FUNDAc;:AO EDITORA DA UNESP Presidente do Conse/he Curador Marcos Macari Diretor-Presidente
Jose Castilho Morques Nefo Editor Executive
lezia
Hernani
Bomfim Gutierre
Pierre Bourdieu
(onse/ho Editorial Academico Antonio Celso Ferreira
Claudio Antonio Robello Coelho Elizobeth Berwerth Stucchi Kester Carraro Moria do Rosario Longo Mariotti Maria Encorna~60 Beltroe Sposito
Maria Helolso Martins Dios Mario Fernando Bolognesi
Pavlo Jose Branda Santilli
Roberto Andre Kroenkel
fditores Assistentes Anderson Nobara
OS USOS
sociois do ci€mcio
Por uma sociologia c1lnica do campo cientlfico
Denise Katchuian Dognini
Dido Bessana
Texto revisto pelo outor com 0 coloboro~6o de Patrick Champagne e Etienne Landais Conferencio e debote organizados pelo grupo Sciences en Questions, Paris, INRA, 11 de mar~a de 1997 Tradu~ao Denice Barbaro Catani
© 1997 Institut National de 10 Recherche Agronomique (INRA) Titulo original em frances: Les usages soc;oux de /0 science. Pour une socio/ogie c/;nique du chomp sr:ientjfique © 2003 do tradlH;oo brosileira: Fvndo~ao Ediloro do UNESP (FEU) Pro~ do se, 108 01001-900 - 560 Paulo -SP
Sum6rio
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ClP-Brasil. Catalogo~ao no fante Sindicato Nacional das Editores de li.. .ros, RJ
8778u Bourdieu, Pierre, 1930-2002 Os usos sociais do ciencio: por umo sociologio cJinico do compo cientifico / Pierre 8ourdieu; texto re....isto pelo autor com 0 colabo· ro~oo de Patrick Champagne e Etienne landais; troduc;oo Denice Barbaro Cotani. - sao Paulo: Editoro UNESP. 2004. Troduc;ao de: Les usages socioux de 10 science: por une socioJogie du chomp scientifique "Conferencia e debate orgonizodos pelo grupo Sciences en Questions, Paris, lNRA, 11 de marc;o de 1997" Inclui bibliografia ISBN 85-7139-530-6 1. Ciencio - Aspectos sociois.
7
sociais cia ciencia - Por uma sociologia c11nica do campo cientffico 17 OS USOS
Introdu~ao
17
Os campos como microcosmos relativamente autonomos 18
As propriedades especificas dos campos cientfficos 30
l. Titulo.
04-1083.
Pref:l.cio - Patrick Champagne
CDD 306.45 CDU 316_74,5
As duas especies de capital cientifico 35
o espa~o dos pontos de vista
43
A situa~o particular do INRA 48 Ir alem clas aparencias e clas falsas antinomias Editoro afiliodo:
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Btuilclta <1u £
Algumas
proposi~6es
normativas
Vma conversao coletiva 65 Discussao
70
59
53
Pref6cio
o grupo Sciencl'S en QUI'S/ions pediu-me que apresentasse brevemente Pierre Bourdieu antes de sua interven~ao entre os pesquisadores do Institut National de la Recherche Agronomique - Paris (INRA). A tarefa nao e fkit para mim, pelas rela~oes de trabalho que mantenho com Pierre Bourdieu hi muito tempo - quase trinta anos -, e fico tentado a sair dessa dizendo que Pierre Bourdieu e daquelas personalidades tao conhecidas que nao precisam mais ser apresentadas. Poderia ter ficado nisso se, estimulado pela dificuldade, nao tivesse tentado levar a serio 0 pedido que me foi feito. E como apresentar, efetivamente, uma obra tao importante e densa como a de Pierre Bourdieu, que estudou quase tudo: os camponeses, os artistas, a escola, os c1erigos, os patr6es, as classes populares etc., e que abarcou tantas disciplinas: a etnologia, a sociologia, a filosofia, a sociolingiiistica, a economia, a hist6ria etc.' Como dar conta de uma obra que se constituiu ao lange de centenas de pesquisas conduzidas 7
Pierre Bourdieu
Os usos socia is do ciencic
diretameme ou orientadas, ou simplesmente lidas e assimiladas durante praticamente quarenta anos?
sa"J,3 no qual mostra que a crise do campesinato nao encontra sua explica~o apenas no capitalismo agrario, mas tambem nos mecanismos muito mais sutis que se relacionam com a propria reprodu~o e, inclusive, com a reprodu~o biologica dos individuos. Se hoje, no emamo, 0 senhor e aqui convidado, paradoxalmeme nao 0 e por causa desses trabalhos rurais, mas sobretudo em razao dos trabalhos que tern marcado a sequencia de sua carreira e que fomeceram o material dos livros ma15 conhecidos ou rnais exatameme de Iivros cujos tirulos sao ma15 conhecidos. Nao sei realmente se 15so resulta de um agudo semido do marketing editorial, mas e possive! resumir toda sua obra a partir da escolha judiciosa dos titulos de suas publica~6es. 0 senhor, entretanto, come~ou mal, urna vez que seu primeiro livro, publicado em 1958 na cole~ao Que sais-je?, imitulava-se banalmente SOCiologie de 1'Algerie [Sociologia da Argelia],4 que surgiu alguns anos mais tarde com urn titulo bastante descritivo: Travail ettravailleurs en Algerie [Trabalho e trabalhadares na Argelia]5 Essas primeiras pesquisas permitiram, no emanto, que 0 senhor desenvolvesse um conceito destinado a urn grande futuro em seus trabalhos posteriores, refiro-me ao conceito de habitus. Ao voltar para a Fran~, apos uma breve passagem pela Universidade como maftre de conferences, 0 senhor foi eleito pela Ecole des Hautes Etudes como
Diante da impossibilidade de resumir em cinco minutos a obra de toda urna vida, porque nao estamos na televisiio, optei por Iimitar-me ao menos discutivel e talvez ao mais facil, fomecendo apenas algumas referencias biograficas e bibliograficas.
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Pierre Bourdieu, 0 senhor poderia ter sido convidado para vir aqui por causa de seus trabalhos acerca do mundo rural. Saindo da Escola Normal Superior que, no seu caso, se bern entendo, nao foi uma experiencia totalmeme encamada, 0 senhor come~ou, de fato, sua carreira trabalhando sobre a crise do mundo campones, tamo na Argelia, onde, durante 0 seu servi~o militar, fez seus primeiros contatos ime!eetuais, quamci na pequena cidade do Beam, na qual 0 senhor nasceu em 1930. Sua obra emao come~ pelos trabalhos acerca do mundo rural. 0 senhor publicou, em colabora~ao com Abde! Malek Sayad Le deracinement [0 desenraizamento], 1 uma obra sobre a crise da agricultura tradicional na Argelia, a qual foi preciso acrescentar Algerie 60 [Argetia 60],2 que foi publicada urn pouco mais tarde e na qual 0 senhor analisa 0 encontro da sociedade camponesa argelina tradicional com 0 espirito do capitalismo. Em 1962, na nova revista da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Etudes Rurales, a senhor publicou urn longo artigo intitulado "Celibat et condition paysanne" ["Celibato e condi~ao campone-
£"tudes Rura/es, n.5-6, p.32-136, avr.-sept. 1962. 4 Bourdieu, P. Soci%gie de /'A/gerie. Paris: PUF, 1958. (Coli. Que Sais-je?, 802).
3 Bourdieu, P. C€libat et condition paysanne.
1 Bourdieu, P., Sayad. A. I.e deracinemenl, lo crise de /'agrieu/ture Iraditionne/le en Algene. Paris: Minuit, 1964. 2 Bourdieu, P.
temporelles.
Algerie 60, structures economiques e/ structures Paris: Minuit, 1977.
8
5 Bourdieu, P. el al.
Travail et travai/leurs en Algene. Paris; La
Haye, Mouton, 1963. 9
Pierre Bourdieu
orientador de pesquisas. Trabalhou, nessa epoca, no Centre de Sociologie Europeenne, que havia sido criado com 0 benepliicito de Raymond Aron e que se dedica principalmente a analise do sistema de ensino. Em 1964, 0 senhor publicou urn primeiro balan~o
6 Bourdieu, P., Passesron,]. C. Les berltiers, /es etudiants et la
culture. Paris: Minuit, 1%4. 7 Bourdieu, P. el al. L'amour de I'art, les musees d'art et leur public. Paris: Minuil, 1966 led. bras.: Amor pela arte. Os museus de ane na Europa e
seu publico. Sao Paulo: Edusp,
20031. 8 Bourdieu, P., Passeron, J. C. La reproduction. EMmell/S pour une throne du systl~ne d'enseignement. Paris: Minuit, 1970 (ed. bras.: Reprodu~iio: elementos para uma teorta do siste-
ma de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975], 10
Os uses seciais da ciencia
que pensaram que esse livro demonstrava que a escola so reproduzia a estrutura social, enquanto 0 livro, para 0 senhor, e muito mais - parece-me - preteXlo para desenvolver urn novo sistema conceitual, apoiado principalmente sobre uma no~ao que teria, ela propria, muito futuro: a no~ao de violencia simb6lica. Ao lange dos anos 70, 0 senhor trabalhou numa vasta pesquisa sobre os processos de diferencia~ao social, verdadeira contribui~ao a uma teoria geral das classes sociais publicada em 1979 numa obra intitulada La distinction [A distinr;iio]9 0 subtitulo "Critica social do julgamento" explicitava meJhor sua verdadeira ambi,ao, que era a de construir, numa perspectiva neokanriana, uma teoria sociologica das categorias que organizam a perce~ao do mundo social e que por isso contribuem para produzi-lo. A publica~ao dessa obra ensejou 0 convite de Bernard Pivot para 0 senhor ir a televisao, e, depois disso, ele imaginou que 0 seu sucesso e ate a propria elei,ao dois anos mais tarde para o College de France the devem muito. Urn ano mais tarde, uma outra obra, Le sens pratique [0 senso pratico], 10 vern completar essa constru~ao. Nela, 0 senhor propoe uma teoria do conhecimento sociologico, esfor,ando-se por situar sua sociologia com rela,ao a corrente objetivista simbolizada, na ernologia, por LeviStrauss e com rela~ao as correntes subjetivistas representadas pela fenomenologia sartriana. A partir de 1975, 0 senhor retoma seus trabalhos sobre 0 sistema de ensino, ampliando-os para a constitui~ao dos campos de produ¢.io erudila - anes, ciencias
9 Bourdieu, P. La distinction. Critiquesocialedujugement. Pa-
ris: Minuit, 1979. 10 Bourdieu, P. le sens pratique. Paris: Minuir, 1980.
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Pierre Bourdieu
etc. -, e deparamos ai com nosso objeto de hoje. Desde 1971 em "Le marche des biens symboliques" ["0 mercado dos bens simb6licos"l, urn artigo publicado em L'Annee Sociologique," a senhor lan~ou as bases de algumas amllises posteriores nesse campo, distinguindo a que chamou 0 "campa da produ~ao em sentido estrito", espa~o de produ~ao erudita, no qual as produtores tern par publico, essencialmente, as outros produtores, isto e, seus concorrentes diretos (0 senhor pensava, entao, sobretudo no campo artistico), do "campo da grande produ~o cultural" (0 jomalismo au as industrias culturais, par exemplo, que se dirigem a um grande publico). Rapidamente, parem, nessa esteira a senhor estudou esse campa de produ~o restrito e particular que e a campo cient[fico e, em 1975, publicou urn artigo fundadar "La specificite du champ scientifique et les conditions sociales du progres de la raison" ["A especifkidade no campo cient[fico e as eondi~6es sociais do progresso da razao"l, no qual 0 senhor rompe com a tradi~o dominante da soeiologia da eieneia e sua visao canciliadora da "comunidade dentifica", introduzindo, especialmente, as conceitos de campo eient[fico e de capital dentifico; tudo isso mostrando que a 16gica desse mercado no qual, no limite, pode-se, como nas maternaticas avan~adas, ter par clientes apenas as seus piares concorrentes - e favoravel ao progressa da razao. 12 Em 1984, a
Os usos sociois do ciencia
senhor publicou Homo academicus,13 uma obra sabre
° corpo docente e, mais genericamente, sobre a institui~ao universitaria, sabre 0 academicismo, sobre as
lutas entre as disciplinas, sabre a perspectiva escolastica, sabre a crise de Maio de 68 etc. Em 1989, novo livro, novo iitulo e novo sucesso com La noblesse d'Etat [A nobreza do Estadol, subintitulado "Grandes eseolas e corporativismo", entendido como um ataque contra a E A J4 e as Grandes Escolas, principalmente par aqueles que saem dessas escolas do poder, quando se trata de uma analise dessa instilUi~o muito singular que e a Estado. Em 1992, a senhar publicou As regras da arte,IS com a subtitulo: "Genese e estrutura do campo literario", no qual propos uma teoria geral dos campos e refletiu sabre a que e uma revolu~ao simb6lica. Esse livro trata tambem do problema da fun,Ao social dos inteleetuais. 0 senhor decidiu, ao mesmo tempo, dar urn novo golpe editorial que consistiu em produzir urn livro grande, para que as jornalistas nao a lessem, mas com um bam titulo para que mesmo assim falassem dele. Para esse empreendimento reuniu em torno de si uma equipe de soci610gos, da qual eu mesmo fiz parte, para produzir essa soma de quase mil paginas dedicadas ao livro A miseria do mundo16 Lan~ada em 1993, essa obra tenta, a sua maneira, tamar acessivel,
13 Bourdieu, P. Homo academicus. Paris: Minuit, 1984. 11 Bourdieu, P. Le marche des biens symboliques. L 'Annee
Sociologique, 3' serie, v.22, p.49-126, 1971. 12 Bourdieu, P. La specificite du champ scientifique et les
14 ENA - Ecole Nationale d'Administration (£SCola Nacional de Administra¢i.o). (N. T.) 15 Bourdieu, P. Les reg/es de l'art- genese et stnJcture du champ
conditions sociales du progres de la raison. Sociofogie et
litteraire. Paris: Seuil, 1992 led. bras.: Asregrasdaarte. 2.ed.
SocierrJs, v.VI!, n.t, p.91-118, mai 1975; e tambem, Le champ
Sao Paulo: Cia. das Letra5, 2002].
scientifique.
Actes de fa Recherche en Scumces Socia/est n.2-
3, p.88-104, juin 1976.
16 Bourdieu, P. La misere du monde. Pari" Seuil, 1993 led. bras., A
12
mi.serla do mundo. 5.ed. Petropolis: Vozes, 2003]. 13
Pierre Bourdieu
Os usos sociois do ciencio
para alem do drculo de profissionais, as aniilises mais avan01das da sociologia. Alguns meses mais tarde, 0 senhor recebeu, pelo conjunlo de sua obra, a Medaille d'Or du CNRS,17 distinqao pela primeira vez atribuida a urn soci610go.
Sciences Sociales que 0 senhor criou em 1975 e sempre dirigiu e que conta com grande notoriedade nacional e imernacional. Seria preciso citar tambem diversas obras nas quais foram reproduzidas viirias conferencias que deu sobre 0 seu trabalho: Questoes de sociologia,20 Coisasditas,2' Rtiponses[RespostaSJ,22 Raz6es praticas,23 estudos que constituem a melhor inlrodu~ao a uma obra que, por vezes, e de dificil acesso para nao-especialistas. You passar-lhe a palavra, nao sem antes fazer uma ultima observa~ao: a preseme conferencia, intitulada "Os usos sociais cia ciencia", tern, como 0 senhor deve ter notado, urn tirulo relativamente banal. A explicaqao e simples: esse tirulo nao e seu, mas nosso. Nao ha duvida de que, no momento de editar eSla conferencia, o senhor nos ajudara a encontrar urn born SUblitulo!
Mais recentemente, 0 senhor reincidiu, invertendo
sua eSlrategia editorial, pois fez urn Iivro bern pequeno, para que os jomalistas 0 lessem, mas sabre urn tema do qual nao podem falar. E Sobre a televisao'B A julgar pelas rea~oes que enta~ suscitou, pode-se pensar que mais uma vez mirou corretamente. Mas, dessa vez l
o que os jornalistas leram mal foi 0 pr6prio tirulo, pois muitos deles acreditaram estar lendo Contre la television (Contra a televisaol, enquanto sua proposta - e estou bern a vontade para dizer - consiSlia sobrerudo numa imerrogaqao sobre a possivel comribuiqao das ciencias sociais a uma melhor oriema~ao dessa tecnologia so-
Patrick Champagne Diretor de Pesquisas do INRA
cialmenre invasiva que exerce uma influencia crescente sabre alguns universos> entre os quais
0
nosso.
Ficarei por aqui nesse breve panorama que dii apenas uma imagem muito incompleta de sua produ~ao cientifica. De fata, seria necessario evocar ainda outras
titulos, entre os quais 0 oficio de soci6logo, 19 que foi 0 breviario de toda uma gera~ao de pesquisadores desde os anos 70, a revista Actes de la Recherche en
17 CNRS - Centre National de 18 Recherche Scientifique (Centro Nacional da Pesquisa Cientifica). (N. T.)
18 Bourdieu, P. Sur/a television. Paris: Liber-Raisons d'Agir, 1996 led. bras.: Sobre a televisiio. Seguido de A influifncia do jornalismo e logos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997J. 19 Bourdieu, P. e{ al. I.e metier de sociologue. Paris: Mou{onBordas, 1%8 led. br
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20 Bourdieu, P. Questions de sociologie. Paris: Minuit, 1980. red. bras.: Quest6es de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983). 21 Bourdieu, P. Chases dites. Paris: Minuit, 1987 led. bras.: Coisas ditas. Sao Paulo: Brasiliense, 1990J. 22 Bourdieu, P., Wacquant, L. Reponses. Pour une anthropologie
reflexive.
Paris: SeuU, 1992.
23 Bourdieu, P. Raisonspratique5. Suylatbf§ortedai'action. Paris: Seuit, 1994 red. bras.: Raz6es prdlicas. Sabre a {eoria da al'ao. Campinas: Papirus, 19961. 15
as uses seciois do ciencio Por uma sociologia c1fnica do campo cientffico
Introduc;ao Agrade~o
a Palrick Champagne. Fiquei sensibilizado com a apresenra~ao que ele fez, porque ela forneee - 0 que nao e freqUenle - uma ideia baSlanle compIela e baslanre jUSla do meu trabalho. Isso faeililara minha tarefa de hoje. ESIClU feliz por incluir-me nessa serie de eonfereneias, porque sua organiza~ao pareee-me uma maneira baslanre exemplar, para uma inslilui~ao denrlfiea, de empreender uma reflexao coleliva sobre si pr6pria. Quero eonrribuir para essa reflexao sugerindo algumas quest5es sobre 0 que e a 16gica pr6pria do mundo cienlifieo e sobre a forma particular que essa 16giea assume no caso do INRA, com a esperan~ de deseneadear urn processo de auto-andlise coletiva. Penso que eslamos, hoje, em eondi~5es de conceber novas fonmas de reflexao. Trala-se, para'lanro, de mobilizar urn co17
Pierre Bourdieu
Os vsos sociois do ciencio
letivo, em torno de interroga~ges relativamente elaboradas, em co;'di~i:ies tais que se possa produzir uma verdade sobre si proprio que, certamente, ele e 0 unico capaz de produzir. Condi~6es que, devo dizer, nao me parecem ser cumpridas nas formas mais comuns de organiza~o coletiva cla reflexao, quer se trate de sindicatos quer de organiza~i:ies profissionais quer de comissi:ies, como 0 INRA sabe bern, encarregados de propor transforma~i:iesou reformas mais ou menos profundas. ao creio que basta reunir urn grupo para produzir a reflexao cientifica, mas acredito que, com a condi~ao de instaurar uma tal estrutura de troca que traga em si mesma 0 principio de sua propria regula~ao, podemse instaurar formas de reflexao que hoje nao tern lugar e que podem it alem de todas as especula~i:ies de especialistas (sobretudo em "cientometria") e de toclas as recomenda~oes de comites e de comissi:ies. Desejo contribuir para fazer existir em sua institui~ao urn tal lugar - a ser inventado - tentando, muito modestamente, submeter a urn exame cdtico rao radical quanto possivel as representa~6es endogenas ou exogenas, eruditas ou espontaneas, das quais 0 INRA tern sido objeto, e sobretudo fornecer os instrumentos de conhecimento que me pare~am indispensaveis a constru~o de uma representa~o vercladeira, portanto uti! para a a~o.
essas questoes, devo come~ar por lembrar algumas no~6es, como condi~oes para uma reflexao combativa, e em particular a n~ao de campo, da qual evocarei rapidamente a genese. Toclas as produ~6es culturais, a filosofia, a historia, a ciencia, a arte, a literatura etc., sao objetos de analises com pretens6es cientificas. Ha uma historia cia literatura, uma hist6ria cla filosofia, uma hist6ria das ciencias etc., e em rodos esses campos encontra-se a mesma oposic;ao, 0 mesmo antagonismo l frequentemente con-
~ao da ciencia, capaz de descrever e de orientar os usos sociais da ciencia' Para ter condi~i:ies de responder a
siderados como irredutiveis - sendo 0 dominio da arte, certamente, um dos lugares onde essa oposi~ao e mais forte - entre as interpreta~6es que podem ser chamaclas internalistas ou internas e aquelas que se podem chamar de externalistas ou extemas. Grosso modo, ha, de um lado, os que sustentam que, para compreender a literatura ou a filosofia, basta ler os textos. Para os defensores desse fetichismo do texto autonomizado que floresceu na Fran~ com a semiologia e que refloresce hoje em todos os lugares do mundo com 0 que se chama de pos-modernismo, 0 texto e 0 alfa e 0 i:imega e nada mais h3 para ser conhecido, quer se trate de um texto filosofico, de urn c6digo juridico ou de um poerna, a nao ser a letra do texto. Esquematizo um pouco, mas bern pouco. Em oposi~ao, uma outra tradi~o, freqiientemente representada por pessoas que se filiam ao marxismo, quer relacionar 0 texto ao contexto e propi:ie-se a interpretar as obras colocando-as em rela~ao com 0 mundo social ou 0 mundo econ6mico. Ha toda sorte de exemplos dessa oposi~o, e remeto os interessados ao meu livro Les regles de I'art [As regras da artel, no qual evoco de modo mais preciso as diferentes correntes e referencias bibliograficas de apoio.
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Os campos como microcosmos relativamente autonomos Quais sao os usas sociais cla dencia? E possivel fazer uma ciencia da ciencia, uma ciencia social da produ-
Pierre Bourdieu
as usos sociois do ciencio
Ao se tratar da ciencia, encontram-se as mesmas oposi<;oes, com uma tradi<;ao de historia da ciencia que e, alias, bastante proxima da historia da filosofia. Essa tradi<;iio, notoriamente representada na Fran<;a, descreve 0 processo de perpetua<;ao da ciencia como uma especie de partenogenese, a ciencia engendrando-se a si propria, fora de qualquer interven<;ao do mundo social. .E para escapar a essa alternativa que elaborei a no<;iio de campo . .E uma ideia extrernamente simples, cuja fun<;iio negativa e bastante evidente. Oigo que para compreender uma produ<;iio cultural (Iiteratura, ciencia etc.) nao basta referir-se ao contelido textual dessa produ<;iio, tampouco referir-se ao contexto social contentando-se em estabelecer uma rela<;ao direta entre 0 texto e 0 contexto. 0 que chama de "erro do curto-
~e,.,u .~ -A0TONoMIA jamais escapa as imposi<;6es do macrocosmo, ele dispOe, com rela<;iio a este, de uma autonomia parcial mais ou menos acentuada. E uma das grandes questoes que surgirao a proposito dos campos (ou dos subcampos) cientfficos sera precisamente acerca do grau de autonomia que eles usufruem. Uma das diferen<;as relativamente simples, mas nem sempre faci! de medir, de quantificar, entre os diferentes campos cientificos, isso que se chamam as disciplinas, estara, de fato, em seu grau de autonomia. A mesrna coisa entre as institui<;6es. Poder-se-a perguntar, por exemplo, se 0 CNRS e rnais autonomo do que 0 INRA e 0 INRA mais autonomo do que 0 INSEEI etc. Urn dos problemas conexos sera, evidentemente, 0 de saber qual e a natureza das pressoes externas, a forma sob a qual elas se exercem, creditos, ordens, instru<;oes, contraros, e sob quais formas
circuito", erro que consisce em reJacionar uma obra
se manifestam as resistencias que caracterizam a auto-
musical ou urn poema simbolista com as greves de Fourmies ou as manifesta<;oes de Anzim, como fazem certos historiadores da arte ou da Iiteratura. Minha hipatese consiste em supor que, entre esses dois palos, muito distanciados, entre os quais se supoe, urn pouco imprudentemente, que a Iiga<;ao possa se fazer, existe urn universe intermediario que chamo 0 campo literano artistico juridico au cientifico, isto e, 0 universo no qual estao inseridos os agentes e as institui<;oes que produzem, reproduzem ou difundem a arte,
nomia 1 ista
1
1
a literatura ou a ciencia. Esse universe
e urn
mundo
social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos especfficas. A no<;ao de campo esta af para designar esse espa~o
re1ativamente aut6nomo, esse rnicrocosmo dotado
de suas leis proprias. Se, como
0
macrocosmo, ele e
submetido a leis sociais, essas nao sao as mesmas. Se
20
e,
quais sao os mecanismo$ que
0
micra-
cosmo aciona para se Iibertar dessas imposi<;6es externas e ter condi<;oes de reconhecer apenas suas proprias determina<;oes internas. Em outras palavras, e preciso escapar a alternativa da "ciencia pura", totalmente livre de qualquer necessidade SOCial, e da "ciencia escrava", sujeita a todas as demandas politico-economicas. 0 campo cientlfico e urn mundo social e, como tal, faz imposi<;oes, solicita- ~ ~oes
etc., que sao, no entanto, relativamente indepen-
dentes das pressoes do mundo social global que 0 envolve. De fato, as press6es externas, sejam de que natureza forem, so se exercem por intermedio do cam-
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1 Instirut National de la Statistique des Etudes Economiques (Instiruro Nacional de Estatisticas e Estudos Econ6micos). (N. TJ
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po, sao mediatizadas pela 16gica do campo. Uma das manifesta\;oes mais vislveis da autonomia do campo e sua capacidade de refratar, retraduzindo sob uma forma especifica as pressoes ou as demandas externas. Como um fenomeno externo, uma catastrofe, uma calamidade (a peste negra da qual se procuram os efeitos na pintura), a doen9 da vaca-louca - que sei eu?vai se retraduzir num campo dado' Dizemos que quanto mais autonomo for um campo, maior sera 0 seu poder de refra,,"-o e mais as imposi\;6es externas serao transfiguradas, a ponto, freqiientemente, de se tomarem perfeitamente irreconhedveis.
a grau de autonomia de urn campo tem por indicador principal seu poder de refra,,"-o, de retradu\;ao. Inversamente, a heteronomia de um campo manifesta-se, essencialmente, pelo fato de que os problemas exteriores, em especial as problemas politicos, ai se exprimem diretamente. Isso significa que a "politiza\;ao" de uma disciplina nao e indicio de uma grande autonomia, e uma das maiores dificuldades encontradas pelas ciencias sociais para chegarem a autonomia e 0 fato de que pessoas pouco competentes, do ponto de vista de normas espedficas, possam sempre intervir em nome de prindpios heter6nomos sem serem imediatamenre desqualificadas. Se voce tentar dizer aos bi610gos que uma de suas descobenas e de esquerda ou de direita, cat6lica ou naocat6lica, voce suscitara uma franca hilaridade, mas nem sempre foi assim. Em sociologia, ainda se pode dizer esse tipo de coisas. Em economia, evidentemente, podese tambem dizer isso, ainda que as economistas se esforcem por fazer crer que isso nao e mais possive!. Todo campo, 0 campo cientifico por exemplo, e um campo de for\;as e um campo de lutas para conservar
.
" ...-
OS~ do ciencio
~ < t;x)t>1r N~
oU transformar esse campo de forps. Pode-se, num primeiro momento, descrever urn espa\;o cientifico ou um espa\;o religioso como um mundo fisico, comportando as rela\;oes de for\;a, as rela\;oes de domina,,"-o. as agentes - por exemplo, as empresas no caso do campo economico - criam 0 espa\;o, e 0 espa\;o s6 existe (de alguma maneira) pelos agentes e pelas rela~oes objetivas entre os agentes que ai se encontram. Uma grande empresa deforma todo 0 espal'o econ6mico conferindo-Ihe uma cena estrulUra. No campo cientifico, Einstein, tal como uma grande empresa, deformou todo 0 espa\;o em torno de si. Essa metafora "einsteiniana" a prop6sito do pr6prio Einstein significa que nao ha fisico, pequeno ou grande, em Brioude ou em Harvard que Cindependentemente de qualquer contato direto, de qualquer intera\;ao) nao tenha sido tocado, perturbado, marginalizado pela interven\;ao de Einstein, tanto quanto um grande estabelecimento que, ao baixar seus pre\;os, lan\;a fora do espa\;o economico toda uma popula\;ao de pequenos empresarios. Nessas condi\;oes, e imponante, em seguida, para a reflexao pratica, 0 que comanda os pontos de vista, o que comanda as interven\;oes cientificas, os lugares de publica\;ao, os temas que escolhemos, os objetos pelos quais nos interessamos etc. e a estrutura das rela~oes objetivas entre os diferentes agentes que sao, para empregar ainda a metafora "einsteiniana", os principios do campo. E a estrutura das relaf6es objetivas entre os agentes que determina 0 que eles podem e nao podem fazer. au, mais precisamente, e a posi,,"-o que eles ocupam nessa estrutura que determina ou orienta, pelo menos negativamente, suas tomadas de posi,,"-0. Isso significa que s6 compreendemos, verdadeiramente, 0 que
Pierre Bourdieu
campo (um economista, um escritor, um artista etc.) se estamos em condi~bes de nos referirmos a posi~ao que ele ocupa nesse campo, se sabemos "de onde ele fala", como se dizia de modo um tanto vago por volta de 1968 - 0 que supbe que pudemos e soubemos fazer, previamente, 0 trabalho necessario para construir as rela~bes objetivas que sao constitutivas da estrutura do campo em questao - em vez de nos contentarmos em nos reportar ao lugar que supostamente ele ocupa no espa~o social global, 0 que a tradi~ao marxista chama de sua condi~ao de classe. Essa estrutura e, grosso modo, determinada pela distribui\'ao do capital cientifico num dado momento. Em outras palavras, os agentes (individuos ou institui\,bes) caracterizados peto volume de seu capital determinam a estrutura do campo em propor\'ao ao seu peso, que depende do peso de todos os outros agentes, isto e, de todo 0 espa\,o. Mas, contrariamente, cada agente age sob a pressao da estrutura do espa\,o que se impbe a ele tanto mais brutalmente quanto seu peso relativo seja mais fragil. Essa pressao estrutural nao assume, necessariamente, a forma de uma imposi\=ao direta que se exerceria na intera\=ao Cordem, "influencia" etc.). Igualmente, no campo economico, uma altera<;ao de pre\,os decidida pelos dominantes muda 0 panorama de todas as empresas. Do mesmo modo que, no campo intelectual dos anos 50, Sartre, com suas tomadas de posi\,ao, a prop6sito de Heidegger ou de Faulkner, comanda indiretamente as escolhas de Bataille e de Blanchot,> tanto quanto, no dominio da pesquisa
2 Cf. Boschetti, A. Sartre et les temps modernes. Paris: Minuit,
1985.
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Os usos sodois do dencia
iJS f\~-E.N1'6~
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cientifica, os pesquisadores ou as pesquisas dominantes definem 0 que e, num dado momento do tempo, 0 conjunto de objetos importantes, isto e, 0 conjunto das questbes que importam para os pesquisadores, sobre as quais eles vaG concentrar seus esfor,os e, se assim posso dizer, "cempensar", determinando uma concentra~ao de esfor~os de pesquisa. Segue-se que, contrariamente ao que leva a crer num construtivismo idealista, os agentes fazem os fatos cientificos e ate mesmo fazem, em parte, 0 campo cientifico, mas a partir de uma posi,ao nesse campo - posi~ao essa que nao fizeram - e que contribui para definir suas possibilidades e suas impossibilidades. Contra a ilusao maquiavelica a qual alguns soci610gos da ciencia sucumbem, talvez porque tomem emprestado aos eruditos sua pr6pria visao "estrategica", para nao dizer dnica, do mundo cientffico, e precise, primeiramente, lembrar que nada e mais dificil e ate mesmo e impossivel de "manipular" do que um campo. E preciso dizer, par outro lado, que, por muito versado que possa ser na "gestao de redes" (com que tanto se preocupam aqueles que julgam servir-se de sua "ciencia" da ciencia para promover suas teorias da ciencia e afirmar seu poder de especialistas no mundo da ciencia), as oportunidades que um agente singular tem de submeter as for,as do campo aos seus desejos sao proporcionais a sua for,a sobre 0 campo, isto e, ao seu capital de credito cientffico OU, mais precisamente, a sua posi<;ao na estrutura da distribui\,ao do capital. Isso e verdadeiro, salvo nos casas inteiramente excepcionais, nos quais, per uma descoberta revoluciomiria, capaz de questionar os pr6prios fundamentos da ordem cientifica estabelecida, um cientista redefine os pr6prios principios da distribui~ao do capital, as pr6prias regras do jogo.
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Disse que aquilo que define a estrutura de urn campo num dado momento e a estrutura da distribui~ao do capital cientifico entre os diferentes agentes enga)ados nesse campo. Muito bern, dirao, mas 0 que voce entende por capital? S6 posso responder brevemente: cada campo e 0 lugar de constitui~ao de uma forma especifica de capital. Como estabeleci ja em 19753 (a lembran~a das datas, quer dizer, das prioridades de descoberta,
e necessaria,
as vezes, para se proteger contra as
malversa~oes, sobretudo quando elas se acompanham de deforma~oes destinadas a dissimula-Ias), 0 capital cientifico e uma especie particular do capital simb6lico (0 qual, sabe-se, e sempre fundado sobre atos de 01 conhecimento e reconhecimento) que consiste no reV' ·,·11 conhecimento (ou no credito) atribuido pelo conjunto V' de pares-concorrentes no interior do camp". C1ent . ifiICO . if IJ (0 numero de men~oes do CItatIOn Index e urn born indicador, que se pode melhorar, como 0 fiz na pesquisa sobre 0 campo universitario frances, levando :m conta as sinais de reconhecimento e de consagra~o, tais como os premios Nobel ou, em escala nacional, as medalhas do CNRS e tambem as tradu~oes para as linguas estrangeiras). Voltarei, em seguida, as diferentes formas que podem assumir esse capital e os poderes que ele proporciona aos seus detentores. . as capitalistas cientistas, se assim posso me expomir, nao tem quase nada em comum - se se poem a parte os efeitos das homologias estruturais - com os capitalistas no sentido comum, isto e, aqueles que se
-l;r
Os usos socieis de ciencio
encontram no campo economico (e a confusao, se perrnite dar a impressao de radicalismo, e extremamente perigosa, uma vez que volta a ignorar todas as espeCificidades ligadas a 16gica pr6pria do campo cientifico). E evidente que 0 capital de pnstein nao era de natureza financeira. Esse capital, de urn tipo inteiramente particular, repousa, por sua vez, sobre 0 reconhecimento de uma competencia que, para alem dos efeitos que ela produz e em parte mediante esses efeitos, proporciona autoridade e contribui para definir nao somente as regras do jogo, mas tambem suas regularidades, as leis segundo as quais vao se distribuir os lucros nesse jogo, as leis que fazem que seja au nao importante escrever sobre tal tema, que e brilhante ou ultrapassado, e 0 que e mais compensadar publicar no American journal de tal e tal do que na Revue Franfaise disso e daquilo. as campos sao as lugares de rela~oes de for~s que implicam tendencias imanentes e probabilidades objetivas. Um campo nao se orienta totalmente ao acaso. Nem tudo nele e igualmente possivel e impossivel em cada momento. Entre as vantagens sociais daqueles que nasceram num campo, esta precisamente a fato de ter, par uma especie de ciencia infusa, 0 domlnio das leis imanentes do campo leis nao escritas que sao inscrilas na realidade em estado de tendencias e de ter 0 que se chama em rugby, mas tambem na Bolsa, 0 sentido do fogo' Por exemplo, numerosos esrudos 0 confirmam, as estrategias de reconversao que os cientistas praticam e que os conduzem a passar de um dominio ou de um tema a outro sao muito desigual-
. 3 Bourdieu, P. La specificite du champ scientifique et les conditions sociales du progres de La raison. Soci%gie el Societes(MontriiaJ), v.VlI, n.J, pA, mal 1975.
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tA...Q.....
4 Sens du placemenl, no original. (N. T.) 27
N0 U'rt1¢';' AS {lk,6tW l& B.~ ~ as usos sociois do ciencio
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mente provaveis de acordo com os agentes, 0 capital de que dis poem, e segundo a reIa~ao com 0 capital adquirido mediante sua pr6pria maneira de adquirir esse capital. Essa arte de antecipar as tendencias, observada por tada parte, que esta estreitamente ligada a uma origem social e escolar elevada e que permite apossar-se dos bons temas em boa hora, bons lugares de publica~ao (ou mesmo de exposi~ao) etc. e urn dos fatores que determinam as diferen~s socia is rnais marcantes nas carreiras cientificas (e isso e mais manifesto ainda na arte moderna). Esse senso do jogo e, de infcio, urn senso da hist6ria do jogo, no sentido do futuro do jogo. Como urn born jogador de rugby sabe para onde vai a bola e se poe la onde a bola vai cair, 0 born cientista jogadar e aquele que, sem ter necessidade de calcular, de ser clnico, faz as escolhas que compensam. Aqueles que nasceram no jogo tern 0 privilegio do "inatismo". Eles nao tern necessidade de serem cinicos para fazer 0 que e preciso quando e preciso e ganhar a aposta. Ha, portanto, estruturas objetivas, e alem disso ha lutas em torno dessas estruturas. Os agentes sociais, evidentemente, nao sao partlculas passivamente conduzidas pelas far~s do campo (mesmo se as vezes se diz que hi essa semelhan~: caso se observem algumas ,,\)evolu~oes politicas, como a do numero de nossos in~~'I' teleetuais, como nao dizer que a limalha segue realmen~'t' te as for~s do campo?). Eles tern disposi,oes adquiridas - nao desenvolverei aqui esse ponto - que chamo de habitus, isto e, manelras de ser permanentes, duraveis que podem, em particular, leva-los a resistir, a oporse as for~s do campo. Aqueles que adquirem, longe do campo em que se inscrevem, as disposi~6es que nao
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sao aquelas que esse campo exige. arriscam-se, par
exemplo, a estar sempre defasados, deslocados, mal colocados, mal em sua pr6pria pele, na contramao e na hora errada, com rodas as consequencias que se possa imaginar. Mas eles podem tambem lutar com as for~s do campo, resistir-Ihes e, em vez de submeter suas disposi~oes as estruturas, tentar modificar as esttuturas em razao de suas disposi~oes, para conformalas as suas disposi~6es. Qualquer que seja 0 campo, ele e objeto de lura tanto em sua representa~ao quanto em sua realidade. A diferen~ maior entre urn campo e urn jogo (que nao devera ser esquecida por aqueles que se armam da teoria dos jogos para compreender os jogos sociais e, em particular, 0 jogo economico) e que 0 campo e urn jogo no qual as regras do jogo estao elas pr6prias postaS em jogo (como se ve rodas as vezes que uma revolu~o simb6lica - aquela operada por Manet, por exempIa - vern redefinir as pr6prias condi~oes de acesso ao jogo, isto e, as propriedades que al funcionam como capital e dao poder sobre 0 jogo e sobre os outros jogadores). Os agentes sociais estao inseridos na estrutura e em posi~6es que dependem do seu capital e desenvolvem esrraregias que dependem, elas pr6prias, em grande parte, dessas posi~oes, nos limites de suas disposi~oes. Essas estrategias orientam-se seja para a conserva~o da estrutura seja para a sua transforma~o, e pode-se genericamente verificar que quanto mais as pessoas ocupam uma posi~ao favorecida na estrutura, mais elas tendem a conservar ao mesmo tempo a estfutura e sua posi<;io, nos Hmites, no entanto, de suas disposi~oes (isto e, de sua trajet6ria social, de sua origem social) que sao mais ou menos apropriadas a sua posi~ao.
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As propriedades especfficas dos campos cientificos Assim, tendo relembrado as propriedades mais gerais dos campos, tomando, de prop6sito, exemplos no campo economico au no literario tanto quanta no cient!fico, gostaria agora de apresentar, rapidamente, as caraeteristicas especificas do campo cientifico. Quanto mais OS campos cientificos sao autonomos, mais eles esca.pam as leis sociais externas. Descartei, de infcio, uma . forma de reducionismo que consiste em reduzir as leis segundo as quais um campo funciona pelas leis sociais exteriores, 0 que chamei de erro do curto-circuito.
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Os usos sociois do cil3ncia
Em outras palavras, a campo, isto e, mais precisamente a economia antiecon6mica e a concorrencia regulada da qual ele e a lugar, produz essa forma particular de illusio que e a interesse cient!fico, au seja, um interesse que com rela,ao as formas de interesse correntes na existencia cotidiana (e em particular no campo economico) aparece como desinteressada, gratuita. Mas, mais sutilmente, a interesse "puro", desinteressado, e um interesse pelo desinteresse, forma de interesse que convem a todas as economias dos bens simb6licos, economias antiecon6micas, nas quais, de alguma maneira, e a desinteresse que "compensa". Ai esti uma das diferen<;;as mais radicais entre 0 "capitalista cientista" e a capitalista simplesmente. Segue-se que as estrategias dos agentes tem sempre, de algum modo, dupla face, ambiguas, interessadas e desinteressadas, pais sao inspiraclas por uma especie de interesse pelo desinteresse e que se pode fazer delas duas descri,bes opostas, mas igualmente falsas, uma vez que unilaterais, uma hagiografica e idealizada, outra cinica e redutora que faz do "capitalista cientista" urn capitalista como as outros.
Hi, no entanto, uma segunda forma de reducionismo, mais sutil: e 0 que se chama 0 "grande programa" em sociologia das ciencias, "radicaliza,ao" indevida de posi,bes que defendo e que consiste em reduzir as estrategias dos eruditos as estrategias sociais das quais sempre sao urn aspecto e a seus determinantes sociais e em ignorar a sublima<;;ao dos interesses externos, politicos - isso e 6bvio - ou internos, ligados a luta no campo e que se impbem pelas leis sociais do campo (e em particular pelas pressbes inerentes ao fato de que cada urn tern par clientes as seus pr6prios concorrentes). Sublima,ao que, tacitamente, exigida de todo recem-chegado, e implicada nessa forma particular de illusio inerente ao pertencimento a urn campo, isto e, a cren<;;a cientffica como interesse desinteressado e interesse pelo desinteresse, que leva a admitir, como se diz, que 0 jogo cientifico merece ser jogado, que ele vale a pena, e que define os objetos dignos de interesse, interessantes, importantes, capazes, portanto, de merecer 0 investimento.
Tem-se, assim, testemunhos vindos de responsiveis pelas grandes revistas americanas de fisica que contam que seus pesquisadores lhes telefonam dia e noite, angustiados, porque se pode perder a beneficio de vinte anos de pesquisa por cinco minutos de atraso. Compreende-se que nessas condi,bes se esteja lange da visao hagiogrifica da ciencia que e desmentida par tudo a que se conhece da verdade da pesquisa: as pligios, a roubo de ideias, as querelas de prioridades e tantas outras priticas que sao tao antigas quanta a pr6pria ciencia. Os eruditos sao interessados, tem vontade de chegar primeiro, de serem os melhores, de brilhar.
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o paradoxo dos campos cientificos, entretanto, e que eles produzem, ao mesmo tempo, essas pulsOes destrutivas e 0 controle dessas pulsOes. Se voce deseja triunfar sobre urn matemalico, e preciso faze-Io matemalicameme pela demonstra~ao ou refuta~o. Evidentememe, ha sempre a possibilidade de que 0 soldado romano corte a cabe~ de urn matematico, mas isso e urn "erro de categoria", diriam os filosefos. Pascal veria nisso urn ato de tirania que consiste em utilizar numa ordem urn poder que pertence a outra ordem. Mas urn taltriunfo nao 0 e, realmente, segundo as normas pr6prias do campo. Acomece a mesma coisa com 0 sucesso desses autores que, nao podendo chegar a consagra~ao segundo as normas espedficas do campo Iiteriirio, se fazem e1eger para a Academia Francesa e passam 0 tempo a escrever nos jornais ou a se exibir na televi-
Os usos sociois do ciencio
um dos agentes) seja mais importante e que estejam de acordo ao menos para invocar, como uma especie de arbitro ultimo,
0
veredito da experiencia, isto
e,
do
"real". Essa "realidade objeliva" a qual todo mundo se refere de maneira tiicita ou explicita nao e jamals, em definitivo, aquilo sobre 0 que os pesquisadores engajados no campo, num dado momenta do tempo, concordam em considerar como tal, e ela s6 se manifesta no campo mediante as representa,6es que dela fazem aqueles que invocam sua arbitragem. Esse pede tambem ser 0 case noutros campos, como ocampo religioso ou 0 campo poHtico, nos quais, em particular, os adversarios lutam para impor principios de visao e de divisao do mundo social, sistemas de classificac;Oes, em classes, regioes, naf;Qes, etnias etc., e nao
cessam de tomar per testemunho, de algum modo, 0 mundo social, de convoci-Io a depor, para pedir-Ihe que confirme ou negue seus diagnosricos ou seus prognosli-
sao. Numerosas consagra~oes temporais na ordem espiritual rem uma tal fun~ao compensatoria. Quamo mais urn campo e heteronomo, mais a concorrencia e imperfeita e e mais Hcito para os agentes fazer intervir for~as nao-ciemfficas nas lutas cientificas. Ao contrario, quanto rnais urn campo e autonomo e proximo de uma concorrencia pura e perfeita, mais a censura e puramente ciemifica e exclui a interven~ao de for~as puramente sociais (argumento de autoridade, san~oes de carreira etc.) e as pressOes sociais assumem a forma de pressoes 16gicas, e reciprocameme: para se fazer valer ai, e preciso fazer valer razoes; para ai triunfar, e precise fazer triunfar argumentos, demonslra~Oes e refuta~oes. A luta ciemifica e uma luta armada entre adversarios que possuem armas tao potenles e eficazes quanto 0 capital cientifico colerivamente acumulado no e pelo campo (portanto, em estado incorporado, em cada
cificidade do campo ciemifico e aquilo sobre 0 que os concorrentes estao de acerdo acerca dos principios de verifica~ao da conformidade ao "real", acerca dos metodos comuns de valida~ao de teses e de hipoteses, logo sobre 0 contraro tacito, inseparavelmenre poHrico e cognitivo, que funda e rege 0 trabalho de objetiva,ao. Em conseqUencia, aquilo com que se defronta no campo sao constru~iies sociais concorrentes, representa,6es (com tudo 0 que a palavra implica de eXibi~ao teatral destinada a fazer ver e a fazer valer uma maneird de ver), mas representa~iies realistas que se pretendem fundadas numa "realidade" dotada de todos os meios de impor seu veredito mediante 0 arsenal de metodos, instrumentos e tecrucas de experimenta~ocoletivamenre acumulados e colelivamenre empregados, sob a imposi-
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cos, suas visoes e suas previs6es. Mas
0
que faz a espe-
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Os usos sociols do ciencia
das disciplinas e das censuras do campo e tambem pela virtude invisivel da orquestra,ao dos habitus. Tudo iria bem no melhor dos mundos cienrificos possiveis se a l6gica da concorrencia puramente cient!fica fundada apenas sobre a for,a de razbes e de argumenros nao Fosse contrariada e ate mesmo, em certos casos, anulada par for,as e press6es extemas (como se ve no caso das ciencias que ainda estao a meio-<:aminho no processo de autonomiza~o e onde se podem sempre disfar,ar as censuras sociais em censuras cient!ficas e vestir de raz6es cienrificas os abusos do poder social espedfico, como a autoridade administrativa ou o poder de nomea~o mediante bancas de concursos). De fato, 0 mundo da ciencia, como 0 mundo econamico, conhece rela,oes de far,a, fenamenos de concentra~o do capital e do poder ou mesmo de monop6lio, rela,bes sociajs de domina,ao que implicam uma apropria,ao dos meios de prodUl;:ao e de reprodu,ao, conhece tambem luras que, em parte, tern par m6vel o controle dos meios de produ,ao e reprodu,ao especificos, pr6prios do subuniverso considerado. Se e assim, entre outras razoes, e porque a economia antieconamica - volta rei a esse ponto - da ordem propria-
co esti protegido contra as inrrusoes (mediante, principalmente, 0 direiro de entrada mais ou menos elevado que ele imp6e aos recem-chegados e que depende do capital cientifico coletivamente acumulado) e do grau em que e capaz de impor suas san,bes positivas ou negativas.
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mente cientifica permanece enraizada na econemia e
As duos especies de capital cientffico Segue-se que os campos sao 0 lugar de duas formas de poder que correspondem a duas especies de capital cienrifico: de um lade, um poder que se pode chamar temporal (ou politico), poder institucional e instituc1onalizado que esti Iigado 11 ocupa,ao de posi,bes importanres nas institui,bes cienr!ficas, dire~o de laboratories ou departamentos, pertencimento a comissoes,
comites de avalia,ao etc., e ao poder sobre os meios de produ~o (contratos, creditos, postos etc.) e de reprodu~o (poder de nomear e de fazer as carreiras) que ela assegura. De outro, urn poder espedfico, "prestigio" pessoal que e mais ou menos independente do precedente, segundo os campos e as institui,bes, e que repousa quase exclusivamente sobre 0 reconhecimenro , pouco ou mal objetivado e institucionalizado, do conjunto de pares ou da fra,ao mais consagrada dentre eles (por exemplo, com os "colegios invisiveis" de eruditos unidos por rela,oes de estima mutua).
porque mediante ela se tern acesso ao poder econ6mico (ou politico) e as estrategias propriamenre politicas que visam conquisca-Io ou conserva-lo. A atividade cient!fica implica urn custo econamico, e 0 grau de autonomia de uma ciencia depende, por sua vez, do grau de necessidade de recursos econamicos que ela exige para se concretizar (os matematicos, sob esse aspecto, estao muito mais bern colocados do que os fisicos e os bi610gos). Mas depende sobretudo, tambem do grau em que 0 campo cientifi-
Dado que a inova,ao cientifica nao OCorre sem rupturas sociais com os pressupostos em vigor (sempre correlativos de prerrogativas e de privilegios), 0 capital cient!fico "puro", ainda que esteja em conformidade com a imagem ideal que 0 campo quer ter e dar
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3S
Pierre Bourdieu
de si pr6prio, e, pelo menos na fase de acumula¢.io inicial, mais exposro a contesta,ao e a critica, controversial, como dizem os anglo-saxoes, do que 0 capital cientifico institucionalizado, e pode ocorrer, em algumas disciplinas, que os grandes inovadores (Braudel, Levi-Strauss, Dumezil, por exemplo, no caso das ciencias sociais) sejam marcados por estigmas de heresia e violentamente combatidos pela institui,ao. As duas especies de capital cientifico tern leis de acumula,ao diferentes: 0 capital cientlfico "puro" adquire-se, principalmente, pelas contribui,oes reconhecidas ao progresso da ciencia, as inven,oes ou as descobertas (as publica,oes, especialmenre nos 6rgaos rnais seletivos e mais prestigiosos, portanto aptos a conferir prestfgio it moda de bancos de credito simb6Iico, sao 0 melhor indicio); 0 capital cientlfico da institui,ao se adquire, essencialmenre, por estrategias politicas (especificas) que tern em comum 0 fato de todas exigirem tempo - participa,ao em comissoes, bancas (de leses, de concursos), col6quios mais ou menos convencionais no plano cientifico, cerimonias, reunioes
etc. -, de modo que e dificil dizer se, como 0 professam habitualmente os detentores, sua acumula,ao e 0 principio (a titulo de compensa,ao) ou 0 resultado de urn menor exiro na acumula"J.o da forma rnais especifica e mais legitima do capital cientlfico. Dificeis de acumular praticamente, as duas especies de capital cientifico diferem tambem por suas formas de transmissao. 0 capital cientlfico "puro", que, fragilmente objetivado, tern qualquer coisa de impreciso e permanece relativamente indeterminado, tern sempre alguma coisa de carism,hico (na percep,ao comum esta Iigado a pessoa, aos seus "dons" pessoais, e nao pode ser objelo de urna "portaria de nomea¢.io"); desse as36
as usos sociois do ciencio
( t'U-~\fL.,(..r~~ pecto, e extrernamente dificil de transmitir na pratica (ainda que, diferentemente do profeta, do costureiro ou do poeta, 0 grande pesquisador possa transmitlr a parte rnais formalizada de sua competencia cientifica, mas somente por urn longo e lento trabalho de forma,ao, ou methor, de colabora,ao, que leva muito tempo; e mesmo se ele pode tambem, como todos os detentores de capital sirnb6lico, "consagrar" os pesquisadores, formados ou nao por ele, fazendo sua reputa,ao, assinando com eles, publicando-os, recomendando-os para as insrancias de consagra,ao etc.). Ao contrario, 0 capital cientifico institucionalizado tern quase as mesmas regras de transmissao que qualquer outra especie de capital burocratico, ainda que, em alguns casos, deva assumir a aparencia de uma "etei¢.io" "pura", por exemplo, por meio de concursos que podem, de faro, estar muito pr6ximos dos concursos de recrutamento burocratico, no qual a defini,ao do posto esti, de algum modo, pre-ajustada a medida do candidato desejado. O~ cerramenre nas opera,6es de coopta,ao, que visam perpetuar 0 corpo de pesquisadores, que 0 conflito entre os dois principios se faz mais visivel: os detentores do capital cientlfico institucionalizado tendem a organizar os procedimentos - os concursos, por exemplo - segundo a 16gica da nomea,ao burocratica, enquanto os detentores do capital cientifico "puro" lendem a situar-se na 16gica "carismatica" do "inventor".) Num belo artig05 - que, pela minucia de observa¢.io, rigor da analise e exatidao (modesta) da leoriza¢.io,
5 Shinn, T. Hierarchies des chercheurs et formes des recherches. Actes de fa Recherche en Sciences Sociales, n.74,
p.2·n, sept. 1988.
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Pierre Bevrdiev
Os uses socia is do ciencio
se situa em exata oposi~ao a tendencia arual, midiatica e cmica, ao mesmo tempo, da sociologia das ciencias -, . Teny Shinn mostrou que as duas especies de capital cientifico e as duas formas de poder podem coexistir no seio do mesmo laboratorio e para 0 melhor, em alguns casos, do empreendimento coletivo - tendo, de . um lado, 0 diretor do laboralorio que, muito informado do estado da pesquisa, em especial, pela frequencia aos comites e as comissoes, encarna de alguma forma a "ciencia normal" e produz trabalhos voltados para a generaliza~ao, e, de outro, tendo tambem 0 pes- , quisador prestigiado que se dedica a constru~ao de , "modelos integrativos" e traz para outros pesquisadores, seniores e juniores, uma especie de suplemento de imagina~o cientifica (essa divisao do trabalho, obser- : vada num laboratorio de fisica, encontra-se em nume- i rosos grupos de pesquisa pertencentes as mais diferen- . tes disciplinas). , Por razoes praticas, 0 acumulo das duas especies ! de capital e, como ja indiquei, extremamente difici!. E , podem-se caracterizar os pesquisadores pela posi~ao que eles ocupam nessa estrutura, isto e, pela estrutura : de seu capital cientifico ou, mais precisamente, pelo: peso relativo de seu capital "puro" e de seu capital "ins- : titucional: tendo, num extremo, os detentores de um i forte credito especifico e de um fragil peso politico e, ; no extremo oposto, os detentores de um forte peso po- : litico e de um fragil credito cientifico (em especial, os: administradores cientificos). Se ocorre que a acumula~ao de um forte credito cientifico (junto aos pares) favorece de modo continuo, e em geral tardiamente (quer dizer, quando ja e tarde demais), a obten~ao dos poderes economicos e politicos (da parte dos poderes administrativos, politicos
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{1.,e l--Ac.fh, g.e ~ ~
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etc.), a conversao do capital politico (especifico) em peder cientifico e CinfelizmenteO mais fkit e mais rapida, sobretudo para os que ocupam posi~6es medias nas duas distribui~oes (do prestfgio e do poder) e que, mediante 0 poder que estao aptos a exercer sobre a produ~ao e a reprodu~o (participa~ao no Conselho Nacional das Universidades, nas comissoes do CNRS, nas bancas de concursos de recrutamento e de aperfei<;oamento etc.), estao em condi~oes de assegurar a perpetua~ao da ortodoxia contra a inova<;ao (em especial, a favor de complexas alian~as mediante as quais as eleitos pelos sindicatos - freqUentemente destinados a se tomar executivos - podem dar seu apoio aos dirigentes mais fie is a ordem cientifica estabelecida). As rela<;oes de for<;a simbolicas, no interior do cam-
po cientifico, nlio tem a clareza penetrante que pode !he dar uma analise cientifica destinada a quantificar ate mesmo as propriedades mais impalpaveis, como a reputa~o internaciona!. Em especial, mediante 0 dominio que-assegura sobre as instancias e os instrumentos de consagrar;ao, academias, diciomirios, premios ou distin<;oes (nacionais, pelo menos), 0 poder cientifico institucional (que, estando ligado ao dominic sobre as posi~oes na universidade e nas institui,oes de pesquisa, e quase estritamente nacional, 0 que contribui para explicar a defasagem entre as hierarquias nacionais e as hierarquias internacionais) chega a produzir 0 efeito de halo quase carismatico, especialmente sobre os jovens pesquisadores, freqUentemente levados (e nao somente pelo servilismo interessado) a emprestar as qualidades cientificas daqueles dos quais dependem para sua carreira e que podem assegurar-se assim de clientelas doceis e de todo 0 cortejo de cita,oes de complacencia e de homenagens academicas. 39
Pierre
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Ourra faror de inrerferencia, pelo menos aos olhos 0 que e cerro e que, quanto rnais a auronomia dos "juniores", que conrribui significarivamenre para adquirida por urn campo for limirada e imperfeira e mais fazer 0 capiral simb6lico (esse "ser percebido", percipi, as defasagens forem marcadas entre as hierarquias que depende da percep~ao e da aprecia~ao dos agen. remporais e as hierarquias cienrificas, mais os pode· tes engajados no campo) e 0 faro de que, como ja dis. res temporais que se fazem, com frequencia, os reo se, 0 crediro cienrifico pode conrinuamenre assegurar, rransmissores dos poderes externos poderao inrervir apesar de tudo, uma forma de crediro politico (a pala. em lutas especificas, especialmente medianre 0 contrale vra sendo sempre romada no senrido especifico), de sobre os postos, as subven,6es, os conrraros ere. que consagral;iio remporal que, em alguns conrexros, pode permitem a pequena oligarquia dos que permanecem ser urn faror de desencanramenro ou mesmo de des. nas comiss6es manrer suas clientelas. Como as diferen· credito (urn dos problemas dos inovadores, ao se con. tes disciplinas cienrificas tern necessidade de recursos sagrarem, sobrerudo em Iiterarura, e 0 de conservar 0 economicos para se manrer, em diferenres graus, alguns prestigio atribuido a ruptura heretica de vanguarda). pesquisadores, as vezes convertidos em administrado· Seria preciso analisar os efeitos dessa dualidade de res cientificos (mais ou menos direramenre associados poderes no funcionamenro do campo cientifico. 0 cam. a pesquisa), podem, por inrermedio do conrrale dos repo seria rna is eficiente cienrificamente se os mais cursos que the assegura 0 capiral social, exercer sobre presrigiados fossem tambem os mais poderasos? E su.' a pesquisa urn poder que se pode chamar de ridlnico pondo-se que Fosse rnais eficienre, seria necessariamen-' (no sentido de Pascal), uma vez que nao enconrra seu te rnais suportavel? principio na 16gica especifica do campo. Tudo leva a pensar que todo mundo (ou quase) se Assim, pelo fato de que sua auronomia com rela· beneficia com essa divisao de poderes e com esse com. ,ao aos poderes externos jamais e total e de que eles pramisso hfbrido que evira 0 que poderia haver de. sao 0 lugar de dois principios de domina,ao, rempo· assustador nessa especie de teocracia epistemocnitica I ral e espedfico, todos esses universos sao caracteridos "melhores", ou inversamente numa cisao comple.' zados por uma ambigliidade estrutural: os connitos in· ta dos dois poderes condenando os "melhores" a rnais : telecruais sao rambem, sempre, de algum aspecto, concompleta imporencia. Mas nao e posslvel deixar de! fliros de poder. Toda estrategia de urn erudito comlamenrar 0 que pode rer de "funcional", nao para 0: porra, ao mesmo tempo, uma dimensao polirica (espragresso da ciencia, mas para 0 conforro dos pesqui- pecifica) e uma dimensao cienrffica, e a explica,ao sadores menos ativos e os menos produtivos, 0 fato de !deve sempre levar em conra, simultaneamenre, esses que 0 poder temporal sobre 0 campo cienruico seja IdoiS aspectos. Enrreranro, 0 peso relativo de urn e de muito frequenremenre pani/hado com uma tecnocracia !outro vana muito segundo 0 campo e a posi~ao no da pesquisa, isto e, por pesquisadores que nao sao, !campo: quanro mais os campos sao heteronomos, necessariamenre, os melhores do ponro de vista dos imaior e a defasagem enrre a estrurura de distribui,ao criterios cienrificos. 'no campo dos poderes nao-especificos (poliricos); por
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OS USO$
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urn lado, e por outro, a estrurura da distribui~ao dos. poderes especificos - 0 reconhecimento, 0 prestfgio
sociois do ciencio
te submetidas as imposi<;oes da coerencia l6gica e da experimental.
verifica~o
cientifico. Hal inclusive, universos nos quais as duas estrutu-
o espa~o dos pontos de vista
ras estiio invertidas: a distribui<;ao dos professores de' letras e de ciencias humanas do ensino superior frances no espa<;o do campo universitario e tal que, quanto mais eles estao proximos do polo do poder, menos: tern prestfgio (medido por indicadores como a Citation:
Entre os usos sociais da ciencia, hi urn, de fato, que quase sempre e esquecido e que, certamente, nao e menoS importante: aquele que consiste em colocar a
numera de tradu~6es e tada uma serie de.
ciencia, e, mais especiftcamente, a ciencia da ciencia,
Index,
0
outros indicadores): de urn lado, as pessoas mais po- a servi<;o da ciencia, do progresso desta. Uma analise derosas, em particular do ponto de vista do controle da, puramente descritiva, como aquela que propus, pode reprodu~o do corpo (aqueles que tern assento no C conduzir as tomadas de posi<;ao prescritivas? Uma das nas grandes comissoes examinadoras de concursos etc.)! virtudes da teoria do campo e que ela permite romper e da per:petua~ao do paradigma, da ortodoxia; de au·! com 0 conhecimento primeiro, necessariamente partro, as pessoas que tern a prestfgio, a notoriedade, o~ cial e arbitr1rio - cada urn ve a C'"mpo com uma certa reconhecimento, sobretudo internacional, mas quel lucidez, mas a partir de urn ponto de vista dentro do tern poueo poder. Essa discordancia e ~eradora de todol campo, que ele proprio nao ve -, e romper com as teourn conjunto de efeitos. Ela permlte aqueles que fraj rias semi-eruditas que so contem, em estado expHcito, um dos pontos de vista sobre 0 campo. cassam contar historias, imputar, por exemplo, sua posi<;ao intelectual a sua rna posi<;ao na ~rdem do Para tornar isso eompreensivel, tenho 0 habito de der au denu nciar os detentores de prestlglo como s tamar 0 exemplo de duas analises criticas dos intelecse tratasse de detentores do poder. Ela tambem permi. tuais, publicadas no fim dos anos 50: num livro que teve te aos dominantes temporais - em oposi<;ao aos dOnu~. alguma notoriedade, L'opium des intellectuels [0 6pio nantes espirituais - usufruir da ambiguidade da estru dos intelectuais], Raymond Aron esbo<;ou um quadro tura para apresentarem estrate~ias destinadas a repro daqueles que chamou de "intelectuais", iSlO e, segunduzir sua posi<;ao como estrateglas destlnadas a faz . do a defini~ao entao em vigor, os "inte\ectuais de esavan~ar a ciencia. querda" dos quais os representantes mais tfpicos eram Quer dizer que, nesses universos, para fazer prOj Sartre e Simone de I3eauvoir. Numa serie de artigos gredir a cientificidade, e preciso fazer pro~redir ~ a~ lan<;ados em Ies Temps Modernes, revista de Jean-Paul tonomia e, mais concretamente, as condl<;oes prJtlc Sartre, Simone de Beauvoir propunha uma evoca~o da autonomia, criando barreiras na entrada, excluind metodica e argumentada do "pensamento de direita" a introdu<;ao e a utiliza~ao de armas nao-especificas! (encarnado, aos seus 01 has, par Raymond Aron e alfavorecendo formas reguladas de competi~ao, sometr,, guns outros).
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Os vsos sociois do ciencio
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Urn e outro. no entanto. tin ham em comUffi, para
alem da oposi~o radical que os separava, IOmar como uma representa~ao estritamente objetiva do seu objeto 0 que nao passava de urn ponto de vista particular e, embora muito lucidos (dessa lucidez interessada que inspira a concorrencia vivida como rivalidade ou hostilidade) do ponto de vista de seu concorrente, de serem cegos acerca de si proprios e sobretudo acerca do ponto de vista a partir do qual apreendiam seu concorrente, isto
e,
sobre a fato de que, inscritos no mesmo
campo, ocupavam posi~iies antag6nicas, principios de sua lucidez e de sua cegueira. t assim que a analise cientffica de urn campo - por exemplo, do campo das institui~oes de pesquisa, faculdades, CNRS, lNSEE, INSERM6 etc., no interior do qual o INRA ocupa uma deterrninada posi~o, ou do proprio INRA que funciona tambem como um subcampo relativamente autonomo, organizado em torno de suas prOprias oposi~oes - pede, a primeira vista, parecer muito proxima das representa~iies que os agentes praduzem, especialmente para as necessidades da polemica contra seus concorrentes. A diferen~a, no entanto,
e
radical: de fato, as objetivaC;iies parciais e interessadas dos agentes engajados no campo, opiie-se a objetiva~o do campo como urn conjunto de pontos de vista (no duplo sentido de visiies configuradas com base num ponto do campo e em posi~iies dos campos a partir das quais essas visiies interessadas se configuram) que implica tomar distancia com rela~o a cada urn dos
6 INSERl\.1 - Institut National de la Sante et de la Recherche Medicale (Instituto Nacional de Saude e Investiga«;Oes Me-
dicas). (N. T.)
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pontos de vista particulares, de cada uma das tomadas de posi~o, comumente criticas. Essa tomada de posic;ao objetivante (que se pode aplicar ao proprio sujeito objetivante quando ele toma por objeto, como 0 fiz no Homo academicus, 0 mesmo campo do qual ele faz parte) esta implicada no fato de situar esses pontos de vista no eSpac;o das tomadas de posic;ao e relaciona-Ios as posi~oes correspondentes, isto e, ao mesmo tempo destituf-Ios de sua pretensao "absolutista" a objetividade (Iigada a ilusao da ausencia do ponto de vista) e tambem de explica-Ios, darlhes razao, toma-Ios compreensiveis, intelig[veis. Observa-se que, para alem de toda intenc;ao moralizante, esse ponto de vista que objetiva os pontos de vista e as constitui como tais, e que
e frequenternente
descriro, sem razao, como "fixa~ao" reducionista, im-
plica a substitui~ao de uma visao compreensiva e indulgente - segundo a formula "compreender e perdoar" - das diferentes posic;6es e tomadas de posic;6es por uma visao polemica, parcial e arbitraria dos pr6prios agentes que, como tal, e falsa, mesmo quando que revela, desvela ou denuncia contem uma parte de verdade. Por isso, ela constitui uma contribuic;ao possivel para a compreensao mutua dos ocupantes de diferentes posic;i'>es no campo e, ao mesmo tempo, para a integra~o dessa instituic;ao que, de modo algum, implica a supressao das diferenc;as de pontos de vista. Alem disso, longe de conduzir, como se poderia erer (e como se quer, freqiientemente, fazer crer), a um relativismo que nao da razao a nenhum dos concorrentes a verdade, a constru~o do campo perrnite estabelecer a verdade das diferentes posic;6es e os limites de validade das diferentes tomadas de posic;ao (pretendentes ou nao a verdade) cujos defensores, ta-
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Os usas saciois do ciel"lcio
\M-o ;vo.,., 0 citamente, concordam, COmO ja indiquei, a fim de mobi/izar as mais potentes instrumentos de prova au de refuta('iio que Ihes assegurem as aquisi,,6es colerivas de sua ciencia. Ela permite assim romper com as semiobjetiva"oes erudiras ou com as objetiva"oes semierudiras que, s6 pela sua pretensao, diferem daquelas que os agentes sociais produzem, na vida cotidiana, apoiando-se sabre 0 conhecimento interessado (e as vezes, muito bern informado) que eles podem ter de seus concorrentes.
Essa e a razao pela qual, nas analises da estrurura e do funcionamento do INRA que poderei renrar esbo\=ar, irei me arer a prudentes sugestoes, deixanda a
voces a cuidado de completii-Ias au prolonga-Ias segundo as ponti/hados, consciente que sou da imensa informa('iio que uma pesquisa sistematica deveria, de inicio, recolher, e da qual voces dispoem sabre uns e ourros, uns sabre as OUCfOS, sabre as vfnculos - palfti-
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E assim, por exemplo, que a rer6rica da "demanda social" que se impoe, parricularmente numa institui"ao cientifica que reconhece oficialmenre as fun~oes sociais da ciencia, inspira-se menos numa preocupa('iio real em satisfazer as necessidades e as expectativas de tal ou qual categoria de "clientes" (grandes ou pequenos agricultores, industrias agroalimemicias, organiza~Oes agricolas, ministerios etc.), ou mesmo em ganhar assim seu apoio, do que de assegurar uma forma relarivamente indiscutrvel de legitimidade e, simultaneamente, urn acrescimo de for~a simb6lica nas lutas internas de concorrencia pelo monop6lio da defini('iio legitima da prarica cientifica (poder-se-ia, nessa perspectiva, procederse a uma analise met6dica relacianando as romadas de
posi"oes e as posi,,6es, as atos dos Estados gerais do desenvolvimento agricola de 1982). Em suma,
e precise naa esperdf da
analise socio-
exercicios de "sociologia selvagem", com freqiiencia bastante pr6ximos da analise cientrfica, salvo pela ausencia da reflexividade. A analise fundada sobre a apreensao do jogo como tal rompe com os jogos (e os jogos duplos) das imagens antag6nicas, fazendo aparecer tanto 0 que eles revelam sobre aqueles que os produzem (e sobre sua posi('iio no campo) quanto sobre aqueles aos quais eles se referem e sabre sua posi"ao. Essas represenra"oes sociais interessadas e parciais que sao vividas e dadas como objerivas e universais (sobrerudo no interior de universos eruditos nos quais os agenres dispoem, pela profissao, de insrrumentos poderosos de universaliza,dO) sao, de fato, armas nas luras internas.
l6gica revela,,6es radicais. E isso, especialmente, numa institui~ao que, como 0 INRA, ocupa uma posi~ao dominada - com rela~ao ao prestigio cientifico - no campo das institui~oes de pesquisa e uma posi~ao mal definida entre a pesquisa aplicada e a pesquisa basica e que se encontra por isso inclinada a uma inquietude e a uma ansiedade sobre si, parricularmente favoraveis a uma lucidez mordaz e, por vezes, ate mesmo urn pouco patol6gica e autodestrutiva. o que a analise sociol6gica traz, e que, num cerro sentido, muda tudo, e antes de qualquer coisa uma coloca"ao em perspectiva sistematica de visoes perspectivas que os agentes produzem para as necessidades de suas luras praticas no interior do campo, e que, a despeito de tudo 0 que eles fazem para "universaliza-Ias", como no exemplo da evoca('iio da "demanda social", encontram seu principio nas parricularidades de uma
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cos e sindicais, especialmente -, sobre as filia,,6es, as carreiras etc., e que
e constantemente
acionada nos
Pierre Bourdieu
Os usos sociois do ci€mcia
no pr6prio interior do campo, e que assim postas em seus eixos mudam radicalmente de sentido
tua<;ao particular os deleites de uma especie de culpabilidade original e inexpiavel ou urn acrescimo de exigencias e de possibilidades, Iigadas a necessidade de conciliar imperativos comumente separados, de maneira mais ou menos fictkia.
posi~ao
e de
fun~ao.
A situa~ao particular do INRA Assim, como nao ver que todas as ar:nbiguidades que todos os campos conhecem (em diferentes graus de intensidade), mesmo os mais "puros", pelo fato de fazerem coexistir prindpios internos e espedficos e prindpios extemos e puramente sociais de domina~o ou de hierarquiza~ao,s6 podem ser refor~ados, no caso de uma institui~Jo que, como 0 INRA, se caraaeriza por uma profunda ambiguidade estrutural e funciona17 E como nao ver que todos os jogos duplos que evoquei, entre 0 prestfgio e 0 poder, as fun~oes cientfficas e as fun~6es de servi~o, que permitem escapar as exigencias da ciencia em nome das obriga~oes a servi~o da coletividade (como, alias, do ensino), encontram condi~oes particularmente favoraveis' significa, muita cancretalnente, que se todas as cientfficas podem e devem acomodar pesquisas nao aplicaveis das quais elas, inevitavelmente, tem exemplos, e isso sem animosidades (Dieudonne disse, em algum lugar, que a pratica das matematicas nao precisa de outra justifica<;ao a nao ser "a gl6ria da humanidade"), e a miseria, mas tambem a grandeza dos pesquisadores dos institutos voltados para a pesquisa aplicada, que a todo instante sao lembrados pelos outros e por eles proprios, com inquietude, apesar de tada honra, da sua inutilidade social. A unica questao interessante que fica e saber se e preciso extrair dessa si1550
institui~6es
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Sobre isso, devo exprimir meu desacordo com a mane;ra pela qual fo; apresentada, aqui mesmo, par Bruno Latour,7 uma no~ao como a de RANA - Recherche Appliquee non Applicable [Pesquisa Aplicada ao Aplicave]J - que s6 confere um r6tulo de cientificidade as intui~oest mais dnicas au mais desesperadas - isso frequentemente e a mesma coisa -, da auto-analise end6gena tal como ela se exprimia com alguma felicidade na f6rmula oriunda das retlexoes coletivas de Maio de 68: "Pesquisadores que buscam, encontramse; buscam-se pesquisadores que encontrem". Sob aparencias de radicalismo critica, as semi-analises dessa especie lisonjeiam as expectativas mais convencionais e convenientes: em vez de incitar a uma reflexividade crftica, ponanto construtiva, aqueles que se tornam responsaveis encorajam 0 cinismo na pnitica cientffica, ou pior, fornecem argumentos para a visao empresarial dos quadros da institui~ao, mais preocupados em controlar e em constranger do que em compreender e transformar de modo inspirado e construtivo. o INRA funciona como um campo, isso e um fato. E a disti'incia entre os agentes e os departamentos, eles pr6prios organizados segundo hierarquias com rela<;ao as quais nao e EacH determinar, em mais de urn caso, 0 que devem aos criterios administrativos (ou politicos)
7 latour, B. Ie melierde cbercbeur, regard d't.m anthropologue. Paris: INRA Editions, s. d. %p. (ColI. Sciences en Questfons).
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If\l tA e aos criterios propriamente cientfficos (0 que nada tern de excepcional e que se observa tambem, com frequencia, noutras institui~6es cientfficas), essa distancia e af particularmente grande, em razao da dualidade de fun,oes declaradas e reivindicadas, a saber, a pesquisa basica e a pesquisa aplicada. A tal ponto de alguns poderem se perguntar, no interior da propria institui,ao, se, para ahem dos vinculos e das dependencias comuns (mas que sao e1as proprias clivididas e par vezes opostas), com rela,ao ao Ministerio cia Agricultura e ao Ministerio cia Pesquisa, ha urn ourro principia cle unidacle alem cia referencia, para alguns inteiramente te6rica, a urn mesmo objeto concreto, a munclo agricola. E, cle fato, a custa cle se manter nos extremos e ignorar todo 0 continuum clos agentes que combinam, em propon;6es diferentes, as caracterfsticas associadas as posi,oes polares, e a custa, sobretuclo, cle esquecer que numerosas pesquisas ditas "basicas" sao menos "puras" do que parecem e que numerosas pesquisas clitas "finalistas" poclem trazer contribui,oes clecisivas a pesquisa basica, pocler-se-ao opor categorias mutuamente exclusivas e incompatfveis (das quais se encontra 0 equivalente em outros universos, par exemplo, as faculclacles cle Meclicina com a oposi,ao entre as clinicos, socialmente dominantes e os que se voltam para a pesquisa basica, cientificamente clominantes): cle urn laclo, as praticantes-clinicos, provenientes principalmente cia Escola de Agronomia, tern uma ativiclacle rnais voltacla para a comprova,ao cle saberes cientfficos e tecnicos ja experimentados ou orientada para a verifica,ao au a vulgariza,ao cle conhecimentos estabeleciclos e para a pesquisa cle curto prazo, par vezes clesenvolvicla em colabora,ao com os produtores (e, inclusive, 50
Os
~SfiS 8Ociois do ciencio
VV' 1IV\(.eJ: -
V~r!!i/r.~ T~7'--z.....c:;:e
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com esses produtor
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Os usos sociois do ciencio
justifica0io nem do lado das realiza,oes cientfficas nem do lado das aplica,oes praticas (pode mesmo ocorrer que, de posse das satisfa,oes e justifica,oes sociais que lhes asseguram suas atividades, vejam claramente as fun,oes compensat6rias que desempenham os engajamentos politicos mais ou menos ostensivos dos pesquisadores "puros", aos quais custa assumir a gratuidade social de uma atividade cientifica incapaz de obter 0 pleno reconhecimento cientifico).
ligados a diferentes estados do mundo economico e social e do campo da institui,ao. E 0 mal-estar que e fortemente sentido no INRA, hoje, explica-se talvez pelo fato de que essa institui,ao perdeu (ou esta perdendo) 0 reconhecimento incondicional que Ihe devotava 0 meio agricola (tanto por meio de suas instancias sindicais como dos pr6prios agricultores, referentes exaltados de urn discurso habirualmente populista), sem adquirir plenamente 0 reconhecimento cientifico internacional que, desde os anos 70, parece tel. se tornado 0 objetivo principal, se nao 0 exclusivo, dos dirigentes.
A for~ relativa das duas posi,iies opostas varia, de urn lado, em razao da evolu,ao cientifica (por exemplo, com 0 aparecimento de novas disciplinas, como a genetica molecular), e, de outro, de modo bastante direto, em razao da conjuntura politica, e tambem, de forma mais subterranea, segundo 0 estado da conjuntura economica e social e da problematica dominante nos meios dirigentes e no seio da institui,ao: algumas das mudanps mais caracterfsticas da politica cientifica da dire,ao, como a coloca,ao entre parenteses da missao finalista do INRA e a vontade de transformar 0 instituto em organismo de pesquisa avan,ada, competitiva no plano internacional, tern coincidido (sem que se possa estabelecer uma rela,ao de causa e efeito) com a crise da legitimidade da agricultura produtiva, sustentada pela politica agricola para a qual 0 I RA tern contribuido fortemente. E em razao desses dois conjuntos de fatores que varia 0 sentido que e atribuido as grandes categorias de tomadas de posi,ao sobre os grandes debates (como aqueles que, hoje, suscitam as contradi,oes entre os imperativos de crescimento e de produtividade e a preocupa0io em conservar 0 patrimonio) e as rela,iies de for,a simb6lica entre aqueles que defendem, por exemplo, a produtividade e aqueles que se atem a defesa do patrim6nio, cujos interesses estao S2
Ir alem das aparencias e das falsas antinomias Cuidarei para nao ir alem dessas hip6teses, que a pobreza da informa,ao disponivel, especialmente a prop6sito da origem social dos pesquisadores e de sua evolu,ao ao longo do tempo, impede de verificar. 0 que e certo e que as oposi,oes declaradas mascaram o fato de que, como certamente uma analise sociol6gica sistematica 0 mosrraria, as visoes polemicas e parciais que cada urn dos dois "campos" produz para as necessidades de sua pr6pria justifica,ao deixam escapar, ao mesmo tempo, as propriedades e as interesses comuns e as justifica,oes nao-exclusivas vinculadas as duas fun,oes a que se propoe oficialmente a institui~ao.
Basta assumir 0 ponto de vista objetivante que implica a constru,ao do universo do INRA como campo para ver-se que a originalidade da institui<;,Jo e 0 S3
Pierre Bourdieu
Os usos socia is da ciencia
prindpio dos antagonismos que a dividem outra coisa
zes a desejar uma especie de privatiza~aodisfar~da ou declarada da institui~ao). !sso significd que as duas fun~oes, inven~ao e inova~ao, pesquisa cientffica e pesquisa de aplica~oes e de produtos, cabem as insran-
nao e que a dupla defini~ao das fun~6es que ela assinala para a pesquisa e que a faz reunir, no seio da pr6pria organiza~ao, dois momentos de toda empresa de produ~ao cientifica comumente separados (por exemplo, no dominio da pesquisa farmaceutica), 0 momento da inven{:iio e 0 momenta cIa inova!;iio, entendicIa no sentido que a tradi~o economica da a essa palavrd, isto e, como transformac;d.o de inven~6es cientificas em inova~6es geradoras de novas produtos e de novos lucros no mundo economico.
Sabe-se que um dos problemas a resolver, para passar da inven~ao a inava~ao, e sabre a qual numerosos anaJistas tern refletido,
tre
ea
da comunica~ao en-
campo cientffico e a campo economico. Os desafios nao sao as mesmos, os fins nao sao os mesmos, os agentes tern filosofias de vida inteiramente diferentes, e ate opostas, e, portanto, geradoras de profundos mal-entendidos: de urn lado, a logica da luta especffica, interna ao campo; de outro, a pesquisa do luera, da rentabilidade que leva a dar prioridade ao problema do screening, da indica~ao das inven~6es capazes de se tornar inova~6es (como descobrir as descober0
tas e as descabridores interessames e, antes ainda, como
estar informado disso) que remete ao problema dos go between, dos mediadores capazes de fazer vincular a informa~ao e de assegurar a vinculo. A originalidade indiscutivel do INRA reside no fato de que ele reune as duas categorias de personagens e as duas l6gicas, cientffica e economica, num mesma espa~o social e, mais precisamente, numa institui~ao
cias pertencentes
a mesma institui~ao, mas que sobre-
(Udo obedecem a mesma 16gica que e a das institui~oes publicas, Iiberadas cIa pressao direta do mercado. Um dos grandes paradoxos dos campos cientfficos e que eles devem, em grande parte, sua autonomia ao fato de que sao financiados pelo Estado, logo colocados numa rela~ao de dependencia de um tipo particular, com respeito a uma insrancia capaz de sustentar e
de tornar possivel uma produ~ao que nao est
publica (e talvez seja dessa constata~lo que e preciso partir para submeter it critica a posi~ao daqueles que, em nome da valoriza~ao da pesquisa, chegam as ve-
movlvel- para afinnar sua independencia com rela~ao
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ao Estado. Este, diga-se de passagem, nao possui de pr6prio, em sua realidade, 0 carater monolitico evoca-
Os usos sodais do ciencio
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do pela noyao de aparelho: os diferentes ministerios, os diferentes servi,os de um mesmo ministerio ou os diferentes corpos sao separados por toda especie de discordancias que sao faceis de explorar e, em especial em materia de pesquisa, nao tem os mesmos objetivos nem os mesmos 6rgaos de sele,ao de projetos e de avalia,ao de resultados. o primeiro ato de uma ciencia social realmente cientifica consistira em tomar por objeto de analise a constru,ao social dos objetos de estudo propostoS pelas instancias estatais a sociologia - por exemplo, hoje, a de[inquencia, as "periferias", a droga etc. - e as categorias de analise que os acompanham e que sao acionadas sem problema pelas grandes institui,aes de pesquisa estatais, INSEE, CREDOC,8 sem falar dos institutos de opiniao, a prop6sito dos quais ja me referi a ciencia sem cientista.
A questiio da autonomia, no entanto, nao se pae em termos rao diferentes do lade do pOlo do campo do INRA, ao qual incumbe mais particularmente a inova~ao, e que pode, ele tambem, reivindicar e afirmar sua independencia, tanto com rela<;:3o ao Estado quanto com rela<;:3o as for,as economicas e sociais, servindo-se, se for o caso - acham-se exemplos no passado do INRA - da independencia que the assegura 0 Estado e a financiamenta estatal - por oposi,Jo aos contratos que ja implicam uma amea,a de heteronomia - para definir ele mesmo seus pr6prios objetivos de pesquisa, sua pr6pria demanda de interesse geral que nenhuma instancia
8 CREDOC - Centre de Recherches, d'Etudes et de Documentation sur Ie Consommation (Centro de Pesquisas, Estudos e Documenta~ao sobre
0
Consumo). (N. T)
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privada poderia formular ou financiar, em materia, por exemplo, de desenvolvimento da produtividade das empresas agricolas ou de defesa do patrimonio natural. Nao estou certo de que as dirigentes da institui<;:3o, ocupados que estao, em todos os momentos, em tentar reduzir a ameap de divisao entre as praticos e os pesquisadores, em nome de uma ideologia conciliadora (se falara, par exemplo, de "pesquisa basica orientada" e uma parte importante do esfor,o de todas as comissaes sucessivas, sobre a futuro do INRA, sabre suas fun~5es
etc., visara operar a concilia~ao mais ou me-
nDs ffiagica dos contrarios, por exemplo, as exigencias
dos universitarios e as expectativas dos utilizadores dos resultados), renham consciencia dos interesses e das obriga,oes que todos os pesquisadores, "puros" ou "aplicados", tem em comum, na condi,ao de membros de uma institui<;:3o do Estado, ponanto investida de uma voca<;:3o universal, transcendente aos interesses caregoriais que vao junto, comumente, com os financiamen-
tos privados. Seria preciso substituir 0 ecumenismo verbal e ineficaz e todos as discursos piedosos sobre a "demanda social", suas exigencias e seus prejuizos por uma reflex'o aprofundada sabre os contratos que visam definir nao as posi,oes de principio, abstratas e gerais, pr6 au contra as contratos, mas principios praricos de gestao desses contratos (pense nisso que consiste em sO aceitar os problemas conforme a problematica do grupo de pesquisadores - 0 que, a experiencia nos mostra, nao e rao 6bvio - ou mesmo - e urn preceito que tentei utilizar em meu grupo de pesquisa - s6 aceitar contratos sobre problemas ja estudados, ou, mais precisamente, 'vender" pesquisas ja feitas para financiar pesquisas em curso ou em projeto, portanto definidas segun57
Pierre 60urdieu
do a propria logica da pesquisa e nao da demanda). Esses problemas, a pesquisa dita aplicada e a pesquisa dita pura, para alem de todas as diferen0's que as separam, os tem em comum e poderiam trabalhar para encontrar solu,oes comuns para eles. o confronto de visoes antagonistas que opoe a autonomia dos pesquisadores ditos "puros" a heteronomia dos pesquisadores "aplicados" impede de ver que aquilo que se confronta; na realidade, sao duas formas, ambas relativamente autonomas de pesquisa, uma voltada, antes, pelo menos na inten,ao, para a inven,ao cientifica e participante Cbem ou mal) da 16gica do campo cientifico, a outra voltada, antes, para a inova,ao, mas igualmente independente, para 0 melhor e para 0 pior, das san,oes do mercado e capazes de designar, para si pr6pria, fins igualmente universais de servi,o publico e de pramo0io do interesse gera!. De onde, fora das associa,oes e de movimentos destituidos, mais frequentemenre, dos recursos cientificos necessarios para a defesa de sua causa, se falaria, se 0 INRA nao estivesse la para faze-Io, do patrimonio genetico representado pelas especies vegetais ou animais amea,adas, de prote,ao de ecossistemas ou ainda de defesa dos recursos nao-renovaveis? Evidentemente essa dualidade de fun,oes tem por efeito permitir a alguns fazer um jogo duplo e invocar consciente ou inconscientemente as exigencias de aplica,ao para esquivar-se das exigencias da inven0io e recipracamente. Denunciar essas falhas faz parte dessas finezas de semi-habeis as quais se sacrificam, de born . grado, os semi-soci6logos, imediaramente apravados . pelos administradores que se apoiam sobre suas falsas constata,Des pessimistas para dar uma forma de auta-
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as usos sociois do ciencio
Mais diffcil, mais justa e mais necessaria e a compreensao da logica, sem duvida bastante misteriosa, dessa institui,ao que reune duas concep,oes da autonomia, duas concep'oes da pesquisa, duas concep,oes da inven,ao Ca inven,ao propriamente dita e a inova,ao) que, embora muito diferentes, repousam sobre 0 mesmo fundamento economico, a saber, a liberdade relativa com rela0io a pressao economica proporcionaOO pela assistencia do Estado e que sao perfeitamente compativeis e mesmo complementares.
Algumas proposi<;6es normativas E por isso que, se posso me permitir enunciar re-
ridade as suas intervenc;:oes normativas ou repressivas.
comenda,Des que ninguem me pediu, direi que em vez de desperdi0'r tanta energia em disputas internas, que s6 tem por efeito desenvolver uma forma perversa, exasperada e esteril de lucidez Oucidez, por vezes total e nula porque sempre parcial e destinada a justificar uma forma mais profunda de cegueira), os membros do INRA deveriam unir seus esfor,os para desenvolver e acentuar 0 que faz a sua especificidade, isto e, a dualidade de fun,Des da pesquisa: longe de se opor como autonomas e heter6nomas, as pesquisas ditas basicas e aplicadas - que, alias, jamais sao tao basicas que nao tenham alguma implica,ao na ordem das apli,. ca,6es e nem jamais tao estreitamente aplicadas que . nao tenham algum fundamento au prolongamento na pesquisa basica - tem em comum serem igualmente .,autonomas e inscritas na 16gica universalista de uma wtitui,ao estatal consagrada e dedicada ao servi,o . -blico e ao interesse gera!.
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Uma polftica que visa desenvolver as vantagens competitivas potenciais da institui~ao au, a que vern
a dar na mesma, sua jusrifica,iio social (e a satisfa,iio de seu pessoal, que depende muito do sentimento de ter uma justifica,iio ou uma raziio de ser sociais) deveria trabalhar ao mesmo tempo, e sem contradi,iio, para acentuar a diferenciar;:iio das fun,oes e das estruturas que, supostamente, as servem (com 0 efeito, entre outros, de tornar mais diffceis os jogos duplos, conscientes ou inconscientes) e para a integrar;:iio dos diferentes agentes e institui,oes num projeto coletivo comum, mediante uma organiza,iio sistematica da circula,iio da informa,iio (seminarios comuns, projetos de pesquisa que integrem 0 aspecto inven,iio e 0 aspecto inova,iio; logo, os departamentos e os pesquisadores correspondentes etc.). E evidente que para ser um verdadeiro fator de integra,iio numa defini\'iio clara e claramente aceita por lodos, portanto cientificamente eficaz e politicamente democratica da divisiio do trabalho cientffico, 0 refor,o consciente da diferencia,iio das fun,oes (que, certamente, implica a supressiio ou 0 enfraquecimento de urn certo numero de grupos ou de departamentos que vivem e sobrevivem da ambiguidade de fun,oes) supoe uma profunda desierarquizar;:iio dessas fun,6es que deve ser operada por todos os meios e de infcio, nos cerebros (0 que nao e o mais f:ici!). Essa "desierarquiza,iio" e uma das condi,oes da constru,iio de verdadeiros objetivos comuns, dos quais o mais imporranle seria, cerramente, a organiza,ao da luta coletiva pela defesa da aUlonomia (da qual ja dei um exemplo a prop6sito da polftica de contratos). Uma tal luta suporia, evidentemente, a consrfw;ao, contra
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as usos sociois do ciencio
tados os fatores de desagrega\'iio de um patriatisma ou de um "sentimento de dignidade da institui\'iia", isto e, de uma solidariedade na cancorrencia entre todos os pesquisadores sem distin,oes (inventores e inovadores unidos) cujos vereditos informais (a reputa,iio, 0 prestlgio etc.) por vezes difusos, nao formulados e profundamente ressentidos e respeitados, ou formais (publica,6es em revistas prestigiasas, premios especiais etc.) seriam capazes de se impor como unica medida e unica san,iio pratica e imediata das realiza,oes e das falhas em materia de inava,iio, principia de avalia,ao comum aos invenrores e aos inovadores; e ao mesmo
tempo, opor uma for,a social indiscutivel aos pr6prios respansaveis administrativos e tambem as autaridades extemas e as suas injun,oes ou sedu,6es. Deve ter ficado claro que me parece inteiramente desejavel refor,ar a capacidade coletiva de resistencia que os pesquisadores devem ter, apesar das concorrencias e dos conOitos que os opoem, para estar em condi~6es de resistir as inrerven<;:6es mais au menos
tira-
nicas dos administradares cientificos e de seus aliados na mundo dos pesquisadores (e na "saciologia de plantaa", pronta a se fazer valer, propondo os criterias "indiscutlveis" uleis para fundamentar as decis6es de urn despotismo esclarecida). De fato, e claro que, aa supor que se aceita levar em conta os objetivos que proponho, isto e, a refor,o simultiineo da diferencia,aa e da integra,ao, tada burocracia da pesquisa (refiro-me aos responsaveis adminisuativas da institui\'iio) teria, cerramente, por primeiro reOexo, solicitar a uma comissao urn trabalho para esclarecer e reduzir a imprecisao, propondo, com a ajuda de um desses "gabinetes assessores" (ou cangeneres) 61
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que vendem, com altos custos, dispositivos tecnocd.ticos, tais como a "cientometria" ou a "bibliometria", novos sistemas de criterios capazes de fundar "cientificamente" decisoes burocraticamente impecaveis. Mas a imprecisao do sistema de criterios l com geometria variavel, que sao efetivamente levados em conta nas decisoes de recrutamento e de progressao (e que seria preciso extrair de uma analise met6dica de uma amostra de resultados de concursos) favorece, de forma par demais evidente, as manobras do aparato para que se possa esperar dos homens do aparato, digam a que disserem, que eles trabalhem realmente para reduzi-10 e combate-lo. Alem disso, par mais importante que tal medida possa ser em seu principio, ela nao poderia bastar para transformar profundamente a funcionamento da institui~ao. E sob 0 risco de me intrometer no que uma institui~ao cientffica tern de mais fntimo e mais sagrado, isto e, o conjunto de mecanismos e procedimentos pelos quais ela assegura sua reprodu~aol gostaria, apoiando-me sobr~ a conhecimento geral que eu possa ter do funcionamento das instituic;oes cientfficas, de chamar a aten~ao para a fato de que os discursos reformadores nesses assuntos, em especial quando emanam das instancias dirigentes, repousam sabre uma profunda hipocrisia.
Se penso que medidas administrativas visando melhorar a avalia~ao da pesquisa e colocar em pratica um sistema de san~6es (como as "pomos da escala de progressao na carreira") proprias para favorecer as melhores pesquisas e os me1hores pesquisadores seriam as mais ineficazes e teriam como efeito, mais provavelmentel favorecer ou reforc;ar as disfunc;oes que supostamente deveriam ser reduzidas, e porque tenho serias duvi62
Os usos sociois do ciencio
das e seriamente fundadas sabre a capacidade das instancias administrativas para produzirem avaliac;oes realmente objetivas e inspiradas. E iS50, fundamentalmente porque a fim real de suas opera,iies de avalia~ao nao e a da propria avalia~ao, mas a poder que ela permite exercer e acumular controlando a reprodu,ao do corpo (especialmente mediante a composi<;ao das comiss6es examinadoras). Aqui, no entanto, como em outros lugares, a questao e saber quem e legftimo para julgar e quem sera juiz da legitimidade dos juizes. Para simplificar, direi que a questao do justo julgamemo se remete, praticamente, a questao da adequa~ao e da justip da escolha dos jufzes au, para avan~ar um pouco, da escolha daqueles que tem condi~6es de instituf-los como tais (compor as comissoes examinadoras) e de fixar - mediante as comissoes que eles instituem - os criterios segundo as quais eles deverao julgar.
E chega-se, pais, aos responsaveis pela administra,ao da institui~ao, aos administradores cientfficos. E notavel que essas pessoas que so falam de criterios de avalia,ao, qualidade ciemffica, valor do dossie cientffico, que se precipitam com avidez sobre os "metodos cientometricos" e "bibliometricos" e que sao apreciadares de auditorias imparciais e objetivas (destinadas, em geral, a produzir, com grandes despesas, constata,iies triviais e proposi~6es inuteis, como a auditoria recente sobre os procedimentos de avalia~ao do CNRS) sabre 0 rendimento ciemffico das institui~6es ciemfficas isemam-se eles proprios de qualquer avalia~ao e colocam-se cuidadosameme ao abrigo de tudo 0 que poderia levar a aplicar as suas prMicas administrativas (~ nao somente a suas praticas cientfficas como 0 faz a 63
Pierre Bourdieu
polemica comum) OS procedimemos dos quais preconizam, rao generosameme, a aplica<;iio. Ora, creio fortemente que urn certo numero de disfun~6es estruturais s6 pedern ser reduzido submetendo os responsaveis pela organiza~ao aos criterios que eles pretendem impor aos outros, ou pelo menos ao equivaleme especifico dos procedimemos de avalia<;iio que eles preconizam. A elabora<;iio de criterios de inven~ao e de inova~ao em materia ciemffica e economica, seria precise acrescentar criterios em materia
de inovai'ao organizacional e conferir urn reconhecimemo explicito aos agentes capazes de brilhar segundo esses criterios. 0 que teria, talvez, por efeito, a mais ou menos lange prazo, atrair em dire~ao as posi~oes administrativas nao as pesquisadores (de inven<;iio ou de inova~ao) mediocres au em declinio ou, muito simplesmente, ambiciosos e carreiristas (como e o caso, quase sempre, hoje, com todas as conseqiiencias que logicameme se seguem, especialmeme em materia de avalia~ao), mas de verdadeiros empreendedores especificos. Esses dirigentes de urn novo tipo se atribuiriam como objetivo, a moda de alguns editores ou diretores de galerias, agir como descobridores capazes de favorecer pesquisadores atipicos, de animar e organizar empresas coletivas, elaborar as editais de maneira a ajudar os pesquisadores menos experientes a conciliar as demandas externas com as exigencias internas; logo, de se comportarem menos como executivos encarre·
gados de sancionar do que como preparadores encarregados de estimular, assistir, apoiar, encorajar e organizar nao s6 a pesquisa, mas tambem a forma~ao (por programas de educa~ao permaneme e de imerforma~ao) e a circula<;iio da informa<;iio dentifica. 64
Os usos sociais do ciencia
Uma convers60 coletiva Por todas as razoes que acabo de enunciar, e ainda par outras que seria preciso evocar com detalhes e que sao tambem sistematicamente omitidas ou ignoradas pelas comissoes de reformas de todas as ordens (sem falar da "avalia<;iio coletiva" a qual os laborat6rios do INRA sao submetidos), e claro que uma politica denlillca verdadeiramente conforme aos interesses da institui~ao (e nao daqueles que a dirigem) nao pode ser elaborada e instaurada por decreto (daqueles que a dirigem, par mais esclarecidos que sejam). E s6 uma reflexao coletiva, capaz de mobilizar todas as for~as vivas da institui~ao (e em panicular, os pesquisadores mais ativos e mais inspirados, sobretudo entre os mais
jovens) e todos os seus recursos (que seria preciso recensear e mobilizar e dar a conhecer a todos os membros da institui~ao), poderia conduzir a essa especie de conversao coletiva que e a condi~ao de uma verdadeira atualiza<;iio. Sou bern conscieme de que 11 imensidao de vantagens que tal conversao coletiva - parque e bern disso que se trata - poderia !razer, tamo para a inven~ao denlifica quanto para a inova~ao economica, corresponde . a imensidao de obstaculos sociais que se opoem na pratica a uma tal transforma,;;'o de toda a representa': cao da divisao do trabalho cientifico e, mais profundamente, da maneira de perceber os outros e de perceber a si mesmo. A demoli~ao, que mal comecei a esbo'~r, de todo a conjumo desordenado de preno,oes, de 'pressupostos, de preconceitos que constr6i a socieda.' esponranea dos agemes em concorrencia (e que .' lillca, a pretexto de objetivar, a rna sociologia) e s6 65
Pierre Bourdieu
urn primeiro passo, que eu creio absolutamente decisivo, para uma especie de libera,ao coletiva. o movimento para ir aU:m e operar essa socioanalise coletiva, que e a condi,ao absoluta de uma verdadeira conversao coletiva, s6 pode, no entanto, ser executado, ao pre,o de urn longo trabalho de cada urn sobre si mesmo e sobre todos os outros, pelo conjunto do grupo. Por isso, 0 essencial seria organizar instancias de discussao em que - eventualmente com a participac;ao e a assistencia modestas, mas creio inteiramente necessarias, de soci610gos - todos os membros da institui,ao fossem levados a se exprimir e a pensar coletivamente e, para alem de toda imposi,ao ou san,ao hierarquica, os problemas que as diferentes categorias de pesquisadores podem ter em comum e que podem dividi-Ios e opo-Ios. Nos lugares de confronto ou dlScussao comuns, pequenos grupos de discussao, expostos ao rumor ou a tagarelice, partidos, associa,oes ou sindicatos, expostos a todas as self deceptions dos sistemas de defesa coletiva, comites ou comissoes, expostos as falsas comprova,6es realistas e aos votos piedosos do jargao burocratico, esses problemas sao menos discutidos do que deslocados para formas faceis de denuncia ou de "politiza,ao". Tenho a convic,ao (e meu lado Auf/darer) de que se pode tirar de uma visao realista, mas nao desencantada da vida cientifica, preceitos ou maximas, procedlmentos e processos, especialmente em materia de organiza,ao da discussao e da circula,ao da informa,ao que permitiram tornar a pratlea e a vida cientifica ao mesmo tempo mais eficazes e mais felizes ou menos infelizes (porque e claro que uma das fun,oes maiores de todas as representa,oes antagonicas que produzem as diferentes categorias de pesquisadores e a d 66
Os usos socia is do ciencio
conjurar e exorcizar todas as formas espedficas de infelicidade ou de miseria que estao ligadas a inser,ao num campo cientffico estruturalmente destinado a proporcionar muito mais fracasso do que sucesso). E penso que, apoiando-se sobre uma analise rigorosa dos campos cientfficos, tal como eles sao realmente, podem-se propor os principios concretos de uma Realpolitik da razao. Diferentemente de uma filosofia da "a,ao comunicativa" tal como a de Jurgen Habermas, te6rico alemao muito respeitavel e hoje muito ouvido, que atribui urn lugar consideravel aos problemas e as normas da comunicac;ao nos espac;os sociais como 0 campo politico, essa Realpolitik da qual estou tentando dar uma ilustra,ao propoe que, para que se realize 0 ideal que se da como a verdade cia comunica,ao, e preciso agir sobre as estruturas nas quais se concretiza a comunicac;ao, por uma ac;ao po}ftica, mais espedfica, isto e, capaz de atingir os obsraculos sociais especificos da comunicaC;ao radonal e da discussao esclarecida. Ainda que os campos cienrificos sejam universos de excec;ao (e tanto mais quanta sao mais autonomos), nem rudo e para 0 melhor, eu 0 disse, no melhor dos r mundos cientfficos posslveis, e ha obstaculos sociais a instaura,ao da comunica,ao racional que e a condi,ao do progresso da razao e do universal. Porranto, e pre•aso lutar praricamente, isro e, polirleamente (no senti"do especifico do rermo), para dar for,a a razao e as Oes, apoiando-se para tanto no que ja se pode rer razao realizada na hisroricidade do campo. Mas nao nos enganemos, as lutas de que falo (em 'cular, as lutas para a defesa da auronomia, para a esa das condip5es economicas e sociais que jamais adquiridas de uma vez por rodas, como creem als dos defensores da rerirada e da reclusao na rorre 67
Pierre Bourdieu
Os usos sociois do ciencio
de marfun) sao lutas espedfieas que se trata de fazer com armas especffieas, no proprio interior de cada campo, em vez de desloca-las, como acontece tao frequentemente, para outros domfnios, como as cia poHtica comum. Nada e mais funesto, com efeito, do que a upolitiza~ao" no sentido corrente do termo, do campo cientifico e das lutas que a1 se desenrolam, isto e, a importa~ao dos modelos politicos para 0 campo cientlfico - que e muito pratieada na Fran~a, inclusive no INRA. A upoli_ tiza~ao" e quase sempre obra daqueles que, quer se trate de dominantes temporais (e temporarios) quer de dominados, sao os mais fracos segundo as normas eso que chamo a lei de Jdanov): fazendo intervir poderes externos nas lutas internas, eles impedem 0 pleno de-
volto as minhas questoes, isro e, ao INRA e ao que poderia ser uma Realpolitik da raziio visando integrar essa institui~ao de duplo fim em e par urn domlnio coletivo e concertado de sua diferencia~ao estrutural e funcional. Tratar-se-ia de instaurar e fazer funcionar urn dispositivo de discussao coletiva orientado para a inven,ao de novas estrulUras organizacionais pr6prias para favorecer essa integra~o na diferencia~o. Tenho 0 habiro de dizer, generalizando uma observa~o de Max Weber a prop6sito do papel respectivo do progresso das armas de fogo e das formas de organiza,ao das For,as Armadas (com inven,oes Como a Falange), que tambem no domlnio da ciencia os grandes progressos estao Iigados as inven~oes organizacionais (como 0 laborat6rio ou 0 seminario) no caso par-
senvolvimento das trocas racionais.
ticular, com inven~OeS concernentes
Dito isso, 0 que torna as coisas muito complexas e os jogos du plos tao faceis e que as luras mais especfficas em materia de arte, de Iiteratura ou de ciencia nao sao totalmente desprovidas de consequencias no espa~o social global. A defesa do que ha al de rnais especffico por lutas autonomas - por exemplo, tal luta dos artistas americanos contra a censura - pode ter efeitos politicos. E sobretudo a defesa da autonomia dos campos cientfficos, em especial, e do campo das ciencias sociais, em particular, e par si urn ato politico. especialmente num momento e em sociedades nas quais os homens politicos e os dirigentes economicos se armam,
trabalhar em conjunto pesquisadores dotados de interesses diferentes porque inseridos em campos dotados de 16gicas quase anragonicas. E tambem gra~s a um tal dispositivo que se poderia dar algumas possibilidades de coloear convenientemente e resolver verdadeiramenre, para alem de todas as mentiras para si mesmo, individuais e coletivas, a terrlve! questao da "demanda social", das condi~oes nas quais ela pode e deve ser definida e elaborada e nas quais se pode e se deve a ela responder eficazmente. Mas ficarei por aqui, por hoje.
pecificas e tern, portanto, interesse na heteronomia (e
sem cessar, da ciencia, economica principalmente,
nao
para governar, como 0 querem fazer crer, mas para legitimar uma a~o polftica inspirada por raz6es que nacla tern de cientfficas. Depois desse longo parentese, importante, creio eu, para evitar mal-entendidos sobre minhas inten~oes, 68
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a maneira de fazer
Discussao
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Pierre Bourdieu: Responderei primeiro a duas questoes que me foram colocadas durante 0 intervalo, por M. Raymond Fevrier, antigo diretor-geral do INRA. A primeira trata das rela,oes entre a posi,ao do professor e a do pesquisador; a segunda trata dos problemas postos pelo enorme afluxo de documenta,ao com o qual somos confrontados pelo desenvolvimento dos meios de comunica,ao. A posi,ao do professor, em qualquer nivel que seja, ',me parece, de fato, muito dificilmente compativel com .j! posi,ao do pesquisador. Pode-se objetar que existem :POsi,oes de professor-pesquisador, que ha um certo umero de institui,oes, de institui,oes hospitalares, de .borat6rios de pesquisa etc., onde estruturas pedag6estao integradas a pesquisa. Infelizmente, 0 que chama ensino, de modo corrente, sao lugares de missao codificada, rotinizada do saber, e uma parte idecivel da inercia dos campos cientfficos vincuao atraso estrutural resultante do fato de que as 71
Pierre Bourdieu
Os uses seciois do ciencio
pessoas que ensinam sao comumente desconectadas da atividade de pesquisa. Assim, bizarramente, nao e exagerado dizer que 0 ensino e, em parte, um fator de inercia. as professores tern interesses inconscientes pela inercia. Vma vez que nao estao diretamente conectados 11 pesquisa viva, sao solidirios da rotina, pelo simples fato de estarem, estatutariamente, um pouquinho 11 margem, e eles tern, mesmo, as vezes, urn interesse inconsciente em desqualificar 0 que e eminente. Isso e particularmente visivel nas disciplinas literarias, nas quais 0 professor permaneceu como urn lector, no sentido medieval do termo, que tem uma especie de desconfian~a com rela~ao aos auctores, inventores, criadores etc. Mas 0 mesmo fen6meno observa-se em medicina e em ciencia. Assim como, segundo Weber, o padre rotiniza a mensagem do profeta, 0 professor rotiniza , banaliza 0 discurso do criador, em particular, fazendo desaparecer 0 que e fundamental, isto e, 0 problema tal como 0 colocou 0 criador.
cussao cientffica. Entao, assim se descobriria que muitos dos problemas, com freqtiencia, vividos no drama e na ansiedade nada tem de pessoal e que os pesquisadores, pessoalmente, nao tern grande coisa a ver com des, o que teria por efeito dissipar muitas falsas angustias. A vida cientifica e extremamente dura. Os pesquisadores estao expostos a sofrer muito e eles inventam uma por,ao de estrategias individuais destinadas a atenuar 0 sofrimento. Os coletivos de reflexao permitiriam abordar e tratar essas questoes de frente. 0 movimento feminista tentou, num dado momento, trabaIhar assim, encorajando os coletivos de testemunhos. Sob 0 risco de parecer ingenuo, diria que haveria um lugar para coletivos de testemunhos de sofrimento cient!fico. Eu Ihes asseguro que hi material.
No que concerne a invasao de documentos, acredito que seria preciso fazer um estudo empirico sobre 0 que se Ie realmente. Quando vejo as referencias que sao citadas nas footnotes de artigos cient!ficos, sobretudo anglo-saxoes, e a maneira pela qual elas sao utilizadas, penso freqiientemente que haveria motivos para testar o que e, realmente, lido. Seja 0 que for, esse problema da invasao pela documenta,ao e inteiramente real e deveria ser abordado nos lugares de reflexao. Isso faz parte desses problemas verdadeiramente importantes que, em sua rnaioria, jamais sao discutidos. Cada urn se arranja, na intimidade. Cada urn os resolve a seu modo, de maneira um pouco envergonhada, nem sempre muito honesta, nem muito racional, quando, segundo penso, eles deveriam ser tratados nos espa,os de dis72
Questiio: 0 senhor insiste muito na defesa da autonomia, mas nao diz como essa defesa pode ser conciliada com a preocuparao da ahertura e da sensibilidade da ciencia aos prohlemas que se poem na sociedade e aosproblemas da inovarao que obrigam 0 pesquisador a sair dos limites do campo.
Pierre Bourdieu: Encontra-se ai uma dessas falsas antinomias que a no,ao de campo permite desfazer. A alternativa escolar do engajamento e da torre de marfim e um falso problema. Em duas palavras, 0 arquetipo inaugural do engajamento intelectual e representado pela a,ao de 20la no momento do caso Dreyfus. Um escritor, num certo momenta, faz urn ato poIrtico, mas como escritor (e nao como homem politico), Se um tal ato foi possivel, e porque nessa epoca um campo literario aut6nomo havia se constituido hi pouco: iniciado desde 0 seculo XVI, 0 campo ascende 11 plena au73
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Pierre Beurdieu
Os uses seciois do ciencio
tonomia no seculo XIX. E e sobre a base dessa autonomia conquistada que 0 erudito ou 0 escritor se destaca e vai ao campo politico para dizer, com a autoridade que the da seu capital especifico autonomo de erudito au de escritor, que tal decisao nao e aceitavel, que ela e contraria aos valores inerentes ao seu campo, isto e, no caso do escritor, os valores de verdade. Em outras palavras, quanta mais se e aut6nomo, rnais se tern chance de dispor da autaridade especifica, isto e, cient!fica ou literaria, que autoriza a falar fora do campo com uma certa eficacia simb6lica.
condi~6es da cientificidade etc. e, sobre essa base, intervir em nome dos prindpios universais de sua existencia e em nome das conquistas do seu trabalho.
o principio de toda Realpolitik da razao, que eu prego, consiste em acumular 0 maximo possive! de autoridade especifica para fazer dela, se for a caso, uma far~a politica sem, e claro, para isso tornar-se urn homem politico. 0 erudito ou a literato que sai do campo para exprimir-se apoiando-se sobre sua autoridade especifica retorna a seguir para os seus amados estudos. 0 que eu desejaria muito e que isso que se chama comunidade cientifica - que, alias, nao e uma comunidade, mas urn campo com concorrencias etc. - numa palavrd, que os eruditos, os artistas, os escritores se eonstitulssem pouco a pouco em instancia coletiva capaz de intervir como uma for~a politica para dar opiniao sobre problemas que sao de sua competencia. Urn dos obst
Por que, entao, os artistas, os escritores e os eruditos nao participariam eles pr6prios da defini~ao da demanda social? Armados das conquistas do trabalho dos soci610gos e dos conhecimentos especializados que possuem as eruditos, eles poderiam intervir eficazmente sobre problemas de interesse geral e nao somente par ilumina~6es e par eclipses, como hoje, quando as poHticos passam da medida, mas sim de maneira corriqueira, eonstante. Os eruditos estariam, assim, continuamente presentes no debate social ou politico, e creio que isso contribuiria para esclarecer bern os problemas. Eles poderiam, alias, come~ar por contribuir diretamente para definir a famosa demanda social em materia de pesquisa cientifica. Se existisse uma estrutura de delibera~ao coletiva, capaz de ultrapassar as divis6es que evoquei, ainda agora, entre te6ricos, pratieos, basieos, aplicados, homens, mulheres e todo 0 resto e que enunciasse as questoes, ao mesmo tempo, importantes e urgentes, certamente isso seria uma boa coisa tanto para a ciencia como para a sociedade. 0 INRA deveria poder funcionar assim, pelo menos a prop6sito dos problemas que the sao estatutariamente atribuidos e que sao de sua al~ada.
Questiio: 0 senhor poderia precisar mais as rela,Des entre campo polftico e campo cientifico, em particular voltando a nOf'iio de "demanda social" que e essencialmente apresentada ao cientista pelo polftico? Pierre Bourdieu: Abordei esse problema a minha maneira, porque penso que a afirma~ao da aura no75
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Os usos sociais do ciencio
mia e 0 primeiro principia e espero te-Ios convencido
postos a responder problemas que realmente sao constituidos segundo esses processos. E por isso que urna das particularidades do nosso grupo de pesquisas tem sido sempre interessar-se, ao mesmo tempo, por seu objeto e pelos instrumentos de conhecimento desse objeto: as problematicas, os sistemas de cJassifica<;ao, os instrumentos de codifica<;ao etc., todas essas coisas que, comumente, sao evidentes. Por exemplo, as pesquisas demograficas do I ED9 e seu sistema de codifica<;ao ocultam, em si, uma teoria da familia. Evidentemente, quando voces dizem isso aos pesquisadores do INED, eles respondem que voces sao politizados! Eles acreditam-se "neutros". Os mais belos trabalhos de Remi Lenoir mostram como, mediante a a<;ao de urna combina9-o de pensadores e de pesquisadores majoritariamente cat6licos, uma filosofia da familia com tonalidade crista habita todos esses questionarios e, sob a forma de categorias e de enunciados de aparencia inteiramente an6dina, "chefe de familia" etc., produz dados pre-constituidos que sao, a seguir, tratados como se se tratasse de estalisticas tao objetivas quanto as da pluviometria", Sugeri, mesmo, recentemente, a um pesquisador estudar os editais das institui<;oes europeias que, confrontados com a politica economica dessas institui,Oes, dao uma boa ideia da divisao do trabalho entre a economia e a sociologia, tal como a concebem as autoridades politicas,
de que essa afirma9-o nada tern a ver com uma fuga sonhadora. E claro que isso pode e deve se retraduzir em proposi<;Oes concretas, a serem imaginadas. Seria preciso, par exemplo, constituir grupos de trabalho ad hoc e dar provas de imagina<;ao jurfdico-organizacional, reivindicar, por exemplo, que os pesquisadores estejam representados em muitas das instancias nas quais se preparam as decisoes publicas, para ai introduzir 0 ponto de vista da ciencia. Em suma, seria preciso inventar e inovar, de tal maneira que essa maldita demanda social nao possa ser definida nas nossas costas.
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E parece-me que uma Realpolilik orientada para a defesa da autonomia poderia se deter, com prioridade, num estudo sociol6gico da genese real do que se chama hoje demanda social. Patrick Champagne poderia, par exemplo, lhes dizer, melhor do que eu, que uma parte enorme dos problemas ditos sociais sao, na realidade, produtos de uma especie de circula,ao circular entre os jomalistas, que em boa parte saem da Escola de "Ciencias Politicas", ja que os professores dessa escola contratados pelos institutos de opiniao transformam as questoes da Escola de "Ciencias Politicas" em questOes para as pesquisas, cujos resultados sao dissecados e comentados pelos analistas e jomalistas que fizeram eles proprios tal curso etc, E e assim que se constituem as problematicas de opiniao, esse conjunto de problemas que nao tern quase nada de pertinente, mas que de bom ou de mau grado todos n6s temos na cabel'". As ciencias sociais sao mais expostas do que as outras ciencias a esse perigo, e, quando, acreditamos responder a problemas autonomos, isto e, postos por n6s mesmos para n6s mesmos, estamos sempre ex-' 76
Questiio: Uma obserua{:iio: a prop6silO dos usos sociais da ciencia queforam 0 lema desla conferencia,
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9 IN ED - Insriw[ National d'Ewdes Demographiques (Instituto Nacional de Estudos DemogrJ.ficos), (N.T.)
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Pierre Bourdieu
Os usos socials do ciemcio
o senbor tratou amplamente e em definitivo dos usos sociais que se podem jazer das conquistas da sociologia no proprio campo cientifico e no que a sociologia pode ajudar no funcionamento do campo cientifico. Mas quais seriam os usos sociais da ciencia no exterior do campo cientifico? Quem se apodera dos resultados da ciencia e para produzir quais ejeitos sociais? Essa questao se poe, por exemplo, a prop6sito das rela~6es entre as ciencias e as mfdias, pelas quais 0 senbor se interessou recentemente. Par outra lado, e e uma a/usda a La misere du monde, quais sao os usos sociais que a 50ciologia pode jazer de seus proprios resultados para comunicd-Ios ao mundo social? [SSG Iiga-se, em parte, 1I questao que 0 senbor evocou bd pouco, do momento de devolver ao mundo social os trabalbos quepodem ser conseguidos gra~as 1I autonomia.
ocupando de forma uti! seu tim de carreira, ou e qualquer coisa que e constitutiva do ofkio de erudito' De
Pierre Bourdieu: !sso poe muitos problemas ao mesmo tempo, mas tentarei responder! Sabendo que o publico de hoje se dividiria num grande numero de disciplinas diferentes, esforcei-me, quando pude, por falar das ciencias em geral, mas evidentemente a sociologia tern sua posi\;'Jo inteiramente particular e mesmo perfeitamente singular. Dito isso, a sociologia, por causa da extravag:lncia de sua posi<;iio, e, talvez, urn revelador para as outras ciencias, porque ela se confronta de maneira mais visfvel, mais crttica, as vezes mais drama-
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tica com problemas que as outras ciencias podem fingir ter resolvido. Por exemplo, a prop6sito do problema da restitui<;iio do saber, que voce evocou, a primeira questiio e saber se hi uma obriga~ao de restitui<;iio do saber. A divulga~ao cientifica e uma especie de inje~ao de animo para 0 pesquisador que envelhece, tranquilamente, 78
fato, as eruditos, quaisquer que sejam, deveriam, pare-
ce-me, se nao trabalhar, eles pr6prios, pela divulga<;iio dos resultados do seu trabalho, pelo menos trabalhar para controlar tanto quanto possivel esse processo de divulga<;iio; interven<;iio que se imp6e a eles de maneira tanto mais imperativa quanto seus resultados podem ser usados num debate bern ou mal estabelecido. !sso introduz 0 problema da rela~ao com a lelevisao e com as midias em geral. Se dei duas aulas sobre a lelevisao que foram publicadas sob a forma de urn pequeno livro, foi uma 16gica que se poderia chamar de missioniria. Isso nao me agradou nada, esse nao era urn lema sobre 0 qual eu trabalhava naquele momenta, mas pensei que, do ponto de vista dos interesses da democracia, da discussao cientffica etc., fosse importante levar ao conhecimento de urn publico tao amplo quanto possivel urn certo numero de resultados da pesquisa.
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Urn problema apresentado para todos os eruditos, em graus diversos, mas que se pae de modo particular para os soci610gos, uma vez que, supostamente, estes
produzem a verdade sabre 0 mundo social, eo de restituir os resultados da ciencia nos dominios em que esses resultados possam contribuir de forma positiva para resolver problemas que chegaram a consciencia publica. Mas a fun~ao mais uti!, em rnais de urn caso, seria dissolver as falsos problemas ou os problemas mal colocados. Evidentemente, se voces estao com essa disposi,Jo, voces nada tern a fazer na televisao, porque 0 pressuposto que e preciso aceitar, quando se e emrevistado na televisao, e 0 de levar a serio esses falsos problemas. Como fazem os falsos m6sofos: seu verdadeiro oficio consiste em levar a serio os falsos pro79
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blemas. Quando, na verdade, seriam necessarios comandos de interven~ao filos6fica rapidos para destruir os falsos problemas, para funcionar como 0 Wittgenstein na vida de todos os dias e muito especialmente nas mldias. Em lugar disso, urn editorialista vai tomar posi~ao, urn outro vai the responder, 0 campo jornalistico vai se p6r a funcionar plenamente, e voces {erno assim urn "debate da sociedade" que produzira uma demanda social etc.; e, finalmente, seriio voces os pesquisadores intimados a responder aos jornalistas: sera preciso matar as vacas-loucas? Pode-se comer carne? E necessario clonar ou nao? Ah, 0 clone e impecavel. E como a eutanasia, urn verdadeiro falso problema que faz urn sucesso nas midias!
dir;6es? Porque a sociedade tem uma expectaliva em relar;ao aos cientislas. A demanda social, sou de pleno acordo com 0 senhor, niio e tao Simples, mas por vezes ela exprime, no entanto, ciaramente essa expectativa, ela a exprime justamente porque ela se faz compreender. Por exemplo, na Alemanha, no momento da crise do desaporecim<mto das florestas, houve uma demanda fantastica junto aos cientistas que, alids, responderam extremamente mal.
QuestaQ: Farei, de infcio, uma observar;ao: 0 senhorfalou de verdadeiros efatsos problemas e os exemplos que deu sao inteiramente convinc<mtes. Mas nem sempre e assim, sobreludo no proprio momenlo, quando falla dislanciamenlo. Quando e que os problemas sao verdadeiros e quando eque sao falsos, mas com eslaluta de problemas, eis 0 que nao etaofacil discernir. .. E concordo com 0 senhor: seria preciso dispor de uma pluralidade de espar;os para debater isso e dar ao pr6prio queslionamenlo uma polifonia suficienlepara que se possa comefar a ve-Io se projelar de modo plausfvel. Dito isso, minha questao e a seguinte: 0 senhor pensa quepode acontecer de ospoderes estahelecidos ou mesmo de os movim<mlos sociais em 0posifao poderem inlerpelar 0 mundo cientifico para quesliona-Io de qualquer lugar polftico que seja? E sera que faz parte do papel das instituifoes e dos individuos cientistas aceilar compreender essas quest6es e, de uma forma ou de outra, arriscar-se a proporuma resposta, em quais con-
Pierre Bourdieu: Essa quesrao e imponante. Infelizmente, penso que ha muito poucas demandas dirigidas aos cientistas e provenientes dos movimentos sociais, exceto 0 movimento ecol6gico que, por raz6es sociol6gicas, esta em condi~6es de faze-las. De fato, e urn movimento de pessoas dotadas de urn alto nivel de instru~o cujo discurso empresta muito dos argumentos cientificos. Ora, tambem no domlnio da manifesta~o po\[tica que, se esquece, e uma maneira particularmente eficaz e legltima de formular e de constituir uma demanda social, uma boa parte das inova~6es esra ligada ao nlveJ de instru~ao. Assim, as grandes subvers6es simb6licas que foram feiras pelos estudantes americanos no momento da guerra do Vietna eram manifesta~6es com alto nlvel de investimento de capital cultural. Ha, arualmente, muito poucos exemplos de movimentos de massas suscetiveis de dirigir quest6es aos cientistas. Tome-se 0 problema da polui~ao em Paris, do qual se fala cada vez rnais, e voces vemo que os protestos emanam de meios muito cultos, muito favorecidos, que se esfor,am para tentar suscitar uma demanda social. Na realidade, ha dois problemas: 0 de saber 0 que e preciso fazer das demandas que podem ser esponta-
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neamente formuladas, articuladas, elaboradas, seja porque ha pessoas que tern as capacidades culturais para formuli-las elas pr6prias, seja porque ha, entre os porta-vozes politicos, religiosos ou outros, pessoas que tern interesse em formuli-Ias; e hi 0 problema de decidir se e preciso limitar-se a demanda formulada (ou manifestada, especialmente nas manifesta~6es) ou contribuir para explicitar as demandas nao formuladas (por urn trabalho de pesquisa empirica, por exemplo), ou mesmo, de algum modo, chegar ate a formuli-Ias autoritariamente, como 0 fazem sempre os politicos. Pode-se, realmente, pretender exprimir demandas virtuais demandas potenciais mas nao formuladas, 0 que e ~videntemente muito perigoso. Eem nome desse processo que misticas marxistas faziam falar os povos, com tudo 0 que isso implicava de perigos. E, no entanto, e verdade que nao e possivel contentar-se em aguardar que as questoes se configurem de uma forma clara... Torno urn exemplo: penso que, atualmente exisre uma enorme demanda concernente ao sistem~ de educa~ao que ninguem formula e sobretudo que ninguem quer entender! Hi tambem uma enorme demanda concernente ao problema do trabalho, 0 problema da defini~ao da divisao do trabalho, 0 problema do sentido do trabalho no mundo economico atual. Mas como as grandes profecias escatol6gicas nao sao mais correntes, como e de born-tom no meio intelectual dizer que tudo isso esti ultrapassado, essas demandas nao tern rnais eco e sao abafadas (e verdade que hi muitos precedentes infelizes, dos ventriloquos que fazem falar 0 povo: "Eu sou 0 povo", dizia Robes-
amplamente, e tambem estar atenlQ a lodos esses problemas que nao chegam a ter formula~ao. A produ~ao de problemas, hoje, e compartilhada por aqueles que Platao chamou de "dox6sofos". E uma palavra magnifica que se pode traduzir de-duas formas e designar, a escolha, os eruditos da opiniao ou os eruditos aparentes. Para mim, os dox6sofos sao os eruditos aparentes da opiniao ou das aparencias, isto e, as pesquisadores e as analistas de pesquisas, essas pessoas que nos fazem acreditar que 0 povo fala, que a povo nao cessa de falar sobre todos as temas importantes. Mas 0 que jamais e colocado em questao e a prodU<;do dos problemas que sao postos para 0 povo. Ora, esses problemas sao engendrados segundo 0 processo circular de circula~ao entre pesquisadores, jornalistas e politic610gos que P. Champagne descreveu e que lembrei hi pouco.
pierre ...) Dito isso, pense que uma das responsabilidades dos cientisras, no caso das ciencias sociais mas talvez mais
Mas, ao mesmo tempo, n6s sabemos mediante numerosos trabalhos cientificos, pela anilise das naorespostas principalmente nas pesquisas, que 0 poder de produzir uma opiniao explicita e muito desigualmente repartido. Pia tao dizia "Opinar e falar". Ora, nada e mais desigualmente repartido do que essa capacidade, e essa constata~ao choca a boa consciencia democratica: todas as pessoas sao iguais, e 0 dogma. Ora, dizer que todas as pessoas sao iguais diante da questao da opiniao e urn erro, e urn erro polftico. Nem todo mundo tern os instrumentos de produ~ao da opiniao pessoal. A opiniao pessoal e urn luxo. Hi pessoas, no mundo social, que "sao faladas", por quem se fala, porque elas nao falam, para as quais se produzem problemas porque elas nao os produzem. E, hOje, chegase mesmo, no grande jogo da mistifica9io democratica, ate a dar oportunidade para que respondam a problemas que nllO seriam capazes de praduzir. E se faz,
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entiio, que produzam falsas respostas que fazem esquecer que elas nao tern questoes. Esse fenomeno da desigualdade no acesso a produ<;iio de opini6es explicitas, discursivas, e urn fato muito importante, que da uma responsabilidade enorme aos eruditos. E a questao que voce colocou e essencial: devem eles suprir as insuficiencias que podem constatar no trabalho de explicita~ao das expectativas sociais? E se sao interpelados, devem responder ou nao as questOes que lhes sao colocadas? Tudo bern pesado, respondo que sim, e eVidente. Se se tern a oponunidade de ser interrogado, como erudito especialista num dominio qualquer, por urn poder qualquer que seja, isso e tiio raro, que e preciso responder. Muitas vezes, a questao
e idiota, mas creio que e preciso res-
ponder, ao menos para reformular a questiio, e uma especie de obriga~ao dvica. Dito isso, devemos ir mais longe e trabalhar para a demoli~ao dos falsos problemas, ao mesmo tempo que para a produ~ao de problemas reais, mas coletivamente, de maneira organizada e, por isso, ao mesmo tempo, eficaz e autorizada. Volto a questao sobre a televisao, que e hoje urn dos lugares de produ~ao de problematicas, urn dos lugares de produ~ao da filosofia, urn dos lugares de produ~ao de ciencia ou de representa~oes da ciencia etc. Diante da televisao, seria preciso uma especie de movimento de resistencia dvica (voces vao pensar que exagero quando penso que ainda fico aquem) contra a imposifdo generalizada de problema-
Tomemos 0 exemplo de urn problema concreto e serio, que se colocam muito seriamente muitos membros do INRA, 0 da escolha entre produtividade e desenvolvimento duravel. Posto nesses termos, 0 problema pode parecer urn poUCCi). simplista, mas, se se elabora urn pouquinho a problematica, ve-se que esse e urn domfnio sobre 0 qual 0 INRA deveria e devera intervir. sera que 0 INRA nao e responsavel, de uma certa maneira, pela rela<;iio com a natureza? Sera que nao ha nada a colocar ex officio ou a contribuir para colocar num certo numero de problemas que sao deixados aos filosofos de televisao? Trata-se de problemas que devem ser discutidos de tal maneira que a competencia nao seja deixada no vestiario - 0 que supoe a organiza~ao de coJetivos ad boc, a cria~ao de espa~os que, como disse no inicio, nao podem seT os sindicatos, os comites, as comissoes
(tenho em mente 0 exemplo desse sindicato do ensino superior que tinha por principio a necessidade de deixar de lado os criterios cientfficos na avalia~ao dos pesquisadores). E importante instituir espa~os de discussao, ao mesmo tempo regulados e livres, onde se possa vir, com seus interesses profissionais, sua
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petencia profissional, suas pulsoes profissionais, suas revoltas profissionais, para discutir em termos profissionais - 0 que nao quer dizer corporativistas e menos
ainda de mandarins - com ou[tos profissionais, quer se u-ate de problemas praticos, pessoais, quer de problemas muito mais gerais, e isso sem esperar ser consul-
apenas 0 produto de habitos de pensamento, das rotinas, dos alrno~os fora de casa, das camaradagens, sao simplesmente bestas e por isso terrivelmente perigosas.
tado. E e desejavel que 0 trabalho de reflexao coletiva, realizado nesses Jugares, desencadeie tomadas de posi~oes publicas, ao mesmo tempo competentes, rigorosas, autorizadas e engajadas, crfticas, eficazes (e uma forona moderna e coletiva do modele de Zola).
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licas que nero sempre sao mesma dvicas, que sendo
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Se e isso que voces come~aram a fazer no INRA, especialmente mediante esse grupo Sciences en Questions, s6 posso encoraja-los a prosseguir, e digo que estou disposto a ajuda-los se voces 0 desejarem, na medida das minhas possibilidades.
SOBRE 0 LIVRO Formato: 12 x 21 em Mancha: 20.5 x 39.5 poicos ripe/agio: Gotineou 10,5/14 Popel, Offset 90 g/m' (miolo) Cortco Supremo 250 g/m1. {capo) J g edir;ao: 2004
EQUIPE DE REAlIZA<;AO Coordeno,;oo Geral
Sidnei Simonelli Produr;ao Gr6fico Anderson Nobaro
Edir;oo de Texto Nelson luis Barbosa (Assistenle Editoriol) Nelson LUIS Barbosa (Preporo<;oo de Original)
Carlos Villorruel e F6bio Gonr;olves (Revis6o) Editorar;oo Eletronica Lourdes Guociro do Silva Simonelli (Superviseo) Jose Vicente Pimento {Oiogromo<;oo)
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