode mesmo chegar, as vezes, ate a formali-
6. "Minha intui~o eque ter palavras para dizer a que se faz facilita a execuylo ulterior. Ao chamar a atem;ao das crian~as de
forma reiterada para pontos de obseJva~ao particulares, mandando que elas mesmas as nomeiem, eu poderia ajuda-las a construir urn protocolo ordenado que acompanha e depois guia a ordem dos gestos a fazer ulterionnente. munindo-se de urna especie de linguagem interior. Meu desejo e que, diante de uma nova tarefa, a crian~a esteja progressivamente melhor armada para enxergar uma fonna complexa, para reconhecer imediatamente fonnas simples que saiba refazer, sabendo por onde comec;ar para combina-las na ordem certa e chegar a forma complexa" (Chartier & Janssens, 1996: 17). 7. Cf. 0 caso do funcionamento dos selVi~os hospitalares ou do uso de livros "registrando 0 estado de cada doente e os cuidados que receberam" (Lacoste, 1994).
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zar ou teorizar as prilticas. Como imaginar que 0 pensamento racional possa tomar forma, constituir-se fora de instrumentos de linguagem (orais, escritos ou graficos)? Sem escrita, sem colocar em lista oU em tabela, sem procedimentos graficos de contagem, sem simbolos algebricos, diagramas, esquemas, mapas ou pIanos de todo tipo, 0 pensamento racional- em sua forma filos6fica, gramatical, 16gica ou cientifica - nao existiria (Goody, 1979 e 1994; Lahire, 1993a). UNGUAGEM E FORMAS DE VIDA SOCIAL
e urn instrumento inuentado posteriormente com vistas a fixar e comunicar aos musicos 0 que Urn deles imaginou espontaneamente. Ao contra rio, e essa linguagem que criou a muska. Sem eta nao haueria sociedade de musicos, assim como sem leis noo haueria cidade, nao haueria cidaddos (Maurice Halbwachs. A memoria coletiua).
A linguagem musical nao
Os homens ja estarem uivendo numa certa interdependencia social (devido d linguagem, uma condi~ao previa indispensavel) {Karl Marx. 0 capital, Livro segundo}.
Estando a linguagem presente no seio de toda priltica, de toda forma de vida social (tanto nas praticas econ6micas como nas praticas educativas, religiosas au
esportivas), nao faz nenhum sentido tomar a linguagem como objeto particular de investiga~ao sociol6gica (Lahire, 1990). Os que tentam isto, caem numa cilada te6rica ou na redu¢o da questao. A cilada consiste em autonomizar a linguagem (ou 0 discurso) ever apenas sign os, trocas significantes, linguagens na moda, do espa<;o, da arquitetura, do consumo, etc., no contexto de uma semioiogia genera-
lizada8 . A redu~o
e feita pelos que contestam a semiologia e 0
estruturalismo -
por sua ausencia em levar em conta as condi<;6es sociais de uso da linguagem - ao
mesmo tempo em que aceitam tacitamente a oposi~ao linguagem/sociedade, discursivo/social. Trata-se de uma abordagem sOciolingiiistica, variacionista, que estuda a linguagem como urn (sub) sistema relativamente aut6nomo (de um ponto de vista fonetico, lexical, sintatico, estilistico ... ) no qual entram em jogo, ao se traduzirem, diferen~as sociais, interesses sociais, etc. Eo esta posi~ao que foi muito exatamente formalizada e teorizada em sociologia por Pierre Bourdieu: "Uma sociologia estrutural da lingua, criada por Saussure mas construida contra a abstra~ao que ele faz, deve ter por objeto a re/a(Qo que une sistemas estruturados de diferen(as /ingiifsticas sOci%gicamente pertinentes e sistemas igua/mente
8. Todos as fotmalismos (gramaticais, lingGisticos au semiol6gicos) abstraem (no sentido de extrair) diferentes tipas de praticas de linguagem dos €iementos para reconstitui·]os, recomp6-los em sistemas (generos linguageiros possibilitados grac;as as praticas escriturais e graficas).
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estruturados de diferenc;as socia is" (1982a: 41)9 Quer sejam concebidas como ordens para estudar separadamente (concep~ao saussuriana da lingua) au como ordens separadas cujas rela~oes se pode estudar (concep~ao sociolingiiistica), a ordem social e a ordem lingUistica sao consideradas como duas realidades distin-
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tas e relativamente autonomas. As praticas de linguagem miD sao excedentes, acrescimos, reflexos, superes-
truturas, ilustra~oes marginais, praticas segundas e secundarias em rela~o as realidades, as quais seriam objetivas. Elas nao vern completar a materialidade de uma infra-estrutura ou cimentar os fundamentos, 0 em-si, 0 objetivo, 0 material, 0 real que ja esta la, e e preciso esfor~ar-se para evitar todas as metMoras que participam desta concep~o do simb6lico "volatil" que vern juntar-se ao "s6lido". Nao e urn simples veu colocado sobre 0 mundo "real", que 0 determinaria. Portanto, em vez de fazer uma divisao clara entre 0 discursivo e 0 nao discursi-
vo, entre 0 lingUistico e 0 social, e assim por diante, e preferivel considerar que nenhuma pratica, nenhuma a~o, nenhuma forma de vida social existe fora das praticas linguageiras (ou discursivas, como quiser), que tomam fonnas variadas (de interjei~ao ao tratado cientlfico, passando pelas conversas mais ou menos informais, pelas cronicas, pelos contratos, pelos textos das leis, pelos certificados, pelos livras de contas, pelos generos literarios, pelas f6rmulas matematicas, pelas conferencias, pelas disserta~oes, pelos panfletos sindicais, pelas trocas epistolares, pelos exercicios escolares) cujas fun~oes sociais sao multiplas. Poder-se-ia dizer, ao contrario, dirigindo-se mais aos lingUistas que aos soci6logos, que nenhuma pratica linguageira ou discursiva e destacavel das formas de vida social das quais saiu. Algumas formas foucaultianas puderam aqui contribuir para obscurecer a questao. Ao falar de "campos de praticas nao discursivas" (Foucault, 1969: 90), para designar com isso institui<;6es, praticas e processos econ6micos e sociais, as
praticas pedag6gicas ou os acontecimentos politicos (ibid.: 212), podia levar a acreditar que essas "realidades" estavam fora de toda linguagem. Ora, parece evidente que tanto as processos econ6micos como as praticas pedag6gicas au as acontecimentos politicos nao ocorrem fora de praticas linguageiras (aqui as praticas de contabilidade, os contratos, as negocia~oes dos contratos, as tracas mercantis, as escrituras bancitrias, etc., Iii. as exercicios, as li<;6es, os manuais escalares, etc., e acoia os discursos politicos orais all escritos, os panfletos, as discuss6es
entre militantes, os debates publicos, os anuncios, etc.). Michel Foucault falava de praticas de linguagem particulares: as praticas discursivas (grandes discursos cientificos, filos6ficos, morais, politicos ... ) que se ap6iam, se articulam em campos de praticas, as quais ja estao tramadas pelas praticas linguageiras; discurso sobre praticas, as quais nao estao fora das praticas linguageiras (especie de metadiscursos).
9. Se 0 re1acionar sistematico de caraderisticas sociologicamente construidas (meio social, nivel de estudos, classe de idade, sexo, lugar de moradia ... ) e das caracteristicas lingGisticamente construidas (fonol6gicas, lexicais, sintaticas, estilisticas ... ) e uma maneira de questionar a autonomia da lingua, admite, todavia, tacitamente, a legitimidade da separayl,o entre lingua e sociedade, IingGistico e sociol6gico. Numa tal constn.u;ao dos fatos de linguagem, as situa~oes de enuncia~6es selVem apenas, como escrevia Goffman, "para banalizar, de alglUTIa maneira, a inters~ao geometrica entre atores que falam e atores que oferecem certos indices sociais particulares" (1988: 146).
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ATOIII
o MISrtRlO DO INTERIOR Certarnente, a linguagem nao e urn simples meio, urn instrumento anci/CXJO 00 martelo au d lima. Nao seroe apenas pam p6r em comunioo¢o ronsciencias antes constituidas separadamente. Ela tambem e constitutioo (Henri Lefebvre. Critique de 10 vie quotidienne Il Fondements d'une sociologie de 10 quotidiennete). GJstariamos de sugerir que a Jinguagem nao e urn instrumento ordinaria, mas urn instrumento que entm no propria constitui¢o do pensamento e das rela¢jes socia is. Pode-se uer que este ponto de vista opOe-se d imagem piagetiana da linguagem como sistema "preguit;oso", que apenas re/atoria 0 pensamento e do qual serio apenos uma especie de "sintomatologia" (Jeronimo S. Bruner. Le Deue/oppement de I'en/ant - Sauoire loire, sauoir dire),
Se nao se quiser abandonar toda intenc;ao de explicar cientificamente as prilticas humanas, e preciso afastar a ideia segundo a qual 0 "pensamento", 0 "psiquismo", a "atividade mental" ou a "consciencia" possuiriam uma especie de anterioridade em rela~ao as suas "expressiies" ou suas "manifesta~iies". Dizer que a atividade de linguagem (sob todas as suas f"rmas) e apenas a "expressao" de alguma coisa que ja esta formada na consciencia fora de qualquer instrumento linguageiro, "expressao" que seria uma especie de "publiciza~ao" de uma atividade "interior", "privada", "intima", seria afinnarque the tail wags the dog. De fato, a consciencia interior s6 adquire fonna porque e a consciencia de um ser em relac;ao e, por conseguinte, de urn ser que faz a experiencia de atividades linguageiras multiplas. 0 carater discursivo e social do pensamento rno Ihe vem num segundo tempo. "A concepc;ao 'cartesiana' (no sentido chomskyano do termo) da facilmente a impressao que pensamos de uma certa maneira fora da linguagem e que utilizamos a linguagem como uma especie de c6digo mais ou menos arbitrilrio para exteriorizar 0 que pensamos. Eesquecer que a linguagem na qual nos comunicamos e tamblm1 a Iinguagem na qual pensamos, que em certa medida pensamos em palavras, e freqiientemente nas mesmas palavras de que nos servimos para comunicar nossos pensamentos" (Bouveresse, 1987: 68). A incorpora~ao de habitos (ou esquemas de a~ao), que nos permitem agir em contextos sociais variados, nao se realiza sem "instrumento psicol6gico" (Vygotsky). Unguagem falada ou gestual, escrita, simbolos matemilticos, procedimentos graficos diversos Oistas, tabelas, diagramas, mapas, pIanos ... ) - e atraves dessas ferramentas apropriadas, utilizadas, manipuladas, que construimos nossas "faculdades intelectuais". 0 la~o que Emile Benveniste estabelece entre a "forma lingiiistica" eo "pensamento" (sendo a primeira "nao somente a condic;ao de transmissibilidade, mas sobretudo a condic;ao de realizac;ao" [Benveniste, 1982: 64) do segundo) deve ser pensado de maneira mais geral entre todos os procedimentos linguageiros orais, gestuais, escritos, graficos, iconicos ... ) e a atividade de pensamento. Assim, com Mikhail Bakhtine, se pode colocar de maneira radical que, fora de sua construc;ao num materiallinguageiro (quer se trate de urn grito, de urn gesto, da palavra, da escrita, da representac;ao grafica, etc.), "a consciencia e uma ficc;ao" (Bakhtine, 1977: 129).
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CENA2
o que se incorpora? OS PROCESSOS DE INCORPORA<;AO-INTERIORIZA<;:AO-INTERNAUZA<;:AO
Uma teoria da a~ao ficaria incompleta se nao fosse acompanhada por uma analise da forma~ao, da constitui~ao dos esquemas de a<;:ao. Ora, os pesquisadores que falam a linguagem da "interiOriza~ao·da exterioridade" (ou da "incorpora~ao das estruturas objetivas") e da "exterioriza~ao da interioridade"l, de fato nunca deram corpo (pela descri~ao antropol6gica e pela analise te6rica) a esta dialetica que hoje desempenha mais um papel ret6rico na economia conceitual das teorias do social e estrategica na oposi~ao a outras teorias do social do que um verdadeiro papel te6rico que visa construir objetos cientlficos'. Se os soci610gos se mostrassem especialmente incapazes de compreender como se constroem, atra-
ves das experiencias sociais, os multiplos generos de "disposi~ao", de "esquema", etc. (de" habitus"), entao estes termos perderiam todo 0 interesse heuristico e tornar-se-iam urn asylum ignorantiaea mais na historia dos conceitos sociol6gicos. A sociologia da educa~ao e da cultura - pelo menos aquela que nao esta fechada nos limites da institui~ao escolar ou das institui~6es das obras ditas "culturais" -, que se interessa pelos diferentes modos de sOcializa¢o, pelos diferentes modos de transmissao ou de constru¢o da cultura, deveria poder contribuir para esclarecer esses processos de constru¢o social das estruturas do comportamento e do pensamento. Contudo, por muito tempo se contentou em fazer da educa~ao (familiar ou escolar) urn simples meio de reprodu¢o social, sem descrever sua ordem propria, seus processos especificos. Sabe-se que pela socializa¢o familiar, escolar, etc., se reproduz a ordem (desigual) das coisas, mas sao raras as descri1. De Peter Berger & Thomas Luckmann{TheSociaf Construction of Reality; A Treatise in the Sociofogy oJ Know/edge, Nova York, Doubleday, 1966 (tradllZido com 0 titulo A constru~ao social do realidode) a Pierre Bourdieu (1980a).
2. Encontra-se uma contribui~ao interessante para 0 estuda do primeiro tempo ern Peter E.S. Freund (1988).
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ATom ~6es das proprias praticas socializadoras, das modalidades efetivas das formas variadas de socializa~ao3. "De certo ponto de vista, como escreve Basil Bernstein, •habitus' e mais urn conceito que requer uma Iinguagem para sua pr6pria descri~ao e sua propria constru~ao que urn modelo estrutural. E definido mais por seu funcionamento e suas fun~6es que pelas especificidades que tomam possivel tal ou tal habitus; nao temos nenhuma regra relativa a sua forma~o em casos particulares, contentamo-nos em retra~r realiza~6es de habitus de classe - que sao historieamente contingentes. Tudo 0 que se refere aos processos subjacentes as diferentes modalidades da transmissao dos habitus de alguma maneira passou em silencio. Assim 0 habitus e uma teoria do sujeito especializado a qual falta uma teoria capaz de especificar sua propria constru~o". E Bernstein conclui que, se as teorias da reprodu~ao e da resistencia nao fomecem descri~6es dos processos de constitui~ao dos habitus, e simplesmente porque essas teorias e essas aproxima~6es nao se interessam realmente por este genero de descri~o. Elas se propoem apenas a compreender como as rela~oes de poder externas sao veieuladas pelo sistema; elas nao se interessam pela descri~o do suporte, mas somente pelo diagnostico da patologia deste ultimo" (Bernstein, 1992: 23).
Antes de passar para as tarefas necessarias de descri~ao das modalidades da em suas formas mais variadas, ainda se pode come~ar perguntando como e possive! interiorizar, ou incorporar uma "estrutura social" sob a forma de "estruturas mentais". Dizer que "as 'estruturas sociais sao incorporadas" e uma metMora que rapidamente pode mostrar-se embara~osa ao se estudar os processos de constru~ao dos esquemas de a~ao (esquemas sensorio-motores, esquemas de percep~o, de avalia~o, de aprecia~o, etc.) (Lahire, 1995a: 285-289). A crian~a, 0 adolescente e, depois, 0 adulto nao incorporam, propriamente falando, "estruturas sociais", mas habitos corporais, cognitivos, avaliadores, apreciativos, etc., isto e, esquemas de a<;ao, maneiras de fazer, de pensar, de sentir e de dizer adaptadas (e as vezes Iimitadas) a contextos sociais especifieos. Interiorizam modos de a~o, de intera~ao, de rea~o, de aprecia~ao, de orienta~o, de percep~ao, de categoriza~ao, etc., entrando pouco a pouco nas relaC;6es sociais de interdependencia com outros atores ou entretendo, pela media~ao de outros atores, rela~oes com multiplos objetos, cujo modo ou modos de uso, modo ou modos de apropria~ao, aprendem. Por exernpio, J. Wertsch (1979) rnostra como as ctian~as entre 2 e 5 anos socializa~ao
aprendem, na interac;ao com sua mae, a fonnar, a regular e a consolidar os seus ht>bitos no caso da constru~ao de urn quebra-cabe~. Antes de tudo, a crianc;a cleve compreender que as informac;6es fornecidas por sua mae referem-se as imagens representadas nas pec;as do quebra-cabec;a e nao no amhiente exterior (por exemplo, inicialmente a crianc;a pensa que sua mae evoca a janela da sala oode estao quando fala da janela representada no quebra-cabec;a). Deve de alguma maneira reconhecer
0
born "jogo de Iin-
guagem" (no sentido de Wittgenstein) ou 0 born quadro de atividade: "fazer urn quebra-cabec;a". Depois se toma capaz de realizar as ordens de a¢o
3. Sobre as modalidades da .-~~
socializa~ao
escolar na escola elementar d. B. Lahtre, 1993a.
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1 ,------------------- HOMEMPLURAL ----------------------explicitamente formuladas por sua mae, mas ainda nao aquelas que estao implicitas, 0 que suporia que saiba interpretar alem das palavras, porque dominaria a estrategia do conjunto de realiza<;ao do quebra-cabe<;a. Enfim, a crian<;a assume progressivamente "a responsabilidade estrategica da tarefa" e passa para a linguagem egocentrica (que consiste em dirigir a si mesrna as perguntas que sua mae ate entao Ihe fazia para ajudar a compor 0 quebra-cabec;a), e sua mae nao precisa rnais intervir verbalmente para confinnar a pertinencia das escolhas, sustentar 0 esforc;:o empreendido, etc., consolidando assim, definitivamente, as habitos doravante incorporados. Eis urn exemplo de interiorizac;ao au de incorporac;:ao que faz muito bern aparecer a passagem do interpsiquico para 0 intrapsiquico como interiorizaC;ao por parte da crianc;a de uma definic;ao do quadro da aC;ao (Umontar urn quebra-cabec;a"), de maneiras de proceder para chegar ao resultado desejado, das (boas) perguntas a fazer para ter exito na tarefa, etc. Ajudada pelo adulto, a crianc;a interioriza as perguntas, os gestos, os procedimentos estrategicos que emprega para, afinal de contas, chegar a fazer sozinha {de maneira autonoma} 0 que ate entao realizava sob tutela. 0 adulto ajusta e canaliza a tarefa, mostra, chama a atenc;ao da crianc;a, faz perguntas, reduz o seu campo de liberdade, explica-lhe a tarefa au a define pouco a pouco, ponto a ponto, ap6ia a crianc;a ou a anima quando falha, orienta-a quando se perde, anima e gratifiea quando tern exito (Ver tambem Bruner, 1991). Por sua vez, a crianc;a mantem seu esforc;o na perspectiva das gratificac;6es - sanc;6es positivas - que pode obter de seu ambiente. 0 desejo de logo fazer sozinho, "como urn grande", 0 que por enquanto e inacessivel, a identificaC;ao com uma imagem (positiva) futura de si mesma ("ver-se ai") tambern sao motores nao negiigenciilVeis do trabalho de constru<;iio dos hflbitos (Delbos & Jorion, 1984, 129), 0 que e incorporado ou interiorizado nao existe como tal no mundo sodal "exterior", mas reconstroi-se poueo a pouco, para cada ser singular, nas interac;6es repetidas que tern com outros atores, atraves de objetos e em situac;6es sociais particulares. A crianc;a nao interioriza, na ocorrencia, 0 "mundo social" ou as "estruturas objetivas do mundo social", mas esquemas de ac;a,o (esquemas de percepc;ao e de categOrizac;ao, habilidades sens6rlo-motrlzes, esquemas estrategicos ... ) permitindo que "se silva" de urn quebra-cabec;a au resolva urn problema (como montar urn quebra-cabe<;a), Acontece 0 mesmo com a reconstruc;ao, por parte da crianc;a, do gosto pela leitura. 0 que a crianc;a gosta de fazer sozinha, 0 que sabe fazer sozinha e apenas a interiorizac;a,o de atividades antetiores guiadas ou feitas por adultos. Por exemplo, desde que Marlon, 8 anos, era bern pequena, seus pais (analista de programac;a,o e funcionaria da seguridade social) Ieem para ela hlst6rlas nao sornente de noite, mas, 0 que e menos comum, tambem de manha, na hora do cafe. Realmente, como Marion nao quisesse comer de manha, criou-se 0 costume de ler hist6rias para anima-Ia. Tendo interiorizaclo esses momentos de leitura feita pe10s paiS, Marion Ie agora sozinha cada noite (vinte a vinte e cinco minutos) e cada manha, na hora do cafe (Lahire, 1994d, 72-89),
Depois, a ideia de uma "inscri"ao das estruturas socia is nos cerebros" oculta os processos pelos quais nao as "estruturas sociais", mas as rela<;oes com 0 mun-
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do social e os outros, maneiras de agir em situa<;oes particulares, com os outros e com os objetos, sao progressivamente incorporados. Esta impressao e refor<;ada pelas metaforas da "transmissao" cultural (da "transmissao do capital cultural") ou da "heran<;a cultural" (da "heran<;a do capital cultural"), que sao poderosos obstaculos para a apreensao desses fenomenos da incorpora¢o. Para tomar consciencia disto, basta comparar sistematicamente a "transmissao material" (a heran<;a material) com a "transmissao cultural" (a heran<;a imaterial). 1) ''Transmitir'' um patrimonio material para alguem e dar-lhe uma coisa que ate entao e que, assim, passa de urn proprietario a outro. Ora, 0 que essa "transmissao" tem de tao magica quando e cultural para que, estando a "transmissao" acabada, 0 proprietario inicial esteja sempre em posse do que "transmitiu"? Ao contrario de todas as formas de patrimonio material, que sao estoques finitos de unidades materiais que sao repartidas entre diferentes proprietarios, mas nao podem ser repartidas entre todo mundo ao mesmo tempo, 0 patrimonio cultural, em sua forma incorporada, tem de original 0 fato de poder ser "transmitido" de um proprietario a outr~ sem que 0 primeiro seja obrigado a se desfazer de uma parte de seu estoque de esquemas incorporados. Dar ao outro e enriquece-lo sem se empobrecer. Se hi! "ricos" e "pobres" culturalmente (ninguem "sabe" tudo nem sabe fazer tudo), a economia da "transmissao cultural" nao conhece empobrecimento, nem perda, nem dilapida<;ao. se possuia
2) Na transmissao de um patrirrionio material, este ultimo permanece imutavel durante 0 processo de transmissao, bem como ap6s a transmissao ter sido feito. (por exemplo, um quadro de Degas ou um m6vel, deixando de lade 0 gasto material que sempre ocorre, e identico a si mesmo em qualquer momento do processo em que e considerado). Mais uma vez - singularidade da "transmissao cultural" -, a cultura nunca e "transmitida" de modo identico, mas deforma-se em fun<;ao das condi<;oes de sua transmissao e da rela¢o social que se instaura entre 0 que ja "sabe" eo que nao sabe. A cultura incorporada nao e "transvasada", mas apropriada e transformada (d. principalmente Singly, 1996). Quem incorpora disposic;bes sociais, habitos, maneiras de ver, de sentir, de agir, apropria-se dos gestos, dos raciocinios praticos ou teortcos, das maneiras de dizer ou de sentir, etc., em
fun¢o do que ja e, isto e, em fun¢o de seu estoque de hilbitos incorporados durante suas experiencias sociais anteriores. A metafora da "heran<;a cultural" (ou da "transmissao cultural") apaga as inevitaveis distor,oes, adapta,oes e reinterpreta,oes que 0 "capitalcultural" sofre durante a sua reconstru,iio de uma gera¢o a outra, de um adulto a outro adulto, etc., sob 0 efeito, por um lado, das diferen<;as entre os supostos "transmissores" e os pretensos "receptores" e, por outr~ lado, das condi<;oes (dos contextos) dessa reconstru¢o. As vezes os processos de "transmissao" podem estar ate confundidos por motivos diversos e assim impedir seu sucesso. Os portadores de uma cultura incorporada podem nao estar em situa<;ao de ajudar os outros a, por sua vez, construir certos elementos dessa cultura. Suas disposi<;6es nao estao a disposi¢o, estao indisponiveis. E0 caso de numerosas disposi<;oes culturais incorporadas por pessoas que nao podem sempre encontrar as condi<;oes de sua atualiza¢o no uni-
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verso familiar dado a sua absor~ao (em tempo e em investimento mental) pelo universo profissional. Etambem 0 caso das situa~oes familiares que, desta vez, tornaram a crian~a indisponivel ou nao disposta para entrar nesse processo de constru~ao (por exemplo, dificil exercicio da autoridade paterna, bloqueios "psicoI6gicos" ligados a experiencias traumilticas repetidas ou a interioriza~ao de uma rela~o infeliz em tal ou tal tipo de situa~ao, de priltica ou de conhecimento). 3) Urn patrimonio material pode ser "transmitido" num tempo relativamente curto (0 tempo da transferencia - que as vezes e imaterial - do doador ao benefid'rio). A "transmissao" cultural e, na maioria das vezes, questao de tempo, de repeti~ao, de exercicio, pois trata-se da instala~ao progressiva de habitos no corpo, sejam habitos mentais ou gestuais, sensoriais ou intelectuais. De acordo com esses habit os, 0 tempo sera curto ou longo. Sera curto - mas sem necessidade de repeti~o na crian~ - para os gestos simples da vida cotidiana (puxar, empurrar, equilibrar-se, pegar, apertar ... ). Mas, as vezes, muito longo para habitos complexos de raciocinio (matematica ou filosofia), habitos especializados de profissoes (tais como as de relojoeiro ou marceneiro) ou habitos morais (nao se improvisa de urn dia para 0 outro urn modesto, asceta ou leal). 4) Notavelmente diferente, mas ligada a anterior, e a transmissao de urn patrimonio material, que pode ser feita independente do sentimento que 0 beneficiario pode ter em rela~ao a ele, ao passo que a transmissao cultural deve apoiar-se na vontade ou desejo de construir habitos, vontade ou desejo que vern sobretudo apoiar, encorajar 0 esfor~o requerido, de modo particular quando a transmissao e feita no decorrer de varios meses ou de varios anos. Como diz urn criador de animais, citado por Denis Chevallier & Isaac Chiva, a prop6sito da aprendizagem do olicio de pastor: "0 desejo da montanha vern se a crian~ 0 recebeu em casa; e preciso que eles ou~am falar disso, que vejam como se faz. Entao, sim, terao vontade de ter belas vacas, belas ovelhas. A eles se diz: 'Na montanha elas ficarao bonitas, e e voce que vai cuidar delas'. Oeste jeito se conseguem pastores" (Chevallier & Chiva, 1991: 1). Mas tam bern se poderia lembrar 0 programa musical afetivo que Leopoldo Mozart, maestro auxiliar de orquestra em Salzburg, realizou para seu filho Wolfgang. A partir dos tres anos, este ultimo foi submetido a urn regime de trabalho rigoroso, a uma disciplina implacavel a base de exercicios regulares compostos pelo paL Bern cedo, a sua vida reduzir-se-a essencialmente a musica. Mas Wolfgang vai aderir ao severo programa que seu pai the imp6s porque seu pai soube tecer la~os afetivos muito fortes com ele, que 0 levaram perrnanentemente para a musica. Como escreve Norbert Elias, Wolfgang recebia "uma recompensa suplementarde amor por cada execu~o musical, e isso certamente foi benefico para 0 desenvolvimento da crian~a no sentido desejado pelo paj" (Elias, 1991b: 93). Se "todos os sinais do talento musical de seu filho eram fonte de alegria para 0 pai" (ibid.: 121), compreende-se que, precocemente, para Mozart, atrair a admira~ao, 0 amor ou a alegria de seu pai supunha tocar musica e progredir musicalmente. 5) A transmissao de urn patrimonio material e sempre consciente e quem 0 transmite ou lega sabe qual e 0 conteudo do legado ou do patrimonio transmitido.
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Igualmente, 0 legatario conhece muito exatamente 0 conteudo da heran~a. Em compensac;ao, grande parte da cultura e "transmitida" sem consciencia tanto dos "transmissores" ("doadores") como dos "receptores" ("herdeiros"). Se bern as situa~6es formais de ensino nao se realizem fora de tada "transmissao subterranea", elas privilegiam a transmissao explicita, pedag6gica, de conteudo de conhecimentos objetivados. Mas todas as situa~6es de "transmissao cultural" nao se parecem com este modelo da transmissao formal e explicita, de conhecimentos tambern explicitos. Em algumas delas, a crian~a (ou 0 adulto) e levado a construir habitos, disposi~6es, conhecimentos e tecnologia em contextos socialmente organizados, sem que tenha havido verdadeiramente "transmissao" expressa (voluntaria, intencional) de urn conhecimento. Assim, em varias situa~6es de aprendizagem nao formal de profiss6es,
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e "transmitido" nao e urn "saber", mas urn "trabalho" ou "uma experiencia", como bern mostrou Genevieve & Paul Jorion no caso dos salineiros: "Mas 0 que a crian~a ve? Seu pai e sua mae trabalhando na marina. Ve as pessoas no trabalho, nao ve 0 "saber" ou as "conhecimentos", estes sao au comunicados, au abstratos, e neste ultimo caso por urn trabalho especifico" (Delbos & Jorion, 1984: 128). Ea mesma invisibilidade dos "conhecimentos" na apropria~ao de postos de trabalho por operarios pouco qualificados de uma empresa de fabrica~ao e de montagem de aparelhos de refrigera~ao (Lahire, 1993f e 1993b: 33-56). Escutando os operarios falar da maneira como entraram "brutalmente", sem preparac;ao nenhuma, em seu posto de trabalho, poder-se-ia crer que nao se requer nenhuma competencia tecnica, mas que se trata sobretudo de ter (ou de nao ter) uma disposi~ao pragmatica (saber "dar um jeito" ou "se vimr"). Quando os conhecimentos e a tecnoiogia nao sao objetivados, mas, ao contrario, indissociiweis dos homens (dos corpos) que os realizam, a aprendizagem so pode ser feita de uma forma mimetica (ver fazer/fazer como) e numa relac;ao interpessoal. 0 importante e estar naquilo que se faz e nao "estar com a cabe~a noutro lugar". Entao nenhum conhecimento aparece como tal e os proprios operarios consideram que 0 seu trabalho "naD
e complicado".
A analise feita sobre as situa~6es de trabalho pode ser reiterada a proposito de muitas situa~6es de socializac;ao (principalmente familiares) onde 0 que as crian~s reencontram nao sao conteudos de saber a se apropriar, mas formas de atividade, habitos gestuais ou Iinguageiros, etc. Eclaro que a crian~ constroi suas "estruturas cognitivas" atraves de sua inserc;ao nessas muitas formas de vida social (e de jogos de Iinguagem), mas nao entra nessas praticas para "aprender", "acumular saber" ou "construir conhecimentos ou tecnologia". Ademais, disposi~6es (morais ou culturais) "indesejaveis" podem sempre ser constituidas pelas crian~as, dado 0 lugar que ocupam na configura~ao das rela~6es de interdependencia familiares, sem que ninguem 0 tenha querido nem mesmo desejado. Angustias, complexos, desencorajamentos ou inibi~6es ante certas situa~6es, desestima de si, bloqueios mentais e sensorio-motores, rela~6es ansiosas para com certas tarefas, etc. - tudo isso pode ser "transmitido" e confundir ou tomar dificeis outras constru~6es mentais e corporais.
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A metafora da "interioriza<;iio-incorpora~ao de estruturas sociais'" e tao pouco pertinente como aquela que consiste em dizer que a crian~a aprende a sua "lingua". Exceto em situa<;ao escolar em que a crian<;a esta bern coloeada, como vimos, diante de uma "lingua" (urn lexico, regras ortograiicas, gramatieais, estilistieas ... ), a crian<;a que aprende a falar incorpora nao uma "lingua", urn "c6digo" ou uma "estrutura IingUistica", mas esquemas de intera<;oes verbais, tipos de troeas verbais e modes de uso da linguagem. 5 Para falar como Wittgenstein, poder-se-ia dizer que ai se tern tipicamente urn caso de patologia de Iinguagem. Se essas tais "estruturas objetivas" au "estruturas sociais" sao construc;6es cientificas da realidade fundamentadas, no mais das vezes, em dados estatisticos (sao "cientificamente apreendidas como probabilidades" [Bourdieu, 1987: 128] e sao construidas pelas ciencias sociais "atravils de regularidades estatistieas, como probabilidades objetivamente Iigadas a urn grupo oU a uma dasse" [Bourdieu, 1980a: 90]), nao se ve bern como os atores poderiam incorporar essas "estruturas objetivas" e como elas poderiam entao se re-produzir, se converter, se transfigurar em "estruturas mentais" ou "cognitivas" (reconstruidas a partir da observa<;ao direta ou indireta de praticas). "Estruturas objetivas" e "estruturas mentais" nao sao duas realidades diferentes, sendo uma (as "estruturas mentais") produto da intemaliza<;ao da outra (as estruturas objetivas), mas duas apreensoes de uma mesrna realidade social. Descartes jii precavia contra 0 erro que consiste em tomar uma distin<;ao fonnal entre dois atributos da mesma substancia ou entre uma substancia e seus atributos como uma distin<;ao real entre duas substancias, e Nietzsche lembrava que, dado que 0 darao e apenas uma manifesta<;ao do relampago, geralmente se pensa que 0 raio e os daroes sao dois fenomenos diferentes e que 0 primeiro e a causa do outro"- Assim freqlientemente se observa em sociologia uma- tendencia "nao a tazer de umas coisas uma, mas de uma caisa, duas" (Rosset, 1995: 37-38). A INCORPORAGAO POLIMORFA DA CULTURA ESCRITA NO UNIVERSO FAMILIAR Comecel a minha vida como sem duuida terminarei - no meio dos liuros. No escritorio do meu aoo, estouam por toda parte; era proibido tirar 0 pO deles
4. Prova da imprecisao dessas noc;:6es, que se explica em grande parte pela atem;ao muito secundlllia que se prestou ate entao a estes termos nos modelos sociol6gicos, e que se podem intemalizar, segundo os casos, "significa~Oes",
mas de
os "prindpios" de urn arbitrario cultural", "estruturas sociais", "papeis" e "atitudes", "esquee de motiva~ao", etc.
interpreta~ao
5. Michael Cole lembra as resultados de certos estudos que mostram que crian~as que por muito tempo foram deixadas sozinhas diante de programas televisivos em lingua estrangeira noaa conseguem adquirir essa lingua. ECole condUi: "A partir deste genera de dados parece inevitAvei conduir que, para que as crian~as adquiram mais que as simples rudimentos da linguagem, devem nao apenas ouvir (au ver) a linguagem, mas tambem participarde atividades que essa linguagern ajuda a criar. (...) Notem que nlio estou dizendo que as adultos devern deliberadamente ensinar a linguagem; devern antes pennitir que as crian~as participem de atividades culturalmente organizadas e mediatizadas pela linguagem" (1996: 203). 6. "0 povo divide a a~ao em duas; primeiro pensa que 0 mesmo fenomeno e uma causa e, em seguida, que e 0 efeito dessa causa" (Nietzsche, 1981: 103).
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ATom salvo uma vez no ana, antes de outubro come~ar. Eu ainde ndo sabia ler e ja os reverenciava, essas pedras erguidas, em pe ou inclinodas, opertadas como tijofos nos prateieiras da blbfioteco ou nobremente espa~adas em alamedas de men ires, sentia que a prosperidade de nossa familia dependia deles
(Jean-Paul Sartre. Les Mots). Noo, eu nao estaua doente da cobe~a, mas ate d idade dos seis onos nao me fai mais permitido entrer numa c1asse. nem abrir urn livro, por medo de urna explosdo cerebral (Marcel Pagnol. La Gloire de mon pere).
Os estudos, urn sofrimento obrigatorio para conseguir uma boa situQ'ido e nao cosar com urn opera rio. Mas ele julgaua suspeito que eu gostasse de quebrar a cabe~a. Uma ausencia de vida no flor da idade. As uezes efe daua a impressao de pensar que eu era in/eliz. [... J Ele dizia que eu aprendia bern, nunca que eu trabalhava bern. Trabalhar era apenas trabalhar com suas moos (Annie &naux. La Place).
Certas particularidades da "transmissao cultural" podem ser observadas nos casos das diferentes fonnas de apropriac;ao por parte da crian<;a, no universe familiar, de uma cultura multifonne do escrito Oido ou produzido}. Por ocasiao de duas pesquisas feitas com familias socialmente diferenciadas (economica e culturalmente), uma (Lahire, 1995d) era com crian<;as escolarizadas em CE2 (15 crian<;as de 8 a 10 anos) e a outra (Lahire, 1995e) com crian<;as escolarizadas em CM2 (15 crian<;as com 10 ell anos). Nelas tentamos captar as modalidades das rela<;oes intergeracionais suscitadas pelo escrito (escrita e leitura). A questao era reconstruir os contextos de uso, as fun<;oes e as representa<;oes da escrita no seio de familias socialmente diferenciadas. As constru<;oes mentais e corporais das crian<;as relativas a escrita dentro do universe familiar concemente tanto aos gostos e desgostos, papeis sociais, fun<;oes sociais Iigadas as diversas praticas de escrita e de leitura (por exemplo, fun<;oes esteticas, documentais, praticas ... da atividade de leitura ou fun<;oes mnemonicas, calculadoras, planificadoras, verificadoras, identitarias, ludicas ... das praticas da escrita) como normas contextuais diversas (por exemplo, aprender a utiliZar um borrao ou corrigir suas faltas de ortografia em correspondencia num mercado Iingtiistico particularmente tenso .. .}. No tocante as fun<;oes e as representa<;oes sociais Iigadas as diversas praticas do escrito, nota-se que as crian<;as podem interiorizar desde bern cedo - mesmo antes e fora de todo ate de escrita ou de leitura - as "razoes" ou os "contextos" de recurso a escrita. Por exemplo, Audrey (11 anos, pai motorista, mae auxiliar de pediatria) mostra que compreendeu bern a func;ao verificadora da Iista das coisas a se levarem nas ferias. Igualmente Salima (11 anos, pai pedreiro, mae sem profis-
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sao) e particulannente capaz de explicitar os diferentes motivos de recorrer a escrita domestica. Observa que os lembretes escritos sao uteis quando se sai do ambito das coisas habituais e ja nao e mais evidente se lembrar das coisas. Ela opoe as datas para se lembrar sem esfor~o particular gra~as a sua memoria comum, incorporada, aquelas que exigem 0 recurso a um apoio objetivado. Explica tambem muito claramente como a lista de coisas a fazer para a escola, pennitem que ela saiba onde esta, contrale seu tempo, precise a situa~ao, tenha 0 sentimento da progressao (envolvendo 0 que fez) e, eventualmente, diferencie 0 que tem a fazer. Tambem Pedro AntOnio (8 anos, pai medico anes!esista e mae medica oftalmologista) que durante quinze dias teve uma agenda para marcar de maneira bastante detalhada tudo 0 que tinha que fazer cada dia, ou Akim (10 anos, pai caminhoneiro e mae sem profissao) que aprende a anotar num cademo as datas de suas partidas de futebol. No tocante a leitura, Marion (8 anos, pai analista programador e mae funcionaria da seguridade social) ou Clementina (8 anos, pai engenheiro e mae professora de letras classicas), entre outras, ouvem os pais falar de seus livros e descobrem assim esta modalidade particular de rela~o com os livros, que constitui a leitura-comentario, a leitura henneneutica que se presta a discussao e convida a partilhar opinioes. Resulta dessas duas pesquisas que as crian~as entram familiannente na escrita de diferentes maneiras, que so produzem seus efeitos de socializa~ao quando estao combinadas entre si. Pode tratar-se,'antes de tudo, de incitar;i5es e solicita,oes parentais expressas e quas.! pedagogicas: ensino quase escolar do ler-escrever (as vezes munidos de manuais escolares), aprendizagem explicita de tecnicas ou de estrategias intelectuais (por exemplo, fazer um borrao quando se quer redigir uma carta, reler a carta para corrigir erros de ortografia, copiar a li~ao para aprender, usar 0 dicionario.~.), convites a escrever textos durante as ferias para adquirir 0 habito de relatar sua propria experiencia, recomenda~ao expressa de anotar por escrito, recados por telefone, explica~oes verbais para levar a com preender 0 interesse do recurso a lembretes ou ao calendario para preparar suas atividades e nao esquecer coisas importantes a fazer ou solicita<;oes pennanentes a leitura (dar livros de presente, assinar uma revista para 0 filho,levar regulannente a biblioteca, ler historias para 0 filho, fazer perguntas sobre 0 que leu, pedir-Ihe que leia um texto em voz alta, etc.). A entrada na escrita faz-se tambem pelas multiplas co/abora,oes-participa,oes diretas as prilticas de escrita e de leitura a que os filhos sao convidados (e as vezes for<;ados). Os filhos podem contribuir para fazer lislas de compras ou listas de coisas a levar na viagem anotando eles mesmos, pedindo dos adultos que fa<;am por eles ou sendo ditado pelos pais, podem fazer a lista de compras a serem feitas no mercado (retirando as vezes pradutos que ja estao no carrinho), aderir progressivamente a uma cultura de traca de correspondencia por escrito (do sinal minimo de entrada nessa cultura que constitui a assinatura e pequenas palavras anexas as cartas patemas), participar na elabora<;ao de um itinerario de ferias, ajudar os pais a classificar e legendar fotografias da familia, dar a sua contribui<;ao na etiquetagem de cassetes, videos ... No tocante as praticas de leitura, os filhos po180
ATom dem ajudar as maes a cozinhar acompanhando com elas as instru~oes de uma receita escrita, ler com 0 pai historias em quadrinhos ou outras historias, pesquisar com eles elementos constitutivos de um futuro trabalho escolar, consultar juntos revistas sobre um tema ligado as ferias ou a passeios culturais, etc. Em numerosos casos, participam assim de atividades de escrita e de leitura parentais, inserindo-se num modo de "ajuda" ou de participa~ao de "igual para igual", mas aprendendo sem duvida tanto sobre a atividade, suas fun~oes e seu contexte no conjunto como sobre 0 papel que passa a ter no assunto. Antes de serem capazes de "fazer sozinhos", as crian~as aprendem assim a fazer 0 cicio das atividades e dos contextos envolvendo 0 uso da escrita, a completa-lo. Gra~s a essas muitas colabora~oes, podem dominar as fun~oes e os contextos de uso muito antes de se enearregar deles pessoalmente'. Assim os filhos podem tentar "ver-se ai", isto e, ver-se ja "grandes" ao imitar os papeis, atitudes e prilticas caracteristicas de seus pais. E como as prilticas de leitura e de escrita familiares sao muito claramente articuladas com a divisao sexual de gostos, hilbitos, papeis e tarefas, associando de maneira muito particular as mulheres a escrita (Lahire, 1993b, 1993d, 1995b e 1997b), essas imitaqoes de comportamentos paternos comuns sao indissociaveis da iden tiJicar;;iio a papeis adultos sexuados (fazer - isto e, as vezes, nao fazer - como mamae ou como papail. Os pais descrevem assim as multiplas situa~oes de imita¢o comuns de seus proprios gestos, de suas proprias maoeiras au manias de leitor ou de escriba. Assim os filhos podem divertir-se com jogos de,Papel que implicam a escrita: brinear de "professora" (mas raramente de professor), de "vendedora" (menos freqiientemente de vendedor), de "doutor" (e nao de doutora) ou de "bibliotecaria". Enfim, as crian~as incorporam as fun~oes, as representa~6es e certos efeitos cognitivos e organizacionais especificos da escrita por impregnar;;iio indireta e diJusa, isto e, atraves de todo urn clima mais familiar do que atraves dos atos de escrita e de leitura (solicitados ou explieados, realizados a titulo de colaborador, observados e imitados). Quer se trate de estilos de palavra explicitos, lexiealmente e sintaticamente articulados a habitos de discursos escritos, a tipos de discussoes semantieas (sobre 0 sentido das palavras), gramatieais (sobre a corre~ao sintatiea), literarios ou filosoficos (que dao aos que os escutam a evidencia dos modos hermeneuticos de leitura), estilos de raciocinio logicos ou matemilticos (evoea~oes comuns de no~oes de propor~oes, de contradi¢o, etc.) ou estilos de organiza¢o 7. E claro que certas solicita~6es sao inexistentes, assim como certas colabora~6es nao sao suscitadas em certas familias devido aposi¢o socialmente adquirida pe1a crian~a e pelas representa~6es que as adultos podem fazer sabre 0 passivel e 0 pensavel (no sentido de "compet~ncia" e de "direito") na idade de 8-9 anos au de 10-11 anos. Pode-se assim proihir que as crianl;as escrevam em bases visiveis - calendArios, fotos, albuns de fotos, videocassetes - com medo que se estraguem, respondam ao telefone au telefonem, saiam sem pedir antecipadamente e, portanto, oralmente, a pennissao a urn adulto, etc. Pode-se ate considera-Ios muito jovens para poder escrever cartas (caso de Marouane, 8 anos, pai calafate e mae sem profissao), para tervontade de escrever hist6rias ou poemas sozinhos, para poder ler pequenos romances Ott revistas (caso de Chaouki, 8 anos, pai pooreiro e pintor e mae sem profissao), para poder consultar sozinhos 0 dicionarlo ou uma pequena enciclopooia (caso de Damien, 9 anos, pai e mae comerciantes de came de porco). Tais limites de aprendizagem -ligados a uma concep~ao bastante compartimentaiizada de papeis e com uma re1a~ao particular com a infancia - parecem quase inexistentes nas classes superiores.
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domestica, rela~6es com 0 tempo ou rela~6es com a ordem (ligados ao uso de escritos organizadores, planejadores ... ), a escrita imp6e muito indiretamente a sua presen~a subliminar atraves de diversas atitudes e praticas dos adultos. Quando 0 universe familiar constitui urn universe ao mesmo tempo pedagogicamente incitante, que faz a crian~ participar em atividades que necessitam leitura ou escrita, que fomecem modelos de identifica~ao praticos proprios para dar vontade de imitar, de "fazer como", e globalmente "difusores" de efeitos cognitivos ou organizacionais ligados a incorpora~ao pelos pais de uma cultura da escrita, entao os filhos estao em condi~6es ideais para construir habilidades, representa~6es e gostos pela escrita e pela leitura. A combina~ao desses diferentes ingredientes s6 e encontrada nas familias cujo grau de antiguidade de acesso a escola e a escrita e particulannente elevado. De fato, tudo op6e as crian~s que tern av6s e/ou pais quase analfabetos ou com dificuldades com a escrita aqueles cujos pais, av6s e, as vezes, varias gerac;6es anteriores nao apenas sao au foram alfabetizadas, mas conheceram longos percursos escolares. As crianc;as que descobrem 0 universo escolar como urn universe relativa-
mente noilo e estranho, sao as que dependem de maneira mais completa da escola para se apropriarem dos elementos de uma cultura escrita. Quando conseguem isso, entao tern sucesso freqilentemente pela cultura escrita esco/ar e nao por uma cu/tura escrita familiar que pode ser totalmente inexistente. Em todos os casos, as maes, que se encarregam de integrar a cultura escrita escalar no universe
familiar, apresentam-se como uma especie de missionarias ou de combatentes da cultura escolar do escrito. Quando 0 universe nao e, de fato, "naturalmente letrado", isto e, "Ietrado" ha muito tempo, as crian~as resistem sempre, mais ou menos, as imposi~6es patemas'. Para as crian~s desprovidas de urn ambiente familiar "Ietrado", as vezes e dificil conceber a leitura como uma atividade extra-escolar, uma atividade que nao estaria associada a urn troba/ho. Quando os contatos com a escrita (escrita ou leitura) sao quase exc1usivamente escolares para a crian~ (concretamente, os (micos Iivros que se tern em casa sao livros da escola), e de fato di!icil para a crian~ ver a leitura ou a escrita de outra fonna que traba/ho escolar. Apesar de todos os esfor~os possiveis por parte dos pais para fazer com que a crian~ "goste", para "Ieva-Ia a gostar" do que eles mesmos nem sempre gostam9, 0 gosto pelas leituras pennanece sempre urn gosto um pouco for~do, mais urn casamento de ocasiao que urn casamento de cora~o (a crian~, por exemplo, prefere receber outros presentes que nao sejam Iivros). Quando os pais nao tem a pratica de leitura e de escrita, que poderia desempenhar 0 papel de exemplos para a crian~a, a (mica solu~ao para eles consiste entao em concentrar a sua aten~o e energia educativa nas praticas escolares. Nao 8. Julien (8 anos, pai operario espeda\izado e mae babe'll e urn born exemplo do leit~r fraco com forte compet~n cia em frances deque {ala Fran~ois de Singly: ewn ropaZ que vern de urn meio opera no, excelente em matema-tiea (1993a). 9. Note-se que estes casos sao exemplos interessantes de disposi"oes heterogeneas ativadas em fun~o da situaltao. Por urn lado, os pais nao gostam de ler nem de escrever, mas, por outro lado, incitam, "empurram" sem cessar seus filhos a praticar, para serem diferentes deles.
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podendo contar com a for~a dos habitos familiares (as vezes quase inexistentes) em materia da cultura da escrita e com as transferencias que iriam das praticas familiares para 0 universo escolar, trabalham entao diretamente as praticas do universo escolar numa especie de acumula~ao primitiva do capital escolar. Quando a energia educativa familiar se concentra nas praticas escolares, os comportamentos educativos nunca sao comportamentos de capitalistas seguros de si mesmos, mas comportamentos de edilicadores aventureiros que constituem 0 que ainda nao tern. As vezes, entre os que estao em vias de constitui~ao de urn capital escolar e que obtem bons resultados, nao ha mais sequer sentido dos limites e do termino do trabalho de acumula~ao. Nunca se sabe em que medida 0 fato de parar, de relaxar a tensao e a aten~ao, poderia ser fatal para 0 percurso escolar. As crian~s que tern exito escolar neste genero de configura~o familiar sao tambem, fatalmente, os mais puros produtos do sistema escolar, pois dependem mais completamente para ter sucesso do que qualquer outra crian~ cuja cultura familiar da escrita, pelo fato da antiguidade, ultrapassa amplamente a cultura escrita escolar. 5e a cultura escrita escolar penetrou no universe familiar precocemente, osu-
cesso escolar se toma ate uma condi~ao importante do equilibrio da .economia afetiva pessoal e familiar. Assim, percebe-se entre as maes de Julien (8 anos, pai operario especializado e mae baba) ou de Nadegue (8 anos, pai motorista de entrega e mae auxiliar de tratamento) uma especie de identilica~ao com a escola que os leva, por urn lado, a importar a esc0Ia para a casa (gosto pela leitura de livros, ajuda nos deveres, exerdcios escolares suplementares, deveres de ferias, habitos de corre~o em materia de linguagem, etc.) e, por outro lado, investir na propria escola (tratar 0 professor como membro da familia, dialogar muito freqiientemente com ele no lim dos periodos escolares, propor a sua ajuda na hora do acompanhamento escolar, as festas na escola ... ). Em oposi~o a essas familias concentradas nas praticas escolares e que so concebem as praticas de leitura e de escrita de seus filhos no contexto escolar, e preciso pensar nas familias escolarizadas no ensino media ou superior ha varias gera~6es, que incorporaram totalmente a cultura escolar, que se apropriaram dela
asua maneira e podem assim pennitir-se viver uma rela¢o mais solta com 0 uni-
verso escolar elementar. Familias onde as leituras dos pais sao diversas e variadas (dos jomais aos livros, passando pelas revistas e historias em quadrinhos)'°, onde as leituras mais legitimas foram selecionadas e outras rejeitadas, onde os pais conversam a propos ito de seus livros e participam, as vezes, de encontros sociais livrescos (bibliotecas volantes, clubes de leitura) e onde, finalmente, a leitura ultrapassa amplamente 0 contexte escolar para integrar-se nos momentos mais comuns da vida familiar e tomar-se urn valor familiar fundamental, uma op~ao cultural central. Essas mesmas familias permitem que seus filhos vejam praticas de escrita freqiientes, das mais pragmaticas as mais formais, das mais utilitarias as mais 10. No tocante as condi<;6es familiares de acesso aleitura, as grandes pesquisas nos mostram que a parte dos grandes leitores e mais importante entre as que se beneficiaram de uma hist6ria contada poT sua mae, a cada dia, do que entre aqueles que naD escutaram nenhuma (ou raramente), e que a peso dos grandes leitores e muito mais impottante entre as que tinham uma biblioteca no seu quarto do que entre os que nao tinham nenhum livre em seu quarto {Singly, 1993a}.
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esteticas. Uma mae (sem profissao, cujo marido, advogado, dirige urn escritorio com dez pessoas) diz ate que se sente muito a vontade, tanto no escrito quanta no oral, para exprimir seus pensamentos, invertendo assim a ordem comum das facilidades experimentadas no oral e na escrita". Para crian~as que vivem em tais uni-
versos familiares, a escrita e a leitura sao realidades farniliares antes de serem experimentadas como realidades escolares. Podem ter interiorizado 0 desejo de se corresponder por escrito, tomando a iniciativa de escrever quando outros escrevern a sua primeira carta na escola, escrevem historia au poemas, man tern diarios durante as ferias, etc. As vezes interiorizaram tambem 0 prazer de receber livros de presente ou de consultar dicionarios e enciclopedias.
Entao pais e maes sao, ao mesmo tempo, intermediarios e modelos de identiem materia de cultura do escrito. T udo 0 que fundamenta 0 universe escolar ja esta amplamente incorporado no universe familiar sob formas de habitos de vida, de gostos, de estilos de conversa~ao, de rela~6es com a linguagem (0 controIe e a vigilancia ortogmfica estao integradas nas prilticas da correspondencia, a ref1exividade metalingiiistica sobre 0 vocabulario e exercido nao somente por ocasiao dos momentos de leitura, mas tambem durante as conversas comuns, etc.), op~6es culturais, ascetismo e rigor. Mas 0 univers~ familiar pode estar desprovido do conjunto de tra~os favoraveis a constru¢o pelos filhos de uma cultura do escrito. Eo caso da familia de Damien (9 anos, pai e mae comerciantes), ria qual a ausencia quase com pi eta de exemplos paternos (em materia de leitura e de escrita) combinada com fracos capitais escolares e uma fraca cren~a no valor das prilticas escolares conduz a incita~iies negativas objetivas (nao queridas, nao desejadas, nao intencionais). Assim se observa, nessa familia, 0 efeito das atitudes e disposi~6es patemas negativas com rela¢o a leitura e escrita. Os pais de Damien nao tern nem as disposi~6es (mais formados na perspectiva de fazer frutificar 0 capital econornico, eles se dizern fica~ao
mais "manuais" que "intefectuais" e criticam implicitamente 0 carater efemero e
a futilidade das produ~iies culturais com rela~ao as realiza~6es econiimicas) nem 0 tempo necessario a este tipo de energia educativa missionaria. IDENTIACA~6ES NEGATIVAS E FOR~A DAS INJUN~6ES IMPLiCITAS
Longe de serem os simples produtos das incita~6es-solicita~6es parentais mais explicitas e, mais geralmente, das intencionalidades educativas adultas, os filhos constroem para si mesmos, freqUentemente, entre prescri~iies formuladas e contextos mais amp los nos quais sao enunciadas essas injun~6es. Esses contextos constituem em si mesmos especies de injun~6es implicitas, nao ditas, mas que tern a for~a da evidencia. Quando a injun~ao explicita e - muito e/ou freqiientemente demais - contradita pela injun¢o implicita (das pmticas, dos contra-exemplos co-
11. Encontram-se, do lado oposto, as pais de Damien (9 anos, pai e mae comerciantes) que naQ g05ta absolutamente de escrever textos e cuja pronuncia de certas palavras e faltas de sintaxe sao 0 sinal de uma fraca interioriza<;iio das nonnas IingOisticas proprias cultura escrita.
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tidianos), entao freqtientemente e caso perdido. Nessas condi<;6es, falta a injun<;ao paterna explicita uma for<;a particularmente grande para que as filhos possam responder positivamente a ela. Lembramos a oposi<;ao que encontram as pais em meios populares que estimulam seus filhos a ler, mas eles mesmos nao tern a gosto au a pratica da leitura. Oposi<;iio, resistencia que as levantamentos estatisticos registram: "Ao comparar os jovens cujos pais leem pOlleD au nao leem, mas que encorajam a ler, com as jovens cujos pais leem mUito, abstendo-se absolutamente de mandar que fa<;am a mesmo, observa-se que a jogo e [... J muito favoravel ao exemplo paterno" (Singly, 1993: 57). Ha pequenos gestos que dizem mais - ede modo mais eficaz - que longas discursos. Aqui nao ha necessidade de invocar for<;as inconscientes que circulariam misteriosamente entre as pais e as filhos. Ha a dito e a nao dito, a dito e a feito ("Fa<;a a que eu digo, mas nao fa<;as a que eu fa<;o"), a consciente e a nao consciente: pais que eslimulam - as vezes ate na forma de fortes san<;6es - sem estar em condi<;6es de dar a exemplo, que fazem exigencias sem nunca controlar que sejam salisfeitas, que afirmam ocasionalmente principios sem desenvolver 0 conjunto das pequenas taticas cotidianas que for<;ariam au levariam espontaneamente as filhos a aplica-Ias au que se esfor<;am diariamente para conseguir impor aos filhos habitos que, no entanto, sao continuamentequestionados pelos acontecimentos, pela contra-exemplaridade do contexto material e social (par exemplo, deixar a ambiente Iimpo e nao sujar a espa<;o urbano mesmo quando este esta permanentemente sujo e degradado 12). A rela<;iio masculina com a escrito, que mostramos progressivamente com uma serie de pesquisas, tambem e reveladora de tais desacordos entre injun<;6es explicitas e injun<;6es implicitas. Como lembramos anteriormente, as praticas de escrita sao praticas muito fortemente feminizadas no espa<;o domestico. Os estimulos a ler e a escrever vern na maioria das vezes das maes. Ora, esta situa<;ao se revela problemiltica para as rapazes, que, e claro, devem responder (enquanto fiIhos) as solicita<;6es maternas repelidas (ter tempo para ler, exercitar-se em redigir, habituar-se a escrever cartas ... ), mas tambem devem construir a sua identidade masculina, mesmo quando seus pais podem abandonar - parcial au totalmente, segundo a meio social ao qual pertence - a terreno das escritas domeslicas, pessoais au familiares. Tudo se passa como se a rapaz escutasse a sua mae au a olhasse fazer com a distanciamento suti! que convem a quem aprende a conhecer, como diziam Peter Berger & Thomas Luckmann, a "versao ferninina" da realidade sem se identificar com ela. Entao ele entra num processo de identifica<;iio (mais au menos) negativo. Se a escrita (domeslica) e feminina porque e transmitida essencialmente pela mae (e quando a rapaz tern uma irma, a energia que ela para em escrever secretamente num cademo pessoal au a escrever cartas apenas refor<;ara suas convic<;6es implicitas) e nao muito procurada pelo pai, entao a empe12. De repente, a "regra" pode ser modulada em fun¢.o do contexto: se e impossive! aplica-Ja na cidade, e absolutamente necessaria respeitar 0 ambiente quando se ~ta no campo. Cf. A. Madec (1996:.1 19-120). j
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_=--__------- HOMEM PLURAL - - - - - - - - - - nho profundo demais, 0 investimento entusiastico demais em tais praticas teria algo de suspeito. Os rapazes entao resist em, mostram ma vontade, reclamam, praticam a politica da ultima concessao (depois de muitos apelos e inumeraveis pedidos maternos, se arrancara deles uma assinatura ou uma palavra gentil ao pe da carta) e so raramente se lan~am de plena boa vontade nas atividades equivocas (atividades de adultos, mas atividades femininas). La onde a garota pode identificar-se plenamente e tamar progressivamente suas, com prazer, as praticas inicialmente solicitadas - prova de uma interioriza~ao completa e bem-sucedida do habito ou da disposi¢o -, os rapazes podem, apos uma especie de dedu~ao priitica, exprimir 0 seu desinteresse ou sua insensibilidade com rela~ao a escrita (intima, domestica au familiar). Eles constroem a sua propria identidade sexuada atraves da resistencia mais ou menos firrne (principalmente segundo 0 grau de deser¢o domestica do pail contra esses tipos de escrito. !sso significa que, contrariamente ao que se pensa comumente, 0 desinteresse ou a indiferen~a procede (e acaba engendrando) a incapacidade ou a incompetencia efetiva. 0 caso da rela~ao dos rapazes para com a escrita tem a virtude de lembrar que, para falar como Max Weber, a crian«;:a nao incorpora habitos, saberes e tecnicas, etc., a naD ser quando seu "interesse" em aprender
e maior que sell "interesse" em nao apren-
der. Este interesse (ou este desejo) constroi-se no intervalo sempre complexo, as vezes contraditorio, das injun~6es explicitas e das injun~6es implicitas.
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Oficinas e debates
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A sociologia psicol6gica Toda sociologia e urna psicologia, mas uma psicologia sui generis. Acrescento que a psicologia estci destinada, creio, a renolrpr muitos problemas que atuafmente se prop5e a psicologia puramente individual e ate, por conseqiiencia, a teoria do conhecimento (Emile Durkheim. Remarque sur 10 methode en sociologie).
Progressivamente, mesmo sem se dar conta e sem medir as conseq(iencias, a sociologia interessou-se tanto pelos individuos socializados enquanto tais como pelos grupos sociais, pelas estruturas sOciais, pelos contextos ou pelas intera~6es. Quando as no~6es (e as realidades as quais remetem) de "estruturas cognitivas" ou "mentais", de "esquemas", de "disposiC;6es" (ou de .. habitus"), de "incorpora-
y'io" e de "interiorizay'io" nao estavam no centro do estudo, mas serviam apenas, nos relat6rios de pesquisas, de comutadores necessarios para explicar praticas evocando a socializay'io passada incorporada, esses modelos hist6ricos podiam parecer satistat6rios. as tennos tomados da psicologia (principalmente piagetiana) pennitiam designar um vazio ou ausencia entre as estruturas objetivas do mundo social (estatisticamente apreendidas) e as praticas dos atores (observados)'. Entao 0 habitus podia tanto ser de grupo ou de classe como individual. Isso nao apresentava nenhum problema particular, pois nao se prestava ateny'io especifica a ele e a teoria de tato nao se propunha estudar empiricamente aquelas realidades (cognitivas, mentais, etc.). Isso era amplamente suticiente para 0 trabalho de so-
1. Pierre Bourdieu escreviaqueo habituseum "dos conceitos intermeditnios emediadores entreosubjetivoeo objetivo" (Bourdieu et aI., 1965: 18).
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ci610go e, sem duvida, ainda hoje e suficiente para uma grande parte dos pesquisadores. De fato, numerosos soci610gos continuam a praticar a sociologia sem mesmo ter necessidade de dar urn nome a essas matrizes (cognitivas, emocionais,
corporais, ideol6gicas, culturais, mentais, racionais ... ) dos comportamentos, das a<;6es e rea<;6es.
Mas nao se podia falar "impunemente" - sem tirar as consequencias e, sobretudo, sem chamar a aten~ao e a interroga~ao critica de novos pesquisadores - de "estruturas mentais", de "cogni~ao", etc. Tudo 0 que era tomado como dinheiro vivo e, evidentemente, podia ser reconsiderado, questionado: transponi-
bilidade? Transferibilidade? Explica~ao disposicional? Heran~a cultural? Transmissao do capital cultural? Esquemas? Sistema de disposi~6es? F6rmula geradora ou principio unificador das praticas? Interioriza~ao das estruturas objetivas? Incorpora~ao das estruturas sociais? Mais do que sup or a existencia de tais processos sociocognitivos (a construc;ao de esquemas, as transferencias e transposi~6es anal6gicas sistematicas, 0 carater geral das disposi~6es, sua aplica~ao sistematica e universal, a interioriza~ao da exterioridade, etc.), indo imprudentemente alem da longa e laboriosa serie de atos de pesquisa que seria util realizar, e preciso voltar aos caminhos da interroga~ao contextualizada tendo a duvida cartesiana e alguns resultados de pesquisas como unicos companheiros. Ao universalizar os conhecimentos adquiridos de uma parte (nao inteiramente acabada, e claro) da psicologia contemporanea (pia~etiana), importou-se na sociologia de forma petrificada, e imutavel desde uns vinte anos, conceitos psicol6gicos que eram - como todo conceito cientifico - apenas especies de resumos da situa¢o dos trabalhos psicol6gicos entre os mais avan"",dos na questao (do desenvolvimento da crian"",). Abre-se entao 0 campo de uma sociologia psicol6gica (e nao de uma psicologia social), que ninguem quis mas que todo mundo, pouco a pouco, contribuiu para criar. Estudar 0 individuo que atravessa cenas, contextos, campos de for"", e de lutas, etc., diferentes e estudar a realidade social sob a sua forma individualizada, intemalizada, incorporada, interiorizada. Como a diversidade exterior se fez corpo? Como pode habitar 0 mesmo corpo? Quando a sociologia se contentava em evocar 0 individuo, 0 ator ou 0 agente a prop6sito de uma pratica singular ou de um campo de pratica singular (um trabalhador, um pai de familia, um c6njuge, um amigo, um leitor, um usuario de tal ou tal institui~ao cultural, um sujeito falante, etc.), ela podia fazer a economia do estudo dessas 16gicas sociais individualizadas. Mas desde que se privilegia 0 individuo (nao como atomo e base de toda analise sociol6gica, mas como produto complexo de multiplos processos de socializa~ao), nao e mais possivel satisfazer-se com os modelos cognitivos utilizados ate entao. Ocorreu 0 deslizamento progressivo, imperceptive!. Mudou-se insensivelmente de foco, de escala de contextualiza¢o, e entao tudo ficou diferente (Lahire, 1996a). A paisagem inteira tomou-se outra. As coisas teriam sido, sem duvida, mais c1aras se aqueles que nao privilegiavam 0 estudo das "disposi~6es" e dos "esquemas" (mentais, cognitivos, apreciativos, ernocionais, etc.) - de sua constru¢o e de sua ativa¢o - nao reivindicassem a pertinencia de seu prop6sito seja qual for
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escala de contextualiza<;ao (do grupo social mais extenso ao individuo mais singular). Entao ter-se-ia percebido as contribui<;6es especificas de uns e de outros, as pertinencias relativas das analises de uns bem como as de outros. Mas a vontade de poder teorico pode levar os pesquisadores ora a cimentar a sua leoria (como fortalezas sitiadas), ou entao mudar a sua dire<;iio e nuan¢-las para "manter 0 controle", correndo 0 risco de dizer em certos casos 0 contrario do que tinha afirmado alto e forte ate entao. Assim e a vida da ciencia, de seus modelos e de seus pesquisadores. UMA SAiDA DA SOCIOLOGIA?
Os trabalhos sociologicos contemporaneos utilizam freqlientemente expresall "mentais", "procedimentos interpretativos", "categorias de percep<;ao" ou de "representa<;ao", "etnometodos", "estoques de conhecimentos", "reserva de experiencias previas", "rela-
soes tais como "disposi<;oes", "estruturas cognitivas"
c;oes com 0 mundo" au "vis6es do mundo". Mas as seus autores amiude se contentam em pressupor a existencia dessas "disposi<;6es" au "estruturas" intemas
ao ator sem utilizar exatamente como programa de pesquisa 0 estudo de sua constru<;ao e de seu reinvestimento possiveis (mas nao for<;osamente sistematicos) em novas contextos sociais. Ora, naD se pade continuar impunemente a empregar
um vocabulario proximo do vocabulario da psicologia sem desencadear, um dia, a vontade, propriamente sociologica, de submete-lo a interroga<;iio critica e a avalia¢o empirica, em suma, de olhar mais de perto. Se considerarrnos que a sociologia, e nao somente a psicologia, se interessa pela analise do funcionamento dessas "pequenas maquinas produtoras ... " de comportamentos, de a<;6es, de avalia<;6es, de aprecia<;6es, de escolha, etc., que sao os atores, e importante munir-se das ferramentas conceituais adequadas para avan<;ar nesse terreno. Uma parte do futuro da sociologia parece que depende da capacidade de enfrentar este desafio teorico e metodologico no trabalho empirico. Poder-se-ia, todavia, pensar que 0 "psiquismo individual" nao e um objeto sociologico mas um objeto estritamente psicologico (no sentido amplo do termo). Entao 0 sociologo poderia, eventualmente, tirar dos trabalhos psicologicos 0 que precisa, sem ele mesmo ter que estudar a questao. Esta convic¢o - sustentada pela imagem comum da sociologia como ciencia "generalista" do coletivo, dos grupos sociais ou, no pior dos casos, das "medias", dos comportamentos "medias" e, ao mesmo tempo, como ciencia incapaz de se dedicar a explicar as singula-
ridades individuais' - mergulha, as vezes, as suas raizes na concep<;ao durkheimia-
2. Tambem em Max Weber, que estava longe de excluir os atores individuais da sua socioiogia compreensiva, encontra-se a ideia segundo a qual um ato individual isolado nao eurn ato social. Por exempio, um comporta-
mento religioso nao e uma atividade social "se e apenas contempla¢o, ora¢o solitaria, etc." (1971; 20). Ora, urn comportamento solitario e tao social como urn comportamento com outrem e isto porque urn "individuo isolado" e intersubjetivo par natureza e porque a sua atividade mental "interior" dependedesuas experiencias socials passadas e presentes. Ver "Uma antropoJogia da interdependencla" em B. Lahire, Sucesso escolar nos meios populares (1997: 348-350). Mas a Max Weber se poderia responder atraves de Maurice Halbwachs "que, na realidade, nunca estamos sozinhos" pois "nao e necessario que outros homens estejam presentes, que se distingam materialmente de n6s, pois sempre levamos conosco e em nos uma quantidade de pessoas que n15.O se confundem" (1968: 2). ""'-'""1
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na da divisao estrita entre consciilncia coletiva e consciencia individual. "Pode-se inseparilVeis apenas par abstra~ao, nao deixam de ser distintos. Um e leito de todos os estados dizer que em cada urn de n6s existem dais seres que, por serem
mentais que se referem apenas a nos mesmas e aDS acontecimentos de nassa
vida pessoal. E 0 que se poderia chamar de ser individual. 0 outr~ e um sistema de ideias, de sentimentos e de habitos que exprimem em n6s nao nossa personaIidade, mas 0 grupo ou os grupos dilerentes dos quais fazemos parte; e 0 caso das crenc;as religiosas, das convicc;6es e praticas morais, das tradic;6es nacionais au
profissionais, das opini6es coletivas de todo tipo" (Durkheim, 1989: 51). Esta divisao em dois "seres" ou dos "grupos de estados de consciencia" (Durkheim, 1987: 330) 10i, sem duvida, leita no come~o cOm a inten~ao estrategica de demarcar a sociologia da psicologia (como "ciencia do individuo mental", Durkheim, 1981: XVII) e de prevenir toda tentativa de redu~ao do social ao psicol6gico, ao individual (explicar 0 social pelo social). Restava, portanto, segundo Durkheim, um "residuo" psicol6gico ou mental ap6s a passagem interpretativa do soci610go, "residuo" que constituiria 0 objeto legitimo da psicologia3 • No entanto, as soci61ogos contemporaneos, tao sensiveis, as vezes, it ideia de atropelar as conveniencias disciplinares em materia de divisao dos objetos e campos de pesquisa (as vezes fundadas unicamente em realidades de ordem institucional), esquecem os momentos em que Durkheim escreve, alias, com bastante audacia sociol6gica e urn minimo de cUidadQ para nao atropelar a disciplina psicol6gica, que "a psicologia tambem esta destinada a se renovar em parte" sob a influencia da pesquisa sociol6gica, "pois se os lenomenos sociais penetram 0 individuo desde 0 exterior, M todo urn dominio da consc;encia individual que depende, em parte, de causas sociais das quais a psicologia nao pode lazer abstra~o sem se tomar ininteligivel" (Durkheim, 1975: 35, nota 5), ou ainda que "toda a sociologia e uma psicologia, mas uma psicologia sui geneTis. Acrescento que esta psicologia esta destinada, creio, a renovar muitos problemas que atualmente a psicologia puramente individual se coloca e ate, por rea~o, a teoria do conhecimento" (ibid.: 61). No lundo, a sociologia "acaba chegando a uma psicologia", mas uma psicologia que Durkheim julga "mais concreta e complexa do que aquela que lazem os psic610gos puros" (p. 185) de seu tempo. 3. Mas e em Georg Simmel que se encontra a divisao mais forte, mais reaJista (no sentido da eplstemologia rea" !ista) entre 0 que esocial e 0 que na~ a e. Notemos de passagern que esta divisao, lixando urn limite a priori para a analise sociol6gica, ocupa urn lugardedestaque na ]ista hist6rica das abdica~6es da interpreta~ao sociol6gica. Ele confere, assim, aos "individuos" e aos seus esquemas comportamentais e mentals uma vida pr6pria, independente em rela~ao "fo~as" e as "fonnas" sociais (1981: 137). Para Slmmel, os instintos, os interesses, os impulsos, os fins, as inclina~oes, as tendlmcias, que nao sao em si mesmos sociais (pois designam "a materia da socializa~ao, os materiais que enchem a existlmcia, essas motiva~6es que a estimulam nao sao ainda em si nem para sl urn ser social", ibid.: 122), "fazemcom que 0 homem entre numa coexisten· cia com os outros" (Ibid.: 121). Simmel nao adota a orienta¢o sociol6gica que !he pennitiria pensarque, ao contrlltio, porque entraram em fonnas hist6ricas de coexistencia que os homens tm interesses, motiva~6es, impulsos, inclina~6es, etc., particulares. Ai tambem, se soci6logo faz uma divisao entre 0 individual (o men· tal, 0 pslquico, as inclina~6es, as inten~6es, os impulsos ... ) e 0 social, ele nos faz urn mau lance de magica sociol6gica reintroduzindo em contrabando os produtos designados como sociologicamente ilicitos. Se os pensamentos e comportamentos individuais nao sao assunto sociol6gico, enta~ soci6logo nao pode de modo algum lntegra-los em seu dlscUl"SO, Mas ve-se muito bem que a tentac;ao e ma~ forte que principio de divisao inicialmente enunciado ...
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Se para n6s houvesse apenas uma heran<;a a reivindicar, esta seria a de Durkheim. Em todo caso, 0 Durkheim que nao concede nenhum campo particular a outras ciencias do hom em, e que indica a maneira como a sociologia pode apossar-se - a partir de seu ponto de vista especifico - de todos os domlnios imaginaveis. Ao nao excluir a priori nenhum objeto, a sociologia pode fazer urn progresso a mais em dire¢o a autonomia cientifica. Como para a literatura mais "pura" que, para manifestar a ruptura com as demandas extemas, afinna 0 primado da forma sabre a fun<;;IO, do modo de representa<;ao sobre 0 objeto representado, a sociologia deve mostrar que nao ha nenhum limite empirico ao que ela pode estudar (que nao ha objetos mais sociol6gicos que outros), mas 0 essencial reside no modo socia/ogiea de tratamenta do "sujeito". Tudo op6e, portanto, nosso procedimento sociol6gico aqueles que consistern diversamente em fazer esclarecimentos disciplinares (pluridisciplinaridade), em reunir num amontoado te6rico de conceitos tirados de tradi<;6es disciplinares diferentes, estando essas tradi<;6es muitas vezes ligadas a teorias do conhecimento diferentes (interdisciplinaridade4) ou em introduzir ilicitamente numa disciplina principios diferentes provenientes de outra disciplina (par exernplo, a que se apresenta hOje como urn "programa naturalista nas ciencias sociais" e que apela para o desenvolvimento de uma "ciencia natural da sociedade"). Estes diferentes impasses tern em comum que sao abdica<;6es da interpreta<;ao sociol6gica. Abdica¢o ligada a tres ilus6es: a ilusao seguntlo a qual a visao dupla (tripla, quadrupla ... ) daria uma visao rnelhor, a ilusao segundo a qual a mistura de principios e orienta<;6es te6ricas e epistemol6gicas heter6clitas daria lugar a urn enriquecimento (mais do que a uma explosao ou uma implosao), a ilusao segundo a qual uma ciencia de alta legitimidade (ciencia "dura") poderia constituir a base de uma outra ciencia ("humana ").
o contagia das ideias. Teolia naturalista da cullura (1996) de Dan Sperber e urn bela exemplo do ultimo caso evocado. Ai 0 autor sustenta uma serie de teses entre as quais: 1) "As caisas socioculturais sao [... Jarranjos eco16gicos de caisas psicol6gicas. Os fates socioJ6gicos se definem a partirdos fatos psicoi6gicos, mas mio se reduzem a isso" (p. 47); 2) a psicologia cogniti-
va oferece, conseqtientemente, uma das principais fontes de explica¢o
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dos fenomenos culturais; 3) para naturalizar 0 terreno sociaJ preciso estabelecer corredores de Jigac;ao com as cj{~:ncias cognitivas; 4) 0 espirito humano e a combinaC;ao de numerosos dispositivos em parte geneticamente programados; 5) os homens tem uma disposiC;ao inata a desenvolver conceitos segundo certos esquemas; a fonnac;ao individual dos conceitos, assim como sua vatiabilidade cultural, sao govemadas per esquemas e disposiC;6es inatas (assim, os conceitos de nonna, de causa, de substancia, de especie, de func;ao, de numero ou de verdade setiam "rea1izados de maneira inata"); e 6) se todas as representac;6es nao tem uma chance igual de se espalhar numa populac;ao humana, em parte porque elas sao "fiItradas" por capacidades cognitivas humanas universais.
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4. A pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade sao submetidas a critica em B. Lahire (1998a) . . :.... ..-.11
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o programa cientifico assim esboc;ado eclaramente antidurkheimiano (nao existe autonomia do social, 0 social nao cleve ser explicado pelo social, mas pelo psicol6gico ou pete neurobioI6gico ... ), proximo, as vezes, de certos desenvolvimentos do individualismo metodol6gico (explicar os macrofenomenos pelo efeito acumulado de microfenomenos) ou de Qutros programas cientificos tais como 0 de Gabriel Tarde sobre as fen6menos de imita~ao5. Ademais, ao definir 0 aspecto cultural (ou social) das representa~6es por sua grande extensao ou sua durabilidade, 0 autor ignora totalmente as desenvolvimentos recentes em ciencias sociais que tendem a estudar 0 tecido socia1 em suas dobras mais singulares. Mas, ao fazer intervir na explica~ao dos fatos sociais (ou culturais) certas contribuic;6es das ciencias cognitivas, a autor abandona prematuramente a interpretac;ao propriamente sociol6gica (no sentido amplo do tenno) dos fatos sociais. Admitindo-se que 0 fraco sucesso (0 fraco grau de contagio) de certas representac;6es mentais e publicas sao explicados pela "organizac;ao das capacidades cognitivas e comunicacionais humanas" (p. 92), 0 que resta as ciEmcias sociais em materia de trabalho interpretativo? Se "as humanos tem a disposic;ao a desenvolver conceitos como 0 do passaro" (p. 95) eque a categoria "negro" tern "bases neuroniais inatas", "de tal modo que, quando voce aprende a paJavra 'negro', voce adquire apenas urna maneira de exprimir verbalmente urn conceito que voce j3 passwa" (p. 130), e uti] descrever e analisar sociologicaruente os fatos s6cio-hist6ricos? FreqUentemente dernais se coloca no ho~em - como estando encap5ulado em seu cerebra - 0 que e apenas 0 produto das rela<;6es sociais que tern com outros hornens e com produtos da atividade social. Evidentemente, a cognic;ao tern "necessidade" de urn cerebra, mas nao e 0 cerebro que comanda as variac;6es constatilveis (tanto historicamente como sociologicamente) ern materia de operac;6es mentais.
Em compensa¢o, porem, encontramos solidos apoios do lado da psicologia cultural e/ou da psicologia (as vezes de inspira~ao vygotskiana) norte-americana que, no fundo, fazem em outro sentido 0 percurso que convidamos a fazel. De fato, ela entende integrar a cultura ou 0 social em seus objetos tradicionais (estudo da cogni~ao, da percep¢o, da memoriza~ao ... individual)', mesmoquando convidamos a abrir os cofres misteriosos e selados que 0 soci610go se contenta, no mais das vezes, a evocar falando de "esquema", "disposi¢o", "transferencia cognitiva", "estruturas mentais Oll cognitivas", etc. Aqui nao se trata de urn encontro in5. Sabe-se que Gabriel Tarde opOs asociologiade Ourkheim 0 que ele chamava de psicologia intennental e que, para ele, crer que existe outra coisa alem dos atos ou dos fatos individuais, "e ontologia pura" (Durkheim, 1975. 165). 6. Ver, entre varios outros trabalhos menos conhecidos; Cole, 1996, Schweder, 1991 e Bruner, 1991. 7. "Por que se verifica tao diflcil para os psic6Jogos guardar a cultura no espirito? Uma resposta curta poderia ser; porque, quando a psicoiogia tratou da cultura como uma varillVel independente e 0 espirito como uma va' riavel dependente, ela rompeu a unidade entre cultura e espirito e os ordenou numa $aScala temporal - a cultu· ra e 0 estimulo, 0 espirito e a resposta. Toda a hist6ria da psicologia transcultural pode ser vista como uma longa luta para reunir 0 que fora separado ap6s a divisao das ciencias humanas entre dendas sodais eden· cias humanas" (Cole, 1996; 327·328).
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terdisciplinar ou pluridisciplinar, mas de uma reaproximac;ao hist6rica inedita entre os procedimentos que partilham nao somente as mesmas orientac;oes epistemol6gicas (por exemplo, entendem captar variac;oes sOciais, hist6ricas, geograficas, culturais ... , mais que sublinhar 0 carater universal de comportamentos, competencias, caracteristicas humanas como fariam a biologia, a neuropsicologia, etc.), mas tambim de visoes te6ricas parentes ou congruentes (a psicologia cultural teria dificuldades em encontrar bases s6lidas por parte dos soci610gos mais objetivistas e estatisticos que s6 pensam em escala do grupo). A OBJETIVIDADE DO "SUBJETIVO"
a personagem nao e uma abstra~iio psico16gica; e 0 que todo mundo pode uer. [... j estomos no estudo exato do meio. no constata~cio dos estados do mundo exterior, que correspondem aos estados interiores dos personagens (Emile Zola. Le Roman experimentan. Norbert Elias dedicou a sua reflexao a analisar as transformac;oes da economia psiquica, das estruturas da personalidade atraves da constituic;ao e da consolidac;ao do estado modemo que acarre\i>, pela monopolizac;ao da violencia fisica legitima, uma pacificac;ao da vida social e uma civilizac;ao dos costumes. Assim estudou a psicologia da moderac;ao, da contenc;ao, do autocontrole das pulsoes e do dominio das emoc;oes (1975). Como se tratava de realidades psiquicas, imateriais, inacessiveis enquanto tais, procurou objetiva-Ias atravils da analise dos costumes, das maneiras de comer, de falar, etc. Portanto, a analise das maneiras de fazer e de dizer e urn meio para se chegar a economia psiquica dos individuos. Existe, porem, outra maneira de proceder para se conseguir isso? A psicologia - tanto contemponlnea como hist6rica - s6 pode ser objetivista e materialista, no sentido de que ela parte da observac;ao do comportamento visivel e exterior (freqOentemente discursivo e as vezes nao discursivo) dos atores, para tentar deduzire compreender a subjetividade, a mentaIidade, 0 estilo cognitiv~, a ideologia, as representac;oes, os valores, as visoes do mundo ... Neste sentido, noc;oes como as de "estruturas mentais" ou de "estruturas psiquicas" devem ser utilizadas com precauc;ao para nao fazer delas verdadeiras ciladas te6ricas, e seria muito preferivel falar de estruturas objetiuas do pensamento, da percepc;ao, da avaliac;ao, da apreciac;ao, da crenc;a ... que se deixam ver nas ac;oes ou nas praticas (linguageiras e nao linguageiras). Neste sentido, hOje se teria a ganhar relendo 0 psic610go frances Pierre Janet, para quem 0 objeto da psicologia nao era a consciencia e sim a ac;:ao, e que pensava que a (mica maneira de se chegar ao conhecimento da consciencia consiste em estudar 0 detalhe de suas manifestac;6es contextualizadas (Janet, 1988). Do mesmo modo, se 0 behaviorismo hoje nao tern boa reputac;ao, pelo menos teve 0 merito de lembrar a objetividade do subjetivo dentro de uma cultura psicol6gica (mas tambem sociolOgica) marcada pelo mentalismo e a introspec;ao ao definir 0 domi-
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nio da psicologia como estando constituida pelo "comportamento objetivamente observavel dos seres humanos" (Naville, 1942: 13). Para Watson era entao evidente que 0 comportamento designa "0 que 0 organismo faz e diz" e que "a palavra euma ac;ao como as Gutras". "Dizer efazer, ista
e, comportar-se. Falar em voz
alta ou para si mesmo (pensar) e um tipo de comportamento tao objetivo como jogar base-ball" (ibid.: 16). Muito freqiientemente os soci610gos distinguem realidades que nao sao diferentes. Op6em, pois, 0 "objetivo" ao "subjetivo" pensando, por um lado, em tudo o que se pode captar fora da subjetividade dos atores (mas nao da subjetividade dos soci610gos".) e, p~r outr~ lado, no "sentido que os atores dao as suas praticas", ao seu "ponto de vistasobre 0 mundo", a suas "representa~6es do mundo", etc. Ora, nao estamos Iidando com diferen~as radicais mas com diferen~s de grau de objetiva¢o das realidades. 0 dominio de realidade designado pelo termo "estruturas mentais" e tao objetivo como 0 designado por "estruturas materiais". Essas "estruturas mentais" sao objetivadas sem cessar nas palavras da Iinguagem enos modos de comportamentos dos atores. Por isso nao hi! realidades objetivas distintas de realidades subjetivas, mas de realidades objetivadas nos objetos, espa<;05, maquinas, palavras, maneiras de fazer e de dizer ...
De fato, muitas vezes se qualifica como "objetiva" uma realidadeque se caracteriza por um forte grau de objetiva¢o social: um patrim6nio economico, uma casa, urn carro, urn terreno, etc. Ese chatham de "subjetiva" uma opiniao, uma ideia, urn ponto de vista, uma representac;ao, ao passo que, concretamente, essas
realidades subjetivas sao tao objetivas como as primeiras. Elas se materializam nos sons de um discurso oral, nos tra~os de um texto manuscrito ou impresso, nas pinceladas ou cinzeladas que criam pinturas e esculturas, etc. A "psicologia" de um ator ou a "mentalidade" de uma epoca sao c1aramente visiveis nos objetos, nos espa~os, nos instrumentos, nas maquinas que produzem. Percebe-se bem tanto a "mentalidade" dos atenienses no seculo V antes de Cristo e, principalmente, a dissocia~ao que fazem entre 0 que depende do economico eo que pertence a ordem do religioso ou da moral, considerando 0 aparecimento e difusao da moeda, como estudando os textos filosoficos da epoca (Vemant, 1969 e 1981). Percebe-se, pois, que os sociologos sao muito mais idealistas' quando falam de "realidades subjetivas", "psiquicas", "mentais", "simb6licas" do que quando
tratam de realidades ditas materiais, ao passo que a Iinguagem e as maneiras de fa-
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8. Muitas vezes perrnanecem prisioneiros de uma concepc;ao mentalista que pretende que 0 "dito" nao 0 "pensado" tornado publico. Ora, dado que nao dispomos senao da linguagem publica como tra!;o desse
"pensado", naa se v~ bem 0 interesse que os pesquisadores podem ter em colocar urn wpensado", invisive/ enquanto tal, no principio de uma linguagem publica, que e seu (mico traco e provade existencia. A ldeia segundo a qual a linguagem seria apenas a expressao publica de uma estrutura mental, de uma realidade men· tal, subverte total e absurdamente a ordem das realidades tangiveis, observaveis e estudaveis. Assim, esur· preendente ver 0 lugar desmedido concedido a esta realklade pressuposta, e invisivel como tal, com rela~o it realidade atribuida a realidades objetivas e objetivaveis, anaJisaveis segundo todos os pontos de vista cientifi· cos imaginaveis, etc .. a saber, as realidades Iinguageiras (verbais. paraverbais, escritas, gestuais, ic6nicas ... ), c1assificadas como simples "traQ)" ou "indicio" de uma atividade mental julgada fundamental. Neste ponto de vista, a leitura de Ludwig Wittgenstein constitui uma verdadeira terapia linguageira. Cf. principalmente a apresenta~o do trabalho filos6fico de Wittgenstein feito par Jacques Bouveresse (1987).
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zer por onde essas realidades se deem a "ver" sao 0 que ha de mais material, de mais objetivavel (mesmo se a Iinguagem oral e as maneiras de fazer tem uma existencia mais efemera, que dura 0 tempo de sua efetuac;ao). AS DOBRAS SINGULARES DO SOCIAL Mesmo dais gemeos, uestidos e alimentados do mesma maneira, ndo SOD
tratados de modo identico por coda urn dos pais. Ede se admirar que eles diuirjam bastante depressa? £ de se admirar que duos criom;as do mesma idade, educados em familias diJerentes (mesmo se /orem do mesmo meio), respondem de modos diferentes a estimu/os semefhantes? (pierre Navi1le. La Psychologie, science du comportement).
Tende-se freqiientemente demais, tanto entre os nao-soci610gos como numa parte dos soci6logos, a pensar que 0 social se reduz a diferen.;as de grupos ou de classes de individuos. Desde que se eVOcam diferen.;as sociais, se pensa em diferenc;as entre classes sociais, posic;6es s6ciais, categorias socioprofissionais, socio-
culturais, etc. Um pouco mais raramente, se pensa tambem nas diferen~as socialmente construidas entre os sexos ou nas diferen~as entre as gera~6es (que freqiientemente sao diferen~as entre matrizes de socializa~ao). Mas quase nunca se pensaria espontaneamente na ideia de que diferen.;as "cognitivas", "psiquicas" e "comportamentais" entre dois individuos singulares, provenientes do "mesmo" meio social (ou melhor, da mesma familia) sao tambem diferen.;as sociais, no sentido que elas foram socialmente engendradas em rela~6es sociais, experiencias sociais (socializadoras), ou que os casos atipicos, excepcionais do ponto de vista das probabilidades, sao ainda interpretaveis sociologicamente (Lahire, 1995a). Tambem e bastante raro considerar 0 social (as diferen.;as sociais) do ponto de vista da variedade das diferentes situa~6es sociais com as quais um mesmo ator Iida permanentemente no comum de sua vida cotidiana (Goffman, 1991; Boltanski & Thevenot, 1991).
Eo importante acentuar que 0 social nao se reduz as rela~6es sociais entre grupas e principalmente as diferenc;as socioprofissionais, socioeconomicas QU, ainda, socioculturais, se nao se quiser deixar pensar que as diferen.;as mais finas nao sao mais socialmente engendradas e que, por conseguinte, as estruturas cognitivas, emotivas, sensiveis ... , individuais estao fora da intelecc;ao sociol6gica. 0 s0cial e a relac;ao. E todas as diferen~as sociais nao se reduzem as diferen.;as entre grupos sociais (sejam quais forem os criterios usados para caracterizil-las). A intersubjetividade ou interdependencia e logicamente anterior a subjetividade e, conseqiientemente, as rela~6es sociais (as formas especificas, e variaveis historicamente, que essas rela~6es tomam) sao primeiras porque sao constitutivas, ":...-"""
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de cada ser social singular (Lahire, 1995a: 283-289). Ao tamar a ator individual par objeto de pesquisa, nao se pretende - como todo individualismo atomista - fazer deste "a unidade ultima" au "0 Mama l6gico" de toda analise (Boudon, 1984: 26 e 1979: 61-62). Nao ha muita vontade de conceder a todos as atores "autonomia" e "racionalidade" colocando de maneira aptiotista 0 mesmo tra~o psicol6gico rudimentar no ptincipio de todas as suas pmticas. as atores sao 0 que as suas multiplas experiencias sociais fazem deles. Sao chamados a ter comportamentos, atitudes vatiadas segundo os contextos em que sao levados a evoluir. Longe de ser a unidade mais elementar da sociologia, 0 ator e sem duvida a realidade social mais complexa a apreender. Compreende-se que a sociologia nao podia come~ar pela analise desses compostos complexos de expetiencias sociais heterogeneas que sao as atores individuais. No fundo, ao contratio do que podem nos levar a crer as concep~oes elementaristas e atomistas, e menos complexo estudar os universos sociais, campos, grupos sociais, instituic;6es DU micro-situac;6es, etc., que
as dobras individuais do social. as atores atravessaram no passado e atravessam pennanentemente muitos contextos sociais (universos, instituic;6es, grupos, situa~oes ...); eles sao os frutos (e os portadores) de todas as expetiencias (nem sempre compativeis, nem sempre acumulaveis, e as vezes altamente contradit6rias) que viveram em multiplos contextos. A metMora da dobra ou da dobradura do social e duplamente util para n6s. Antes de tudo, a dobra designa uma modalidade particular de existencia do mundo social: 0 social (e suas l6gicas plurais) em sua forma incorporada, individualizada. Se n6s representarmos 0 espa~o social em todas as suas dimensoes (economi-
cas, politicas, cuJturais, religiosas, sexuais, familiares, morais, esportivas, etc., dimensoes essas grosseiramente designadas e que sao em parte indissocii3.veis e em
parte decomponiveis em subdimensoes) na forma de uma folha de papel ou de um pois, geometricamente, de uma estrutura plana), entao cada individuo e comparavel a uma folha amassada au a um tecido amarrotado. Dito de outro modo, a ator individual e 0 produto de multiplas opera~oes de dobramentos (ou de intetiotiza~ao) e se caracteriza, portanto, pela multiplicidade e pela complexidade dos processos sociais, das dimensoes sociais, das l6gicas sociais, etc., que intetiotizou. Essas dimensoes, esses processos ou essas l6gicas (essas contexturas) dobram-se sempre de maneira relativamente singular em cada ator individual, e 0 soci6logo, que se interessa pelos atores singulares, encontra em cada um deles 0 espa~o social amassado, amarrotado. Se 0 ator individual e um ser dos mais complexos, e porque nele se encontram dimensoes, l6gicas ou processos variados. Ha tempo a sociologia tem 0 habito de estudar essencialmente as estruturas planas (os processos sociais, os grupos sociais ou as estruturas sociais), isto e, 0 social em sua forma desdobrada e desindividualizada. Mas pouco a pouco, a sociologia interessou-se por essas multiplas operac;oes de dobraduras constitutivas de cada ator individual, essas amassaduras sempre particulares que fazem de cada ator, ao mesmo tempo, um ser relativamente singular e um ser relativamente analogo a muitos outros. a segundo interesse da metMora da dobra ou dobramento reside no fato de que leva a pensar que 0 "dentro" ou 0 "interior" (0 mental, 0 cognitiv~, etc.) e apepeda~o de tecido (trata-se,
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nas um "fora" ou um "exterior" (formas de vidas sociais, institui~6es, grupos sociais, processos sociais, etc.) dobrad09 • Nesta imagem, nao existe nenhuma saida possivel do tecido social (desdobrado ou dobrado); 0 "interior" nao e outra coisa que 0 "exterior" amassado ou dobrado e nao tem nenhum primado ou anterioridade nem qualquer especificidade irredutivel. Para compreender 0 "interior" s6 ha uma solu~ao: fazer 0 estudo mais exato, mais circunstanciado e mais sistematico possivel do "exterior". A economia psiquica nao depende de uma 16gica diferente da que preside a economia das formas de vida social. Sua unica especificidade consiste no fato de que a realidade social estudada em situa~ao dobrada, amarrotada, amassada (a do ator individual) se organiza de modo diferente que aquela que se pode apreender no estado desdobrado, passado (realidade transindividual dos grupos, estruturas, institui~6es, tipos de intera~6es ou sistemas de a¢o). MULTIDETERMINISMO E SENTIMENTO DE LffiERDADE Vimos que 0 determinismo social nunca
e tao univoca, como 0
detenninismo
fisico ou quimico. Isto nao significa que os comportamentos de um ator nao seriam inteiramente determinados socialmente, quer dizer, que seriam apenas explicaveis por uma especie de livre-arbitrio sem la~o nem raiz no mundo social. As declara~6es antideterministas que florescem hoje em dia em ciencias sociais deduzem ingenuamente da atividade permanente de constru~ao do mundo social (atividade de percep¢o, de interpreta~ao, de representa~ao ... ) pelos atores a ideia de uma liberdade fundamental destes. A critica das concep~6es do ator qualificadas como "hiper-socializadas" (como se, em materia de socializa~ao, pudesse tratar-se de uma questao de grau ... ) confundem, sem rir, determinismo e passividade e agem como se as detenninismos sociais pudessem agir sabre corpos mortos, como se nao supusessem uma certa determinat;ao e urn certo empenho "pessoal" por parte dos atores. Estar resolutamente determinado a cometer tal ou tal ato
euma maneira comum de sentir e de viver os determinismos sociais dos quais
somos os produtos. Mas se os atores sociais - a come~r pelos mais leigos e terminando pelos mais cientistas - resistem grandemente a ideia de um determinismo social, e por raz6es ligadas a natureza da vida individual no mundo social. Eimpossivel prever 0 aparecimento de um comportamento social como se prediz a queda dos corpos a partir do fen6meno universal da gravidade. Da regularidade relativa (quer dizer, relativa aos contextos s6cio-hist6ricos sempre limitados) dos comportamentos sociais, a regularidade absoluta de certos fatos fisicos ou quimicos, a diferen~a e consideravel e nao eo uso indevido do termo "lei" nas ciencias sociais que poderia mudar algo na situa~ao. Pois nao existem fatos sociais tao regulares e gerais que possibilitem que os pesquisadores expliquem a sua existencia na linguagem da "lei social". 9. "0 dentro como opera~ao do fora; em toda a sua obra, Foucault parece perseguido por este tema do dentro, que sena apenas a dobra do fora" (Deleuze, 1986: 104).
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Esta situac;ao e 0 produto de dois elementos conjugados, a saber, de um lade a impossibilidade de reduzir um contexto social a uma serie Iimitada de parametros pertinentes que permitiriam predizer um comportamento social, como no caso das experiencias quimicas lO , e, de outro lado, a pluralidade intema dos atores cujo estoque de httbitos (de esquemas) e mais ou menos heterogeneo, composto de elementos mais ou menos contraditorios. t impossivel predizer com certeza, tanto para os atores como para os pesquisadores, 0 que, num contexto especifico, vai "jogar" ("pesar") sobre 0 ator e 0 que, dos muitos esquemas incorporados pelo ator, vai ser desencadeado em/por urn tal contexto. Porgue 0 ator e plural e porque sobre ele sao exercidas "for~as" diferentes segundo as situa~6es sociais na qual se encontra, ele pode apenas ter 0 sentimento de uma Iiberdade de comportamento. Poder-se-ia dizer que estamos demasiado multissocializados e por demais multideterminados para podermos perceber nossos determinismos. Se houvesse apenas uma for~ de determina~ao, poderosa, que fosse exercida sobre nos, entao talvez tivessemos a intui~ao, mesmo vaga, do determinismo. Por que nao se pode continuar a chamarde "liberdade" ou, mais exatamente, "sentimento de liberdade" 0 produto dessa muItideterminac;ao, isto e, da complexidade dos determinismos sociais jamais facilmente previsiveis? Mas esta Iiberdade nao tern nada a ver com a Iiberdade soberana e consciente que certas filosofias sociais nos descrevem. 0 sentimento de liberdade e apenas 0 produto da complexidade da determinac;aoll. A (mica liberdade da qual 0 sOciologo'pode seriamente falar e uma Iiberdade (politica, economica, cultural...) de a~ao, relativa a situao;:6es socio-histbricas determinadas. Por exemplo, a prisao e uma evidente priva~ao de Iiberdade, isto e, de uma serie de a~6es possiveis. Quem nao esttt encarcerado g02a, em relao;:ao aos que estao, de uma Iiberdade de a~ao maior. No entanto, seria absurdo pensar os atores que vivem fora dos muros da prisao como atores "livres" no sentido de que nao estariam sujeitos a determinismos sociais. Do mesmo modo aqueles e aquelas (individuos, grupos, categorias, comunidades ... ) que sofrem os efeitos da explorao;:ao economica, da opressao politica e policial, da dominao;:ao sexual, da censura ideologica ou cultural, da repressao moral, sao Iimitados em sua ac;ao por outros individuos, grupos, categorias ou comunidades. Se a "liberdade" tern urn sentido sociologico, trata-se dessa Iiberdade custosamente conquistada em lutas comuns ou "historicas" de Iibertac;ao. Mas tanto opressores como oprimidos, dominantes, como dominados, exploradores, como explorados, censores como censurados estao igualmente submetidos a determinismos sociais. As ao;:6es, os gostos, as representao;:6es, etc., de uns nao sao menos determinados que os dos outros. 10. "A descri1;ao de urn contexto hist6rico naD pode ser leita por uma enumerac;ao finita de variflVeis" (passeron, 1991: 364).lsto nao significa que 0 soci6logo naQ possa lazer uma tal redw;ao ou mesmo que naD deva faze-Io em certas ocasi6es, mas apenas que nao cleve enganar-se acerca de seu uso.
11. Isto nao tern mais sentido que considerar as atores como eletrons livres submetidos a campos magneticos ou como bolas independentes evoluindo nos Jimites de corredor que Ihes deixaria "jego" (no sentido mecanieo do tenno) ou "margem de deslocamento". Nao se ve, realmente, 0 interesse que pode haver (alem do ganho de acumulo ret6rico dos contrarios) em invocar atores "livres" num "sistema<de obriga~6esH, 0 "determinismo" social na "indeterminal;ao", a "obriga~ao" acompanhada de "jogo", "escolhas" nos Iimites de uma "estrutura social", etc.
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NOVAS EXIGENCIAS METODOLOGICAS
e preciso seguir longamente e curiosa mente seus passos (Montaigne. Essais, Livre second). Eis porque, para julgar urn homem,
Com exce~ao de uma parte dos pesquisadores sociolingGisticos l2 , sao raros os trabalhos sociologicos que tomam por objetivo "seguir" urn mesmo ator (e nao globalmente urn mesmo grupo de atores) em situa~6es muito diferentes de sua vida (dominios de existencia diferentes, universos sociais diferentes, tipos de intera~ao diferentes). Ao estudar atores em cenas particulares, na maioria das vezes ha pressa em deduzir da analise dos comportamentos observados nestas cenas disposi~6es gerais, habitus, vis6es do mundo ou rela~6es gerais com 0 mundo. Ora, como mostramos, e impossivel deduzir urn "habitus" geral de comportamentos observaveis em circunstancias determinadas e Iimitadas. A sociologia da a~ao que propomos implica, por conseguinte, exigencias metodologicas novas. Para captar a pluralidade intema dos atores e preciso dotar-se de dispositivos metodologicos que permitam observar diretamente ou reconstruir indiretamente (por fontes diversas) a varia~ao dos comportamentos individuais segundo os contextos sociais. Somente tais dispositivos metodologicos permitiriam julgar em que medida certos esquemas'de a~6es sao transferiveis de uma situa~ao a outra, e outros nao, e avaliar 0 grau de heterogeneidade, ou de homogeneidade do estoque de esquemas incorporados pelos atores durante suas socializa~6es anteriores. Se a observa~o direta dos comportamentos ainda e 0 metoda mais pertinente, raramente ela e inteiramente possivel a medida que "seguir" urn ator em situa~6es diferentes de sua vida e uma tarefa ao mesmo tempo pesada e deontologicamente problematica. Mas a entrevista e 0 trabalho sobre arquivos varios podem ser reveladores - quando se e sensivel tanto as diferen~s quanto as constantes - de multiplas pequenas contradi~6es, de heterogeneidades comportamentais despercebidas pelos atores que amiude tenta, ao contrario, manter a i1usao da coerencia e da unidade de si mesmos. Trata-se nao 56 de comparar as praticas, maneiras, comportamentos dos mesmos atores em universos sociais (mundos sociais que podem em certos casas,
mas nao sistematicamente, se organizar sob a forma de campos de lutas) tais como 0 mundo do trabalho, a familia, a escola, a vizinhan~a, a igreja, 0 partido politico, 0 mundo do lazer, etc., mas tambem de diferenciar as situa~6es no interior desses diferentes grandes dominios - nem sempre tao claramente separados na realidade social - levando em conta as diferen~s intra-... (familiares, profissionais, etc.). Efreqiiente que os sociologos estudem os comportamentos dos atores no ambito de urn so dominio de atividade (sociologia da familia, sociologia da es12. Aqui se pensa nos trabalhos de John Gumperz e de William Labov, que inspiraram psic6\ogos trabalhando sobre a linguagem e, prindpalmente, Michael Cole: "A estrategia que adotamos em dais Qutros estudos, todos as dais realizados em Nova York, consistia em comparar 0 comportamento das mesmas crianr;as em suas salas de aula, quando passavam por testes e numa atividade fora da escola" (1996: 221).
.......,
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cola, sociologia do trabalho, sociologia da religiao ... }. Entao numa 56 e (mica cena social. Conforme 0 caso,
0
ator esta situado
e urn assalariado, urn aluno, urn
pai de aluno, um pai ou uma mae de familia, um marido ou uma esposa ... 0 costume da sociologia c1assica em lembrar as coordenadas sociais da pesquisa do tipo "escolaridade" ou "categoria socioprofissional" leva, todavia, os pesquisadores a reinjetar grosseiramente na analise elementos que sao exteriores a cena estudada. Mesmo quando e considerado apenas sob 0 angulo de seu comportamento religioso ou familiar, 0 pesquisado e sempre caracterizado por uma posi<;iio socioprofissional mais ou menos grosseiramente definida. Ja e mais raro que os sociologos comparem os pesquisados em duas cenas diferentes. Nao obstante, a situa~ao e comum para todos os que procuram captar os fenomenos de contradi~ao ou de diferen~a culturais. A sociologia da educa<;iio, por exemplo, est" muito afeita ao tipo de compara~ao: praticas educativas familiares/praticas escolares; conhecimentos populares/conhecimentos escolares; praticas Iinguageiras no grupo de pares/praticas Iinguageiras escolares; modos de exercicio da autoridade parental/modo escolar de exercicio da autoridade ... Mesmo se muitas vezes 0 acento e posto de modo mais particular numa cena (familiar ou escolar) - freqUentemente se pressupoe que a outra cena e conhecida ou entao o pesquisador se apoia nos trabalhos de outros pesquisadores -, este tipo de pesquisa e um primeiro passo para a aproxima~ao sociologica que chamamos desenvolvimento. Mas e muito dificil citar tr~balhos que tivessem "observado" sistematicamente os mesmos atores em mais de duas cenas oU alem de dois tipos de situa<;iio social. Uma parte desta situa~ao cientifica das coisas se deve certamente a especialidas pesquisas, que depende da organiza~ao intema das disciplinas cientificas e universitarias - especialmente quando 0 numero de pesquisadores em ciencias sociais se multiplica - mas depende tambem da maneira como os "forrnadores" legitimos de problemas sociais (de modo muito particular 0 estado) dividem a realidade social. Por isso as pesquisas financiadas em ambito nacional inscrevem-se tacitamente no interior das divisoes ministeriais: estuda-se a cidade, a escola, a cultura, a familia ou 0 trabalho porque existem ministerios de obras, de educa<;iio nacional, da cultura, de assuntos sociais, do trabalho. Que ministerio de qual govemo poderia interessar-se pelo ator atraves dos diferentes dominios de sua existencia? No entanto, nao se pode atribuir as condi<;oes extemas da pesquisa em ciencias sociais a responsabilidade essencial do estado da pesquisa no assunto. Essas condi~oes contribuem simplesmente para manter a situa~ao cientifica das coisas existentes. No proprio interior dos grandes dominios de existencia ou dos grandes tipos de atividade social, os sociologos teriam podido - e podem hoje - trabalhar a hipotese de uma varia<;iio das praticas e da heterogeneidade do estoque de esquemas incorporados pelos atores. Mas para trabalhar tais hipoteses ainda e preciso que elas sejam emitidas, forrnuladas, precisadas, explicitadas. Se a imagina<;iio sociol6gica nao se desenvolve sem pesquisa empirica, nunca e do "campo" que podem surgir outras maneiras de considera-Io. :'0 ponto de vista cria 0 objeto", como dizia Ferdinand de Saussure, e nao 0 contrario. za~iio
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Quando 0 pesquisador observa apenas uma cena, e nada 0 impede de faze-lo, deve, no entanto, esfon;ar-se por nao generalizar abusivamente as conquistas limitadas de conhecimento. Estas certamente sao modestas, mas jil tern uma pertinencia contextual. Ao impedir de ver os limites do conhecimento produzido e, ao mesmo tempo, encorajando a preguio;a empirica que consiste, no caso presente, em evitar 0 longo trabalho de compara¢o de comportamentos segundo os contextos, 0 demonio da generaliza¢o (que certamente se explica pelos ganhos simb6licos bern maiores que proporciona) constitui urn verdadeiro obstaculo para 0 conhecimento cientifico do mundo social.
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CENA2 Campos de pertin€mcia ' DA GENERALIZA<;AO ABUSIVA Continua uerdade que se pode adotor no pnitica urna descrit;iio qualquer, por tanto tempo que ndo se Ihe pergunte mais para que pode seruir, que nao se tente utiliza-Ia fora do dominio, necessariamente limitado, em que ela se apJiea de maneira satis/atoria (Jacques Bouveresse. Le Mythe de f'interiorite).
Ao se querer resumir a atitude adotada com relac;ao as diferentes teorias da ac;ao e do ator ao longo desta obra, diria que ela esta no lado oposto da critica polemica que surge habitualmente entre os partidarios dessas teorias. Nao se trata de uma pesquisa friorenta de urn "ambiente certo" nao encontravel, mas de uma relac;ao pragmMica e historicizante com os conceitos e as teorias sociol6gicas'.
o
estudo do mundo social nos ensina que nao existe um modele de ator, mas tipos muito variaveis de ator e de ac;ao - historicamente, socialmente, geograficamente - e por isso nao podemos pretender a pertinencia universal dos conceitos sociol6gicos. Uma grande parte de nossa conmbuic;ao "te6rica" para a questao nao e, pois, paradoxalmente, teoria, no sentido de que consistiria em defender um ponto de vista particular - e, evidentemente, original... - sobre a ac;ao eo ator. Ela e urn quadro epistemol6gico necessario para orientar a pesquisa empirica, mas nao faz juizo antecipado do que 56 se pode descobrir empiricamente, atraves de programas de pesquisa empirica originais. Ao proceder deste modo, novas
1. Esta parte e uma versao simplificada e modificada do artigo "La variation des cont~tes en sciences sociales. Remarques eplstemoJogiques", Anna/es. Hlstoire, sciences sociales, n. 2 (1966) 381-407. 2. Fai esta concepc;ao do debate em ciencias sociais que com~amos a desenvolver em Lahire, 1991b. .:.........c
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conceitos e novas op~6es teoricas podem ser progressivamente construidos, que, por sua vez, terao pertinencia cientifica apenas em certos Iimites de validade. Ha teorias da a¢o, da cogni¢o ou da priltica como de qualquer outr~ instrumento. Nenhuma e adequada ou pertinente a qualquer tipo de a~ao considerado. Elas nao falam todas da mesma maneira da realidade social e nao falam tadas das mesmas realidades sociais. Nao existe nenhuma maneira univoca de hierarquizar os resultados cientificos de teorias que privilegiam mais a a~ao coletiva ou mais a a¢o individual, que insistem na rela~ao com a a~ao ou preferem a tomada exterior de diferentes seqiiencias ou fases da a~ao, que estudam longas seqiiencias de a~ao ou das a~6es de curtas dura~6es. Pretender 0 contrario e uma maneira de ofender a realidade social e a varia~ao dos pontos de vista cientificamente fundamentados que a apreendem. Urn dos principais defeitos dos discursos teoricos, tanto em filosofia como em ciencias sociais, consiste em generalizar indevidamente urn caso particular do real. Semelhantes a especialistas do "jogo" que nos passasse as "regras do jogo de basquete" como sendo as "regras universais do jogo" validas para todos os tipos de jogos existentes (desde 0 jogo de xadrez ao rugby, passando pelo jogo de bola), os teoricos da a¢o - mesmo os mais lucidos deles - defendem muito seriamente teorias parciais como se se tratassem de teorias gerais. E que no mais das vezes eles imaginam que uma teoria geral e possivel, quando existe apenas teoria parcial. Como lembra Jacques Bouveresse, Wittgenstein nao estava longe de pensar que todas as teorias filosoficas sao "falsas" - "por excesso de ambi¢o, parcialidade, falta de aten¢o e de complexidade, etc." (1987: 36). Ao considerar 0 ator racional au automata, consciente au inconsciente, etc.,
raciocina-se de uma maneira apriorista, geral e universal que nao pade ser conveniente em ciencias sociais (Passeron, 1991 3). Poder-se-ia pedir mais modf!.stia aqueles que chegam a tais arroubos em generalidade, pois no fundo se trata de prestigio nessas tomadas de posi¢o teoricas generalistas. Se tomar 0 ponto de vista mais geral', isto e, 0 mais alto, 0 mais transcendente, afinal de contas nao era o "modelo sonhado", os pesquisadores poderiam eventualmente encontrar sua gloria pessoal na demonstra¢o da pertinencia relativa, Iimitada de suas analises. Ter-se-a compreendido que 0 modelo do ponto de vista mais alto e 0 de nossas hierarquias estatais, como anteriorrnente fora 0 das monarquias absolutas, das teocracias ou das tiranias. Seja presidente de uma republica democratica, monarca, teocrata, tirano, em todos os casos, 0 prestigio absoluto e 0 vertice da piramide. Mutatis mutandis, os te6ricos as vezes us~m, na ordem teorica, as mesmas estra3. Pode-se evocar Wittgenstein, que pensa de maneira semelhante em filosofia.
4. Roger Brubaker levanta alguma duvida sabre a pretensao generaiizante emitida por Pierre Bourdieu no prefacio aedi~o inglesa de La Distinction, a saber, que 0 modelo te6rico desenvolvido na ohra sena valida para todas as sociedades estratificadas. Brubaker se pergunta se a generalidade ede ordem metaf6rica (por exempia, sabre as relac;6es entre condic;oes de existfulcia, habitus e praticas) au de ordem mais hist6rica (par exemplo, sobre as mudan~ nos modos de domina~o ou no valor acrescido do capital cultural com rela~o ao capital economico). "The uniqueness of the Parisian haute bourgeoisie and the French educational system would seem to restrict the scope of at least some Bourdieu's generalizatIons about the relationships between class and culture" (1985: 774, nota 60).
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tegias que os militares ou estadistas; desenvolvem ai opera~6es analogas. As vezes podemos nos espantar com a perda de lUcidez teorica, mas isto nao tern nada de surpreendente quando se compreende 0 expediente: a perda de lucidez e urn ganho de envergadura. Tudo acontece como se, querendo tomar altura e virando-se para 0 sol, se acabasse nao venda os detalhes do chao. Longe demais, cego demais. Entao se gostaria de exclamar com Wittgenstein: "Voltemos ao solo desigual!" (1986: 164). A VARIA<;:AO DA ESCAlA DOS CONTEXTOS EM CItNCIAS SOCIAlS
Diante da diversidade de defini~6es, implicitas ou explicitas, de objetos em ciencias sociais, e forte a tenta¢o de dizer de maneira peremptoria, qual e a boa defini~ao, qual e a escala de observa¢o mais pertinente, qual e 0 ponto de vista mais exato, e e freqilentemente assim que procedem os pesquisadores, num procedimento que visa ao monop6lio da defini¢o legitim a dos objetos de pesquisa. Se nao pode realmente existir nenhum ponto de vista transcendente e integrador, cada urn poderia agir como se 0 detivesse, considerando as outras constru~6es do objeto a partir de sua propria perspectiva. No entanto, seria cientificamente mais fecundo constatar a varia¢o dos efeitos de conhecimento segundo 0 destaque do objeto adotado. Quando se deixa de colocar numa rela¢o polemica com as diferentes maneiras de construir os fatos sociais (posi¢o que leva a dizer, por exemplo, que 0 objeto dos outros e "redutor"), descobrem-se os efeitos de conhecimento proprios a cada modo de constru¢o e se toma bastante consciencia do carater construido de todo objeto cientifico. Eentao a posi~ao ativa do analista que e posta em evidencia e, ao mesmo tempo, a import§ncia das opera~6es, dos procedimentos de constru¢o com rela¢o aos resultados desses procedimentos5 • Assim se passa do real ontologleo (aquele que e evidente, que e tomado - seja qual for 0 objeto de estudo - como 0 born e verdadeiro real) ao real construfdo. Este ponto de vista construtivista - weberiano - permite ver que 0 "interno" e o "externo" (as leituras interna e externa) de um fato social sao fundarnentalmente uma questao de constru¢o do objeto e nao sao definidos de uma vez por todas. Por exemplo, e possivel constituir 0 quadro imediato da intera¢o verbal como contexto pertinente para evitar autonomizar a troca de palavra como faz Erving Goffman. Ele acha que as analises gramaticais ou lingilistieas, bern como as analises estritamente conversacionalistas, cometem uma "falta de nao contextualidade" ao estudar as "frases-exemplos auto-suficientes" ou "as trocas auto-suficientes" (Goffman, 1987: 38) e delimita bem 0 que e interno (0 enunciado reduzido as suas propriedades gramaticais e mesmo a troea verbal considerada como uma troca auto-suficiente) e 0 que e externo (e que se trata de reconstruir).
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5. C. Jouhaud escreve: "Os contextos nao exlstem anterionnente opera¢o que os constr6l. ou entao nao se trata de pressupostos. Nao ha contextos, mas opera¢es, procedimentos, e contextua1iza¢o que concemem
de maneira parcial, especifica e relativa a uma parte do rea1 hlst6rico" (1994: 273).
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Mas sempre e possivel censurar GoHman a partir de outra constru~ao do objeto e do contexto pertinente, de autonomizar a intercambios lingiiisticos, sustentando que a verdade da intera¢o nao esta tada contida na intera¢o e que "por falta de ir alem das a~oes e das intera~oes tomadas em sua imediatez diretamente visivel, a visao 'interacionista' nao pode descobrir senao as estrategias lingiiisticas dos diferentes agentes dependendo estreitamente de sua posi¢o na estrutura da distribui¢o do capitallingiiistico do qual se sabe que, por intennedio da estrutura das oportunidades de acesso ao sistema escolar, ela depende da estrutura das rela~oes de c1asse" (Bourdieu, 1982a: 57-58). 0 quadro imediato da intera~ao nao seria, pois, 0 contexto pertinente mas, antes, 0 mercado lingiiistico. A opera¢o de constru~ao do objeto converte, entao 0 "extemo" de outro pesquisador em "interno". No entanto, se um autor parece englobar 0 outro num quadro mais amplo, nao se pode por isso deduzir que ele esta certo e que 0 outro - dado que e "redutor" - esta errado. Nao se pode banir os objetos dos outros do "real" pura e simplesmente pretendendo que eles nao existem. "0 que existe no mundo social, sao as rela~oes - nao as intera~oes ou os la~os intersubjetivos entre agentes sociais, mas as rela~oes objetivas" (Bourdieu & Wacquant, 1992: 72, sublinhado por n6s). Nos dois casos, nao se explica simplesmente pelos mesmos fenomenos e nao se trabalha a partir dos mesmos contextos pertinentes. Por um lado, a pessoa se situara na analise, sobretudo, dos fenomenos de pressuposi~oes (ou de apreensao dos procedimentos interpretativos realizados pelos membros de uma comunidade)6; por outro lado, se sitUara no estudo das rela<;oes de domina¢o simb6lica entre interlocutores desigualmente dotados (principalmente em capital cultural e lingiiistico legitimo). VARIAC;OES EXPERIMENTAIS E PERDA DAS ILUSOES
Mais que deplorar 0 politeismo sociol6gico (interpretado como 0 sintoma do estado de juventude de fraqueza cientifica das ciencias sociais), isto e, a variabilidade constatavel de maneiras sociol6gicas de construir os objetos, pode-se considerar, ao contrario, que e na varia¢o experimental das constru~oes cientificas' que residem os efeitos de conhecimento mais interessantes nas ciencias sociais. Quer se decida estudar os quadros das intera<;oes ou das experiencias individuais, ou entao os campos, a estrutura das rela<;oes de domina¢o entre classes ou a a¢o individual, e impossivel dizer de maneira geral quem tem razao e quem nao tem, quem esta certo e quem est€! errado, quem tem a boa defini¢o dos objetos e quem tem a ma, bem como pretender - para voltar it nossa metafora inicial- que os jogadores de basquete sejam verdadeiros jogadores ao passo que os jogadores de futebol estariam errados em jogar como jogam. Para desenvolver a metafora, se acrescentara simplesmente que, seja qual for 0 jogo, e no campo que se reco-
6. A analise de quadros proposta por ElVing Goffman (1991) estuda "as estruturas da experl~da individual da vklasocial". Porsuavez, Aaron V. Cicourel. em Asoclologla cognitfoo (1979) tom;; como objetos, entreou· tros, os procoolmentos interpretativos des membros de uma comunidade.
,
7. Como a praticam os micro-historladores ltalianos, e principalmente Giovanni Levi (1989).
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nhecem os jogadores profissionais e os amadores, os mais competentes e os menos competentes, etc. Reconhecer a legitima pluralidade das maneiras de construir os objetos de pesquisa nao e, pOis, uma maneira indireta ou disfan;ada de afirmar que toda produc;ao cientifica tem valor (lahire, 1996b). De fato, as diferentes constru~6es do objeto nao falam das mesmas coisas e nao podem pretender - digam 0 que quiserem os seus defensores - explicar as mesmas realidades. A cada escala de contexto corresponde uma ordem de complexidade especifica, bern como informa~6es pertinentes especificas, ordem de complexidade e informa~6es pertinentes que nao sao aquelas que outros pesquisadores trabalham a partir de outras escalas. Nenhuma teotia, nenhuma constru~ao do objeto permitira jamais ter acesso as prilticas reais, ao real enquanto tal. Cada vez elas nos dao uma "versao'" plausivel disso. A vatia~ao expetimental das escalas de contexto ou dos modos de constru~ao cientifica dos objetos sup6e, entretanto, que se aceite a perda de varias ilus6es cientificas ainda muito significativas hoje e quase sempre associadas. Ela implica em romper com uma certa forma de epistemologia realista, com a ideia de um acumu10 linear do trabalho cientifico na historia e com a visao do possivel acesso a uma teotia que integratia todos os pontos de vista existentes (passados e presentes). A epistemologia realista nao admite distin~ao entre a teoria cientifica e 0 real. Por seus conceitos, 0 pesquisador acredita poder ter acesso, de uma maneira ou de outra, ao proprio real. Como escrevia Max Weber, a "confusao entre teotia e historia" toma formas variadas: "Ora se acredita fixar nesses quadros teoticos e conceituais 0 'verdadeiro' conteudo ou a 'essencia' da realidade histotica, ora sao utilizados como uma especie de leito de Procusto no qual se introduzira a for~ a historia, ora se hipostasiam as proptias 'ideias' para fazer a 'verdadeira' realidade perfilar-se atras do fluxo dos acontecimentos ou das 'for~s' reais que se realizaram na histotia" (Weber, 1992: 178). Assim Weber se posicionava em relac;ao ao marxismo mais de um ponto de vista epistemologico - censurando nele uma propensao a tomar conceitos ou quadros de pensamento por for~s agentes reais que teotico (reconhecia, alias, "a importancia heutistica eminente, e mesmo unica" da teotia marxista). Esta epistemologia realista conduz, muito freqiientemente, 0 pesquisador a pensar, de uma maneira evolucionista, que a histotia das teotias cientificas em ciencias sociais e a histotia das supera~6es progressivas que sup6em um acumulo linear dos conhecimentos cientificos, um progresso na complexidade das teorias e dos metodos cientificos. Esta visao das coisas implica, asslm, a investigac;ao do ponto de vista teotico integrador que permite considerar 0 lade geomettico de todas as perspectivas. Na relac;ao com as outras teotias (e com outros teoricos), 0 pesquisador, ao visar a integrac;ao teotica dos outros pontos de vista (passados e presentes) ou pensando ter atingido este objetivo, e levado a fazer a divisao entre a 8. 0 terrno e proposto porJacques Revel. que sustenta que as duas vers6es "macro" e "micro" da realidade "e muitas outras ainda a niveis intennediarios, que sena conveniente marcar de maneira experimental", sao
"verdadeiras" (1994: 319). Encontra·se wna posic;ao seme1hanteem Lepetit(l993: IS7): "Os macrofen6menos nao sao menos reais, as microfen6menos naD sao mais reais (au inversamente): nao ha hierarquia entre e1es". ":...--.00II
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exatidao eo erro cientifico, a boa escala de contexto e as escalas menos pertinentes, a teoria mais complexa e as teorias mais redutoras, etc., medindo tudo com 0 seu metro. Para mobilizar mais uma vez 0 olhar preciso de Max Weber, pode-se dizer que "ha ciencias as quais foi dado perrnanecerem etemamente jovens" (ibid.: 191), que nao podem pretender nem 0 simples acumulo historico nem a integrac;ao teorica total. Compreende-se isto ao se admitir que a diversidade das rela~oes com os valores leva os pesquisadores a interrogar de modo diferente a realidade social (esclarecer aspectos, dimensoes diferentes) e que os diferentes tipos de analise, as diferentes escalas de contexto possiveis nao produzem efeitos de conhecimento imediatamente acumulaveis (colocando-se urn problema de tradu,ao dos resultados de um nivel de analise ao outro, de urn tipo de metoda ao outro, de uma linguagem teorica a outra, etc.). A maneira como Pierre Bourdieu concebe 0 lugar de sua teoria do social no campo sociologico (e, mais amplamente, das ciencias sociais) esta proxima da posic;ao epistemologica que aqui submetemos a critica. De fato, a teoria dos campos, e principalmente a teoria dos campos de produ~ao cultural, que propoe um programa de pesquisa original e complexo, e apresentada ou defend ida de uma maneira que envolve, as vezes, uma epistemologia realista9 , a ideia de um acumulo de conhecimento cientifico 10 e a de uma integra~ao teorica dos pontos de vista existentes". A partir de uma tal concep~ao, outras constru~oes teoricas sao rejeitadas do lade do erro, da menor complexicWde ou da regressao cientificas. Pierre Bourdieu julga que a noc;ao de art world, empregada para os Estados Unidos, "marca uma regressao com rela~ao a teoria do campo" (1992: 288). Numa entrevista com um sociologo ingles, ele declara sem ambigilidade: "Por exemplo, a noc;aode campo do poder e um imenso progresso. Se eu devesse fazer desfilar todos os artigas, os estudos onde as pessoas cometem enormes erros, mesmo empiricos, porque nao tem esta no~ao ... " (Bourdieu & Grenfell, 1995: 8). Em tais tomadas de posic;ao, 0 autor parece querer reconhecer apenas a pluralidade dos modelos (e 12 interesses) cientificos possiveis de uma maneira evolucionista e hierarquica : ha modelos mais complexos que outros, mais cientificos, menos redutores. Mesmo
9. Pierre Bourdieu fala da "impressao de poder heuristico, que a execu<;lta de esquemas te6tico+pratkos muitas vez€S proporciona, que exprime 0 pr6prio movimento da realidade" que tern "como contraparte 0 sentimen· to permanente de insatisfa<;ij:o suscitado pela imensidade do trabalho necessaria para obter 0 plena rendi-
mento da teoria em cada caso considerado" (1992: 259). 10. 0 autar evoca" a direc;ao na qual deveria orientar-se uma cifu1cia social preocupada em transforrnar em programa de pesquisas empiricas realmente integradas e cumulativas a ambic;ao legitima de sistematicidade
que as pretens6es totalizantes da 'grande teoria' tern" (1992: 259). 11. "Para os marxistas, sou durkheimiano, para os durkheimianos, sou weberiano, para os weberianos, marxistao I... J Ninguem diz a si mesmo; 'Mas se fosse tudo isso ao mesmo tempo?' E se Fosse pr6prio da ciencia acumular em vez de ter antagonismos rituais? Penso que e plenamente possivel. E muito pretensioso, mas essas pessoas, Marx, Weber e Durkheim, foram pensados urn em relac;ao com os outros, e se pode chegar a ver 0 que cada urn viu dos outros e assim acumular, sintetizar de maneira nao ecletica" (Bourdieu & Grenfell, 1995, 15-16). 12. Cf. as severas criticas que dirige agenetica textual a partir de seus pr6prios objetiuos e fnteresses dentf/i. cos, fazendo como se todos as pesquisadores partiihassem (au devessem partilhar) 'Os rnesmos objetivos e os mesmos interesses de pesquisa; "Eu poderia tambem, correndo a risco de ser injusto, invocar a despropor¢o entre a imensidade do trabalho de erudi~ao e a exigliidade dos resultados obtidos" (1992: 277).
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se a teoria dos campos fosse modificilVel, perfectivel, etc., todavia ela seria a teoria cientifica historicamente mais acabada. Ora, admitindo-se que a realidade sensivel, fenomenal, e infinita e que e - por razoes que nossas rela<;oes com os valores, mas tam bern a diversidade das formas de vida social, tomam em parte compreensiveis - suscetivel de multiplas aproxima<;oes metodol6gicas, de multiplas interroga<;oes cientlficas, de multiplos pontos de vista, entao os modelos nao sao simplesmente hierarquizaveis, pois nem todos eles nos falam do mesmo mundo social. Quando lemos trabalhos cientificos provenientes de tradi<;oes te6ricas diversificadas, nao aprendemos as mesmas "coisas" com referencia ao mundo social e nao podemos pretender que urn ou 0 outro desses trabalhos permita captar de maneira mais complexa as mesmas realidades que os outros apreendem. Eles nos apresentam versoes diferentes de urn mundo social que ainda e suscetivel, com a varia<;iio perpetua dos valores e dos interesses culturais, de uma multidao de outras descri<;oes e analises. A diversidade das linguagens te6ricas e metodol6gicas em curso nas ciencias sociais, a variedade de escalas de contextualiza<;iio dos fenomenos sociais nao podem ser lidos segundo urn eixo unico que me<;a 0 grau de cientificidade dos trabalhos de pesquisa. HISTORICIZAGAO DAS TEORIAS UNIVERSAlS E CAMPOS DE PERTINENCIA
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Dado que, em razeJO do uaria~ao inevitauel das ideias de oolor dirigentes, ndo deveria haver conceitos historicos verdadeiramente dejinitiuos, susceptiveis de serem considerados como Jim ultimo e gero/, admitira que, justamente porque se terdo construfdo conceitos rigorosos e univocos para 0 ponto de vista singular, que orienta coda vez 0 trabalho, podera coda vez tomar cfaramente consc;encia dos lirnites de sua validade (Max Weber. Essais sur 10 tearie de fa science).
o trabafho de urn /i16s%
ndo consiste em produzir uma tese X, para depois, se possivel. flcar universa/mente conhecido como "senhor Tese X" au "senhora Tese xn (Hilary Putnam. Representation et reafite).
Ao se lembrarda importancia dos contextos de "medida" ou de observa<;iio (e dos procedimentos de constru<;iio desses contextos), liga-se inevitavelmente todo conceito sociol6gico (e todo sistema conceitual em ciencias sociais) a limites hist6ricos de validade. Conseqilentemente, e dificil ganhar em ciencias sociais em duas oportunidades ao mesmo tempo: a extensao de urn conceito (sua capacidade de abranger urn numero muito grande de situa<;oes socia is) e sua riqueza empirica (que faz com que ele nos diga ainda coisas sobre os segmentos, os partidos, os contextos relativamente singulares dentro do mundo social) (Weber, 1992: 159). Ao se querer dizer demais, corre-se 0 risco de nao se dizer nada. Quem muito
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abarca pouco aperta. Se os historiadores estao habituados a delimitar espaciotemporalmente seus objetos ate nos titulos enos subtitulos da sua publica~ao, os sociologos estao, no mais das vezes, apressados em generalizar as contribui~6es teoricas conseguidas a partir de urn contexte (com referencia a uma zona geograiica, urn periodo historico, urn setor de atividades particulares) relativamente restrito. A tomada de consciencia do carater historico dos conceitos sociol6gicos permite, no entanto, orientar diferentemente nossa rela~o para com as teorias do social concorrentes, historicizando os debates teoricos nos quais se esta inserido, na maioria das vezes, na forma da polemica teorica. Assim, mais do que entrar teo rica mente no debate "teorico" sobre as rela~6es entre individuos e sociedade, sobre 0 primade de urn ou do outro na analise, etc., Norbert Elias faz uma historiciza~o dessas no~6es reconduzindo os termos do debate a suas condi~6es socio-historicas de possibilidade. Estas categorias, tao amplas como forem, tern, no entanto, muitos limites socio-historicos de validade. Elias esbo~a a genese da no~ao de experiencia de uma subjetividade distinta de uma realidade social exterior (objetiva) recolocando este problema no quadro de uma historia (de longa dura~ao) das transforma~6es da economia psiquica (das estruturas da personalidade) ligadas aos processos de civiliza~ao (1991a). Oeste modo delimita 0 campo historico de pertinencia de uma oposi~o conceitual as vezes ainda mobilizada na maior inconsciencia teorica. Podem ser lembrados varios exemplos da realiza~ao frutuosa, ilustradora, desta historiciza~o dos conceitos ou das teorias sociologicas. Ourkheim criticou a apriorismo da economia politica, que coloca no principio de toda a~ao 0 "interesse" ou a "maximiza~ao do lucro" (1975: 16), cuidando, par sua vez, de cairem outra concep~o a priori do principia de toda a~ao humana. Marcel Mauss nao divide definitivamente entre a formalismo e 0 pragmatismo em materia de estudos das preces (mais ou menos autonomizadas com rela¢o aos ritos e cerimonias religiosas), adaptando 0 metoda a natureza do objeto estudado (1968: 451). Peter Berger & Thomas Luckmann definem uma parte do campo de pertinencia do "modelo goffmaniano" (1986: 281). Jack Goody delimita 0 campo do metoda estrutural-grafico e mostra principalmente os limites de utiliza~ao dos metodos e procedirnentos graiicos para apreender a logica propria das culturas orais (1979). Pierre Bourdieu (1976) delimita os campos de pertinencia respectivos do interacionismo (universos sociais com fraco grau de objetiva¢o e que conferem uma grande importancia ao cara a cara) e do estruturalismo (universos nos quais as hierarquias sao garantidas, objetivadas, codificadas, oficializadas em e pelas institui~oes escolares, estatais, juridicas, economicas). Etc. Mas esta atitude freqOentemente permanece implicita e parcial (par exemplo, o caso de Mikhail Bakhtine, que mostra os la~os existentes entre as teorias formalistas, estruturais e lingOisticas e as praticas pedagogicas, mas continuando a pensar que essas teorias sao "falsas") e aqueles que a utilizam sem nunca tirar sistematicamente todas as conseqOencias necessarias, sejam elas de ordem epistemol6gica ou entao da ordem das formas sociais do debate cientifico. No entanto, em Ludwig Wittgenstein se encontrariam as forrnula~6es mais prOximas do que se pode entender por campo de pertinencia. Par exemplo, nas Con-
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versations sur Freud, Wittgenstein censura em Freud nao a sua teoria dos sonhos, mas a sua pretensao de querer interpretar todos os sonhos a partir dessa teoria e a ideia segundo a qual ter razao apenas parcialmente equivaleria para ele a estar errado. Wittgenstein escreve: "e provavel que ha numerosas formas diferentes de sonhos e que nao ha so um tipo de explica¢o que se aplique a todos eles. Exatamente como ha numerosas especies diferentes de gracejos, ou exatamente como ha numerosas especies diferentes de linguagem. [... ) Ele [Freud) queria encontrar uma explica~ao unitaria que mostrasse 0 que e sonhar. Queria encontrar a essencia do sonho. E ele teria afastado toda ideia que tendesse a sugerir que ele pudesse ter parcialmente razao, sem ter razao absolutamente. Estar parcial mente no erro teria significado para ele que se enganava totalmente - que nao teria encontrado realmente a essencia do sonho" (1992: 98-99). Do mesmo modo, quando e levado a criticar a concep~ao do sentido em Santo Agostinho, nao se limita a dizer que se trata de uma teoria "falsa" do sentido, mas tenta compreender de que Santo Agostinho fala. "Poder-se-ia dizer que Santo Agostinho descreve urn sistema de comunica~ao; apenas que este sistema nao abarca tudo 0 que chamamos de linguagem. Sera preciso dizer em muitos casos onde esta a pergunta: 'Essa descri¢o e apropriada ou nao?' A resposta e: 'Sim, ela e utilizavel, mas apenas para esse dominio estreitamente delimitado, nao para a totalidade que voce pretende descrever' . Eo como se alguem explicasse: 'Jogar consiste em fazer objetos deslizar sobre uma superficie de acordo com certas regras .. .' enos Ihe respondessemos: 'Voce parece pensar no jogo de damas, mas todos os jogos nao estao ai. Voce pode corrigir a sua explica¢o limitando-a expressamente a essegenero dejogo'" (1986: 116). Mesmo quando elas sao concebidas por seus autores como universais, as teorias falam sempre - e no mais das vezes sem que seus autores 0 saibam - de uma categoria ou de uma classe de fatos socio-historicos relativamente singulares, elas sistematizam aspectos diferentes de nossas formas de vida social. Como se admirar pelo fato de que modelos teoricos fecundos para explicar certos fenomenos sociais bruscamente se mostram muito fracos quando se distanciam do centro de seu campo de pertinencia? Entao tentam freqtientemente - desesperadamentereconduzir a eles realidades que Ihes escapam. Tomando consciencia desse fato, pode-se fazer progredir os conhecimentos sociol6gicos por um movimento de contextualiza¢o ou de historiciza¢o do que e colocado como teorico, abstrato, descontextualizado e, finalmente, universal e transcendente a toda situa¢o socio-hist6rica particular. Poder-se-ia ate dizer que se progride tanto mais em ciencias sociais porque se consegue saber de que (de quais caracteristicas sociais, de quais formas de vida social, de quais tipos de fenomeno social) nos falam as teorias abstratas que se apresentam comumente como meios universais de pensar toda situa¢o socio-hist6rica. Mas para sair do sobrelan~o generalizador, seria preciso que nao fosse mais necessario afirmar 0 carater universal do poder heuristico de seu metodo, de seu modo de constru¢o do objeto, de sua escala de contextualiza~ao ou de seu modo de escrita sociologica para garantir-Ihes, no debate cientifico, uma legitimidade. A primeira li¢o (epistemologica) que se pode tirar destas reflexoes, sobre os campos de pertinencia das teorias, pode ser formulada da seguinte maneira: em suas oposi<;6es te6ricas, as pesquisadores em ciencias sociais sempre estao parcialmente errados por nao verem em que seus adversarios tern parcialmente razao. ~212
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Os pesquisadores podem se opor assim em tome de resultados que sao produzidos a partir de escalas de contextos, de maneiras de construir os objetos, etc., totalmente diferentes e, por isso, que nao sao imediatamente comparaveis. Podem tambem desenvolver teorias (necessariamente) parciais do social tomando-as pelo que elas nao sao, a saber, teorias universais, universalmente pertinentes, e desqualificar toda teoria concorrente sem se perguntar em que essas teorias adversas estao parcialmente fundadas. Urn trabalho critico nao polemico consiste, pois, em dizer: "Esse conceito que voce acredita geral, universal, aplica-se somente a tal ou tal categoria de fatos, a tal ou tal tipo de praticas, a tal ou tal escala de observa~ao ... " Esta maneira de conceber 0 debate cientifico nao visa a encontrar urn ambiente justo nem a convidar ao consenso academico. Em compensa¢o, e uma maneira de desqualificar todas as atitudes globais e abruptamente desqualificadoras em ciencias sociais.
A segunda Ii~ao (pratica) esta relacionada com a propria identidade dos pesquisadores em ciencias sociais. Ela parece fundar-se ainda amplamente hoje na ado~ao ou inven¢o de urn vocabulario teorico (uma teoria do social) rotulavel, na escolha definitiva e estavel de urn metodo particular (temos, assim, especialistas dos metodos estatisticos, da entrevista, do relato de vida, da analise de discursos, da observa~ao ... ) e de uma escala de contexto (mais micro ou mais macro). Estes tres aspectos sao relativamente solidarios entre eles, mesmo que nao estejam sistematicamente recortados. No tocante ao nivel conceitual, observa-se que urn "autor" reconhecido em ciencias soci),is e urn pesquisador identificado a partir de uma grade de interpreta~ao teorica reconhecivel. Esta situa¢o incita, freqilentemente, os autores potenciais a trabalhar mais no sentido da produ¢o da originalidade dessa grade teorica, com a preocupa~ao de manter uma certa coerencia teorica ao longo de seus trabalhos e de suas publica~6es, que fazer deslocamentos ou transforrna~6es de suas Iinguagens de descri¢o e de analise13. Se fosse diferente, nao se compreenderia 0 interesse curiosa e exotica que em ciencias sociais suscita o famoso corte entre 0 Wittgenstein do Tractatus logio-philosoficus e 0 Wittgenstein oposto das InvestigQl;oes filosaficas. Do lade dos metodos, os autores de Metier de sociologue jil tinham posta 0 acento na critica do "uso monomaniaco" que se fazia dele. Eles citavam a observa¢o bern humorada de A. Kaplan: "De urn martelo a uma crian~ e voce vera que tudo Ihe parece merecer uma martelada" (Bourdieu, Chamboredon, Passeron, 1973: 71). Ao ler os trabalhos sociologicos contemporaneos, pode-se ter a sensa¢o que os pesquisadores aprenderam, faz vinte anos, a combinar ou a articular, com mais ou menos reflexividade, dados produzidos com a ajuda de metodos de investiga¢o diferentes. Quanto a escala de contextualiza¢o, ela parece, apesar da mesti~gem dos metodos, ainda resistir a varia¢o. Mesmo quando combina diferentes metodos entre si, 0 pesquisador confere, bastante freqilentemente, urn privUegio particular a
13. A1em dissQ, desde que ha urn poueo de inquieta'Yao demais acerca do seu patrim6nio conceituai e desua frutifica~o, nunca se esta muito longe de uma tenta'Yao da defesa dogmatica e hipostasiante de conceitos 50ciol6gicos que, por natureza, s6 podem ser levados a revis6es.
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alguns deles e, ao mesmo tempo, a uma escala particular de observac;ao. A identidade do pesquisador continua, pois, a se cristalizar em tomo da escolha constante e nao explicitada de uma escala de contexto determinada. Acontece tudo como se, habituados aver 0 mundo a partir de uma distancia particular, os pesquisadores nao quisessem confundir, a nao seT por algum tempo, sua visao para se aproximar Oll se dis-
tanciar. Pode-se inclusive ficar urn pouco surpreso com 0 fato de que a simples curiosidade experimental nao levou ate entao muitos pesquisadores a observar 0 que seus objetos se tomam, seus problemas ou seus temas de estudo, como eles se transformam ou se deformam sob 0 efeito da varia<;ao do foco do objetivo. A pesquisa constante, experimental, do contexto pertinente entre os micro-historiadores italianos constitui, neste sentido, um progresso inegavel do conhecimento sociologico que a propria disciplina sociologica nao soube produzir. Nos mesmos, passando da analise macro-sociologica das desigualdades escolares para a analise do "fracasso escolar", que esta sendo feita, deslocando 0 olhar do universe escolar para 0 universe profissional e depois domestico, saindo do terreno da analise estatistica dos fen6menos de heran<;as culturais para penetrar no campo de investiga<;ao das modalidades concretas de "transmissao" da "cultura" e de constitui<;ao dos esquemas culturais, quisemos mudar, a cada vez voluntariamente, experimentalmente, 0 angulo de ataque cientifico das realidades sociais provando 0 limite dos conceitos sociologicos, dos esquemas de interpretac;ao ou dos metodos de observa<;ao da realidade. Nosso proposfto nao consistiu, apos cada deslocamento, em fazer, por exemplo, a critica das estatisticas, ou em proceder a uma defesa das descri<;oes etnograiicas idiograiicas. T ratava-se, muito mais, de uma tentativa de determina<;ao, a partir de urn problema particular, dos campos de pertinencia das diferentes abordagens. Em vez de proceder, como geralmente se faz, a uma defesa do carater universalmente fecundo de nossas constru<;oes do objeto, preferimos defender 0 carater experimental de nosso procedimento, que esta consciente dos Iimites de validade, do campo de pertinencia do modele utilizado.
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esbo<;o de uma teoria do ator plural, as reflexoes e interpreta<;oes sobre as molas da a<;ao, as formas de reflexividade e as diferentes logicas de ac;ao, sobre a tomada de posse dos processos polimorfos de incorpora<;ao e 0 estudo das dobras mais singulares do social que compoem este Iivro, mas tambem a maneira de estabelecer 0 debate com as teorias existentes, a maneira (nem realista nem universaIista) como pensamos a rela<;ao dos conceitos com 0 mundo social, as muitas pesquisas sobre as quais se ap6ia a nossa imaginac;ao sociol6gica e nossas Iinhas de investigac;ao do social, tudo isso deveria constituir uma abertura. Abertura ao mesrna tempo para mais modestia te6rica e menas rna consciEmcia teorica, maior ancoragem das propostas no mundo social e menos pregui<;a empirica, mais historiza<;ao e pragmatismo no usa dos conceitos e menos universaliza<;ao e generaliza<;ao, mais paixao sociolagica e menos respeito pelos academismos e pelas fronteiras institucionais, mais experimenta¢o e menos metodologismo, mais inventividade cientifica e menos dogmatismo de escola. Vasto programa e fraca probabilidade de realizac;ao? 0 futuro decidira.
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, INDIcE
Sumario,7
Proscenio, 9
Ato I - Esbo<;o de uma teoria do ator plural, 15 Cena 1: 0 ator plural, 17 Da unicidade, 17 A unicidade do si-mesmo: uma i1usao corriqueira socialmente bern fundamentada, 20 As condi<;c5es socio-historicas da unicidade e da pluralidade, 24 A pluralidade dos contextos sociais e dos repertorios de habitos, 31 o modele proustiano do ator plural, 37 Divisao do eu e conflito psiquico: 0 caso das travessias do espa<;o social,40 Cena 2: Os detenninantes da a¢o, 46 Presen.,a do passado, presente da a<;ao, 46 As muitas ocasic5es de desajustamento e de crise, 48 A pluralidade do ator e as aberturas do presente, 51 Disposi<;c5es sob condi¢o, 54 o poder negativo do contexto: inibi<;ao e expectativa, 59 Code switching e code mixing dentro de urn mesmo contexto, 64 o equilibrio incerto dos atores, 66 Cena 3: Analogia e transferencia, 69 A analogia pratica e os desencadeadores da a¢o e da memoria, 69 A a¢o e a memoria involuntarias, 72 o papel dos habitos, 75 Da transferencia analitica a rela¢o de entrevista, 77 Uma transferibilidade relativa, 80 Dos esquemas gerais aos esquemas parciais, 85 Do regime de transferencia generalizada ao regime de transferencia Iimitada e condicional, 89
Cena 4: A experiencia Iiterana: leitura, sonhos e atos falhos, 91 Ato II - Reflexividades e logicas de
a~ao,
101
Cena 1: Escola, a¢o e Iinguagem, 103 A ruptura escolar com 0 senso pratico, 103 Saussure ou a teoria pura das praticas escolares sobre a lingua, 109 As condi~6es sociais para sair do senso priltico, 112 Cena 2: As praticas ordinarias de escrita em a¢o, 116 Memoria incorporada, memoria objetivada, 117 Rupturas comuns com 0 senso pratico, 120 "Naturalmente", 123 A memoria do incomum, 124 Dura~6es longas e prepara¢o do futuro, 126 A complexidade das praticas a gerir, 128 o olicial, 0 formal e as situa~6es tensas, 129 A presen~ do ausente, 132 Os desregramentos temporarios do sens~ pratico, 134 o uso dos pianos: listas de todo tipo, 135 Pertinencia relativa do senso prati~o, 138 Cena 3: Pluralidade das logicas de a¢o, 142 A ambigtiidade da pratica, 142 o modele esportivo do senso pratico e seus limites, 145 Intencionalidade e escalas de contexto, 152 Pluralidade dos tempos e das logicas da a¢o, 154 Ato III - As formas de incorpora¢o, 159 Cena 1: 0 lugar da linguagem, 161 o mundo do silencio, 161 Da pontua¢o da a~ao it sua teoriza¢o, 167 linguagem e formas de vida social, 169 o misterio do interior, 171 Cena 2: 0 que se incorpora?, 172 Os processos de incorpora¢o-interioriza~ao-intemaliza¢o, 172 A incorpora¢o polimorfa da cultura escrita no universe familiar, 178 Identifica~6es negativas e for~ das injun¢es implicitas, 184 Ato N - Oficinas e debates, 187 Cena 1: A sociologia psicol6gica, 189 Uma saida da sociologia?, 191
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A objetividade do "subjetivo", 195 As dobras singulares do social, 197 Multideterminismo e sentimento de Iiberdade, 199 Novas exigencias metodol6gicas, 201 Cena 2: Campos de pertinencia, 204 Da generaliza<;iio abusiva, 204 A varia<;iio da escala dos contextos em ciencias sociais, 206 Varia~oes experimentais e perda das i1usoes, 207 Historiciza~ao das teorias universais e campos de pertinencia, 210 Bibliografia, 215
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