Gramática do Português Falado Volume VII: Novos Estudos
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Humanitas FFLCH/USP dezembro/1999
Maria Helena de Moura Neves (Org.)
Gramática do Português Falado Volume VII: Novos Estudos
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PUBLICAÇÕES FFLCH/USP
1999
Copyright 1999 da Humanitas FFLCH/USP e da Editora da Unicamp É proibida a reprodução parcial ou integral, sem autorização prévia dos detentores do copyright Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USP Ficha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608 G 771
Gramática do português falado / organizado por Maria Helena de Moura Neves. – São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP; Campinas: Editora da Unicamp, 1999. v. 1 -
Conteúdo: v. 7. Novos Estudos
ISBN 85-86087-45-9 / 85-268-0497-9
1. Português (Gramática) 2. Português (Língua) 3. Fonologia 4. Morfologia 5. Sintaxe I. Neves, Maria Helena de Moura II. Título: Novos Estudos
CDD 469.5
HUMANITAS FFLCH/USP e-mail:
[email protected] Tel.: 818-4593 Editor Responsável Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento Coordenação editorial M. Helena G. Rodrigues Diagramação Selma Mª. Consoli Jacintho Capa Adilton Clayton Santos Revisão Autores / Simone Zaccarias
In Memorian Giselle Machline de Oliveira e Silva
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO Maria Helena de Moura Neves ................................................................. 9 PARTE I – GRUPO ORGANIZAÇÃO TEXTUAL-INTERATIVA Segmentação: uma estratégia de construção do texto falado (Ingedore G. V. Koch) ............................................................................ 29
A correção do texto falado: tipos, funções e marcas (Leonor Lopes Fávero, Maria Lúcia C. V. O Andrade e Zilda Gaspar O. Aquino) ........ 5 3 O relevo no português falado: tipos e estratégias, processos e recursos (Luiz Carlos Travaglia) ........................................................................... 7 7 Funções textuais-interativas dos parênteses (Clélia Cândida Abreu Spinardi Jubran) .................................................................................... 131 A hesitação (Luiz Antônio Marcuschi) ................................................. 159 Aspectos basicamente interacionais dos marcadores discursivos (Hudinilson Urbano) ............................................................................. 195 Aspectos textuais-interativos dos marcadores discursivos de abertura bom, bem, olha, ah, no português culto falado (Mercedes Sanfelice Risso) .................................................................................................... 259
Anatomia e fisiologia dos marcadores discursivos não-prototípicos (Giselle Machline de O. e Silva) ........................................................... 297 PARTE II – GRUPO SINTAXE I Estruturas coordenadas aditivas (Roberto Gomes Camacho) ............... 351 Estruturas coordenadas alternativas (Erotilde Goreti Pezatti) .............. 407 Os enunciados de tempo no português falado no Brasil (Maria Luiza Braga) .................................................................................................... 443 As construções causais (Maria Helena de Moura Neves) .................... 461 As construções condicionais (Maria Helena de Moura Neves) ............ 497 As construções concessivas (Maria Helena de Moura Neves) ............. 545 PARTE III – GRUPO SINTAXE II Elementos nulos pós-verbais no português brasileiro oral contemporâneo (Sonia Maria L. Cyrino) .............................................................. 595 PARTE IV – GRUPO DE MORFOLOGIA DERIVACIONAL Adjetivos denominais no português falado (Margarida Basilio e Léa Gamarski) .............................................................................................. 629 PARTE V – GRUPO DE MORFOLOGIA FLEXIONAL Correlação modo-temporal nas construções complexas: concessivas (Ângela C. S. Rodrigues, Odette G. L. A. S. Campos e Paulo T. Galembeck) ........................................................................................... 653 O uso do futuro do pretérito no português falado (Luiz Carlos Travaglia) .............................................................................................. 673 PARTE VI – GRUPO DE FONÉTICA E FONOLOGIA A sílaba e seus constituintes (Leda Bisol) ............................................ 701 8
APRESENTAÇÃO
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Este é o Volume VII da série Gramática do Português Falado, que tem trazido a público os textos discutidos nos seminários de pesquisa realizados anualmente pelos pesquisadores do grupo, a partir do final de 1988. A equipe, que abriga pesquisadores de todo o país, sob a coordenação do Prof. Ataliba Teixeira de Castilho, vem estudando o material do Projeto NURC (Norma Urbana Culta), desde essa época, com vistas a elaborar uma gramática de referência do português culto falado no Brasil.
1. O significado do empreendimento Os seminários anuais têm constituído a instância maior no processo de produção dos textos que vêm sendo publicados na série Gramática do Português Falado, uma vez que é nesses seminários que os estudos preparados pelos diversos pesquisadores sofrem discussão, uma discussão extremamente rica, em primeiro lugar pela diversidade de formação dos componentes do grupo, mas, especialmente, pelo modo particular de interação que esse grupo desenvolveu, dispondo-se todos a ouvir todos, e, assim, a relativizar pontos de vista, a temperar a rigidez de convicções assumidas, e, afinal, a reconhecer erros ou inadequações, sem melindres. A sensação da apresentadora e organizadora deste volume – que deve ser a de todos os outros componentes do projeto – é que poucas vezes se terá conseguido viver uma experiência como a que se viveu no interior do grupo, durante esses anos. Todos entraram no projeto achando que tinham sido convidados porque “sabiam” alguma coisa, e, no entanto, todos fizeram dele uma escola, sentando, estudando, falando, ouvindo, perguntando, respondendo,
pensando e remoendo, e, enfim, aprendendo como nunca. Quanto monstro sagrado se viu, nas atividades do projeto, desvestindo máscaras de altar, dando a face e abrindo o peito, expondo-se para ensinar, mas também para incorporar lições, com sabedoria, e principalmente com humildade – afinal, com a sabedoria da humildade, e seguindo, aliás, a postura do comandante, Prof. Ataliba. Todos disseram o que quiseram e ouviram o que lhes era dito, como se aquilo que ouviam fosse sempre o que queriam ouvir. Toda fala foi troca, e a troca foi saber, foi experiência, foi vida. Ninguém, com certeza, saiu o mesmo dessa aventura. E, com certeza, muito dificilmente se terá outra oportunidade igual.
2. Um pouco de história A história do funcionamento deste projeto está primorosamente traçada no prefácio de Mary Kato ao volume V da série, prefácio que compõe um “livro do Gênese” do projeto: vai do caos (uma barafunda de “gregos e troianos”) ao cosmos ( inspiração para o título desse volume V: “Convergências”). Isso significa que há pelo menos três anos a equipe se considera capaz de produzir uma obra em que as grandes diferenças – inevitáveis e benéficas – encontram um ponto de convergência, embora (e felizmente) sem fazer redução da riqueza de posições e de formação do grupo.
3. A natureza dos trabalhos A diversidade de posições teóricas não impede, por exemplo, que se proponham fundamentos teóricos e metodológicos que possam encabeçar confortavelmente a gramática a ser produzida: afinal com suas diferenças, todos os grupos envolvidos pretendem, a partir do tratamento dos dados da Norma Urbana Culta (NURC) em análise, não só determinar regularidades como também especificar o funcionamento dos subsistemas envolvidos na produção dos enunciados, considerada, na base, a competência comunicativa dos falantes. A partir dos pressupostos teóricos assentados dentro de cada grupo de trabalho, e também a partir dos trabalhos produzidos dentro desses grupos, o assessor acadêmico do projeto, Prof. Mílton do Nascimento, vem preparando o capítulo da gramática de referência que explicitará tais pressupostos. Em discussões que ocupam sempre um período de cada reunião anual da grande equipe, esse texto vem sendo ferrenhamente discutido e rearranjado, para que possa constituir o real registro dos objetivos, das perspectivas e das propostas da obra que será produzida. 12
4. Os princípios No ponto atual de sua elaboração, o texto do Prof. Mílton assim registra a série de pressupostos adotados na construção do ponto de vista teóricometodológico que circunscreveu o objeto de estudo dos pesquisadores: 1) uma concepção de linguagem como uma atividade, uma forma de ação, a verbal, que não pode ser estudada sem se considerar suas principais condições de efetivação; 2) a pressuposição de que, na contingência da efetivação da atividade lingüística do falante/ouvinte [na produção e recepção de textos] tem-se a manifestação de sua “competência comunicativa”, caracterizável a partir de regularidades que evidenciam um sistema de desempenho lingüístico constituído de vários subsistemas; 3) a pressuposição de que cada um dos subsistemas constituintes desse sistema de desempenho é caracterizável em termos de “regularidades” observáveis no texto e nas operações envolvidas em sua produção, “lugares” onde é possível identificar os indícios do modo de funcionamento do sistema de desempenho lingüístico dos falantes; 4) a pressuposição de que, sendo a linguagem uma atividade, uma “manifestação dinâmica da mente humana”, para descrevê-la e explicá-la precisamos de um processo analítico que disponha de categorias processuais.
5. Os grupos de trabalho Como é do conhecimento do público, são seis os grupos de trabalho que vêm preparando os textos de base para a produção da gramática do português falado culto do Brasil, cada um deles investigando dentro de uma subárea: Fonética e Fonologia; Sintaxe I; Sintaxe II; Morfologia Derivacional; Morfologia Flexional; Organização Textual-Interativa. Esses grupos estão organizados desde o início do projeto e trabalham, em seu campo e em sua linha, no cumprimento do programa maior estabelecido para toda a equipe e no cumprimento das metas traçadas. No ponto em que se encontram atualmente os trabalhos, cada um dos grupos também tem seu plano preliminarmente assentado para a gramática de referência que é o fim último do projeto. O Grupo Organização Textual-Interativa prevê uma introdução que explicite a proposta teórica, a que devem seguir-se quatro capítulos: o primeiro, 13
sobre a natureza da língua falada: a especificidade de sua produção, as atividades de formulação textual, os fenômenos intrínsecos da oralidade (hesitação e interrupção); o segundo, sobre a organização tópica: o conceito e as propriedades do tópico discursivo, o desenvolvimento tópico da conversação, o par pergunta / resposta na construção tópica, o relevo no processamento da informação; o terceiro, sobre as estratégias de construção textual: repetição, correção, paráfrase, inserção, segmentação, referenciação e progressão referencial; o quarto, sobre marcadores discursivos: traços definidores e funções textuais-interativas. O Grupo Sintaxe I, sob o tema geral “A palavra: classes, processos e funções”, projeta uma introdução que dará a perspectiva teórica, e uma série de oito capítulos, referentes às classes de palavras: nome, artigo, verbo, adjetivo, advérbio, pronomes, conjunções e preposições. O Grupo Sintaxe II também projeta uma introdução teórica sobre a questão da construção da sentença, seguindo-se quatro capítulos: sobre adjunção, sobre padrões de predicação, sobre complementação e sobre construções-Q. Os dois grupos de Morfologia devem analisar a construção morfológica da palavra. O Grupo Morfologia Derivacional prevê um texto em três capítulos que tratará dos seguintes temas: condições de produtividade e condições de produção; condições de produção de processos lexicais específicos: formações prefixadas, formações compostas, gradação e pejorativos, conversão de adjetivos e marcadores conversacionais; condições de produtividade e produção de processos lexicais categorialmente definidos: a nominalização de verbos e de adjetivos, adjetivos deverbais e adjetivos denominais, verbos denominais e verbos deajetivais. O Grupo Morfologia Flexional abriga em seu plano os seguintes estudos: da natureza e realização da flexão do português; da expressão das categorias gramaticais; da estrutura do vocábulo flexionado; da flexão como processo de expressão (as relações e os valores); da relação entre flexão e sintaxe (concordância nominal e concordância verbal); dos valores das formas verbais flexionadas (na palavra, na frase e no texto); da relação entre flexão e discurso. O Grupo Fonética e Fonologia resume sob o título “Construção fonológica da palavra” uma série de seis capítulos: sobre o acento; sobre a sílaba; sobre vocalismo; sobre consonantismo; sobre a entoação, na variação regional; sobre a visão diatópica dos fenômenos. Esses capítulos também serão introduzidos pelo texto que assenta as perspectivas teóricas, prevendo-se, no final deles, a apresentação de um glossário. 14
6. O conteúdo deste volume Os textos que neste volume VII se apresentam foram discutidos na reunião de pesquisa realizada em dezembro de 1995, tendo sido reformulados e definitivamente redigidos durante o ano de 1996. Eles quase completam a agenda firmada de cada um dos grupos, chegando praticamente ao fim o cumprimento do programa estabelecido para essa fase básica de produção dos estudos sobre os quais se vai consolidar a Gramática do Português Falado do Brasil, que se fará a seguir. Entretanto, verificadas algumas lacunas em determinados subcampos da investigação necessária a essa consolidação, o trabalho da equipe mantém-se em curso, prevendo-se, pois, dentro de um ano, a publicação do volume VIII, que será o último da série. O Grupo Organização Textual-Interativa apresenta oito textos. Cinco deles contemplam especialmente estratégias de construção do texto falado: a segmentação, a correção, o relevo, os parênteses, e a hesitação. Três outros se centram no estudo dos marcadores discursivos, num aprofundamento da análise já apresentada no volume VI da série. O último contempla um dos fenômenos intrínsecos da oralidade: a hesitação. A segmentação como estratégia de construção do texto falado é tratada no texto de Ingedore G. V. Koch, que objetiva examinar, com base no corpus partilhado do PGPF, as diferentes formas de articulação tema-rema empregadas pelos falantes da norma culta do português brasileiro, bem como descrever os matizes de sentido que cada uma delas, quando posta em ação, viabiliza. A ênfase especial vai para aquelas formas em que, em virtude de deslocamentos de constituintes, ocorre algum grau de segmentação sintática do enunciado, casos em que o falante opta pela utilização de estratégias de tematização e de rematização. O estudo mostra que, em termos da articulação tema-rema, particularmente em se tratando da língua falada, existe, ao lado de casos de plena integração sintática (construções não-marcadas, em que o rema, portador de informação nova, sucede naturalmente ao tema, que veicula a informação dada), uma série de padrões expressivos em que se pode falar de segmentação e/ou de deslocamento de constituintes. A segmentação é, então, entendida com qualquer tipo de alteração da ordem não-marcada, devida à extração, ou mise-enrelief, de um constituinte do enunciado, dando origem a construções de tema ou rema marcados. A partir da noção já corrente de que a ordem dos constituintes que seria de esperar por razões de ordem sintática é freqüentemente infringida por motivações de ordem funcional, o trabalho focaliza, dentre a multiplicidade de funções possíveis, aquelas que se afiguram mais relevantes. 15
O texto que estuda a correção como estratégia de construção do texto falado é de autoria de Leonor Lopes Fávero, Maria Lúcia C. V. O. Andrade e Zilda Gaspar O. Aquino. Operando com a noção de texto “como produto que congrega e sinaliza o processo de produção e interação”, o trabalho investiga a correção como estratégia de construção textual. Definida como procedimento empregado pelos interlocutores para suprir dificuldades e inadequações emergentes durante o processamento discursivo, a correção é examinada não só a partir da dinâmica interacional que se reflete diretamente nos aspectos lingüísticos e enunciativos, mas também quanto a sua operacionalização, os principais tipos de marcas prosódicas e/ou verbais encontradas para indicar a reformulação e as funções estabelecidas. No artigo discutem-se, ainda, os possíveis limites entre correção, paráfrase, repetição e hesitação, procedimentos reveladores do caráter criativo da atividade conversacional, que exige, constantemente, ajustes e reajustes por parte dos interlocutores na busca de cooperação e intercompreensão. O texto de Luiz Carlos Travaglia estuda o processo de estabelecimento de relevância no texto falado, buscando determinar os tipos, estratégias e recursos desse processo, além de suas funções. “Relevo” é considerado o fenômeno de o falante dar destaque a determinados elementos do texto quando o constrói e formula. Considera-se que o relevo: a) pode incidir sobre elementos unitários do texto, ou sobre um conjunto deles, ou sobre um tipo de elemento; b) pode ser positivo (os elementos são colocados em um plano de destaque) ou negativo (há uma espécie de “ocultamento” dos elementos), o que afeta a percepção do interlocutor. Esse fenômeno inclui fatos que têm sido tratados como contraste entre figura e fundo, ou primeiro e segundo planos, organização das informações em essenciais e secundárias, relevância pragmática de uma situação ou de algo no texto para a situação presente ou para um ponto de referência, fatos de focalização. Estudam-se os seguintes recursos de estabelecimento de relevo: a) os recursos fônicos: entonação, altura da voz, silabação, velocidade da fala, alongamento, “música de fundo”; b) os recursos léxicos: o uso de itens lexicais que funcionam como expletivos ou cujo semantema implica destaque de elementos do texto; c) os recursos morfológicos e categoriais: o aspecto, o tempo; d) os recursos sintáticos: topicalização, repetição, uso de orações principais cujo sentido implica destaque do que lhes está subordinado, uso de orações reduzidas ou desenvolvidas, uso de orações adjetivas; e) o uso de parênteses no texto; f) o uso de marcadores conversacionais; g) a mudança de código (dialetos e registros); h) os recursos estruturais, como a posição dos elementos dentro dos 16
segmentos textuais. Quanto às funções do relevo, observa-se que a básica é dar proeminência, derivando daí várias outras funções: enfatizar, intensificar, marcar um sentido especial, estabelecer contraste, reforçar argumentos, marcar importância dentro da estrutura ideacional do texto e marcar foco informacional. As funções textuais-interativas dos parênteses são tratadas por Clélia Cândida Abreu Spinardi Jubran, que apresenta uma classificação das funções textuais-interativas dos parênteses, com base nos critérios de desvio tópico e de introjeção dos processos formulativo e interacional no texto. O trabalho mostra que, ao longo de um contínuo, que leva em conta graus variáveis do desvio da centração tópica e da presença de dados da situação enunciativa nas inserções parentéticas, são estabelecidas quatro classes de parênteses, de acordo com o elemento focalizado predominantemente por eles: (a) elaboração tópica do texto; (b) locutor; (c) interlocutor; (d) ato comunicativo. O estudo da hesitação, de autoria de Luiz Antonio Marcuschi, tem como objetivo mostrar que os estudos formais da língua são redutores quando idealizam os materiais analisados, eliminando, por uma suposta irrelevância, aspectos tipicamente discursivos tais como a hesitação. Ele se baseia na idéia de que, embora típica da fala, a hesitação não é irrelevante como fenômeno lingüístico. De tal modo, dizer que a hesitação faz parte apenas do “uso” e não do “sistema formal” da língua é tomar a língua como uma entidade que existe “em si e por si”. Contudo, não se pode isolar, de um lado, um objeto típico da língua, “a frase”, e de outro, um objeto do uso da língua, “o discurso”: ambos estão interligados e se codeterminam funcionalmente. A hesitação é vista como parte da competência comunicativa em contextos interativos de natureza oral, e não como uma disfunção do falante. Defende-se que ela desempenha papéis importantes na fala (papéis formais, cognitivos e interacionais) e que é uma atividade textual-discursiva que atua no plano da formulação textual. Também se defende que a hesitação não se acha aleatoriamente distribuída, mas obedece a alguns princípios gerais de distribuição e serve como indicação de organização sintagmática da língua. Ela constitui uma amostra de que, se o princípio da linearidade é fundamental no uso da língua, ele não pode ser entendido como simples seqüenciação ininterrupta de enunciados da esquerda para a direita. Produzida tanto no nível suprassegmental (pela prosódia) como no nível segmental (com elementos formais da língua), a hesitação é a presença de atividades discursivas na materialidade lingüística, evidenciada numa transcrição fiel da fala. Hudinilson Urbano estuda aspectos basicamente interacionais dos marcadores discursivos com o objetivo específico de observar suas subfunções, 17
propriedades e comportamentos interativos salientes. O estudo se apóia em pesquisa maior sobre os marcadores e se centra nos marcadores que, em pesquisa anterior (publicada no volume VI da série), foram classificados funcionalmente como “basicamente orientadores da interação”. Os aspectos textuais-interativos dos principais marcadores discursivos de abertura no português culto falado são estudados por Mercedes Sanfelice Risso. O trabalho parte de um assentamento de traços definidores dos marcadores discursivos, em geral, a título de suporte para a investigação do padrão de prototipicidade dos quatro marcadores de abertura (bom, bem, olha e ah) em questão, examinados preliminarmente sob a ótica dos traços categoriais estabelecidos. A parte central do estudo é ocupada pela caracterização da função de abertura promovida por esses marcadores na articulação interna do par adjacente pergunta-resposta e em outras instâncias de organização tópica do texto falado. Aspectos funcionais básicos diferenciadores de seu foco na estrutura (inter)pessoal e ideacional do discurso são examinados à luz das relações com as respectivas fontes lexicais homônimas, sem estatuto de marcador. Desdobramentos e deslocamentos dessas diferenças são depreendidos na dinâmica da tessitura textual-discursiva. A natureza e a distribuição dos aspectos gerais apurados oferecem elementos que auxiliam na diferenciação tipológica entre as modalidades dos inquéritos analisados. Valendo-se dos critérios propostos em Risso, Silva e Urbano (1995) Giselle Machline de Oliveira estuda, como marcadores não-protípicos, as formas: etc... e tal, (comparadas a formas similares, possíveis alternantes tais como e tal e coisa, e tudo (o) mais); por exemplo, (comparada a como por exemplo, e um exemplo); digamos (vamos dizer (assim) digamos assim), assim. Os resultados são compatíveis com o modelo da teoria dos conjuntos subjacente ao trabalho. O elemento encabeçado por por exemplo (o exemplificante) é prototípico: concreto, objetivo, real e disponível. Pelo contrário, os marcadores de procura de elementos como digamos, como assim, não são prototípicos e coocorrem com elementos abstratos, subjetivos e novos. Coocorrem também com hesitações, evidenciando dificuldades de processamento do elemento e indicando uma função de preenchimento de espaço vazio na conversa durante esse processamento. As partículas de expansão etc. e tal (e as outras alternantes), tendem a fechar enumerações de elementos concretos e objetivos. Descartou-se a hipótese de que sejam majoritariamente um produto de esquecimento momentâ18
neo dos elementos da enumeração, em favor da hipótese alternativa de que a partícula de expansão serve como coringa para enumerações de pouca relevância. Assim e digamos se assemelham, mas enquanto o digamos acumula outras funções além da principal, o assim, que é de procura de um elemento, exerce apenas essa função. Malgrado essa diferença, parece haver certa distribuição complementar entre esses dois MDs, em relação a regiões do país estudadas e aos dois sexos. Se for tomado o verbo como medula espinhal do enunciado, os marcadores assim e digamos são encontrados quase que exclusivamente à direita. Além desse forte condicionamento estrutural, os fatores discursivos examinados justificam a posição à direita, que é própria dos segmentos novos (qualidade que caracteriza esses dois MDs). Já o exemplificante, que anuncia elemento disponível, está situado preferencialmente na fronteira anterior ao sujeito. Confirma-se a pouca importância discursiva do sujeito. O fato de a informação do complemento tender a ser nova e a do sujeito ser velha não basta para explicar essa propriedade: a variável status informacional não atuou com tanta força que desse conta dessa quase impossibilidade da presença de tais MDs nos sujeitos. A tendência de os MDs estudados não se aglutinarem a outros não mostrou relação com a não-prototipicidade. Outro resultado foi que a demarcação prosódica dos não-prototípicos foi menor do que a dos MDs tomados globalmente (68,9%), fato que se pode creditar à tendência que esses MDs têm de não serem tão marginais. O exame incipiente da fronteira entre MDs e alguns elementos não-MDs fez encontrar algumas diferenças dignas de estudos posteriores, como a especialização de função do digamos que, diferente de seu alelo digamos, mas não evidenciou nenhuma fronteira drástica. O Grupo Sintaxe I, que investiga o uso dos diversos itens da língua, partindo de sua organização tradicional em classes, reúne, neste volume, seus estudos sobre as diversas subclasses de conjunções, em número de seis. As tradicionalmente denominadas conjunções coordenativas são estudadas por Roberto Gomes Camacho e Erotilde Goreti Pezatti. Roberto Camacho estuda as estruturas coordenadas aditivas, com o propósito de fornecer uma classificação tipológica dos usos da relação de conjunção, a partir de um exame empreendido nos diferentes níveis da gramática do português falado. Na investigação dos usos diversos do juntivo e, o estudo assumiu um compromisso teórico com o enfoque funcional-cognitivo, que os 19
trata como casos de ambigüidade pragmática. O universo da investigação é constituído por uma amostragem do corpus mínimo do Projeto de Gramática do Português Falado, que sofreu tratamento quantitativo, mediante o uso de alguns programas do pacote Varbrul. O texto se organiza em duas partes. Na primeira, examina-se a coordenação de termos, em sua manifestação prototípica, estrutural, e em sua manifestação discursiva. Na segunda parte, examina-se a coordenação de orações em estruturas simétricas e assimétricas, descrevendose os processos de junção que envolvem também procedimentos discursivos de natureza pragmática. Observou-se que a necessidade de identidade semântica perpassa o juntivo e nos níveis sintático, textual e pragmático em que atua, incluindo-se os níveis da coordenação de termos e de orações. Se é extremamente visível no nível da junção simples de conteúdo, por outro lado no nível epistêmico e no ilocucionário a visibilidade da identidade semântica se enfraquece, mantendo-se, porém, como inferências e deduções a partir de esquemas referenciais e cognitivos. A principal direção para a qual apontam os resultados é a confirmação de que o juntivo e atua: no nível do conteúdo, como um mero coordenador de idéias independentes; no nível semântico, como um mecanismo para a construção do texto; no nível pragmático como um mecanismo interacional, seja com valor epistêmico seja com valor ilocucionário. Em razão disso, reconheceu-se a pertinência do conceito de ambigüidade pragmática para um mapeamento adequado dos usos do juntivo e numa gramática unificada, mas de condicionamentos multifuncionais. O estudo de Erotilde Pezatti fornece uma descrição do comportamento sintático-semântico das conjunções coordenativas alternativas no português falado, ou, mais especificamente, da relação de disjunção, tradicionalmente denominada de alternância. O fundamento teórico da análise das conjunções é o funcional, particularmente a Gramática Funcional de Dik. O texto se organiza em cinco partes. Na primeira discute-se a questão da disjunção, de uma perspectiva lógica e de uma perspectiva lingüística, procurando-se mostrar que o processo na linguagem natural nem sempre coincide com o que se prevê na linguagem formal. Como um reflexo da primeira, na segunda parte discutem-se os dois tipos semânticos de disjunção, a inclusiva e a exclusiva, e as condições possíveis para sua manifestação nos enunciados do corpus. Devido ao fato de a disjunção se dar em diferentes níveis, examina-se, na terceira parte, a coordenação de termos e a coordenação de orações separadamente. Na quarta seção, afinal, examinam-se os usos pragmáticos adicionais das ocorrências da conjunção ou. As tradicionalmente denominadas “conjunções subordinativas” são estudadas por Maria Luiza Braga e Maria Helena de Moura Neves. 20
Maria Luiza Braga trata as orações de tempo (na sua grande maioria introduzidas por quando), cotejando, inicialmente, o tratamento concedido pela abordagem gramatical tradicional e pela vertente funcionalista desenvolvida por Sandra Thompson. Consideram-se os dois argumentos apresentados por essa vertente para classificar as orações de tempo como hipotáticas, como não propriamente subordinadas. Examinam-se algumas propriedades formais dessas orações: realização do sujeito, ordem e correlação entre tempo e modo. Quanto à realização do sujeito, leva-se em consideração a posição, da oração e a correferência entre o sujeito da núcleo e o da hipotática. Após todos os cruzamentos, conclui-se que as orações de tempo tendem a explicitar foneticamente o sujeito, comprovando-se, portanto, a hipótese de Haiman de que a explicitação constitui um traço das chamadas adverbiais. Quanto à posição, mostra-se que a ordem não marcada é a anteposição, um dos critérios – além do tipo de conectivos – que distingue as orações de tempo nos registros falado e escrito. Quando nessa posição, as orações de tempo criam moldura temporal para os eventos que são codificados pela núcleo. Outras funções podem agregar-se a essa, tais como a sinalização de início de ‘parágrafo’ (novo episódio) e a codificação de tópico. As orações pospostas – posição marcada – são principalmente aquelas que funcionam como adendos, alguns dos quais exibem uma função metalingüística, isto é, parafraseiam um termo mencionado previamente. Verifica-se que muitas ocorrências, quando descontextualizadas, admitem a alteração da ordem. Uma vez, porém, que se considere o contexto maior, a alteração da ordem ou se vê totalmente bloqueada (casos de tópicos e adendos) ou é, no mínimo, problemática. Por fim, quanto à correlação tempo-modo, conclui-se que as orações de tempo tendem a exibir um leque mais ou menos variado de combinações possíveis. Maria Helena de Moura Neves apresenta o estudo de três tipos de construções adverbiais: as causais, as condicionais e as concessivas. Nos três casos, examinam-se construções do corpus selecionado do NURC, buscando-se discutir a noção de condicionalidade lato sensu e de causalidade lato sensu, em relação ao complexo de domínios envolvidos na produção dos enunciados. Assim, ao lado da reflexão sobre os esquemas lógico-semânticos implicados nas relações causal, condicional e concessiva, busca-se uma definição pragmática dos enunciados que se constroem sobre essas relações, envolvendo-se especialmente a questão da distribuição da informação, à qual se vincula a questão da ordem. O estudo das construções complexas considera, afinal, os diferentes domínios de interpretação semântica, conduzindo-se dentro da proposta funcionalista de organização dos enunciados em camadas, e abrigandose, ainda, no modelo mais amplo que estabelece as metafunções da linguagem. 21
No estudo das relações stricto sensu causais, verificou-se que as construções causais com a oração causal anteposta (representativamente as com como) e as construções causais com a oração causal posposta (representativamente as com porque) constituem diferentes organizações das relações causais, do ponto de vista informativo: as primeiras trazem a causa em função temática, representando basicamente informação compartilhada, enquanto as outras trazem a causa em função remática, representando basicamente informação nova. Considerando-se as diferentes camadas de constituição da frase (Dik, 1989) das construções causais, separam-se dois grandes grupos, o das causais de enunciado (em que se relacionam predicações ou proposições) e o das causais de enunciação (em que se relacionam atos de fala). Verifica-se, ainda, que as construções causais encontradas no NURC apresentam predominantemente predicações não-télicas (86%) e não-dinâmicas (70%). Predomina o tempo presente, especialmente nas predicações de estado (mais de 80%, tanto nas orações nucleares como nas orações adverbiais), o que tem relação com o caráter não-télico das predicações. No estudo das relações stricto sensu condicionais, parte-se do esquema condicional básico se x, y, em que se estabelece um possível mundo x, que será verdade apenas no caso em que y for verdadeiro nesse mundo x. Nessa definição se enquadram todos os esquemas condicionais, tanto os eventuais como os factuais e os contrafactuais. Considera-se que os esquemas eventuais constituem os hipotéticos prototípicos, porque neles é que se está em dúvida sobre o mundo A, estando, pois, a oração condicional se x fazendo uma adição hipotética e provisória ao estoque de conhecimento partilhado entre falante e ouvinte. Essas construções por excelência hipotéticas são as mais utilizadas pelos falantes do corpus do NURC (66,66%). É evidente que, quando o falante lança uma predicação condicionante para uma outra predicação, é de se esperar que mais freqüentemente esteja servindo ela como hipótese a ser verificada, já que, para condições resolvidas (que implicam causalidade, seja afirmada, como no caso das factuais, seja negada, como no caso das contrafactuais), a língua dispõe de outros recursos mais efetivos, como a própria expressão de relações causais. No estudo das construções concessivas, considera-se que, no seu esquema básico (embora p, q), a relação lógico-semântica que se estabelece é a de frustração da implicação pressuposta, que pode ser uma implicação causal ou uma implicação condicional: em uma construção concessiva, a causalidade pressuposta na oração concessiva (p) é negada na oração núcleo (q), e a condição pressuposta em (p), por sua vez, não é suficiente para evitar (q), ou seja, é 22
ineficaz para evitar o cumprimento de (q). A frustração da implicação causal / condicional pressuposta está diretamente relacionada aos esquemas envolvidos no jogo de polaridade em que (q) positivo frustra a pressuposição negativa, e (q) negativo frustra a pressuposição afirmativa. Além disso, verifica-se que, se, por um lado, são noções de natureza lógico-semântica que relacionam as construções concessivas à causalidade e à condicionalidade, por outro lado, é a sua natureza essencialmente argumentativa que as aproxima das construções adversativas. Tanto as construções concessivas quanto as adversativas são essencialmente dialógicas, ou seja, envolvem a presença de dois locutores, e o jogo argumentativo entre falante e ouvinte implica, em muitos casos, um misto concessivo-adversativo. É justamente essa natureza argumentativa e dialógica das construções concessivas que explica o fato de tais construções codificarem com maior freqüência a oposição no domínio epistêmico e no domínio conversacional, com baixa freqüência no domínio do conteúdo. Dentro do Grupo Sintaxe II, que produz estudos de sintaxe formal, este volume apresenta o trabalho de Sonia Maria L. Cyrino sobre os elementos nulos pós-verbais no português brasileiro oral contemporâneo. O estudo parte das conclusões sobre os padrões de complementação do português falado encontradas em Dillinger et alii (1996), que levam os autores a propor que haveria um “fundo” sintático para a frase do português, que é S-V-O. Continuando a análise, o estudo focaliza o não-preenchimento pós-verbal, mostrando que o complemento nulo não é homogêneo. Desse modo, as ocorrências do complemento nulo são classificadas em elipse de VP, objeto direto nulo e objeto indireto nulo. Os dados utilizados são os mesmos já codificados em Dillinger et alii (1996), com algumas alterações na escolha dos grupos de fatores e com ampliação do corpus a fim de abranger todas as capitais. O Grupo de Morfologia Derivacional estudou os adjetivos denominais no português falado. O trabalho apresentado, de autoria de Margarida Basílio e Léa Gamarski, investiga, em duas subsecções, a formação e as características de adjetivos denominais no português falado. Na primeira parte, focalizam-se questões gerais relacionadas à formação e às funções de adjetivos denominais, determinando-se algumas condições gerais de produtividade e de produção de adjetivos denominais no português falado. Na segunda parte, focalizam-se análises numéricas específicas, e cotejam-se resultados relativos a adjetivos denominais, com resultados prévios obtidos para adjetivos deverbais no que tange às ocorrências de adjetivo em posição adnominal ou predicativa nos diferentes tipos de inquérito do corpus pesquisado. Foram objeto de análise apenas as formações consideradas regulares, isto é, as formações fonológica 23
e semanticamente transparentes. Dentre os resultados obtidos, destaca-se o que faz concluir que a formação de adjetivos denominais apresenta função primária denotativa, sendo a predicativa uma função de caráter secundário e circunscrita a processos particulares correspondentes a especificações de caráter semântico, ao contrário do que ocorre na formação e no uso dos adjetivos deverbais, que apresentam sobretudo função predicativa. No Grupo de Morfologia Flexional, produziram-se dois textos, ambos sobre tempos verbais. Ângela C. S. Rodrigues, Odette G. L. A. S. Campos e Paulo T. Galembeck estudaram a correlação modo-temporal nas construções complexas concessivas. Investiga-se a manifestação formal das relações que se estabelecem entre as orações do complexo concessivo, um dos complexos subordinativos que não incluem estruturas encaixadas. A análise dos dados coletados nos inquéritos do corpus baseia-se em duas hipóteses fundamentais: 1. Existe correlação entre o valor das construções concessivas e o esquema modo-temporal empregado para expressão desse valor. 2. Existe correlação entre os conectores e o jogo modo-temporal que se estabelece nas construções concessivas. Luiz Carlos Travaglia investigou o uso do futuro do pretérito no português falado. Nesse estudo, a partir da observação do corpus, propõe-se um valor básico para o futuro do pretérito, que é o de posterioridade, do qual derivam os demais valores, sejam de natureza temporal, sejam de natureza modal. O valor temporal se subdivide em dois, cronológico e polifônico, e o valor nocional se subdivide em quatro, que são condição, possibilidade, polidez e desejo. Quantificando-se o uso da forma com estes valores em inquéritos do projeto NURC, verifica-se que os falantes a utilizam muito mais com valores nocionais do que com valores propriamente temporais. Dos valores nocionais, entre os quais estão os usos tradicionalmente chamados de modais, a maior freqüência é para condição, seguindo-se possibilidade, polidez e desejo. Dos valores temporais, apenas o cronológico apareceu no corpus, não havendo nenhuma ocorrência do polifônico. O estudo revela que descrever o futuro do pretérito como uma forma verbal que marca futuro em relação a um momento do passado, entendendo-se esse valor temporal separado dos chamados valores modais, não é uma descrição que encontre uma generalização para todos os valores da forma. Parece mais conveniente descrevê-lo como uma forma verbal cuja função fundamental no funcionamento textual dentro da língua é marcar posterioridade, derivando daí todos os valores propostos no estudo ou tradicionalmente levantados. Portanto, essa forma seria, antes de tudo, um seqüen24
ciador de situações dentro do texto, com uso também relacionado à tipologia textual. O Grupo de Fonética e Fonologia apresenta o estudo de Leda Bisol sobre os constituintes prosódicos da sílaba, que discute, inicialmente, os princípios de composição da sílaba básica, apresentados em forma de árvore, dos quais se depreende o padrão silábico do português. Segue-se o desenvolvimento da idéia de que o mapeamento da sílaba tem como ponto inicial a identificação dos núcleos, e, por ordem, o mapeamento do onset e, finalmente, da coda. Certas operações como apagamento do elemento não-silabado e epêntese, consideradas como processos de legitimação de consoantes extraviadas, merecem especial atenção, em virtude de a aplicação de uma ou outra propiciar variações silábicas. Admitindo-se que a silabação é um processo contínuo, disponível em qualquer etapa da derivação, a análise, fundamentada nos princípios gerais da teoria, busca dar conta tanto das sílabas que se encaixam no padrão canônico como das formas variantes.
7. A outra face desta publicação Este volume traz o resultado dessa série de pesquisas que acima se resumiram, constituindo o repositório de dois anos de investigação das diversas equipes, mas ele tem, ainda, um significado muito especial dentro da história da vivência do grande grupo. Dedicados a suas investigações, como se de cada um dependesse a gramática referencial do português falado culto do Brasil, no entanto todos os colegas de trabalho do Projeto GPF desenvolveram um notável espírito de união, enriquecendo a interação pessoal e criando uma comunidade de fortes sentimentos. Isso não apenas se deveu à amizade que, naturalmente, cada vez mais foi unindo a todos, indiscriminadamente, mas se deveu, muito especialmente, ao papel de alguns elementos dotados de especial força de aglutinação e brilho pessoal, que funcionaram como pólos intensificadores de relações positivas. Falo, especialmente, de Giselle Machline de Oliveira, que transitava como preferida, tanto para simples papos como para atuação em pesquisa, dentro de todos os grupos. Todos sempre achavam que tinham o que aprender com ela, e esperavam dela, inclusive, lições de vida, distribuídas, sem negaceamento, a cada frase, a cada palavra, a cada gesto e atitude. É de sua grande amiga Yonne Leite, que tão bem a conhecia, um depoimento em que a curiosidade científica e o espírito de grande mestra que Giselle possuía bem se evidenciam: bióloga que ela era, não teve dúvidas em, lá pelos anos 70, provi25
denciar uma laringe de boi – ou de vaca? – para que o seu grupo de estudos de fonética, dirigido pela Yonne, pudesse observar o funcionamento das cordas vocais. Nesse mesmo depoimento, outra notável característica de nossa Giselle – sua grande capacidade de liderança – também encontra comprovação: Yonne, recém-chegada dos Estados Unidos, queria converter todos ao gerativismo, mas, sob a liderança da Giselle, tudo terminou num grupo de sociolingüística, que, instigado por ela, ouvia antropólogos, sociólogos, demógrafos, abrindose sempre a novas indagações. De Giselle, um outro amigo, Hudinilson Urbano, diz que “tinha sensibilidade e carinho à flor da pele”. E isso foi o que, mais que tudo, nos marcou. Foi ela que simbolizou a dor da perda que o grupo teve com o passamento do colega Fernando Tarallo, em 1994: a força de sua dor era bem a amostra do quanto ela era o próprio grupo. Agora estamos nós editando este volume VII da Gramática do Português Falado em homenagem a Giselle Machline de Oliveira, “extraordinária cientista, colega, amiga, mulher e mãe” (como lhe chama o Hudinilson), falecida em 2 de abril de 1996. Faz parte do livro o último trabalho que ela produziu e apresentou dentro do grupo, trabalho que tive o privilégio de debater, no nosso seminário de 1995, em Campos de Jordão. Preparado para publicação por sua grande amiga Maria Luiza Braga, ele está aqui enriquecendo este volume VII, e adiando para o próximo volume a grande lacuna que agora se instalará no âmbito das produções do grupo. Na própria homenagem que aqui lhe fazemos, com toda a nossa força de amigos e admiradores cativos, vai notar-se que ficará faltando aquela fibra que só uma homenagem que ela própria – Giselle – encabeçasse conseguiria ter. Afinal, na amizade não se herda, e não somos mais que pálidos discípulos, que, acima de tudo, a ela agradecemos as inesquecíveis lições de caráter e de vida que nos deu.
Maria Helena de Moura Neves
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PARTE I GRUPO ORGANIZAÇÃO TEXTUAL-INTERATIVA
SEGMENTAÇÃO: UMA ESTRATÉGIA DE CONSTRUÇÃO DO TEXTO FALADO
Ingedore G. V. Koch (UNICAMP)
Introdução O presente trabalho insere-se no temário previsto no Projeto “Organização textual-interativa no português falado no Brasil”, a saber, no item 3.1 – “Estratégias de construção”. Essas estratégias fazem parte do subsistema de desempenho textual, pedra angular do sistema de desempenho lingüístico (cf. Nascimento, 1993). É sabido que cada língua apresenta uma variedade de formas de expressão, abrindo-se, desta maneira, para o falante um amplo espaço de formulação, isto é, a possibilidade de escolha entre um leque de opções possíveis. Assim, a construção dos sentidos no texto depende, em grande parte, das escolhas que ele realiza. As várias possibilidades de efetivar, nos textos, a articulação temarema constituem um desses leques de escolhas significativas. Este estudo objetiva, portanto, examinar as diferentes possibilidades de articulação temarema, com ênfase especial naquelas em que, em virtude de deslocamentos de constituintes, ocorre algum grau de segmentação sintática do enunciado – casos em que o falante opta pela utilização de estratégias de tematização e de rematização (ou seja, de deslocamento do tema ou do rema) –, bem como descrever as nuances de sentido que cada uma delas, quando posta em ação, viabiliza. Os conceitos de tema e rema em questão são aqueles postulados pelos autores da Escola Funcionalista de Praga (Daneš, Firbas, Sgall, entre outros),
ou seja: do ponto de vista funcional, cada enunciado divide-se em (pelo menos) duas partes – tema e rema –, a primeira das quais consiste no segmento sobre o qual recai a predicação trazida pela segunda. Isto é, tem-se um segmento comunicativamente estático – o tema – oposto a outro segmento comunicativamente dinâmico – o rema, núcleo ou comentário. Não se trata aqui apenas de um critério posicional (posição defendida, como se sabe, por muitos lingüistas), mas de um critério funcional, fortemente relacionado à prosódia do enunciado (portanto, verificável especialmente na fala) e, sob muitos aspectos, associado às noções de dado e novo. No dizer de Ilari (1992: 25), “a Escola Funcionalista de Praga “ desenvolve em suma uma lingüística da fala (...) e insiste no fato de que se podem encontrar regularidades, que autorizam tentativas de organização e descrição, mesmo no nível da oração realizada (utterance). Ora, ao analisar orações efetivamente realizadas, e não apenas orações que sirvam de exemplo de boa formação sintática, constata-se que, enquanto unidade comunicativa, a oração serve aos locutores para realizar uma dupla função: a de estabelecer um elo com a situação de fala, ou com o texto lingüístico que a precedeu, e a de veicular informações novas”. Assumindo tal posição, tomaremos como unidade básica de análise o enunciado ou a unidade comunicativa (Marcuschi, 1986: 62)1, embora, como será ressaltado mais adiante, uma construção com tema marcado tenha, em muitos casos, a função de delimitar segmentos tópicos ou indiciar a introdução ou a mudança de tópicos discursivos. Em termos da articulação tema-rema, particularmente em se tratando da língua falada, tem-se, como mostram Koch & Oesterreicher (1991), ao lado de casos de integração sintática plena (construções não-marcadas, em que o rema, portador de informação nova, sucede naturalmente ao tema, que veicula a informação dada), uma série de padrões expressivos em que se pode falar de segmentação e/ou de deslocamento de constituintes. A segmentação será aqui entendida como qualquer tipo de alteração da ordem não-marcada, devida a uma cisão ou modificação na ordem não-marcada dos constituintes, com vistas à extração ou mise-en-relief de um constituinte do enunciado, dando origem a construções de tema ou rema marcados. Daneš (1967) já afirmava que a ordem dos constituintes que seria de se esperar por razões de ordem sintática é freqüentemente infringida por razões de ordem funcional. Existem, assim, duas grandes modalidades de seqüenciação tema-rema: 1. seqüências em que ocorre plena integração sintática entre elementos temáticos e remáticos, sem qualquer tipo de segmentação (construções não marcadas), que constituem o padrão, sendo comuns à oralidade e escrita; 30
2. construções com tema ou rema marcados (em conseqüência do emprego de estratégias de tematização e de rematização), com graus mais reduzidos de integração sintática, devidos à ocorrência de segmentação, nos termos acima definidos. Objetivamos, neste trabalho, aprofundar o estudo da segunda modalidade. Serão examinados casos de deslocamento (anteposição e posposição) de elementos temáticos e remáticos. Em se tratando de tematização, serão examinados especialmente os exemplares de temas marcados representados por SNs. Não se tratará, portanto, de todos os casos de anteposição de constituintes, como, por exemplo, a anteposição dos diversos tipos de construções adverbiais, a não ser que estas venham a assumir a forma de sintagmas nominais nãopreposicionados (SPs sem cabeça, na terminologia de Kato, 1989) ou a configurar o tipo específico de tematização marcada derivada da anteposição do que, nas gramáticas tradicionais, se costuma denominar adjunto adverbial de assunto (cf. item 1.1, caso 1). Levar-se-ão em conta, na análise, os seguintes critérios: a. grau de integração sintática do enunciado, nos moldes postulados por Koch & Oesterreicher, 1991; b. procedimentos lingüísticos utilizados para realizar a tematização ou a rematização (marcas); c. funções discursivas das construções resultantes de segmentação. Esta pesquisa situa-se, pois, na interface sintaxe-discurso.
1. Seqüências tema-rema O papel das construções segmentadas é, em se tratando de construções com tema marcado, destacar um elemento do enunciado, colocando-o em posição inicial, com o objetivo de indicar para o interlocutor, desde o início, aquilo de que se vai tratar, ou em posição final, para fornecer um esclarecimento a mais, uma complementação, um adendo. O emprego destas construções permite, assim, operar um tipo de hierarquização das unidades lingüísticas utilizadas, trazendo uma contribuição importante para a coerência discursiva, da mesma forma que a anteposição do rema ao tema desempenha funções discursivas e interacionais relevantes, conforme será visto a seguir. Passaremos, pois, a examinar as seqüências tema-rema de acordo com os critérios acima explicitados. 31
1.1 No que diz respeito aos graus de integração sintática, na acepção de Koch & Oesterreicher (1991), podemos destacar os seguintes casos: 1. construções com tematização marcada, introduzidas por expressões do tipo quanto a..., no tocante a..., no que diz respeito a..., com referência a.... etc., que são comuns às modalidades oral e escrita, sendo mais freqüentes na comunicação relativamente formal. Além do enunciado que introduz o presente item, vejam-se, por exemplo: (1)
“Em relação às bancadas, os quercistas sentem maiores dificuldades no Senado. Um grupo de senadores chegou a convidar o governador Luiz Antonio Fleury Filho (SP) para uma conversa anteontem, em Brasília.”(FSP, 19/3/93, 1-9).
(2)
... e nós temos boas orquestras também ( )... inclusive na Tupi temos boas orquestras e temos... e no que tange a nossa música popular eu acho que:: agora a televisão está abrindo as portas... para a nossa música popuLAR coisa que o rádio não faz...
(NURC/SP – D2 333: 335-339) (3)
então... sobre o problema do primário... essa reforma do primário e ginásio eu não estou muito a par não, né?
(NURC/SSA – DID 231:17-19) Ilari (1992: 58) acrescenta a esse tipo de construção enunciados introduzidos mediante expressões como “por falar em...”, “a propósito de...”, “já que você tocou em “ / “já que estamos tocando em...” e outras, bastante comuns na interação informal face-a-face. 2. construções com tema marcado, em que ocorre a anteposição de um elemento do enunciado com função sintática bem definida, que é depois confirmada pela presença de um elemento de retomada no interior do comentário. Segundo Lambrecht (1981), “a coocorrência de um nome e de um pronome anaforizado nas construções deslocadas é a manifestação formal de um princípio funcional: a codificação de uma relação tema-propósito na estrutura de superfície do enunciado”. 32
Riegel, Pellat & Rioul (1994) afirmam que “a informação veiculada pela frase analisa-se em uma parte conhecida, o tema e uma parte nova, o comentário (...). Um constituinte destacado em início de frase e retomado por um pronome desempenha o papel de tema. Fala-se, então, em tematização”. Blasco (1995), por sua vez, acusando de reducionistas as análises puramente temáticas ou discursivas, procura mostrar a importância de se levarem em conta as propriedades morfossintáticas dos elementos que entram nessas construções e, em especial, de se distinguir entre deslocamentos para diante do verbo e deslocamentos para depois do verbo, já que, para ela, tanto a posição como a forma morfológica e a função sintática do elemento deslocado são indissociáveis de seu valor informacional. Tais questões serão retomadas mais adiante. Limitamo-nos, por ora, a apresentar alguns exemplos do caso em tela: (4)
... ele vai ao jogo de futebol com o tio... porque o Nélson.... fins de semana ele estuda então:: quase não sai com a gente...
(NURC/SP – D2 360: 1356-1358) (5)
então o Japão... ele... desde o seu início...((interferência de locutor acidental)) desde o seu início... ele tinha... ele contava como força fundamental das suas cidades-colônias... os dois fatores ...
(NURC/RJ – EF 379: 53-56) (6)
esses Bicudos ... parece-me que um deles foi para:: região de Itu ... e o outro entrou... para o vale do Paraíba...
(NURC/SP – DID 208: 551-553) (7)
como assim? não entendi a sua dúvida por exemplo o::... lemingue toda vez que tem superpopulação eles vão para o mar e:: se matam aos montes... (NURC/SP – D2 343: 1466-1468)
(8)
esse problema de puxar pela criança --- “Ah, não deve puxar pela criança” -- eu acho que isso não funciona muito
(NURC/SSA – DID 231: 93-95) Cabe observar que, quando o elemento de retomada é, como no exemplo (8), um pronome demonstrativo ou indefinido como isto, isso, aquilo, tudo, etc., ele remete, freqüentemente, a seqüências significativas expressas ou su33
bentendidas no contexto precedente, que nem sempre são fáceis de delimitar com precisão. 3. construções com tema marcado, sem retomadas pronominais, isto é, com elipses (categorias vazias), mas em que a função sintática, no enunciado, do elemento tematizado é, em geral, bem definida: (9)
bebida alcoólica... eu gosto muito (0) ... sabe? (NURC/RJ – DID 328: 773)
(10) mas eu:: ahn merenda escolar eu tenho pouca noção (0)... (NURC/RJ – DID 328: 510-511) (11) ... eu não viajo nem num outro carro acima de oitenta ou noventa... de velocidade... a Kombi dá pra fazer isso (0) de modo que eu vou tranqüilo (NURC/SSA – D2 98) (12) Olinda ninguém mora (0)... ninguém diz é lá que eu moro... não... diz é lá que eu pernoito (NURC/REC – D2 05: 1094-1096) (13) as comidas baianas eu gostei muito (0) sabe? (NURC/RJ – DID 328: 167-168) (14) ...então a menopausa... é::... nós vamos notar uma diminuição considerável d/dos hormônios... dessas glândulas mamárias (0) ... (NURC/SSA – EF 049: 62-64)
Casos dos tipos 2 e 3 são extremamente comuns em nosso corpus, nos três tipos de inquéritos, com o elemento tematizado exercendo as mais variadas funções sintáticas no enunciado. Há exemplos em que os dois tipos estão co-presentes, como em: (15) ... mas o campo deles eu acho que (0) está muito mais saturado do que o nosso... tanto é que:: ... eu conheço ...em:: advogados que eles estão trabalhando como ...auxiliares na nossa própria empresa entende?... (NURC/SP – D2 62: 1199-1203)
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Em outros casos, temos a coexistência dos tipos 3 e 1, como se pode verificar no exemplo (3) acima. 4. construções com tema livre (“tema pendens”, “hanging topic”), antecedendo uma seqüência oracional, sem explicitação do nexo sintático e/ou lógicosemântico: (16) agora H. ah:: filme... água-com-açúcar -- digamos assim -- para a gente ver certas coisas que a gente vê:: americanas principalmente... antes A Moreninha né?
(NURC/SP – D2 333: 779-781) (17) ... o direito... o fenômeno jurídico... você olha... o fenômeno jurídico ... através de uma perspectiva...
(NURC/REC – EF 33) Em (17), acumulam-se dois segmentos tematizados, o primeiro – o direito – um “hanging topic” e o segundo – o fenômeno jurídico – do tipo 2, com as peculiaridades que serão apontadas no item 1.2. 5. construções com deslocamento para o final de um elemento do enunciado que, no interior deste, é introduzido apenas por meio de um pronome ou de uma categoria vazia. Trata-se de um procedimento bastante produtivo, em que o SN deslocado convalida, precisando-o melhor, ou chamando a atenção sobre, o referente da forma pronominal ou da categoria vazia, desambigüizando a mensagem e facilitando a compreensão. Lambrecht (1981) chama a atenção para a importância, no francês não-standard, dessas construções, que denomina antitópicos, exemplificadas, entre muitas outras, pelo grito de guerra de Astérix: “Ils sont fous, ces romains”. Vejam-se os seguintes exemplos, extraídos do nosso corpus: (18) L1 e... depois volto para casa mas chego já apronto o outro para ir para a escola... o menorzinho... e fico naquelas lides domésticas... (NURC/SP – D2 360: 157-159) (19) ... então os ingleses estão importando os filas naciona/brasileiros... Para... amansarem – isso2 que é lindo a contribuição do Brasil para a paz ((risos) --
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não digo entre os povos mas pelo menos entre os cães -- para amansar os cães de guarda... ingleses que eram muito ferozes... (NURC/SP – D2 333: 1057-1062)
Na terminologia de Blasco (1995), temos aqui o deslocamento para depois do verbo. Segundo a autora, nesses casos, o elemento lexical deslocado para depois do verbo é sempre uma espécie de lembrete (“rappel”) lexical, referencial e sintático. Para ela, o referente do sintagma deslocado não pode ser pressuposto: será sempre um referente conhecido e dado pelo contexto anterior. Acontece, porém, que, em muitos casos, o referente, mesmo tendo sido mencionado ou indiciado, de alguma forma, no contexto anterior, é difícil de determinar, de modo que o uso desse tipo de construção tem por fim, justamente, deixar claro para o interlocutor, precisando-o melhor, o referente de que se trata, como é o caso em (18). 6. construções em que se justapõem os dois blocos de informação, sem qualquer ligação sintática. Por exemplo: (20) “e os amigos... nada...” (embora se trate de um exemplo criado, são construções extremamente comuns na fala espontânea) (21) porque a telenovela... como é feita aqui é um gênero ... que o estrangeiro... o estrangeiro... de bom nível intelec/intelectual que chega ao Brasil... se enamora das boas novelas bem entendido então Gabriela ... conversei com um professor francês que disse que jamais isso veria nada parecido em Paris... que achava a televisão que se fazia lá... do ponto de vista ficcional... era... infinitamente pior... porque... eles não tem:: eles/ eh em matéria de ficção são os velhos filmes não é? (NURC/SP – D2 333: 385-394)
Poder-se-ia, assim, definir os seis tipos aqui apresentados por meio da combinação dos seguintes parâmetros:3
36
QUADRO 1 CASO direção do desloc. ligação sintática pres. de pron.sombra caso 1 esquerda explícita ou inexistente sim/não caso 2 esquerda explícita sim caso 3 esquerda não explícita-intuível não caso 4 esquerda não há não caso 5 direita explicíta ou intuível sim/não caso 6 sem deslocamento não há não 1.2 Quanto aos procedimentos lingüísticos utilizados, podem-se, pois, arrolar os seguintes: 1.2.1 deslocamento à direita do SN extraído a. com presença de uma forma pronominal no lugar do elemento extraído; b. sem a presença de qualquer forma pronominal marcando o lugar do elemento extraposto (categoria vazia). 1.2.2. deslocamento à esquerda: a. com o uso de expressões tematizadoras (exs. 1 a 3); b. com retomada do elemento tematizado no interior do enunciado (exs. 4 a 8); c. sem retomada do elemento tematizado no interior do enunciado (exs. 9 a 14); d. através de mera justaposição, acompanhada de entonação específica (exs. 20 e 21). Nos casos de deslocamento com retomada do elemento tematizado, é interessante examinar a natureza do elemento deslocado (função sintática e categoria sintagmática), bem como a do elemento utilizado como repetidor e, ainda, as diferenças que ocorrem conforme os vários casos. 1. Quanto à função sintática do elemento deslocado (co-indexado): a. sujeito: (22) ... a glândula mamária... como vocês estão vendo... ela representa a forma de uma semiesfera... de uma semiesfera... (NURC/SSA – EF 049: 41-42) 37
(23) então a minha de onze anos... ela supervisiona o trabalho dos cinco... (NURC/SP – D2 360: 61) b. sujeito da subordinada: (24) medicina você sabe que (0) é prática (NURC/SSA – DID 231: 145) (25) ... a Air France a gente só ouve falar que (0) dá prejuízo... (NURC/RJ – D2 355: 1203-1204) c. complemento: (26) inclusive o tal pato no tucupi eu achei (0) muito ruim ((rindo)) sabe... (NURC/RJ – DID 328: 140-141) (27) mas eu... ahn... merenda escolar eu tenho pouca noção (0) (NURC/RJ – DID 328: 512) (28) doce em calda ... eu não vi (0) não... (NURC/RJ – DID 328: 287-288) d. complemento da subordinada: (29) essas outras peças que eu tenho assistido eu não acho que o público se manifestasse assim aplaudindo (0) (NURC/SP – DID 234: 116) e. adjunto (indexado à posição não-V-argumental), dando origem a “SPs sem cabeça”: (30) Paris eu não pago hotel... Paris... eu fico na casa de um amigo... apartamento de um amigo... (NURC/RJ- D2 335: 83) (31) Drama já basta a vida (NURC/SP – DID 234: 155) 38
(32) o Amazonas é impressionante o número de frutas (NURC/RJ – DID 328: 85) 2. quanto à categoria sintagmática do elemento deslocado: a. SN – simples ou complexo: veja-se, por exemplo, (27), (28), (29), (30) b. pronome – pessoal ou dêitico: (33) eles também eles comem muitas coisas... (NURC/RJ – DID 328: 171) (34) Olhe isso eu repito (0)... (NURC/REC – EF 337: 140) (35) é... isso eu já estou sabendo a causa (0) (NURC/SP – D2 343: 625) Caso interessante é o seguinte, que parece “ir contra” as regras de anaforização, já que o pronome vem antes de seu referente, ou seja, age cataforicamente: (36) L. ... inclusive o pato no tucupi eu achei muito ruim... sabe... eu não gostei realmente... achei ruim demais... não... não sei se é por que não é... eles acham aquilo maravilhoso... né... mas pro meu gosto [Doc. como é... você sabe? ] L.
é o pato é assim... ele vem o pato cozido feito uma espécie de canja... (NURC/RJ – DID 328: 140-147).
Talvez se pudesse classificá-lo como um deslocamento à direita, mas não me parece ser este o caso. Seria algo como: “Nesse prato (pato no tucupi) o pato vem cozido...” ou “Ele (o pato) vem cozido”. c. SP: (37) De primeira classe hoje em dia aqui nós temos poucas 0 (NURC/SSA – D2 98: 194) 39
d. SP sem cabeça: (38) ... o Amazonas é impressionante o número de frutas... (NURC/RJ – DID 328: 90-91) 3. Quanto à categoria sintagmática do elemento co-indexado interno ao enunciado: embora se costume dizer que o caso mais comum é a retomada através de um pronome-cópia ou pronome-sombra (pessoal, demonstrativo, partitivo), são mais freqüentes em nosso corpus as retomadas através da repetição integral ou parcial do próprio elemento lexical anteposto, como foi também constatado por Koch (1992) e Callou, Moraes, Leite, Kato et al.(1993) e se pode ver nos exemplos abaixo: (39) ... então a salada pro... pro pessoal de Buenos Aires a salada se resume a alface e tomate... (NURC/RJ – DID 328: 231-232) (40) Doc. a que se deve esse hiato que o senhor mencionou? Inf. o quê? Doc. esse hiato Inf. esse hia::to olha é um pouco difícil de se estabelecer assim:: a ... causa desse hiato porque ... o...essa... (é) o Orfeu do Carnaval se eu não::estou bem lembrada da data... mas me parece que foi num momento... (NURC/SP – D2 333: 698-704) (41) não... tu vês... por exemplo... o peixe ... peixe aqui no Rio Grande eu tenho impressão que se come peixe exclusivamente na Semana Santa... (NURC/POA – D2 291: 25-26) (42) um arquiteto que se forma, o salário inicial de arquiteto (es)tá em torno de quatro mil e quinhentos cruzeiros... (NURC/RJ – D2 335: 265-267) Questão interessante, que já tem sido objeto de estudos na área da sintaxe (cf. por exemplo, Kato, 1989) e na interface sintaxe/discurso (cf. Pontes, 40
1987), é a do SP sem cabeça: em sendo o elemento tematizado um adjunto adverbial introduzido por preposição, ao operar-se o deslocamento para a esquerda, a preposição é, com grande freqüência, omitida na fala. Isto me leva a discordar de Ilari (1992: 56), quando afirma haver “uma compulsão para preposicionar o tópico quando falta um pronome-sombra no comentário”(o que explicaria, inclusive, o uso do objeto direto preposicionado), mesmo porque tal uso fica praticamente limitado à linguagem escrita ou à fala altamente formal. Relevante é lembrar, como o faz também Blasco (1995: 53), que os elementos lexicais deslocados para diante do verbo, mesmo que já tenham sido mencionados no contexto precedente, nem sempre correspondem a entidades dadas, no sentido de informação velha, de modo que se faz preciso distinguir entre retomada lexical e retomada referencial. Há casos, por exemplo, em que se antepõe ao verbo um SN genérico, que é depois retomado no interior do enunciado por um pronome ou um SN definido, que refere membros da classe, sendo, pois, ao mesmo tempo, novo e previsível, devido à relação semântica que mantém com o SN já mencionado, como em (43): (43) como assim? não entendi a sua dúvida por exemplo o::... lemingue toda vez que tem superpopulação eles vão para o mar e:: se matam aos montes (NURC/SP – D2 343: 1466-1468) Outras vezes, o SN anteposto é retomado apenas parcialmente (cf. ex.42); ou, então, expande-se, por ocasião da tematização, um SN presente no contexto imediatamente anterior (em exemplos como “O motor é novo; um motor novo, ele necessita de um tempo de amaciamento”). Pode ocorrer, também, a tematização de um elemento lexical que designa um domínio de referência (frame), sendo o elemento de retomada um dos elementos desse domínio (em exemplos do tipo O ônibus, o pneu estava furado.), isto é, o elemento de retomada pode remeter a algum conhecimento pressuposto pelo SN tematizado. Também aqui, o elemento deslocado é, ao mesmo tempo, novo e previsível, em função do nexo semântico que mantém com um elemento precedente4. Há, ainda, casos como o do ex. (17), em que o “hanging topic” – o direito – é, em seguida, especificado por outro elemento tematizado – o fenômeno jurídico –, sendo este retomado no interior do enunciado. 41
Interessante é também o exemplo (44) abaixo, em que o SN complexo tematizado é retomado por outro elemento também tematizado, no caso, o demonstrativo aquilo: (44) aquelas matérias todas que publicam ali aquilo até eu coleciono (0) (NURC/SP – D2 255: 1176-1177) Outro caso em que o elemento tematizado não veicula necessariamente informação dada é aquele em que dois enunciados são ligados por conectivos semânticos. Reinhart (1980) defende a posição de que, ao relacionarem dois enunciados, os conectivos semânticos abrem a possibilidade de se introduzir, no tema (marcado) do segundo, informação nova. Seria o caso de: (46) L1
agora eu vou por isso só... porque eu tenho que fazer esse negócio e vou aproveitar pra uma coisa que há muito tempo desejava ver... que é o Maquiné...
L2
Maquiné...
L1
... tem uma visita à gruta do Maquiné... porque Ouro Preto eu já conheço já tive lá... Congonhas também... de modo que minha pretensão agora é essa... (NURC/SSA – D2 98: 110-117)
Contudo, a informação aqui introduzida é nova apenas com relação ao contexto imediatamente precedente: levando-se em conta que o tópico desse segmento é viagens e que o locutor está falando de Maquiné, local turístico do Estado de Minas, Ouro Preto e Congonhas fazem parte do mesmo frame ou domínio de referência.
1.3 Quanto às funções da tematização: Vimos acima que, ao lado das seqüências em que há integração plena entre elementos temáticos e remáticos, sem segmentações ou retomadas pronominais – as construções não-marcadas, que constituem um padrão neutro em relação a oralidade/escrita – têm-se os procedimentos de tematização marcada, alguns também comuns aos textos falado e escrito (em geral aqueles em que se 42
verifica maior integração sintática!), outros típicos apenas da modalidade oral. Pode-se dizer que, de modo geral, ao recorrer às construções com tema marcado, o falante seleciona um elemento (estado de coisas, propriedade, relação, coordenada espacial ou temporal, indivíduo ou grupo de indivíduos etc.) que deseja ativar ou reativar na memória do interlocutor e sobre o qual seu enunciado deverá lançar nova luz, para apresentar a seguir algo que considera desconhecido por este, que deseja enfatizar ou com o qual pretende estabelecer algum tipo de contraste. É por esta razão que o elemento tematizado desempenha papel relevante no processamento pragmático-cognitivo do sentido, na medida em que esta forma de organização é determinada quer por questões ligadas à continuidade ou mudança de tópico, quer por fatores como facilitação do processamento do texto, interesse, relevância, expressividade, necessidade de ganhar tempo para o planejamento da parte restante do enunciado, entre outros. Vejamos um exemplo em que, através da tematização, se introduz um novo segmento tópico: (46) Doc. agora aquela zona ali do Paraná... eu tenho parentes lá... as sobremesas deles você teve oportunidade de... L.
ah... sobremesas... não... nós não ficamos muito tempo em Curitiba nós... fomos a/ viemos.... quando nós voltamos da Argentina nós fizemos pernoite só em Curitiba e viemos...entende? (NURC/RJ – DID 328: 252-258)
Em (47), por sua vez, a tematização do SN bebida alcoólica na resposta do informante assinala a mudança de tópico induzida pela pergunta do doc. (47) Doc.e bebida alcoólica? L.
bebida alcoólica... eu gosto muito... sabe... e domingo também eu às vezes me dou ao luxo... eh...às vezes a gente põe assim um vinhozinho ... então a gente toma vinho de acordo também com o tipo de comida... se é carne... aqueles hábitos que a gente tem... se é carne é vinho tinto... se é peixe a gente usa vinho branco... (NURC/RJ – DID 328: 772-778)
O exemplo(4), aqui retomado como (48), é um exemplo em que, através da tematização, ocorre a retomada de um tópico anterior (Nelson, marido da locutora, havia constituído o tópico de um segmento anterior do diálogo): 43
(48) ... ele vai ao jogo de futebol com o tio... porque o Nélson... fins de semana ele estuda então:: quase não sai com a gente (NURC/SP – D2 360: 1356-1358) Em (49), temos um caso semelhante: o documentador apresenta um quadro tópico – derivados do leite – cujos diversos itens a locutora passa a desenvolver para, no final, através de um “aposto resumitivo”, reiterar o tópico que lhe foi oferecido, sob forma de um antitópico: (49) Doc. há um derivado da:: do leite... que (assenta) bem em regimes... dependendo do tipo né?... L.
é o queijo de Minas... eu o uso:: de manhã às vezes eu como um pedaço de queijo Minas... e quando eu éh quando eu sinto que vou passar (um) período do dia... fora de casa que eu não vou chegar a tempo pra comer meio-dia... eu então levo um pedaço de queijo de Minas... é o que eu uso e/ uso também muita ricota...
Doc. ah tá... L
. ... gosto muito de ricota... sa/ iogurte às vezes eu em vez de tomar café com leite... eu tomo iogurte ou coalhada também... que eu gosto... sabe?... eu gosto muito de coalhada... iogurte esses produtos derivados do leite eu... mas só... queijos brancos... eu só como queijos brancos (NURC/RJ – DID 328: 610-623)
Outra função que costuma ser atribuída à tematização é de estabelecer contraste entre a informação veiculada pelo elemento tematizado e alguma informação apresentada anteriormente ou à qual a primeira se opõe. Veja-se, por exemplo: (50) L2 ... os outros mesmos não se incumbem de colocá-la no lugar dela? L1
bom... com uns TApas... às vezes ela se coloca
L2
ahn
L1
[mas com palavras ela não se coloca porque ela
L2 L1
[ ahn aumenta a voz com os irmãos... não é? ... (NURC/SP – D2 360: 258-234)
44
Função interessante é aquela apontada por Blasco (1995: 52). Segundo ela, o deslocamento do SN para diante do verbo funciona como um dispositivo que permite retomar, em posição associada ao sujeito, um elemento lexical com todo o seu peso referencial. Assim, de uma parte, o elemento lexical se desloca no interior do discurso de uma posição construída pelo verbo regente (argumental) a uma posição não construída (não-argumental); de outra parte, esse deslocamento permite “retomar” o elemento já citado no contexto anterior em posição associada ao sujeito, podendo-se, assim, dizer que se trata de uma articulação sintática que organiza a repetição. A par de tudo o que foi discutido acima, pode-se afirmar, de conformidade com Van Dijk (1982, 1983) que, ao estabelecer o quadro geral de referência no interior do qual o conteúdo proposicional do enunciado se verifica, a estratégia da tematização desempenha papel de relevo na construção da coerência, tanto no nível local, quanto no nível global do texto.
2. Seqüências rema-tema Ao lado das estratégias de tematização acima descritas, existem, também, as estratégias de rematização, responsáveis pela marcação do elemento focal, freqüentemente com a anteposição do rema ao tema. 2.1 Também aqui podem-se observar diferentes graus de integração sintática, nos termos de Koch & Oesterreicher(1991): 1. casos em que se verifica um alto grau de integração sintática é o de algumas das orações, comuns à fala e à escrita, denominadas cindidas por Ilari (1992: 43), nas quais ocorrem “partículas de realce” ou construções gramaticais utilizando orações relativas que “desdobram” a oração em duas partes. Tais orações são também denominadas na literatura de clivadas (cf., por exemplo, Kato et al. 1995; Braga,1991), podendo apresentar configurações sintáticas bastante diferentes. Em (51), que é clivada, bem como em (52), que constitui clivada com inversão (cf. Kato et al., 1995), antepõe-se o elemento focal, ocorrendo, portanto, a rematização: 45
(51) é o tal problema que a gente sente (NURC/SP – D2 62: 325-326) (52) ... é isso que eu acho entende? (NURC/SP – D2 62: 436 – D2 343: 1571-1573) Já (53) consiste em exemplo do que se tem denominado pseudo-clivada em que ocorre rematização: (53) o que me revolta profundamente é o programa Cinderela (idem). (NURC/SP – D2 333: 1117) 2. construções com rema anteposto, marcado apenas prosodicamente, específicas da modalidade oral. Segundo Ilari (1992: 43-44), a expressão do rema está sempre associada a algum tipo de proeminência entoacional. Assim, ao papel de rema estaria ligado um invariante fonológico que permite o seu reconhecimento nas diferentes posições da oração em que possa ocorrer5. Vejamse alguns dos exemplos extraídos de nosso corpus: (54) ..passei ali em frente à:: Faculdade de Direito... então estava lembrando... que eu ia muito lá quando tinha sete nove onze... (com) a titia sabe?... e:: está muito pior a cidade... está... o aspecto dos prédios assim é bem mais sujo... tudo acinzentado né? (NURC/SP – D2 343: 20-24) (55) L1 L2
... e toda segunda à noite eu passo ali do lado da faculdade certo? quando você vai pra:: para Aliança né? [
L1
é quando eu pego o carro... e:: também é horrível o aspecto... (parece) assim montoeira de concreto... sem nenhum aspecto humano certo? (NURC/SP – D2 343: 28-33)
(56) ... Lins por exemplo não é assim né? você tem... tem um aspecto de::... de acho que parece bairro a cidade né? (NURC/SP – D2 343: 58-59) 46
(57) Doc. vocês acham então que o noticiário em TV tem melhorado bastante [ tem pode melhorar mais nesse ponto o o:: telejornal nosso... pode aprimorar bastante... eu acho... bastante (NURC/SP – D2 333: 988-902) Interessante é notar que, no exemplo acima, tem-se um caso de “doublebind” sintático (cf. Frank, 1986): o tema o o:: telejornal nosso, posposto ao rema, torna-se, por sua vez, o tema (não marcado) do rema seguinte pode aprimorar bastante . (58) então o cara aí ... analogia né? o cara está no carro mas... o que querem?... é tribal a coisa né? (NURC/SP – D2 343: 701-702) (59) e o pato é assim... ele vem o pato cozido feito uma espécie de canja... só que o caldo é justamente é uma água misturada com uma farinha eu acho
que é... é ta/ tacacá se não me engano o nome da farinha que eles usam... (NURC/RJ – DID 328: 133-136) 3. seqüências formadas dos dois blocos – rema-tema – sem verbo, apenas justapostos sem vínculo sintático, em que ocorre um aumento da expressividade, a par de um menor esforço de planejamento6: (60) ...eu gostei é um filme de amor... umas cenas maravilhosas... lindo o filme... eu assisti faz tempo já... (NURC/SP – DID 234: 335-337)
4. seqüências em que se antepõe um elemento remático que é repetido imediatamente na seqüência (cf. Castro, 1994). Trata-se de repetição que incide quase sempre sobre um substantivo, adjetivo, advérbio ou verbo, tendo, como uma das principais funções, enfatizar o significado essencial do termo ou, muitas vezes, questionar a adequação de seu emprego naquela situação Por exemplo, “almoçar, não almocei ainda; só comi um sanduíche na cantina”; “bom bom, só achei 47
o último capítulo”) Todavia, no exemplo (61), extraído do nosso corpus, não me parece ser esta a função, mas algo como “você me pergunta se evoluiu, e eu me apresso a responder” ou, então, “é preciso reconhecer que evoluiu”: (61) Doc. você acha que o teatro evolui::u? como é que está? Inf. evoluir evoluiu... evoluiu muito o teatro principalmente no Brasil... (NURC/SP – DID 161: 625-627) 2.2 Quanto aos procedimentos lingüísticos utilizados, tem-se, basicamente, o deslocamento à esquerda . Este pode ocorrer acompanhado apenas de marcas prosódicas (casos 2 e 3), ou com a utilização de determinadas marcas sintáticas que caracterizam as orações cindidas (caso 1), a saber: a. expressão é que(foi que) delimitando o rema anteposto b. expressão é que(foi(o) que/ que) seguindo o rema anteposto c. construções gramaticais usando orações adjetivas, como o que(me) ... é/foi, podendo o pronome relativo vir elidido . 2.3 Quanto às funções que desempenham as construções com anteposição do rema, verifica-se que estão diretamente ligadas à expressividade e ao envolvimento do falante com o assunto e com o interlocutor, sendo, por isso, mais freqüentes na fala do que na escrita, especialmente em situações de interação menos formais. A anteposição do rema ao tema constitui expressão de alto envolvimento. Na perspectiva do falante, permite-lhe antecipar na formulação aquilo que constitui a meta de sua comunicação; do ponto de vista do interlocutor, tal seqüência, normalmente acompanhada de acentuação entonacional do rema, é sentida como marcada relativamente à seqüência tema-rema e, portanto, veiculadora de algum tipo de informação discursiva adicional, o que, sem dúvida, compensa o seu duplo custo operacional: o rema fora de sua posição sintática normal e de sua posição em termos da estrutura informacional dado/novo. Assim, no caso das orações cindidas, em que comumente a parte focal representa informação nova e a parte pressuposicional, informação dada, a função é enfatizar o rema anteposto. Desta forma, um importante fator determinante do uso das cindidas seria o propósito do falante de assinalar uma 48
sutil oposição ou contraste. Segundo Hupet & Costermans (1982: 280), ao usar uma estrutura cindida, a intenção do falante é contrastar sua mensagem com qualquer outra proposição que poderia invalidá-la. Os autores acabam por concluir que, em termos dos componentes pragmáticos determinantes desse uso, as cindidas podem ser vistas como motivadas pela discordância que o falante supõe existir entre a sua posição e aquela que ele se sente autorizado a atribuir ao seu interlocutor. É importante essa ressalva: não se trata da real posição do interlocutor, mas daquela que o falante lhe atribui, isto é, das crenças que, correta ou incorretamente, o falante atribui ao seu parceiro. Hupet & Costermans ressaltam, ainda, que há casos em que a oração cindida enfatiza não um elemento que poderia ser visto como não partilhado pelo interlocutor, mas um elemento sobre o qual o próprio falante não tinha total certeza até alguns minutos atrás. Aqui seria como se o falante “falasse com seus botões”, corrigindo seu ponto de vista anterior. Ao contrário das estratégias de tematização, que têm sido objeto de ampla gama de investigações, as estratégias de rematização, excetuando-se o caso das orações clivadas e pseudo-clivadas, constituem um domínio ainda pouco explorado, pelo menos no que diz respeito ao português (ressalve-se, contudo, o trabalho de Ilari, 1987/1992).
Considerações finais O grupo de estratégias que estamos estudando sob o rótulo de segmentação tem interferência direta na produção do sentido e exerce, portanto, papel relevante na construção do texto e da coerência textual. As marcas de redundância implicadas na formação das construções segmentadas, conforme ressalta Lèbre (1987: 129), constituem, para o locutor, um meio de remediar os inconvenientes da linearidade da fala, já que nesta qualquer retorno é impossível, bem como acrescentar ao seu enunciado índices que, sem elas, não lhe seria possível inserir. Freqüentemente, as construções segmentadas, por vezes precedidas ou seguidas de hesitações ou de marcadores discursivos como enfim, quer dizer, bom, bem, entre outros, são resultantes de estratégias de reformulação ou correção do texto falado. Além disso, como bem mostra Lèbre, a segmentação permite ao locutor proceder a uma espécie de hierarquização das unidades lingüísticas utiliza49
das, e apresentar um ponto de vista pessoal, modalizando destarte seu enunciado. Desta forma, tais construções constituem marcas da inscrição do enunciador no discurso. Ao destacar um elemento do enunciado, estabelece-se uma oposição entre ele e outros elementos, que pode ser explícita ou implícita. As oposições implícitas, que são apenas sugeridas pelo elemento destacado, revelam a presença de um não-dito: “Faire d’un objet quelconque un thème marqué, l’isole et par là même le définit comme quelque chose dont le commentaire ne peut s’appliquer qu’à lui. Il y a une exclusion implicite dans toute topicalisation, et dans tout thème marqué, il y a toujours, implicite, un autre”. (Laparra, 1982: 222, apud Lèbre, 1987). Além disso, salienta Lèbre, as construções segmentadas desvelam um não-dito de certa forma inerente à elaboração de toda e qualquer produção de linguagem, já que permitem distinguir entre o que é posto e o que é pressuposto e estabelecem as próprias condições de existência do discurso. Assim, para o interlocutor, as construções segmentadas são também o índice de uma confrontação ou de uma aproximação não explicitamente marcada entre os propósitos explicitamente apresentados e outras produções discursivas, o que vem comprovar a afirmação de Bakhtin (1929: 113) de que “toda comunicação verbal, toda interação verbal, desenrola-se sob a forma de um intercâmbio de enunciados, isto é, sob a forma de um diálogo”. São as aproximações implícitas que permitem relacionar a expressão destacada, isolada do enunciado, à temática global de um discurso, estabelecendo um liame entre seus diferentes segmentos. Isto explica por que, muitas vezes, o emprego de construções segmentadas coincide com a passagem de um segmento tópico a outro, isto é, marca uma mudança ou um deslocamento do tópico discursivo. Outra função importante das construções segmentadas em que se desloca para a direita o elemento extraído é, como foi dito, a de desambigüizar o enunciado e facilitar a compreensão: a redundância assegurada pela retomada contribui para a melhor interpretação do texto e para a construção de sua coerência. Por todas estas razões – a par de outras que não puderam ser aqui destacadas – é que se pode afirmar que as estratégias de segmentação desempenham papel de relevância na construção e na compreensão do texto falado. Embora muitas delas já tenham merecido bastante atenção da parte de muitos sintaticistas e semanticistas, as abordagens textuais-discursivas são ainda 50
pouco numerosas em nosso país, especialmente em se tratando das estratégias de rematização, embora, evidentemente,se deva ressalvar, a par de outros, os autores citados neste trabalho.
NOTAS 1
“A expressão unidade comunicativa é aqui tomada (cf. Rath, 1979) como substituto conversacional para ‘frase’, ou seja, é a expressão de um conteúdo que pode dar-se, mas não necessariamente, numa unidade sintática tipo frase.” (Marcuschi, 1986: 61/ 62).
2
Observe-se que isso, neste exemplo, parece funcionar, simultaneamente, como anafórico e catafórico, isto é, remete tanto ao que o precede, como ao que vem na seqüência.
3
Este quadro me foi sugerido por Rodolfo Ilari, mas, infelizmente, acho que não consegui dar-lhe o aspecto sintetizador por ele proposto.
4
Tais entidades entram na categoria das inferíveis, na classificação proposta por Prince (1981).
5
Muitos autores tratam tais exemplos como casos de deslocamento à direita. Ilari, por exemplo (comunicação pessoal) os enquadraria como antitópicos; Kato (1989) os considera como exemplos de deslocamento à direita do tópico, que supõem um sujeito nulo. Prefiro, contudo, sustentar a tese da rematização e acredito que uma análise prosódica mais acurada que pretendo empreender com o auxílio de um fonólogo deverá vir a reforçar esta posição.
6
É o que Kato (1989) denomina “free small clauses”.
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A CORREÇÃO NO TEXTO FALADO: TIPOS, FUNÇÕES E MARCAS
Leonor Lopes Fávero Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade Zilda Gaspar Oliveira de Aquino (Universidade de São Paulo)
1. Objeto da Pesquisa e Corpus O presente trabalho integra o projeto maior da Gramática do Português Falado que se propõe a elaborar uma gramática referencial da língua falada no Brasil. Nesse sentido, investigar-se-á um dos processos de formulação do texto falado – a correção, como contribuição para que se possam explicitar quais os mecanismos de construção desse tipo de texto. O corpus restringe-se, predominantemente, ao material do Projeto Norma Urbana Culta (NURC), englobando as três modalidades de inquérito: Diálogo entre dois informantes (D2), Diálogo entre informante e documentador (DID) e Elocução formal (EF), não excluindo o exame de conversações espontâneas, coletadas em situações e contextos variados. As gravações espontâneas não utilizaram video-tape (da mesma forma que o material do Projeto NURC), já que não se considerou a configuração não-verbal (gestos, mímica e outros). A escolha das três modalidades deveu-se ao fato de que se julgava possível encontrar uma freqüência significativa de casos de correção nos inquéritos em que há maior convergência de situação menos formal e maior troca de turnos. De fato, esses dados repercutem na formulação do texto: quanto maior a troca de turnos, isto é, a dialogicidade, menor a formalidade e maior o número de correções encontrado, revelando, claramente, nas marcas deixa53
das no texto, o processo de co-autoria. É preciso salientar que o tipo de inquérito e não o tempo de gravação parece ser fator determinante quanto à localização das correções. Considerando-se a relação dialogicidade/ formalidade numa escala decrescente/crescente, foram analisados: – Diálogos entre dois informantes (D2) São Paulo inquérito 360 São Paulo inquérito 396 Recife inquérito 05 – Diálogo entre informante e documentador (DID) São Paulo inquérito 234 Recife inquérito 131 Rio de Janeiro inquérito 328 – Elocuções formais (EF) São Paulo inquérito 405 São Paulo inquérito 377 Rio de Janeiro inquérito 379 Neles foram localizadas 75 correções (o que mostra ser a correção um dos mecanismos mais utilizados na língua falada), assim distribuídas: D2
32
DID
28
EF
15
Como o trabalho está voltado para a elaboração de uma gramática referencial da língua falada, “é necessário identificar regularidades na construção do texto falado, regularidades dadas pela recorrência em contextos definidos, pelas marcas formais que os caracterizam e pelo preenchimento de funções 54
que lhes são específicas” (Proposta Teórica), já que somente a junção desses dados permite chegar-se à sistematicidade do processo.
2. Bases Teóricas Como já foi dito, esta pesquisa integra o Projeto Gramática do Português Falado, subgrupo “Organização Textual-Interativa” cuja proposta teórica (Koch et alii, 1994), assentada na Pragmática, na Lingüística Textual e na Análise da Conversação, vê a linguagem como atividade de interação social, isto é, como manifestação de uma competência comunicativa, definível como “capacidade de manter a interação social mediante a produção e entendimento de textos que funcionam comunicativamente” (id. ibid.). Essa competência comunicativa não exclui a competência lingüística (conhecimento de um sistema de regras interiorizado pelos falantes e que lhes permite produzir e interpretar orações) nem a ela se adiciona, mas, pelo contrário, a requer para a formulação e compreensão textual. O texto, unidade global de análise, “um subproduto que congrega e sinaliza o processo de produção e interação, é visto como lugar privilegiado para a identificação de pistas que marcam as regularidades e caracterizam o sistema de desempenho lingüístico, constituído dos subsistemas fonológico, morfossintático e textual” (Nascimento, 1993).
3. A Correção Enquanto Atividade de Formulação 3.1 Conceituação e Propriedades Identificadoras Segundo Antos (1982: 92), o locutor que produz um enunciado não efetua somente uma seqüência, mas realiza uma atividade intencional: formular é efetivar atividades que estruturam e organizam os enunciados de um texto. “Formular um texto não é só planejá-lo, mas também realizá-lo” (id. ibid.) e o esforço que o locutor faz para produzir um enunciado se manifesta, como já foi dito, por traços que ele deixa em seu discurso, isto é, formular um texto não significa simplesmente deixar ao interlocutor a “tarefa” da compreensão, mas significa deixar, através das marcas, pistas para que ele, interlocutor, se esforce por compreendê-lo; isso faz com que a produção do texto falado seja ação e interação. “A compreensão nunca se realiza na perspectiva de um dos interlo55
cutores. É preciso que a ação de ambos convirja para que ela ocorra” (Hilgert, 1989: 147). Partindo-se dessa concepção, é possível observar as atividades de formulação em ocorrências nas quais não há evidência de “problemas” de processamento e linearização e um outro tipo em que há evidência de “problemas” de formulação e é preciso resolvê-los. As situações que desencadeiam essas atividades de formulação aqui denominadas “problemas”, segundo Antos (id.), recebem diferentes denominações: trouble-source (Schegloff, Jefferson e Sacks, 1977: 363), störungen (Gulich e Kotschi, 1987: 233), turbulências (Marcuschi, 1986: 30). São constituídas por: – hesitações, quando o “problema” é captado durante sua formulação/ linearização, isto é, on line, caracterizando-se por seu aspecto prospectivo, já que tem como escopo algo que vem depois; – correções e alguns tipos de paráfrases e repetições1 (denominados por Gulich e Kotschi (id.) de refrasagens: repetição de uma estrutura léxicogramatical), quando o “problema” é captado após sua formulação, isto é, ele é textualmente manifestado e dá-se, então, uma reformulação (re + formulare = formular de novo). Estas reformulações apresentam um aspecto retrospectivo, tendo como escopo um elemento anterior. Vejam-se os exemplos: (1)
L1 ... não tem ainda assim muita::... éh uma... um objetivo a atingir sabe? (SP-D2 360: 1290-92, p.169)
(2) L2 depois disso ainda ti/tive problemas de...saúde problemas de tiróide não sei que:: (SP-D2 360: 75-76, p.138) (3) L1 a irmã dela eu conheço que é jornalista né? é uma moça jornalista... L2 poetisa L1 poetisa... (SP-D2 333: 622-625, p.249)
56
Em (1), L1, seguindo o curso normal da formulação depara-se com um problema de formulação/ linearização: encontrar a palavra adequada para dar seqüência ao turno: após uma... hesita e acha a palavra adequada: um objetivo. Em (2), a locutora julga importante explicitar problema de saúde, reduzindo a abrangência do enunciado-fonte: problema de tiróide, criando uma paráfrase. Em (3), L2 corrige L1 – jornalista X poetisa – que no terceiro turno acata a fala de L2, instaurando uma correção. A correção, objeto de estudo deste trabalho, desempenha papel considerável entre os processos de construção do texto, como demonstra o número elevado de correções encontradas nos inquéritos analisados. Corrigir é produzir um enunciado lingüístico (enunciado reformulador – ER) que reformula um anterior (enunciado fonte – EF), considerado “errado” aos olhos de um dos interlocutores; a correção é, assim, um claro processo de formulação retrospectiva: problema de formulação
EF
retrospectiva
reformulação correção ER
Veja-se o exemplo a seguir em que L1 percebe um problema de formulação no enunciado de L2 (meu genro), sugere uma reformulação (seu genro não seu cunhado) e L2, aceitando , processa a correção: (4) L2 a filha do Osvaldo... nesse tempo meu genro era... L1 ( ) L2 vereador parece
L1 seu genro não seu cunhado [ L2
meu meu cunhado que já morreu que foi vereador (SP-D2 396: 1510-1514, p.218-219)
57
O enunciado X (meu genro) é reformulado pelo enunciado Y(seu cunhado) com a finalidade de garantir a intercompreensão, podendo-se depreender o seguinte esquema: X
Y=
x R y (R = relação semântica)
R É necessário salientar que a paráfrase e a refrasagem (= quase repetição) têm também a função de assegurar a intercompreensão, porém “elas se diferenciam pela natureza da relação semântica (R) que liga o enunciado reformulador (Y) ao enunciado fonte (X) e pelos marcadores de reformulação” (Gulich e Kotschi, 1987: 43). Na paráfrase há uma relação de equivalência semântica, na refrasagem, de sinonímia denotativa e na correção, de contraste, entendendo-se essas relações no sentido que lhes dá a semântica estrutural (Greimas, 1966; Lyons, 1977). (5)
temos o caso por exemplo aqui do nosso sindicato...que recentemente construiu... uma sede...um edifício de quatro pavimentos... edifício moderno (RE-DID 131: 65-68, p.2)
(6) L2 (...) depois o café:: em casa o café é muito demorado... muito complicado (SP-D2 360: 311-312, p.144) (7) L1 agora tem sempre... L2 um já ajuda o outro L1 numa família grande há sempre um com tarefa de supervisor... por instinto não é por obrigação... (SP-D2 360: 188-191, p.141)
Em (5) a fala de L2 mantém a mesma dimensão semântica da fala de L1, instaurando-se uma paráfrase. 58
Em (6) há uma relação de sinonímia, efetivando uma refrasagem. Esse tipo de reformulação pode ser incluído na categoria das repetições, conforme o fez Gaulmyn (1987) para quem se torna problemático o limite entre as repetições e as paráfrases. Esse autor inclui entre as repetições os casos em que as mesmas palavras reaparecem, mas podendo aí ocorrer redução, expansão, reordenação, já, nas paráfrases, delimita os casos que apresentam uma substituição sinonímica, uma explicação ou uma ilustração. Em (7), L1 emprega o verbo ter no sentido de haver e, após o turno de L2, reformula seu enunciado com o verbo haver, efetuando uma correção. Neste inquérito observa-se uma preocupação de L1 em empregar a norma culta, visto estar ciente de quem é seu interlocutor (falante culto). O enfoque, então, é interacional, já que, ao reformular seu enunciado, L1 preserva sua imagem diante de L2. Por apresentarem traços comuns, a reformulação de ter por haver não ocorreria se a conversação fosse efetivada por falantes que se utilizassem de outras variantes da língua. Para eles, não haveria contraste semântico, mas sim, uma espécie de neutralização entre os dois termos. Como se pôde observar no corpus, muitas vezes são tênues os limites entre paráfrase e correção e certos casos podem ser considerados – como já assinalou Barros (1993) – tanto paráfrases como correções, ocorrendo uma neutralização entre as oposições. O que se pode observar é que na paráfrase é maior o ponto de contato em relação à questão da equivalência semântica, enquanto na correção este ponto de contato é menor. Além disso, merece ser incluído o aspecto pragmático-interacional, pois em muitos casos ele se coloca como elemento norteador para que se efetive a reformulação, como se observou em (7). Gulich e Kotschi também consideram difícil a delimitação entre paráfrase e correção porque na correção o “erro” não é necessariamente erro, mas assim é considerado e, como tal, substituído por um outro termo. Daí resulta para a correção a mesma estrutura básica da paráfrase: EF
ER
Após o exame dos limites entre paráfrase e correção, torna-se necessário observar as diferenças entre correção e hesitação, já que esta última constitui também uma atividade de formulação. 59
Observem-se os fragmentos: (8) L2 é...es/essas esses progressos...houve isso houve muito progresso (SP-D2 333: 379-380, p.243)
(9)
...tendo em vista os elevados custos... que nós...habitualmente verificamos...quando se trata por exemplo de uma...de um pro/quer dizer de um problema de internação... hospitalar por exemplo (RE-DID 131: 15-17, p.1)
Exemplos como esses revelam o que já foi apontado por Koch e Osterreicher (1990: 60) de que “em todas as línguas existem procedimentos e elementos que permitem introduzir no interior do discurso o próprio processo de formulação tão logo surgem dificuldades de formulação na ‘prospectiva’ o que dá tempo e facilita a compreensão”. Nos dois casos há uma retomada da construção para reelaborar os enunciados. Como observa Marcuschi (1993: 92), “a hesitação deve ser vista como uma evidência de planejamento e verbalização simultâneos (...). A hesitação diz respeito (Petrie, 1987) ao como se está falando e não ao que se fala...”. Chafe (1985:18) também afirma que a hesitação constitui uma “evidência de que a fala não é matéria de regurgitação de materiais já estocados na mente em forma lingüística, mas é um ato criativo, relacionando dois meios, pensamento e linguagem, que não são isomórficos, mas que requerem ajustes e reajustes mútuos”. A hesitação difere da correção porque esta, como já dissemos, representa uma solução a um dado problema de formulação retrospectiva, enquanto a hesitação é produzida na prospectiva. Problema de formulação hesitação
prospectiva
Um critério de distinção entre hesitação e correção é o que diz respeito ao estágio de desenvolvimento da formulação/reformulação textual. Nos ca60
sos de ocorrência de hesitação, detecta-se uma interrupção no fluxo informacional, devido a uma má seleção futura de um ou mais termos do enunciado, resultando um enunciado ainda não concluído do ponto de vista da organização sintagmática. Por outro lado, instaura-se uma correção num ponto em que uma má seleção já se efetivou, o enunciado já poderia ser considerado como concluído do ponto de vista sintagmático, mas é necessário reformulá-lo, por motivos já expostos neste trabalho. Desse modo, casos como os dos exemplos (8) e (9) são aqui considerados hesitações e não correções como o fazem alguns lingüistas. Comumente se considera a correção um mecanismo que repara infrações a regras conversacionais (Sacks, Schegloff e Jefferson, 1974), porém a visão aqui proposta é mais ampla, já que se considera o papel da correção na construção do sentido do texto.
3.2 Tipos O exame do corpus confirmou a existência de dois tipos de correção: a infirmação (do latim infirmare = anular, revogar, invalidar) e a retificação (do latim rectificare = que segue sempre a mesma direção)2 . Consideremos os exemplos: (10) L1 ela vive dançando a Laura a:: Estela a Laura não se definiu tenho a impressão de que ela vai ser PROmotora... (SP-D2 360: 1374-1376, p.171) (11) L1 então eu tenho impressão de que quando o menor... já:: estiver assim... pela quarta série terceira quarta série... ele já estará mais independente e:: (SP-D2 360: 1225-1228, p.167)
No exemplo (10), o enunciador L1 anula a Laura, substitui por Estela e volta a anunciar explicitamente: a Laura não se definiu; há, portanto, uma anulação do enunciado-fonte (a Laura), que é substituído por a Estela e este, por sua vez, é reformulado por a Laura. 61
Já no exemplo (11), L1 corrige parcialmente o enunciado-fonte, alargando-o: terceira quarta série. O mesmo tem-se em: (12) Inf. ..então como eu ia explicando... no início do século vinte ou melhor no século dezenove... só existiam... a Europa e a... Ásia... bom... formadas... por culturas diferentes... atravessando situações históricas de feudalismo diferentes... (RJ-EF 379: 45-47, p.76)
– em que a locutora, professora, explica em aula sobre geografia econômica como se deu a industrialização japonesa, quando afirma que no século vinte só existiam a Europa e a Ásia, mas imediatamente anula no século vinte, corrigindo-o para século dezenove. Trata-se de uma infirmação. Já em: (13) L2 (então a firma) não pode tirar das pessoas... dos seus próprios clientes (SP-D2 360: 1106-1107, p.164)
ou (14) L1 então ele quer ser cientista... arqueólogo (SP-D2 360: 1455, p.173)
em que temos uma retificação. O mesmo ocorre nas conversações espontâneas a seguir: (15) L1 você mora em São Paulo, hein? L2 em São Paulo não... na periferia (16) L1 você mora agora em São Paulo, hein? L2 Finalmente... na periferia
62
Supondo-se um contexto em que o status de morar ou não na periferia seja decisivo, observa-se que em (15) q substitui p (infirmação) e em (16) não há anulação “da verdade” do enunciado-fonte (retificação); trata-se de uma reformulação a mais, podendo-se, inclusive, introduzir um sim (Charolles, id. ibid.): (16a) L2 sim... finalmente... na periferia
Rath (1979:181) também participa desta posição dizendo que, por meio do enunciado-reformulado, o locutor anula total ou parcialmente a formulação do enunciado-fonte. Considerando-se esses dois tipos de correção, cabe-nos agora examinar os aspectos linguístico e enunciativo encontrados nos inquéritos analisados, lembramos que tal divisão ocorreu somente por uma questão metodológica, já que esses aspectos estão integrados na construção textual.
I Lingüísticos: a) fonético-fonológico: em que se observa uma correção de pronúncia ou de articulação. (17) evidentemente que a democracia para a democracia plana plena... esta nunca existiu (RE-DID 131: 494-495, p.14)
Esse foi o caso menos freqüente no corpus; a bem da verdade, há somente 9 ocorrências. Explica-se pelo fato de ser o corpus do Projeto NURC constituído de gravações de norma urbana culta em que os falantes têm nível universitário e conhecem a “boa pronúncia”, pouco “errando”; assim, os casos encontrados são relativos à correção da articulação. Muitas vezes, não se trata de uma correção, mas sim, de uma hesitação, já que o falante pode, antes de terminar um vocábulo, interromper e ele mesmo efetivar a elaboração adequada, como ocorre em: (18) L2 mas a gente está esperan::do::... não sai nada L1 é da pe/ da prefeitura... e ... para procurador do Estado... (SP-D2 360: 504-505, p.149)
63
b) lexical: em que a seleção léxica não era a pretendida e há uma substituição: (19) Inf. e do outro lado três potências também capitalistas FORTES... Alemanha e Fra/ e a Itália principalmente... perdão Alemanha e o Japão principalmente e a Itália... que também a gente vai dar um pouco mais de atenção a ela e à Alemanha dentro da Europa (RJ EF 379: 136-139, p.79) (20) L2 de eu poder trazer para casa porque aí eu fico trabalhando em casa mas tomando conta toda hora preciso interromper no meio de um negócio para::...levar um ao banheiro para dar uma comida para outro::...e as coisas de casa que a gente aten/tem que atender normalmente com crianças BRIgas que a gente tem que repartir [ L1
apartar
L2 tem que apartar:: isso toda hora...mas:: aí (SP-D2 360: 486-494, p.148) (21) L2 vovó tinha um:: um sírio um turco... que ele vinha trazer em casa para ela (a sacola) ( ) (SP-D2 396: 757-759, p.199)
c) morfossintático: quando a concordância, a regência, etc. são mal formuladas (má formação da frase). (22) L2 ele já ia à escola da manhã que eu comecei quando eu comecei a trabalhar... comecei a trabalhar a dois anos (SP-D2 360: 1374-1375, p.145) (23) Inf. eu acho que eles têm mais... éh mais preparo mais... sei lá:: eles... devem... deve ser outro tipo de de de trabalho né? (SP-DID 234: 240-241, p.109)
64
(24) Inf. porque é através desse sistema democrático que nós podemos... obter como já disse anteriormente e repito... toda... uma série eNORme de reivindicações... reivindicação essa essas que são evidentemente as maisimportantes (RE-DID 131: 525-30, p.15)
II Enunciativos: A formulação não é a que se pretendia, então reformula-se, ao mesmo tempo em que se imprime ao enunciado um caráter de maior subjetividade. Embora não tenhamos conduzido a pesquisa sob esta perspectiva, observa-se que a subjetividade pode ser tratada quanto ao nível ilocutório, efetivando-se por modalizações epistêmicas, como se verifica em: (25) L1 mas são muito acomodadas... ainda não
começaram assim...
aquela fase... chamada de... mais difícil de crítica [ L2
(chamada mais difícil)
L1 né? L2 ahn anh L1 ainda não... felizmente ainda não começaram agora eu acho que:: eu... (SP-D2 360: 43-51, p.137) (26) Inf. ...aquelas comidas assim muito típicas
lá da...da Bahia... e
são... eu achei gostosas (RJ-DID 328: 191-192, p.140)
4. Operacionalização Nas correções devemos considerar quem tem a iniciativa e quem a processa, permitindo visualizar: 65
– autocorreções auto-iniciadas; – autocorreções hetero-iniciadas; – heterocorreções auto-iniciadas. A autocorreção auto-iniciada é a processada pelo próprio falante e pode ocorrer no mesmo turno ou em turno diferente. O mais comum é que ocorra no mesmo turno e geralmente na mesma frase porque o falante tem pressa em corrigir-se, já que pode perder o turno e a oportunidade de reformular seu enunciado. (Schegloff, 1979: 267-268). “Talvez, diz Marcuschi (op.cit., 32) seja este um dos motivos de muitas sentenças na conversação serem truncadas, já que se prefere sacrificá-las a perder a oportunidade de reparar um equívoco”. O exemplo (27) mostra o falante se auto-corrigindo sob o aspecto lingüístico (fonético-fonológico). Já o exemplo (28) mostra claramente a autocorreção hetero-iniciada3 : (27) Inf. uma OUtra forma de:: de (se) estudar a inteligência...seria mais uma frase de... de:: evolução da inteligência... FA::ses da inteligência... (SP-EF 377: 333-35, p.30) (28) L1 aquela sua amiga a:: Andréa que está estuda::ndo medicina L2 não não é medicina... L1 ah é...é enfermagem...então ela estava me dizendo que...a profissão exige mu::ita dedicação (Conversação espontânea)
Na heterocorreção auto-iniciada, o falante corrente inicia a correção que é efetivada pelo interlocutor. De modo geral, esta correção pode ser confirmada no terceiro turno, quando o falante que produziu a inadequação retoma a palavra, aceitando a reformulação feita pelo interlocutor: (29) L1 ah...a professora mandou ler os contos de Rubem Braga... não::o não é Rubem Braga este é cronista é...é... L2 Fonseca... Rubem Fonseca... o autor de “A Grande Arte” L1 esse mesmo Rubem Fonseca... você tem razão (Conversação espontânea)
66
5. A Questão das Marcas Gulich e Kotschi (op.cit.) dizem que os diferentes tipos de reformulação não se distinguem unicamente pela relação semântica existente entre o enunciado-fonte e o enunciado-reformulador, mas também pelo tipo de marcador empregado para indicar esta relação: “...é freqüentemente com a ajuda do marcador que o locutor cria uma relação de reformulação entre dois enunciados diferentes. Uma relação semântica – por exemplo, a da equivalência – não é dada simplesmente (pela estrutura proposicional do enunciado-fonte e do enunciado-reformulador), mas é estabelecida pelo locutor. O marcador é um traço deixado no discurso pelo trabalho conversacional do locutor”(p.44). Muitas vezes, torna-se visível a presença dos três elementos: Enunciado Fonte
(EF)
Marcador
(MC)
Enunciado Reformulador
(ER)
Observando-se o diálogo a seguir: (30) Doc. que tipo de carreira...fora essa...seriam digamos conveniente... L2 eu acho que isso seria qual/qualquer uma( ) quer dizer::oo:: lado...de ciências mais human/ah de o lado humano o ou de::... ciências exatas como chamava-se no MEU tem::po (riso) (SP-D2 360: 648-54, p.152)
– vemos que, na resposta de L2 ao Documentador, há claramente a presença de três elementos: enunciado-fonte, marcador de reformulação e enunciado-reformulador: qualquer uma
(EF)
quer dizer::
(MC)
oo::lado...de ciências mais human/ah de o lado humano o ou de::...ciências exatas
(ER)
67
O exame do corpus mostrou que a correção é sempre acompanhada de um sinal explícito que marca seu caráter reformulador (Gulich e Kotschi, op.cit.). Isto não significa que deva haver sempre um marcador verbal em todas as ocorrências; muitas vezes, ele não foi encontrado, mas, sim, certas marcas prosódicas que vão exercer essa função, como, por exemplo, a ênfase dada ao elemento corretor, a mudança na curva entonacional. Assim, é possível distinguir-se dois tipos de marcas: prosódicas e verbais e, embora tenhamos feito apenas um levantamento preliminar, notamos que as primeiras predominam.
5.1 Prosódicas As principais marcas prosódicas encontradas são: pausa
60%
mudança na curva entonacional
30%
velocidade da elocução
24%
alongamento
19%
intensidade de voz
19%
“Essas manifestações são, porém, muito disseminadas no texto, têm natureza multi-funcional, o que torna a análise muito difícil e se articulam freqüentemente com instâncias extra-lingüísticas” (Hilgert, 1989:194).
Constituem instâncias extra-lingüísticas marcas não verbais, como os gestos, o riso, o olhar, entre outras, não tratadas neste trabalho. É muito freqüente a combinação de duas ou mais marcas: mudança na curva entonacional e velocidade da elocução, mudança na curva entonacional e marcador verbal geralmente com intensidade de voz, etc. Cabe apontar que os fenômenos estão sendo considerados sem que se levem em conta as fronteiras de ocorrência. No exemplo (31), a linha entonacional do enunciado-reformulador é mais baixa do que a do enunciado-fonte, além de haver uma maior velocidade da elocução: 68
(31) Inf. ...geralmente eu almoço em volta de/por volta de meio dia e janto por volta das sete horas... sete e meia... (RJ-DID 328: 597-99, p.151)
e no (32) há uma ruptura na curva entonacional e o marcador NEM é acentuado: (32) L2 a paralisação de transportes coletivos transformou a cidade num verdadeiro caos também TODOS os funcionários aderiam à greve L1 é verdade... demorei quase duas horas para chegar na empresa L2 quer dizer... NEM todos... a maiori::a
dos funcionários porque
havia alguns ônibus circu::lando... (Conversação espontânea)
5.2 Verbais Os marcadores verbais constituem uma classe bastante heterogênea. O exame do corpus mostrou a existência de:
5.2.1 expressões estereotipadas: quer dizer
ou melhor
em outras palavras
não é bem assim
em termos
perdão
digamos
desculpe
digamos assim
69
5.2.2 morfemas diversificados (advérbios, conjunções, interjeições) como: não
bom
ah bom
ah
aliás
então
ahn ahn
ou
logo
hein
nada
finalmente
Entre essas marcas, algumas parecem ser diferentes: não é tipicamente de infirmação e enfim, finalmente, quer dizer, de retificação, embora este último seja típico de paráfrase (é necessário fazer-se um estudo mais aprofundado desses marcadores)4. Isto fez Gulich e Kotschi dividirem os marcadores em fortes e fracos: fracos quando a relação semântica entre os dois termos da reformulação é claramente reconhecível; então um marcador fraco é suficiente para marcar a atividade reformuladora; fortes quando a relação semântica entre os dois termos da reformulação é fraca e um marcador forte pode compensá-la. Afirmam ainda que os diferentes tipos de reformulação se distinguem, em princípio, pelo emprego de marcadores diferentes, isto é, quer dizer seria um marcador típico de paráfrase, não, de correção etc. Este fato nem sempre se confirmou em nossas análises, pois encontramos no corpus quer dizer para correção (ex.33); no caso do não este fato parece confirmar-se (ex. 34), porque ele indica explicitamente que é preciso anular o elemento precedente. (33) Inf. ... a mão de obra ainda é a RIQUEZA do Japão...claro...população de cento e tanto milhões...TODA ELA integrada à produção... TODA quer dizer...pelo menos na sua grande parte... (RJ-EF 379: 280-283, p.83) (34) Inf. ...eu acho que é... é tá... tacacá... se não me engano... o nome da farinha que eles usam... é uma farinha tirada de uma folha de árvore... uma coisa assim... que eles depois fazem uma farinha... eu realmente não me detive muito Doc.não é tacacá...não... é uma outra erva... (RJ-DID 328: 148-154, p.139)
70
Justifica-se, desse modo, a classificação em marcadores fortes e fracos, já que há marcadores que, apenas por sua significação lexical, não distinguem o tipo de reformulação. Sabemos, também, que o tipo de análise aqui realizado apresenta um problema já detectado por Charolles (op.cit.): a observação de um corpus, por mais rico que ele seja, não permitirá o exame de todos os contextos em que esses marcadores podem ocorrer e, conseqüentemente, das restrições estruturais e semânticas que recaem sobre eles. É preciso salientar que os marcadores de correção constituem-se numa subcategoria dos marcadores conversacionais e não são exclusivos deste procedimento de reformulação.
6. As Funções da Correção As correções apresentam a função geral de caráter interacional, no que diz respeito à busca de cooperação, intercompreensão e ao estabelecimento de relações de envolvimento entre os interlocutores, como ocorre no exemplo a seguir: (35) L2 (...)às vezes a dificuldade que se encontra porque tem muito::s... executivos...de idade...mais ou menos razoável dentro do que eles querem porque... L1 a mínima... [ L2 funciona realmente aquele negócio de... [ L1
requerida...
L2 aquele negócio de limite de idade funciona (muito)... [ L1
quarenta anos...
L2 não normalmente é no máximo [ L1
no máximo
71
L2 né? L1 no máximo L2 é:: no máximo...existe para alguns (SP-D2 360: 975-88, p.160-61) (36) L2 escrever PAra a faculdade...pedindo os melho/os nomes dos melhores alunos... dos últimos anos...para poder eh poder procurar [ L1 localizar L2 para poder localizar (SP-D2 360: 942-46, p.160)
Nos exemplos citados anteriormente, verifica-se que, ao corrigir seu interlocutor, o falante encontra uma possibilidade de participar da conversação, cooperando para o seu desenvolvimento; já que a correção apresenta um caráter de retomada, evidenciando não só envolvimento entre os interlocutores, mas também atenção, interesse pela fala do outro, mesmo que haja discordância. Queremos ressaltar que a função interacional pode, por exemplo, orientar o foco de atenção para elementos específicos; sobre: a) o tópico: esclarece o interlocutor sobre o conteúdo objetivo da mensagem. (37 ) Inf. (...) eu ia dizendo é o seguinte – ...que não é à toa que a atual indústria naval japonesa... atual e já no início do século vinte... ela havia tido uma das maiores motivações... quais sejam... (RJ-EF 379: 67-69, p.77)
Quando o locutor faz uma pausa e reformula seu enunciado, tem por objetivo a adequação do conteúdo tópico, visando à precisão referencial, já que não se trata da atual indústria naval, mas sim, da indústria naval do início do século até a atualidade. Nesse exemplo, o locutor busca levar seus interlocutores, já que se trata de uma aula, a compreender com exatidão suas informações. 72
b) os interlocutores e as relações entre eles: esta função relaciona-se à compreensão da posição social – devido à adequação às normas lingüísticas e sociolingüísticas (ex. 38), ou à preservação da auto-imagem pública (ex. 39). Podem ocorrer casos em que as correções se efetivam para evidenciar as opiniões dos interlocutores (cf.exs. 25 e 26). (38) Inf. ao secretário evidentemente...levar: ao senhor presidente...todas aquelas questões...que diz que dizem respeito... aos associados (RE-DID 131: l.229-31, p.6)
Nesse exemplo, o falante busca, pela correção, evidenciar sua posição social, adequando sua fala ao registro sociolingüístico do “bem falar”. (39) L2 (...) toda a parte eh praticamente toda a parte jurídica do Estado é feita... não espera aí ((risos)) já estou exagerando não é toda a parte jurídica...do Estado...mas todos::... mas a grande parte jurídica do Estado... como a de... to/todo o ser/ todo serviço de advocacia do Estado... é feita por procuradores do Estado (SP-D2 360: 806-11, p.156)
Nesse caso, registra-se uma ocorrência de manutenção da face. L2 autocorrige-se, buscando adequar a informação referente à parte jurídica do Estado, já que sua interlocutora tem condições de averiguar a exatidão dessa informação por ser casada com um procurador do Estado, podendo – inclusive – invalidar a informação dada por L2, pondo em risco sua face. No corpus não são freqüentes correções que se relacionam à posição social do falante, dada a natureza desse mesmo corpus.
Conclusão A correção desempenha papel considerável entre os processos de construção do texto falado como mostra o número de correções encontradas nos nove inquéritos analisados e baseia-se, como já dissemos, na relação de contraste. Esse trabalho procurou conceituá-la como uma estratégia de reformula73
ção textual, quando o falante encontra “problemas” e deve resolvê-los. Foram examinados os tipos de correção, sua operacionalização, funções e marcas. No que concerne à possibilidade de ocorrência de correções na conversação, observou-se que há uma forte tendência a que os falantes reciclem o que disseram e se expressem de um modo diferente, o que revela a existência de uma norma conversacional. Pode-se dizer que há uma ordem de reelaboração e ela não é ocasional ou aleatória. Isto aponta para um possível local relevante para a ocorrência de correção, o que leva a reafirmar5 que as ocorrências de composição do texto conversacional são produto de uma organização local, específica da oralidade, já que o falante tem a possibilidade de usar uma palavra ou estrutura que acabou de produzir ou, ainda, procurar uma nova e/ou mais satisfatória que permita a intercompreensão. Assim é possível afirmar que as correções correspondem a um processo altamente interativo e colaborativo. Quando usadas apropriadamente, colocam-se como um dispositivo dinâmico, em potencial da língua falada; entretanto, é possível deixar passar um evento sem que se corrija o interlocutor. As razões da não efetivação dessas reformulações podem ser várias, entre elas destaca-se a tentativa de preservação da face do outro. Caso ocorram, o grau de monitoração da correção varia de acordo com a situação comunicativa e com fatores pessoais. Ainda no que se refere à questão da manutenção das faces, pode-se dizer que a auto-correção se realiza com o intuito de preservar a auto-imagem pública. Certamente, é esta a razão de terem sido encontrados um número maior de ocorrências desta no corpus.
NOTAS 1
A paráfrase, a repetição e a hesitação estão sendo objeto de estudo de outros pesquisadores do grupo.
2
Esta é a terminologia adotada por Charolles (1987).
3
Não consideramos correção quando há sobreposição de vozes, porque o intelocutor fala simultaneamente com o falante, tornando impossível dizer-se que houve uma correção.
4
Os marcadores conversacionais estão sendo estudados por outros pesquisadores do grupo.
5
Conforme proposta teórica do subgrupo “Organização Textual-Interativa”.
74
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76
O RELEVO NO PORTUGUÊS FALADO: TIPOS E ESTRATÉGIAS, PROCESSOS E RECURSOS
Luiz Carlos Travaglia (Universidade Federal de Uberlândia)
1. Introdução Chamamos de relevo ao fenômeno de o falante, ao falar, formulando, construindo, constituindo seu texto: a) dar destaque a determinados elementos1 dentro desse mesmo texto, colocando-os em proeminência em relação a outros ou b) fazer um rebaixamento, “ocultamento” de determinados elementos em relação a outros. No primeiro caso, temos um relevo positivo, pelo qual, dentro do desenvolvimento do tópico discursivo, os falantes fazem relevo de determinados conteúdos ou aspectos do que dizem (partes da seqüência lingüística), dando um destaque especial a certas entidades e informações ou a um conjunto de elementos do texto ou a um tipo de elemento dentro do texto, que ficam então, de alguma forma, em um plano mais elevado que os demais elementos do mesmo texto. No segundo caso, temos um relevo negativo, pelo qual, por alguma razão, o falante quer que determinado(s) elemento(s) do texto passem despercebidos ou não tenham a atenção do interlocutor, não porque sejam sem importância, mas quase sempre por questões de argumentação ou questões ligadas às relações entre ele e o interlocutor2. Apenas para efeito de distinção podemos chamar o relevo positivo de proeminência e o relevo negativo, de rebaixamento. Assim com relação ao relevo podemos propor que os elementos do texto teriam um “status” proeminente, normal ou rebaixado.
O relevo pode ser local, quando se aplica a elementos pontuais isolados do texto, mas pode ser mais abrangente quando atinge um determinado tipo de elemento do texto em relação aos outros. Parece que o falante dá relevo a elementos dentro do desenvolvimento do tópico discursivo por razões diversas, sobretudo por razões ideacionais/cognitivas, argumentativas e emocionais, com diferentes funções. O relevo, assim, estaria ligado à estrutura ideacional e interacional do texto. Entre as funções do relevo positivo a básica é exatamente dar destaque/ proeminência, que pode ter funções derivadas tais como: a) enfatizar; b) intensificar; c) marcar um valor especial, indicando que o elemento em relevo deve ser tomado num sentido diverso do habitual, muitas vezes contrário; d) estabelecer contraste; e) reforçar um argumento; f) marcar importância para a estrutura ideacional/informacional; g) marcar o foco informacional etc. Nada podemos dizer quanto às funções do relevo negativo, já que não encontramos ocorrências do mesmo no “corpus” analisado. Sem dúvida, marcar relevo é um recurso de organização do texto, sobretudo no que diz respeito aos elementos ideacionais do mesmo, marcando avaliações que o produtor do texto faz basicamente sobre o conteúdo do texto, mas também sobre alguns elementos da interação. A própria apresentação que o produtor do texto faz para o receptor dessas avaliações representa já um aspecto interacional, pois na verdade o produtor com tal relevo está propondo ao seu interlocutor uma direção e não outra dentro da interação a que o uso do texto está servindo. Esse direcionamento representa uma dimensão argumentativa (em sentido amplo) do relevo. O relevo parece marcar como o produtor do texto representa os elementos constitutivos do texto, como ele propõe que o ouvinte represente o texto. O objetivo básico deste trabalho é estudar a atividade de se produzir relevo na constituição de um texto (no desenvolvimento do tópico discursivo e em alguns aspectos interacionais), procurando: a) levantar os tipos de relevo que podem ser encontrados na língua falada; b) elencar os recursos lingüísticos de diferentes tipos ou ordens que os falantes usam na Língua Portuguesa falada para marcar a proeminência ou o rebaixamento, configurando o fenômeno da língua que 78
estamos chamando de relevo e observar particularidades de seu funcionamento; c) identificar funções que o relevo pode ter no funcionamento do texto em uma dada situação de interação. Para este fim trabalhamos com os seguintes inquéritos do NURC3: D2
DID
EF
1º grupo POA 291 (80 min.)
RJ 328 (40 min.) REC 337 (60 min.)
SP 59 (grav. secr.-20 min.)
SP 234 (40 min.) SP 405 (35 min.)
SSA 231 (46 min.)
2º grupo SP 360 (66 min.)
2. Tipos de relevo Como já vimos na introdução, quanto à direção do relevo, este pode ser positivo (proeminência) ou negativo (rebaixamento). Quanto à natureza o relevo pode ser de diferentes tipos4: 1) O estabelecimento de contraste entre figura e fundo, entre primeiro e segundo planos no texto. O objetivo aqui é buscar os mecanismos e recursos (formas, categorias, etc.) envolvidos neste contraste que está ligado à relevância temática, que, segundo Fuchs (1987) seria a relação de uma predicação com um quadro temático compartilhado pelos interlocutores Na literatura lingüística sobre o assunto, a maioria dos autores afirma que o estabelecimento de figura e fundo é função do aspecto verbal (Cf. Hopper, 1982 para o Malaio; Li, Thompson e Thompson, 1982 para o Mandarim; Rafferty, 1982 para o Indonésio e Travaglia, 1991 para o Português). Outros autores colocam o estabelecimento de figura e fundo como função dos tempos verbais (Weinrich, 1968), ou de modos verbais (Kalmár, 1982). Parece, portanto, que o contraste figura/fundo seria sempre função das formas e categorias verbais. Estes estudos referem-se sobretudo à língua escrita e foram feitos em sua maioria com relação à narração. 2) Organização das informações em termos de informações essenciais e secundárias. O falante marca de alguma forma informações que consi79
dera essenciais, importantes e outras que considera menos importantes dentro do tópico que está desenvolvendo, servindo mais à constituição do quadro temático a que Fuchs se refere. Alguns autores, como Kalmár, 19825 e Travaglia, 19916, realizaram estudos em que o verbo aparece como organizador das informações em essenciais e secundárias, mas temos evidências de que não é só o verbo (suas formas e categorias) que exerce esta função. Temos outros recursos tais como: entonação, elementos lexicais, tipos de oração. Alguns desses recursos marcam certas informações como importantes para o falante dentro do que ele está colocando no desenvolvimento do tópico e, portanto, como algo que ele vê como essencial. 3) Indicação de relevância pragmática de uma situação, de algo no texto (acontecimento, estado, comentário) para a situação presente (o aqui e o agora) ou para um ponto de referência7. 4) Os fatos de focalização em que se observa o destaque, a proeminência que se dá a um tipo de elemento do texto. Os tipos de elementos que podem ser focalizados parecem variar de acordo com o tipo de texto. Como hipótese, pode-se propor algumas possibilidades teóricas de focalizações diferentes (cf. Travaglia, 1991), algumas já constatadas, tais como: a) na narração: foco no participante e seus estados, nos acontecimentos, no falante (narrador)8; b) na descrição: foco em características de tipos diferentes: psicológicas/físicas, transitórias/permanentes, elementos/atributos, etc.; c) na dissertação: foco em conceitos e relações, em argumentos ou não argumentos; d) na injunção: foco na ação a executar, no executante, no ato de determinar a realização de algo, na justificativa. Independentemente do tipo de texto, o Português faz focalização de diferentes elementos (como a informação nova), utilizando recursos diversos: entonação, velocidade de fala, recursos sintáticos (topicalização, expletivos) e lexicais (uso de expressões como “importa notar /observar/ registrar, etc.”; “é importante”; note-se que”, etc.) Quanto aos planos em que o relevo se instancia e que se caracterizam pela razão do relevo, temos pelo menos três tipos: 80
1) Fatos de relevo emocional, em que o falante dá destaque a determinados elementos e/ou passagens do texto, em conseqüência de seu envolvimento emocional com o que diz, do impacto emocional que as idéias ou fatos têm sobre o falante. 2) Relevo argumentativo, quando o falante destaca uma informação ou argumento que ele julga fundamental dentro do que ele diz, para se chegar à conclusão que ele deseja; 3) Relevo ideacional/cognitivo, quando o falante aponta determinados elementos como importantes para as idéias que estão sendo colocadas; Parece-nos que esses tipos não são excludentes e podem aparecer em conjunção, sobretudo os tipos ligados aos planos de instanciação do relevo. Assim, por exemplo, é comum termos um relevo ao mesmo tempo emocional/ argumentativo ou ideacional/argumentativo. E toda informação que recebe um destaque por ser importante para o falante, evidentemente será para ele uma informação essencial dentro do desenvolvimento de seu tópico. O que ele coloca em primeiro plano normalmente é visto como mais importante no desenvolvimento do tópico do que o que coloca em segundo plano, pelo menos no sentido de que o tópico não ficaria devidamente desenvolvido se estas informações fossem eliminadas ou não fossem processadas levando em conta o destaque que se dá a elas.
3. Recursos marcadores de relevo Pudemos observar que o relevo é estabelecido por recursos de diferentes naturezas quer quanto ao plano da língua a que pertencem (fônico, lexical, morfológico, sintático) quer quanto a sua função na constituição do texto (marcadores conversacionais, parênteses, recursos expletivos, etc.). Na análise dos dados pudemos observar a atuação no estabelecimento de relevo, dos recursos abaixo especificados e que por vezes atuam em conjunto.
81
3.1 Recursos fônicos 3.1.1 Entonação Em alguns momentos o falante dá a um determinado trecho um contorno entonacional bastante particular destacando-o dos demais trechos. Fica difícil descrever este contorno entonacional sem reproduzi-lo graficamente por aparelhos apropriados. Seria interessante que especialistas da área de fonética e fonologia determinassem com exatidão o que há de especial em trechos onde se percebe a “ouvido nu” algo de particular que dá proeminência a determinado trecho. (1)
.... você falando sobre como o ca/ como é o café... isso me ocorreu... é assim usar frutas... né... de manhã no café... normalmente quando você vai pra fora...eles servem um... um café bem mais... eh... abundante... né? você tem frutas... você tem frios... eles servem suco... depois então ainda servem o café com leite... mas realmente se você tomar isso tudo... me... onze meia que é a hora que eu almoço... normalmente... eu não tenho vontade de almoçar... e aí ... já sabe... a minha TAXA de... a gordura vai aumentar sensivelmente porque come um tanto de coisa ( ) ............... (NURC/RJ DID 328 l. 312-321)
Falando sobre alimentação, nesta passagem a falante, que diz sempre ter uma preocupação com não engordar, dá um destaque todo especial ao que emocional e racionalmente seria a razão para ela não fazer um café da manhã como o que descreve. O relevo aqui tem uma natureza entre emocional e ideacional e é argumentativo, mas o que parece provocar a entonação especial (inclusive num tom meio jocoso, como que rindo) parece ser o componente emocional que a falante agrega a este elemento. (2) I1- ........ eu tenho um co nhecido, aliás, um amigo comum nosso que ele é especialista em comida internacional então vai faze(r) uma comida chinesa, indiana, qualque(r) coisa até incenso ele queima, bah, só falta música ambiental, só falta eu me vesti(r) a rigor. (NURC/POA D2 291 l. 125-129)
O modo como o falante diz dando um destaque é que nos pareceu ter um caráter emocional, marcando o quanto o fato impressiona o falante, o quão especial ele acha o modo como o amigo serve. 82
(3)
I2- ....... eu acho que é errado que compre inclusive um melhoral sem receita médica. .. eu acho isso uma monstruosidade, entretanto muito mais do que o melhoral até mesmo, antibióticos se compra sem receita médica. (NURC/POA D2 291 l. 642-643)
Em (3) o falante dá um contorno à pronúncia de “monstruosidade” que evidencia o quanto, em sua opinião, este fato é errado: a palavra é falada num ritmo mais lento, quase recortando as sílabas, com um tom mais alto na primeira sílaba que é alongada, abaixando a seguir e voltando a subir na sílaba tônica. A motivação parece ser um pouco ideacional/cognitiva, mas essencialmente emocional e resulta em intensificação da vertente emocional da opinião do falante.
3.1.2 Altura da voz 3.1.2.1 O recurso A altura da voz é o tom que o falante usa ao falar determinados elementos: normalmente sílabas ou palavras e mais raramente trechos maiores do texto. Existe a altura normal de fala e o falante pode enunciar alguns elementos em tom mais alto ou mais baixo. Dessa forma a altura, normalmente, pode ser usada basicamente com dois fins: a) para destacar (tom alto), por exemplo, informação nova ou informação considerada fundamental pelo falante para a compreensão do que ele diz; b) para apagar, obscurecer, “camuflar” (tom baixo). Neste caso o falante diz, mas, por qualquer razão, não quer que o interlocutor perceba, preste atenção ou mesmo registre o que ele disse e então usa uma altura (bem) mais baixa do que a normal de sua fala. Não encontramos exemplos do segundo caso, talvez, porque quando isto ocorre normalmente, pelo menos nos inquéritos observados, a fala ficou ininteligível nas gravações. Os exemplos do uso de uma altura maior para destacar são bastante freqüentes. Na verdade talvez o recurso fônico mais utilizado em todos os tipos de inquéritos. Vejamos alguns exemplos. 83
No exemplo (1) a falante dá proeminência a “taxa”, usando a altura da voz, além do relevo já atribuído pelo modo particular de dizer o trecho. Isto ocorre porque é muito importante para ela não engordar e a taxa de gordura é fundamental na constituição de sua forma de alimentar-se. (4)
“esses saberes fundamentais sobre o jurídico ... são ciências”... esses três saberes... não é? são ciências no sentido de que ... representam um conjunto or-de-na-do de definições... CLASSIFICAÇÕES e proposições... sobre relações... pertinentes ao direito...” (NURC/REC EF-337 l. 290-294)
No exemplo (4) a professora em sua aula sobre direito destaca os elementos que julga fundamentais para o subtópico que desenvolve no momento de que a sociologia do direito, a filosofia do direito e a dogmática jurídica são perspectivas de abordagem do direito que mantêm entre si uma complementariedade e têm caráter científico. É um relevo de natureza ideacional/ cognitiva. (5) a-
.......você tá entendendo João agora a diferença?... não é que o estudo não seja sério... é sério também como eu falei antes... HÁ sistematização EXISTE sistematização... existe análise também... eu diria que existe até mes:mo... um olhar assim um tanto voltado à realidade... (NURC/REC EF-337 l. 355-360)
b-
outra pergunta foi a seguinte... existe diferença ... entre... ciência do normativo e... uma ciência normativa?........................................................ .......................................... expliquem com suas próprias palavras o que foi que vocês encontraram? existe diferença? HÁ diferença? ou não? ... talvez seja a pergunta mais difícil de todo o capítulo... (NURC/REC EF-337 l. 470-487)
Nas duas passagens era fundamental para a professora a existência dos elementos: no primeiro a existência de sistematização, no segundo caso a existência ou não de diferença. Assim, por razões ideacionais/cognitivas, a falante dá relevo ao fato de estes elementos existirem. No exemplo b pode-se também 84
pensar que a falante está fazendo uma correção de uma forma menos culta para uma forma mais culta e dá destaque ao elemento corrigido9. Esta hipótese é plausível em primeiro lugar porque várias vezes a falante alterna as formas “há” e “existe” (além das passagens de 5, veja também no exemplo 6 as formas em itálico) e em segundo lugar porque em alguns momentos a falante se mostra preocupada com as pesquisadoras da área de Letras dentro da sala de aula, o que poderia levá-la a uma preocupação maior com a forma de sua fala. (6)
...... são as três:... num é? perspectivas... elas são:... complementa:res ou não: Eduardo? há um sentido de complementariedade ou não ou são assim... cada uma que se vire e: que não olhe a outra... você diria ((intervenção de locutor acidental)) é... uhum... Arnaldo não é? faz uma... complementação NO TEXTO ou PELO TEXTO há existe complementariedade... bem nós VA:MOS não é? admitir... aqui... em aula... que: existe uma: complementaridade entre esses três saberes... ou três conhecimentos... (NURC/REC EF-337 l. 133-140)
A professora dá relevo a “no texto” e “pelo texto” para marcar que a idéia que está colocando é do texto, embora ela também participe dessa idéia de que há complementariedade entre as três abordagens do direito em discussão. O relevo de “vamos” parece ter sido usado para marcar que a seguir vem algo importante para a aula: a posição que a professora quer que seja assumida. (7)
..... porque a sociologia do direito por exemplo ela não estuda somente ... ela estuda a lei mas NÃO somente a lei TAMBÉM a lei... em relação: ou em adequação com a própria realidade... social... então João ...se... não é? na próxima avaliação... eu pergunto... ou eu AFIRMO... eu posso afirmar também... sociologia do direito é igual a sociologia... jurídica... corre:to... ou errado... justifique sua resposta vamos supor... (NURC/REC EF-337 l. 170-177)
Nesta passagem a professora estabelece relevo em “não” e “também” para marcar que a lei é apenas uma das coisas estudadas pela sociologia do direito. Temos um relevo de natureza ideacional/ cognitiva. Já a proeminência dada a “afirmo” tem uma natureza mais difícil de determinar. Ela parece estar querendo marcar a alternativa de questão que lhe parece melhor elaboração 85
para uma questão sobre o assunto em foco, ou seja, a proeminência apontaria a forma preferida para a questão, indicando aos alunos o que mais provavelmente ocorrerá. (8) I2- Mas exótico, exótico mesmo, foi na casa do cônsul japonês aqui em Porto Alegre... há uns três anos atrás mais ou menos eu fui convidado prum almoço assim muito íntimo e a senhora... ela que preparou... eram olhos de peixe... a sopa. (NURC/POA D2 291 l. 272-275)
Em (8) a altura da voz deu proeminência à idéia de exotismo, porque antes o falante contara sobre outras comidas exóticas, mas quis colocar a que vinha a seguir como a mais exótica de todas. Além do relevo à idéia de exotismo a altura da voz serviu também à manutenção do turno, uma vez que o outro falante (I1) começou a entrar e I2 não tinha terminado. Parece que só a manutenção do turno justifica a manutenção da voz em uma altura maior no trecho em negrito a partir de “foi”. Neste caso, além da altura da voz, atuam na atribuição de relevo a repetição de “exótico” (cf. item 3.4.3) e o uso do item lexical “mesmo” (cf. item 3.2.2). (9) I2- .......por exemplo, pitanga, tem uma vizinha ali que tem um de pitanga que é uma SEN-SA-CIO-NAL, o tamanho das pitanga(s), puxa! Aquilo é uma beleza.... (NURC/POA D2 291 l. 552-554)
Aqui o relevo dado pela altura da voz e pelo recorte silábico serve para o falante reafirmar o quanto ele acha as pitangas boas, grandes, bonitas. (10) I2- ..... Com a, a, a, olha aqui, alguém duvida, por exemplo, eu, já, falando sobre o aspecto de comida de novo... mas alguém duvida da, da qualidade da sardinha brasileira. Alguém duvida? Pois eu, eu jogo o que quiser, pode abri(r) quantas latas de sardinha estrangeiras quiser... pode abrir quantas latas de sardinhas nacionais quiser das diversas marcas, eu garanto que não fica devendo nada, pra nenhuma sardinha portuguesa, francesa, italiana ou seja lá o que for ou espanhola... é de ALTA qualidade a nossa sardinha... entretanto...
86
I1- O Gomes da Costa! I2- Entretanto o Gomes da Costa, o Coqueiro, e, e aquela outra, como é belga como é... I1- Não sei. I2-
Bom, enfim,
I1- Sardinhas é contigo! I2- São SEN-SA-CIO-NAIS, entretanto, muita gente acha que o produto estrangeiro... e se o que se importa de sardinha neste país é uma loucura (NURC/POA D2 291 l. 1290-1308)
Aqui o falante, defendendo a qualidade do que é nacional de uma maneira geral, dentro do exemplo das sardinhas, pronuncia a palavra “alta” num tom muito mais alto que o restante do trecho, dando relevo ao fato de que a qualidade é alta, quer que o ouvinte, perceba, registre, marque bem esse grau de qualidade, que vem confirmado depois pelo altura da voz em “sen-sa-cionais”, onde se tem também o recorte silábico.
3.1.2.2 Alguns aspectos do funcionamento do recurso Observando os elementos que são enfatizados levantamos a hipótese de que alguns tipos de elementos lingüísticos pareciam ser mais colocados em relevo pela altura da voz do que outros. Assim nos pareceu que “intensificadores” eram mais enfatizados por esse recurso do que outros tipos de elementos. Observamos também que normalmente o relevo se fazia pelo aumento da altura da voz apenas em parte de uma palavra (sílaba) e levantamos a hipótese de que o relevo pela altura da voz se fazia essencialmente pela elevação da altura da sílaba tônica. Fizemos então algumas quantificações que apresentamos e comentamos a seguir.
87
QUADRO 1
Quantificador
Intensificador
D2
DID
2/73
13/109
7/97
22/279
2,74%
11,93%
7,22%
7,88%
13/73
31,51% 18/10
17,81% Advérbio
Verbo
Substantivo
Adjetivo
Sintagma
Numeral
Pronome
Artigo
Interjeição
Preposição
Conjunção
EF
34,86%
16,51%
9/97
TOTAL
31,96% 40/279
9,28%
14,34%
8/73
7/109
15/97
30/279
10,96%
6,42%
15,46%
10,75%
5/73
14/109
13/97
32/279
6,85%
12,85%
13,40%
11,47%
5/73
35,62% 20/109
52,3%
26/97
49,49% 51/279
6,85%
18,35%
26,81%
14/73
19/109
9/97
42/279
19,18%
17,43%
9,28%
15,05%
2/73
4/109
3/97
9/279
3,67%
3,09%
3,22%
3/73
—
—
3/279
4,11%
—
—
1,08%
8/73
15,07% — —
—
1/109
—
0,92%
1/73
1,37%
2/109
0,92%
6/97
6,19%
14/279
6,19%
5,02%
—
1/279
— 1,83%
—
—
3/279
1,83%
—
1,08%
10/73
2/109
1/97
13/279
13,69%
1,83%
1,03%
4,66%
2,74%
16,43% 7/109
10,09%
4/97
6,43%
4,12%
9,27%
13/279 4,66%
Conector
—
2/109
2/97
4/279
(marcador)
—
1,83%
2,06%
1,43%
Operador
TOTAL
88
7,18%
0,36%
1,37%
2/73
48,02%
18,28%
2,74%
10,96%
32,97%
—
—
2/97
2/279
—
—
2,06%
0,72%
73/279
109/279
97/279
279/279
26,16%
39,07%
34,77%
100%
1,08%
11,47%
QUADRO 2
D2
DID
EF
TOTAL
1.1 – Tônica
44/73 60,27%
62/109 56,88%
43/97 44,33%
149/279 53,41%
1.2 – Tônica e seguintes
2/73 2,74%
3/109 2,75%
— -
5/279 1,79%
1/73 1,37%
— —
4/97 4,12%
5/279 1,79%
4/79 3,67%
5/97 5,15%
12/279 4,30%
1) Sílaba
1.3 – Átona 1.3.1 – Tônica do primitivo
1.3.2 – Sílaba inicial 3/73 ou outra 4,11%
2) Palavra toda 2.1 – Monossílabo tônico
15/73 20,55%
21/109 19,27%
21/97 21,65%
57/279 20,43%
2.2 – Dissílaba paroxítona
1/73 1,37%
12/109 11,01%
14/97 14,43%
27/279 9,68%
2.3 – Trissílaba proparoxítona
1/73 1,37%
— —
— —
1/279 0,36%
2.4 – Outras
4/73 5,48%
3/109 2,75%
7/97 7,22%
14/279 5,02%
3) Sintagma
2/73 2,74%
4/109 3,67%
3/97 3,09%
14/279 3,22%
TOTAL
73/279 26,16%
109/279 39,07%
97/279 34,77%
279/279 100%
Como se pode ver tivemos 279 ocorrências de relevo pela altura da voz assim distribuídas: 89
D2
TOTAL
DID
EF
SP 360 : 65
SSA 231 : 47
REC 337 : 18
POA 291 : 8
SP 234 : 62
SP 405 : 79
73
109
97
No D2 tivemos uma quantidade menor porque no inquérito D2-POA 291 os falantes fizeram apenas 08 relevos com a altura da voz. Nas EF as poucas ocorrências em EF-REC 337 foram contrabalançadas pela alta ocorrência em EF-SP 405. O número de inquéritos analisados não permite uma generalização segura, por causa do que parece ser característica idiossincrática dos falantes de alguns inquéritos de fazer mais ou menos relevos, usando a altura da voz, mas de qualquer modo parece haver uma tendência para o equilíbrio entre os três tipos de inquéritos no que diz respeito à quantidade de ocorrências de relevo feito por este recurso. No que diz respeito à classe do elemento enfatizado encontramos as seguintes classes com pelo menos um (01) elemento em relevo pela altura da voz: 1) quantificadores: pouco(s), tudo, todo(a)(os)(as), tanto(a), muito(as) nada, mais, tão, bem (veja exemplos 13 e 57); 2) intensificadores: demais, muito (v. ex. 21, 23), muitíssimo, mais, bem, tão, meramente (veja exemplos 53, 57); 3) advérbios: sozinha, fora, realmente, dentro, não, nunca, única(mente), lá, hoje, antigamente, sempre, agora, só, basicamente, exatamente, como; (veja exemplos 7, 9, 10, 12, 15, 55, 56); 4) verbos (veja exemplos 5, 6, 7, 53); 5) substantivos (veja exemplos 1, 4, 12, 18, 54, 55, 57); 6) adjetivos (veja exemplos 9, 10, 12, 13, 14, 19a); 7) sintagmas: no texto, pelo texto, para alguns, é a sala de aula, muito importante, eu fiz, preCISA TER IGUAL, TEM AUla, BEM LIMpos)(veja exemplos 6, 11 e 17); 90
8) numerais: nove, um, dois; (veja exemplos 12b, 55) 9) pronomes: outro, mesmo, meu, tudo, tal, algo, neste, o que, certas, aquilo (veja exemplo 12a); 10) artigo: uma (veja exemplo 13); 11) interjeições: droga!, nossa! (veja exemplo 14); 12) preposições: d(o)(a), para, a(o)(à), n(o)(a)(os) (ele), desde (veja exemplos 15 e 54); 13) conjunções: mas, ou, onde, quando, como (veja exemplo 16 e 17); 14) conector (marcador): agora (veja exemplo 57), aí, bom (veja exemplo 18), bem; 15) operador (argumentativo): também, ainda (veja exemplo 7: também) (11) L2- ................................................... ................................................... depois o café:: em casa o café é muito demorado... muito complicado quer dizer então até eles comerem todas as coisas que fazem... parte do café eles demo::ram um briga com o outro a divisão tem que ser ABsolutamente exata... porque se um tiver mais do que o outro sai um monte de briga na realidade não acabam tomando tudo não comendo que tem L1- (e eles tem) L2- mas preCISA TER IGUAL L1- ( ) [ L2- basta ser igual... pode sobrar tudo mas a divisão tem que ser igual. (NURC/ SP D2 360 l. 311-323) (12) a-Inf. ............quanto à coleta se eles dependiam... da colheita ... de... frutos... raízes... que eles NÃO plantavam... que estava à disposição deles na natuREza... eles também tinham que obedecer o ciclo::... vegetativo... então existe uma época para ter uma maçã outra época para ter laranja outra época para ter banana... existem CERtas regiões onde há determinados frutos OUtras regiões... com OUtros frutos... então eles tinham que acompanhar este movimento também:: e por isso eram nômades e
91
não se fixavam... a lugar nenhum... então numa vida deste tipo ... a preocupação PRINcipal está centrada na sobrevivência............. ................................................................................................................................................................ ............. e que o estilo e que a arte SEMpre vão refletir uma determinada ma-NEI-ra... de considerar o mundo e a natureza... ora a maneira do homem pré-histórico era... BAsicamente eu preciso comer... e eu preciso::... me defender dos animais e eu preciso me esquentar na medida do possível... certo? então a arte pré-histórica só vai poder refletir::... então a arte vai nascer:: em função dessa NEcessidade... de se manter vivo... (NURC/SP EF 405 l. 76-115). b-Inf.
.................. e finalmente... a terceira perspectiva... a filosófica... ou como nós colocamos... filosofia do direito... o que estuda?... estuda o fenômeno jurídico... a-pro-fundan: do... a partir... dos conhecimentos... científicos... ou da própria dogmática... do direito... esse fenômeno/... então novamente... a filosofia do direito... é nada mais do que... um tipo de estudo... um conhecimento... que aprofun:da mais: aqueles outros DOIS... seja um conhecimento num é sociológico... ou conhecimento... normativo... lógico-normativo... vamos dizer que o conhecimento... da filosofia do direito num é? sobre o fenômeno jurídico... ele transcen:de... à pesquisa... isso significa... daí não haver o rigor no estudo... ele vai além: de... ele diz como o comportamento deve ser... independente do que ele é.. como ele deveria ser... vocês realmente estão percebendo gente? tão compreendendo mesmo? (NURC/REC EF 337 l. 434- 450)
(13) a-Inf.
92
................................................ quando chegou o balê russo aqui em São Paulo ele pediram que as alunas do do do da Prefeitura que éramos nós... aquele grupo TOdo fosse fazer cena num num num dos números que eles apresentam era Pássaro de Fogo me parece... eu achei aquilo horroroso viu? me chocou tremendamente porque... éh por detrás dos bastidores é Uma coisa horrível né?... é tudo tão::... parece tão tão mascarado sei lá e quando aparece em cena o público vê uma coisa totalmente bonita né?... aquelas luzes... quer dizer aquilo me chocou era tão criança eu me lembro
que eu... já achava... diferente o Municipal era LINdo maraviLHOso visto do lado de cá né? (NURC/SP DID 234 l. 259-270) b- Doc. qual é digamos assim o esporte que você:: aconselharia (ao) tipo de crianças conforme... os primeiros anos do curso primário criança do curso secundário L1-
ah bom qualquer tipo de esporte é válido... viu? agora o esporte... que melhor pro organismo... por causa de todos os músculos e (tu/) é a natação... então É difícil nas escola... as criança praticarem natação porque não tem escola com piscina... raras são as escolas que têm piscina ... né?... aqui pelo menos (é o) Instituto Normal... tem piscina quando eu estudei eu já ia às aula agora... acho que só ele porque::... nem os outros não tem [
Doc. L1-
eles não têm condições ( ) não tem piscina... seria A natação o melhor exercício para a criança... ainda mais criança que tem problema respiratórios... (NURC/SSA DID 231 p. 10)
(14) Doc. Inf.
(15) a- L2-
se fosse passar um filme para crianças que tipo de filme a senhora acha que deveria ser passado? um:: tipo de filme como O Mágico de Oz que todo mundo achou MAravilhoso parece que está voltando agora... ah::... que::... qual outro filme que... o público infantil achou e gostou... aquelo filme dos cachorrinhos com é o nome?... dos dois cachorrinhos... NOssa criançada adorou aquele filme... eu tenho uma memória... sei lá eu acho que filme desenhos animados... é que a criançada assiste tanto desenho na televisão né? .......................chega a ponto de até às vezes ele éh éh ele:: escrever PAra a faculdade... pedindo... os melho/ ah os nomes dos melhores alunos ... dos últimos anos... para poder eh poder procurar [
93
L1-
localizar
L2-
para poder localizar... porque REalmente a dificuldade é grande (NURC/SP D2 360 l. 941-947)
(16) Inf. ........................ nesse estágio ele não::... assiste aula... apenas ele faz... o::... a parate corriqueira do ambulatório... ele atende os doentes... medica... é supervisionado sempre por um professor ou por um médico no caso... e::... depois ele vai fazer... o seu::... relatório... dos doentes que ele atendeu quais os diagnósticos tratamento que ele fez por esse relatório então nós fazemos o::... vamos dizer o gabarito do::... do estudante se ele foi bom estudante se ele teve... uma:: uma freqüência boa ou se ele foi aceito ou se ele foi um estudante relapso... (agora) QUANdo eles são estudante d/... nos primeiros anos que eles não ainda têm contacto com o doente... eles apenas assistem aulas...tanto teórica como prática... alguns fazem pesquisas que gostam... então eles entram mais na área da pesquisa... outros apenas... ficam somente na parte clínica... do tratamento pro doente né? (NURC/SSA DID 231 p.14) (17) Inf. pro estudante... ter o seu recreio ter a sua hora de descanso... ahn?... prática de esporte... então nós (precisamos) de ter:: as (pérgulas) com todos os tipos de esportes prá ser praticado... piscina prá natação que é muito importante prá:: saúde.. biblioteca né?... ahn e setor médico também e odontológico que precisa numa escola né?... fora a parte de::: diretoria né? salas de diretores... secretárias né?... vice-diretores... de escola... isso é um setor a parte na escola [ Doc.
(essa parte de...)
Inf. MAS o importante É SALA DE AULA eu acho que o importante é sala de aula e:: esporte né? (NURC/SSA DID 231 p. 9) (18) Doc.é isso o que mais chama atenção por exemplo quando a senhora olha para o filme assim a não ser as cenas e o conteÚ:: do o que mais impressiona a senhora?... Inf. não sei o que te responder o que mais me impressiona?... ah nem sei... BOM eu acho que para mulher o que mais chama atenção são as cenas
94
lindas os locais que que passam o mais a roupa né?... eu acho que mais é a roupa maquiagem cabelo... as artistas... parecem umas bonecas né? quando trabalham em filme ((risos))... fala (NURC/SP DID 234 l. 349-357)
Pode-se observar no quadro 1 que a classe dos intensificadores realmente é uma classe bastante colocada em relevo pela altura da voz sobretudo em D2 (17,81%) e DID (16,51%), com uma média geral de 14,34% só inferior à dos substantivos (18,28%) e à dos adjetivos (15,05%). Portanto a hipótese ao ser testada revelou outros fatos como a observação de que verbos, substantivos, adjetivos apresentam sempre uma porcentagem também significativa de relevo pela altura da voz. Isoladamente as quinze classes encontradas não permitiram a percepção de nenhum princípio interessante no que diz respeito ao relevo feito pela altura da voz, exceto o fato de que o número de substantivos em relevo nas EFs é significativamente alto e se lembrarmos que isto pode ser explicado pelo fato de os inquéritos serem dissertações tipo aula em que são importantes os conceitos ativados por esta classe e a explicação dos mesmos. Por outro lado observa-se o quanto os adjetivos foram enfatizados nos D2, o que parece interessante sobretudo se observarmos que a maioria desses adjetivos têm um uso avaliativo e não descritivo (bárbara, boa, incrível, sensacional, importantíssimo, ótima, horroroso, maravilhoso, medonho, bom, tremenda) e nesse caso o relevo chamaria a atenção para a avaliação do produtor do texto ou o relevo serve para intensificar certos atributos das entidades (enorme, aconchegante, lindo, cansada, grande, inteiro, exótico). O mesmo pode ser observado nos DIDs e EFs. Chama também a atenção a porcentagem bastante alta de preposições em relevo pela altura da voz nos D2 (13,69%). Não pudemos levantar nenhuma hipótese comprovável sobre a razão desse número: podemos ter como explicações possíveis ou uma idiossincrasia dos falantes ou talvez o fato de a preposição ser a cabeça de sintagmas preposicionais, considerando que os elementos iniciais de sintagmas tenderiam a ser colocados em relevo. Todavia permanece o fato de que o mesmo não acontece nos DIDs e nas EFs. Todavia, se fizermos alguns agrupamentos, levando em conta certas afinidades, pode-se tirar algumas conclusões interessantes. Assim, se reunirmos num grupo substantivos, adjetivos, verbos e sintagmas, considerando este grupo como o dos ativadores de conceitos e modelos cognitivos globais (frames, esquemas, planos, scripts) observamos que, no conjunto, estes respondem por 48,02% das ocorrências de relevo pela altura da voz, o que nos permite dizer 95
que dada a importância de tais conceitos e modelos cognitivos o produtor do texto falado dá relevo sobretudo a estes para marcar bem a estrutura ideacional desejada. Um segundo grupo reúne os quantificadores, intensificadores e advérbios que têm natureza aproximada tanto que a distinção entre quantificadores e intensificadores nem sempre é fácil e se faz mais pelo fato de se aplicarem a entidades contáveis ou a atributos graduáveis. Por outro lado os intensificadores têm tradicionalmente sido encarados como advérbios de intensidade. Observa-se que esse grupo responde por 32,97% das ocorrências de relevo pela altura da voz. Talvez sua elevada taxa de relevo pela altura da voz possa ser explicada pelo fato de eles serem responsáveis pela apresentação da maneira como o produtor do texto quer que seu interlocutor considere os conceitos e modelos cognitivos ativados pelos elementos do primeiro grupo. Isto, sem dúvida, tem uma dimensão interacional. O terceiro grupo é o que congrega preposições, conjunções, conectores (marcadores) e operadores argumentativos que são responsáveis em conjunto pela coesão seqüencial por conexão (cf. Koch,1989), marcando relações entre elementos e partes do texto, o que significa que, quando estes elementos são colocados em relevo pelo produtor do texto, este está pretendendo marcar tais relações como importantes ou merecedoras de atenção especial dentro da estrutura ideacional que ele pretende para o seu texto. Este terceiro grupo é responsável por 11,47% das ocorrências de relevo pela altura da voz, o que significa que estes três grupos em conjunto representam 92,46% do relevo pela altura da voz. O grupo dos determinantes (numeral, pronome e artigo) com destaque para os pronomes (5,02%) é responsável por 7,18% dos relevos pela altura da voz. Constituímos este grupo como o dos determinantes porque os numerais e pronomes que foram colocados em relevo estavam todos acompanhando substantivos. As interjeições foram responsáveis por apenas 1,08% e os três casos que ocorreram tinham motivações emocionais como era de esperar. O quadro 2 contém as quantificações relativas à extensão do segmento em que a altura da voz era elevada: uma sílaba, mais de uma sílaba, palavra inteira, sintagma. Como a tonicidade parecia ter um papel importante este foi também um parâmetro que utilizamos no estabelecimento das variáveis e o levantamento feito nos levou ao que está registrado no quadro 2. Como se pode observar a sílaba tônica realmente tem importância capital no estabelecimento do relevo pela altura da voz. Observa-se que no geral 53,41% das ocorrências de relevo pela altura da voz acontece na sílaba tônica. Se juntarmos aí os monossílabos tônicos teremos 73,84% dos relevos pela altura da voz na sílaba tônica, o que parece confirmar a hipótese levantada. 96
Cremos que não há problema em juntar os monossílabos tônicos porque, na verdade, embora seja a palavra toda que está em relevo é sua única sílaba, que é tônica, que foi usada para o relevo e neste caso parece não haver nenhuma razão para não juntar os dois casos como ocorrências do mesmo fato. O segundo caso ligado à questão da tônica é do relevo feito na sílaba tônica e nas que lhe são posteriores (1,79%) (casos como: muiTÍSSIMO-2, liDERA, perDIDA, antigaMENTE). Neste caso pode-se incluir o relevo na palavra toda quando temos dissílabas paroxítonas (9,68%) (casos como: ALTA,......... ) e trissílabas proparoxítonas (0,36%) (a única ocorrência foi ÚNICA). Teríamos então 11,83% de ocorrências em que o relevo não é exclusivamente na sílaba tônica mas está relacionado com ela. Isto perfaria um total de 84,83% de casos em que o relevo pela altura da voz é feito na sílaba tônica ou parece depender dela. Depois disso teríamos dois grupos de ocorrência: 1) o grupo do relevo feito pela altura da voz na sílaba átona com um total de 6,09% das ocorrências e que se subdivide em dois subgrupos: a) o das palavras derivadas em que o relevo pela altura da voz foi feito na sílaba que era a tônica do primitivo (1,79%) (casos como: imporTANtíssimo, eXAtamente, BAsicamente); b) o grupo das palavras em que o relevo pela altura da voz foi feito na sílaba inicial ou outra qualquer não tônica (4,30%) (casos como: REalmente, PROmotora, MAravilha, MAravilhoso(as), QUAlidade, NEcessidade, PRINcipal). Como se pode ver só ocorreram casos com a sílaba inicial; 2) o grupo do relevo feito pela altura da voz na palavra toda e no sintagma (8,24% das ocorrências) e que não pode ser explicado pela tônica e seguintes e que também se divide em dois subgrupos: a) o grupo em que o relevo foi feito na palavra toda inclusive em sílabas átonas anteriores à tônica (5,02%) (casos como: SOZINHA, SENSACIONAL, EXÓTICO, PRECISA TER, ROTINA, BANGUE BANGUE, MERAMENTE, AFIRMO, EXISTE, CLASSIFICAÇÕES, TAMBÉM CRIAR); b) o grupo dos sintagmas (3,22%) (casos como: É SALA DE AULA, MUITO IMPORTANTE, EU FIZ, NO TEXTO, PELO TEXTO, PARA ALGUNS, preCISA TER IGUAL, TEM AUla); 97
No subgrupo 1a parece ser natural tal ocorrência, pois se estaria dando relevo à base que contém o lexema/semantema fundamental para a estrutura ideacional e não ao sufixo que contém a tônica. Todavia seria preciso explicar casos em que o relevo se dá no sufixo que no entanto parecem ser muito raros. No subgrupo 1b, com o relevo pela altura na sílaba átona inicial, parece que se explica pelo fato de o produtor querer marcar logo de saída a importância do elemento em questão. Mas resta explicar por que isto acontece em alguns casos que não são tão poucos já que no corpus analisado representaram 4,30% das ocorrências. Os casos do subgrupo 2 parecem se explicar por uma necessidade maior de relevo, ou seja, quando o relevo é feito na palavra toda ou num sintagma, temos um grau mais alto de relevo, pois é este o efeito que se observa em comparação com aqueles casos em que apenas uma sílaba ou parte da palavra é posta em relevo pela altura da voz. Isto valeria também para o caso das palavras inteiras em relevo e que incluímos na influência da tônica por serem dissílabas paroxítonas ou trissílabas proparoxítonas e o relevo se faria após a tônica. Considerando que haveria um grau maior de relevo nas palavras que só tiveram relevo na sílaba tônica e seguintes, pode-se propor uma gradação crescente de relevo na seguinte ordem: relevo na sílaba tônica > relevo na sílaba tônica e seguintes > relevo na palavra toda ou no sintagma. Isto significa que o relevo feito na palavra toda ou no sintagma é mais forte que aquele feito apenas na sílaba tônica ou na tônica e seguintes.
3.1.3 Recorte silábico ou silabação O recorte silábico é representado pela pronúncia das palavras separando-se suas sílabas ou algumas delas. A separação das sílabas leva também ao aparecimento de um ritmo diferenciado de fala (mais lento) que contribui para a proeminência que o falante atribui a determinado elemento. Geralmente essa forma de relevo tem uma motivação ideacional/cognitiva, sendo usada para destacar elemento importante para o falante dentro do conteúdo em questão, normalmente visto como importante para a compreensão do que se diz, ou para ressaltar que é o que se diz e não outra coisa qualquer. 98
Temos esse recurso de relevo nos exemplos (4), (9) e (10). Em (4) o termo “or-de-na-do” aparece com recorte silábico porque a professora acha fundamental esta idéia para que se entenda e perceba que as três abordagens do direito que ela está discutindo com os alunos são científicas, têm caráter científico. Em (9) e (10) o falante além de aumentar a altura da voz faz o recorte silábico do termo “sen-sa-cio-nal” em (9) para marcar bem o caráter excepcional das frutas de que fala e em (10) para destacar a qualidade da sardinha nacional que ele está defendendo e é importante para ele. O falante ainda usa o mesmo recurso em duas outras passagens como se pode ver nos exemplos de (19). Em (19a) com o mesmo fim de (9): ressaltar a qualidade de algo (no caso do restaurante de que ele está falando) e em (19b) para ressaltar que é aquilo mesmo que o interlocutor ouviu e não outra coisa. (19) a- I2-
............. ali na, na, na subida da da, da, na Doutor Timóteo, tu conhece(s) ali, o Bruno? O Bruno é SEN-sa-cio-nal, o Bruno faz um rim que é assim demais é,........ (NURC/POA D2 291 l. 375-377)
b- I2-
Negócio sério. É, eu, eu, eu, eu tive assim uma, algumas coisas, exóticas, macaco, uma ocasião.
I1-
Como é macaco?!
I2-
Ma-ca-co, na Amazônia tem um tipo de macaco lá que se prepara e aí, eu confesso, toda serenidade, provei e achei bom, não é ruim não ((risos)) (NURC/POA D2 291 l. 250-255)
3.1.4 Velocidade da fala (ou ritmo) A fala tem um ritmo normal, que embora tenha uma média esperada pode variar dentro de um certo padrão de falante para falante. Se o falante foge ao seu ritmo normal de fala, acelerando-o ou tornando-o mais lento, pode chamar a atenção para determinados elementos do texto. Como já vimos, quando há o recorte silábico há um ritmo especial da fala que contribui para a proeminência que temos ali. A proeminência marcada por este recurso parece ter, muito freqüentemente, uma motivação emocional, com preferências do falante ou sua perspectiva emocional sobre algo. 99
Este recurso aparece no exemplo (3) onde o produtor do texto falando bem lento ajuda a destacar o quanto ele vê como errado a compra de remédio sem receita médica. Nos exemplos com recorte silábico (4, 9, 10 e 19) vimos que o ritmo mais lento sempre contribui para a proeminência que se estabelece. Em (19a) o ritmo é bem mais lento corroborando a proeminência dado ao caráter de especial do restaurante de que ele está falando, à boa qualidade deste. Esse recurso de um ritmo mais lento de fala é muito usado pela falante do DID 328 NURC/RJ, como se pode ver nos exemplos de (1) e (20) a (22). Em (1) o ritmo mais lento se concentra no termo “sensivelmente” e há quase um recorte silábico, porque para a falante é importante o quanto sobe sua taxa de gordura: daí o destaque a “sensivelmente” que aqui indica esse quanto. (20) Doc.-
ele é feito de que... você sabe? [
Loc.-
o acarajé? eu acho que de feijão... não é? feijão... eles fazem bolinho de feijão e aí depois fazem vários molhos... você pode escolher... (NURC/RJ DID 328 l. 177-182)
Em (20) os termos em negrito foram falados num ritmo bem lento, dando a impressão que a palavra se alonga e parece que o tom é ligeiramente mais alto. A motivação aqui é informacional: a falante dá destaque à informação nova que foi solicitada na pergunta. (21) Loc.-
....... Recife nós comemos coisas assim muito gostosas ... também muito ligada a peixe... eles também... eles comem muita coisa... a lagosta de lá é uma delícia a lagosta de Recife... (NURC/RJ DID 328 l. 192-195)
Em (21) o ritmo lento se acentua nos termos em negrito que parecem se alongar e ter um tom ligeiramente mais alto. Na primeira ocorrência a falante quer destacar o quão gostosas as comidas são em Recife e na segunda ocorrência, o quanto se usa peixe nas comidas de lá. Talvez ela dê este relevo ao quanto se usa peixe porque isto contrasta com sua preferência que é por carne 100
e que já fora bastante marcada anteriormente: então chamou sua atenção o usar-se muito peixe em Recife e no Nordeste em geral. (22) Doc.Loc.-
mas vocês comem sempre carne de boi? ah... é... não... não... a titia... aqui a gente varia... a gente come carne de boi... pode comer... a gente come galinha também... come peixe... ela procura fazer um... uma coisa assim de cada... eh... em cada dia da semana a gente procura variar... mas a base mesmo é a carne... (NURC/RJ DID 328 l.448-453)
No termo “peixe” a falante usa um ritmo mais lento fazendo como que um alongamento, criando uma proeminência para contrastar com a colocação da documentadora em sua pergunta.
3.1.5 Outros recursos fônicos Além dos recursos já comentados encontramos nos inquéritos analisados dois outros recursos fônicos para estabelecer relevo de elementos do texto. O primeiro foi o alongamento como se pode observar no exemplo (23), onde o falante alonga bastante a vogal [u] da palavra “muito” para ressaltar o quão bem feito era o coelho que comeu. Marcuschi (1995: 4), tratando das hesitações, também observou essa função dos alongamentos dizendo “.... nem todo alongamento da vogal é uma hesitação. Há alongamentos que funcionam como coesão rítmica, freqüentes sobretudo na formação de listas. Outros alongamentos operam como ênfase.” (23) I2- ...... Como é o nome daquele ali em cima do Floresta Negra, acima, ah, tu entras na Galeria, Floresta Negra fica aqui à esquerda tu tens uma escada, tem um restaurante ali em cima, eu comi ali foi um coelho, uma ocasião, mu:::ito bem feito, mu:ito bem feito... (NURC/POA D2 291 l. 361-365)
O segundo recurso tem uma natureza onomatopaica imitando uma música de fundo que marcaria algo como importante, como num filme. Tratase da seqüência “tcham tcham tcham” no exemplo (24) que é comum na fala, 101
quando as pessoas vão introduzir algo que consideram importante dentro da situação para si ou para o ouvinte. Parece ter uma motivação sobretudo emocional10. (24)
.......... não tem po:vo que não ten:da a se organizar... e o direi:to... aí vem assim né? como diria Jo João... tcham tcham tcham num é? para o direito... ((intervenção de locutor acidental)) meu Deus! e o dire... eu ... eu esqueci... e o direito num é? ((risos)) nada mais é: num é? que esta organização mesma... então o direito nada mais é é a fra:se... que eu saliento dessa... desse trecho de Duckheim da citação de DUckheim... “e o direito nada mais é do que essa organização” (NURC/EF REC 337 l. 685-693)
3.2 Recursos léxicos 3.2.1 Uso de itens lexicais Muitos itens lexicais apresentam traços em seu significado ou têm papéis (funções) dentro do texto que permitem utilizá-los para fazer relevo de elementos de um dado texto. Estão neste caso verbos como “insistir”, “sublinhar”, “destacar”, “importar”, “notar”, “destacar(-se)”, “salientar”, etc. e operadores argumentativos como “mesmo” e “até”. Nos exemplos (8) e (27) vemos que o uso de “mesmo” reforça o relevo já dado pela altura da voz e também pela repetição (em 8) e pelo expletivo (em 27). “No exemplo (24) (cf. o trecho repetido abaixo) a palavra “saliento” dá destaque a uma parte da citação que a falante julga importante no desenvolvimento do seu argumento. (24)
“então o direito nada mais é é a fra:se... que eu saliento dessa... desse trecho de Duckheim da citação de DUckheim... “e o direito nada mais é do que essa organização” (NURC/EF REC 337 l. 690-693)
No exemplo (25) abaixo é interessante observar que o falante dá um destaque especial à sua preferência por comer usando a expressão “em primeiro lugar”. Ele dá uma proeminência ao ato de comer, quando está falando do prazer que tem nisso ao responder à pergunta da documentadora sobre o que seria comer bem. 102
(25) I2- Opa, melhor ainda. O comer, sempre quando eu falo em comer, por exemplo, é um negócio que, que me atinge diretamente, porque em primeiro lugar, eu gosto de come(r), e mais do que isso eu gosto de prepara(r), tenho prazer de faze(r) determinados pratos, gosto, me sinto bem, talvez um hoby, né? (NURC/POA D2 291 l.95-99)
O exemplo (26) é uma fala em que, no contexto de uma discussão sobre o que é estar bem vestido (em que o falante vinha argumentando que isto depende da ocasião e das regras e exigências sociais), usando o verbo “notar” o falante chama a atenção do interlocutor para um exemplo que comprovaria sua colocação de que não adianta exigir uso de terno e gravata se a pessoa (por exemplo, um gerente de banco) fica com o colarinho aberto e a gravata afrouxada. Neste caso também não se estaria vestido adequadamente. (26) I2- Agora, podem ve(r) notem isso, eu pelo menos não vi, se vir, será esse verão, agora, a partir de dezembro, não demora começa o verão, nós (es)tamos vivendo o problema já do calor, mas certamente, o gerente de banco, por estrutura da própria. I1- Depois é um dogma, e era obrigado. [ I2- Da direção do banco.
Em exemplos como os de (24) e (27), pode-se considerar que temos o uso de parênteses para fazer o relevo (cf. item 3.4.2). Todavia o relevo dado pelos parênteses se deve particularmente ao valor semântico dos itens lexicais aqui destacados.
3.2.2 O uso de expletivos 3.2.2.1 Ser11......que, ser11 que Temos aqui um recurso de clivagem e ficamos em dúvida sobre elencálo entre os recursos lexicais ou entre os recursos sintáticos. Em (27) temos “é que” dando proeminência ao tipo de biscoito que a falante come preferencialmente no café da manhã. Aqui o relevo vem ratificado pelo uso de “mesmo”. Em (28) “foi que” dá destaque ao elemento da per103
gunta que representará a informação nova que o falante solicita do ouvinte. Esse uso de expletivo na interrogativa é comum na língua falada em que os falantes usam sobretudo o “que” sozinho ou “é que” em seqüências como as de (29). Não encontramos muitas ocorrências deste recurso no corpus (cf. 29 e,f), embora este tipo de ocorrência seja freqüente no Português falado. Podese propor a hipótese de que, talvez, este tipo de recurso seja mais típico de uma variedade não culta do Português. Em (30) “era...que” dá relevo a “ela”, a avó que era o centro da narrativa. (27)
...... às vezes como biscoito... geralmente biscoito... assim... esses biscoito tipo integral... é que eu como mais mesmo de manhã... de manhã... (NURC/RJ DID 328 l. 299-301)
(28)
outra pergunta foi a seguinte... existe diferença ... entre... ciência do normativo e... uma ciência normativa?................................................... ........................................ expliquem com suas próprias palavras o que foi que vocês encontraram? existe diferença? HÁ diferença? ou não? ... talvez seja a pergunta mais difícil de todo o capítulo... (NURC/REC EF 337 l. 470-487)
(29) a-
(O) Que que você quer de presente? b- Quem (foi) que trouxe estas flores? c- Onde (é) que vai ser a festa? d- Quanto (é) que custa este CD (compact disc)?
e-
Doc. agora... por exemplo assim nas escolas onde há::... éh::... uma parte assim artística com a (aula) de cultura qual que seria o material? ... que levaria ahn? (NURC/SSA DID 231 p. 12)
f-
Inf.- ...... para mostrar: que... não é propriamente uma ciência que se chama ciência normativa... o que é que vocês diriam sobre isso? quem encontrou: uma resposta... que encontre como satisfatória... para os demais... (NURC/REC EF 337 l. 474-478).
(30)
........ela então veio com a notícia que aquele Ketchup que estava sendo servido era ela que tinha feito.......... (NURC/POA D2 291 l. 214-216)
104
3.2.2.2 Uso de verbos gramaticais de relevo12 Alguns verbos dentro do funcionamento textual têm a função (nem sempre exclusiva) de dar proeminência a elementos do texto. O verbo “ser” quando funciona como expletivo tem essencialmente esta função (cf. exemplo 23 – trecho reproduzido abaixo e exemplo 31). Outros verbos funcionam também como verbos de relevo, mas esta não parece ser sua função exclusiva (cf. o item 3.4.5). (31)
...........no sul eu me... eu me prendi mais foi justamente às frutas... né? (NURC/RJ DID 328 l. 291-292)
(23) I2- ...... Como é o nome daquele ali em cima do Floresta Negra, acima, ah, tu entras na Galeria, Floresta Negra fica aqui à esquerda tu tens uma escada, tem um restaurante ali em cima, eu comi ali foi um coelho, uma ocasião, mu:::ito bem feito, mu:ito bem feito... (NURC/POA D2 291 l. 361-365)
Aqui também se pode pensar, pelo menos para alguns exemplos, em uma falsa clivagem e levantar o mesmo tipo de questão posta em 3.2.2.1, mas mesmo que consideremos como um recurso sintático o relevo é feito pelo uso de elementos lexicais, tanto no caso anterior como aqui.
3.2.2.3 Outros expletivos Alguns recursos expletivos usados no escrito poderiam aparecer também na língua falada. Estariam neste caso, por exemplo, a partícula de realce “se” e alguns casos de objeto direto preposicionado em que a preposição seria um recurso expletivo, como por exemplo os que temos em seqüências como “João pegou do chicote, para castigar o filho” e “Ele ama às artes mais do que os filhos”. No corpus analisado não encontramos exemplos que confirmem esta hipótese.
3.3 Recursos morfológicos/categoriais 3.3.1 Aspecto O aspecto atua sobretudo no estabelecimento do relevo do tipo fundo e figura e, pelo que pudemos verificar no corpus analisado, isto acontece em 105
textos narrativos. Neste caso os trechos com aspecto perfectivo aparecem em primeiro plano como figura e os trechos com aspecto imperfectivo aparecem em segundo plano como fundo, constituindo um quadro em que a ação característica da narrativa se desenvolve. Assim, considerando a superestrutura dos textos narrativos, os trechos de fundo aparecem essencialmente nas partes chamadas de orientação (normalmente onde se descrevem principalmente cenários e participantes da ação ou se monta um quadro de acontecimentos com o qual a ação da narrativa coincide temporalmente) e avaliação (onde normalmente o falante registra suas impressões sobre a ação avaliando-a ou justificando em textos de natureza quase sempre dissertativa). Esta constatação faz ver que neste particular o falado não se diferencia do escrito (cf. o que diz Travaglia, 1991). Vejamos alguns exemplos. Legenda a ser considerada nos exemplos (32) a (34): itálico – fundo (orientação) sublinhado – fundo (avaliação) negrito – figura [ – início do trecho a ser considerado. letra normal – trechos de fala, marcadores e outros. (32) I1- Olha eu me limito a faze(r) um bom, bom! Um churrasco (superposição) churrasco. Mas eu posso fala(r) da, da experiência engraçado, tem pessoas que tem um, um, um, em termos gastronômicos um, um, uma, um talento uma habilidade, impressionante,[ a minha avó era assim, ela qualque(r) prato, podia se(r) o mais complexo, de gosto mais estranho ou exótico possível, ela detectava tempero por tempero e depois reproduzia fazia eu sei que, ãh, quando chegô, praticamente os primeiros vidros de Ketchup que chegaram dos Estados Unidos era material importado, meu tio trouxe pra casa a prova daquilo, isso em mil novecentos e vinte ou qualque(r) coisa assim e a velhinha (ininteligível) todo mundo elogiou o vidrinho tal e coisa, ela ficou quieta, no dia seguinte, o Ketchup estava na mesa, hum, também provou, etecétera, etecétera e ela então veio com a notícia que aquele Ketchup que estava sendo servido era ela que tinha feito, o outro, ela tirou, botou o dela e serviu. Aí o pessoal, não é possível, foram provar era o mesmo. I2-
106
Sensacional, né?
I1- Impressionante,é... ela fazia isso, ela tinha, pegava o negócio assim, mas analisava o negócio inteirinho, sabe que é uma coisa assim muito rara. É incrível! Eu digo talvez os temperos não fossem os mesmos, mas ela conseguia, ia provando, ia botando mais um pouquinho e pá, e encontrava, o mesmo gosto e a mesma aparência, isso também. (NURC/POA D2 291 l. 201-224) (33) I2- ............ Ontem, eu não me lembro, eu acho, não [ ontem eu estava esporte, ontem eu estava de camisa, manga de camisa, hoje tinha uma série de, de compromissos, achei na obrigação de coloca(r) calça e... como é? casaco e, paletó enfim, terno, terno................ (NURC/POA D2 291 l. 895-899) (34) L-
Ma(s) num tinha um qui chegava i para... Intão, a genti tava paradu im frenti à casa da Fátima i eli subiu, mais eu... sabi qui eu tava... assim convandu c’u Bona i eu nem prestei atenção purqui eu tava tão cansada... Tava meia ainda... purque imagini! Uma noiti di sonu prá quem dormi novi horas pur dia, deiz horas... já viu, né? (NURC/SP DID 59 p. 4).
Nos exemplos (35) e (36) do item 3.3.2 a seguir também se pode observar este contraste entre fundo e figura, aqui antecipamos os exemplos marcando os trechos de fundo e figura de acordo com a legenda acima. (35) L-
“... i cumu eu vô sempri na casa da Teresa, eu peçu carona prá eli, purque é na rua deli mesmu, né. Intão, eli desci, mi de(i)xa lá, né. Depois eu voltei da casa... Eu sempri veju eli depois... eli vem... sei lá... intão, cumu eli num tava passan(d)u, né, eu peguei i fui...fui à pé mesmu. I quan(d)u tô passan(d)u im frenti à casa deli, eli tá lá cum duas minina” (NURC/SP DID 059 – grav. secr. p.2)
(36) L-
... i u Vanderlei adora fazê aqueli balãozinhu na toda, né? Eli sempri passava pu ali. Intão, eu já fiquei meiu assim, né... que eu lembrei i... sempri... eli adora... pu(rque) num tem uma veiz achu qui eli num sai na rua, qui eli num vai fazê aqueli balão lá...
107
E-
Sei.
L-
... eli adora... na hora qui eli... i a genti tá descendu i eli tá subindu.
E-
Ham!
L-
Cu’a minina!
E-
Cum ela!? (NURC/SP DID 059 – grav. secr. p.5)
3.3.2 Tempo Encontramos basicamente dois casos em que o tempo atua no estabelecimento de relevo. No primeiro caso temos o presente do indicativo alternando com o pretérito perfeito para marcar relevo emocional em narrativas no passado. Este é um caso em que o relevo é de natureza inteiramente emocional, pois o falante destaca aquele(s) acontecimento(s) dentro da seqüência de acontecimentos da narrativa que o marcou (marcaram) emocionalmente por qualquer razão. Em (35) e (36) a falante coloca no presente momentos em que ela flagra o namorado com outra dentro da narrativa em que ela vinha contando à interlocutora o problema que houve entre ela e o namorado: este é sem dúvida o momento mais emocionalmente dramático para a falante. Em (37) a mesma falante enfatiza emocionalmente a chegada da amiga com quem ela sai, o que resulta no encontro com o namorado após o desentendimento, o que, sem dúvida, tem para ela uma carga emocional especial. (35)
trecho inserido numa narração em pret. perf. do ind. Relata o momento em que a falante flagrou o namorado com outras moças. L- “... i cumu eu vô sempri na casa da Teresa, eu peçu carona prá eli, purque é na rua deli mesmu, né. Intão, eli desci, mi de(i)xa lá, né. Depois eu voltei da casa... Eu sempri veju eli depois... eli vem... sei lá... intão, cumu eli num tava passan(d)u, né, eu peguei i fui...fui à pé mesmu. I quan(d)u tô passan(d)u im frenti à casa deli, eli tá lá cum duas minina” (NURC/SP DID 059 – grav. secr. p.2)
(36) L-
108
... i u Vanderlei adora fazê aqueli balãozinhu na toda, né? Eli sempri passava pu ali. Intão, eu já fiquei meiu assim, né... que eu lembrei i...
sempri... eli adora... pu(rque) num tem uma veiz achu qui eli num sai na rua, qui eli num vai fazê aqueli balão lá... E-
Sei.
L-
... eli adora... na hora qui eli... i a genti tá descendu i eli tá subindu.
E-
Ham!
L-
Cu’a minina!
E-
Cum ela!? (NURC/SP DID 059 – grav. secr. p.5)
(37) L-
.................Falô qui tinha idu prá floricultura né. Falei assim é: “Floricultura, hein! Velhu truqui, hein, essa floricultura né”mais... ma(s) prá mim a... sei lá... era seti i meia, né?
E-
Ham.
L-
Aí, daqui a poucu... chega a Beti... i eu desci pru Pirituba. Qué dizê que eu num... num sabia mais, né?
E-
Sei
L-
... i, aí eu desci né, fiquei lá conversan(d)u... (NURC/SP DID 059 – grav. secr. p.5)
No segundo caso, temos um relevo do tipo 3, especificado no item 2: indicação de relevância pragmática de uma situação, de algo no texto (acontecimento, estado, comentário) para a situação presente (o aqui e o agora) ou para um ponto de referência. Encontramos em estudo anterior com textos escritos (cf. Travaglia,1991) que este tipo de relevo no Português é marcado por formas perifrásticas que seriam basicamente: a) ter (presente do indicativo) + infinitivo. Esta perífrase, sendo a forma de expressão do tempo “passado até o presente”, marca a relevância pragmática de uma situação para o presente (cf. exemplo 38); b) vir + gerúndio. Com o verbo “vir” no presente do indicativo esta perífrase marca a relevância pragmática de uma situação para o presente (cf. exemplo 39a) e com o verbo em formas de passado marca este mesmo tipo de relevância para um ponto de referência, especificado no texto (cf. exemplo 39b); 109
c) ir + gerúndio. Esta perífrase indica sempre a relevância pragmática de uma situação para um ponto de referência. Com o verbo “ir” em formas de passado a relevância para um ponto de referência anterior ao momento da fala (passado) (cf. exemplo 40a) e com o verbo “ir” no presente do indicativo ou em formas de futuro, para um ponto de relevância futuro (cf. exemplos 40b,c). Os exemplos (38) a (40) devem ser considerados como fazendo parte de um texto constituído pela discussão de interlocutores sobre a possibilidade de estabilizar a economia do Brasil. Não encontramos ocorrências no corpus analisado. (38) O Presidente tem insistido no fato de que sem a reforma econômica e fiscal não será possível estabilizar a economia. (39) a-
O Congresso porque não quer, pois o Presidente vem insistindo na necessidade dessas reformas para a estabilização econômica.
b-
O Presidente veio insistindo na necessidade das reformas econômica e fiscal para a estabilização da economia, até que o Congresso se convenceu disso e votou as reformas propostas pelo Executivo.
(40) a-
O Presidente foi insistindo na necessidade das reformas econômica e fiscal para a estabilização da economia, até que o Congresso se convenceu disso e votou as reformas propostas pelo Executivo.
b-
O Presidente vai insistindo na necessidade das reformas econômica e fiscal para a estabilização da economia, até que o Congresso se convença disso e vote as reformas propostas pelo Executivo.
c-
O Presidente irá insistindo na necessidade das reformas econômica e fiscal para a estabilização da economia, até que o Congresso se convença disso e vote as reformas propostas pelo Executivo.
3.4 Recursos sintáticos 3.4.1 Topicalização A topicalização é um recurso lingüístico bastante estudado e por isto não nos estenderemos aqui em sua caracterização. O que importa registrar 110
neste momento é que, sem dúvida alguma, a topicalização é um recurso usado para dar proeminência a elementos do texto, parecendo ser esta sua motivação textual fundamental. A seguir alguns exemplos. (19b)I2- Negócio sério. É, eu, eu, eu, eu tive assim uma, algumas coisas, exóticas, macaco, uma ocasião. I1- Como é macaco?! I2- Ma-ca-co, na Amazônia tem um tipo de macaco lá que se prepara e aí, eu confesso, toda serenidade, provei e achei bom, não é ruim não ((risos)) ................ (NURC/POA D2 291 l. 250-255) (25) I2- Opa, melhor ainda. O comer, sempre quando eu falo em comer, por exemplo, é um negócio que, que me atinge diretamente, por que em primeiro lugar, eu gosto de come(r), e mais do que isso eu gosto de prepara(r), tenho prazer de faze(r) determinados pratos, gosto, me sinto bem, talvez um hoby (óbi), né? (NURC/POA D2 291 l. 95-99)
(41) ....... mas a base mesmo é a carne... porque eu acho que sai mais barato... peixe por exemplo... se você compra... a gente compra só em dia de feira... porque é o peixe mais fresco... o peixe na peixaria geralmente é muito caro e na feira é mais fresquinho e é mais em conta... sabe? (NURC/RJ DID 328 l. 454-457) (42) I2- Não, tu vês, por exemplo, o peixe, peixe aqui no Rio Grande eu tenho impressão que se come peixe, exclusivamente na Semana Santa, porque é um, é um dogma, o padre mandou, seja lá o que for né? (ruído de microfone) na Semana Santa, mas não é hábito gaúcho come(r), come(r) peixe. No norte, por exemplo, é o, o contrário, nós aqui, eu acho que a gente fica mais vinculado ao aspecto da carne, por exemplo, a minha mulher, a minha mulher é uma pe/, é uma criatura que vive mais na carne, (es)tá, gosta da carne, eu tenho um cunhado meu, irmão dela. (NURC/POA D2 291 l. 25-29)
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3.4.2 Uso de parênteses Com freqüência o falante usa certas frases que dão proeminência a determinados elementos, quase sempre a passagens do texto, que acabaram de ser ditas ou que serão ditas a seguir, mas às vezes também que estão sendo ditas como no exemplo (44). Estas frases quase sempre funcionam como parênteses (Cf. Jubran, 1995) e normalmente têm formas tais como: “atenção aqui”, “notem agora”, “prestem atenção em....”, “quero que vocês prestem atenção em.....”, “aqui vocês devem prestar atenção”, “não esqueçam (isso, o que acabamos de dizer, este conceito, etc.).....”, “isto é importante/ fundamental/essencial/central para que estamos demonstrando (querendo provar, explicando, etc.)”. Estas frases parentéticas têm sempre em seu significado traços comuns de chamar a atenção para algo ou de marcar sua importância para o tópico/subtópico em desenvolvimento. Interessante anotar que os dois exemplos que encontramos (cf. 43 e 44 abaixo) estavam em uma EF (Elocução Formal). (43)
........ porque eu encontrei... uma definição... não é? lendo agora um trabalho bem recente... uma definição... na qual... mostra realmente/ não está no livro porque é recentíssima é uma é uma definição... não é? ligando as três perspectivas... de um artigo de mil novecentos e oitenta e seis... então atenua um pouco... a hostilida:de que existe entre a tre três perspectivas... que é a seguinte... eu vou lê João depois... falamos... talvez até coloque para vocês... isso é uma maneira também de pedir... que prestem atenção... não é? esse... trechinho ou essa citação... de um artigo... diz assim aspas mesmo podem colocar... não quer dizer não escrevam não eu digo colocar nas cabeças de vocês... ou à medida que vão usu que vão ouvindo........... (NURC/REC EF 337 l. 277-290)
(44)
................ existe análise também... eu diria que existe até mes:mo... um olhar assim um tanto voltado à realidade... mas... fazer uma análise... um estudo sistemático... somen:te... aí é que está a diferença... somente... vamos grifar... somente levando em consideração a realidade social... em adequação.. à lei por exemplo... ao direito... vigente... (NURC/REC EF 337 l. 358-364)
112
3.4.3 Repetição A repetição tem inúmeros papéis e funções na constituição de um texto13. Um deles é fazer relevo dando proeminência a determinados elementos do texto. Evidentemente nem toda repetição marca relevo. Não se trata aqui de intensidade, mas a repetição para intensificar seria uma espécie, uma forma de proeminência como a repetição de “fininho” por I2, no exemplo (45), em que o falante I1 repete o termo “polvo” para destacar algo que lembrou. No exemplo (11) a repetição de “igual” com diferentes modalizações (precisa ter igual, basta ser igual, tem que ser igual) dá relevo, marcando a importância da igualdade na distribuição das coisas no café da manhã para as duas crianças, reforçando o relevo com a mesma função que já tinha sido feito pela altura da voz na primeira ocorrência (preCISA TER IGUAL). No exemplo (8) a repetição do termo “exótico” ajuda a marcar o relevo que o falante dá ao exotismo da sopa de olhos de peixe. No exemplo (23) a repetição de “muito bem feito” em conjunto com o alongamento e a velocidade dá relevo ao quanto o falante considera o prato bem feito. Veja também os exemplos (46 a,b). Pareceu-nos que a entonação é importante na identificação de repetições com a função de atribuir proeminência. Veja também as repetições de “precisa” em (47). (45) I1- A comida japonesa, basicamente é peixes crus I2- Quando comem peixe, comem cru. I1- É I2- E bem fininho. I1- Polvo, polvo. I2- Fininho, fininho, fininho (NURC/POA D2 291 l. 320-325) (46) a- I1- O poncho, a pala, essas coisas, regional é nosso aqui, então, em termos de funcionalidade é uma beleza, no entanto era uma coisa que poderia se(r) uniforme do gaúcho, do, do homem na cidade, usa(r) aquele negócio, claro com outro tipo de corte, com outro tipo de fazenda, enfim seria o sobretudo europeu, francês inglês... (es)tá entendendo, poderia se(r) perfeitamente, vestiria muito bem, e poderiam usa(r) normalmente uma, uma peça dessas mas por que? Jamais, o cara que sai(r) é o grosso entendeu? Agora, digamos, invertamos a, a
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situação, digamos que, que esse tipo de roupa seja usado na Inglaterra, ah! bom! Trouxe um poncho inglês? Olha só! (Es)tá usando. Claro, não é? e já se vê moda, digamos, o, o como disse, invertamos o sobretudo fosse uma coisa de gaúcho, ficaria coisa de grosso, de grosso, seria o termo e o poncho seria, (es)tá entendendo, é por isso e sempre a influência do meio industrialmente desenvolvido, mas... (NURC/POA D2 291 l. 1010-1024) b- Doc.-e quando vocês quiseram... escolher uma carreira... o que as levou escolher a carreira? L2- a minha eu acho.. eu não tenho certeza para julgar mas eu acho que foi incutida... meu pai... foi o um::... era militar:: mas a vocação dele era ter sido... advogado então ele vivia dizendo isso... e eu tenho a impressão eu não posso dizer porque é difícil... para a gente dizer porque de jeito nenhum ele falou “focê vai fazer isso”... nunca... mas eu acho que ele falava tanto tanto tanto e eu o admirava muito... eu tenho a impressão que foi... por causa disto embora minha meta fosse Itamarati eu sempre... Doc.-Diplomacia L2- pensei em fazer Diplomacia sempre sempre sempre... mas depois.. por uma série de circunstâncias... não foi possível................. (NURC/SP D2 360 l. 1511-1526) c- L2- ......a gente vive de motorista o dia inTEIRO, mas o dia inTEIro... (NURC/SP D2 360 l. 93-94)
Um caso interessante de relevo pela repetição é quando esta é mediada por uma conjunção “mas”. Nestes casos observa-se que o relevo feito pela repetição parece ser reforçado pela presença do “mas” (cf. exemplo 46 c).
3.4.5 Orações principais Outro recurso usado para marcar relevo é usar orações principais que no todo do período funcionam como “predicados”. Estas orações principais dão proeminência devido ao seu valor semântico que “diz” da importância para o falante do conteúdo de uma oração que lhe é subordinada (normalmente uma subjetiva simples ou de uma subjetiva + uma objetiva) chamando a aten114
ção do interlocutor para tal conteúdo. Basicamente temos dois tipos de oração principal que desempenham este papel: a) aquelas constituídas por seqüências (expressões) tais como “é importante”, “é urgente”, “é notório”, “vale a pena”, “é fundamental”, “é imprescindível”, “é significativo”, “é interessante”, “vale a pena” e que vêm acompanhadas de uma oração reduzida de infinitivo subordinada substantiva subjetiva cujo conteúdo recebe um destaque de natureza ideacional/cognitiva, modalizando-o de diferentes maneiras de acordo com a expressão usada, que dirige a atenção do ouvinte para o que se diz a seguir (veja no exemplo 17 o uso de “o importante é”). No exemplo (47) abaixo tem-se a ocorrência de duas dessas orações mas com sujeito representado por SN, mais a repetição dando relevo a “esporte” e criando uma espécie de gradação. (47) L1-
é... então :: ele se vê no ápice da glória como jogador de futebol sempre... ele joga bem sabe?... mas ele se vê sempre como o Pelé::... não é?... e:: então::... a gente... está pensando... como encaminhá-lo no colegial mas também sem... lutar muito contra esse gosto dele [
L2L1-
ahn ahn precisa praticar esporte precisa... é necessário é fun::/é fundamental o esporte né? ainda mais nessa fase de adolescência... (NURC/SP D2 360 l. 1338-1346)
b) aquelas constituídas por verbos cujo significado contém traços capazes de fazer o relevo tais como “cumpre/urge/importa/etc.” e que vêm acompanhadas de uma oração reduzida de infinitivo subordinada substantiva subjetiva normalmente seguida de uma oração subordinada substantiva objetiva (importa + notar/observar/registrar/salientar/etc. + que.........). O relevo normalmente é para o conteúdo da oração objetiva, que pode ser ainda mais marcado se a subjetiva é um verbo como salientar/insistir/etc. Alguns exemplos seriam como os de (48). (48) ab-
Importa determinar se o direito é ou não uma ciência. Cumpre registrar que minha opinião sobre a questão difere da sua.
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Este recurso de relevo é muito comum no escrito. Embora teoricamente ele também apareça no oral, não encontramos, no corpus analisado, exemplos do mesmo. Somente uma ampliação do corpus permitiria verificar se tal recurso realmente é pouco usado na língua falada ou se o fato de não termos encontrado exemplos é apenas uma característica dos inquéritos analisados.
3.4.4 Orações reduzidas e orações adjetivas As orações reduzidas e as orações adjetivas normalmente veiculam informação que o falante vê como secundária ou que, por alguma razão, quer apresentar como tal ao seu interlocutor. Este é o caso em diferentes tipos de texto, conforme já verificamos em estudos anteriores14. Não encontramos no corpus analisado (ou nos passou despercebido pela baixa freqüência de ocorrência) exemplos que nos permitissem confirmar ou não tal fato para a língua falada. Dessa forma o que pudemos fazer até o momento foi levantar a hipótese de que aparentemente as orações reduzidas e adjetivas têm uma freqüência baixa de ocorrência na língua falada (a confirmação dessa hipótese, todavia, exige um estudo quantitativo cuidadoso que ainda não pudemos fazer). O único exemplo que levantamos deste tipo de recurso foi uma oração adjetiva no exemplo (32) destacada no trecho deste exemplo que reproduzimos abaixo. Evidentemente um único exemplo não dá condições para confirmação ou falseamento da hipótese levantada, mas pode-se perceber que a informação aparece aí como secundária. (32)
..........o Ketchup estava na mesa, hum, também provou, etecétera, etecétera e ela então veio com a notícia que aquele Ketchup que estava sendo servido era ela que tinha feito, o outro, ela tirou, botou o dela e serviu. Aí o pessoal, não é possível, foram provar era o mesmo (NURC/POA D2 291 l. 213-217).
3.5 Marcadores conversacionais Levantamos a hipótese de que alguns marcadores conversacionais teriam a função de marcar relevo. Isto seria feito sobretudo por aqueles que objetivam chamar a atenção do falante para determinados elementos e idéias 116
dentro do texto a exemplo de “olhe”, “olha!”, “ó!”, “óia!”, “veja!”, “veja bem!”. Estes marcadores sinalizariam uma opinião do falante, destacando-a. Essa hipótese parece se confirmar, conforme se pode ver no trecho do exemplo (10) que reproduzimos abaixo, em que o falante chama a atenção para o argumento que vai propor a seguir; no exemplo (24) (cf. “olha”) em que o falante dá relevo ao que ele sabe fazer e também nos exemplos (49) a (51) a seguir. (10) I2- ..... Com a, a, a, olha aqui, alguém duvida, por exemplo, eu, já, falando sobre o aspecto de comida de novo... mas alguém duvida da, da qualidade da sardinha brasileira. Alguém duvida? (24) I1- Olha eu me limito a faze(r) um bom, bom! Um churrasco (superposição) churrasco. Mas eu posso fala(r)............ (NURC/POA D2 291 l. 201-202) (49) L-
... i que era hora di eli vim aqui, intão eu saí c’a minha mãe. Intão, olha só, mais óia, achu qui issu é... gozadu até purque é au contráriu, né, as coisas... (NURC/SP DID 59 l. 17-19)
Neste exemplo a falante dá relevo ao fato de que os acontecimentos são ao contrário do esperado e o uso do marcador “olha” é que faz isto chamando a atenção do interlocutor para o que o falante vai dizer. Já em (50) o marcador (interjeição?) “ó” dá relevo ao espanto que o fato causou na falante. (50) L-
....................... Ela derrubô ácidu sulfúrico na calça..... (inaudível).
E-
Sei.
L-
...feiz uma bola!... i a professora: “Passa sabão na... na peli, logu”, né, purqui pegô i ficô tudo vermelhu. Intão, ela, ela pidiu prá mim qui tava ma(is), nossa! Purque, né... A otra, intão, pe... num sei a mistura errada qui ela feiz, começô a saí uma fumaça... azul! Ela começô a tussi... a minina ficô tão mal!
E-
Nossa!
L-
Achu qui já tava cum tossi... ela feiz a mistura errada.
E-
Sei.
117
L-
... começô a saí... ó... mais, sabi, pare(cia)... Si filmasse aquilu lá... Nossa Sinhora!... intão né... aí. (NURC/SP DID 59 l. 7-19)
(51)
.......... exa:to que é a ética do dever ser do ou do que deveria ser ainda mais entendeu? ((intervenção de locutor acidental)) olhe antes que eu esqueça um parêntese... na realidade social talvez eu esqueça isso de futuro... por isso vou dizendo loga agora... o ser e o deve ser na realidade social... eles se: ãh!... complementam andam juntos (NURC/REC EF 337 l. 580-587)
Em (51) a falante dá relevo ao que vai dizer chamando a atenção através do marcador “olhe” e do anúncio do parênteses.
3.6 A mudança de código (code switching) A mudança de código, ou seja, a passagem de um tipo de dialeto ou registro para o outro no decorrer de um mesmo texto é um recurso que os falantes utilizam para marcar a importância ou respeito que atribuem ao interlocutor ou ao conteúdo, à entidade que constitui o tópico discursivo (por exemplo ao falar de coisas sagradas, da mãe, etc.). Este tipo de recurso pode ser observado na fala, mas não detectamos a ocorrência do mesmo no corpus analisado. Efetivamente o recurso opera, pois, inclusive quando um falante entende que seu interlocutor não está dando o devido respeito a algo, costuma cobrar isto do outro. É o que acontece em seqüências como a de (52) abaixo. (52) – E aí? Aquela velha chata, encheu muito seu saco ontem? – Dobra a língua meu. Quando eu te dei liberdade para falar assim da minha mãe? – Desculpe. Sua mãe ficou muito brava ontem, por você chegar tarde? Talvez o aumento do corpus permita encontrar exemplos deste recurso no corpus mínimo do PGPF. 118
3.7 Recursos estruturais 3.7.1 Posição nos segmentos textuais Giora (1983) diz que a posição final de segmentos textuais (frases, parágrafos, capítulos, versos, estrofes, etc.) dá à informacão (entidade, elemento temático) aí colocado um status de “foreground”, um status de informação semanticamente dominante enquanto o que é colocado em posição inicial tem um status de informação “background” dentro da estrutura informacional do texto. No nível da frase isto está diretamente relacionado à questão do tema/ tópico – rema/comentário e dado/novo, mas em outros segmentos, inclusive nos maiores (verso, parágrafos, estrofe, capítulos, etc.) o status informacional é o mesmo. A autora não observa conversações e não considera segmentos próprios de textos orais tais como os turnos conversacionais. É uma hipótese a verificar se esta forma de relevo ocorre para segmentos próprios dos textos falados tais como os turnos e os segmentos tópicos (cf. Jubran et alii, 1991).
4. Focalização 4.1 Focalização no produtor do texto No que se refere aos fatos de focalização o que pudemos observar é que, nos inquéritos analisados, o foco predominante é no falante: suas idéias, suas opiniões, suas experiências, de modo que as narrativas são predominantemente na primeira pessoa e os modalizadores nos trechos dissertativos vêm sempre na primeira pessoa (eu acho, eu achei, eu penso, eu gostei, etc.). Este fato observado merece um estudo mais detalhado, para registrar efetivamente como isto acontece. Além do mais não nos parece que se possa afirmar este foco como uma característica fundamental da língua falada, sobretudo se lembrarmos que nos inquéritos do NURC, que constituem o corpus básico do Projeto de Gramática do Português Falado, sempre se solicitava ao falante que falasse de suas vivências e opiniões sobre os temas propostos.
4.2 Focalização de partes do texto Koch (1994), falando de coesão por remissão, coloca que ela teria duas funções: a reativação de referentes e a sinalização textual. A sinalização textual tem segundo a autora (cf. p. 3) uma “função básica de organizar o texto 119
fornecendo ao interlocutor ‘apoios’ para o processamento textual, através de ‘orientações’ ou indicações para cima, para baixo, para a frente e para trás, ou estabelecendo uma ordenação entre segmentos textuais ou partes do texto”. Essa sinalização é feita por recursos tais como “abaixo, a seguir, acima, respectivamente, seguinte, a seguir, que segue, mais adiante, anterior, posterior, etc.” em expressões como: nos exemplos abaixo/a seguir, no capítulo seguinte/ anterior; no próximo capítulo/parágrafo; etc. Koch (1984:3,4), adotando proposta de Ehlich (1981), acha que nestes casos seria mais adequado falar de “dêixis textual”, porque o que se tem em verdade é uma “mostração” dêitica. KOCH registra ainda que para EHLICH “as expressões dêiticas permitem ao falante obter uma organização da atenção comum dos interlocutores com referência ao conteúdo da mensagem. Para consegui-lo, o produtor do texto tem necessidade de focalizar (grifo nosso) a atenção do parceiro sobre objetos, entidades e dimensões de que se serve em sua atividade lingüística”. Isto seria feito através do procedimento dêitico. Ora, este fato configura um recurso de relevo em que o falante dá destaque a algo provocando a concentração da atenção de seu interlocutor em determinado elemento do texto: entidade, item tópico, segmento, etc. Interessa aqui particularmente a dêixis textual como recurso de relevo. O caso do uso de marcadores registrado no item 3.5 acima parecenos ser um caso de relevo por dêixis textual em que o produtor do texto como que diz ao seu interlocutor “ó/olha/veja preste atenção no que vou dizer agora”. Veja, em (59) abaixo, exemplo de ocorrência deste tipo de recurso de relevo. (59) a)
.............. a segunda pergunta diz assim o que significa dizer que as regras de... conduta social são imposições? foi a segunda pergunta... tem uma parte que complica um pouquinho essa resposta... complica pelo seguinte porque diz... que são... imposições... e tem algo ligado com imposições de conhecimento... aí vou explicar né? a vocês o que significa isso... eu já expliquei: eu me lembro porque algumas pessoas tiveram dificuldade... mas agora para todos... toda sociedade... à medida que socializa o indivíduo... vai fazendo através do elemento... do composto... sentimento idéia... e vantagem do elemento idéia... ................. (NURC/REC EF 337 l. 52-62)
b)
120
....... isso eu expliquei... eu a acho que na segunda ou terceira aula... mais do que as religio:sas mais do que: as regras morais etecetera... eu
acho que expliquei isso... então vamos passar... por cima disso... ainda um outro ponto... não é? a segunda resposta vocês têm de uma maneira... um pouco rápida porque leram... eu volto somente se alguém tiver alguma pergunta... (NURC/REC EF 337 l. 80-86) c)
há três perspectivas que vocês leram de novo... isso aí para vocês duas mais do que para eles... elas apenas como reforço didático porque inclusive... já... leram e tiveram um pouco o que significa isso? há três perspectivas... em olhar num é? o direito... o fenômeno jurídico (NURC/REC EF 337 l. 117-122)
d)
isso a gente nós já explicamos em classe... (NURC/REC EF 337 l. 230)
e)
isso eu disse não é? na aula passada... (NURC/REC EF 337 l. 248-249)
Pode-se observar neste exemplos que a falante busca de diversas maneiras focalizar a atenção do interlocutores (alunos) para coisas que já disse anteriormente (inclusive em outras aulas) no texto que o curso representa, que vai dizer, ou para o tratamento que vai dar a algo em sua fala. Como se pode observar, pelo menos nestes exemplos, a dêixis textual no oral nem sempre é tão direta e precisa como no escrito, mesmo porque o falante parece não ter uma consciência muito clara dos segmentos do texto oral quanto tem dos segmentos do texto escrito (parágrafos, seções, capítulos, etc.) e por isso refere-se mais a blocos do tipo “eu falei/expliquei/perguntei/propus (ontem/na aula passada /antes, há pouco, etc); “como no exemplo que vou dar agora/a seguir”; “na análise que fiz/farei”;”então agora posso concluir”; “os casos que vou elencar a partir de agora mostram.....”. É bem verdade que estes recursos muitas vezes parecem ordenadores dos elementos no texto, e são, mas também focalizam a atenção para elementos do texto que já foram ou vão ser ditos. É interessante observar ainda que no 121
oral os recursos de dêixis textual que resultam em relevo de focalização são basicamente expressões de natureza temporal (tempos verbais, sobretudo passado e futuro, e expressões do tipo “antes, agora, na aula passada, ontem”, etc.) ou de classificação de elementos utilizados no desenvolvimento do tópico acompanhados de algum elemento ordenador (os exemplos que darei a seguir, a análise que fiz/que farei a seguir, podemos agora tirar uma conclusão, etc.).
5. Algumas observações sobre as funções do relevo Como dissemos na introdução a função básica do relevo positivo é exatamente dar destaque, proeminência, e dessa “derivariam” funções tais como enfatizar; intensificar; marcar um valor especial, indicando que o elemento em relevo deve ser tomado num sentido diverso do habitual, muitas vezes contrário; estabelecer contraste; reforçar um argumento; marcar importância para a estrutura ideacional/informacional do texto, etc. Vamos agora dar alguns exemplos de ocorrência dessas funções, dentro do corpus analisado. A função de enfatizar ocorre, entre outros, nos exemplos (19b), (25), (41), (42) (todos de relevo feito por topicalização); (23), (27), (28), (29), (30) e (31) (todos de relevo feito por expletivos) e (45) (repetição de “polvo”) e (46) (repetição de “grosso”). Evidentemente a ênfase pode ter razões ideacionais e interacionais como o destacar que é uma entidade que deve ser levada em conta e não outra. A função de intensificar aparece nos exemplos (3) com a entonação particular de “monstruosidade”, (23) com o alongamento de “muito” e (45) com a repetição de “fininho” e em praticamente todas as ocorrências em que o intensificador muito está em relevo. A função de marcar sentido especial pode ser observada abaixo no exemplo (53) (relevo de “diSSEram” pela altura da voz) em que a falante quer que se considere o “dizer” como duvidoso apesar do uso do pretérito perfeito do indicativo que implicaria certeza e no exemplo (54) (relevo de “enGAnos” pela altura da voz) em que a falante sugere pelo contexto que na verdade não eram enganos, mas algum tipo de desonestidade. (53) L2- eu estou em casa... estou super/supervisionando o que pessoal está fazendo... não é?... então (né?) fica mais fácil... e:: o que não dá para fazer
122
durante o dia eu faço à noite... mas realmente nós estamos precisando de bastante gente... (está precisando deMAIS lá) L1- mas vai ser logo... L2- eles dizem que vai ser logo [ L1-
eu acho
L2- mas a gente está esperan::do::... não sai nada L1- é da pe/da prefeitura... e... para procurador do Estado... L2- ahn ahn L1- meu marido supõe que::... no primeiro semestre do ano que vem ... L2- já saia? [ L1-
seja marcado...
L2- ah é? L1- é L2- porque diSSEram não sei se é mesmo... que enquanto existe um projeto nosso... e::: provavelmente ele deve ter falado com você L1- enquanto houver concursados:: L2- não L1- vão sendo chamados [ L2- enquanto nã/ não for ser resolvido esse projeto não o projeto que tem... sabe? para os procuradores uma lei... nossa uma regulamentação nossa (NURC/SP D2 360 l. 496-521) (54) L2- houve uma série de irre/éh:: de irregularidades... nas lis/na apresentação da lista de classificação irregularidade foi engano... no no no fazer... na confecção da lista... de de aprovados hou/houv/ começaram a haver alguns enganos... então o pessoal que mand/entrava com mandado de segurança... dizendo que foi contado pontos errados... enGAnos simples comuns eh aritmética (às vezes) de somar o número de pontos... então eles entraram com mandado de segurança... anulando aquela lista de classificação... e então havia publicação de outras... e assim foi indo e:: e
123
a::... de acordo com o edital a validade é dois anos DA publicação... dos resultados... da lista de aprovados... então com a:: com esta... com este recurso de mandado de segurança... não foi propriamente o recurso foram coisas que realmente aconteceram... (NURC/SP D2 360 l. 589-604)
A função de marcar contraste pode ser observada no exemplo (7) com o relevo de “AFIRMO” para contrastar com “pergunto”. No exemplo (17) o relevo dado à conjunção “mas” por si marcadora de oposição, contraste, reforça o contraste que a falante faz entre tudo o que acabou de citar e o que acha realmente importante na escola. No exemplo (55) abaixo o relevo dado pela altura da voz a “HOmens” estabelece um contraste com a idéia de que uma vez que os homens fazem tantas restrições à carreira de procurador era de se esperar que eles não se candidatassem tanto. No mesmo exemplo o relevo pela altura da voz dado ao numeral “UM” estabelece um contraste entre o número de advogados e o número de engenheiros solicitados pelas empresas para contratação, enfatizando ao mesmo tempo a diferença. No exemplo (56) o relevo do advérbio “aGOra” marca o contraste entre antigamente e a situação atual. No exemplo (57) o relevo de “priMÁrio” e “giNÁsio” estabelece um contraste entre estes níveis de ensino e o nível superior (medicina). (55) L2- é...( ) depois éh depois passou a carreira para ser procuradores do estado... e aí ( ) e e apesar de todas essas restrições feitas... pelos homens... é inCRÍvel o número de candidatos para prestar concurso... o numero de HOmens que se candidatam ... e por aí a gente vê por FOra... como a coisa está difícil( ) por isso eu vejo pelo meu marido... como eu falei para vocês ele faz seleção de pessoal né?... então... ele diz que para.......................................................................... ....................................................................................... que para cada cem engenheiros que são pedidos... é pedido UM advogado... quer dizer a desproporção é inCRÍvel...
(56) Inf. certo eu acho que o o o antigamente os cinemas... o ambiente era outro... a gente ia ao cinema tinha em São Paulo tinha uns cinemas ótimos eu acho que aGOra o:: o pessoa::l sei lá eles vão de qualquer jeito ao cine-
124
ma do jeito que estão::... eles emendam saem do trabalho vão ao cinema saem da escola vão ao cinema..................... (NURC/SP DID 234 l. 542-547) (57) Doc.sei e (o ensino?) Inf. aGOra o ensino... eu acho naquele tempo o ensino melhor do que... hoje né? porque eu acho hoje um pouquinho::... (vamos dizer) confuso pra o:: o estudante Doc.em todos os níveis ou ... cê acha que [ Inf.
não... no nível superior medicina não eu acho que (ao menos) medicina... bom as deficiências que tem agora os estudantes... falam nós também tínhamos naquela época não bradávamos tanto quanto eles bradam é questão só de... falar de reclamar né?... então nós tínhamos também no ensino superior não agora no priMÁrio e no giNÁsio eu acho... diferença... antigamente achava be/bem melhor o ensino (sabe?)... apesar de os estudantes hoje terem muito mais facilidade do que nós no ( ) antigamente né... então nós tínhamos MUIto mais dificuldade... porque não tinha MUItos meio de comunicação como o estudante tem hoje.............................. ............................................... (NURC/SSA DID 231 p. 2)
A função de constraste pode apresentar subfunções tais como marcar algo como ou oposto ou simplesmente diferente de algo que veio antes; marcar, na correção, a forma correta em relação à errada anterior (cf. exemplo 5b). A função de reforço de argumento pode ser observada no exemplo (7) com o relevo dado ao operador argumentativo também em “TAMBÉM a lei”. A função de marcar importância para a estrutura ideacional/informacional (cognitiva) aparece em quase todos os exemplos com relevo dado a substantivos como no exemplo (4), em que temos o relevo de “or-dena-do” (pela silabação) e de “CLASSIFICAÇÕES” dados como importantes para o conteúdo da idéia defendida pela professora, e no exemplo (1) em que o relevo dado ao adjetivo “ALTA” pela altura da voz marca a importância deste fator na justificativa para não fazer o café da manhã tal como descrito, o que certamente implica em reforço de argumento. 125
O relevo pela altura da voz pode ter a função de marcar o foco informacional15, indicando a informação que é vista como inteiramente nova, muitas vezes constrastando com uma informação que se pretende corrigir. Isto pode ser observado em uma seqüência como a de (58). (58) A- Seu irmão chegou hoje, não foi? B- Não, ele veio ONTEM.
Embora o relevo possa acontecer por razões emocionais (raiva, irritação, entusiasmo, surpresa) não parece que se possa dizer que o relevo tem a função de marcar emoções. Nem sempre é fácil fixar a função que tem um dado relevo feito pelo produtor do texto porque na verdade ele pode ter várias funções em planos diferentes muitas vezes derivadas umas das outras. Assim por exemplo uma ênfase pode ter implicações ideacionais ou argumentativas ou no estabelecimento de contraste, este por sua vez pode reforçar um argumento e assim por diante. Evidentemente o capítulo das funções ou papéis que o relevo tem no funcionamento do texto em uma situação concreta de interação merece um estudo particular e aprofundado que certamente não fizemos. Além do mais a teorização sobre as funções exige que outras questões sobre como o relevo ocorre estejam devidamente descritas, embora alguns fatos ou princípios já possam ser levantados com base no já estudado. As funções acima arroladas certamente dizem respeito a certos tipos de relevo como o feito por meios fonológicos, lexicais, alguns sintáticos tais como a topicalização e a repetição. Já os relevos de figura e fundo feitos pelo aspecto e pelo tempo, a apresentação de informações como principais e secundárias podem ter funções de organização de informações que parece não seriam próprias de algumas formas de relevo. Assim a teoria das funções exigiria primeiro o estabelecimento de cada tipo de relevo e de como ele feito, em seguida o estudo das funções que cada tipo de relevo pode exercer e finalmente um cotejo que levantaria quais funções seriam comuns a todas ou a algumas formas de relevo e se alguma forma de relevo teria funções que lhe seriam próprias e particulares.
6. Considerações finais Constatada a existência do fenômeno do relevo e que ele se estabelece através de vários e diferentes recursos da língua, algumas questões começam a 126
se delinear. Assumindo que o falante dá instruções ao ouvinte durante o ato comunicativo por meio de elementos lingüísticos que tipo de instrução representa o relevo? Parece que várias respostas são possíveis, mas de maneira geral a instrução é algo que poder-se-ia verbalizar como: a) ”dê importância maior a tal elemento e não a outro ou b) dê importância ao que vou dizer agora, ou c) o que disse, estou dizendo ou vou dizer, por alguma razão, é importante para mim ou considero-o importante: – para as idéias que estou apresentando e/ou – para a conclusão a que quero que você chegue e/ou – para a interação que está ocorrendo entre nós e) por isso, você deve levar isto em conta” d) ou, no caso do relevo negativo, não dê importância a este elemento ou ao que estou dizendo agora. As conseqüências disto nos efeitos de sentido que são produzidos entre os interlocutores nas situações concretas de comunicação são muitas e variadas e abrem também um novo veio de questões a serem resolvidas. O relevo é de que nível: sintático, semântico, pragmático? Parece que independente do tipo de recurso utilizado ele é sempre de caráter pragmático e tem uma origem e um resultado na interação entre os falantes numa dada situação de comunicação em que o relevo adquire um determinado valor e não outro em decorrência de sua função específica dentro de um texto específico usado como meio de interação em uma situação específica. Em vários momentos pudemos constatar que os recursos utilizados para dar relevo podem atuar em conjunto e em alguns exemplos anotamos tal ação conjunta. O estudo de como essa ação conjunta se dá, de quais recursos podem ou não agir conjuntamente no estabelecimento de relevo é, sem dúvida, um estudo a realizar. Finalmente é preciso registrar que o relevo é um fenômeno da constituição dos textos que realmente tem um papel importante na construção e organização dos mesmos, tanto que perpassa vários outros fatos da língua em vários planos e níveis, uma vez que se faz com recursos fonológicos, morfoló127
gicos, lexicais, sintáticos, semânticos e da estrutura do texto, atingindo elementos isolados ou tipos de elementos. Essa abrangência do fenômeno recomenda que ele deve ser melhor estudado enquanto um dos organizadores do texto e da interação a que este serve. Como se vê este estudo revela que temos aqui outro campo para pesquisas lingüísticas e que há muitos fatos a serem descritos e muitos problemas a serem resolvidos.
NOTAS 1
Os elementos que se colocam em relevo seriam “partes” do conteúdo ou certos tipos de conteúdo (como, por exemplo, ações que constituem os episódios de uma narrativa que aparecem em partes da narrativa como a complicação e a resolução em relação ao pano de fundo que aparece em partes da narrativa como orientação e avaliação) dentro do desenvolvimento do tópico discursivo ou se dá relevo a certas entidades, relações, mudanças de tópico, etc. Assim podem ser colocados em relevo: a) episódios de uma narrativa em relação ao cenário, descrições de personagens, ações de pano de fundo; b) ações em relação a outras por razões emotivas; c) determinados conceitos; d) um argumento em relação a outros; e) a introdução de um novo subtópico ou a volta a um subtópico; f) determinadas relações entre proposições; g) uma forma de dizer em relação a outra que talvez o falante considere menos apropriada, etc.
2
No relevo negativo, o falante procura fazer com que algo passe despercebido, provavelmente algo que não pode deixar de dizer, mas a que não quer o interlocutor dê muita atenção. Um recurso para este fim seria falar rápido e baixo. Não encontramos exemplos deste fato no corpus analisado, talvez porque os mesmos ocorram exatamente nos pontos dos inquéritos em que a fala fica ininteligível.
3
Os inquéritos do segundo grupo só foram utilizados na análise que resultou nos quadros 1 e 2.
4
As formas de relevo aqui elencadas foram basicamente levantadas em Travaglia (1991).
5
Kalmár (1982) afirma que nas narrativas da língua esquimó Inuktitut o modo verbal organiza as informações em essenciais e secundárias.
6
Travaglia (1991) registra para o Português que em todos os tipos de textos (descrição, dissertação, narração e injunção) as formas nominais (em orações reduzidas) sempre veiculam informações secundárias.
7
Li, Thompson e Thompson (1982) dizem que no Mandarim este relevo, na narração, seria marcado por uma espécie de sufixo, a partícula “-LE”.
8
Entrariam aqui questões como o que a teoria literária estudou com o nome de foco narrativo: no falante: 1ª pessoa, nos participantes: 3ª pessoa.
9
(5b) permite levantar a hipótese de que há correções em que o falante dá relevo à forma correta para marcá-la. É preciso verificar se este caso ocorre mais vezes, ampliando o corpus e levantando mais casos de correção com relevo da forma correta.
128
10
As lingüistas Maria Luiza Braga e Margarida Basílio levantaram a hipótese de que este recurso é lexical e não fônico. A meu ver a hipótese procede, se considerarmos “tcham, tcham, tcham” como uma palavra da língua e não uma espécie de música de fundo.
11
O verbo ser aparece usado em diferentes tempos e pessoas.
12
Este tipo de verbo foi proposto por Travaglia (1991: 67).
13
Veja, por exemplo, Travaglia (1989) (1989a) e Marcuschi (1992).
14
Veja Travaglia (1991).
15
Isto já foi observado por outros autores, como por exemplo Halliday (1967) apud Braga e Oliveira e Silva (1984).
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130
FUNÇÕES TEXTUAIS-INTERATIVAS DOS PARÊNTESES
Clélia Cândida Abreu Spinardi Jubran (UNESP/Assis – CNPq)
I. Introdução Pretendemos apresentar, neste artigo, uma tipologia das funções textuais-interativas exercidas por parênteses em textos falados, do Projeto NURC. A análise baseia-se na Proposta Teórica elaborada pelo Grupo de Organização Textual-Interativa do PGPF (Koch et alii, mimeo), bem como nos princípios e critérios para uma classificação das funções pragmático-textuais das inserções parentéticas, expostos em Jubran (1966 b), a seguir sintetizados. No contexto de uma perspectiva textual-interativa para descrição de corpus falado, apoiamo-nos nas postulações teóricas de que o interacional é inerente ao lingüístico e de que a interação verbal resulta do exercício de uma competência comunicativa, que se concretiza por meio de textos. Dado o imbricamento entre o interacional e o lingüístico, os dados pragmático-situacionais se introjetam no texto, deixando marcas do processo formulativo-interacional na sua superfície (Koch et alii, mimeo). Em consonância com tais colocações teóricas, os parênteses são vistos como um dos recursos pelos quais os interlocutores articulam o texto falado, manifestando, na sua materialidade lingüística, as posições que assumem na situação de enunciação e o correlativo envolvimento com o ato de fala que executam. Através de procedimentos parentéticos, são explicitadas avaliações que os interlocutores fazem do quadro sócio-comunicativo no qual interagem, pondo à mostra, assim, o processamento discursivo.
Incidindo sobre o modo de formulação do que se diz, sobre o foco enunciativo e o conseqüente estabelecimento de uma direção interpretativa do que se diz, ou ainda sobre qualificações que os interlocutores se atribuem no intercâmbio comunicativo, e que repercutem no que se diz, os parênteses operam desvios momentâneos do quadro de relevância tópica de um segmento textual. Tais desvios são assinalados por marcas formais típicas de elemento inserido, que permitem precisar a sua identificação e delimitação (Jubran, 1996 a e Tenani, mimeo). Os desvios parentéticos do tópico discursivo em proeminência em determinado segmento do texto falado manifestam-se em graus variáveis, desde um afastamento tópico mais tênue até um mais pronunciado. Correlacionando essa gradiência de desvio tópico com a propriedade, acima referida, de os parênteses conjugarem o interativo com o textual, observa-se que: a) de um lado, os parênteses são mais desviantes do tópico quando apresentam uma tendência mais acentuada para focalizarem o processo de enunciação, sem que, com isso, sejam anuladas as suas implicações no desenvolvimento do texto. Equivale a dizer que, quando quebram o fluxo temático para, no limite, incidirem dominantemente sobre o ato enunciativo, os parênteses mesmo assim repercutem no texto, por estarem perspectivando as condições enunciativas necessárias à própria existência do texto; b) por outro lado, os parênteses são menos desviantes do tópico quando pendem mais para o “conteúdo” dos enunciados de relevância tópica, esclarecendo-os, exemplificando-os, sem deixarem de indiciar demandas pragmáticas para a sua ocorrência. Isto significa que, nos casos de uma orientação mais pronunciada dos parênteses para o tópico em proeminência no texto, decresce a manifestação explícita das circunstâncias situacionais da interlocução (Jubran, 1996 b). A partir das constatações acima, pretendemos estabelecer uma tipologia de funções textuais-interativas de parênteses, instituindo classes dispostas ao longo de um contínuo, que vai desde uma proximidade maior dos parênteses à construção tópica do segmento textual contextualizador da inserção parentética, até uma maior aproximação dos parênteses à situação enunciativa em si. Como está em causa uma classificação de parênteses assentada em um contínuo que se estende desde um pendor dos parênteses para a construção 132
tópica do texto até um pendor para o espaço discursivo gerador do texto, julgamos ser pertinente, para os nossos propósitos de pesquisa, considerar o elemento focalizado predominantemente pelos parênteses. Nesse sentido, adotamos, como princípio primeiro de sistematização dos dados, o foco sobre o qual incide a inserção parentética. Chegamos, assim, a quatro grandes classes de parênteses, que envolvem fatores discursivos implicados pela perspectiva textual-interativa aqui assumida, e que enfocam: (a) a construção tópica do texto, (b) o locutor, (c) o interlocutor e (d) o ato comunicativo. A disposição das classes nessa ordem reflete os graus sucessivos de maior proximidade ao tópico discursivo e menor explicitação verbal do pragmático no texto (classe a), passando por classes intermediárias (b e c), em que se acentua, na materialidade lingüística do texto, a presença dos interlocutores, provocando um desvio para a instância de enunciação, até chegar ao afastamento tópico máximo e à aproximação maior do ato interacional em si (classe d). Convém enfatizar que a demarcação dessas classes será sempre feita de acordo com a dominância do que é promovido como foco, pois os fatores nelas envolvidos muitas vezes se interrelacionam. O princípio classificatório será funcional, no sentido de que a descrição dos vários tipos de parênteses ressaltará de seu uso e funcionamento em situações de interação verbal.
II. Tipologia de Parênteses 1. Classe a Elaboração tópica do texto Esta primeira classe particulariza-se pelo fato de ser constituída por parênteses relevantes para a elaboração dos tópicos discursivos desenvolvidos em um texto falado, (a) seja no sentido de manterem alguma conexão de “conteúdo” com os mesmos, (b) seja no sentido de sua formulação lingüística, (c) seja ainda no sentido de sua construção textual. Compreende, portanto, três subclasses.
1.1 Parênteses correlacionados com o conteúdo tópico Os casos de parentetização englobados neste tipo estão na situaçãolimite de reconhecimento de um segmento textual como parentético ou não. Isto porque atenuam a propriedade de desvio tópico, particularizadora de 133
parentetização, na medida em que são concernentes com os enunciados de relevância tópica, por manterem conexões de conteúdo com eles. São esclarecimentos, analogias, exemplificações, justificativas, correções, ressalvas, retoques, reiteração ou desdobramento de informações tópicas. Poderiam ser considerados equivalentes, na classificação de digressões feita por Dascal e Katriel (1982), às “quase-digressões”, integrantes do tipo de digressões baseadas no enunciado, segundo colocação dos autores citados. Pelo fato de esses parênteses guardarem proximidade ao tópico discursivo em desenvolvimento, o critério do desvio tópico torna-se menos operante para a sua identificação. A natureza típica de segmento inserido é dada, então, pelas propriedades formais de parentetização. É através das marcas formais do processo parentético que podemos discernir quando esclarecimentos, exemplificações e analogias, em princípio concernentes com os enunciados que elucidam e, portanto, menos desviantes do tópico, adquirem ou não estatuto de parênteses. Além dos indícios formais de parentetização, que ocorrem nas fronteiras inicial e final das inserções parentéticas (como pausas, possibilidade de interrupção sintática do enunciado em que se encaixam e posterior retomada do mesmo, marcadores de suspensão e de retorno do tópico), sobressaem, como critério de identificação e delimitação dessa modalidade de parênteses, as marcas prosódicas de alteração de tessitura e aceleração do ritmo de elocução. Conforme dissemos na Introdução, em virtude de o foco de parênteses dessa natureza recair preponderantemente sobre o tópico discursivo, diminui a expressão do processo interativo na materialidade lingüística do texto. Na grande maioria das ocorrências, os dados pragmáticos são perceptíveis pelo fato de que o caráter elucidativo dos enunciados topicamente relevantes, que eles assumem, indicia objetivos interacionais de criar mecanismos facilitadores da compreensão das proposições tópicas. Sob esse aspecto, eles asseguram a inteligibilidade e aceitabilidade do texto, preenchendo condições discursivas importantes para a eficácia do ato comunicativo. Um dos recursos de elucidação do conteúdo das proposições tópicas é o da exemplificação, pela qual se introduzem, no texto, dados fatuais comprovadores do que está sendo dito. A função de exemplificação, conforme se verifica em (1), aponta o envolvimento do locutor com o assunto, revelando sua atitude em relação ao conhecimento do que comunica: a de que este se baseia na evidencialidade dos exemplos. Essa atitude gera a confiabilidade no conhecimento (Chafe, 1985), levando, interativamente, à aceitação do que é dito e à esperada adesão do interlocutor. 134
(1)
Inf. cooperativas também são... entidades... realmente bastante... significativas...dentro de uma conjuntura... ou dentro da conjuntura... nacional por exemplo para citar especificamente o caso... do nosso país... sabemos por exemplo que países altamente evoluídos e avançados... [como é o caso por exemplo da Suécia... que é um país que pratica na opinião de alguns... um socialismo considerado como democrático]... têm nas cooperativas uma espécie de suporte ou de tripé... para o seu desenvolvimento... (DID REC-131)
Com função de esclarecimento interpõem-se no texto parênteses que detalham dados expostos nos enunciados topicamente relevantes, atendendo à regra de “clareza”, que faz parte do acordo contratual estabelecido entre os participantes da ação discursiva (Betten, 1976). É o que se observa em (2), em que o parêntese, pela menção ao nazismo e fascismo, introduz uma particularização da informação precedente, de que a Segunda Guerra se deu em função de antagonismos ideológicos. (2)
Inf. e muitas vezes a gente tende... a simplesmente explicar uma segunda grande guerra como tendo sido uma guerra ... claro ... não uma guerra de ocupação como foi a primeira... mas uma guerra ... principalmente em função de .. antagonismos ideológicos ... [no caso o nazismo e o fascismo tá? (as) raízes do eixo] ... economia basicamente social e a guerra é o mais social possível ... (EF RJ-379)
Ressalvas, retoques e correções de informações que constróem a centração de um segmento discursivo são três outras funções freqüentes da modalidade de parênteses em questão. Pela ressalva, insere-se uma observação sobre a extensão do significado de uma proposição, que pode ser ampliado ou reduzido, tendo em vista um ajuste do âmbito significativo dessa proposição. Em (3), o parêntese opera uma redução da informação anterior, pela qual a qualidade de raciocínio lógico e abstrato parecia genérica e indistintamente atribuída a todos os membros da classe dos juristas: (3)
Inf. a linguagem ... o raciocínio ló:gico ... abstrato ... do jurista ... [bem claro que não é de TODO ... deveria ser de todo] ... é bonito ... é algo bem pró:prio dele ... (EF REC-337)
135
O parêntese-retoque, como em (4), reformula uma informação precedente, precisando-a por meio da repetição de um elemento nela contido e o acréscimo de elementos diferentes. Já o parêntese-correção, como em (5), embora compartilhe com o retoque a propriedade da reformulação textual, dele se distingue porque anula, retrospectivamente, a informação sobre a qual recai o processo corretor. (4)
L1
e logicamente indo ao banco levando essa proposta eles me trouxeram ... eles me deram de volta uma série de duplicatas para que eu assinasse e ... [eu e o fiador] ... e isso então foi entregue de volta (D2 RJ-355)
(5)
L1
de um modo geral na Europa eu não gasto dinheiro com hotel ... o ano passado eu: ... em dois meses ... paguei dois dias de hotel em Madri ... foi só ... [não ... dois dias eh não ... foi um não um dia em Madri e um dia em Munique] ... quer dizer ... em dois meses eu paguei dois dias de hotel ... (D2 RJ-355)
As funções de inserções parentéticas ressaltadas até o momento, com o objetivo de exemplificar a subclasse dos parênteses correlacionados com o conteúdo tópico, associam-se à construção da referencialidade textual, que se dá de forma momentânea e dinâmica, no desenrolar do ato comunicativo. O encaixe na linha discursiva de exemplos, esclarecimentos, ressalvas, retoques e correções das informações em curso denuncia essa especificidade de monitoração local e contínua no processamento do texto falado, com vistas à produção de um texto capaz de funcionar comunicativamente.
1.2 Parênteses relacionados com a formulação lingüística do tópico Os parênteses atinentes à formulação lingüística do tópico são fragmentos discursivos que se desviam da centração tópica, colocando em foco o sistema verbal que está sendo utilizado pelos interlocutores. Nesse sentido, eles realizam uma função metalingüística, por terem a particularidade de serem enunciados lingüisticos que, reflexivamente, focalizam a própria linguagem. 136
O conceito de metalinguagem pode ser entendido, neste caso, no sentido restrito de exploração do próprio sistema de signos lingüísticos, uma vez que os parênteses metalingüísticos fazem sempre referência ao código do discurso, estabelecendo relações entre signos. No entanto, para uma necessária adequação desse conceito à ótica textual-interativa de nossa pesquisa, é preciso não só levar em conta as relações de signo para signo, instituídas pela metalinguagem, como também as relações entre usuários e signos. Nessa linha, a metalinguagem será vista no seu funcionamento em situação de comunicação, englobando, portanto, fatores do processo de enunciação: locutor dirigindo-se a um interlocutor, e utilizando-se de enunciados metalingüísticos com propósitos interacionais. Sob esse ângulo, recupera-se, como bem o demonstra Borillo (1985), o sentido que Jakobson conferiu à função metalingüística. Jakobson (1969) define metalinguagem como discurso centrado sobre o código, acrescentando a essa definição uma observação relativa a condições enunciativas para a ocorrência de enunciados metalingüísticos: a de que eles decorrem da necessidade de o destinador e/ou destinatário verificarem se estão utilizando o mesmo código, a fim de promoverem a intercomunicação. Essa concepção de metalinguagem, que aqui adotamos, aproxima-se da de metadiscurso, já que, como nas situações de metadiscursividade, é relacionada com o ato de enunciação que dá origem às formulações metalingüísticas (Borillo, 1985). Partindo, então, dessa visão mais ampla, agrupamos, nesta classe de parênteses voltados para a formulação lingüística do tópico, não só as inserções parentéticas que deixam patentes operações metalingüísticas, no sentido restrito de tradução intra-língua, como também as que pontualizam o texto falado com procedimentos de busca de denominações e de confirmação ou rejeição de opções lexicais. Tendo em vista que esta pesquisa tem enfoque interacional, são também englobados, nesta classe, os parênteses pelos quais o locutor, suspendendo momentaneamente o tópico discursivo, declara ao interlocutor que está processando opções lexicais, ou dele solicita colaboração para a escolha de denominações. A título de ilustração, apresentaremos algumas das funções de parênteses que enfocam o processamento lingüístico dos tópicos discursivos. A primeira, de explicitação do significado de palavras, pode ser evidenciada pelo primeiro parêntese assinalado em (6). Ela se manifesta freqüentemente por meio de procedimentos metalingüísticos, em que um termo em137
pregado no texto (no caso, bisonte) torna-se objeto de um comentário sobre o seu significado e/ou referência. O segundo parêntese destacado no mesmo trecho, ao focalizar o significado de veado, já tem uma função mais específica, que é a de explicação do valor de uma palavra no contexto. (6)
Inf. aqui nós vamos ... fazer uma leitura em nível PRÉ-iconográfico nós vamos reconhecer as formas ... então que tipo de formas que nós vamos reconhecer? ... nós vamos reconhecer bisontes ... ((vozes)) ... [bisonte é o bisavô... do touro ... tem o touro o búfalo:: e o bisonte MAIS lá em cima ainda] ... nós vamos reconhecer ahn:: cavalos ... nós vamos reconhecer veados ... [sem qualquer (em nível) conotativo aí] ...e algumas vezes MUIto poucas ... alguma figura humana ... (EF SP-405)
Observando a questão da elaboração lingüística do texto falado, constatamos casos de suspensão momentânea do fluxo informacional motivada pelo encarte, no texto, de segmentos parentéticos reveladores do processamento formulativo: (7)
Inf.
uma vez ... ele era tesoureiro ... outra vez vice-presidente ... outra agora ele é ... eu disse vice-presidente ainda agora ... né? ... mas não ... vice-presidente é o outro ... ele foi no ano passado ... ele é ... [como é que se diz a pessoa que cuida do clube ... que toma ... [não ... não é ecônomo] ... é o que toma conta assim da ... dessa parte ... que ele tem que cuidar dessas obras tudo ... diretor de patrimônio... é isso ... né?] ... então a gente ... quando tem também esses encontros ... (DID POA-45)
O parêntese acima projeta, no desenvolvimento sintagmático do texto um processo semasiológico de estabelecimento do significado do que se quer comunicar (a pessoa que cuida do clube, que toma conta, que tem que cuidar das obras, de tudo), na direção de um processo de designação e, portanto, de seleção onomasiológica, explicitado pelo encarte de outro parêntese (não ... não é ecônomo). O término desse processo de designação se dá com o encontro do termo buscado (diretor de patrimônio). Este parêntese é bastante elucidativo do processo de formulação lingüística do tópico, porque põe à mostra a operação de seleção paradigmática 138
de lexias, para a combinatória semântico-sintática de elaboração dos enunciados, evidenciando a “mise-en-scène” do código. É elucidativo também do processo interacional, porque materializa lingüisticamente a interação com o interlocutor, chamando-o a colaborar na seleção onomasiológica, através da pergunta como é que se diz, introdutora do parêntese, e a confirmar a adequação da denominação encontrada, por meio de outra pergunta é isso ... né?, finalizadora do parêntese. A verbalização do processamento lingüístico do texto promove a função parentética de busca de denominações, que pode vir indicada por vários recursos: a) por expressões como mais precisamente, sobretudo, isto é, quer dizer, que, acompanhadas de uma opção lexical, constituem parênteses que retificam ou corrigem uma outra opção lexical anterior aos parênteses. Mediando as duas opções, tais expressões indicam que a segunda é mais apropriada que a primeira. Em vez das expressões acima citadas, pode ocorrer a alternativa ou introduzindo o parêntese, como em (8), em que a inserção ou precisão provoca um retorno, no eixo sintagmático, ao núcleo do SN precedente (exatidão), substituindo-o, enquanto alternativa de opção lexical mais adequada ao contexto (desenho). (8)
Inf. bom ... outra coisa que nós vamos ver ... nos slides na na aula que vem ... é a extrema precisão do desenho ... eles conseguem chegar a uma fidelidade linear ... da natureza ... à extrema exatidão do desenho ... [ou precisão] ... e eles conseguem chegar ... a é óbvio uma evolução certo? (EF SP-405)
b) por justaposição ou alternância de sinônimos, no interior de um parêntese, que ou podem se excluir, de modo que o último será mais apropriado às necessidades comunicativas, ou podem se reforçar uns aos outros e, por acumulação, transmitir o significado desejado. Esta segunda possibilidade ocorre em (9), em que o parêntese contém uma lista de sinônimos (ou três perspectivas ou três linhas ou três maneiras), que acabam por clarear o significado do SN precedente os três saberes. Observe-se que as alternativas de denomina139
ção poderiam ocupar o mesmo lugar sintático do referido SN, o que demonstra a projeção da escolha paradigmática no eixo sintagmático (Blanche-Benveniste, 1984). (9)
Inf. mos:tra ... num é? nesse trechozinho ... ou nessa citação ... que os três ... saberes ... [ou três perspectivas ou três linhas ou três maneiras] ... de se olhar o direito ... mostra que ... todas três ... na realidade ... definem ... classificam ... e têm ... proposições ... sobre as relações ... pertinentes ao direito ... (EF REC-337)
c) por frases que registram um procedimento metalingüístico pela presença de termos da linguagem-objeto e da metalinguagem, conforme se verifica em (10). O parêntese comporta um termo-objeto (tênis de praia) e um comentário metalingüístico que focaliza esse termo-objeto enquanto expressão (que se chama) e conteúdo (aquilo com raquete). (10) Inf. bom ... o que eu vejo lá na ... na ... praia o pessoal joga muito aquelas raquetes assim ... jogam vôlei ... [ tênis de praia que se chama aquilo com raquete] ... é tênis de praia ... vôlei ... isso que eu vejo na praia ... né? (DID POA-45)
d) por comentários parentéticos do locutor a respeito de uma opção lexical, como em (11), em que o parêntese (a palavra neutralizar não sei se se aplica bem) encerra uma observação sobre a adequação ou não da escolha do verbo neutralizar para descrever a atitude dos países vencedores da Segunda Grande Guerra de ajudarem economicamente o Japão, país vencido. (11) Inf. elas (as economias industriais aliadas que ganharam a Segunda Guerra) resolveram ... trazer ... a economia japonesa para seu lado ... tá claro? ... quer dizer ... [a palavra neutralizar ... não sei se se aplica bem] ... mas resolveram mostrar ao Japão que não eram os inimigos
140
que eles estavam do mesmo lado ... que todos podiam em termos industriais ... se desenvolver ... (EF RJ-379)
e) por expressões como digamos assim, podemos dizer assim, por assim dizer, vamos dizer assim, que precedem ou sucedem uma determinada opção lexical, indicando que a denominação escolhida aproxima-se do que se pretende comunicar, não sendo, necessariamente, o termo mais pertinente. Por meio dessas expressões, o locutor sinaliza, para o interlocutor, uma certa imprecisão na formulação lingüística dos enunciados que produz, antecipando-lhe uma possível “falha” de funcionamento do código, no uso que dele faz. Tais expressões têm, assim, esse intuito interacional e revestem-se de um teor metalingüístico, exatamente porque testam as possibilidades comunicativas dos signos previstos no código. Em (12), o emprego do adjetivo novos é questionado pela expressão digamos assim, tanto que, na seqüência do parêntese, o locutor justifica tal emprego, definindo o espaço de tempo recoberto pelo adjetivo: (12) L2
e agora saíram uns ... uns temperos mais ... mais novos [digamos assim ... porque têm dois anos mais ou menos] ... que é esse puro purê ... (D2 POA-291)
Ainda dentro dessa função de indiciar, por meio da parentetização, o processo de seleção lexical, há casos bastante interessantes para a perspectiva interacional que adotamos, porque destacam a co-participação dos interlocutores na construção do texto. São casos em que o locutor interrompe por momentos o desenvolvimento do tópico discursivo, a fim de, entre parênteses, chamar o interlocutor para dentro do texto, com o intuito de pedir-lhe ajuda para encontrar uma denominação, como em (13), ou delegar-lhe a escolha de um lexema, entre alternativas que lhe são colocadas, como em (14). (13) L1
o governo acha ... o governo acha que a solução do ... do chamado ... [como é o nome?
L2
é a UPC ou ...
L1
é UPC e ...
141
L2
índice de ...
L1
índice de correção monetária] ... é a solução para ... éh ... corrigir a inflação (D2 RJ-355)
(14) Inf. o ser e o dever ser na realidade social... eles se: éh: ... complementam andam juntos ... o ser e o dever ser ou seja o mundo real e o mundo ideal ... ou irreal [eu num num ... como vocês queiram chamar] ... esses dois vi:vem ... lado a lado na realidade social ... (EF REC-337)
1.3 Parênteses relacionados com a construção textual Assim como os parênteses vistos no item anterior, os relacionados com a construção textual são igualmente metadiscursivos, porque põem em evidência, no texto, a sua própria estrutura. Para a análise desse tipo de parênteses, procedemos a uma adaptação do estudo que Borillo (1985) faz sobre expressões e enunciados metadiscursivos indicadores da construção do discurso. Essa adaptação consistiu, em primeiro lugar, em considerar tais expressões e enunciados apenas quando apresentam as propriedades da parentetização, adquirindo, portanto, estatuto de inserção parentética. Em segundo lugar, consistiu em averiguar até que ponto as funções, por ele apontadas, eram igualmente realizadas por parênteses. Pela pertinência que tem para a nossa abordagem textual-interativa dos parênteses, retivemos, de Borillo, a observação de que a função textual de assinalar a estruturação do texto, que esses fragmentos metadiscursivos preenchem, tem a sua contrapartida interacional: esclarecendo a organização do discurso, tais fragmentos facilitam o trabalho de formulação e apresentação do texto falado e, conseqüentemente, de recepção do mesmo De acordo com Borillo, os marcadores de estruturação textual operam em três planos “ligeiramente diferentes”: a progressão lógica, a composição ou disposição e a argumentação. Quanto à progressão lógica, destaca enunciados metadiscursivos que asseguram a progressão seqüencial do discurso, estabelecendo relações anafóricas entre enunciados sucessivos, e assegurando, assim, a coesão e coe142
rência textuais. Pela sua denominação, são marcadores de seqüencialidade, como expressões do tipo: a isto se acrescenta ..., a seguir, em primeiro lugar, a partir daí ..., para completar ..., o que conduz a ... São também marcadores de seqüencialidade os verbos de movimento que indicam progressão no eixo espácio-temporal que cria o discurso à medida que este se constrói: continuar, seguir, chegar a, passar a, levar a. Quanto ao esquema de composição, refere-se a enunciados metadiscursivos que mencionam o lugar e o estatuto de um fragmento de discurso relativamente a uma composição, tomada no seu conjunto. Podem assinalar as diferentes fases de estruturação textual, como introdução, desenvolvimento, conclusão (via expressões do tipo de para introduzir, para concluir, a título de introdução ou de conclusão), ou mesmo conferir, a uma seqüência discursiva, o papel que ela assume no texto, como resumo (em síntese, resumindo, em resumo), ênfase (insisto, sublinho, destaco), informação paralela (entre parênteses), e outros. Em síntese, trata-se de expressões ou enunciados que participam da elaboração discursiva, operando como fatores de integração e organização textuais. No que diz respeito ao esquema argumentativo, Borillo salienta determinados enunciados que têm natureza metadiscursiva por fornecerem indicações sobre como funciona o discurso, em relação a objetivos do locutor de demonstrar movimentos de raciocínio na produção do texto: objeções, concordâncias, suposições, demonstrações, ilustrações (contesto, objeto que, admito, a partir de... concluo que..., confirmo, suponho, contradigo, à guisa de demonstração ou de ilustração, etc.). Levam a um desenvolvimento controlado do discurso, governando a sua elaboração e melhor assegurando a sua compreensão. Partindo dessas colocações de Borillo, analisamos os parênteses do corpus que focalizam a construção textual e chegamos à constatação de que esses três planos, principalmente os dois primeiros, muitas vezes se justapõem: informações parentéticas sobre o esquema de composição do texto podem simultaneamente assinalar progressão lógica de tópico, fazendo remissões a fragmentos discursivos e articulando-os tanto no interior de um tópico, por relações intra-tópicas, quanto na globalidade do texto, por relações inter-tópicas. No quadro das relações intra-tópicas detectamos duas funções parentéticas: a de marcação de subdivisões de um tópico discursivo e a de marcação de retomadas do tópico, no interior do mesmo segmento discursivo. A primeira ocorre em tópicos desenvolvidos por partes ou abordados sob vários aspectos ou perspectivas. Pode ser constatada no exemplo (15), em que o Informan143
te discorre sobre o tópico discursivo proposto pelo Documentador (assuntos geralmente debatidos em assembléias sindicais), subdividindo-o de acordo com a enumeração de itens de pauta das assembléias. O parêntese como já disse fecha o primeiro item referido (vantagens salariais) para introdução do segundo (questão do horário), apontando para o interlocutor a organização interna do tópico com base em uma progressão em etapas. Nesse caso, mesclam-se as funções metadiscursivas de indicação de progressão textual e de esquema de composição, colocadas por Borillo. (15) Doc. Nessas assembléias que assuntos em gerais são debatidos? Inf. bom estas assembléias ... habitualmente elas tratam dos assuntos ... que dizem diretamente ... / que diz respeito ... de assuntos que dizem respeito ... aos: associados ... como por exemplo ... a questão do: aumento ou do piso salarial ... sabemos que a inflação ... reduz o poder ... aquisitivo do nosso povo ... então anualmente o governo ... estabelece ... os chamados ... reajustes ... salariais o governo por exemplo paga aos seus funcionários normalmente um reajuste salarial ... no mês de março ... onde ele estabelece critérios ... onde ele estabelece índices salariais ... baseados em cálculos que são feitos ... se não me engano pela fundação Getúlio Vargas ... que é um órgão ... que po / que é um órgão técnico ... que: normalmente ou habitualmente fornece subsídios ... a todas as entidades ... que a ela que a ele recorrem ou que a ela recorre ... a fim de poder com isto levar adiante suas reivindicações ... junto à justiça do trabalho então habitualmente nessas assembléias os associados tratam ... realmente [como já disse] ... das vantagens ... salariais como também ... os associados ... tratam também a respeito de da questão ... do horário (DID REC-131)
A segunda função atrás mencionada, de marcação de retomadas intratópicas, manifesta-se em parênteses encaixados em segmentos cujo tópico é suspenso por uma digressão e é posteriormente reintroduzido. O segmento abaixo apresenta essa estrutura, visto que o tópico (no início do século a África e a América Latina eram quase que ilustres desconhecidos) é interrompido por uma digressão, a respeito do total de população nesses continentes, e retomado após o parêntese (então como eu ia explicando). Parênteses dessa natureza promovem uma remissão retroativa, anafórica, a algo já dito, estabelecendo coesão entre as partes tópicas cindidas. 144
(16) Inf. no início do século ((ruído)) ... a África e a América Latina ... eram quase que ilustres desconhecidos ... (vo)cês viram ( ) aqui que o total de população ... que o total de população ... no início do século ... na África ... e na América Latina ... era um total ... bastante pequeno ... e que foi a grande taxa ... maior que a da ... na América e na África que fizeram com que hoje ... realmente apesar de uma taxa muito alta .. ainda em termos totais ... tanto a África como a América Latina ... teriam uma população RElativamente pequena em comparação ... à Europa e à Ásia ... [então como eu ia explicando] ... no início do século vinte ou melhor no século dezenove ... só existiam ... a Europa e a ... Ásia ... bom ... formadas ... por ... culturas diferentes ... atravessando situações históricas de feudalismos diferentes ... mas ... tanto a Ásia como a Europa ... já ... passavam por passados ... o que não acontecia com América e com África ... tá? ... (EF RJ-379)
Essa mesma função de retomada tópica aparece também na estrutura global do texto, conectando tópicos distanciados entre si. Assim, informações contidas em fragmentos discursivos de tópicos diferentes são repisadas e os parênteses, que marcam essas retomadas, estabelecem coesivamente articulações na montagem do texto no seu conjunto. Uma terceira função dos parênteses em estudo é a de marcação de fases de estruturação do texto, como introdução, desenvolvimento e conclusão. No exemplo (17), o parêntese (finalizando mesmo) demarca a etapa de conclusão do texto, anunciando a proximidade do seu término. Inserções parentéticas desse tipo põem à mostra o esquema de composição textual, sinalizando suas etapas. (17) Inf. para ele: Durkheim ... primeiramente vem o direito ... o até mesmo os mo:res ... que vocês estudaram ... vem:... de maneira secundária ... o principal já no tempo né? de Durkhein era o direito ... como máximo ... num é? para impor normas ... e ... [finalizando mes:mo] o direito reproduz ... todas as formas essenciais ... e é apenas ... estas que precisamos conhecer (EF RC-337)
A quarta e última função dos parênteses focalizadores da montagem textual é a de marcação do estatuto discursivo de um fragmento no texto. É o 145
caso de (18), em que o primeiro fato de parentetização (olhe antes que eu esqueça ... um parêntese) confere estatuto de parênteses, de segmento encartado em outro, ao trecho que contém a informação de que, na realidade social, o ser e o dever ser se complementam. A natureza parentética desse trecho, no contexto do tópico relativo à ética do dever ser, é reiterada pela justificativa da ocorrência de uma inserção neste ponto do texto, contida no segundo parêntese (talvez eu esqueça isso de futuro ... por isso vou dizendo logo agora). (18) Inf. a ética do dever ser do ou do que deveria ser ainda mais entendeu? ((I.L.A.)) ... [olhe antes que eu esqueça ... um parêntese] ... na realidade social [talvez eu esqueça isso de futuro ... por isso vou dizendo logo agora] ... o ser e o dever ser na realidade social ... eles se: éh: ... complementam andam juntos (EF REC-337)
2. Classe b Parênteses com foco no locutor Integram esta classe as inserções parentéticas pelas quais o falante se introjeta no texto que produz, focalizando representações suas a respeito de seu papel discursivo de locutor-instanciador do discurso, bem como caracterizando o foco enunciativo a partir do qual são persperctivados os tópicos abordados no texto. Essa introjeção provoca desvios do tópico em curso para elementos do espaço discursivo gerador do texto, que repercutem no que é dito. Isto porque os dados enunciativos revelados entre parênteses têm papéis importantes no estabelecimento da significação proposicional, de base informacional, que constrói a centração tópica. Desse modo, os parênteses desta classe, desviando-se de seu contexto, com ele se articulam, por atuarem sobre o conteúdo das proposições criadoras desse contexto (Jubran, 1996 a e b). A introdução do locutor no texto é lingüisticamente expressa por recursos como os estudados por Chafe (1985) para as situações de ego-envolvimento (principalmente uso de pronomes de primeira pessoa) e de envolvimento do falante com o assunto (lexias que manifestam o grau de interesse ou conhecimento do assunto enfocado). A demarcação de uma classe de parênteses centrados no locutor não invalida a perspectiva interacional de nossa pesquisa, visto que parênteses de envolvimento do locutor com sua função enunciativa e/ou com o assunto que 146
aborda resultam, no jogo de intercâmbio verbal, de representações recíprocas dos papéis discursivos e sociais dos participantes do ato comunicativo. Qualificações que o locutor se atribui ou referências sobre suas relações com o que diz permitem ao interlocutor a contextualização das condições sob as quais se produzem sentidos – daí a dimensão interativa da parentetização com foco no locutor. Dentre as funções parentéticas observadas no interior dessa classe, destacamos as abaixo arroladas. a) Auto-qualificação ou auto-desqualificação do locutor para discorrer sobre o assunto.
A auto-qualificação pode ser vista em (19), em que o parêntese atesta a vivência sindical do falante para dizer das deficiências de um sindicato sem sede. (19) Inf. sabemos por exemplo ... [nós que entramos aqui nesse sindicato no ano de mil novecentos e setenta e quatro] ... das carências ... e das deficiências que o sindicato apresentava por não ... possuir uma sede ... adequada ... (DID REC-131)
A auto-desqualificação é registrada em (20), exemplo que põe em destaque a interferência das relações interativas na representação recíproca dos interlocutores. Face a uma pergunta do Documentador sobre as marcações nas estradas da Bahia, L1 sugere que tal pergunta seja dirigida a L2, que é técnico na área. Com essa atitude, traz para o texto uma informação sobre a atividade profissional do interlocutor e se situa, em relação a esse dado, reconhecendose como desqualificado para abordar o tema (eu sou apenas ... um: usuário um usuário das marcações). (20) Doc. como é que são as marcações no estado? L1
como é que são as marcações no estado ... [bom você devia perguntar isso ao técnico e não a mim eu sou eu sou apenas ... um: um usuário das marcações] eu acho que aqui nós já temos certas estradas relativamente bem sinalizadas ... (D2 SSA-98)
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b)Manifestação de interesse ou desinteresse pelo assunto
Em (21), o parêntese introduz no texto um comentário sobre o alto grau de envolvimento, de afinidade, do locutor com o tema. Já em (22), a inserção parentética atesta desinteresse do Informante em desenvolver o tópico proposto pelo Documentador. (21) Inf. sabemos por exemplo ... que o sindicato ... dos comerciários [para falar de um assunto que nos toca ... parti / particularmente] ... possui uma granja na cidade de Carpina ... e que proporciona ... àquela imensa ... leva ... de associados ... um lazer realmente magnífico ... (DID REC-131) (22) Doc. Dona 1. além da participação do artista ... no filme quais os outros elementos importantes na sua opinião para que o filme seja bem sucedido bem aceito pelo público? Inf. fundo musical né? ... eu acho que influi bastante ... eu já falei para vocês cenários né? Doc. uhn uhn ... Inf. [sei lá mais o que] cenário fundo musical ... o tema do filme né? (DID SP-234) c) Desconhecimento do assunto proposto pelo interlocutor
No exemplo (23), o parêntese se encaixa entre a introdução tópica, feita pelo Documentador através de pergunta, e o desenvolvimento do tópico pelo Informante. Assim, antes de responder à questão, o Informante declara ao interlocutor a sua falta de conhecimento sobre o tema, antecipando-lhe a possibilidade de uma resposta precária. (23) Doc. e como é que a senhora acha que é elaborada uma peça de teatro antes dela ser apresentada? Inf. [ah aí você pegou porque eu não sei não] como é elaborada? ... deve ser como na televisão eles preparam o o o::... o a peça ... e:: devem dividir o o os... o o as partes para os artistas deve ter um ensaio meDOnho (DID SP-234)
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Nesta função estão também enquadrados os casos em que o desconhecimento atinge detalhes do assunto, sendo expresso por referências à falta de lembrança de algum dado integrante do tópico discursivo em desenvolvimento, como em (24). (24) L2
o que está acontecendo é o seguinte ... é que o meu ah ... isso ... há um decréscimo em cada prestação ... por exemplo ... eu pago ... [agora não lembro assim de cor ... mas é um determinado número] ... não sei quantas UPCs ... vírgula zero ... zero não sei o quê ... (D2 RJ-355)
d) Manifestações atitudinais do locutor em relação ao assunto
Por meio da parentetização, pode-se manifestar a modalidade, ou seja, “a relação que se estabelece entre o sujeito da enunciação e seu enunciado” (Maingueneau, 1990). Nesse caso, as inserções parentéticas exprimem o modo pelo qual o significado dos enunciados tópicos é qualificado, de forma a refletir o julgamento do falante sobre a probabilidade de serem verdadeiras as proposições expressas por eles. Revela-se, assim, o valor epistêmico que o locutor atribui às proposições tópicas adjacentes aos parênteses, conforme se pode verificar no exemplo (25), em que o parêntese (acredito eu) mostra que o locutor relativiza o teor de certeza e veracidade do conteúdo do enunciado no qual esse parêntese está inserido (normalmente existe um colegiado). (25) Doc. o senhor falou que o presidente pode estabelecer regras ... normas ... de: em torno do sindicato que ele: preside ... essas normas ele decidiria só? sozinho ele decidiria eu quero que seja feito isso isso isso e isso? Inf. normalmente existe ... [acredito eu] ... um colegiado ... é graças a este colegiado ... que o senhor presidente vai evidentemente pautar: suas decisões ...
e) Indicação da fonte enunciadora do discurso Foram detectadas três situações referentes a essa função parentética: – intromissão do locutor no texto, circunscrevendo como foco enunciativo a sua própria perspectiva: (26) L2
uma das coisas fundamentais de qualquer prato ... [eu pelo menos penso assim ... quer dizer ... é a minha opinião] ... é que as pessoas ... ao
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... ao ... ao ... comerem ou ao saborearem um prato fiquem sempre perguntando como é ... como foi feito ... sem que se distinga ... ou possa se distinguir o tempero ... (D2 POA-291) – atribuição da perspectiva sobre o assunto a uma outra fonte de enunciação identificada no texto: (27) Inf. então nós estamos ... numa faixa diferente ... não é mais a faixa da ciência DO normativo ... mas ciência normativa ... que é a ética [ou como disse João] ... a própria domi/dogmática jurídica ... (EF REC-337) – atribuição de pontos de vista sobre o assunto a fontes não identificadas, promovendo polifonia de enunciadores, mediante a qual o locutor se exime da responsabilidade do que é dito ou fundamenta o que diz por meio de evidências baseadas no “ouvir dizer” (Chafe, 1985): (28) Inf.... e ficar em casa tomando seu cafezinho comendo seu sanduíche e e ... ((risos)) e assistindo filme ... eu acho que o que mais prende o pessoal [que a gente ouve e eu vejo o o o os come/ e e eu ouço os comentários] eu acho que são os filmes que passam principalmente nos fins de semana ... agora novelas também né? (DID SP-234)
3. Classe c Parênteses com foco no interlocutor Nesta classe estão os parênteses que materializam a presença do interlocutor no texto falado e fazem referência a condições enunciativas do discurso que garantem a possibilidade de intercâmbio. Preenchem uma função fática e são, sob esse aspecto, acentuadamente interacionais. Apresentam, assim, um grau maior de manifestação do processo interativo na superfície textual, relativamente aos parênteses da classe anterior, sem, contudo, deixarem de ter implicações no que se diz sobre os tópicos discursivos. Ao explicitarem relações de contato entre locutor e interlocutor, tais parênteses evidenciam uma “interação centrada” (Goffman, 1976), de envolvimento conjunto dos partici150
pantes do ato comunicativo na abordagem de temas sobre os quais concentram sua atenção. Eles co-participam da produção de sentidos do texto, dentro de determinadas contingências de interlocução, que podem aflorar no texto sob forma de parênteses. A particularidade dos fatos de parentetização desta classe está em provocar uma suspensão momentânea do tópico discursivo, para, nesse intervalo, colocar em proeminência informações sobre o papel discursivo do interlocutor, seus atributos para exercê-lo e seu envolvimento com o(s) outro(s) participante(s) do ato verbal e com os assuntos abordados. A função fática, comum a todos os parênteses centrados no interlocutor, realiza-se nas subfunções abaixo. a) Estabelecer a inteligibilidade do texto
Neste caso, geralmente ocorrem seqüências parentéticas esclarecedoras das proposições tópicas, com em (29): entre a questão formulada pelo Documentador, introdutora de tópico discursivo, e a resposta do Informante, inserese um par adjacente pergunta/resposta, pelo qual se esclarece o tópico colocado na pergunta inicial. O desenvolvimento desse tópico só tem início após essa “negociação” de inteligibilidade do segmento discursivo em questão. (29) Doc. qual a manifestação que a senhora nota ... ah::: por parte do público ... depois de uma representação teatral? ... Inf. [como qual a manifestação você pergunta? Doc. como é que o público se manifesta ou depois de terminado um ato no intervalo ou depois da peça? ... no que diz respeito à peça em si?] Inf. eu não a:: não acho assim que eles ... aplaudem:: (DID SP-234)
b) Evocar conhecimento partilhado do tópico
O conhecimento do tópico ou de detalhes do tópico sobre o qual se fala, por parte dos envolvidos no ato comunicativo, pode ser dado como consensual. Neste caso, o consenso é demonstrado ou pelo emprego de primeira pessoa do plural, unindo locutor e interlocutor (ex. 30), ou ainda pelo uso de frases declarativas, que atestam que o interlocutor, representado no texto por você, domina aquele conhecimento (ex. 31). 151
(30) Inf. então habitualmente nessas assembléias os associados tratam ... realmente como já disse ... das vantagens ... salariais como também ... os associados ... tratam também a respeito de da questão ... do horário porque [como nós sabemos] a classe comerciária por exemplo ... tem um horário estipulado ... pela lei das conso / pela lei clt ... em torno de: oito horas ... diárias ... quatro horas pela manhã quatro horas ... pela tarde ... (DID REC-131) (31) Inf. não é tão raro o caso de:: polimastia ... poli ... [como vocês sabem] ... é um número além daquele normal ... ou seja mais de duas .... (EF SSA-49)
Em outros casos, o domínio do conhecimento sobre o tópico, da parte do interlocutor, não é afirmado, como acima, e sim requerido do interlocutor, através de perguntas diretas ou indiretas, formuladas pelo locutor, que levam à concessão de turno para o interlocutor: (32) Inf.
o grupo que trabalha em Hair é enorme né? ... [você não assistiu? você assistiu né?
Doc. uhn uhn Doc.2 assisti] Inf.
tenho impressão que ali levou tanto tempo de ensaio ... (DID SP-234)
c) Testar a compreensão do interlocutor
Esta função aparece sempre sob forma de perguntas, muitas vezes estereotipadas, como entendeu? está claro?, que permeiam o desenrolar do tópico discursivo. Há, entretanto, parênteses que fogem a essa estereotipia, expressos por perguntas que incorporam o elemento do tópico discursivo cujo entendimento se quer averiguar: (33) Inf. ele está se referindo exatamente a essa essência tradicional da economia japonesa tá? Quer dizer uma uma situação ... eu vou repetir ... muito diferente do início da economia americana ... [tá dando pra situ-
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ar a diferença?] Uma americana nascendo linearmente ... etc etc e a outra BRIGANDO pra poder nascer ... (EF RJ-379) d) Instaurar conivência com o interlocutor
Por meio de parênteses com esta função, o locutor procura envolver o interlocutor em comentários, avaliações e opiniões suas a respeito do assunto: (34) Inf. mas eu acho que o teatro hoje em dia está:: está indo para um caminho eh tão TANto palavrão tanta ... ((risos)) ... [é um negócio né? fala a verdade] ((risos)) eu tenho assistido umas PEças (DID SP-234) e) Chamar a atenção do interlocutor para um elemento do tópico
O parêntese (35) é inserido em uma citação de Durkheim, feita por uma professora em sala de aula. Essa inserção destaca a necessidade de contato entre professora e alunos, para a devida apreensão de um dado que, provavelmente, é tido como importante naquela situação comunicativa. (35) Inf. “as pessoas que ... [prestem bem atenção] ... a pessoa que no restaurante ... tendo começado pela sopa ... termina pela sobremesa ... e que não deixará em seguida de pedir a conta ... isso é o mais normal ... (EF REC-337) f) Atribuir qualificações ao interlocutor para a abordagem de um tópico
Em (36), L2 dirige uma pergunta a L1 e nela interpõe um parêntese sobre a condição de técnico, de L1, na área de conhecimento envolvida pela pergunta. Com esse parêntese, L2 focaliza o interlocutor no seu papel profissional, que o qualifica para o desempenho de seu papel discursivo: a pergunta é claramente dirigida ao técnico. (36) L2
então porque ( ) ... [você que é técnico nisso] ... essas estradas são bitoladas a sete metros?
L1
(é uma coisa ... veio) da convenção internacional que (dois) metros e meio dá prá passar um carro ou caminhão ... (D2 SSA-98)
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Concluindo esta parte, convém ressaltar que, embora haja uma gradiência crescente de incursão de dados pragmáticos no texto e decrescente de relações com o conteúdo tópico, da classe b (foco no locutor) para a c (foco no interlocutor), ambas as classes provocam um desvio do tópico para os agentes instanciadores da interação verbal, mas, como vimos, atuam sobre as proposições tópicas, porque as ancoram no espaço discursivo que lhes dá origem. Por isso são consideradas em um grau intermediário do contínuo do menor ao maior desvio tópico e da menor à maior manifestação do interacional no texto falado. Cumpre também observar que, no limite entre essas duas classes, há parênteses que as interseccionam, porque deixam transparecer simultaneamente a perspectiva do locutor e a que este pressupõe ser a do interlocutor. Trata-se de parênteses constituídos por negações polêmicas (Ducrot, 1987), que criam uma polifonia enunciativa, fazendo ecoarem duas vozes contrapostas em um mesmo enunciado: (37) L1
seria muito importante para o Brasil que o nordeste crescesse porque:: ... [não é bairrismo não] ... aqui no nordeste está o que há de mais autêntico da brasilidade em termos mundiais ... (D2 REC-05)
O segmento acima traz, para dentro do texto, a informação implícita de que o falante é nordestino, e a de que ele assume uma atitude enunciativa de neutralidade ao falar sobre o Nordeste. Entrecruzam-se, nesse parêntese, dois pontos de vista antagônicos: um positivo, a do enunciador E1, pressuposto como voz do alocutário (é bairrismo declarar P) e outro negativo, a do enunciador E2, assimilada ao locutor, e que se apresenta como recusa da primeira (não é bairrismo declarar P). (Jubran, 1996 b). Há, nesse caso, uma antecipação, pela qual o locutor marca a sua atitude em relação ao seu interlocutor: o locutor atribui ao destinatário um discurso “normal”, um conjunto de opiniões estabelecidas (representação do outro) e, partindo da idéia de que o outro o representaria pelo já sedimentado sóciohistoricamente, previne-se e responde a isso, antecipadamente (Orlandi, 1983). O parêntese aponta, portanto, para o jogo de representações recíprocas que os interlocutores acionam na interação verbal. 154
4. Classe d Parênteses que focalizam o ato comunicativo em si Parênteses dessa categoria promovem um desvio tópico em grau máximo, visto que provocam uma mudança de planos da centração sobre um tópico discursivo para o ato de interagir verbalmente. Os dados introduzidos pelo segmento parentético não são nem relevantes nem concernentes com as proposições tópicas precedentes e seqüentes ao parêntese. Perspectivando dominantemente o ato de comunicação, quebram o fluxo temático para, no interior do texto falado, focalizarem contingências necessárias para a própria existência do ato em si, como: presença de interlocutores, predisposição e envolvimento dos mesmos na situação comunicativa, negociação de turnos, afastamento de ruídos ou quaisquer outros fatos que possam vir a perturbar o canal físico ou o contato entre os locutores, na produção do texto falado. A função textual-interativa dessa modalidade de parênteses reside, então, na garantia da existência da interação verbal e, conseqüentemente, do texto, produto dessa interação. Os parênteses enquadrados nesta classe podem registar as situações abaixo. a) Quebra de condições enunciativas
A interferência de ruídos (perceptíveis na gravação) ou fatos (não recuperáveis, por ter sido o corpus coletado apenas por gravação) pode acarretar uma ruptura na formulação do texto falado. Quando há, no texto, referência a esses ruídos ou fatos, ela assume uma forma parentética, suspendendo por momentos o desenvolvimento do tópico, que é retomado após o afastamento desses dados externos. No segmento (38) há um exemplo dessa natureza, em que o parêntese é precedido por risos, provocados por algum fato interferente no contexto de uma aula. (38) Inf. naquela época ... o que existia eram os bisontes e os mamutes também ... alguns mamutes ... mamute ... vem a ser ... o bisavô ... do elefante ... ((risos)) ... [Betina ... ((vozes))) ... já resolveu? tudo bem] ... bom ... então primeiro em nível de tema ... a seguir ... qual seRIA ... o motivo pelo qual ... eles:: ... começaram ... a pintar ou a esculpir ... estas formas ... (EF SP-405)
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b) Estabelecimento da modalidade do ato comunicativo
Em (39), uma professora interrompe o desenvolvimento do tópico, para estabelecer a participação dos interlocutores e esclarecer a natureza dialógica que quer imprimir à interação em sala de aula. Observa-se que, nessa situação ritualizada de aula, a professora, enquanto locutora que tem ascendência sobre os interlocutores-alunos, determina, além do tipo de interação, o ato de fala permitido aos alunos: perguntas sobre o que diz. Trata-se, portanto, de um parêntese que evidencia condições interativas em uma situação específica. (39) Inf. o povo japonês ... e a população do Japão ... extremamente GRANde pra sua área e extremamente laboriosa no sentido de que ... SABIA que pra conseguir sobreviver ... tá? ... PREcisava AMPLIAR a sua área de atuação ... tá claro isso? [ a aula é gravada mas as perguntas podem ser feitas e devem ... senão fica parecendo monólogo] nenhuma dúvida então? ... quer dizer ... situando ... o Japão ... que a gente conhece e ouve falar de unidade japonesa (EF RJ-379)
O parêntese acima é margeado por dois outros (tá claro isso? e nenhuma dúvida então?), que não estão aqui destacados, por pertencerem a uma outra classe, a dos parênteses com foco no interlocutor, com função de testarlhe a compreensão. c) Estabelecimento de condições para a realização ou prosseguimento do ato comunicativo
Em (40), sucedem-se três parênteses, em situação de aula. Os dois primeiros cortam o desenvolvimento temático da aula, e voltam-se para atos comuns nessa situação (copiar as anotações da lousa), que provocam intervalos na exposição tópica. Nesse contexto, os parênteses em questão funcionam no sentido de averiguação de condições para o prosseguimento da explanação feita pela professora. Já o terceiro parêntese (giz não tem giz) refere-se à verificação de condições materiais para a realização de uma aula, e, portanto, para a eficácia do ato comunicativo que ela encerra. A professora está enumerando os itens da aula sobre região mamária, provavelmente registrados na lousa, e, antes de iniciar a abordagem deles, realiza os parênteses em destaque. 156
(40) Inf. oitavo ... nós temos os vasos ... e nervos ... nono ... é ... e as veias ... [quem ... copiaram? ... vou colocar aqui para lhes passar alguma coisa] ... bom ... então vamos ... [já copiaram tudo?] ... [giz não tem giz] ... bom ... vamos começar ... região mamária:: ... ora nós definimos como sendo região mamária ... a região ocultada pela glândula mamária (EF SSA-49)
d) Negociação de turnos
Parênteses com função de negociação de turnos focalizam uma propriedade fundamental do ato interativo, que é a do jogo pela posse do turno conversacional. O parêntese (41) encaixa-se em texto de aula expositiva. A professora procura manter o seu turno e, evidentemente, o seu papel de domínio, inclusive verbal, da interação em sala de aula. (41) Inf. então vocês notam como o fenômeno jurídico ... é o mais importante ... é a própria organização ... o direito ... no seu caráter então complementando [gente Arnaldo pera aí Arnaldo eu sei que é sobre ... a matéria mas eu tô querendo ... terminar tá certo?] no seu caráter mais estável e preciso ... (EF REC-337)
III. Conclusão Ainda que apresentando apenas as funções parentéticas mais proeminentes e uma amostragem reduzida dos casos estudados, procuramos, neste artigo, demonstrar uma classificação de parênteses, de acordo com as funções textuais-interativas que eles assumem em textos falados. Pudemos comprovar que as inserções parentéticas têm papéis importantes na formulação textual, não podendo, portanto, serem vistas como segmentos isolados. A projeção, operada pelos parênteses, do processo formulativo-interacional na materialidade lingüística do texto leva à contextualização do que é dito na situação de dizer, circunscrevendo os sentidos do texto e orientando sua compreensão. 157
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BETTEN, A. (1984) Ellipsen, Anakoluthe und Parenthesen. Deutsche Sprache 4. BLANCHE-Benveniste, C. La dénomination dans le français parlé: une intérpretation pour les répétitions et les hésitations. Recherches sur le Français Parlé 6. BORILLO, A. (1985) Discours ou Metadiscours? DRLAV 32. CHAFE, W. (1985) Linguistic differences produced by differences between speaking and writing. In: OLSON, D. R., TORRANCE, N. e HILLYARD, A. (eds.). Literacy, Language and Learning. Cambridge, Cambridge University Press. DASCAL, M. e KATRIEL, T.(1982) Digressions: a study in conversational coherence. In: PETÖFI, J. S. (ed.). Text. vs. Sentence. Hamburg, Busque, v. 29. DUCROT, O. (1987) O dizer e o dito. Campinas, Pontes. GOFFMAN E. Replies and Responses. Language in Society 5, 1976. JAKOBSON, R. (1969) Lingüística e Comunicação. São Paulo, Cultrix/EDUSP. JUBRAN, C. C. A. S. (1996 a) Parênteses: propriedades identificadores. In: CASTILHO, A. T. e BASÍLIO, M. (orgs.). Gramática do Português Falado. Campinas, Editora da UNICAMP; São Paulo, FAPESP, vol. IV. ________ (1996 b) Para uma descrição textual-interativa das funções da parentetização. In: KATO, M. A. (org.). Gramática do Português Falado. Campinas, Editora da UNICAMP; São Paulo, FAPESP, vol. V. KOCH, I. G. V. et alii. (1994) Proposta teórica do Grupo de Organização Textual-Interativa do PGPF (mimeo). MAINGUENEAU, D. (1990) Élements de Linguistique pour le Text Litéraire. Paris, Bordas. ORLANDI, E. (1983) Destruição e Construção do Sentido. Campinas, UNICAMP. TENANI, L. E. (1995) Marcas prosódicas de inserções parentéticas. Dissertação de Mestrado. Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP.
158
A HESITAÇÃO
Luiz Antônio Marcuschi (UFPE)
1. Apresentação O presente estudo faz da hesitação um tema de investigação, baseandose na idéia de que, embora típica da fala, a hesitação não é irrelevante como fenômeno lingüístico. Dizer que a hesitação faz parte apenas do “uso” e não do “sistema formal” da língua é tomar a língua como uma entidade que existe “em si e por si”. Contudo, não se pode isolar, de um lado, um objeto típico da língua, “a frase”, e de outro, um objeto do uso da língua, “o discurso”. Ambos estão interligados e se codeterminam funcionalmente. Partindo do pressuposto de que analisar a língua é analisar também usos, adota-se aqui a posição de que a hesitação é parte da competência comunicativa em contextos interativos de natureza oral e não uma disfunção do falante. Embora não se possa defender que a hesitação tenha funções tais como outras unidades da língua, pode-se dizer que ela desempenha papéis importantes na fala: papéis formais, cognitivos e interacionais. É uma atividade textualdiscursiva que atua no plano da formulação textual. Por outro lado, também se defende a tese de que a hesitação não se acha aleatoriamente distribuída, mas obedece a alguns princípios gerais de distribuição e serve como indicação de organização sintagmática da língua. O estudo da hesitação mostra que se o princípio da linearidade é fundamental no uso da língua, ele não pode ser entendido como simples seqüenciação ininterrupta de enunciados da esquerda para a direita, mas um processo multiorganizado. Produzida tanto no nível suprassegmental (pela prosódia) como nível segmental (com elementos formais da língua), a hesitação é a pre-
sença de atividades discursivas na materialidade lingüística, evidenciada numa transcrição fiel da fala.
2. Características da hesitação Blanche-Benveniste (1990) analisa a hesitação no contexto da “denominação”, isto é, das operações de referenciação léxica, que são perceptíveis nos momentos de “repetição, erros, hesitações e buscas da palavra certa” (p.109). A autora restringe-se ao caso da hesitação por repetição, observando-a sob os aspectos da linearidade, referência e denominção. Uma transcrição da fala na forma de grade (num eixo biaxial) deixa claro como o texto “avança” e permite observar que “a repetição de hesitação não concerne à própria sintaxe, mas ao preenchimento lexical das posições sintáticas” (p.113). Assim no caso de: il y a toujours des des des relations interperso entre personnes relations de domination Nota-se que: (a) des: anuncia um sintagma nominal, sem léxico (b) des relations interperso: uma realização lexical pelo nome e pelo elemento de tipo adjetival (c) entre personnes: uma realização lexical pelo elemento adjetivo (d) relations de domination: realização lexical dum nome e novo léxico pelo tipo adjetival. Hesitações deste tipo são uma espécie de “patinação” que permite uma análise de processos sintáticos (como a coordenação e a aposição), processos semânticos (problema da referência) e estratégias lexicais (escolha de elementos). Blanche-Benveniste (1990) sugere que a repetição hesitativa, por exemplo, é um fato fundamental na língua falada e diz respeito à “construção da denominação”. Isto a leva a admitir que “os referentes dos quais o discurso 160
fala não são dados adiantadamente, mas construídos por aproximações sucessivas no discurso”. Assim, a enunciação se dá numa constante interação com o conteúdo do enunciado, o que impede “isolar, de um lado, o objeto produzido pela atividade da língua (o enunciado) e, de outro lado, a atividade produtora dessa língua; ambos acham-se intimamente ligados”. A repetição de hesitação afeta sobretudo as realizações lexicais e não chega a comprometer a sintaxe. Em outro momento, Blanche-Benveniste (1990) postula que a língua falada, por se apresentar como um “borrão” do texto pretendido, do qual nada se apaga, pode ser vista como um laboratório especial da sintaxe. O borrão envolve vários fenômenos de “titubeio” (“bafouillage”), como as hesitações, os retoques, as repetições, as perplexidades lexicais, os comentários e outros. A autora sustenta que tais fenômenos não devem ser eliminados da análise sintática, pois não são aleatórios e sim “regulados pela gramática”, ou seja, são sintaticamente explicáveis. Não obstante isso, surgem muitas questões relevantes ainda não de todo esclarecidas, pois temos que distinguir entre identidade e diferença de referentes a fim de saber se estamos diante de um ou mais de um complemento de um dado verbo em casos de coordenações como o seguinte (1987: 126): Je pense à lui, à lui, à lui. O verbo “penser” tem, em princípio, apenas um complemento e não vários, mas é possível imaginar que nos três casos de lui não se trata de uma identidade referencial. É perfeitamente possível supor a seguinte interpretação: Je pense à lui Paul, à lui Pierre, à lui Jean. As realizações concretas da língua falada, quando contém tais listas, nem sempre supõem identidades referenciais, o que acarreta conseqüências diretas para a análise sintática. Resumo dessa posição da autora é a afirmação de que “le ‘dit’ et le ‘dire’ étaient moulés dans les mêmes moules syntaxiques”(p.150), ou seja, toda a formulação lingüística na fala se dá ao longo de um eixo paradigmático que considera a construção sintática em andamento. James (1972 e 1973) analisa as interjeições e as hesitações mostrando que existem relações sistemáticas entre tais fenômenos e os ambientes em que 161
se realizam. Em Inglês, as interjeições sofrem certas restrições, não podendo referir uma oração ou um elemento externo à sua “ilha de realização”. James, adotando uma posição muito próxima à de Blanche-Benveniste (1990), sugere que a hesitação tem um referente. Além disso, defende que as hesitações são úteis para testar a estrutura de constituintes.Tome-se este caso: That Kay is thinking of a boutique in.. ah .. San Francisco is considered likely by Bob. Aquele “ah” indica que o falante esqueceu e trata de lembrar algo e o mais razoável é que ele tenha esquecido o nome “San Francisco” e não todo o enunciado que produziu a partir daquele ponto. Neste sentido, o referente de “ah” é aquele nome, ou seja, um constituinte. Para James, existe uma diferença notável entre as hesitações e as interjeições que operam nesta perspectiva e outros elementos que não são hesitações e podem referir anaforicamente ou com escopos maiores do que o sintagma da construção adjacente. A tese mais curiosa e polêmica de James é a de que “interjeições e hesitações são uma parte da competência e obedecem a regras gramaticais” (1973: 250). Taylor & Cameron (1987: 125) observam que os diversos modelos de Análise Conversacional deram por certo que existe uma relação particular entre o desempenho conversacional e a estrutura lingüística. Em outros termos, o pressuposto é o de que “todo enunciado conversacional é tomado como uma ocorrência (token) de um tipo (type) de unidade particular e os traços estruturais dessa unidade são definidos pelas regras gramaticais da língua”. Contudo, a relação tipo versus ocorrência implicada nessa formulação não tem sido estudada. Os gramáticos, quando analisam materiais transcritos da fala natural, tendem a editorá-los com sensíveis eliminações de elementos, sob pena de não poderem analisar as frases que têm pela frente. Para Hockett (1958), isto seria um pré-requisito para a análise gramatical. As regras de editoração são as regras usadas pelos gramáticos para idealizar os dados orais, depurando-os de todos os elementos inanalisáveis. Na verdade, observam Taylor/Cameron (1987: 129), os ouvintes em geral também procedem a editorações constantes ao eliminarem, para compreensão, todas as hesitações, autocorreções, autorrepetições, elipses e disfluências do falante. Essas produções representam descontinuidades e são eliminadas pelo ouvinte ou então supridas com inferências locais, como no caso das elipses. 162
Uma hipótese geral percorre todas essas observações de lingüistas das mais diversas procedências e dentro dos mais diveros modelos teóricos, isto é: a hesitação parece ser um fenômeno sistemático na organização sintagmática, mas não faz parte da estrutura dessa organização. Diante dessas posições, nosso interesse é saber em que lugares esse “intruso” se situa e porque ele se coloca precisamente ali. Esta resposta só será possível se considerarmos os fatores textuais-discursivos que comandam os processos e as estratégias de formulação textual. A hesitação tem como característica básica o fato de constituir evidentes rupturas da fala, na linearidade material, em pontos não previstos por fatores sintáticos ou prosódicos, mas que também não são aleatórios. Portanto, a hesitação pode ter motivações discursivas, preservando a fluência, já que a fala, mesmo com hesitações, pode continuar fluente. Assim, fluência discursiva e descontinuidade sintática não formam uma dicotomia, já que dizem respeito a níveis de observação diversos. É provável que, do ponto de vista teórico, esta confusão tenha sido a responsável pela eliminação da observação do fenômeno por parte dos lingüistas que consideraram a hesitação como uma simples disfunção. A hesitação só é detectável no decurso das atividades comunicativas e se caracteriza como a presença de atividades discursivas na superfície lingüística. Idéia semelhante foi defendida também por Koch & Österreicher (1990: 60) ao sugerirem que a hesitação é um mecanismo presente em todas as línguas, que permite introduzir no próprio discurso o processo de formulação “prospectiva”. Parece perfeitamente possível observar a relação da hesitação com o status informacional dos elementos lingüísticos em cujos contextos ou fronteiras ela ocorre. Tem um papel pragmático considerável e não passa despercebida pelos falantes. A hesitação revela as estratégias adotadas pelos falantes para resolverem os problemas que surgem devido ao processamento on line de formas e conteúdos. Isto quer dizer que a hesitação não é uma propriedade ou característica do falante como tal, nem da língua em si, mas um fenômeno de processamento.
3. Aspectos formais As hesitações incidem em determinados fenômenos tais como os seguintes: 163
I. fenômenos prosódicos: pausas, geralmente prolongadas e alongamentos vocálicos; II. expressões hesitativas: “éh”, “ah”, “ahn” “mm”; III. itens funcionais: artigos, preposições, conjunções, pronomes, verbos de ligação; IV. itens lexicais: substantivos, advérbios, adjetivos,verbos; V. marcadores conversacionais acumulados: “sei lá”; “quer dizer sabe”, “então né áh”, etc.; VI. fragmentos lexicais: palavras iniciadas e não concluídas. Esses fenômenos não formam uma tipologia das hesitações. São apenas as diversas marcas empíricas de sua manifestação. Vejamos agora algumas observações sobre cada um desses conjuntos. (I) fenômenos prosódicos: (a) pausas – Nem todos os silêncios são pausas, nem todas as pausas são hesitações. Assim, os silêncios inter-turno (também conhecidos como switching pauses) em geral não são pausas, mas uma manifestação discursiva que pode constituir até mesmo um turno (no caso de um falante permanecer em silêncio na sua vez de fala). Os silêncios intra-turno, com uma certa duração e um padrão entoacional característico são prováveis hesitações, sobretudo se vierem em contextos sintáticos ou junções fonêmicas em que não é prevista a pausa. Neste caso contrastam com as chamadas pausas de juntura que aparecem entre grupos fonêmicos ou nas fronteiras sintáticas entoacionalmente marcadas e não formam hesitações. Parece que a posição da pausa é relevante para determinar se sua ocorrência deve-se a uma atividade de planejamento sintático ou de busca de um item lexical (pela baixa predizibilidade do item procurado). Tomemos o exemplo a seguir, do Projeto NURC: (1)
NURC-SP – 234: 1.132-43:
1
Doc: e o que a senhora considera uma boa peça teatral? (1.60)
2
e o que
3
Inf: eu ach/
4
Doc:
164
que ela precisa conter?
5
Inf: (2.5) conter? ... eu acho que o o o (2.8) como é que eu vou dizer?
6
o que: : (2,5) sei lá (2.8) o que mais a peça nos chama a atenção é o
7
o o: : (1.0) o enredo da peça (0.5) ah ahn os artistas bons porque às
8
vezes né (0.6) eu tenho gostado mas (1.6) eu acho que assisti: : (2.2)
9
você sabe que não guardo nome mas eu assis/ eu
10
Doc:
não o nome da peça não importa
Neste segmento, que tem a duração de 39 segundos, temos precisamente 18.1 segundos (46.4%) de silêncios acumulados com hesitações que também servem para preencher pausas. Nota-se a dificuldade que a informante (INF) tem de expressar sua opinião. Na linha 1, a DOC entrega o turno à INF que por sua vez demora 1.6 segundos para tomar a palavra levando assim a DOC a apreciar isto como dificuldade. Daí sua tentativa de ir em socorro com mais explicitude na linha 4. Mesmo assim, a INF demorou 2.5 segundos para tomar seu turno na linha 5 e prosseguiu cheia de hesitações ao longo de todo o turno. Observe-se que a DOC lançara um novo tópico difícil para a INF, levando-a a indecisões para localizar o foco de sua abordagem. Trata-se de uma dificuldade de planejamento cognitivo refletida na execução lingüística. Ilustrativa é aqui a sequência das linhas 5 e 6 com várias hesitações, sendo uma delas com um marcador metacomunicativo que expressa sua dificuldade “como é que eu vou dizer o que: : (2.5) sei lá (2.8)”. (b) alongamentos vocálicos: Quanto ao alongamento vocálico, temos algumas questões bastante complexas. Em primeiro lugar, é bom lembrar que nem todo o alongamento da vogal é uma hesitação. Há alongamentos que funcionam como coesão rítmica, freqüentes sobretudo na formação de listas. Outros alongamentos (geralmente acompanhados de elevação do tom) operam como ênfase. Os alongamentos de vogais com característica hesitativa vêm sobretudo em final de palavra, principalmente as palavras monossilábicas ou em sílabas finais átonas. Em geral, quando no interior de uma palavra, os alongamentos são coesivos ou enfáticos e recaem em sílabas tônicas. (II) expressões hesitativas: Em geral, estas são as de maior freqüência como formas de hesitação e se constituem de sons que não realizam palavras lexicalizadas. Entre elas estão 165
os áh, éh, ahn, mm quase sempre alongados e preenchendo pausas. Eles são a matéria-prima das pausas preenchidas. Esses marcadores parecem representar sons de alta freqüência no Português e certamente são especializados como hesitativos. Outras línguas também têm seus sons preferenciais e é comum identificarmos um alemão, um americano ou um francês por suas hesitações quando falam Português, mesmo que com grande perfeição. (III) itens funcionais: A noção de itens funcionais cobre todos os elementos lingüísticos que não têm significação referencial, tal como os artigos, as preposições, as conjunções, os pronomes. Os diversos levantamentos estatísticos realizados mostram que em mais de 50% das hesitações encontramos itens funcionais. Por um lado, estes elementos são em sua grande maioria monossilábicos e se prestam para este papel, já que as hesitações realizam-se com palavras curtas, em geral não mais do que duas ou três sílabas, que permitem um alongamento de vogal no final; por outro lado, situam-se em posições sintáticas preferenciais para o surgimento das hesitações, ou seja, no momento de construir um sintagma, como é o caso das preposições e dos artigos. (IV) itens lexicais: Os itens lexicais são menos freqüentes que os formais como constituidores de hesitação. Aparecem os verbos de uma ou duas sílabas em grande parte. Quanto aos advérbios, adjetivos e substativos, eles ocorrem em número bastante limitado. (V) marcadores conversacionais acumulados: Estes fenômenos são os mais problemáticos. Trata-se de marcadores que formam conjuntos que se acumulam num certo momento e realizam-se com marcas prosódicas típicas. Por exemplo; “ah; ontem eu tava lá assim sabe… sei lá…meio cansado” (VI) fragmentos morfológicos: Também aqui a decisão é difícil e parece que não temos condições de distinguir com clareza entre hesitações e correções. Muitos fragmentos de palavras constituem momentos de autocorreção. Por isso a fronteira entre correções e hesitações é, neste caso, muito tênue. Vejam-se estes exemplos: 166
– essa ul/ a última eu não lembro não – dep/ antes de Hair eu assisti um outro uma outra peça – prefiro ficar assi/ a a aqui assistindo televisão sabe? Este tipo de hesitação opera como o prenúncio de uma correção e não como correção, já que esta só pode ser de algo que já veio. A correção é, portanto, uma solução a um dado problema de formulação de caráter “retrospectivo”, em oposição à hesitação que é produzida na “prospectiva”. Da mesma forma que no caso da repetição, toda a correção que visa a reformular um item devido a uma má seleção futura ou na prospectiva, temos um caso de hesitação. A classificação acima tem vários problemas. Alguns parecem casos de busca (caso dos alongamentos e dos fragmentos) e outros seriam estratégias (caso dos marcadores) e alguns podem ser problemas de seleção (caso dos itens formais e lexicais). Na realidade, todos são fenômenos do processamento. Além dessa dificuldade, há ainda outras como as apontadas por Crystal (1969), para quem a hesitação deve ser considerada entre os fenômenos paralingüísticos situados no nível da prosódia. Ao descrever os tipos de sons ou preenchimentos de pausa com suas características acústicas, Crystal julga discutível incluir a pausa preenchida entre os traços prosódicos, já que do ponto de vista fonético elas não o são, pois não fazem parte dos suprassegmentos como no caso do silêncio. “É melhor ver nas pausas preenchidas um dos pontos em que o sistema prosódico do Inglês inicia sua imersão no não prosódico”, conclui Crystal, pois esses sons estão a um passo de todo tipo de vocalização e a vocalização está a um passo do léxico inteiro. De resto, Crystal observa que: (i) a distinção entre pausa de juntura e pausa de hesitação é questionável por se basear em noções gramaticais não bem definidas. De igual modo, a distinção entre itens lexicais e itens de função é questionável. (ii) a distinção entre pausa silenciosa e pausa preenchida foi recebida de forma não-crítica, já que existem gradações entre ambas. Também não foi notada a relação dessas pausas com outros fenômenos prosódicos como o tempo e o ritmo. (iii) qualquer afirmação razoável sobre o aspecto idiossincrático no uso da hesitação deve ser reportada tanto à distribuição relativa quanto à absoluta. Dois indivíduos podem ter o mesmo número total de pausas hesitativas, mas uma distribuição completamente diversa. Será necessário definir medidas e critérios gramaticais para determinar o que é idiossincrático ou não. 167
4. Classificação das hesitações A tipologia das hesitações aqui sugerida segue a praxe usual na literatura a esse respeito1 . Considerando os recursos acima apontados, proponho a seguinte classificação: i. pausas não preenchidas (PNP) ii. pausas preenchidas (PP) iii. gaguejamentos (GA) iv. repetições hesitativas RH) v. falsos inícios (FI) Como se observa, dá-se aqui uma redução de tipos em relação a outras classificações por mim feitas. Em outras oportunidades, eu distinguia mais dois tipos: (a) marcadores conversacionais hesitativos (tipo que foi incluído no conjunto das pausas preenchidas, já que têm um funcionamento semelhante) e (b) cortes oracionais (agora incluídos nos falsos inícios, já que se aproximam dessa classe). Os tipos aqui identificados podem ser assim caracterizados: i. pausas não preenchidas (PNP): silêncios prolongados que se dão como rupturas em lugares não previstos pela sintaxe (cortes de estruturas sintagmáticas) e pelo fluxo da fala – não gosto muito de: filme (0.5) muito triste – tem um restaurante com o nome (3.0) também não lembro ii. pausas preenchidas (PP): ocorrências de marcadores de hesitação do tipo “éh”, “mm”, “ah”; alongamentos vocálicos com características hesitativas e marcadores conversacionais acumulados – e um professor de São: : SÃO Caetano do Sul ...éh: : ele dá aula: : ... no serviço social – o que me chama muito atenção? ...ah... é roupas éh: : ... cenários – o papel que ele está desempenhando ...ah... que eles éh éh a gente perceba – tem um grupinho que nós... éh... um grupo assim: : da minha idade 168
– que realmente está trabalhando: bem: : sei lá: : não sei: : tem tantos artistas bons iii. gaguejamentos (GA): repetições de unidades inferiores a um item lexical e pedaços de palavras iniciadas – o cenário de Hair é uma ma/ MAravilha – aquela artista f/ famosa iv. repetições hesitativas (RH): as repetições julgadas não significativas semanticamente, geralmente repetição de itens formais –
o que a senhora o que a senhora mais gosta
– olha nem sei viu?... o que o que falar – de acordo com o que ele tá... tá fazendo – a última peça foi com aquelas aquela aquela artista – a as minhas amigas vão vão sempre a teatro quase ...quase sempre v. falsos inícios (FI): todos os inícios de unidades sintáticas oracionais, que são iniciados com algum problema e refeitos ou retomados, o que distingue este tipo dos cortes oracionais que são construções abandonadas. – agora eu tenho u/ a as minhas amigas vão vão – dep/ antes de Hair eu assisti um outro uma outra peça – essa úl/ a última eu não lembro – eu acho que uma: : ... a última peça – eu acho que o teatro tá... tá tão/ não sei eu vou
5. Freqüências das hesitações Uma análise de 11 textos do NURC (selecionados 21 minutos de cada um para estudo, com o objetivo de homogeneizar o volume de fala, já que os eventos são desiguais em tempo, nas coletas originais) deu os resultados gerais apontados na Tabela 1 que registra as quantidades de hesitações encontradas, excluindo-se as pausas não preenchidas (PNP) pela dificuldade de identificálas com segurança sem instrumentos de medidas acústicas. 169
Tabela 1: Ocorrências de hesitações no corpus Textos
Quantid. de textos
Hesitações
NURC-D2
6
408
NURC-DID
2
178
NURC-EF
3
101
11
687
É relevante observar que uma hesitação pode dar-se com vários elementos lingüísticos (repetidos), sendo que neste caso teremos mais ocorrências de material lingüístico do que hesitações. No geral, temos dois elementos concorrendo para a construção de uma hesitação. Por exemplo: uma preposição alongada e repetida como neste caso – comentário de: de: de Temos aqui 1 hesitação mas 4 ocorrências de fenômenos, ou seja, dois alongamentos e uma preposição duplicada. Este é um problema para a estatística, pois não se trata de quantidade de elementos produzidos e sim de fenômenos hesitativos. Em outros casos, quando a hesitação se dá como presença de um dado fenômeno, por exemplo, um artigo ou uma preposição, a preposição ou o pronome conta apenas uma vez, sendo que uma das entradas é sua presença necessária e regular. Veja-se este caso: – cê vai...cê vê em Londres cê cê olha um mapinha Apesar de ocorrerem dois “ce” só contabilizamos um deles para hesitação, pois um deve permanecer como regular na estrutura. Uma vez feita essa observação, verificamos que para as 687 ocorrências de hesitações, temos a ocorrência de 1.283 fenômenos formalmente identificáveis na estrutura de superfície. Um dado interessante neste contexo é a presença de itens funcionais nas hesitações com um total de 529 itens (529/ 170
1283 = 41.2%), ao passo que itens lexicais perfazem um total de 151 formas (151/1.283 = 11.7%). O percentual de itens funcionais é revelador e sugere que as hesitações são de fato momentos de planejamento on line que interferem no processamento. A Tabela 2 traz os totais para cada um dos fenômenos identificados. Note-se que estes números não correspondem à quantidade de hesitações e sim de elementos que entram na sua composição. Assim, os 1.283 fenômenos aqui contabilizados distribuem-se nas 687 ocorrências de hesitações. Tabela 2: Freqüência das formas em cada classe CATEGORIAS I. Manifestões prosódicas – alongamentos vocálicos II. Marcadores hesitativos – eh (repetidos ou não) – ah – ahn III. Palavras funcionais – artigos – preposições – conjunções – pronomes – verbos de ligação IV. Palavras lexicais – substantivos – verbos – adjetivos – advérbios V. Mcs acumulados VI. Fragmentos lexicais
NURC-D2
NURC-DID
NURC-EF
TOTAIS
217
92
54
363
58 28 7
14 7 –
13 1 3
85 36 10
103 95 66 51 34
47 35 16 27 7
17 9 9 10 3
167 139 91 88 44
12 40 4 21 29
14 15 – 19 6
9 8 5 4 1
35 63 9 44 36
50
11
11
72
Considerando os quatro gêneros de texto trabalhados, observa-se uma notável consistência quanto à freqüência de fenômenos. Dois fatos saltam à vista de imediato. 1 – O marcador hesitativo por excelência da língua portuguesa falada é o eh ou éh, que aparece com o maior percentual em todos os textos e níveis de formalidade enquanto tipo. 171
2 – A classe de palavras menos usada e menos presente em todos os gêneros de texto e graus de formalidade textual é o adjetivo que em muitos casos sequer ocorre. Aliás, convém observar que os adjetivos de um modo geral são uma categoria muito pouco presente na fala (a escrita tem cerca de 4 vezes mais adjetivos que a fala). Retirando-se o total de 363 alongamentos de vogais, já que neste caso não se tratava de um tipo de palavra e sim de palavras já contabilizadas em algum outro momento, as freqüências foram, em percentuais arredondados: 1 – artigos
18 %
2 – preposições
15 %
3 – marc. de hes.
14 %
4 – pronomes
10 %
5 – conjunções
10 %
6 – fragm. lexicais
8%
7 – verbos plenos
7%
8 – advérbios
5%
9 – verbos de ligação
5%
10 – substantivos
4%
11 – MCs acumulados
3%
12 – adjetivos
1%
Notável é o fato de que mais da metade das formas são constituídas por artigos, preposições, conjunções e pronomes, o que revela que esses elementos representam os momentos críticos na construção sintagmática. Por outro lado, convém ressaltar que os fragmentos lexicais, os MC acumulados e os marcadores de hesitação não constituem categorias gramaticais, o que poderia acentuar ainda mais os percentuais acima. É interessante considerar os vários elementos lingüísticos nas categorias. Vejamos mais de perto este fato: – Os artigos mais freqüentes são o/os (97) e a/as (64). – Os artigos indefinidos um/uns (31) e uma/umas (25). 172
É importante não perder de vista que muitas hesitações são constituídas de vários artigos repetidos, inclusive de artigos masculinos, femininos e indefinidos numa mesma hesitação. Por isso mesmo, esse número tão alto de artigos constitui cerca de 40% de casos de hesitações como tal, ou seja, os aproximadamente 200 artigos só contabilizam uns 80 casos de hesitação, pois eles se acumulam. – No caso das preposições temos a freqüência maior para de/do/da/ dos (135) – e em seguida vêm em/no/na/num/numa (35). – as demais preposições foram: com, pra, até, a, entre, sem, sobre Também aqui temos algo similar ao que ocorre com os artigos, sendo no entanto a relação de ocorrências de hesitações constituídas por preposições levemente superior ao caso dos artigos, isto é, em torno de 50%. Isto sugere que é mais fácil encontrar a preposição certa (em caso de dúvida) do que o artigo, já que encontrar o artigo significa ter decidido que nome foi escolhido. Isto pode sugerir que as hesitações têm diretamente a ver com o problema da construção da referência, tal como frisava Blanche-Benveniste (1990). – As conjunções mais freqüentes foram e (41), que (30), – seguindo-se, mas, ou, como, daí, já, então, se. O número de hesitações constituídas por conjunções apresenta em torno de 30% das ocorrências de hesitações. – Finalmente, para os pronomes dá-se que o mais freqüente foi eu (36) – seguido de ele, você, tu e então outros como os demonstrativos isso, esse, – aquela e alguns possessivos como minha, meu, sua. A relação entre ocorrência de formas pronominais e casos efetivos de hesitação foi aqui um pouco inferior a 50%, ou seja, a cada dois pronomes em contextos hesitativos, um constituía aproximadamente uma hesitação. Seguindo esta linha de análise vemos que no caso dos nomes, verbos e advérbios a situação fica ainda mais rarefeita, estando eles com uma relação aproximadamente em torno de 25%. Somente no caso de fragmentos lexicais é que se dá uma relação de aproximadamente 100% de fenômenos, ou seja, cada vez que aparece um fragmento lexical temos efetivamente uma hesitação. 173
Como os alongamentos de vogal contribuíram com cerca de 20% das marcas de hesitação, podemos distribuir equitativamente esse percentual entre as categorias, com um peso um pouco maior para as palavras funcionais, já que são em geral as mais curtas, quase nunca recebem tonicidade na entoação e são as mais freqüentes. Algumas conclusões básicas ressaltam neste momento: 1 – as palavras funcionais são as formas lingüísticas mais freqüentes como material lingüístico para constituir as hesitações; 2 – há um som característico em língua portuguesa para se hesitar; 3 – ao contrário do que estamos acostumados a pensar, as hesitações são menos freqüentes do que outros fenômenos característicos da fala, tais como as repetições e os marcadores conversacionais; 4 – por fim, vale ressaltar que o predomínio das palavras funcionais na construção de hesitações sugere que as hesitações são um indicador de planejamento sintático e cognitivo e não uma estratégia de formulação textual.
6. Distribuição das hesitações No item anterior, foi observada a distribuição da hesitação sob o ponto de vista das formas. Interessa agora situar a hesitação na estrutura lingüística e investigar se há alguma regularidade sob o ponto de vista estrutural em termos de posições preferenciais ou canônicas da hesitação. A maioria dos estudos sobre as hesitações sugere que elas ocupam posições bastante regulares dentro da estrutura lingüística. A análise dos materiais do Projeto NURC evidenciaram algumas posições como as mais freqüentes. Antes de mais nada, parece muito oportuna uma observação de caráter geral quanto às posições da hesitação na estrutura sintática, pois é bastante problemática a análise de fenômenos lingüísticos da fala tendo por base unidades como a frase ou outras similares. Neste caso, há uma justificativa bastante clara que permite utilizar a frase como unidade básica para a distribuição da hesitação na estrutura lingüística. Os argumentos são os seguintes: (a) a unidade sintática chamada frase é bem conhecida em sua estrutura e dispõe de uma metodologia de análise passível de operacionalização 174
(b) a fala, embora tenha unidades funcionais que não podem ser identificadas com a frase em sentido estrito, como mostraram muitos estudos, não pode superar a condição geral a que estão submetidos todos os usos da língua, que é a sua organização em enunciados estruturados em frases (c) como mostrou Chafe (1982 e 1985) em suas análises a respeito da relação entre fala e escrita, os enunciados da fala e as frases analisadas pela sintaxe do sistema abstrato da língua têm um alto índice de coincidência. Esses argumentos permitem que usemos, mesmo que com cautela, a noção de frase para analisar a distribuição das hesitações na estrutura frasal. A hipótese é de que haja uma certa regularidade nesta distribuição. À primeira vista, há cinco posições típicas para as hesitações, considerando-se a organização da frase. O interessante é que em todos esses casos não se prevê rupturas, seja por pausa ou outra marca qualquer. (a) entre o sujeito e o verbo (b) entre o verbo e o complemento (c) entre o complemento e os adjuntos (d) entre um determinante e seus membros constituintes (e) entre uma oração e outra Uma análise detalhada mostrará que, efetivamente, a maioria das hesitações distribui-se nesses lugares, tendo algumas preferências, mas também algumas inibições bastante sistemáticas, como já foi notado em outros estudos para o Português. Pode-se dizer que as hesitações não correm com a mesma intensidade em todos esses pontos. Também há uma diversidade em se considerando as categorias gramaticais. Vejam-se, por exemplo, essas brevíssimas considerações preliminares, levando em conta apenas a questão da pausa na sua relação com alguns fatores: (i) em geral, pode-se dizer que uma pausa entre S e V numa frase, seria uma hesitação, mas sabemos que nem sempre é assim. Por outro lado, as pausas ditas silenciosas e preenchidas parecem não se equivalerem funcionalmente. Há autores (cf. Beattie e Butterworth, 1979) que postulam uma complementaridade entre pausas hesitativas silenciosas e preenchidas, observando que as silenciosas vão progressivamente diminuindo caso tragam conseqüên175
cias negativas para o falante, como por exemplo a perda da palavra com maior freqüência. (ii) também parece que há uma relação entre certas construções sintáticas e a presença maior de pausas, tendo-se observado, por exemplo, que construções com relativas têm menos pausas do que construções de grupos nominais ou construções de orações substantivas. (iii) um aspecto interessante também já observado por Mollica (1984: 145) é o de que que os pronomes pessoais inibem a presença de pausa. Por outro lado, os determinantes e os itens de função como preposição e conjunção favorecem o surgimento da pausa. Caso haja hesitações no sujeito pronome, isso se dá preferencialmente como alongamento de vogal ou repetição do item. (iv) parece que a posição da pausa é relevante para determinar se sua ocorrência deve-se a uma atividade de processamento sintático ou de busca de um item lexical (devida à baixa predizibilidade do item procurado). Tomemos o exemplo a seguir, do Projeto NURC, já utilizado no início deste trabaho: NURC/SP, INq. 234: 1.132-43: 1
Doc: e o que a senhora considera uma boa peça teatral? (1.60)
2
e o que
3
Inf: eu ach/
4
Doc:
5
Inf: (2.5) conter? ... eu acho que o o o (2.8) como é que eu vou dizer?
que ela precisa conter?
6
o que: : (2,5) sei lá (2.8) o que mais a peça nos chama a atenção é o
7
o o: : (1.0) o enredo da peça (0.5) ah ahn os artistas bons porque às
8
vezes né (0.6) eu tenho gostado mas (1.6) eu acho que assisti: : (2.2)
9
você sabe que não guardo nome mas eu assis/ eu
10
Doc:
não o nome da peça não importa
Neste segmento de 39 segundos de duração temos 18 segundos (46%) de silêncios acumulados com hesitações para preencher pausas. Trata-se de uma dificuldade de natureza cognitiva (falta de memória) refletida na dificuldade de execução lingüística. Parece que a busca em grupos nominais é um problema sério para os desmemoriados. 176
O exemplo acima é importante porque ele levanta a hipótese de que não é só na estrutura sintática que se deve buscar as hesitações, mas também no aspecto cognitivo e no processamento lingüístico que tem a ver com a seleção lexical. Uma observação geral é a de que a posição mais freqüente da hesitação se acha sempre na construção de sintagmas. É pouco freqüente que as hesitações se situem em fronteiras externas aos sintagmas ou entre um sintagma e outro. Isto permite sugerir que a hesitação é um fenômeno que indica a dificuldade de construção de constituintes oracionais. Por vir no início de estruturas, parece que a hesitação de fato se relaciona com o planejamento lingüístico e como mostrou James (1972) ela é um orientador para a aferição da estrutura sintagmática da língua. Na perspectiva da organização textual-discursiva, estes dados são de extrema importância por sugerirem que os falantes, ao estarem muito atentos aos aspectos relativos à própria interação, se voltam menos para os processos formulativos do conteúdo. As hesitações, ao contrário das repetições, por exemplo, não são estratégias de formulação textual e sim indícios ou sintomas de dificuldades de processamento cognitivo/verbal localizado na estrutura sintagmática. Além disso, como já lembrado, estas características estruturais fazem com que a hesitação se distinga de modo bastante claro dos marcadores conversacionais, cuja posição canônica é outra, ou seja, no exterior de fronteiras sintagmáticas e desligados das estruturas como tal, e por isso com funções discursivas muito nítidas. Vejamos aqui alguns do pontos em que as hesitações aparecem: i. na construção de grupos nominais (a) { artigo } nome – numa faixa média a a: a comunicação pode – temos certeza de que o o o homem precisa (b) nome { preposição } nome Este caso é de alta freqüência e surge em sintagmas nominais em geral de caráter explicativo. Vejam-se estes casos: – como conseqüência de uma de de uma comunicação – em termos de de de uma crise moral – tentativa (mundial) de de de de arquivamento 177
– problema do do do retrato – é parecido com a bola de de de bilhar ii. na junção do grupo nominal sujeito com o verbo SN { hesitação } verbo – porque se uma emissora ah: : .. for transmitir éh: : Hamlet ou então quando se põe o sujeito após o verbo como em: – e o que é que diz o o o Rotary? iii. nas construções verbais transitivas Podem ser construções tanto com objeto indireto (preposicionadas) ou com objeto direto (com artigos entre o V e o Comp.): V
{ prep./art. } N/V inf. – estamos nesse nesse nese século – foram obrigados a a a importar – falando éh éh éh com problemas – chegar áh áh áh então à conclusão – estamos falando agora aí de de de Gabriel Garcia Marques – tiveram a: : éh: áh uma crise de cultura – for transmitir éh: : qualquer coisa – você deve éh: : fiscalizar – ter éh éh éh preocupações – você liga sua sua sua seu aparelho de TV – tá criando uma uma cul um uma criança – transmitir éh éh áh Hamlet
ou alguma variação deste mesmo tipo em que o V tem um circunstancial (de lugar ou de tempo) antes do objeto direto, como em: – ele estuda em Paris o os os o número iv. na construção de sintagmas adjetivais ou adverbiais (a) N {...} adj – até onde existe uma uma: : realidade éh éh áh objetiva? 178
(b) Adv {...} N – em virtude do de da do fato – junto da: junto da: junto da janela – há cerca de: ... de de um ano – em torno do da da doença v. na junção de orações subordinadas Um caso dos mais comuns é o da junção de subordinadas integrantes com que ou qualquer tipo de subordinação (no momento de selecionar a conjunção). V + {que/conj} V – eu acho que tá tá tá em tempo de fazer – você vais achar que que que vai melhorar – sempre digo que que que precisa fazer – agora... eu acho que: : ... eu... espero: : ... não ter problemas – para ver se: : ... se começa a falar mais rapidamente – e o governo se advirta de que: : .. educar o adulto é bom – homens cultos porque: : .. éh: se eles não tinham analfabetos
vi. na junção de orações coordenadas Tanto faz se aparece ou não o conectivo unindo as orações: oração 1 {...} oração 2 – falsificando a cultura éh éh a e prostituindo a arte – nós paramos no sexto filho e: : ... estamos muito contentes vii. na construção de negações e disjunções (a) no uso da negação: – você não não não não tá dialogando – mas não não não é um grande livro – eu não não não absorvi 179
(b) em disjunções: – aceite Hamlet ou: : ... ou cultura evidentemente satisfatória – falsa cultura o o a a a ou ou cultura medíocre Quanto à relação entre as posições sintáticas e os tipos de hesitação, a questão é bastante complexa, pois depende de uma definição muito clara tanto dos tipos como das posições. Como isto é bastante problemático, já que a hesitação aparece em muitas posições, mas sempre na formação de algum sintagma, aqui são dadas algumas observações genéricas. (i) As PNP situam-se em três lugares característicos: (a) no interior de um sintagma (b) no final de uma unidade ideacional (c) na troca de turno. (ii) As PP são freqüentes no encadeamento de elementos de uma listagem, na seqüência de orações e na formação de séries em geral. (iii) As RH aparecem no início de sintagmas que formam o sujeito, na produção de predicados, na realizacão de complementos preposicionados, nos verbos de ligação e na seleção de artigos, pronomes e preposições. Tal como em outros estudos, também aqui notou-se uma parcela mínima de repetições hesitativas de mais de uma palavra. Além disso, é de notar que quase todos os elementos repetidos têm entre uma e 3 sílabas, sendo raros os casos com mais de três sílabas. A preferência absoluta é por itens de função. Em termos de quantidade, as RH são o tipo de maior freqüência e por isso mesmo os mais espalhados em todos os momentos da organização sintática. (iv) As FI são construções incompletas, geralmente não retomadas e soltas ou retomadas com outro rumo. As FI precedem uma outra construção e funcionam como um aviso das dificuldades de engate. (v) As GA são pouco comuns e surgem com nomes, adjetivos e verbos dando a impressão de serem correções entoacionais, seja do ritmo da unidade iniciada ou da produção do item realizado. São de baixa freqüência. Às vezes aparecem como indicadores de dificuldade de identificação da classe do item lexical selecionado. Uma observação comum a todas as análises sobre a hesitação é que elas situam-se de preferência na cabeça das construções sintagmáticas, em 180
geral à esquerda do núcleo de qualquer constuinte em construção. São menos freqüentes as hesitações em posições marginais de constituintes ou à esquerda e direita de constituintes completos. Já no caso dos marcadores conversacionais dá-se quase o inverso. Os exemplos trazidos acima mostram que é pouco comum as hesitações romperem sintagmas, pois elas são atividades construtivas. Elas são uma espécie de “titubeio” que sinaliza uma reorientação sintagmática, mas raramente uma ruptura ou um abandono de sintagmas, até mesmo naqueles casos dos FI. Assim, do ponto de vista da orientação, as hesitações operam na prospectiva, ou seja, referem ou indiciam e sinalizam constituintes futuros, numa atividade para-catafórica.
7. Papéis da hesitação Uma análise dos resultados até aqui obtidos a respeito das formas e posições da hesitação sugere que ela interfere particularmente na enunciação discursiva (refletindo condicionamentos pragmáticos) e nas atividades cognitivas (refletindo-se no processamento da compreensão).1 No geral, ela não chega a comprometer a gramaticalidade dos enunciados. Isto chega a ser surpreendente, mas se tirarmos as hesitações, veremos que elas não tinham papel sintático algum. Mesmo seus papéis pragmáticos e discursivos são secundários em relação ao discurso, mas não irrelevantes. A tese central aqui defendida é que a hesitação, ao contrário de outras características da fala, tais como a repetição, a paráfrase, a correção, as parentetizações e os marcadores conversacionais, não tem funções sistemáticas no plano da formulação textual. Isto não significa, porém, que a hesitação é vista como uma simples disfunção da fala. Significa que seu papel é muito mais o de sugerir os sintomas de um processamento em curso do que o de propor alternativas de formulação textual-discursiva. Portanto, é fundamental ter presente que a hesitação é aqui vista como um índice problemático da formulação e não como uma atividade formulativa. Macklay/Osgood (1959) observam que quando o falante tem pouco controle do seu turno, ele produz pausas silenciosas maiores, mas quando quer manter o controle do turno as pausas silenciosas diminuem na quantidade e na duração, entrando aí as pausas preenchidas, pois o silêncio pode levar à perda do turno. Assim, falantes menos fluentes têm dificuldade de manter o turno. Segundo Rochester (1973: 75), isto teria algumas conseqüências interessantes, tais como: 181
(a) essa correlação vale mais para os diálogos e menos para monólogos; (b) os silêncios aumentam em final de turno e em final de tópico; (c) há maior equilíbrio desses fenômenos quando o número de falantes é constante, aumentando o preenchimento no caso de variação de falantes potenciais; (d) acentuam-se os preenchimentos quando o falante carece de meios visuais para controle de seu turno, como no telefonema. Isto parece comprovar a interferência das variáveis de caráter interacional. Para o caso (d), Rochester (1973: 76) postula dois tipos de variáveis que entram em ação: (i) variáveis mediadoras: tais como mudanças na situação da audiência e predisposição para responder aos ouvintes; (ii) variáveis de controle: número de falantes, desejo individual de tomar a palavra. As variáveis de (ii) tendem a reduzir o tempo e o número de pausas silenciosas, sendo as de (i) indiferentes a isso. Assim, torna-se interessante investigar a influência do tipo de falante e do tipo de participação do falante na relação com o tipo de texto produzido. Ao analisar as impressões que as hesitações das testemunhas causam nos advogados em depoimentos na Justiça, Walker (1985) defende a tese de que “em situações nas quais questões de verdade são importantes, o silêncio é uma faca de dois gumes por natureza; uma face representa a necessidade cognitiva do falante de organizar o pensamento e a outra a necessidade do ouvinte de atribuir motivos para uma quebra no fluxo da fala”. Esta cabeça de Janus da hesitação e do silêncio torna-os significativos e funcionais sob o ponto de vista da interpretação.2 Chafe (1985), postula que a hesitação só pode ser analisada em situações concretas de uso da língua e por isso não foi tratada nos estudos lingüísticos dominantes, já que estes se ocupam com “falantes ideais”. Ao se investigar a fala, a hesitação se torna uma espécie de medida para verificar processos cognitivos e estratégias lingüísticas que se dão na textualização em tempo real. Chafe observa que na fala as idéias são produzidas em blocos não necessariamente longos nem completos do ponto de vista gramatical. As hesitações seriam uma espécie de indicador desta atividade, seja de suas facilidades ou dificuldades. A tese de Chafe (1985: 79) é a de que o falante produz hesitações para busca do foco. Observa, por exemplo, que quando alguém inicia uma narrati182
va, ele hesita até encontrar o foco. O mesmo poderíamos dizer numa correlação com a introdução do tópico. Pode-se hesitar na hora de determinar o foco do novo tópico e isto com maior freqüência quando o tópico é mais dificil, como observou Rochester (1973). Esta tese de Chafe é de interesse aqui porque guarda uma correlação muito estreita com os nossos achados anteriores. Explica-se, assim, por um outro caminho, porque as hesitações acumulam-se no início de produções discursivas, sejam elas no plano formal das estruturas sintáticas ou no plano discursivo-textual da formulação enunciativa. As dificuldades acumulam-se nos primeiros passos e não nos finais. É um fato que as hesitações ocupam sempre posições iniciais, seja no contexto da formulação dos tópicos, seja no contexto da construção sintagmática ou planejamento sintático em geral. A idéia de foco proposta por Chafe também se coaduna com a tese da denominação de Blanche-Benveniste (1990). Pois a hesitação tem um escopo geralmente muito imediato. Neste caso, diverge das estratégias de formulação tais como os marcadores e as repetições ou correções cujo escopo é mais do que o simples contexto imediato das relações formais ou discursivas do item envolvido. Aparentemente, a hesitação instiga a colocar o princípio funcionalista da iconicidade das formas sob novo enfoque, já que as hesitações não são formas funcionais e sim disfuncionais, se as observarmos sob o ponto de vista de sua contribuição discursiva. Nós podemos inferir várias coisas no contexto de um falante hesitativo, mas todas essas inferências partem muito mais de nossa avaliação do que de evidências trazidas pela hesitação como tal. Por isso, a hesitação é uma oportunidade de refletir sobre as relações entre forma e função. O falante hesita para decidir o quê falar ou porque está decidindo como falar. Mas não porque está querendo dizer algo com a hesitação. Chafe (1985: 82) sugere que os focos em geral se organizam em unidades sintáticas ou então em unidades entoacionais. Neste caso é explicável que haja mais hesitações entre os focos que dentro de um foco, ou seja, no interior de uma unidade. De igual modo as transições dentro de um mesmo tópico (ou episódio) conteriam menos hesitações do que as transições entre tópicos diferentes. Lembra ainda a mesma tese de Walker (1985) que a verbalização de informações não verídicas pode levar a um maior número de hesitações que as verídicas. Esta via psicologizante de entender e explicar o fenômeno não é boa, mas é a mais comum entre os psicólogos que vêem na hesitação um sintoma de insegurança, ansiedade ou medo. Esse não é o caminho seguido neste ensaio. 183
Em resumo, pode-se afirmar que há uma relação entre a hesitação e tópico, conhecimento de mundo, capacidade de codificação e conhecimento lingüístico. Por outro lado, teríamos os fatores representados por: falanteouvinte (estrutura da participação), organização dos turnos de fala (estrutura de produção) etc. Tendo em vista que o texto dialogado é produzido coautoralmente e em turnos sucessivos, há sempre a necessidade de uma progressão sob o risco de perda da palavra. Neste caso, é importante produzir sons ao invés de ficar em silêncio. Tanto isso é verdade que às vezes um ouvinte entende a posição hesitativa do falante como pedido de socorro e lhe dá um auxílio na formulação avançando o que o outro iria dizer, tornando o texto mais colaborativo e a interação envolvente. Embora opere como descontinuadora da fala em sua materialidade, a hesitação é ao mesmo tempo a garantia da continuidade discursiva, servindo como estratégia para manutenção do turno em momentos críticos. Estes momentos críticos ocorrem na falta de memória, embaraço no conteúdo, problema de planejamento sintático etc. Considerando estas duas perspectivas de análise, pode-se observar o funcionamento da hesitação em duas linhas: (a) na perspectiva da formulação textual (b) na perspectiva da interação e da discursividade Em (a) ela pode ser observada na sua condição de descontinuadora na ordem sintática, sendo que em (b) ela seria observada em sua condição de continuadora no nível da enunciação, ou seja, das relações interpessoais dos interlocutores e na condução dos tópicos. Tudo indica que neste segundo caso pode-se mais propriamente falar em funções, enquanto que em (a) não se trata propriamente de funções, mas de papéis ou sintomas. Considerando a perspectiva (b), é comum que a hesitação, sobretudo na forma de um alongamento de vogal, seja utilizada como estratégia de entrega de turno, num momento em que começa a ficar difícil manter a palavra. Trata-se, pois, de uma entrega de turno disfarçada. Esta estratégia joga com a expectativa da manutenção da palavra e a possibilidade da perda. Outro papel de continuadora discursiva é o da hesitação com alongamento de vogal usada como forma de pedir socorro ao interlocutor em momentos de esquecimento. No geral, quando se fala em papel da hesitação na perspectiva (a) acima, ou seja, da descontinuidade material, tem-se em mente a questão do processamento lingüístico. Neste caso, parece mais adequado dizer que as hesitações 184
não teriam funções, mas operariam como indicadores ou sintomas de atividade de planejamento lingüístico. Resumidamente, proporia o seguinte quadro geral para explicitar este fato: (a) perspectiva da descontinuidade sintagmática oracional (b) perspectiva da continuidade: textual discursiva interacional cognitiva No geral, diz-se que a hesitação com papel de descontinuadora indica atividade de planejamento lingüístico, ou seja, indica intervenção na construção de estruturas sintagmáticas. Assim, nesse contexto parece exercer papéis como testagens do falante para escolha de formas de uma palavra adequada ou organização de uma construção de maneira mais compreensível. Nesses casos teríamos atividades voltadas para o falante, situando-se tanto na fase do planejamento como da formulação, o que mostra que a hesitação diria respeito ao processamento lingüístico como um todo. Um argumento bastante razoável para identificar a hesitação como reveladora de atividade de planejamento lingüístico é o fato de ela ocorrer na primeira metade da unidade em que intervém. É pouco comum hesitar após a segunda metade de uma estrutura realizada. Já no caso das atividades reveladoras de funções discursivas ou conversacionais, as pausas e os alongamentos, por exemplo, estão em geral no final das unidades. Parece que completude sintática e completude discursiva não são isomorfas. Cabe aqui indagar se existem hesitações que exercem predominantemente papéis na perspectiva da formulação textual e hesitações que operam mais na perspectiva discursiva. Esta é a indagação que se fazem Beattie & Beattie & Butterworth (1979), quando indagam se as hesitações são funcionalmente diversas. Esses autores notaram que se os falantes fossem “penalizados” por pausas além de uma certa duração, perdendo o turno, por exempo, essas pausas baixavam significativamente, subindo o número de repetições ou pausas preenchidas. Concluem com isso que “as pausas não preenchidas e os tempos de repetições hesitativas parecem ser intercambiáveis” (p. 342). Isso sugere que tenham funções parecidas, pelo menos parcialmente. 185
Um fato notado no decorrer das análises foi o que diz ao escopo da hesitação. Ela parece voltar-se para elementos em suas imediações. Além disso, volta-se para atos futuros, ou seja, sua orientação é prospectiva, diferindo, neste particular, da repetição e da correção que são sempre retrospectivas, até mesmo porque só se repete algo já dito e só se corrige algo que se formulou de forma tida como inconveniente por alguma razão qualquer.3 O ponto essencial da distinção entre hesitação e todos os demais fenômenos discursivos característicos da fala reside não tanto nas formas (já que ela tem aparências de repetição, correção, marcadores etc.), mas no seu papel no processo de formulação textual-discursiva. A hesitação, ao contrário da repetição, por exemplo, não faz parte das atividades de formulação e sim dos sintomas que evidenciam rupturas na formulação. A hesitação não pode ser tida como proposta de solução para algum problema de formulação mas sim como indício de atividade de busca de solução. Por isso, não é uma atividade formulativa. Quando usamos repetições para construir o texto, as repetições com a função de fator coesivo são identificadas como uma estratégia de coesão. Mas a hesitação nunca é identificada como alguma estratégia similar a essa no plano da formulação. Mais do que uma estratégia de solução é um indício de problema, revestindo-se, por isso, de interesse enquanto fator de “ralentamento do texto”. A hesitação é indício de trabalho por parte do falante; ela conduz o analista ao laboratório do falante. Ao lado dos papéis textuais e interacionais há ainda o papel cognitivo. Quanto a isto, a hesitação revela os segredos da própria atividade cognitiva do falante, na medida em que vem associada a outros processos, tais como o fluxo informacional dos referentes. Notei que em várias ocasiões as hesitações precedem a introdução de elementos novos, sendo menos freqüente na reintrodução de elementos já conhecidos. Parece, pois, relevante analisar as hesitações na relação com seu status informacional. Este aspecto é frisado também por Silva (em preparação). A expressão “indivíduo hesitante” tem a ver, no geral, com uma avaliação cognitiva e não textual-discursiva. Hesitante é uma pessoa que não conhece ou que não tem segurança do que está dizendo ou fazendo. Este parece ser o senso comum. Mas este é apenas um dos aspectos pelos quais se poderia observar a hesitação. Goldman-Eisler (1968) considera como um de seus maiores achados nos estudos sobre a hesitação o fato de que “os índices de pausa eram signifi186
cantemente mais altos durante as interpretações do que durante as narrações”. Isto sugere que há uma relação entre a hesitação e a atividade discursiva. Essa correlação/diferença ainda não foi feita. As observações feitas no corpus analisado permitem a sugestão de que quanto mais espontânea a situação, tanto menores vão sendo as pausas silenciosas. Quanto a outras correlações, não há resultados relevantes.4 Com base nestas análises, a tentativa aqui feita de sistematizar os papéis das hesitações distribui esses papéis em três grandes classes gerais: (A) papéis formais (B) papéis cognitivos (C) papéis interacionais Não há um rigor muito grande neste momento quanto a essa distribuição e ela ainda deveria ser objeto de uma análise mais aprofundada. (A) papéis formais Até hoje continua controversa a idéia de que estruturas de fala de maior complexidade exigiriam maior tempo de planejamento, dando origem a mais hesitações. Goldman-Eisler (1968) informava que não havia encontrado uma relação clara neste sentido. Na verdade, nota-se um grande número de hesitações em estruturas bastante simples, mas fica por definir o que é uma “estrutura simples” ou uma “estrutura complexa”. Segundo Beattie & Butterworth (1979: 347-350) os estudos a este respeito são contraditórios. De um modo geral, podemos dizer que as hesitações exercem dois grandes papéis formais: (a) indicação de orientação/reorientação de seleções sintagmáticas (b) atividade de busca/confirmação de seleções lexicais Quanto a (a), trata-se de uma atividade muito comum, devida ao processamento lingüístico on line. É um indício de atividade de planejamento. Trata-se de um indicador da busca de um item lexical com a antecipação de um elemento que lhe convém formalmente. Nós dominamos as regras gramaticais e sabemos que nomes masculinos têm artigos no masculino, um nome no plu187
ral tem artigo no plural e assim por diante. A competência lingüística enquanto domínio de uma regra formal não é garantia de uso da regra, pois isso dependerá também de outras seleções, ou seja, um item lexical determina por antecipação seleções específicas de outros itens. O problema aqui é distinguir se temos, na hesitação um caso de correção especializada, ou seja, uma correção por antecipação, ou se temos um caso em que ainda não encontramos o item que buscávamos. Nesta segunda hipótese trata-se de uma tentativa de preenchimento. Ocorre, porém, que na fala quase sempre executamos construções curtas, seqüenciadas e com alto índice de pré-fabricação. Por isso não hesitamos tanto como seria de esperar. Quanto a (b), é fundamental ter presente que neste caso não se trata da tese clássica de que a presença de uma hesitação diante de um nome revelaria dificuldade de encontrar aquele nome ou então uma “baixa predizibilidade” do item lexical. Goldman-Eisler “notara que a escolha de uma palavra pelo falante em qualquer ponto dependeria ‘da freqüência do uso do símbolo na língua como tal, mas as restrições eram derivadas do contexto e da estrutura da língua’ ”. Isso envolvia aspectos de freqüência, bem como aspectos semânticos, sintáticos e pragmáticos. A questão está em como distingui-los. Por isso é preferível formular a função acima como busca de elementos adequados, seja de natureza sintática ou lexical. As razões podem ser múltiplas e não uma só. Entre as razões que levam a hesitar nos casos (a e b) devem-se a atividades de: (i) construção de estruturas (ii) identificação de referentes (B) Papéis cognitivos A expressão papéis cognitivos tem aqui um sentido um tanto amplo e diz respeito a todos os fenômenos relacionados à compreensão, intenção e organização tópica. Isso significa que quando produzimos a fala estamos submetidos a condições de produção em que a forma e o conteúdo são realizados simultaneamente. Tanto é necessário planejar o conteúdo como a forma. Mas isso tem sinalizações diversas. O problema está em como identificar a diferença dessas operações. No caso do planejamento cognitivo, nota-se a presença de silêncios, diminuição do ritmo e pausas preenchidas. Os planejamentos verbais são mar188
cados por mudanças de estruturas ou nas rupturas sintagmáticas (sobretudo nas cabeças dos sintagmas). Entre os papéis cognitivos mais comuns das hesitações, poderíamos identificar: (a) sinalização de saturação de tópico (b) sinalização de atividade de compreensão (c) indicação de organização tópica (d) indicação de atividade de planejamento (C) Papéis interacionais Um dos princípios mais gerais da produção discursiva oral é o envolvimento interpessoal. Esse princípio comanda uma série de processos que se traduzem em estratégias que organizam atividades formulativas tais como o sistema de polidez, o sistema de atenção para com o ouvinte (com todos os seus marcadores) e assim por diante. É neste caso que se pode imaginar papéis identificados como: (a) sinalização de manutenção de turno (b) sinalização de finalização de turno (entrega “disfarçada”) (c) sinalização de atenuação de afirmações Sobretudo as hesitações do tipo PP, que parecem indicar uma prevenção contra a “perda” do turno. Às vezes a hesitação pode operar como uma forma de chamar atenção do outro em momentos de distração, o que é uma forma de “suspender” momentaneamente o fluxo da fala. Também se aponta como papel interacional, em alguns casos, o fato de a hesitação operar como: (d) sinalizador de superioridade, segurança e tranqüilidade De fato, já se notou que muitos conferencistas tarimbados e bem conceituados hesitam muito mais do que conferencistas estreantes. Talvez para sugerir segurança e até mesmo descontração e familiaridade com o tema.
8. Considerações Finais Nestas considerações finais cabe retomar alguns aspectos centrais tratados em vários momentos do trabalho, mas inconclusivos. Quando tratei do 189
problema das funções das hesitações, preferi adotar o termo papel da hesitação, pois um dos problemas ainda aberto é o seguinte: – qual o grau de consciência do falante quando age com a linguagem? Será que no caso específico da hesitação pode-se falar em intenção? Tudo indica que não, pois isso conduziria a uma intencionalidade permanente, o que, ao meu ver, é um caso insolúvel e sobretudo incontrolável. Assim, a pergunta que ainda fica, neste caso, é a seguinte: – como tratar o problema da intenção na relação com a hesitação? Ao lado da questão acima, há outra também complexa. Trata-se do fenômeno do monitoramento na língua. A indagação que aqui permanece aberta é a seguinte: – será que os falantes se monitoram o tempo todo? Isto recoloca, sob uma nova roupagem, o problema anterior da consciência do uso da linguagem. Não temos uma resposta a esta questão e a psicolingüística parece não estar voltada para ela. Uma questão levantada logo na abertura do trabalho era a seguinte: – a hesitação é uma propriedade da língua ou do falante? Talvez essa questão não esteja sequer bem posta, mas ela aponta para a necessidade de distinguir entre o que poderíamos chamar de idiossincrasia e fatos lingüísticos. Outra questão tratada, mas não decidida, foi a que diz respeito à hesitação em seu aspecto de fluência e continuidade discursiva e textual. A pergunta, neste caso, é a seguinte: – será possível distinguir entre a linearização material do texto e a continuidade discursiva? Suponhamos que sim. Neste caso, a hesitação seria um aspecto descontinuador da materialidade textual, mas não do discurso, ou seja, da produção de sentidos como tal. Na realidade, não é pacífica a idéia de que a hesitação é uma simples descontinuadora da fala. A rigor, o texto, em sua materialidade, pode ser visto como uma pista relevante para a observação das estratégias de sua formulação. 190
NOTAS 1
No estudo de Scliar-Cabral et alii (1981: 128) são formuladas duas hipóteses para analisar a pausa e a hesitação, afirmando que ambas estariam em “distribuição complementar”. As hipóteses foram: “(1) função de codificação e (2) integrante dos traços conversacionais”. A posição adotada no estudo de Scliar-Cabral et alii considera como hesitação um conjunto de fenômenos, tais como o “sabe”, “né”, “entende”, “bom, “lógico”, “digamos”, por exemplo”e outros nessa mesma linha. No caso das hesitações na função (1) apontada, suas posições e sub-funções coincidem com as aqui também sugeridas. As funções apontadas em (2) são praticamente as que se atribui aos MCs. Gostaria de frisar o caráter pioneiro, entre nós, desse estudo de Scliar-Cabral et alii, que a meu ver deveria ter merecido mais atenção e recebido continuidade.
2
E interessante observar que no estudo de Walker (1985) as pausas silenciosas intra e inter-turno foram as mais críticas, sendo que as pausas preenchidas não foram avaliadas negativamente. Também são mais críticas as pausas atribuídas ao respondedor, sendo menos preocupantes as pausas atribuídas ao perguntador.
3
Em Marcuschi (1992) tentei mostrar as funções da repetição e, naquele momento, distinguia entre repetição e hesitação, mostrando que uma era prospectiva e a outra retrospectiva. Tanto assim, que eliminei do rol das repetições todas a hesitações que se davam por repetição de elementos lingüísticos. Isto porque as repetições hesitativas pouco têm a ver com as repetições stricto sensu.
4
Lembro que a própria Goldman-Eisler em estudos posteriores chegou à conclusão que não havia distinção relevante entre as duas situações discursivas em relação às pausas hesitativas.
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ASPECTOS BASICAMENTE INTERACIONAIS DOS MARCADORES DISCURSIVOS
Hudinilson Urbano (Universidade de São Paulo)
Resumo: O trabalho, que se apóia em pesquisa maior, apresenta resultados de outra mais profunda sobre os marcadores classificados funcionalmente como marcadores “basicamente orientadores da interação”. Esses marcadores são agora analisados e estudados com o objetivo específico de observar suas subfunções, propriedades e comportamentos interativos salientes.
1. Considerações preliminares A presente pesquisa está condicionada à pesquisa maior anterior intitulada Marcadores Discursivos: Traços Definidores, realizada por Mercedes Sanfelice Risso, Giselle M. O. Silva e Hudinilson Urbano para o PGPF1 . Aquela referia-se aos marcadores discursivos de um modo geral; distinguindo fundamentalmente marcadores “seqüenciadores de tópico” e marcadores “orientadores da interação”, com implicações recíprocas; esta trata de um subconjunto dos marcadores, que desempenham, exclusiva ou inclusivamente, a função de marcadores “basicamente orientadores da interação”. Esses marcadores serão analisados sob esse aspecto, com abstração feita à eventual função concomitante de “seqüenciadores de tópico”. Naquela pesquisa, buscamos o “estabelecimento de traços identificadores do estatuto dos Marcadores Discursivos, capazes de conduzir a uma definição mais precisa e operacionalmente viável de sua natureza”. Para tanto, fizemos, no corpus mínimo do PGPF, um “levantamento denso das unidades que têm sido, consensualmente ou não, apontadas como marcadores”, observando as suas peculiaridades na integração textual e depreendendo as regulari-
dades ou constantes, capazes de formar um fundo comum das ocorrências, com base nas quais pudemos configurar “matrizes básicas” de traços e um “núcleo-piloto” definidor dos marcadores discursivos. Cada ocorrência foi investigada e analisada em relação a cada uma das dezesseis variáveis, subcodificadas em traços, devidamente descritos e comentados, a seguir relacionados: VARIÁVEIS / TRAÇOS 01 Padrão de recorrência 1 – de 1 a 3 vezes 2 – de 4 a 9 vezes 3 – de 10 vezes em diante 02 Articulação de segmentos do discurso 1 – seqüenciador tópico 2 – seqüenciador frasal 0 – não-seqüenciador 03 Orientação da interação
09 Autonomia comunicativa 1 – comunicativamente autônomo 0 – comunicativamente não autônomo 10 Massa fônica 1 – até três sílabas tônicas 2 – além de três sílabas tônicas 11 Tipo de ocorrência (contigüidade/combinabilidade) 1 – contíguos combinados
1 – secundariamente orientador
2 – contíguos não combinados
2 – basicamente orientador
3 – contíguos repetidos
0 – fragilmente orientador 04 Relação com o conteúdo pro-posicional
0 – não contíguos 12 Base gramatical (fonte)
1 – exterior ao conteúdo
1 – substantivo
6 – pronome
0 – não exterior ao conteúdo
2 – adjetivo
7 – interjeição
2 – não se aplica
3 – advérbio
8 – preposição
05 Transparência semântica 2 – totalmente transparente 1 – parcialmente transparente 0 – opaco 3 – não se aplica 06 Apresentação formal
4 – verbo
9 – formação mista
5 – conjunção
10 – não se aplica
13 Sexo dos informantes 1 – mulher 2 – homem 14 Local do inquérito
1 – forma única
1 – Recife
4 – São Paulo
2 – forma variante
2 – Salvador
5 – Porto Alegre
07 Relação com a estrutura oracional 1 – sintaticamente independente 0 – sintaticamente dependente 08 Demarcação prosódica 1 – com pauta demarcativa 0 – sem pauta demarcativa
3 – Rio de Janeiro 15 Tipo de inquérito 1 – DID 2 – D2 3 – EF 16 Posição 1 – inicial 2 – medial 3 – final
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As “matrizes básicas” representam combinatórias de oscilações flexíveis, mas bastante fortes, quer por sua natureza, quer por sua freqüência. Essas matrizes foram submetidas a novos testes, tendo sido observada certa instabilidade (embora contrabalanceada) em algumas variáveis. As consideradas estáveis (Variáveis 02, 03, 04, 07 e 09) permitiram então a detecção de um “núcleo-piloto”, definidor dos marcadores discursivos prototípicos.
2. A presente pesquisa Na presente pesquisa, objetivamos apurar subfunções, propriedades e comportamentos textuais interativos específicos dos marcadores listados na pesquisa anterior como “basicamente orientadores” (traço 2 da Variável 03). Em razão dos objetivos específicos, com tônica na perspectiva interacional, em termos de procedimentos metodológicos, repensamos e recodificamos a Variável 16, cuja análise não fora concluída na pesquisa anterior, e acrescentamos novas variáveis, expostas na seqüência, do que resultou um conjunto complementar de variáveis, codificadas com as letras A, B, C, D, E, F, G.2 Por outro lado, adotando critério da pesquisa anterior, esclarecemos que, na listagem (Anexo I), os três últimos números da configuração (Variáveis 13, 14, 15) codificam o sexo, o local e o tipo de inquérito, correspondendo efetivamente essa codificação combinada aos seguintes inquéritos do Projeto NURC/ BR: 3 últ. nºs: Inquérito/NURC/BR:
113 121 131 142 143 151 153 211
EF/RE -337 DID/SA -231 DID/RJ- 328 D2/SP- 360 EF/SP- 405 DID/POA- 045 EF/POA- 278 DID/RE -131
3 últ. nºs: Inquérito/NURC/BR:
212 222 223 232 233 241 252
D2/RE-005 D2/SA-098 EF/SA-049 D2/RJ-355 EF/RJ-379 DID/SP-234 D2/POA-291
A – Funções textual-interativas Esta variável, de fundamental significação e importância no presente estudo, representa o levantamento de funções discursivas interacionais desem197
penhadas apenas pelas formas sob análise. Dificilmente uma forma desempenha uma única função; é comum a coocorrência ou sobreposição de funções. Nessa hipótese, optamos, numa análise inicial, pela função que nos pareceu proeminente, passando, às vezes, depois, a considerações periféricas. As funções previstas nos traços desta variável representam alguns possíveis “desdobramentos” do traço 2 da Variável 03 da pesquisa anterior e dizem respeito a “funções” (ou subfunções) que as “formas” sob análise subtendem e desempenham. O conceito de interação tem uma abrangência considerável, não se referindo apenas ao processo de relação interpessoal bem caracterizado (envolvimento do falante com o ouvinte ou vice-versa), mas também ao processo de manifestação pessoal, quando, por exemplo, o falante verbaliza avaliações subjetivas a propósito das significações proposicionais, envolvendose, pois, com o conteúdo (como acho), ou compromete, retoricamente, seu interlocutor (como digamos). A presente pesquisa, entretanto, como já frisamos, se restringe ao traço 2 dessa função (marcadores basicamente orientadores), ressalvados ainda os critérios complementares alinhavados adiante. Esta variável abre-se teoricamente em vários subgrupos, cada um compreendendo um conjunto de funções interligadas, quase num continuum, sob determinada tônica. Esses conjuntos distribuem-se em vários graus de envolvimento dos parceiros, indo do maior envolvimento do falante consigo mesmo e menor com o interlocutor (maior grau de “subjetividade”) até a uma situação oposta (maior grau de “intersubjetividade”). Observemos os exemplos abaixo: a)
“já ouviu falar, conhece de nome taxionomia, só de nos, bem...Eh:: essa palavra taxionomia quer, refere-se mais ou menos a uma classificação (...) (EF POA 278/153 1. 27)3
b)
Doc. quanto tempo... essa refeição ? L2
ah essa refeição... normalmente leva meia hora (...) (D2 SP 360/142 1. 324/325)
c)
L2
(...) já é alguma coisa que eles fazem porque...
L1
ah ajuda demais né ? (D2 SP 360/142 1. 183/185)
198
d)
L1
(...) agora em dois dias da semana ... eu levo à faculdade também... não é ?
L2 L1
ahn ahn e:: depois volto para casa (...) (D2 SP 360/142 1. 153/157)
Em a) o falante formula uma pergunta (retórica) que ele mesmo responde na seqüência. Nesse sentido, na estratégia de ele perguntar e ele mesmo responder, o bem inicia a auto resposta, caracterizando o referido grau de subjetividade, isto é, o falante modalizando sua atitude no próprio texto. Em b) a situação é semelhante. Todavia a Doc. endereça ao interlocutor uma pergunta direta que ele (L2) passa a responder, iniciando, porém, a resposta com o marcador ah. Nesse caso o ouvinte, tornado falante, foi provocado diretamente e o ah teve igualmente a propriedade de facilitar a tomada de turno. Em c) L2 vem fazendo comentários a respeito das atividades dos filhos, sendo interrompido por L1 com um comentário paralelo iniciado com o marcador ah, que favorece a interrupção da fala de L2 e a concomitante tomada de turno, procedimentos que sinalizam o grau de envolvimento interpessoal dos parceiros conversacionais. Em d) o falante está narrando/descrevendo seu dia de tarefas. A certa altura faz uma declaração que termina com o marcador não é ? como reforço de sua asserção, em tom interrogativo, tipificando claramente a interação face a face. Por outro lado, o ouvinte (L2) manifesta claramente, em sobreposição de voz, ainda antes do término do turno do falante, o grau de sua interação com ele, por meio do marcador ahn ahn. Para ampliar o panorama teórico sobre o conceito de interação, cabe referir ainda a ocorrência do marcador ah, de natureza exclamativa, em início de fala citada, como no exemplo abaixo: “eu não leio muito negócio de esporte, eu sempre viro a folha(s) né... meu marido “ah, onde é que se viu, tu não lê esporte ?” (DID POA 045/151
l.190/192)
O ah foi produzido pelo falante corrente, mas o foi com o objetivo de introduzir fala produzida por um terceiro interlocutor fora do evento conversacional em andamento. 199
Trata-se de hipótese complexa ou ambígua quanto às funções de subjetividade/intersubjetividade, uma vez que, sendo a fala produzida originariamente por um terceiro falante (às vezes pelo próprio falante), em situação de fala alheia à situação do evento conversacional em curso, nem sempre se tem conhecimento suficiente das circunstâncias em que teria sido produzida. Sua classificação fica, pois, questionável, mas se trata sem dúvida de um mecanismo de orientação interacional. Há quem atribua a muitos marcadores funções que, no nosso entender, muitas vezes dizem respeito mais a propriedades do que propriamente a “funções”. Assim, as chamadas funções de a) assalto/tomada de turno, iniciador do turno; b) manutenção de turno; c) entrega/passagem de turno são muitas vezes mais precisamente propriedades que alguns deles têm, associadas a certas funções propriamente ditas. Por exemplo, um ah que funciona como iniciador de R. problemática, naturalmente se confunde com uma tomada de turno, mas ele mesmo não tem a função conversacional de iniciar o turno; ele funciona, quando muito, como uma espécie de “engate”. Quando um marcador é sempre empregado numa posição fixa, esse uso sistemático leva a confundir propriedade com função. Não ficando claramente identificada outra função interacional, seu desenpenho costuma ser expresso como “iniciador de turno”. Estão previstos para esta Variável A, em princípio, seis traços. Traço 1 – fático de natureza imperativa e entonação exclamativa. São formas produzidas pelo falante corrente, mas orientadas diretamente para o ouvinte: Olha!, Veja! Traço 2 – fático de natureza ou entonação interrogativa, produzido após enunciado declarativo. São formas produzidas pelo falante após uma declaração também produzida por ele, como né?, certo? Traço 3 – fático de natureza e entonação interrogativa, produzido após enunciado interrogativo. São formas produzidas pelo falante após uma pergunta (retórica ou não) também produzida por ele, como hein? Traço 4 – feed back (FB). São formas produzidas pelo ouvinte, como hétero-monitoramentos, como uhn uhn, certo. Traço 5 – início de respostas formais (R) ou de comentários (C)4. São formas produzidas pelo ouvinte tornado falante seguinte, ao tomar o turno, em respostas, ou como comentário a perguntas ou a comentário do falante anterior, como um Ah, de natureza exclamativa. Esta função comporta muitas variantes, onde marcadores ocorrem por motivações variadas. 200
Traço 6 – início de fala citada. São formas produzidas pelo falante, citando, entretanto, fala de interlocutor fora do evento conversacional em curso (fala cuja autoria pode ser até do próprio falante corrente), como um Ah, de natureza exclamativa. B – Posição na frase oral A frase oral é aqui considerada uma unidade comunicativa entonacionalmente delimitada e segmentada conforme os propósitos do falante e/ou as condições discursivas da produção coletiva do texto. Freqüentemente tem feição oracional, ainda que muitas vezes sem a estrutura e a completude gramatical canônicas. Baseada nessa concepção, a decisão do recorte, contudo, é tomada pontualmente. Traço 1 – Inicial. Trata-se de formas localizadas no início de frases. Incluem-se aqui os casos de início de fala citada e os feed backs seguidos de fala tomando/aceitando o turno, em que, portanto, o ouvinte assume o papel de falante. Traço 2 – Medial. Formas localizadas no interior de frases; inclusive no meio de sintagmas. Traço 3 – Final. Formas localizadas no final de frases. Traço 4 – Não se aplica. Formas que ocorrem solitariamente, isto é, como constituintes únicos de interação, como é o caso dos feed back. C – Posição no turno Traço 1 – Inicial. Formas localizadas em início de turnos. Incluem-se aqui os casos de início de fala citada e os feed back seguidos de fala tomando/ aceitando o turno. Traço 2 – Medial. Formas localizadas no interior dos turnos, podendo ocorrer em início e meio de frases; inclusive no meio de sintagmas. Traço 3 – Final. Formas localizadas no final dos turnos. Traço 4 – Não se aplica. Formas que ocorrem solitariamente, isto é, como constituintes únicos de interação, como no casos dos feed back. As observações em relação à posição na frase (variável B) e no turno (variável C), além de, por si sós, poderem revelar uma tendência posicional particular de certos marcadores, poderão ainda sugerir pesquisas complementares mais específicas, como por exemplo no caso dos marcadores enquadra201
dos no traço 4-não se aplica. Com efeito, os traços 1, 2 e 3 referem-se aos marcadores produzidos pelo falante, em cujas frases ou turnos ocorrem esses marcadores; já em relação ao traço 4, o “não se aplica” se explica pelo fato de que o marcador é produzido por um interlocutor (que não o falante) no início, no interior ou no fim da frase ou do turno do falante. Por esse motivo, faremos, em relação a essas Variáveis B/C, observações complementares, atendendo às seguintes hipóteses: a – posição inter turnos bem delimitados do falante b – posição intra turno mas inter frases, do falante c – posição intra turno e intra frase, do falante (portanto, entre constituintes) d – posição após turno (completo ou interrompido) do falante corrente e antes do turno do ouvinte produtor do feed back tornado falante e – nenhuma das hipóteses anteriores. Em relação aos traços 2 ou 3, em se tratando de Inquéritos EF ou DID, embora normalmente analisemos como 2 (medial), porque, ou não havia propriamente turno (EF) ou os turnos eram por demais longos (DID), pode-se pensar em segmentações de turnos “virtuais”. De qualquer forma, contudo, sem a intervenção de parceiros, a análise e interpretações ficam prejudicadas. D – Sobreposição de vozes Esta variável considera a hipótese da ocorrência ou não de sobreposição de vozes entre as formas em questão e os demais segmentos textuais, fenômeno que certamente se constituirá numa tendência em relação a certas formas e certas subfunções. Traço 0 – não ocorrência de sobreposição Traço 1 – ocorrência de sobreposição. E – Coocorrência de pausa Esta variável visa a permitir observar a ocorrência de pausa antes e/ou depois, que parece ser um fenômeno bastante recorrente em relação a certas unidades em estudo, capaz de auxiliar na caracterização das funções discursivas, que tais unidades desempenham. 202
Numa segunda etapa talvez seja de interesse observar não só a coocorrência da pausa mas também sua duração. Traço 0 – sem coocorrência (inclui casos de marcador inicial ou final de turno, em relação aos quais a interpretação é de silêncio de transição e não propriamente de pausa, entendida esta como “suspensão motivada” de voz; inclui, em conseqüência, também casos de FB não iniciais de turno). Traço 1 – ocorrência só antes, no interior de turno. Traço 2 – ocorrência só depois, no interior de turno. Traço 3 – ocorrência antes e depois, no interior de turno. F – Coocorrência de outro marcador Traço 0 – sem coocorrência Traço 1 – ocorrência antes Traço 2 – ocorrência depois Traço 3 – ocorrência antes e depois Traço 4 – ocorrência em sobreposição O “outro marcador” pode ter sido produzido por quem produziu o primeiro, mas também pode ser de produção do parceiro, como no caso dos FB. A apuração das hipóteses sugeridas poderão permitir, numa pesquisa complementar, a verificação do tipo, funções e eventual correlação entre marcadores. Assim, se a forma sob análise for né ? e ocorrer uma forma uhn uhn em turno imediatamente posterior, é possível que haja alguma correlação de relevância condicional entre ambas. G – Natureza dos enunciados anterior (para os casos das funções 2, 3, 4) ou posterior (para os casos das funções 1 e 5) Traço 0 – ausência de enunciado escopado5 (por exemplo, casos de enunciados interrompidos) Traço 1 – declarativo objetivo Traço 2 – declarativo subjetivo Traço 3 – interrogativo Traço 4 – imperativo Traço 5 – optativo Traço 6 – emotivo 203
Esta variável sugere que os marcadores sob análise possam ter uma função correlacionada com a natureza dos enunciados a que eventualmente se refiram, ou escopam. Há algumas dificuldades na observação dessa variável: a) o caráter freqüentemente bidirecional dos marcadores, seja em relação ao texto seja em relação aos interlocutores. Em princípio, nos casos de marcadores como né?, sabe?, uhn uhn, o enunciado escopado é o anterior, porém no caso de mas, será o posterior ou o anterior e posterior; b) quando o marcador for medial de frase, caso em que, em princípio, consideramos o enunciado todo, no interior do qual ocorre o marcador; c) a hipótese, bastante plausível, de que o escopo do marcador seja uma palavra ou constituinte apenas e não um enunciado todo. Em todos esses casos – e em outros – a análise localizada dessa variável fará com que a questão seja rediscutida. Assim, no caso do traço 3, apuramos se se trata de (a) pergunta fechada ou (b) pergunta aberta. Uma vez definidas as novas variáveis, passamos a uma análise complementar das formas já levantadas na pesquisa fundamental anterior, dentro de novos critérios dos novos objetivos, no termos sucintamente estabelecidos na seqüência: 1 – como já foi frisado inicialmente, todas as formas a serem analisadas registram o traço 2 (“basicamente orientadoras”) na Variável 03, podendo provocar as combinações 0 – 2 ou 1 – 2 nas Variáveis 02 e 03. Ressalte-se então que serão objeto da presente pesquisa apenas marcadores classificados como “basicamente orientadores”, independentemente de serem, concomitantemente, “seqüenciadores tópicos”. Excluímos também na presente instância as formas digamos, digamos assim, vamos dizer, vamos dizer assim, embora registrem a combinatória 02. 2 – quanto às outras Variáveis (04, 07, 09) do núcleo-piloto, permanecem igualmente os traços 1, 1, 0 respectivamente. Feitas essas considerações, analisaremos, pois, as formas que apresentam os seguintes padrões dentro das Variáveis do “núcleo-piloto” da pesquisa anterior: Padrões a) b)
204
Variáveis e traços 01 – –
02 0 1
03 2 2
04 1 1
05 – –
06 – –
07 1 1
08 – –
09 0 0
10 – –
3 – além das variáveis do “núcleo-piloto”, foram recuperadas algumas variáveis e traços (Variáveis 05, 08, 10) considerados particularmente fortes e estáveis, registrados nas “matrizes básicas” apuradas na pesquisa anterior, conforme exposto abaixo: a) quanto à Variável 05 – “transparência semântica”, foram consideradas apenas as formas naturalmente vazias (como é inclusive o caso das formas não lexicais; traço 3 anterior) e as com perda semântica total ou parcial (traços 0 e 1), excluindo-se, portanto, as formas com traço 2 – “totalmente transparentes”, tanto quanto apurado no conjunto das “matrizes básicas”. Nessas condições, foram excluídas formas como eu pergunto a você, na sua opinião, tá claro isso? e vamos ajudando. b) quanto à Variável 08 – “demarcação prosódica”, a hipótese é analisar apenas as formas prosodicamente demarcadas (traço 1), como sugerido em todas as “matrizes básicas”, ainda que dentro de um critério de demarcação “virtual” do fenômeno, isto é, demarcação reconhecidamente possível, embora não esteja objetiva e claramente constatada ou realizada na fronteira sob observação. Com essa restrição ficam excluídas as formas eu quero saber e eu vou explicar a vocês. c) quanto à Variável 10 – “massa fônica”, serão analisadas as formas até 3 sílabas tônicas, (traço 1), como também apurado em todas as “matrizes básicas”. Essa orientação determina a exclusão de formas como como eu disse a vocês, como vocês estão vendo, eu já disse a você. Dessa forma, consideradas as Variáveis 02, 03, 04, 07 e 09 do “núcleopiloto” e recuperadas as citadas Variáveis 05, 08 e 10 apreciadas nas “matrizes básicas”, as formas a serem estudadas se enquadram em um dos seguintes padrões da listagem de marcadores apurada na pesquisa original (Anexo 2 daquela pesquisa): Padrões a) b)
Variáveis e traços 01 – –
02 0 1
03 2 2
04 1 1
05 0/1/3 0/1/3
06 – –
07 1 1
08 1 1
09 0 0
10 1 1
A todas essas 8 Variáveis se somam as 7 variáveis específicas desta pesquisa (A, B, C, D, E, F e G). Cada ocorrência, levando-se em conta a análise anterior, estará sendo analisada, portanto, em relação a 15 variáveis, acrescidas ainda de estudos complementares para as Variáveis B/C e G. 205
Dentro dessas condições e princípios, foram arroladas 345 ocorrências constantes do Anexo I, extraídas do Anexo 2 da pesquisa original.6
2.1 Análise particularizada das formas Nesta parte foram seguidos os seguintes passos: 1) Análise preliminar individualizada de todas as ocorrências com amostragens nos Quadros 1 a 8, ao final do texto. 2) Relação das funções e das configurações analíticas por formas (com respectivas quantidades e porcentagens). (Quadros 1-A a 7-A, ao final do texto) 3) Estudo particularizado das formas segundo as análises e levantamentos, principalmente em relação às ocorrências mais freqüentes e às variáveis que apresentam grande regularidade, freqüência e/ou motivação especial nos seus traços.
2.1.1 Formas ah, ahn, ahn ahn, hem?, uhn, uhn uhn, uhn? a) variantes gráficas e fonéticas Em relação a ah, ahn e ahn ahn, uma mesma forma fonética, independentemente das funções discursivas, tem sido transcrita por mais de uma forma gráfica; assim ah e há; ahn, hã e ã. Por outro lado, nem sempre fica clara a percepção acústica dessas produções. Por isso e ainda (a) porque tais diferenças gráficas e/ou fonéticas normalmente não afetam a análise e (b) para economia da própria análise, utilizamos as formas ah, (para ah ou há); ahn (para ahn, hã, ã); hem, quando com pouca discriminação, submentendo-as a uma análise conjunta. Uma vez ou outra poderá ser feita referência especial. Analisamos 51 ocorrências (contando a de nº 36-a, não incluída na pesquisa anterior) conforme exemplificação no Quadro 1, ao final do texto. b) funções As 51 formas distribuem-se em 5 funções, conforme se demonstra cabalmente no Quadro 1-A, ao final do texto. Traço 2 – Fático de natureza ou entonação interrogativa, produzido após enunciado declarativo Na realidade, além da ocorrência nº 35 (da linha 253) – única listada na pesquisa base – deve-se considerar outra, antes e muito próxima, no mesmo turno. Observe-se o contexto todo, onde ocorrem as duas formas: 206
L1
(...) agora num ambiente fora da ... da sala de aula ... que é que nós (precisamos) de ter? ... um ambiente bem gostoso bem::... gostoso pro doente pro:: doente ahn? ((risadas))
Doc ( ) ((risadas))7 L1
pro estudante... ter o seu recreio ter a sua hora de descanso... ahn...prática de esporte (..) ([35] 8 DID SA-231 121 l. 250-253)
Ambas as formas ahn? parecem exercer aqui uma função de Busca de Aprovação Discursiva (BAD), semelhante ao né? (v. adiante), pois são subseqüentes a enunciados declarativos e não a enunciados interrogativos. (v. função 3 abaixo). Embora apareça na 1ª linha uma pergunta [que é que nós (precisamos) de ter?], na realidade ela é apenas uma pergunta retórica, pois o próprio L1 responde: um ambiente gostoso bem::... gostoso pro doente por:: doente; pro estudante... ter o seu recreio ter a sua hora de descanso... Os marcadores ahn escopam respostas, portanto, declarações. Traço 3 – Fático de natureza e entonação interrogativa, produzido após enunciado interrogativo As formas ahn? (nº 36) e uhn? (nº 330) (ambas do DID/SA-231) ocorreram após perguntas abertas entonacionalmente formais (enunciado interrogativo). Em certas situações, parece tratar-se de pergunta apenas retórica. Doc (...) qual é o tipo de:: de móveis que nós vamos encontrar na biblioteca ahn? (...) ([36] DID SA-231/121 l. 302) Doc (...) vamos dizer... de que se compõe a universidade... administrativamente ela se estrutura como uhn? L1
aí você me apertou porque... ([330] DID SA-231/121
l. 167)
Na verdade, o ahn? e o uhn? sinalizam um reforço à pergunta anterior. Na ocorrência 36a registra-se, com a mesma função, a forma hem?, que nos parece ser a forma mais corrente, com essa função. Entre a função 2 e 3 o traço caracterizador e diferenciador é o fato de que na 2 o marcador ocorre após enunciado declarativo e na 3, após enuncia207
do interrogativo (Variável G, traços 1 e 3), mas nem sempre fica clara a oposição. Traço 4 – feed-back Como se observa, é alta a freqüência das formas sob análise como feed back (34 = 66,67%), isto é, como partículas retroalimentadoras, como héteromonitoramentos, em que o ouvinte demonstra estar acompanhando e entendendo as colocações do falante. Como veremos ainda, há muitas outras formas, lexicais ou não, que também desempenham esta função. Quanto às Variáveis B/C, a observação complementar permite quantificar as seguintes situações: a – posição inter turnos bem delimitados, do falante [25,27, 317, 319, 320, 324, 327]
7
b – posição intra turno mas inter frases, do falante [15, 19, 20, 21, 33, 316, 323, 326, 328]
9
c – posição intra turno e intra frase, do falante (portanto entre constitutintes) [1, 16, 17, 18, 26, 30, 31, 32, 34, 320] d – posição após turno (completo ou interrompido) do falante corrente e antes do turno do ouvinte produtor do FB tornado falante [29, 318, 321, 322, 325, 329] e – nenhuma das hipóteses anteriores [22, 23]
10
6 2
Quanto à Variável D – Sobreposição de vozes, esta registra uma porcentagem relativamente grande de formas sobrepostas (24%, ou 8 em 34), fenômeno bastante natural, de vez que o marcador, destinado a apenas monitorar o falante – e não interferir – vai sendo produzido bastante mecanicamente nas proximidades dos limites dos turnos ou das frases, ou ainda intra frase do falante. Quanto à distribuição de ahn, ahn ahn e uhn, uhn uhn, registra-se uma elevada porcentagem para o uso de ahn ahn e uhn uhn (76% ou 26 em 34) em relação ao ahn e uhn. Essa elevada porcentagem sugere para o futuro um aprofundamento relacionado à eventual responsabilidade da massa sonora em prol da função fática dos marcadores. Quanto à Variável F – Coocorrência de outro(s) marcador(es), o levantamento revela que há 17 marcadores coocorrentes nas 51 formas analisadas. 208
Desses 17, 13 referem-se aos FB, o que pode não representar grande destaque, uma vez que os FB já representavam 66,67% das formas analisadas. Mas, como em termos absolutos há um número considerável de FB, uma análise em relação a essa coocorrência revela observações interessantes: a) há 6 marcadores em posição anterior às formas sob análise, a saber sabe? (2 vezes), não é? e tudo mais, e 5 em posição posterior, isto é:, não?, (2 vezes), né (2 vezes), bom, sei e não é verdade? b) dos 13 marcadores coocorrentes, 8 [sabe? (2 vezes), não é? (2 vezes), né? (2 vezes) não? e não é verdade?] desempenham funções iguais ou semelhantes entre si, sendo, por ora, denominados BAD (Busca de Aprovação Discursiva). Isto faz supor uma estreita relação dos FB com os BAD ou com os enunciados finalizados por BAD; c) dos 8 BAD, 5 ocorrem antes do FB e 3, depois, o que significa, no segundo caso, que não é o BAD que provoca necessariamente o FB, mas sim o “enunciado” finalizado pelo BAD ou ainda outro fator a ser apurado. Quanto à Variável G (natureza do enunciado escopado), observa-se o seguinte quadro: Traços Nº de ocorrências
Qtd.
0
22, 23
2
1
1, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 30, 31, 32, 33, 34, 316, 317, 318, 319, 320, 321, 322,
2
323, 324, 325, 326, 327, 328, 329
30
15, 19
2
As ocorrências classificadas com o traço 0 devem na verdade ser entendidas como traço 1, pois só aparentemente essas formas não estão escopando algum enunciado. Com efeito, observe-se: L1
quando sai... aquela folia assim de um correr atrás dela então ela... se cala um pouco |
n. 22 L2 L1
ahn
mas
n. 23 L2 ahn L1
não se dobra
[22 e 23]
209
A ocorrência n. 22, cuja forma se realiza depois do “então ela... “, na verdade refere-se ao enunciado “quando sai... aquela folia assim de um correr atrás dela” e não ao início do novo enunciado temporariamente suspenso por pausa: “então ela...”. O mesmo acontece na ocorrência nº 23 onde aparentemente o ahn se posiciona após o “mas”, mas na realidade refere-se a “se cala um pouco” imediatamente anterior. Feita a correção e para ficar apenas na análise dos FB – cujo número de ocorrência é mais significativo – verifica-se que eles escoparam basicamente enunciados declarativos (de caráter objetivo, 88% ). Tal constatação, porém, por ora, diz pouco, porque os enunciados declarativos representam 71% de todos os enunciados. Traço 5 – Início de R ou comentário As formas em questão ocorrem, como é natural, normalmente em início de turno e de frase oral. (v. Variáveis B e C), quando o falante se propõe a responder alguma pergunta, principalmente de conteúdo problemático. Outras vezes não se trata de resposta a perguntas, mas de réplicas ou comentários a comentários anteriores. Em ambos os casos, podem revelar também um indício de hesitação ou de dúvida, ganhando tempo o falante para iniciar as respostas. Trata-se, pois, às vezes de uma função retardadora. Dizer que eles iniciam respostas ou comentários significa admitir que eles contribuem para a produção desse tipo de ato, sinalizando-o tipicamente. Esta função mescla o caráter de “subjetividade”, ao menos parcial, no sentido de auto-envolvimento (mistura de hesitação, surpresa, preocupação), com intersubjetividade plena, na medida em que se trata de início de resposta ou comentário de um interlocutor a outro interlocutor anterior; às vezes, inclusive, em correlação com um marcador de Busca de Aprovação Discursiva, como acontece no ocorrência 6 abaixo, onde L2, concordando com L1, reforça essa concordância auto-exemplificando-se: L1
(...) eu não conheço um professor que ensine em apenas um lugar, já começa por aí certo?
L2
Ah eu ensino em dois lugares(...) ([6] D2/RJ 355/232
l. 12)
A análise com base na Variável G – natureza do enunciado escopado, permite considerar dados interessantes. Das 11 ocorrências, 5 iniciam R a per210
guntas (3, 5, 8, 9 e 15), e 6 (6, 10, 11, 12, 14 e 28) desencadeiam comentários sobre comentários. Admitindo que P normalmente põem em risco à face dos interlocutores e trazem tensão ao perguntado (cf. exemplo típico na ocorrência 3)9, sobretudo nas P abertas (que são a maioria: 3, 8, 9 e 15), a produção desses marcadores, nesses casos, parece permitir ao destinatário uma tomada de ar para oxigenação da R. Daí, a natureza exclamativa do marcador. Quanto aos 6 marcadores que iniciam comentários, há que se notar que 5 deles introduzem comentários de concordância com os comentários do falante anterior; apenas um encabeça discordância. Nesses casos, o ah favorece uma estratégia de alinhamento dos parceiros, de caráter, antes de tudo, fático. Note-se, inclusive, a recuperação sistemática, nos comentários do falante seguinte, de vocábulos referenciais do falante anterior. Entre as formas, ah, ahn, ahn ahn, o levantamento revela, para esta função de iniciar R ou comentário, o uso generalizado da forma ah. Freqüentemente formas como ah, ahn (também éh, eh) preenchem pausas de diversa natureza. Com essa função, tais formas são localizadas no interior de frases e turnos, às vezes produzidas com alongamento e numa entonação hesitante.
2.1.2 Formas certo, certo?, claro, exato Incluímos nesta parte as formas certo, certo?, claro e exato, porque elas mantêm características comuns significativas, entre as quais: a) possuem todas como fonte a classe gramatical do adjetivo (traço 2 da Variável 12 da pesquisa anterior); b) distribuem-se apenas entre as funções 2 e 4, previstas na Variável A. As análises particularizadas de cada marcador encontram-se exemplificadas no Quadro 2, ao final do texto. O agrupamento desses marcadores nas 2 funções referidas e nas configurações analíticas idênticas, considerados apenas os números das ocorrências, estão demonstrados no Quadro 2 A, ao final do texto. Ao todo são 20 ocorrências ( nºs 37 a 50, 99) que se distribuem apenas entre as funções 2 e 4: 2 – Fático de natureza ou entonação interrogativa, produzido após enunciado declarativo. 211
Nesta função o corpus revelou apenas a forma certo?, mas também as formas claro e exato (para falar só das formas contempladas na presente pesquisa) podem desempenhar esse papel. Basta testar, nas ocorrências com certo? analisadas, a comutação deste por claro? ou exato? Entretanto a ocorrência de 100% de certo? em oposição a 0% de claro ou exato não deixa dúvida quanto a alguma motivação especial, possivelmente em relação às propriedades semânticas do primeiro em relação aos outros dois. 4 – feed back Nesta função, a observação comparativa entre certo, claro e exato revela a freqüência certo: 7 vezes (= 53,84%), claro: 5 vezes (= 38,46%) e exato: 1 vez (= 7,69%). Se considerarmos a observação de Margarida Basilio (1992:86) de que certo e claro, enquanto marcadores de assentimento (aqui enquadrados sob a denominação de feed back), atribuem lógica transparente em comparação à atribuição de correção, exercida por exato, e sem entabularmos considerações de mérito, verificamos que FB de atribuição de lógica transparente são muitas vezes mais freqüentes do que os de atribuição de correção. Essa freqüência, que ratifica a observada na função 2 acima, grosso modo, foi constatada igualmente por Margarida Basílio nos inquéritos D2 SP 360 e D2 SP 62 completos e sugere estudos específicos da semântica dos próprios enunciados escopados e dos respectivos inquéritos. Mas não é tarefa para o presente trabalho. A observação complementar sobre a posição especial destes FB dentro das Variáveis B/C acusa as seguintes freqüências: a – posição inter turnos bem delimitados, do falante
0
b – posição intra turno mas inter frases, do falante [38, 39, 52, 99]
4
c – posição intra turno e intra frase, do falante (portanto entre constituintes) [41, 42]
2
d – posição após turno (completo ou interrompido), do falante corrente e antes do tunro do ouvinte produtor do FB tornado falante [37, 40, 55, 43, 51, 54] e – nenhuma das hipóteses anteriores [53]
6 1
Chamam a atenção, se comparadas com o quadro igual referente aos ahn, ahn ahn, as hipóteses (b) e (d) – sobretudo (d) – que revelam comportamentos bem diversos entre os dois conjuntos de marcadores. Como esse qua212
dro será repetido em relação a outros marcadores, faremos uma análise mais profunda oportunamente.
2.1.3 Formas é, é claro, é verdade Como fizemos em 2.3.2, aqui também reunimos três formas para uma análise conjunta. Nos três marcadores ocorre a forma do verbo ser (é), e praticamente todas as formas desempenham uma única e mesma função, a função de feed back. Exemplos de análises da forma é e as únicas duas ocorrências de é claro e é verdade figuram no Quadro 3, ao final do texto, e a reunião das configurações analíticas idênticas dessas formas, considerados apenas os números das ocorrências, consta do Quadro 3-A, também ao final do texto. Foram analisadas 32 ocorrências (nºs 56 a 89). Apenas uma (é? – nº 89) desempenha a função 3 e será estudada adiante, juntamente com o marcador né? As demais cumprem a função 4. 4 – feed back As 31 formas com esta função são representadas por 29 ocorrências com é (93,54%), 1 com é claro (3,23%) e 1 com é verdade (3,23%). A altíssima freqüência de é parece explicar-se pela sua simplicidade estrutural perante as outras duas, as quais, concorrendo com a primeira, não parecem, porém, ter nenhum matiz interativo especial em relação a ela. Cremos que é é uma forma evoluída ora de uma (é claro), ora de outra (é verdade) expressão de estrutura oracional mais explícita do que o é. A redução formal revela mais uma vez, ao menos teoricamente, o continuum dos fenômenos discursivos, aqui também, mais uma vez, em relação a um esvaziamento semântico progressivo. Em termos discursivos, porém, é muito difícil a tentativa de distinguir o uso das 3 formas entre si. Os feed back em geral (não apenas referentes às formas sob análise no momento) são usados normalmente em duas situações: a) solitariamente, retroalimentando o falante e mantendo-o no seu papel conversacional; b) no início do turno do ouvinte, possibilitando a este assumir o papel de falante: a)
L1
coitado, cinco anos e já... colocado assim (...)
L2
é ([86] D2/SP 360/142 1.355)
213
b)
Doc reformaram também os departamentos (nem) aumentaram ou reduziram de forma que Inf
é porque eles fizeram exatamente isso (...) ([56] DID/SA 231/121 1.179)
É significativa a freqüência do caso (b) sobre (a) (2410 = 77,41% x 711 = 22,58%), situação bem ao contrário do marcador ahn, ahn ahn na mesma função (1 = 5,00% x 19 = 95,00%). Ao final serão analisadas, nesse sentido, todas as formas na função de FB.
2.1.4 Formas entende?, entendeu?, sabe?, tá?, viu? As formas entende?, entendeu?, sabe?, tá? e viu? serão analisadas em conjunto, dadas as características comuns que possuem: fonte gramatical verbal e função única. Ao todo são 53 ocorrências, a saber: entende? 2 (nºs 90, 91), entendeu? 7 (nºs 92 a 98), sabe? 24 (nºs 274 a 297), tá? 11 (nºs 305 a 315) e viu? 9 (nºs 337 a 345). As análises particularizadas de cada marcador estão exemplificadas no Quadro 4, ao final do texto, e todas as configurações analíticas, considerados apenas ou números das ocorrências, são reproduzidas nos Quadro 4-A, também ao final do texto. Todas as 53 formas desempenham a mesma função 2 (fáticos de natureza interrogativa) e têm como fonte gramatical a classe verbal (traço 4 da Variável 12 da pesquisa original). Três são primitivamente vocábulos lexicais (entende? / entendeu?, sabe? e viu?), um é relacional (tá). O tá?, contendo apenas significação interna, sugere tratar-se de oração elíptica, cujo percurso já foi desenhado na pesquisa original por meio da seguinte seqüência: Está claro isso até aqui? – Está claro até aqui? – Está claro? – Claro? / Tá?. Com efeito, na pesquisa anterior, foi analisada no corpus Está claro até aqui?, como unidade limítrofe, e, nesta pesquisa, já analisamos claro? (2.3.2.) e a expressão, paralela a está claro?, isto é, é claro. (2.3.3.) Tá? pode ser considerada, pois, redução da Está claro isso?, o que explica tratar-se de vocábulo apenas relacional. Outra observação interessante é que a redução fonética de está para tá não deve ter ocorrido da forma solitária está mas sim de está claro? para tá claro?. O uso proclítico do está justifica a aférese. Com efeito, não se encontra no corpus nenhuma ocorrência com a forma está isoladamente na função de marcador. 214
Nessa linha de considerações, cabe observar que uma característica dos marcadores é não estarem eles sujeitos à flexão número-gênero-modotemporal, como já observou, entre outros, Margarida Basílio (p.86). No caso dos marcadores aqui sob estudo, cabe constatar nesse sentido que: a) entender apresenta as variantes entende? e entendeu? com uso bem mais freqüente de entendeu? sobre entende? (77,77%): b) sabe? e tá? ocorrem só na forma do presente do indicativo. Fora do corpus, observa-se um uso moderno de sabia?, principalmente na linguagem jovem, mas parece que já acusa declínio; c) viu?, ao contrário, ocorre somente no pretérito perfeito12. Embora não objetivemos, nesta pesquisa, fazer análises quanto ao uso dos marcadores por regiões, inclusive porque entendemos que o corpus seja muito restrito para tal finalidade, os presentes marcadores sugerem observações comparativas que por si sós parecem adiantar hipóteses a serem perseguidas em trabalhos mais exaustivos. Para tanto, elaboramos a seguinte tabela: Marcadores
Recife
Salvador Rio de Janeiro São Paulo Porto Alegre Totais
a) entende?
–
–
2
–
–
2
b) entendeu?
2
5
–
–
–
7
c) sabe?
–
2
15
5
2
24
d) tá?
–
–
11
–
–
11
e) viu?
2
2
–
5
–
9
Totais
4
9
28
10
2
53
Pode-se facilmente constatar que: – nenhum dos marcadores tem uso generalizado em todas as regiões; – todas as regiões empregam algum tipo de marcador; – o marcador de maior distribuição é sabe? (foi observado em 4 das 5 regiões). Não só é o marcador de maior freqüência em termos absolutos, como também é o de maior concentração: 15 vezes no Rio de Janeiro (62,50%), sendo que 14 vezes por um único falante. – tá? só ocorre no Rio de Janeiro e ainda assim de uso de um único falante. 215
2.1.5 Forma mas Este marcador é um dos mais férteis em termos de matizes funcionais e deverá no futuro merecer uma análise mais ampla e profunda. Aqui vamos nos ater, dentro dos propósitos e possibilidades do presente trabalho, a aspectos mais salientemente interacionais. Mas temos que reconhecer a dificuldade dessa limitação. Já na pesquisa anterior, à semelhança de ah, o par das Variáveis 02 (articulação de segmentos do discurso) e 03 (Orientação da interação) acusou as combinações de traços: 1-2, 1-113, jamais 0-2, o que significa que, mesmo na combinação 1-2, o mas não deixa de funcionar como “seqüenciador tópico” (traço 1), merecendo, portanto, uma análise especial nesse sentido. Ao combinar seu traço de “seqüenciador” com o de “basicamente orientador” (traço 2 da Variável 03), ficam desde já ressaltados, não só a dupla função mas também: a) seu caráter bidirecional, retrospectivo e prospectivo; b) seu caráter de operador argumentativo de diversos níveis: reforço de alinhamento / desalinhamento direto / indireto, baseado em enunciado explícito ou em enunciado / contexto pressupostos; c) seu caráter de forte orientador interacional na administração dos turnos. A propriedade de operador argumentativo, a par da implicação com a gestão do tópico, não deixa de implicar também aspectos interacionais, na medida em que representam propostas de argumentos ou de (re)direcionamentos argumentativos (num sentido amplo), ou visam a levar o interlocutor a uma certa linha de idéias ou delas a afastá-lo, ou, ainda, no mínimo, apontam para a necessidade de considerar sua possibilidade de ligação diretamente com a enunciação. Nesta pesquisa, como ficou dito, são 19 ocorrências que apresentaram o traço 2 (“basicamente orientador”) na Variável 03 (“Orientação da interação”) da pesquisa anterior e o traço 5 na Variável A desta pesquisa: início de repostas formais ou de comentários. As análises individualizadas das 19 ocorrências encontram-se por amostragem no Quadro 5, ao final do texto, e todas as configurações analíticas, porém apenas pelos números de ocorrências, estão no Quadro 5-A, também ao final do texto. Pelos motivos recém-expostos, vamos nos limitar a apenas duas reflexões, de natureza mais tipicamente interacional: 216
a) como mecanismo estratégico (ainda que frustado no caso) para apoiar a tomada de turno. Tomemos a seqüência abaixo L1
(...) você tá criando uma cul uma criança inculta pra quando ela crescer e ficar velha você educar no mobral
L2
mas CLAro... mas CLAro... lógico... você também
L1
|
L2
mas claro mesmo porque se você tem
não pode então é im-por-tan-tís-si-mo... cultivar a plantinha desde pequena |
L1
torná-la culta enquanto ela é jovem
baratear o lucro L2
|
se você tem filhos ... ô Ed. se você tem filhos cultos você tem a cultura dentro de casa... (...) ([115, 116, 117] D2/RE 005/212 1. 396-406)
Trata-se de momento em que L1 expõe uma argumentação problemática, provocativa e até de certa maneira agressiva sobre a qual L2 procura se manifestar mas não consegue tomar o turno disciplinadamente, apesar de tentar de maneira firme e estratégica por duas vezes com mas amparados ainda por CLAro (também 2 vezes e intensificados na sílaba inicial) e com lógico. Em seguida, L2 tenta mais uma vez e com a mesma estratégia (mas claro), perdendo, entretanto, novamente o turno, na base da sobreposição de voz de L1. Finalmente, no derradeiro turno da transcrição, utilizando estratégia diferente (repetição), consegue completar seu turno e sua contra-argumentação. b) como engate para digressão opinativa, e até de natureza emotiva. Observemos as seguintes seqüências: 1)
Inf (...) nós fomos a um restaurante há::... numa região de mas é uma região muito típica italiana (...) ([106] DID/RJ 328/131 1. 656-657)
2)
Inf (...) éh:: um grupo assim:: da minha idade (...) são é uma assistente social MAS ela é formidável sabe? ([107] DID/SP 234/241 1. 8-10)
217
3)
Inf
(...) não tinha nem onde sentar viu? eu disse “meus Deus” foi domingo à tarde MAS uma molecada... sei lá eu (...) ([108] DID/SP 234/241 1. 137-139)
Nas três ocorrências, os falantes introduzem, por meio do mas, uma reorientação discursiva, dentro do seu próprio turno, mas de maneira a impregnar, às vezes explicitamente, os novos segmentos reorientados com um colorido emotivo. Com efeito, em (1), o falante desvia o procedimento discursivo narrativo para um comentário descritivo com um matiz subjetivo (muito típica); em 2 e 3, os falantes passam de comentários descritivos ou narrativos para comentários emotivos, sinalizados não só pelo próprio conteúdo como também pela entonação expressiva sobre o MAS.
2.1.6 Formas não é verdade?, não é? / num é?, né? As formas em questão serão objeto de estudo conjunto porque: a) 98,48% desempenham a mesma função básica (função 2); b) têm a mesma estrutura de origem (oração com verbo ser); c) contêm a mesma forma negativa (com não) e d) podem merecer em conjunto uma análise comparativa com as chamadas “tag questions”. Todas as formas, na verdade, parecem provir da matriz isso não é verdade? e ter feito o seguinte percurso: Isso não é verdade? – Não é verdade ?– Não é? / Num é? – Né?. Pode-se levantar inclusive a hipótese se o é?, a ser comentado mais adiante, não seria o subseqüente e derradeiro passo. Trata-se do grupo mais numeroso de marcadores, se bem que com desvio acentuado para o marcador né? que, com 102 ocorrências representa 75,00% de todas as 136 ocorrências14 desses marcadores em conjunto. Os menos usados são não é verdade? (uma ocorrência, nº 120) e não? (4 ocorrências, nº 146, 147, 148 e 149). Por estar incluído o marcador né? (que não deixa de ser apenas uma variante dos demais), com mais de uma centena de ocorrência, parece de interesse apresentar a tabela abaixo, onde se constata a distribuição de uso desses marcadores por regiões: 218
Marcadores
Recife
Salvador Rio de Janeiro São Paulo Porto Alegre Totais
não?
–
–
–
4
–
4
não é? / num é?
11
1
7
7
3
29
né?
3
36
20
26
17
102
não é verdade?
–
–
–
1
–
1
Totais
14
37
27
38
20
136
Sem entrar em considerações mais profundas, observa-se facilmente o uso generalizado e muito freqüente do né? em todas as regiões pesquisadas, nesse uso incorporando-se também o não é? / num é? como suas mais diretas variantes. O uso menos freqüente é do não? (muito elíptico oracionalmente) e do não é verdade? (muito elaborado e muito longo para automatismos). É interessante observar que o né? não só ocorre em todas as regiões, como também ocorre em praticamente todos os inquéritos do corpus mínimo e mesmo na boca praticamente de todos os informantes, sendo de destacar ainda a grande freqüência de uso pelo informante do DID/SA-231 (24 vezes em 102 = 23,52%), pelo informante do DID/SP-234 (17 vezes em 102 = 16,66%) e pelo informante do DID/POA-045 (16 vezes em 102 = 15,68%). Se considerarmos que foram tomados para análise cerca de 10 minutos de gravação por inquérito, o falante de Salvador produziu em média 2,4 né? por minuto, o que pode sugerir um uso idiossincrático. As análises das ocorrências apresentam exemplificação por amostragem no Quadro 6, ao final do texto, e a relação de todas as configurações, desconsiderados os contextos, figuram no Quadro 6-A, também ao final do texto. a) Variantes gráficas e fonéticas Como aconteceu em 2.3.1. com as formas ah, ahn, aqui também nem sempre ficam perceptíveis acusticamente as formas não é? e num é?, sendo em conseqüência às vezes transcritas uma pela outra. Parece que em Recife há uma ligeira preferência de uso por num é?, mas os dados são muito reduzidos e a percepção auditiva não foi necessariamente acurada para conclusões nesse sentido. Por essas razões foram as duas formas, ao final, incluídas num só grupo. O próprio né? às vezes se confunde acusticamente com o num é?. Observamos esporadicamente os mesmos trechos transcritos por transcritores diferentes, ou até pelo mesmo transcritor em momentos diferentes, onde aparecem as formas gráficas não é?, num é? ou né?. Em termos de uso, funções e análises, essas possíveis confusões são totalmente irrelevantes. 219
b) funções A freqüência tão desproporcional desses marcadores aparentemente não se explica por alguma motivação discursiva especial. Uma das razões talvez seja porque o né? represente a forma semântica e foneticamente mais esvaziada de todas. Em termos funcionais, grosso modo, 98,48% delas se equivalem, podendo ser perfeita e completamente permutáveis entre si. Só um estudo mais profundo das ocorrências dentro dos seus contextos, em termos de correlação com os enunciados e tipos de fala escopados, num sentido amplo (em relação inclusive a propriedades de ordem argumentativa e não apenas em termos da Variável G já investigada) poderá talvez determinar a observação de nuances funcionais ou alguma particulariedade secundária. Os marcadores sob análise parecem equivaler às chamadas “tag questions”, como já observamos em trabalho específico (Urbano, 1994). Para considerações ligeiras nessa linha, começamos arrolando alguns exemplos de apoio: 1. [120] L2 (...) lá em casa é tudo em função de horário... não é verdade? 2. [138] L2 bom porque fome é mundial não é? 3. [135] Inf (...) as estradas melhores são de tráfego mais... pesado não é? 4. [137] L1 (...) estamos falando de professores não é? 5. [140] Inf (...) drama já basta a vida ((risos)) não é? 6. [146] Doc eu acho que foi Casa de Boneca não? 7. [222] L2 (...) então deu quarenta e, quarenta e poucos por cento né? 8. [232] Inf (...) porque em qualquer lugar a gente pode fazer uma escola né? 9. [242] Inf (...) o pessoal deixou de ir a teatro né?
Se admitirmos, com Mira Mateus et al. (1983:372), que “Uma interrogativa ‘tag’ (...) é constituída pelo V. da frase declarativa que a precede e uma partícula de negação” ou que “sempre que a seguir a uma declarativa se encontre: ( V da frase declarativa) ..................................., não (é
(verdade (assim
220
)
?
ou seja: a) frase declarativa + não + mesmo v da declarativa + ? b) frase declarativa + não + é + verdade + ? c) frase declarativa + não + é + assim? d) frase declarativa + não + é + ? e) frase declarativa + não + ? Podemos assumir que em alguns dos exemplos arrolados estamos perante interrogativas, tags nos termos das autoras, desde que se entenda por V qualquer verbo, inclusive o verbo ser, que normalmente compõe a própria expressão interrogativa. Comecemos reproduzindo os exemplos de Mira Mateus et al. para os diversos casos do seu esquema: a) Vocês lembram-se, não se lembram? b) Vocês lembram-se, não é verdade? c) Vocês lembram-se, não é assim? d) Vocês lembram-se, não é? e) Vocês lembram-se, não? Parecem que se enquadram nas descrições das autoras os nossos exemplos 2 (= letra a), 1 (= letra b), 5 (= letra d). Não constatamos exemplos exatamente iguais às letras (c) e (e). O exemplo 2 corresponde à letra (a) d Mira Mateus et al, com o pormenor de que o verbo da declarativa, repetido na pergunta, é o verbo ser. Embora as autoras não condicionem expressamente que o tempo verbal da interrogativa seja o mesmo da declarativa, parece, todavia, que essa idéia está contida na sua exemplificação. Já Quirk e Greenbaum (1973:194) e Quirk et al (1975)15 expressamente dizem que o tempo da interrogativa depende ou é determinado pelo verbo da declarativa, o que significa que os nossos exemplos 6, 7 e 9 não satisfaçam perfeitamente o esquema. Considerada a diferença estrutural do inglês (que omite o verbo lexical, mas expressa sistematicamente o pronome), para termos uma idéia da questão, o enunciado 9 poderia, por exemplo, contemplar as seguintes hipóteses: a) o pessoal deixa de ir a teatro não é? b) o pessoal deixou de ir a teatro não foi? a) o pessoal deixou de ir a teatro não deixou? Por outro lado Quirk et al. esclarecem que o pronome – e portanto o verbo também – repete ou volta-se para o sujeito da asserção, isto é, o pronome 221
– no caso do português, o verbo – da interrogativa deve estar na mesma pessoa e número da pessoa e número do verbo da declarativa, o que, como se observa nos exemplos 3, 4, 6, 7 e 9 não acontece. Nos nossos não é verdade?, não é / num é? e né?, há uma completa autonomia desses marcadores em relação aos verbos das declarativas, o que mais claramente tipifica esses marcadores como tais. As ocorrências abaixo foram classificadas como função 3, isto é, fáticos de natureza e entonação interrogativa após enunciados também interrogativos: Doc (...) como é que você descreveria uma:: uma... [229]
um estabelecimento de ensino né? ... agora vamos entrar (...) o que é que a gente tem numa escola
[230]
né? das coisas menores (...)
Com efeito, os marcadores posicionam-se no final de perguntas abertas introduzidas pelos pronomes interrogativos característicos, enfatizados por é que (como é que, o que é que). Como veremos na retomada final – quando comentaremos mais demoradamente a função 3, esta função, isto é, marcador após pergunta, não é muito freqüente. Na situação semelhante à sob comentário, foi registrada também a forma é? na ocorrência abaixo: [89]
L2 (...) se puder acabo pedindo transferência pra Universidade Federal do Paraná... L1 (Vo)cê gostou assim é?
onde a pergunta “Você gostou assim”, por ser fechada, não fica muito bem caracterizada. Parece um misto de pergunta e comentário subjetivo.
2.1.7 Formas olha/olhe, vamos ver, veja, vem cá Reunimos mais uma vez um grupo de formas que facilitam um estudo conjunto mais consistente, favorecido pelas suas propriedades comuns: a) todas formas são de origem verbal; b) todas são de natureza imperativa; c) 95,00% são classificadas na função 1. 222
Ao todo são 20 formas, a saber: olhe / olha: 13, vamos ver: 2, veja: 1 e vem cá: 3. Marcadores
Recife
Salvador Rio de Janeiro São Paulo Porto Alegre Totais
olhe/olha
5
–
–
5
4
14
vamos ver
–
–
–
–
2
2
veja
1
–
–
–
–
1
vem cá
3
–
–
–
–
3
Totais
9
–
–
5
6
20
As análises individualizadas por marcador são exemplificadas por amostragem no Quadro 7, ao final do texto, e a relação de todas as configurações analíticas apenas pelos nºs de ocorrências compõe o Quadro 7-A, também ao final do texto. A distribuição por regiões permite levantar a seguinte tabela: As observações – embora de caráter precário (por causa do número reduzido de ocorrências pesquisadas) mas importantes como sugestão de pesquisas mais amplas e profundas – chamam a atenção ao menos para dois pontos: a) a concentração desses marcadores nos inquéritos de Recife (9 ocorrências; 45%) distribuídos pelos 3 tipos de inquéritos; b) o uso por um único falante (L1, do Inq. D2/005) de 5 deles (55,55%): 1 olhe, 1 veja e 3 vem cá. O marcador vem cá e o marcador veja são privativos desse falante. Rastreando de propósito o inquérito todo à busca de sanção, observamos que foram produzidos mais 2 vem cá (1. 591 e 852) e 1 veja (1. 526) e os 3 o foram pelo mesmo L1. Aliás, entre os locutores, L1 foi quem produziu desproporcionalmente o maior número de marcadores “basicamente interacionais”. Vê-se pela amostragem abaixo que ele produziu 84,31% dos marcadores contra apenas 15,59% de L2: né?
não é?
viu?
entendeu?
compreende?
certo?
olhe
olha
veja
vem cá
L1
7
1
3
1
12
1
4
3
2
5
L2
1
1
2
2
–
–
1
1
–
–
223
escute
claro
exato
Totais
%
L1
1
2
1
43
84,31
L2
–
–
–
8
15,69
Total
51
Mesmo com essa quantidade, aparentemente muito grande, de marcadores, afigura-se-nos reduzido seu volume para um D2 tão dinâmico e interativo quanto esse inquérito, o que, ao menos numa apreciação ligeira, faz crer que haja muitos outros tipos de estratégias de interação além dos marcadores. Uma pesquisa dirigida nesse sentido seria por certo bastante proveitosa. Por ora, reproduzimos um trecho da transcrição do citado inquérito: L2
mas por quê... por que você não leva a cultura ao povo primeiro?
L1
não porque:: eu acho que ( ) |
porque se você não tiver outra
L2
opção não tiver Chacrinha não tiver Flávio Cavalcanti |
L1 L2
não tiver Sílvio Santos o povo |
L1 L2
eu continuo achando
o povo vai ligar pra tv universitária |
L1 L2
eu eu continuo achando
não eu continuo achando viu?
pra tom Jobim pra Chico Buarque Holanda Caetano
L1
|
ora se vai |
não veja eu continuo achando
viu? E. eu
continuo achando que o Brasil só tem três problemas graves: educação educação e educação (...) (D2/RE
005
1. 307-321)
Em 15 linhas os dois parceiros se empenham em negociar uma simples exposição argumentativa, que em síntese é a seguinte:
224
L1
se o povo não tiver opção, ligará para tv universitária
L2
o Brasil só tem uma solução: educação
Para tanto, os interlocutores tentaram produzir 5 turnos cada um, quase sempre em sobreposição de vozes, sendo que L1 foi quem mais lutou pela tomada definitiva do turno, tendo tentado nada menos que 6 vezes, sempre com eu acho que ou variantes: 1. 309: “eu acho que”, 1. 312: “eu continuo achando”, 1. 314: “eu continuo achando”, 1. 316 “eu continuo achando viu?”, 1. 319: “veja eu continuo achando viu? E. eu continuo achando que”. Note-se que na penúltima vez L1 reforçou, finalizando o segmento com o marcador viu? e na última iniciou e terminou com marcadores: o primeiro, sinalizando pedido de atenção (veja) e o segundo com o mesmo viu?, que chamamos de “busca de aprovação discursiva” (BAD). Reunimos num só subgrupo olhe/olha não só porque o uso de um ou outro não parece ter qualquer motivação a não ser um uso acidental, como também nem sempre é perceptível a identificação auditiva de um ou outro. De resto, não prejudica a análise. De qualquer forma, fica observado que o uso mais generalizado é de olha. Com efeito, o emprego de olha é 2,5 vezes maior do que de olhe. Quanto às funções, a natureza imperativa de todos esses marcadores favorece a sua caracterização como pedido de atenção ou como proposta de uma atitude atenciosa. Olhe/olha são perfeitamente intercambiáveis; vem cá nos parece mais do estilo de L1 (do D2/RE), possivelmente de caráter regional, e mais enfático em termos de pedido de atenção ou de cooperação para a interação. Quanto a vamos ver, na forma do plural retórico, representa uma expressão menos informal e mais polida e envolvente, aliás típica do discurso didático. Com efeito, a locutora, professora, utiliza durante a aula toda freqüentemente a fórmula vamos (imperativo) mais verbo principal (no infinitivo ou gerúndio), às vezes complementado pelo respectivo argumento (O.D.) (1. 039, 144, 247, 249, 254, 370, 373). Menos freqüentemente alterna essa fórmula com “vejam”. Como se observa nos Quadros ilustrativos atrás, o marcador olha aparece abrindo uma citação de fala em discurso direto (Função 6 = início de fala citada). Trata-se da seguinte ocorrência: Inf
(...) então... não é uma história ligadinha que a gente possa dizer “olha... se desenvolveu NESte sentido...”muitas vezes a gente supõe que as coisas tenham ocorrido assim... ([265] EF/SP 405/143 1.036)
225
Na verdade, não se trata exatamente de uma fala real reproduzida: a falante professora utiliza a estratégia didática da dramatização, colocando na sua própria boca (embora usando o indefinido “a gente”, uma fala idealizada “olha... se desenvolveu NESte sentido...” O olha não é simples abertura de frase; tem realmente uma significação pragmática de solicitação de atenção, sem evidentemente qualquer valor semântico que a forma verbal de fonte lexical pareça embutir.
2.1.8 Formas pois é, sei, sim Reunimos em um só grupo pois é, sei e sim por motivos totalmente diversos dos motivos que justificaram os demais agrupamentos. Trata-se aqui de formas com muito poucas ocorrências. O número reduzido delas não só não compensa estudos mais demorados particularizados, como também não oferece segurança para isso. São ao todo 10 ocorrências, cujas análises, por amostragem, vão reproduzidas no Quadro 8 (ao final do texto).
2.2 Análises complementares dos marcadores por funções Nesta parte faremos breves considerações analíticas complementares sobre os marcadores aqui tratados, a partir de sua classificação pelas 6 funções previstas na Variável A. Ressaltamos inicialmente mais uma vez o caráter não definitivo dessa classificação e catalogação que objetivam, na metodologia aqui adotada, nortear e tornar operacional a pesquisa, com vistas à facilitação computacional (não computadorizada porém) das ocorrências. Fica para reexames em pesquisas futuras, a serem projetadas com outros propósitos, a possibilidade de reformulação, desde denominações e nomenclaturas funcionais até interpretações mais aprimoradas e finais das ocorrências. No corpo do presente trabalho, uma vez ou outra foi feita algum aprofundamento interpretativo nesse sentido. Mas só em estudos exaustivos de cada marcador ou conjunto de marcadores poderão ser identificadas conclusivamente funções mais específicas e precisas deles, dentro do contexto real de suas ocorrências.
2.2.1 Fáticos de natureza imperativa e entonação exclamativa (Traço 1) Como se trata de apenas um grupo com essa função e ela já foi estudada em 2.1.7, acrescentamos poucas observações aqui. 226
Os marcadores que desempenham esta função possuem todos a mesma fonte gramatical verbal (traço 4 da Variável 12 da pesquisa anterior), naturalmente na forma imperativa, com endereçamento direto ou indireto ao interlocutor. São três verbos que aparecem nas 17 ocorrências: dois perceptivos (olhar e ver) e um de movimento (vir). Apenas neste último caso, a forma verbal se associa, de maneira indissolúvel, a um vocábulo de origem adverbial (cá).
2.2.2 Fáticos de natureza ou entonação interrogativa pós asserção (Traço 2) Trata-se do grupo mais numeroso, funcionalmente falando, em termos de número de ocorrências (191 ocorrências), e um dos maiores em número de formas individuais, a saber: ahn? (1), certo? (7), entende? (2), entendeu? (7), não é verdade? (1), não é? / num é? (25), não? (4), né? (100), sabe? (24), tá (11), viu? (9). (Ver 2.1.1, 2.1.2, 2.1.4 e 2.1.6). A predominância é de formas simples (ahn?, certo? etc.). Há duas formas compostas [não é?, não é verdade?. não é? / num é? e uma contracta (né?)]. Preponderam marcadores de origem verbal ou combinados com verbo (entende? / entendeu?, sabe?, (es)tá?, viu?, não é verdade?, não é?). As demais fontes gramaticais representadas são: 1 adjetivo (certo?), 1 advérbio simples (não?) ou combinado (não é? / num é?, não é verdade?, né?). Caracterizamos esses marcadores como de natureza interrogativa, no sentido de que eles têm uma (estrutura) entonação ora mais marcada ora menos marcadamente interrogativa. Não se deve confundir estrutura interrogativa com força ilocucionária de pergunta ou pedido, embora esse tipo de força ilocucionária parece sempre estar presente, mesmo em grau mínimo, o que levou Settekorn (1977) a classificar esse tipo de marcador como de “busca de aprovação discursiva”, abreviado por nós por BAD. Discussão sobre essa atitude de busca já apresentamos em comunicação no GEL (1995). Aqui faremos alguma recuperação, ao comentar a função 4 – fático de retroalimentação.
2.2.3 Fáticos de natureza e entonação interrogativa, pós interrogação (Traço 3) Foram observadas 6 formas diferentes em apenas 7 ocorrências: ahn?, hem?, é?, não é?, né? (2 vezes), uhn? 227
Na verdade, esta função é uma variante da anterior: na anterior, o marcador ocorre após enunciado declarativo; nesta, após enunciado interrogativo. Todavia, essa aparente pequena diferença embute uma diferença significativa. Se considerarmos, com Settekorn, que o marcador possui “uma força ilocucional de natureza argumentativa, na medida em que frisa a proposição asseverada”, o enunciado frisado só pode ser um enunciado declarativo e não interrogativo como acontece aqui, ao menos claramente na maioria dos casos. Por outro lado, se considerarmos ainda que na idéia de “busca” estão implícitas não só a busca de aprovação do “argumento”mas também a busca de aprovação do “papel conversacional” de falante (nas reflexões de Settekorn), o marcador, mesmo após enunciado interrogativo – ou até principalmente por isso – sinaliza esta função especial 3.
2.2.4 Fáticos retroalimentadores [feed back (FB)] (Traço 4) Trata-se do segundo maior grupo em ocorrência (87 ocorrências), mas do primeiro em número de formas diferentes, a saber: ah (1), ahn (13), ahn ahn (6), certo (7), claro (5), é (29), é claro (1), é verdade (1), exato (1), pois é (1), sei (4), sim (4), uhn (2), uhn uhn (12). É o único conjunto de marcadores que é produzido pelo ouvinte, o qual, ao produzi-los desacompanhados de qualquer seqüência, não só retroalimenta a própria produção do falante, como também o mantém no seu papel conversacional de falante, conseqüentemente mantendo-se como ouvinte. Este tipo de FB solitário acontece em 54,12% das ocorrências (46/85)16. Por outro lado, freqüentemente também, como evidenciam esses dados, observa-se uma propriedade complementar dos FB de servirem como “engate” para que o ouvinte assuma o turno, tornando-se então falante, o que acontece numa significativa porcentagem de 45,88% (39/85). É de notar nesse particular que, entre os marcadores de natureza não lexical e os de natureza lexical, o segundo tipo, em relação ao primeiro, é que mais parece favorecer a tomada de turno. Com efeito, enquanto 66,66% (34/51) dos marcadores lexicais iniciam turno, apenas 14,70% (5/34) dos não lexicais o fazem, manifestando simples função de contato. Supõe-se, pois, que dado o valor semântico totalmente vazio dos marcadores não lexicais, estes são naturalmente os mais adequados para essa função fática. A condição de “engate”, que tão freqüentemente os FB realizam no corpus analisado, revela o sintonizado envolvimento dos parceiros, que até 228
certo ponto se explica em função da metodologia adotada nas gravações do Projeto NURC. O aspecto retroalimentador caracterizado pela função sob comentário e a freqüente referência da literatura a respeito levam-nos a refletir sobre a relação desses marcadores com os marcadores que têm sido denominados de “busca de aprovação discursiva” (BAD). A hipótese é que, se os BAD representam uma atitude de “busca”, os FB deveriam, ao menos em teoria, se correlacionar com aqueles, satisfazendo essa condição de busca, isto é, fornecendo o assentimento buscado. Todavia, os dados parecem não revelar a consciência dessa busca, nem por parte do falante nem por parte do ouvinte. Vamos inicialmente aos dados: a) a pesquisa arrolou 191 ocorrências de BAD e 87 de FB; b) o contexto das 191 revelou que nas proximidades de 166 delas (86,91%) não ocorreu qualquer marcador com a função de FB (nem antes, nem depois, nem em sobreposição); c) apenas 25 FB se localizam nas proximidades dos BAD, ocorrendo 21 vezes depois do BAD, 3 vezes antes e 1 vez em sobreposição. d) ocorrem apenas 26 BAD em finais de turno, sendo 13 nos D2, 11 nos DID e 2 nas EF, em oposição a 165 mediais, a saber: 32 nos D2, 93 nos DID e 40 nas EF. O próprio criador da expressão “busca de aprovação discursiva”, Wolfgang Settekorn, considera que os BAD exercem uma força ilocutória de natureza argumentativa, na medida em que “frisam” a proposição asseverada. Explicitamente, apresenta a seguinte descrição e interpretação:17 1) o falante afirma uma proposição (asserção); 2) o falante indica que a asserção é considerada como exata/indiscutível/conhecida/ certa (caracterização da exigência de verdade); 3) o falante indica que ele leva em conta a caracterização da exigência de validade (caracterização da posição do falante em face da proposição); 4) o falante indica que ele parte do fato de que o ouvinte participa da posição dele, falante, em face da proposição (caracterização da posição esperada da parte do ouvinte); 5) o falante indica que ele parte do fato de que o ouvinte está disposto a aprovar a afirmação e sua própria posição em face da proposição (caracterização do ato de esperar da parte do ouvinte). 229
Settekorn resume depois essas características dizendo que: “Sendo dado que se considera P como exata/indiscutível/conhecida/certa, eu estou no direito de esperar de você que você se junte a minha posição em relação a P e que você traduza esse acordo por um ato de aprovação”. Na concepção de “busca de aprovação discursiva” estão implícitas buscas de dois tipos de aprovação: a busca de aprovação do argumento e a busca de aprovação do papel de falante. Em conseqüência, marcadores BAD são formas de argumentação que podem servir para relacionar segmentos argumentativos em si e implicam ainda sempre outros dois aspectos: um ato do falante, isto é, a busca de aprovação, e um ato do ouvinte, isto é, a concessão de aprovação ou a recusa expressa. Na realidade, espera-se sempre uma aprovação e não uma recusa. Settekorn lembra ainda, de acordo com a situação que descreve no seu resumo, que, retoricamente, é de se aceitar que o falante, dada a exigência de validade por ele considerada, está no direito de avaliar conseqüentemente a aprovação do ouvinte como certa, independentemente de sua manifestação explícita. A partir das observações de Settekorn e dos dados acima constatados e relacionados, perguntamo-nos até que ponto elas valem para o português falado do Brasil, ou seja: a) em que medida se pode dizer que o falante realmente “busca” a aprovação do ouvinte? b) em que medida ele, falante, “espera”, realmente, a manifestação do ouvinte por meio de um ato de aprovação, no caso, por meio de um FB? c) em que medida realmente o ouvinte se manifesta em relação ao falante e a sua asserção? A letra (d) dos dados relacionados revela que ocorreram inúmeros BAD no interior dos turnos e pouquíssimos nos seus finais, mesmo nos D2 (nos DID, e sobretuto nas EF, a pretendida busca já seria naturalmente inusitada). Isso sinaliza que o falante normalmente produziu os BAD de forma mecânica, automática e despretensiosa, em posição desfavorável para que o ouvinte pudesse produzir mecanismos de aprovação. Na verdade, o BAD no interior do turno, principalmente sem pausa posterior, sugere neutralização da “busca”, uma vez que o falante, produzindo o BAD e ao mesmo tempo permanecendo sem interrupção no turno, estaria cometendo duas intenções aparentemente contrárias: busca de aprovação e abstração de qualquer aprovação. 230
Por outro lado, os dados da letra (b) revelam que os BAD e os FB não se correlacionam em 86,91% das ocorrências; logo não se implicam, como a noção de busca faria supor. Apenas 25 FB (13,09%) letra (c) aparecem em posições próximas dos BAD, ainda assim 3 deles ocorrem “antes” do próprio BAD (da própria busca). Da perspectiva do ouvinte, portanto, a baixa freqüência de FB parece revelar que o ouvinte simplesmente faz igualmente abstração dos BAD. Como ocorreram 87 FB e apenas 25 nas suas proximidades, ao menos nos outros 62 casos (71,26%), o FB foi produzido não em atenção a qualquer BAD mas sim eventualmente ao enunciado anterior ao BAD ou a qualquer outro fator motivador. Do exposto, parece poder-se concluir que: a) esses BAD não são, de maneira generalizada, formas de busca de aprovação discursiva; b) o ouvinte não reconhece, de maneira generalizada, essa função; c) caso o reconheça, não manifesta, de maneira generalizada, esse reconhecimento por meio de FB verbal. Feitas as presentes considerações, mas assumindo, por princípio, a alta recorrência (que o próprio corpus comprova) dos mecanismos reatroalimentadores e que eles caracterizam os próprios textos conversacionais, é de se supor que, na verdade, por ocasião das gravações (e em qualquer evento conversacional) tenham ocorrido abundantemente FB “não verbais”, através de gestos corporais e traços fisionômicos, que, infelizmente – e obviamente – não são registrados nas gravações. Essa suposição, feita a bem do rigor científico, pode restringir a força das argumentações anteriores, mas não as desqualifica, antes as complementa. Por outro lado, as conversas telefônicas constituiriam o campo fértil, seguro e controlável para se constatar e analisar a efetiva relação em termos puramente verbais entre os BAD e os FB, pois o único recurso de interação e contato é a voz.
2.2.5 Fáticos de início de R ou C (Traço 5) Arrolamos no corpus 31 ocorrências com marcadores classificados com a função 5. Em relação a formas, computamos 11 ah, 19 mas e 1 pois é, as quais, entretanto, apresentaram nuances próprias de uso. A forma pois é, apesar de única, revela uma aceitação pacífica de turno explicitamente transferido pelo falante anterior (Doc) ao interlocutor, ao qual solicita que lhe conte a história de um financiamento para o seu apartamento: 231
Doc
Conta um pouco a história desse financiamento
L2
Pois é, é, esse, esse apartamento é um problema todo de, de, de compra de apartamento (...) ([272] D2/RJ-355/232
l. 018)
Embora a aceitação do turno se tenha dado de maneira pacífica e o informante tenha assumido o seu papel conversacional de falante, a execução efetiva do pedido não foi tão tranqüila (observem-se os gaguejamentos); mas este é um fenômeno de outra natureza, que não cabe aqui considerar. Uma comparação deste marcador com seu homônimo na ocorrência 273 revela a diferença de função entre ambos: Inf
(...) praticaram... a natação... também é bom pra saúde quanto pra defesa né?
Doc Inf
|
pois é... claro
aprender a se defender né? ([273] DID/SA-231/121
l. 297)
onde o pois é (no meio no turno do falante) é mecanismo retroalimentador, reforçado por marcador com igual função (claro). Quanto às outras 2 formas, ah e mas, embora as tenhamos classificado dentro da mesma função (fático iniciador de turno responsivo ou de comentário), manifestam atitudes um pouco diversas, sobre as quais uma análise contrastiva talvez deite luzes. O ah é uma forma não lexical, enquanto mas é uma forma de natureza lexical, cuja fonte é a conjunção mas, dela conservando algumas propriedades, como bem salientou Moraes (1987), residindo nesse aspecto a principal diferença com ah. Por outro lado, ambos têm caráter bidirecional, mas de feições diferentes, decorrentes do fato de terem eles sido classificados, na pesquisa anterior, dentro da Variável 05 – transparência semântica, de maneira diferente: o ah com o traço 3 – não se aplica (sem conteúdo, nem inerente nem de origem) e o mas com o traço 0 – opaco ou traço 1 – parcialmente transparente. Enquanto iniciadores de turno, o mas, talvez por causa de seu traço sêmico básico de constraste e pela inseparável orientação argumentativa, pare232
ce intensamente mais interacional que o ah, caracterizando maior dinamismo no diálogo. De resto, ambos assimilam, com freqüência, uma entonação expressiva, que colabora para a espontaneidade e dinâmica conversacionais. Todavia, pelas observações acima, não se pode também deixar de reconhecer que o ah e o mas revelam uma carga fática diferente.
2.2.6 Fáticos de início de fala citada (Traço 6) A pesquisa revela apenas 3 ocorrências com 2 marcadores: ah (2 vezes) e olha (1 vez). Ao descrever a Variável A, já comentamos uma das ocorrências com ah (ocorrência nº 007). A outra vai transcrita abaixo: Inf
eles lá indicaram: “ah, vai na fuLA:na que a fulana serve (...) (DID/RJ-328/131
1. 353)
Quanto a olha, trata-se da seguinte ocorrência: Inf
(...) então... é uma história ligadinha que a gente possa dizer “olha... se desenvolveu NESte sentido...”(...) (EF/SP-405/143
1. 036)
O reduzido número de ocorrências não fornece elementos para reflexões demoradas e conclusivas. No entanto, a reprodução de uma fala dentro de outra com o uso de dois marcadores diferentes, um não lexical, outro de fonte lexical verbal, que o corpus revela, sugere algumas perguntas: a) o marcador pertence realmente ao texto da fala reproduzida, isto é, o falante personagem, cuja fala se reproduz, teria realmente iniciado sua fala com um ah ou olha? b) o marcador é um mecanismo geral para introduzir reprodução de fala? c) em caso positivo, há marcador(es) específico(s) para essa função como regularidade da linguagem conversacional? d) o marcador usado nessas aberturas pertence ao estilo do falante corrente narrador ou é típico do falante citado? 233
Esses questionamentos abrem várias hipóteses que, entretanto, só uma investigação de ocorrências em número representativo poderá responder.
3. Considerações finais A pesquisa ateve-se ao propósito de ser um passo adiante em relação à pesquisa Marcadores Discursivos: Traços Definidores, numa das direções projetadas naquele trabalho: a dos aspectos interacionais dos marcadores definidos como tais. Procuramos ser fiéis aos resultados daquela pesquisa, sem deixar, porém, de buscar novos caminhos, seja em aspectos teóricos específicos, seja, sobretudo, na metodologia. Apesar de se tratar de pesquisa estreitamente vinculada à anterior, tentamos dar-lhes certa autonomia de leitura. Nesse sentido, recuperamos daquele trabalho coletivo o mínimo necessário, porém, suficiente, para a compreensão e acompanhamento deste, o que foi feito, entre outros passos, por meio da reprodução da relação das Variáveis e Traços e da inserção de informações fundamentais sobre “matrizes-básicas” e “núcleo – piloto”, pontos basilares daquele texto. No aspecto metodológico, embora reconheçamos a avaliação que se faz sobre as descrições e interpretações qualitativas, tivemos sempre em mente, ao lado delas, um percurso também quantitativo, que parece melhor satisfazer nossa preocupação com o rigor científico. Embora extensa, reconhecemos que os limites impostos à pesquisa permitiram certas lacunas. Algumas são secundárias, outras, porém, mereceriam alguma atenção, mas ficarão para projetos futuros. Assim é que foram tratadas superficialmente – ou até deixaram de ser tratadas – questões de relevância maior ou menor para a boa compreensão dos marcadores basicamente orientadores, como a bi-direcionalidade anafórico-catafórica de certos marcadores, os aspectos prosódicos, sobretuto entonacionais dos marcadores em si, a questão da invariabilidade dos elementos de origem gramatical, sobretudo verbos (apesar de entende? / entendeu?, olha / olhe etc.), a eventual distribuição complementar no uso deles, o caráter continuum revelado em muitos níveis de descrição e análise dos marcadores, etc. Não foi possível, por outro lado, uma revisão na literatura específica, principalmente para rediscutir, entre outros aspectos, a vasta lista de denominações desses elementos discursivos, com implicações no seu próprio conceito. Não foi feita – e também estava fora dos limites do trabalho – uma análise sistemática das variáveis tradicionais, como sexo dos informantes, tipos de inquéritos, regiões de uso, etc. 234
Muitas observações sobre problemas muito fluidos não chegaram a ser aprofundadas ou foram feitas com bastante cautela, em virtude do reduzido número de ocorrências para instruírem essas questões. Privilegiamos normalmente, em cada caso, os aspectos comprovados por ocorrências mais freqüentes. De qualquer forma, a intensa pesquisa e reflexão sobre cada uma das cerca de 350 ocorrências permitiu a depreensão e análise de funções, propriedades e uso dos marcadores arrolados, consolidando um elenco bastante grande desses mecanismos basicamente orientadores da interação. Sobretudo salientou a regularidade de muitos aspectos em relação a cerca de três dezenas de formas. O inventário e as análises configurados nos Anexos II permitem não só comprovar as muitas reflexões que foram feitas, como também asseguram muitas outras observações e a construção de hipóteses a serem aprofundadas, bem como sugestões de temas a serem explorados. Todavia, graças às amonstragens inseridas no texto principal, o citados Anexos II dispensam consulta obrigatória. Ao largo da análise principal, pode-se perceber que muitas formas desempenham uma mesma função, dependendo naturalmente de aspectos contextuais convergentes ou determinados, como a entoação, posição e articulação com os enunciados que escopam ou que lhes são adjacentes. Assim, exercem a mesma função, por exemplo, certo?, entendeu?, sabe?, viu? etc. ou certo, é, é verdade etc. Por outro lado, porém menos freqüentemente, a mesma forma pode exercer funções diferentes, como nos casos de certo, ah, uhn, como demonstram os Quadros A das diversas análises. A relação forma / função é, em princípio, o dado identificador de marcadores diferentes. Assim, o mesma forma ah pode ser classificada como dois marcadores diferentes, segundo desempenhe funções diferentes. Percebe-se também que muitos marcadores se combinam seqüencialmente num mesmo turno ou em turnos diferentes (v. ocorrências nºs 6, 10, 25, 29, 33, 50, 289 etc.), outros articulam-se entre si, inciando ou finalizando um mesmo enunciado (v. ocorrências nºs 5, 12, 74, 81, 257, 261, 333, 339 etc.) e outros, ainda, se contrapõem a seus homônimos gramaticais. (Observe-se a ocorrência 290: É só o que eu sei sabe?) Verifica-se, ainda, o uso aparentemente idiossincrático de alguns marcadores (como o né?) por alguns falantes. (Já tínhamos constatado que o falante do DID/SA-231 produzira em média 2,4 né? por minuto. Mais pontualmente observamos as linhas 242-261 com 9 né? em 20 linhas ou as linhas 205-240 com 11 né?) Repisamos que a linha central e orientadora da pesquisa são as funções descritas e arroladas na Variável A, o que não deve levar a pensar, entretanto, 235
que se trata de funções claramente identificáveis e exaustivamente enumeradas. Na realidade, são portas de acesso para o exame de diversos outros aspectos como poderão ser percebidos e estudados os marcadores. O refinamento das análises vai cada vez mais permitir observar e reconhecer certos usos, valores e traços funcionais desconhecidos e inusitados. A função norteadora para a depreensão dos traços funcionais apontados na Variável A em questão é a função fática, que, diferentemente matizada, se reproduz nos 6 traços. A seção 2.3, sob o título “Análises complementares dos marcadores por funções”, já pode ser interpretada como parte integrante destas CONSIDERAÇÕES, uma vez que retoma, de maneira sintetizada, complementar e inferencial, aspectos do fulcro e das idéias centrais do trabalho. Das 7 novas Variáveis (A-G) rastreadas analiticamente nem todas produziram igualmente resultados relevantes e definitivos em relação ao aspecto interacional aqui perseguido, podendo, todavia, serem eventualmente revisitadas ante novas hipóteses de análise. Apesar dos limites necessariamente atribuídos à pesquisa e à análise, das lacunas inevitáveis e das reflexões nem sempre confortavelmente conclusivas, estamos convencidos de que o levantamento e a análise da forma como foram realizados se constituem em sólidos subsídios para colaborar na descrição de elementos tão típicos da língua falada do Brasil e na observação da sua regularidade de uso.
NOTAS 1
Para a compreensão e acompanhamento deste estudo, aconselha-se a leitura do trabalho em questão.
2
Codificamos com letras as Variáveis específicas desta pesquisa para diferenciá-las das Variáveis da pesquisa anterior, codificadas com números.
3
Na seqüência EF POA 278/153 l. 27, os três primeiros algarismos (278) indicam o nº original do inquérito nos arquivos do Projeto NURC/BR e os três números subseqüentes (153), a codificação atribuída ao inquérito pela pesquisa básica.
4
Usamos “comentário” no sentido comum de “observação”, “apreciação”, “esclarecimento”, “ponderação”.
5
Usamos “escopar” no sentido de “referir-se a”, “ter como alvo” ou ainda “pontuar”, “predicar”.
6
Nessa nova listagem (Anexo I) incluímos uma coluna para nº de ordem e excluímos as colunas correspondentes às Variáveis 11 – Tipo de ocorrência e 12 – Base gramatical, que já haviam sido desconsideradas na pesquisa anterior, durante a análise dos dados e
236
apuração das “matrizes básicas”. Como ficou esclarecido anteriormente, mantivemos os números dos inquéritos atribuídos pela pesquisa básica, mas recuperamos, numa coluna paralela, os dados originais do Projeto NURC/BR. 7
8 9
10
11 12
As ((risadas)) se explicam em virtude do comentário falho deL1: “em ambiente bem gostoso bem::... gostoso pro doente pro:: doente”, corrigido na seqüência: “pro estudante”. O número entre colchetes refere-se ao nº de ordem, conforme explicado na Nota 3. Doc e como é que a senhora Acha que é elaborada uma peça de teatro antes dela ser apresentada? Inf ah aí você me pegou porque (...) ([3] DID/SP 234/241 l.164) ocorrências n. 56, 57, 61, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 79, 81, 83, 84, 85, 87 e 89 ocorrências n. 58, 59, 60, 78, 80, 82 e 86. remetemos os interessados para as observações feitas na pesquisa anterior sobre a ocorrência das variantes olha ~ olhe ou entende? ~ entendeu? e não ocorrência de olhem, olhemos ou entendes?, entendia?, por exemplo. Mas esse tipo de reflexão precisa ser retomado.
13
A pesquisa básica anterior arrola 53 ocorrências, todas com o traço 1 na Variável 02 e, destas, apenas 19 com o traço 2 na Variável 03, o que significa que 34 apresentam a combinação 1-1.
14
Na realidade, foram analisados 132 ocorrências.
15
O grupo de Quirk constata as hipóteses de declarativa positiva mais interrogativa negativa e vice versa, mas aqui só nos interessa o primeiro caso, isto é, da declarativa positiva mais interrogativa negativa.
16
A diferença de 2 ocorrências (de 85 para 87) deve-se a que essas 2 ocorrências estão indefinidas quanto ao aspecto ora investigado.
17
Reproduzimos em seguida parte das reflexões que, nessa linha, fizemos na já citada comunicação publicada nos Anais do GEL (1995:660-665), em que, com base em parte desta mesma pesquisa, levantáramos algumas hipóteses, que vêm a se confirmar agora com dados mais completos.
4. REFEFÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASILIO, Margarida. (1992) Flutuação categorial de base adjetiva no Português Falado. In: ILARI, Rodolfo (org.) Gramática do Português Falado VII. Campinas, Ed.UNICAMP. MORAES, Lygia C. Dias. (1987) Nexos de coordenação na fala culta de São Paulo. (tese de doutorado) RISSO, Mercedes Sanfelice; SILVA, Giselle Machline de O. e URBANO, Hudinilson. (no prelo) Marcadores Discursivos: Traços Definidores. 237
SETTEKORN, Wolfgang. (1977) Pragmatique et Rhéthorique Discoursive. Journal of Pragmatics 1, North-Holland Publishing, Co., p.195-210. URBANO, Hudinilson. (1995) Marcadores conversacionais: um novo aspecto do né? XXIV Anais do GEL, São Paulo, p.660-665.
5. ANEXO I Listagem extraída do Anexo 2 de Marcadores Discursivos: Traços Definidores
6. QUADROS Anexo I Listagem extraída do Anexo 2 de Marcadores Discursivos: Traços Definidores Nº de Ord.
Configurações Inq. Variáveis cf. pesq. de 01 a 10 básica
Dados NURC
linha/ token
025
3021321101
142
246
026
3021321101
142
275
027
3021321101
142
348
134
028
3021321101
142
381
136
(Forma ahn ahn)
164
029
3021321101
121
DID/SA-231
353
030
3021321101
142
D2/SP-360
501
031
3021321101
142
217
(Forma ah)
001
3021321101
241
002
3021321101
241
DID/SP-234
234
003
3021321001
241
004
3121321101
131
005
3121321101
131
006
3121321101
132
D2/RJ-355
012
032
3021321101
142
224
007
3121321101
151
DID/POA-045
191
033
3021321101
142
278
008
3121321101
151
219
034
3021321101
142
009
3121321101
151
188
3021321101
121
010
3121321101
232
011
3121321111
232
012
3121321101
142
DID/RJ-328
D2/RJ-355
D2/SP-360
156
289 DID/SA-231
234
006
(Forma ahn ahn?)
014
035
3021321101
121
253
3021321101
121
302
185
013
3121321101
142
325
036
014
3121321101
212
D2/RE-005
301
(Forma hem?)
011
(Forma certo)
036a
(Forma ahn)
151
DID/POA-045
268
3021121101
241
DID/SP-234
225
3021121101
241 EP/POA-278
041
015
3021321101
241
DID/SP-234
016
3021321101
142
D2/SP-360
143
037
017
3021321101
142
145
038
018
3021321101
142
170
039
3021121101
153
019
3021321101
142
231
040
3021121101
153
020
3021321101
142
233
041
3021121101
142
021
3021321101
142
235
042
3021121101
142
178
022
3021321101
142
237
043
3021121101
142
371
023
3021321101
142
240
(Forma certo?)
024
3021321101
142
244
044
238
3021121101
212
245
042 D2/SP-360
DE/RE-005
168
277
045
3021121101
143
113
085
3021121101
142
347
046
3021121101
143
EF/SP-405
024
086
3021121101
142
355
047
3021121101
143
119
087
3021121101
142
368
048
3021121101
143
046
088
3021121101
142
372
049
3021121101
232
006
(Forma é?)
050
3021121101
232
011
089
D2/RJ-355
3021121101
232
D2/RJ-355
014
DID/RJ-328
552
(Forma entende?)
(Forma claro) 051
3021121101
212
D2/RE-005
288
090
2021121101
131
052
3021121101
121
DID/SA-231
298
091
2021121101
131
053
3121011101
212
D2/RE-005
398
(Forma entendeu?)
054
3121011101
212
398
092
2021121101
222
055
3121011101
212
402
093
2021121101
222
094
2021121101
222
095
2021121101
212
096
2021121101
212
097
2021121101
098
2021121101
(Forma é) 056
3021121101
121
057‘
3021121101
121
DID/SA-231
186
058
3021121101
121
210
059
3021121101
121
214
060
3021121101
121
236
061
3021121101
252
D2/PO-291
179
H530
062
3021121101
113
EF/RE-337
207
063
3021121101
222
D2/SA-098
M425
064
3021121101
222
065
3021121101
222
066
3021121101
131
067
3021121101 3021121101
131
069
3021121101
232
070
3021121101
232
3021121101
E417 DID/RJ-328
131
068
071
E146
309 443 626
D2/RJ-355
006 020
232
003
(Forma é claro) 072
3021121101
121
DID/SA-231
300
241
DID/SP-234
017
(Forma é verdade) 073
3021121101
(Forma é, é) 074
3021121101
232
D2/RJ-355
005
(Forma é, é, é) 075
3021121101
232
004
(Forma .é...) D2/SP-360
D2/SA-098
E515 E580 E655
D2/RE-005
281
223
EF/SA-049
094
121
DID/SA-231
193
EF/RE-337
439
(Forma exato) 099
1021121101
113
100
1021121101
113
280 191
(Forma mas) 101
3121011101
121
DID/SA-231
300
102
3121111001
212
D2/RE-005
262
103
3121111001
212
104
3121111001
212
105
3121011101
131
106
3121111101
131
107
3121011101
241
108
3121011001
241
109
3121111001
212
110
3121011001
212
286
111
3121111001
212
307
112
3121111001
212
349
113
3121111001
212
351
114
3121111001
212
367
115
3121011001
212
398
117
3121011001
212
402
116
3121011001
212
118
3121011001
241
DID/SP-234
046
3121111001
232
D2/RJ-355
007
142
D2/SP-360
290
DID/POA-045
194
076
3021121101
142
077
3021121101
142
133
119
078
3021121101
142
137
(Forma não é verdade)
079
3021121101
142
176
120
080
3021121101
142
196
(Forma não é?)
081
3021121101
142
254
121
3021121101
151
082
3021121101
142
262
122
3021121101
151
083
3021121101
142
263
123
3021121101
151
084
3021121101
142
272
124
3021121101
143
D2/SP-360
647
3021121101
268 288 DID/RJ-328
651 656
DID/SP-234
010 139
D2/RE-005
248
398
228 291 EF/SP-405
005
239
125
3021121101
233
005
170
3021121101
121
201
126
3021121101
233
EF/RJ-379
025
171
3021121101
121
242
127
3021121101
233
029
172
3021121101
121
244
128
3021121101
233
088
173
3021121101
121
247
129
3021221101
233
119
174
3021121101
121
248
130
3021121101
113
119
175
3021121101
121
256
131
3021121101
113
207
176
3021121101
121
257
132
3021121101
113
219
177
3021121101
121
261
133
3021121101
113
233
178
3021121101
121
296
134
3021121101
113
293
179
3021121101
121
299
135
3021121101
113
307
180
3021121101
121
268
136
3021121101
222
D2/SA-098
E570
181
3021121101
121
269
137
3021121101
232
D2/RJ-355
010
182
3021121101
121
275
138
3021121101
212
D2/RE-005
322
184
3021121101
121
292
139
3021221101
131
DID/RJ-328
070
183
3021121101
121
276
140
3021121101
241
DID/SP-234
157
185
3021121101
121
141
3021121101
142
D2/SP-360
155
186
3021121101
233
142
3021121101
142
165
187
3021121101
233
025
143
3021121101
142
171
188
3021121101
233
104
144
3021121101
142
218
189
3021121101
233
144
145
3021121101
142
234
190
3021121101
233
191
3021121101
113
085
192
3021121101
113
EF/RE-337
(Forma não ?) 146
2021121001
147 148 149
284 EF/RJ-379
014
151 EF/RE-337
101
241
DID/SP-234
2021121101
142
D2/SP-360
200
193
3021121101
222
2021121101
142
336
194
3021121101
222
E299
2021121101
142
356
195
3021121101
222
E535
196
3021121101
222
(Forma né) 150
3021121001
151 152
127 D2/SA-098
E146
E580
223
EF/SA-049
091
197
3021121101
131
3021121101
151
DID/POA-045
157
198
3021121101
131
261
3021121101
151
189
199
3021121101
131
367
153
3021121101
151
191
200
3021121101
131
397
154
3021121101
151
197
201
3021121101
131
501
155
3021121101
151
178
202
3021121101
131
515
156
3021121101
151
185
203
3021121101
131
527
157
3021121101
151
230
204
30211/1101
131
537
158
3021121101
151
202
205
3021121101
131
660
159
3021121101
151
206
206
3021121101
131
043
160
3021121101
151
207
207
3021121101
131
161
3021121101
151
212
208
3021121001
241
162
3021121101
151
217
209
3021121001
241
175
163
3021121101
151
245
210
3021121001
241
184
164
3021121001
151
255
211
3021121001
241
195
165
3021121001
151
258
212
3021121001
241
196
166
3021121001
151
262
213
3021121001
241
208
167
3021121101
121
166
214
3021121001
241
209
168
3021121101
121
169
215
3021121001
241
219
169
3021121101
121
187
216
3021121001
241
222
240
DID/SA-231
DID/RJ-328
071
139 DID/SP-234
171
217
3021121001
241
225
262
3021121101
241
218
3021121001
241
235
263
3021121101
241
219
3021121001
241
242
264
3021121101
142
D2/SP-360
286
220
3021121101
211
DID/RE-131
009
265
3021121101
143
EF/SP-405
036
3021121101
151
DID/POA-045
289
025 159
221
3021121101
153
EF/POA-278
049
266
222
3021121101
232
D2/RJ-355
010
(Forma olhe)
224
3021121101
121
DID/SA-231
206
267
3021121101
212
D2/RE-005
415
225
3021121101
121
207
268
3021121101
113
EF/RE-337
042
226
3021121101
121
209
269
3021221101
113
227
3021121101
121
213
270
3021121101
211
DI/RE-131
001
228
3021121101
121
228
(Forma pois é)
229
3021121101
121
230
271
2121121101
222
D2/SA-098
E456
230
3021121101
121
232
272
2121121101
232
D2/RJ-355
018
231
3021121101
121
235
273
2121121111
121
DID/SA-231
297
232
3021121101
121
237
(Forma sabe?)
233
3021121101
121
234
3021121101
232
235
3021121101
236
3021121101
237
224
240
274
3021111101
233
EF/RJ-379
139
001
275
3021111101
252
D2/POA-291
G505
232
005
276
3021111101
131
DID/RJ-328
170
232
011
277
3021111101
131
178
3021121101
232
020
278
3021111101
131
063
223
3021121101
121
DID/SA-231
205
279
3021111101
131
213
238
3021121001
241
DID/SP-234
016
280
3021111101
131
213
239
3021121001
241
039
281
3021111101
131
217
240
3021121001
241
048
282
3021111101
131
229
241
3021121001
241
074
283
3021111101
131
246
242
3021121001
241
143
284
3021111101
131
325
243
3021121101
142
175
285
3021111101
131
349
244
3021121101
142
179
286
3021111101
131
414
245
3021121101
142
185
287
3021111101
131
455
246
3021121101
142
310
288
3021111101
131
630
247
3021121101
142
367
290
3021111101
151
159
248
3021121101
142
380
289
3021111101
131
249
3021121101
223
EF/SA-049
031
291
3021111101
241
250
3021121101
142
D2/SP-360
301
292
3021111101
241
251
3021121101
142
303
293
3021111101
121
252
3021121101
142
116
294
D2/RJ-355
D2/SP-360
027 DID/SP-234
010 120
DID/SA-231
121
188 136
295
3021111101
142
037
296
3021111101
142
245
113
078
297
3021111101
142
213
113
131
(Forma sei)
113
196
298
1021111101
232
D2/RJ-355
017
299
1021111101
142
D2/SP-360
278
DID/RJ-328
(Forma num é) 253
3021121101
113
254
3021121101
255
3021121101
256
3021121101
EF/RE-337
(Forma olha) 257
3021121101
151
DID/POA-045
157
300
131
258
3021121101
151
159
301
131
259
3021121101
252
D2/POA-291
G325
(Forma sim)
260
3021221101
113
EF/RE-337
280
302
2021111101
212
261
3021121101
241
DID/SP-234
020
303
2021111101
212
D2/SP-360
221
063 067
D2/RE-005
237 359
241
304
2120121111
304A
142
D2/SP-360
381
327
3021321101
142
121
DID/SA-231
245
328
3021321101
142
151
329
3021321101
142
164
EF/RJ-379
033
(Forma uhn::)
(Forma tá?) 305
3021121101
233
306
3021121101
233
055
330
307
3021121101
233
065
(Forma uhn?)
308
3021121101
233
065
309
3021121101
233
070
(Forma vamos ver)
310
3021121101
233
075
331
1021111101
153
311
3021121101
233
080
332
1021111101
153
312
3021121101
233
096
(Forma veja)
313
3021121101
233
096
333
314
3021121101
233
113
315
3021121101
233
139
(Forma uhn) 316
3021321101
142
D2/SP-360
386
(Forma uhn uhn)
1121311101
1021321101
1021111101
241
D2/SP-360
DID/SP-234
121
212
147
058
167
EF/POA-278
039 144
D2/RE-005
319
(Forma vem cá) 334
2021111001
212
378
335
2021111001
212
426
336
2021111001
212
430
316
(Forma viu)
317
3021321101
241
318
3021321101
241
DID/SP-241
073
030
319
3021321101
241
094
321
3021321101
241
103
322
3021321101
241
323
3021321101
324
337
2021111101
212
338
2021111101
212
339
2021111101
241
340
2021111101
241
057
147
341
2021111101
241
089
241
199
342
2021111101
241
138
3021321101
241
221
343
2021111101
241
325
3021321101
241
243
344
2021111101
121
326
3021321101
241
210
345
2021111101
121
242
319 DID/SP-234
020
070 DID/SA-231
265 281
243
237
167
121
330
DID/SA-231
058
241
329
DID/SP-360
073
318
268
DID/PO-045
036a
151
302
036
DID/SA-231
D2/SP-360
012
253
121
142
022
D2/RJ-355
164
035
232
006
DID/SP-234
Nº de Linha / Token
240
241
003
Dados do Projeto NURC
023
Nº Inq. Pesq. Básica
Nº de Ordem
Doc
Doc
Doc
Inf
Doc
Inf
L2
Inf
Loc/ Doc/ Inf.
Variáveis:
Formas: ah, ahn, hem?, ahn ahn, uhn, uhn uhn, uhn?
Quadro 1 ANÁLISE D Sobreposição E Pausa
Ocorrências e contexto
Funções Posição/frase Posição/turno
3
4
Doc (...) vamos dizer... de que se compõe a universidade ... administrativamente ela se estrutura como uhn? L1 aí você me apertou porque...
4
Inf (...) mas a peça valeu viu? também palavrões... Doc uhn:: eu já sei
3
3
2
4
Inf (...) não vou muito a cinema prefiro o teatro Doc uhn uhn e o que a senhora a senhora falou (...)
uhn, uhn uhn, uhn?
Inf Aí depois com o professor... que é, hem?... (Obs.: incluído nesta pesquisa)
Doc qual é o tipo de:: de móveis que nós vamos encontrar na biblioteca ahn? como é (...)
Inf (precisamos ter um ambiente bem gostoso) pro estudante... ter o seu recreio ter a sua hora de descanso... ahn?... prática de esporte...
4
5
L1 quando sai... aquela folia assim de um correr atrás dela então ela... se cala um pouco | ahn L2 L1 mas L2 ahn
5
A
Outro marcador Natureza enunc. escopado
L1 (...) eu não conheço um professor que ensine em apenas um lugar, já começa por aí certo? L2 Ah eu ensino em dois lugares (...)
F G
Doc e como a senhora a cha (...)? Inf ah aí você pegou
ah, ahn, hem?, ahn ahn
A B C
3
1
1
3
3
3
4
4
1
1
B
3
1
1
2
2
2
4
4
1
1
C
B/C G
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
D
0
0
0
2
0
3
0
0
0
0
E
Variáveis
0
0
2
0
0
0
0
0
1
0
F
3
1
1
3
3
1
0
0
1
3
G
d
d
e
e
B/C
b
b
b
b
G
Pesquisa Complementar
Pesquisa Complementar Pesquisa Complementar
Quadro 1-A
Funções
Outras/variáveis
Pesquisa Compl.
Nº das Ocorrências
A
B
C
D
E
F
G
B/C
4
4
4
0
0
0
1
c
1, 16, 17, 18, 24, 26
4
4
0
0
1
2
b
15
4
4
1
0
0
1
b
19, 20
4
4
1
0
1
1
b
21
4
4
1
0
0
0
e
22
4
4
0
0
0
0
e
23
4
4
0
0
1
1
a
25
4
4
0
0
0
1
a
27
1
1
1
2
2
2
d
29
4
4
1
0
2
1
c
30
4
4
0
0
3
1
c
31
4
4
1
0
0
1
c
32
4
4
0
0
2
1
b
33
4
4
0
0
2
1
c
34
1
1
0
0
0
3
1
1
1
0
0
1
1
1
0
0
1
1
1
1
1
0
0
3
1
1
0
0
0
1
1
1
0
0
3
1
10
1
1
0
0
2
2
28
1
1
0
0
0
4
4
1
1
0
0
0
3
2
3
2
0
3
0
1
3
3
2
0
0
0
3
b
36
3
2
0
2
0
3
b
36a
Subt. Total
%
G ah, ahn, ahn ahn, hem?
5
6
b
20
55,55
11
30,55
7
2
5,55
35
1
2,80
3, 8, 9, 13 12 6
a
5 11, 14
5,55
2 (faltam dados)
1 Total
37
Total analisado
36
100,00
1
6,66
uhn, uhn uhn, uhn? 3 4
3
3
0
0
0
3
b
330
4
4
0
0
0
1
b
316, 323, 326
4
4
0
0
0
1
a
317, 319, 327
1
1
0
0
2
1
d
318, 321, 322
4
4
0
0
0
1
c
320
4
4
0
0
3
1
a
324
1
1
0
2
3
1
d
325
4
4
1
0
2
1
b
328
1
1
0
0
0
1
d
329 Total
244
14
93,34
15
100,00
245
113
99
EF/RE-337
280
398
212
53
D2/RE-005
277
D2/RE-005
212
225
44
DID/SP-234
Nº de Linha / Token
245
241
37
Dados do Projeto NURC
38
Nº Inq. Pesq. Básica
Nº de Ordem
Formas: certo, certo?, claro, exato
ANÁLISE
Quadro 2
Inf
L2
L2
Doc
Doc
Loc/ Doc/ Inf.
Variáveis: D Sobreposição E Pausa
F G
I.L.A. (...) eu fico com:: com quem diz que:... é igual... | fica em dúvida? Inf I.L.A. é igual | Inf são iguais exato... olha... é mais fácil... pensar:... que (...)
exato
L1 (...) você tá criando uma cul uma criança inculta pra quando ela crescer (...) você educar no mobral L2 mas CLAro...)
L2 esporte é cultura / você não vai me negar isso aí certo?... eu pratico esporte desde menino
Inf tenho impressão não sei Doc certo Inf como Hair você já imaginou (...)
Inf eu acho que (...) que::... deve ser um tipo assim de trabalho mais ou menos oo pessoal de tel/ de de de te/ de televisão né?... Doc certo... ((em tom baixo)) e a senhora nota alguma diferença... (...)
Ocorrências e contexto
Funções Posição/frase Posição/turno
certo, certo?
A B C
4
4
2
4
4
A
Outro marcador Natureza enunc. escopado
1
1
3
4
1
B
1
1
2
4
1
C
B/C G
0
0
0
0
0
D
2
2
2
0
2
E
Variáveis
2
3
0
1
3
F
1
6
2
2
2
G
b
e
b
d
B/C
G
Pesquisa Complementar
Pesquisa Complementar Pesquisa Complementar
Quadro 2 A Funções
Outras/variáveis
Pesquisa Compl. B/C
Nº das Ocorrências
A
B
C
D
E
F
G
2
3
2
0
2
0
2
44
3
2
0
3
2
1
45, 46
3
2
0
1
0
1
47
3
2
0
1
2
1
48
3
2
0
0
0
1
49
3
3
0
0
2
1
50
Subt. Total
%
G certo?
7
50,00
7
50,00
14
100,00
5
100,00
1
100,00
certo 4
1
1
0
0
3
2
d
37
4
4
0
0
1
2
b
38
1
2
0
0
0
1
d
39, 40
4
4
1
0
0
1
c
41, 42
4
4
0
0
0
1
d
43 Total claro
4
1
1
1
0
2
0
d
4
4
0
1
1
1
b
51 52
1
1
0
2
3
1
e
53
1
1
0
0
0
1
d
55
1
2
0
2
3
1
d
54 exato
4
246
1
1
0
2
2
1
b
99
247
017
241
73
DID/SP-234
300
121
72
DID/SA-231
355
86
309
131
66
DID/RJ-328
M425
D2/SA-098
222
179
63
DID/SA-231
Nº de Linha / Token
214
121
56
Dados do Projeto NURC
59
Nº Inq. Pesq. Básica
Nº de Ordem
Formas: é, é claro, é verdade
ANÁLISE
Quadro 3
Doc
Doc
L2
Inf
L2
Doc
Inf
Loc/ Doc/ Inf.
Variáveis: D Sobreposição E Pausa
Ocorrências e contexto
Funções Posição/frase Posição/turno F G
Inf (...) prefiro ir a teatro do que a cinema ... quando o filme não é bom né? Doc é verdade e que tipo de peça (...)
é verdade
L1 aprender a se defender né? Doc é claro... mas voltando ainda (...)
é claro
L1 coitado, cinco anos e já... colocado assim (...) | é L2
Doc tem um gosto diferente... Inf é tem um gosto bastante diferente(...)
L1 (...) é a conhecida Vitória – Minas L2 é mas isso também é uma puxada danada...
Inf ainda é faculdade né? porque tem o (...) | Doc é
Doc reformaram também os departamentos (nem) aumentaram ou reduziram de forma que Inf é porque eles fizeram exatamente isso (...)
é
A B C
4
4
4
4
4
4
4
A
Outro marcador Natureza enunc. escopado
1
1
4
1
1
4
1
B
1
1
4
1
1
4
1
C
B/C G
0
0
1
0
0
1
0
D
0
2
0
0
0
0
0
E
Variáveis
3
3
0
0
0
4
0
F
1
1
6
1
1
1
0
G
d
d
c
d
d
b
d
B/C
G
Pesquisa Complementar
Pesquisa Complementar Pesquisa Complementar
Quadro 3-A Funções
Outras/variáveis
Pesquisa Compl. B/C
Nº das Ocorrências
A
B
C
D
E
F
G
3
3
3
0
0
0
3
4
1
1
0
0
0
0
d
56
1
1
1
0
0
1
d
57
4
4
1
0
1
1
b
58
4
4
1
0
4
1
b
59
4
4
0
0
1
2
b
60
1
2
0
0
0
6
b
61
1
1
0
0
0
1
d
63, 64, 66, 69, 71
1
1
1
2
0
1
d
1
1
0
0
0
3
d
1
1
0
2
0
1
a
68
1
1
0
0
2
0
d
74, 75
1
1
0
2
0
1
c/d
1
1
0
2
0
1
d
77, 78
4
4
0
0
1
1
c
78
1
1
0
0
1
1
d
79
4
4
1
0
0
1
c
80
1
1
1
2
0
1
c/d
Subt. Total
%
G é a
89
1
3,33
29
96,67
1
100,00
1
100,00
65 a
67
76
81 é, é?
4
4
0
0
2
1
b
82
1
1
0
0
1
0
d
83
1
1
1
2
0
1
c/d
84
1
1
0
0
0
6
d
85
4
4
1
0
0
6
c
86
1
1
1
2
2
1
d
87 62,70 faltam dados é claro
4
1
1
0
2
3
1
d
72 é verdade
4
248
1
1
0
0
3
1
d
73
249
343
070
089
241
341
DID/SP-234
033
233
305
EF/RJ-379
630
288
DID/RJ-328
178
131
552
277
DID/RJ-328
Nº de Linha / Token
439
131
90
Dados do Projeto NURC
96
Nº Inq. Pesq. Básica
Nº de Ordem
Formas: entende?, entendeu?, sabe?, tá?, viu?
ANÁLISE
Quadro 4
Inf
Inf
Inf
Inf
Inf
L1
Inf
Loc/ Doc/ Inf.
Variáveis:
(...) eu falo muito em verduras porque justamente é a base da minha alimentação entende?... então a (...)
porque eu acho que a base é mais a carne sabe? ... lá em cima não eles têm (...)
F G
Inf (...) mas foi bom também viu? sei lá eu acho que (...)
Inf (...) não lembro o nome dela viu? Doc e o que mais chamou a atenção (...)
viu?
2
2
2
2
2
2
2
A
Outro marcador Natureza enunc. escopado
Inf (...) a a população do Japão... (...) SABIA que pra conseguir sobreviver... tá? ... PREcisava AMPLIAR a sua área (...)
tá?
Inf (...) nós não vimos nada sabe? Doc agora aquela... (...)
Inf
sabe?
L1 (...) as pessoas cultas dizem que | mas ele é bom Ed L2 L1 Roberto Carlos é bom... entendeu? | L2 é bom
Inf
D Sobreposição E Pausa
Ocorrências e contexto
Funções Posição/frase Posição/turno
entende?, entendeu?
A B C
3
3
2
3
3
3
3
B
2
3
2
3
2
3
2
C
B/C G
0
0
0
0
0
0
0
D
0
0
3
0
2
1
2
E
Variáveis
2
2
0
0
0
0
2
F
1
1
1
1
2
1
1
G
B/C
G
Pesquisa Complementar
Pesquisa Complementar Pesquisa Complementar
Quadro 4-A Funções
Outras/variáveis
Pesquisa Compl. B/C
Nº das Ocorrências
A
B
C
D
E
F
G
2
3
2
0
2
2
1
90,91
3
2
0
1
0
1
92, 94, 95
2
2
0
3
0
1
93
3
3
0
1
0
1
96
3
2
0
3
2
1
97
2
2
0
2
2
1
98
Subt. Total
%
9
100,00
24
100,00
11
100,00
9
100,00
G entende?, entendeu
Total sabe? 2
3
2
0
0
0
1
274, 275, 279, 280, 281, 282, 284, 285, 290, 292
3
3
1
0
0
1
3
2
0
2
0
2
276 277
3
2
0
2
0
1
278, 283, 287
3
2
0
1
0
1
286, 297
3
3
0
0
0
1
288
3
2
0
0
1
1
289
3
2
0
0
2
6
291
2
2
0
1
0
1
293
2
2
0
3
0
1
294
3
2
0
0
2
1
295
3
3
0
0
2
1
296 Total tá?
2
2
2
0
3
0
1
2
2
0
1
0
1
305, 309, 313 306
2
2
0
0
0
1
307, 312, 314
3
2
0
0
1
1
308
3
2
0
3
0
1
310, 315
3
2
0
1
0
1
311 Total viu?
2
3
3
0
0
0
1
337
3
2
0
0
0
1
338, 340, 342
2
2
0
0
0
1
339
3
3
0
0
2
1
341
3
2
0
0
2
1
345
3
2
0
3
0
1
346
3
2
0
1
2
1
347 Total
250
251
402
10
117
DID/SP-234
656
398 398
241
107
DID/RJ-328
300
115 116
131
106
DID/SA-231
Nº de Linha / Token
139
121
101
Dados do Projeto NURC
108
Nº Inq. Pesq. Básica
Nº de Ordem
Formas: mas
Quadro 5 ANÁLISE
L2
L2 L2
Inf
Inf
Inf
Doc
Loc/ Doc/ Inf.
Variáveis: D Sobreposição E Pausa
Ocorrências e contexto
Funções Posição/frase Posição/turno F G
L1 (...) você tá criando uma cul uma criança inculta pra quando ela crescer (...) você educar no mobral L2 mas CLAro... L2 mas CLAro... lógico... mas você também não pode | então é im-por-tan-tís-simo... cultivar L1 ... a plantinha desde pequena L2 mas claro mesmo porque (...)
Inf (...) não tinha nem onde sentar viu? eu disse “meus Deus” foi domingo à tarde MAS uma molicada... sei lá eu (...)
Inf (...) éh:: um grupo assim:: da minha idade (...) são é uma assistente social MAS ela é formidável sabe?
Inf passamos uma noite nós fomos a um restaurante há:: ... numa região de mas é uma região muito típica italiana (...)
L1 aprender a se defender né? Doc é claro... ma(i)s voltando ainda aos móveis é... a:: a estrutura física (...)
A B C
1
1
5 5
1
1
1
1
1
B
1
1
1
2
2
2
1
C
B/C G
5
5
5
5
5
A
Outro marcador Natureza enunc. escopado
0
0
0
0
0
0
0
D
0
0
0
0
0
0
1
E
Variáveis
2
2
2
0
0
0
3
F
0
6
6
6
6
1
1
G
B/C
G
Pesquisa Complementar
Pesquisa Complementar Pesquisa Complementar
Quadro 5-A Funções
Outras/variáveis
Pesquisa Compl.
B
C
D
E
F
G
5
1
1
0
1
3
1
1
1
0
0
0
3
1
1
0
0
0
6
103
1
1
1
0
2
1
104
1
2
0
1
1
1
105
1
2
0
0
0
1
106
1
2
0
0
0
6
107, 108
1
1
1
0
0
1
109, 112
1
1
1
0
0
6
110
1
1
0
0
0
1
113, 114
1
1
0
0
2
6
115
1
2
0
0
2
6
116
1
1
0
0
2
0
117
1
1
0
0
0
2
118
1
1
0
0
2
1
119
252
B/C
Nº das Ocorrências
A
Subt. Total
%
19
100,00
G 101 b
102,111
253
142
113
232
147
256
222
D2/RJ-355
EF/RE-337
D2/SP-360
010
196
200
085
241
146
DID/SP-234
E570
D2/SA-098
219
222
EF/RE-337
290
136
113
132
D2/SP-360
Nº de Linha / Token
293
142
120
Dados do Projeto NURC
134
Nº Inq. Pesq. Básica
Nº de Ordem
Formas: não é verdade?, não é? / num é?, né?
Quadro 6 ANÁLISE
L2
Inf
L1
Doc
L1
Inf
Inf
L2
Loc/ Doc/ Inf.
Variáveis: D Sobreposição E Pausa
F G
L2 (...) então deu quarenta e, quarenta e poucos por cento né? não tenho bem idéia mas (...)
né?
Inf (...) então ... essas... são as três.. num é? perspectivas ... elas são (...)
num é?
L1 (...) é supervisora nata é assim... ah... toma conta... precocemente não? das:: atividades dos irmãos (...)
Doc eu acho que foi Casa de Bonecas não? Inf foi... com quem foi Casa de Bonecas?
não?
L1 (...) Porque geralmente as estradas melhores são de tráfego mais... pesado não é? L2 Bom, mas você.. você viu (...)
2
2
2
2
2
2
2
2
A
Outro marcador Natureza enunc. escopado
Inf (...) nós poderíamos sim distinguir esses ... a legal... não é? e a sociologia do direito (...)
Inf (...) bem nós VA:MOS não é admitir... aqui... em aula... que: existe (...)
não é
L2 (...) lá lá em casa é tudo em função de horário... Doc ahn ahn L2 ... não é verdade? então eles são (...)
Ocorrências e contexto
Funções Posição/frase Posição/turno
não é verdade?
A B C
3
2
2
3
3
2
2
3
B
2
2
2
3
3
2
2
2
C
B/C G
0
0
0
0
0
0
0
0
D
0
0
0
0
0
1
0
1
E
Variáveis
0
0
0
0
2
0
0
1
F
1
1
1
2
1
1
1
1
G
B/C
G
Pesquisa Complementar
Pesquisa Complementar Pesquisa Complementar
Quadro 6-A Funções
Outras/variáveis
Pesquisa Compl.
A
B
C
D
E
F
G
2
3
2
0
1
1
1
B/C
Nº das Ocorrências
Subt. Total
%
G não é verdade? 120 V. é verdade (FB) não?
2
3
3
0
0
0
2
2
2
0
0
0
1
147
146
3
3
1
0
0
1
148, 149
4
100,00
26
100,00
não é?, num é? 2
3
2
0
3
0
1
121
3
2
0
0
0
1
122, 125, 137, 255
3
2
0
2
0
1
123
3
2
0
3
1
0
124
2
2
0
0
0
0
126
3
2
0
0
2
1
127
2
2
0
0
0
3
128
3
2
0
0
3
1
129
2
2
0
0
0
1
130, 132, 254, 256
2
2
0
1
0
1
133, 134, 135
3
3
0
0
2
1
136
3
2
0
1
0
1
140
3
2
0
1
1
1
141
3
2
0
3
2
1
142
3
3
1
2
0
1
143
3
2
0
3
3
1
144
3
2
0
1
2
1
145 (131, 139, 253) não analisados né?
2
3
3
0
0
0
1
3
2
0
0
0
1
150, 162, 172, 233 151, 152, 155, 156, 158, 159, 165, 168, 170, 174, 188, 189, 190, 191, 200, 202, 203, 204, 205, 206, 207, 209, 211, 213, 220, 221, 222, 223, 224, 234, 236, 237
3
2
0
2
0
1
153, 160, 161, 163, 164, 169, 182, 195, 197, 212, 232
3
3
0
0
2
1
154, 171, 179, 194, 208, 214, 235, 238, 243
254
2
2
0
2
0
1
157, 176
2
2
0
0
0
1
166, 186, 187, 201, 239
2
2
0
2
0
0
167
3
2
0
0
0
2
173, 216, 217, 218, 242
3
2
0
2
2
1
175, 196, 215, 228
3
3
0
0
0
2
177
3
2
2
0
2
1
178
(Continuação do Quadro 6-A)
3
2
2
0
3
0
0
180
3
2
0
3
0
2
181
3
2
0
3
0
1
183, 185
2
2
0
1
0
0
184
3
2
0
0
2
1
192, 198, 226, 231, 246
3
3
1
0
2
1
193
2
2
0
0
0
2
210
3
3
0
0
2
2
219
3
2
1
0
0
1
225, 244, 247
3
2
1
0
4
1
227
3
2
0
0
0
6
240
2
2
0
0
2
1
241
3
3
1
0
0
1
145, 250
2
2
1
‘0
0
1
248
2
2
0
3
0
1
249
2
2
0
0
0
1
251
3
2
0
1
2
1
252,
3
2
0
2
0
3
b
229, 230
100
98,03
2
1,97
255
Quadro 6 ANÁLISE Variáveis:
Formas: olha, olhe,vamos ver, veja, vem cá
D Sobreposição E Pausa
Outro marcador Natureza enunc. escopado
B/C G Variáveis
Pesquisa Complementar Pesquisa Complementar
G
F G
F
Ocorrências e contexto
Funções Posição/frase Posição/turno
E
A B C
D
153
212
212
EF/POA-278
D2/RE-005
D2/RE-005
036
039
319
378
Inf
L1
que a gente possa dizer “olha ... se o desenvolveu NESTe sentido...“ (...) vamos ver Inf (..) simplesmente eu classifiquei mas eu isso não acontece quando se faz uma taxionomia então, vamos ver, vamos ajudando texionomia é uma classificação mas é mais do que (...) veja L2 (..) o povo vai ligar (...) pra Chico Buarque de Holanda Caetano ora se vai | não veja eu continuo achando viu? vem cá
L1
G
C
a
265
331
333
334
|
B/C
B
3
b
Pesquisa Complementar
A
0
3
Loc/ Doc/ Inf.
0
0
1
Nº de Linha / Token
0
0
0
1
Dados do Projeto NURC
1
0
2
2
1
Nº Inq. Pesq. Básica
1
1
0
0
0
1
Nº de Ordem
1 1
1
0
0
0
1
olha
1
1
2
1
0
0
1
Inf
6
2
2
0
2
0
157
1
2
2
1
0
151 DID/POA-045
1
2
1
1
257
1
1
1
Doc Não gosta de jogo? Inf Olha, eu gostode jogo de carta né? ... mas Doc Que tipo de jogo? Inf Olha, só sei jogar buraco (...)
L2 (...) eu não ligo ((TV)) porque ( ) | na minha opinião L1 é o teatro vem cá eu eu impugno... acho (...)
1
1
Inf (...) então... não é uma história ligadinha
L2 não é ruim não eu acho que não | L1 vem cá ... não adianta se dizer (...)
1
Inf
L1
pois eu gosto dele vem cá vou dizer mais uma coisa a você...
159
L1 L2 L1
EF/SP-405
426 L1
143
335 430
258
336
256
Quadro 7-A Funções
Outras/variáveis
Pesquisa Compl. B/C
Nº das Ocorrências
Subt. Total
%
A
B
C
D
E
F
G
G
1
1
1
0
0
0
3
a
257, 259, 264
1
1
0
0
0
3
b
258
1
2
0
3
1
1
1
2
0
0
2
3
1
2
0
0
0
1
1
2
0
0
0
3
1
2
0
0
0
0
268
1
2
0
1
0
1
269
1
1
0
0
0
0
270
13
1
1
0
2
0
1
265
1
7,14
14
100,00
Total
2
100,00
Total
1
100,00
Total
3
100,00
olha, olhe
6
260 b
261 262, 263, 266
b
267
Total
92,86
vamos ver 1
2
2
0
0
2
1
331
2
2
0
0
0
1
332 veja
1
2
2
1
0
0
1
333 vem cá
1
2
2
0
0
0
1
334
1
1
1
2
0
1
335
1
1
1
0
0
1
336
257
Quadro 8 ANÁLISE Formas: pois é, sei, sim
Variáveis: A B C D Sobreposição E Pausa
Outro marcador Natureza enunc. escopado
B/C G Variáveis
Pesquisa Complementar Pesquisa Complementar
G
F G
F
Ocorrências e contexto
Funções Posição/frase Posição/turno
E
L1
L2 (...) então ontem já começou a | sei ah é? ah apareceu um negócio L1
B/C
D
017
sei D2/RJ-355
sim
232
381
359
237
298
D2/SP-360
D2/RE-005
Doc
212
142
G
Pesquisa Complementar
C
pois é
B
Loc/ Doc/ Inf.
A
Nº de Ordem
Nº de Linha / Token
b
Dados do Projeto NURC
1
d
Nº Inq. Pesq. Básica
2
0
c
L1
2
2
1
d
E 456
1
0
2
1
d
D2/SA-098
1
1
0
0
1
d
222
1
1
0
0
2
1
271
4
1
4
1
0
1
L1 (...) chamam até de Vitória-Minas. Pois é (superp.) é uma viagem de ida muito interessante (obs.: faltam dados para a análise)
4
4
1
0
0
Doc
4
1
1
0
027
297
4
1
1
DID/RJ-328
DID/SA-231
L2 (...) eu tenho assistido ou ouvido coisas notáveis de Dom Helder no programa das seis horas da manhã | | L1 é óbvio sim que é que tem isso? L2 verdadeiras lições de vida
4
1
131
121
L1
L2 (...) porque a televisão é tempo caro depende de ... patrocionador L1 sim e que tem isso? L2 ora então até para patrocinador (...)
4
300
273
L1
L1 (tempo) suficiente (né?) de repouso L2 ah sim sete sete e meia que sois e meia da manhã (...)
Inf (...) praticarem... a natação... tanto é bom pra saúde quanto pra defesa né? | Doc pois é .... claro Inf aprender a se defender né?
L2
Inf (...) eu geralmente levo maçã... Doc sei Inf sabe? eu gosto muito de maçã
302
303
304
258
ASPECTOS TEXTUAIS-INTERATIVOS DOS MARCADORES DISCURSIVOS DE ABERTURA BOM, BEM, OLHA, AH, NO PORTUGUÊS CULTO FALADO
Mercedes Sanfelice Risso (UNESP/Assis – CNPq)
Apresentação O acompanhamento dos inquéritos do Projeto NURC (Br.), que fazem parte do corpus mínimo compartilhado estabelecido para a elaboração de uma gramática referencial do português culto falado, permite atestar a presença de procedimentos diversificados de abertura de unidades textuais, de dimensão e natureza variadas. Trata-se de procedimentos em geral polivalentes que, embora comumente associados à função de abertura, nem sempre a exercem em caráter permanente e exclusivo. Entre eles, constam, por exemplo: – recursos variados de tematização, aplicados à apresentação de um quadro de referências para o que vai ser dito a seguir (“... depois o café :: em casa o café é muito demorado ... muito complicado (...)” – SP-360, l. 311-312); – advérbios modalizadores, com forte propensão, dentro de sua variabilidade posicional, para aparecerem à margem esquerda dos enunciados, traduzindo a avaliação do locutor sobre o fato asseverado (realmente, certamente, naturalmente, logicamente...); – enunciados oracionais mais ou menos formulaicos, configuradores do ponto de vista dentro do qual um conteúdo subseqüente é abordado (eu tenho a impressão de que, eu penso que, eu acho que...); – formulações metadiscursivas, referidas à atividade verbal que fundamenta o desenvolvimento do tópico ou segmento de tópico dado a seguir 259
(pergunto a você o seguinte, uma última coisa que eu gostaria de dizer é ..., vamos agora entrar com a parte bem prática); – marcadores discursivos (bom, bem, olha, ah, agora, é o seguinte, quanto a, para começar, primeira coisa, primeiro ponto, e tem mais ...), que encerram em si uma espécie de ato preparatório de uma declaração seqüente. Considerando-se o plano específico dos marcadores (doravante designados como M. ou M.D.), serão objeto de exame neste trabalho as quatro primeiras unidades citadas: bom, bem, olha, ah. Essas unidades destacamse conjuntamente em relação às demais, por apresentarem em comum a propriedade reiterante de iniciarem turnos de resposta, em estruturas de pares conversacionais adjacentes, nos textos analisados e, portanto, por serem veículos de uma seqüencialização dependente do contrato de interlocução que propiciam. Estabelece-se, assim, o primeiro contexto de ocorrência dos referidos M., participantes de uma estrutura seqüencial interativa, em que os turnos de pergunta e resposta, reciprocamente interdependentes e atados por uma relação de relevância condicional (Schegloff, 1972), denunciam o envolvimento mútuo dos locutores, no evento discursivo. A articulação das duas partes constitui um esquema bastante reincidente: no turno da pergunta, observa-se com freqüência, mas não invariavelmente, o M. e, a abrir a proposição de um novo tópico que o locutor, geralmente documentador, pretende ver abordado pelo parceiro na seqüência discursiva. No início do turno resposta, ora o M. bom, ora bem, ah ou olha, a definirem a reação imediata ao esquema enunciativo envolvido no turno precedente e, portanto, a “atitude responsiva ativa” (Bakhtin, 1992) do interlocutor, para o atendimento do que lhe foi solicitado1: (1) 317 Doc -
E como passavam o dia?
318 Inf -
Olha eu era tão pequena sabe que eu já não me lembro disto...
319
O que é que a gente fazia? A gente andava pra... por aqui,
320
por ali ... mas o que a gente fazia mesmo eu não ... posso dizer. (DID-POA-045)
260
(2) 162 Doc -
e como é que a senhora Acha que é elaborada uma peça de
163
teatro antes dela ser apresentada?
164 Inf -
ah aí você pegou porque eu não sei como é
165
elaborada? ... deve ser como na televisão eles preparam
166
o o o::... o a peça ... e:: devem dividir o o os ... o o as
167
partes para os artistas deve ter um ensaio meDOnho aquilo
168
deve ser cansativo horroROso (...) (DID-SP-234)
(3) 11
L2 -
Qual é o pior ... horário ... dessa saída da cidade ... de manhã?
12
L1 -
Bom ... o pior horário ... de saída ... da cidade de manhã ...
13
L2 -
fica mais ou menos entre seis e oito horas né?
14
L1 -
não de seis ainda sai bem ... mas entre sete ... até umas:
15
oito e meia ... é a pior ... hora de saída ... (D2-SA-098)
(4) 221 I.L.A. - daí é que vem minha 222
pergunta porque que: o experimento em laboratório... é
223
mais válido do que experimento “in loco?”
224 Inf. -
bem... o de laboratório é mais válido João... sempre
225
que você pode fazer porque normalmente é difícil você
226
fazer o experimento de laboratório... é mais válido...
227
porque você... tem o homem como se o homem estivesse...
228
despido... de ideologia... de sua cultu:ra... de seu:
229
sentido... de religiosidade... tanto quanto possível
230
é claro... (EF-Rec.-337)
261
Esse traço básico de intersecção entre os quatro M. carreia também uma conseqüente identidade entre eles, pelo vínculo comum que apresentam com a dialogicidade, em sentido restrito, ou seja, com a interlocução ativa relacionada à dinâmica de alternância de turnos, na interação face a face. A aplicação dos referidos M. às aberturas de turnos na segunda parte de pares adjacentes e as particularidades interacionais e articulatórias carreadas nesse processo constituem, assim, a motivação inicial do presente estudo e, portanto, um dos pontos de abordagem neste trabalho. A exploração do corpus revelou, entretanto, que a atuação dos M. em questão não fica restrita a esse esquema estrutural de intermediação do par pergunta/resposta. Estende-se também a outros enquadramentos, podendo-se verificar seu emprego em processos de abertura, de um modo mais geral: abertura de tópicos, coincidentes ou não com o início de turnos; abertura de segmentos intratópicos, delimitando a introdução de pequenos passos na evolução da informação, dentro de um mesmo ponto global de centração tópica. Assim, uns mais, outros menos, encabeçam, no decorrer do tópico, operações de exemplificação, de citações, de reintrodução de uma seqüência expositiva temporariamente suspensa, de movimentos argumentativos de ressalvas, concessões, entre outros aspectos. Ao mobilizarem essas diferentes instâncias de abertura no plano da informação, a posição ocupada pelos M., relativamente às unidades do tópico e do turno, define-se, pois, como inicial ou intermediária. É, entretanto, invariavelmente inicial a posição que ocupam relativamente às unidades frásicas que dão corpo às operações a que acabamos de nos referir. Esta constatação permite, pois, assegurar o teor de abertura atribuído aos M., mesmo quando ocorrentes em posição intratópica ou intraturno, casos em que a abertura será compreendida relativamente a aspectos novos de uma informação já parcialmente desencadeada. As circunstâncias acima referidas apontam para a questão da unidade de análise a ser tomada como base para a observação dos aspectos funcionais variados das ocorrências. Dada a incidência de todos os aspectos no tecido informativo do texto, o tópico discursivo, conforme definido em Jubran, Urbano et alii (1992), destaca-se naturalmente como coordenada central de observação, suficientemente abrangente para viabilizar o exame das diferentes aplicações dos quatro M. O recorte dessa unidade global de análise não exclui a tomada de unidades de diferente natureza, atinentes a outras formas de organização mais local do texto 262
falado, como o turno, os pares adjacentes, ou a própria frase, a serem vistas sempre na sua relação com a estruturação tópica. O corpus que serve de base para a investigação do comportamento das formas selecionadas envolve, como modalidades de inquérito, elocuções formais (EF), diálogos entre informante e documentador (DID) e diálogos entre dois informantes (D2), do Projeto NURC-Br, assim codificados: EF
DID
D2
Salvador (Sa)
049
231
098
Porto Alegre (Poa)
278
045
291
Recife (Rec.)
337
131
05
Rio de Janeiro (RJ)
379
328
355
São Paulo (SP)
405
234
360
Investigam-se quinze minutos de cada gravação, perfazendo um total de 225 minutos. A linha textual-interativa é assumida, como expressão da adoção de uma concepção de texto nitidamente firmada na perspectiva sócio-comunicativa, que aponta não só para os aspectos cognitivo-informativos contidos no produto lingüístico e nas partes de sua estrutura, mas também para a compreensão desse produto como algo que congrega e sinaliza os interlocutores, o processo de produção e interação (Koch et alii, 1993). O tratamento dos M. bom, bem, olha, ah permitirá, com especial evidência, revelar essa inscrição do processo formulativo e interacional na materialidade lingüística do texto, uma vez que se firmam claramente como sinalizadores pragmáticos do monitoramento local do texto falado e das relações interlocutivas responsáveis por sua co-produção dinâmica e emergencial. Na sua condição de M., estabelecem-se como embreadores dos enunciados com as condições da enunciação, apontando, portanto, para as instâncias produtoras do discurso e definindo a relação dessas instâncias com a estruturação textual-interativa. Na busca de aspectos sintagmáticos da organização particular do texto falado, assim compreendido como algo simultaneamente estruturado e emergente, a análise procurará examinar as regularidades de ocorrência dos M., a partir da observação de sua recorrência em contextos definidos e da qualidade do preenchimento conjunto de funções interacionais e articuladoras que se vão manifestando ao longo da construção textual. 263
O trabalho está dividido em três partes. Uma primeira, introdutória, tem uma tônica teórico-conceitual, ao centrar-se na delimitação da natureza da classe dos M. Nela são registrados, na pista de pesquisa anteriormente desenvolvida (Risso, Silva e Urbano, 1996), os traços básicos definidores dos M.D., de modo geral (1.1), como suporte para o enquadramento subseqüente de bom, bem, olha e ah, relativamente aos traços categoriais apurados (1.2). A segunda parte detém-se na análise qualitativa das funções textuais dos quatro M., com centração nos aspectos da orientação interacional e da articulação de segmentos do texto, detectados no tratamento do corpus. Após estabelecimento de um dado de análise preliminar (2.1), parte-se para a apreensão de características relacionadas à atuação desses M. em estruturas de pares adjacentes com pergunta/resposta (2.2), que correspondem a 42,18% das ocorrências levantadas. Posteriormente (2.3), estende-se o campo de observação para outros contextos, dissociados da correlação pergunta/resposta, os quais perfazem, no corpus examinado, um conjunto de 57,82%. Em forma de considerações finais (3), é feita uma rápida síntese retrospectiva de alguns aspectos examinados (3.1), e são apuradas diferenças gerais, de ordem tipológica, entre as classes de inquéritos investigados, no tocante a tendências básicas observadas no uso dos quatro M. (3.2).
1. Introdução 1.1 Marcadores Discursivos: Assentamento de Traços Definidores O assentamento de traços definidores dos M.D., tendo em vista a delimitação de seu estatuto face a outros elementos discursivos que deles se avizinham, constituiu objeto de consideração pormenorizada em trabalho conjunto anterior (Risso, Silva e Urbano, 1996). Uma das constatações feitas no processo de investigação das propriedades gerais dos M.D. foi a de que estes se definem por matrizes de traços mais ou menos constantes a eles aplicáveis. A apuração das matrizes básicas de traços decorreu, na referida pesquisa, da consideração de diferentes variáveis, e do exame das formas de enquadramento das ocorrências no elenco de alternativas previstas no interior de cada variável2. As freqüências obtidas, reveladoras das regularidades ou tendências de enquadramento dos exemplares, forneceram indicações sobre aqueles que podem ser considerados como traços fortes na compreensão do que venham a ser os M. Os elementos apurados apontam para uma concepção básica de M. como elementos: 264
a) altamente recorrentes no espaço textual (na variável 1, referente ao padrão de recorrência dos M., a maior freqüência recaiu sobre o traço 3 (recorrência alta)). b) atuantes no plano da organização textual-interativa, com tônica funcional na articulação entre segmentos textuais (variável 2 (função articuladora) = traço 1 (articulador tópico)), ou na sinalização das relações interpessoais (variável 3 (orientação para a interação) = traço 2 (basicamente orientado para a interação)). A projeção da função articuladora é quase regularmente equilibrada com o menor peso do fator interacional. E, em contrapartida, o estabelecimento focal da interação corresponde, quase sempre, a uma diluição do papel articulador. Essa constatação permite apurar, no que diz respeito às variáveis 2 e 3, as seguintes associações de traços complementares contrabalanceados: Var. 2 (articulação de segmentos do discurso)
1 (articulador tópico)
Var. 3 (orientação para a interação)
0 (fragilmente interacional)
T ex.: então R 1 (articulador tópico)
1 (secundariamente interacional)
A ex.: agora Ç 0 (não seqüenciador)
2 (basicamente interacional)
O ex.: certo? né? S
A possibilidade prevista pela combinação cumulativa 1 (articulador tópico) + 2 (basicamente interacional) é atestada em ocorrências esporádicas de M. c) exteriores ao conteúdo informativo dos tópicos ou segmentos de tópicos (variável 4 (relação com o conteúdo proposicional ou tópico) = traço 1 265
(exterior ao conteúdo)). Entretanto, asseguram a ancoragem pragmática desse conteúdo, ao definirem, entre outros pontos, a força ilocutória com que ele pode ser tomado, as atitudes assumidas em relação a ele, a checagem de atenção do ouvinte para a mensagem transmitida, a orientação que o falante imprime à natureza do elo seqüencial entre as unidades textuais. Codificam, portanto, no dizer de Fraser (1990), uma informação pragmática; d) não totalmente transparentes do ponto de vista semântico-referencial, em decorrência de uma espécie de cristalização de semas e acomodações de significados à sinalização de relações no espaço discursivo (variável 5 (transparência semântica) = traço 1 (transparência parcial)). e) de pouca ou nenhuma variação fonológica, flexional ou sintática: a ausência ou a reduzida proporção das variações e/ou elaborações, observadas em poucas formas variantes, (Ex.: né ~ não é; olha ~ olhe; entende ~ entendeu), atesta para os M. a sua condição de fórmulas mais ou menos fixas, já prontas para serem automaticamente usadas no discurso (variável 6 (apresentação formal) = traço 1 (forma única) ou 2 (forma variante)). f) independentes do ponto de vista sintático, isto é, sem integração sintática na estrutura oracional em que se alocam (variável 7 (relação sintática com a estrutura oracional) = traço 1 (sintaticamente independente)). g) realizados, na maior parte das vezes, com o acompanhamento de uma pauta prosódica demarcativa, ora bem definida – em ocorrências delimitadas por nítida curva entonacional, com rebaixamento de tom no final da unidade –, ora bastante sutil (variável 8 (demarcação prosódica) = traço 1 (com pauta demarcativa)). h) insuficientes para constituirem enunciados completos por si próprios: na condição de sinalizadores de aspectos da estruturação textual-interativa, os M. são, do ponto de vista comunicativo, unidades não-autônomas, diferenciando-se, nesse ponto, mas não somente nele, das interjeições, dos vocativos, das palavras-frase (variável 9 (autonomia comunicativa) = traço 0 (comunicativamente não-autônomos)). i) reduzidos, em sua massa fônica total, a um limite de até três sílabas tônicas (variável 10 (massa fônica) = traço 1 ( até 3 sílabas tônicas)), o que, do ponto de vista da constituição léxica, significa uma extensão reduzida a 1, 2 ou, no máximo, 3 palavras. O envolvimento de maior número de unidades léxicas ou de sílabas tônicas, na constituição de um possível MD, implicaria, normalmente, um grau maior de elaboração sintática e de transparência semântico-referencial, que parece pouco compatível com o caráter mais formulaico característico de sua composição. 266
Da soma de traços fortes (mais freqüentes) assim estabelecidos dentro das variáveis investigadas, decorrem combinatórias básicas que permitem avaliar o padrão de prototipicidade dos MD, conforme sua amoldagem parcial ou total às seguintes configurações: Variáveis →
Traços
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
3
1
0
1
1
1|2
1
1
0
1
3
1
1
1
1
1|2
1
1
0
1
3
0
2
1
1
1|2
1
1
0
1
A aplicação dessas matrizes, longe de ocorrer de forma monolítica e absoluta, realiza-se numa margem relativamente flexível de oscilações, dentro da qual é possível situar a classe dos M.D. Em razão, pois, de sua própria condição de mecanismos discursivos, os M., mesmo que admitam traços mais ou menos regulares, que definem o seu estatuto, não chegam a constituir uma classe discreta e absolutamente homogênea. A possibilidade de desvios em um ou outro ponto das combinatórias apuradas não acarreta, necessariamente, a eliminação de ocorrências, com pequenos traços desviantes, da classe dos M.D. A afirmação não se aplica, porém, às variáveis 4, 7 e 9, cujos traços 1, 1 e 0 – que definem, respectivamente, a exterioridade dos MD em relação ao conteúdo proposicional e tópico, a independência sintática e a falta de auto-suficiência comunicativa – estabelecem-se como configuração “sine qua non” da condição de M. Esses traços são sempre estáveis e formam, juntamente com a já referida distribuição de funções entre os aspectos da articulação tópica e da orientação da interação, das variáveis 2 e 3, um núcleo piloto essencial para um reconhecimento inicial do estatuto de marcador, mas nem sempre suficiente para a sua segura delimitação relativamente a outros mecanismos discursivos que lhe são limítrofes. Constitui um importante complemento, na configuração geral da classe dos M., a forma de preenchimento de traços, nas demais variáveis (mencionadas em a, d, e, g e i), dentro de limites de flexibilidade mais ou menos previsíveis e descritíveis. A aplicação da rubrica de MD a formas que não preenchem uniformemente toda a seqüência de traços fortes detectados e que, portanto, não apresentam em bloco todas as propriedades das matrizes-padrão, manifesta a concepção de uma classe gradiente, própria de configurações discursivas. Tería267
mos, segundo essa concepção, um continuum, característico de uma série em movimento, com elementos mais típicos e mais modelares – que incorporam de modo uniforme e integral os referidos traços de uma das matrizes-padrão– e elementos menos típicos e modelares – que manifestam esses traços de modo mais ou menos parcial e diversificado. Essa diversificação se dá dentro de uma margem relativamente controlável quanto ao(s) ponto(s) de sua incidência e quanto à proporção da manifestação desviante, a qual, de modo geral, não ultrapassa dois pontos de uma das matrizes.
1.2 Posição dos Marcadores em Estudo no Continuum de Traços Definidores de Marcadores Discursivos O exame do subgrupo das unidades em estudo, à luz do assentamento de traços-padrão definidores da classe dos MD, permite atribuir com segurança a todas elas a condição de marcador. Permite também situá-las no referido continuum que vai dos M. mais prototípicos aos M. menos prototípicos, conforme a configuração das matrizes de traços apuradas no enquadramento textual das ocorrências. A análise empreendida em cada uma das 64 ocorrências das formas em estudo define para estas a constituição das seguintes combinatórias de traços mais freqüentes: 3
Variáveis
1
2
3
4
5
6
7
8
9 10
Traços
3
1
1
1
1
1
1
1
0
OLHA
Variáveis
1
2
3
4
5
6
7
8
9 10
(OLHE, Ó)
Traços
3
1
2
1
1
2
1
1
0
BOM BEM
1
AH
1
As duas matrizes acima acusam a estável preservação dos referidos traços básicos do núcleo piloto, invariavelmente assumidos por toda e qualquer unidade com formato de M. Estamos, com efeito, diante de unidades exteriores a conteúdos proposicionais ou tópicos, sintaticamente independen268
tes e insuficientes para constituirem enunciados completos por si próprios (cf. a regularidade dos traços 1, 1 e 0, na variáveis 4, 7 e 9). Além disso, observamse as formas especificadas de preenchimento das funções textuais, que se definem pela expressão da seqüencialização tópica e/ou manifestação das relações interacionais, igualmente típica da categoria dos M.D. (cf. traços especificados, nas variáveis 2 e 3). Essas constatações, somadas à observação da qualidade de preenchimento das demais variáveis complementares (1, 5, 6, 8 e 10), permitem concluir, em confluência com o assentamento feito no item 1.1 deste trabalho, que: a) bom, bem e ah enquadram-se perfeitamente no conjunto de M. prototípicos, ou seja, no rol de M. que assumem integralmente traços-padrão identificadores da prototipicidade da classe. Como tal, definem-se e identificam-se entre si, na seqüência das variáveis, por um padrão alto de recorrência, pela condição de seqüenciadores tópicos, em princípio não orientados, de forma dominante, para a interação, exteriores aos conteúdos tópicos ou proposicionais, parcialmente transparentes em relação ao adjetivo, advérbio e interjeição homônimos, sistematicamente representados por suas respectivas formas únicas e invariáveis, sintaticamente independentes, prosodicamente demarcados, sem autonomia comunicativa e de massa fônica reduzida. O componente interacional, inerente às funções textuais de todos os M., e dos mecanismos discursivos em geral, é visto como um fenômeno graduável no evento discursivo e a sua dimensão não se estabelece de forma estanque e absoluta. A eventual projeção de um aspecto interpessoal de confronto de opiniões e pontos de vista, na dinâmica das relações textuais, pode envolver os três M., em princípio não definidos por um grau denso de evocação do quadro interacional, na expressão mais direta do movimento interlocutivo – o que acaba conferindo a eles, em algumas de suas ocorrências, o feitio característico de unidades mais fortemente interativas. b) olha: incorpora características de quase prototipicidade, afastandose apenas das configurações do modelo-padrão e mais freqüente de M., pela projeção cumulativa da função seqüenciadora com a de unidade basicamente mobilizada para a interação, ou seja, para a explícita remissão do falante ao ouvinte. Essa cumulação, que na verdade é expressão do forte valor funcional desta forma, não integra a matriz prototípica da classe dos M., por ter sido encontrada em ocorrências esporádicas. Também diferentemente de bom, bem e ah, este M. submete-se a uma pequena variação formal, prevista entre os 269
traços-padrão, concretamente realizada no corpus em estudo como: olha ~ olhe ~ ó (cf. traço 2, na variável 6).
2. Desenvolvimento (funções textuais-interativas) 2.1 Dado Preliminar Reconhecidas, em linhas gerais, a condição de M.D. prototípicos ou bastante próximos da prototipicidade das formas em pauta, cabe examinar de perto as particularidades articulatório-interacionais que assumem no interior do texto, ao sinalizarem diferentes instâncias de abertura na tessitura textual da informação. O destaque dessas particularidades permitirá mostrar, paralelamente às identidades entre as quatro formas, no desempenho da função geral de sinalização do processo de abertura, na estrutura do fluxo informacional, alguns pontos de especificidade quanto aos seus contextos de preferência, suas dimensões argumentativas, seus direcionamentos interacionais. No tocante a essas especificidades, o dado preliminar que o contato com os fatos permite levantar é o de que os M. em questão deixam transparecer traços sêmicos e funcionais diferenciados, como manifestação sutil de seu vínculo igualmente diferenciado com os correspondentes itens lexicais, sem estatuto de M., que lhes servem de base, ou seja, com as expressões homônimas em formato categorial de adjetivo (bom), advérbio (bem), verbo (olha) e interjeição (ah)4. Neste particular, destacam-se, no funcionamento textualinterativo de cada um dos M. em estudo, nuanças individuais do fenômeno geral de acomodação de traços sêmicos para a sinalização de relações dentro do espaço discursivo. Assim, por exemplo, as passagens (1), (2), (3) e (4), dadas no início deste trabalho, permitem qualificar de antemão essa diferença: No caso de olha, visível em (1), o conteúdo do turno-resposta é dirigido diretamente para o interlocutor, cuja participação é requerida, o que confere ao M. o referido teor de unidade basicamente orientada para a interação (Cf. atrás, análise feita em 1.2). A tendência para a cristalização semântica, comum nos M., define aí um apagamento da referência literal à atividade de fitar a vista em algo, típica do verbo. No estatuto discursivo do M. em questão, essa referência à ação visual aparece remanejada para a expressão de uma outra espécie de envolvimento sensorial-cognitivo, proposto ao ouvinte em forma de um chamado de sua atenção para a declaração superveniente, no citado fragmento. Decorre daí o forte estatuto interacional desse M., como uma pre270
servação do foco na segunda pessoa, típico da modalidade deôntica da forma verbal de origem. A presença do M. sabe, co-ocorrente na referida passagem transcrita, é uma confirmação a mais da orientação da fala ao interlocutor. Ah, em (2), aparece no início da fala da informante, sinalizando a abertura do canal comunicativo e o comprometimento com a resposta, embora o rumo desta seja ainda ignorado quanto a o que dizer e como dizer, conforme atestam os preâmbulos subseqüentes e as modalizações das afirmações aí inscritas. Diferentemente de olha, este M. deixa de apontar diretamente para o parceiro do diálogo, manifestando, por isso, um grau interacional mais brando. O seu foco específico incide preponderantemente, e mais freqüentemente, no próprio locutor, definindo sua reação pessoal ao teor da pergunta ou afirmação precedente, numa sensível adaptação, à expressão das relações textuais, do extrato semântico-discursivo da interjeição homônima. Bem e Bom, em (3) e (4), têm sua orientação direcionada fundamentalmente para a informação a ser provida pelo locutor, o que define seu compromisso básico com a “estrutura ideacional” do discurso (Halliday, 1976), sem prejuízo de sua participação na conformação do quadro interlocutivo que envolve os participantes. Deixando transparecer parcialmente os semas de atribuição qualitativa própria dos respectivos predicadores homônimos, em estatuto de advérbio e adjetivo, os dois M. assumem, no âmbito textual, a propriedade geral de traduzirem a predicação em formato de uma avaliação positiva que o locutor faz do momento interlocutivo como adequado para o desencadeamento do tópico ou de um aspecto informacional em seu interior. A abertura desse tópico vem, geralmente, em feitio de um ato discursivo preliminar, destinado a definir o novo passo, a corrigir alguma direção da pergunta ou da declaração do parceiro e, assim, compor um quadro de referência dentro do qual o que segue tem validade. Em síntese, a idéia básica decorrente dos elos referenciais com as instâncias homônimas, assim estabelecidos, é a de que os quatro M., nas aberturas que promovem, recortam diferentemente o campo textual-interativo, apontando o seu foco predominantemente para a primeira pessoa (ah), para a segunda (olha), ou para o plano de uma “não-pessoa” (Benveniste, 1976), correspondente ao próprio assunto ou tópico em centração (bom, bem). Evidentemente, pressões contextuais, nascidas do próprio andamento das relações discursivas, podem interferir nesses valores sêmicos básicos, modificando e neutralizando as diferenças assim estabelecidas. As expressões e deslocamentos desses traços gerais serão objeto de consideração a seguir, na 271
descrição funcional das quatro unidades, em seus particulares enquadramentos estruturais.
2.2A Abertura de Turnos em Pares Adjacentes de Pergunta e Resposta A presença dos M. em estruturas de pares adjacentes define sua participação em um aspecto de organização local do texto falado, com implicações simultaneamente seqüenciais e interacionais, dignas de nota. Do ponto de vista da estrutura seqüencial, atuam como pistas da articulação de dois turnos interdependentes e, portanto, como sinalizadores do desenvolvimento iminente, no segundo turno, do ponto tópico relevante antecipado no primeiro, constituindo-se, no conjunto, uma parcela de construção coesa e coerente do texto falado. Do ponto de vista interacional, são marcas concretas da dialogicidade entre locutores, indiciadoras da predisposição imediata daquele que responde apara o atendimento da expectativa daquele que pergunta, cumprindo-se, na soma de ações coordenadas, uma interação verbal centrada. Confirma-se, nessa simultaneidade de campos de atuação, a multifuncionalidade destacada por Marcuschi (1989) como uma das características dos M., de modo geral. Mas a atitude responsiva sinalizada pelos M., logo na abertura do segundo turno, nem sempre implica o desenvolvimento imediato do tópico que o primeiro turno propõe. O exame da constituição do par conversacional pergunta/resposta, em corpus do Projeto NURC, revela que os locutores, com alguma freqüência, reagem a questões que lhes são dirigidas recorrendo a respostas prefaciadas, que adiam o atendimento imediato do ponto relevante da informação suscitada pelas perguntas dos interlocutores. A investigação desse aspecto e do acionamento constante dos quatro M. na abertura dos segmentos preambulares envolve três questões básicas a serem elucidadas, atinentes: a) ao tipo da pergunta que favorece o aparecimento dos M. abrindo respostas prefaciadas, em contrapartida ao que os desfavorece; b) aos aspectos textuais-interativos dos M., na intermediação do par pergunta/resposta e a sua repercussão na identidade funcional dos preâmbulos; c) às constantes formais tipificadoras dos segmentos prefaciadores. 272
O exame do corpus revelou o elo dos M. não propriamente com as interrogações globais que, centradas na relação de predicação, afetam todo o enunciado e suscitam em geral respostas mais breves, de teor afirmativo ou negativo. O vínculo maior apurado foi com as interrogações parciais ou de instanciação, geralmente encabeçadas por pronomes e advérbios interrogativos (o que?, quais?, como?, quando?, por que?, quanto?), marcadores de tematização (e quanto a ...? e em relação a ...? ...), ou expressões solicitadoras de opinião (o que acha de?, na sua opinião...?, no seu ponto de vista ...?) que, em princípio, propiciam, como resposta, desenvolvimentos tópicos e posicionamentos que vão além de respostas lacônicas, ou de simples afirmação ou negação. Com efeito, do total de 27 pares de pergunta-resposta mediados pelo conjunto dos M. em estudo, 21 (77,78%) envolveram as interrogações parciais, instanciadoras de tópicos ou circunstâncias diversificadas, a respeito dos quais o depoimento do informante é solicitado5, e apenas 6 (22,22%) corresponderam às interrogações globais, observando-se, em relação a esses números, uma distribuição mais ou menos equilibrada de cada um dos quatro M. Também os dados do inglês revelaram a Schiffrin (1987), em seu estudo sobre a forma Well, que o uso desse M. em respostas é influenciado pela natureza da pergunta, ocorrendo mais freqüentemente a sua presença sempre que um conjunto mais amplo de opções de resposta está potencialmente previsto pelo teor da questão. O eventual desencadeamento dos M. em início de resposta a questões centradas no verbo, que normalmente poderiam ser respondidas de forma delimitada pela afirmação ou negação, acusa, em geral, aspectos argumentativos dignos de nota. Um deles é destacado por Lakoff (1973, apud Owen, 1981), a respeito da forma well em contextos que, no português, corresponderiam a: A - Você matou sua esposa? B - Bem, matei. Assim usado como prefaciador do que seria uma resposta direta, bem permite inferir que a informação está incompleta e que circunstâncias múltiplas associadas à morte da esposa deixam de ser mencionadas (op. cit, p. 107). Embora essa ocorrência seja detectável no português falado, o corpus pesquisado não acusou exemplos reveladores dessa sugestão de incompletude informacional sugestiva de uma admissão forçada de um ato, na resposta prefaciada por bem. Mas a abertura de resposta a perguntas que escapam ao pa273
drão mais geral das perguntas de opinião ou de instanciação de circunstâncias é aí realizada com outras implicações, por algumas ocorrências de M. Nesses contextos especiais de ocorrência, os M. aparecem geralmente neutralizando os extremos de uma resposta sim / não, ao desencadearem uma alternativa intermediária e/ou uma informação mais expandida, adequada a explicações e auto-posicionamentos perante o assunto. Bastam-nos duas amostras: (5) 228 L2
os outros mesmo não se incumbem de colocá-la no
229
lugar dela?
230 L1
bom... com uns TApas... às vezes ela se coloca
231 L2
ahn [
232 L1
mas com palavras ela não se coloca porque ela [
233 L2 234 L1
ahn aumenta a voz com os irmãos... não é?... (D2-SP-360)
(6) 185 Doc -
[o senhor nunca cozinhou nada?]
186 I1 -
Olha, eu me limito a faze(r) um bom, bom! Um churrasco
187
(superposição) churrasco. Mas eu posso fala(r) da, da experiência
188
engraçado, tem pessoas que tem um, um, um, em termos
189
gastronômicos um, um, uma, uma, um talento, uma habilidade,
190
impressionante, a minha avó era assim, ela qualque(r) prato,
191
podia se(r) o mais complexo, de gosto mais estranho ou exótico
192
possível, ela detectava tempero por tempero e depois reproduzia (...) (D2-POA-291)
Em (10), a simples presença do M. bom, abrindo a resposta, antecipa que esta não será dada em termos absolutamente positivos ou negativos (se 274
incumbem / não se incumbem), mas relativizados por explicações sobre as diferentes atitudes da filha autoritária (se coloca (no lugar dela) / não se coloca), em conformidade com as diferentes formas de reação dos irmãos (com tapas / com palavras). O mesmo aspecto geral da expansão de dados manifesta-se, com alguma particularidade, a partir de olha, na passagem (11). A pergunta do documentador, que potencialmente seria respondível em termos monossilábicos, é aí, concretamente, a deixa para que um dos informantes entre em cena e comece a falar em substituição ao outro que anteriormente ocupara boa parte do tempo dando explicações detalhadas sobre a receita de um prato. Assim entendida, a pergunta suscita, como resposta, uma longa manifestação, apenas parcialmente transcrita no recorte acima, a qual vai muito além da especificidade aparente do tópico proposto pelo documentador. O conhecimento de que suas falas estão sendo gravadas e, portanto, a consciência por parte dos informantes da necessidade de que sejam receptivos ao menor estímulo dos entrevistadores ou dos parceiros do diálogo, parece explicar os 22,22% de respostas expandidas e, com elas, os preâmbulos e a incidência dos M. de abertura de turno, em contextos onde normalmente não seriam esperados. A situação especial de entrevista permite, pois, ao documentador dar às vezes às suas perguntas o formato de interrogação global, sem correr o risco de obter estritamente respostas monossilábicas, centradas na simples confirmação ou não da predicação expressa pelo verbo da frase interrogativa. Assim identificado o tipo de pergunta mais favorável às respostas prefaciadas encabeçadas pelos M., resta uma segunda questão a ser examinada, quanto a diferenças semântico-funcionais que os individualizam, na intermediação do quadro seqüencial-dialógico em que atuam, com conseqüente diferenciação na qualidade dos segmentos de prólogo da resposta. As instruções textuais codificadas pelos M. permitem ver, na retenção do fluxo tópico carreada por esses segmentos preambulares, ora um espaço predominantemente informacional e argumentativo, para expressão de ressalvas e acertos de enfoques, pontos de vista e opiniões sobre o assunto colocado em pauta, ora um espaço sobretudo técnico e fático, para a manipulação da pergunta, na busca simultânea da manutenção de contato e de tempo para o planejamento e a formulação. Na sinalização de motivos de ordem mais claramente referencial e argumentativa, atuam com maior freqüência os M. bem e bom. Assim se dá, por exemplo, nas passagens (4) e (7), abaixo transcritas: 275
(4) 221 I.L.A. -daí é que vem minha 222
pergunta porque que: o experimento em laboratório... é
223
mais válido do que experimento “in loco?”
224 Inf. -
bem... o de laboratório é mais válido João... sempre
225
que você pode fazer porque normalmente é difícil você
226
fazer o experimento de laboratório... é mais válido...
227
porque você... tem o homem como se o homem estivesse...
228
despido... de ideologia... de sua cultu:ra... de seu:
229
sentido... de religiosidade... tanto quanto possível
230
é claro... (EF-Rec.-337)
(7) 279 Doc.
qual é digamos assim o esporte que você:: aconselharia (ao) tipo de criança
280
conforme... os primeiros anos do curso primário criança do curso secundário
281 L1
bom qualquer tipo de esporte é válido... viu? agora o esporte... que me-
282
lhor pro organismo... por causa de todos os músculos e (tu/) é a natação... (DID-Sa-231)
Observa-se que, em (4), a pergunta focaliza a causa da maior validade do experimento em laboratório e que a explicitação dessa causa só vem na resposta, a certa altura (l. 227 a 230), após um esclarecimento prévio que a professora julga necessário passar ao aluno (l. 224-226). Esse esclarecimento preliminar tem aí o teor de uma advertência ou ponderação contra a idéia, inferida na pergunta do aluno, de que o experimento laboratorial é facilmente operacionalizável em qualquer situação. O M. bem, logo na abertura do segmento-prólogo, ao mesmo tempo que sinaliza a atitude responsiva da professora perante ao aluno, antecipa um certo tom de reparo ou restrição confirmado pelo enunciado que precede a resposta propriamente dita. 276
A reparação da direção argumentativa manifesta-se em (7) com uma espécie de ressalva ao limite estabelecido pela pergunta do documentador, de indicação do esporte que seria aconselhado às crianças. Reagindo à pergunta, L1 primeiro generaliza (“bom qualquer tipo de esporte é válido ... viu?”), para somente depois entrar no ponto específico solicitado, e ater-se à consideração de apenas uma modalidade desportiva – a natação. A passagem põe à mostra o emprego de marcadores diferentes, na definição de direções argumentativas assim situadas: fazendo balanço com bom, que indica a intenção de ressalva com relação ao ponto de vista restrito da pergunta e que, portanto, prepara o terreno para a observação generalizadora do informante, entra, na segunda parte da resposta, o M. agora (l. 281), intermediando a volta para a operação delimitadora, num movimento de reajuste ao ponto específico de relevância tópica proposto no primeiro turno da seqüência. Exemplos como (4) e (7) revelam o envolvimento de bem e bom com um modo de a informante registrar seu ponto de vista sem ser contundente. Segundo Vicher e Sankoff (1989), essa peculiaridade de indiciar um ato de consentimento ou admissão de uma questão, sob certas restrições, faz de bem (diríamos também de bom) “uma partícula prototipicamente concessiva, que contém em si a insinuação de um desacordo dentro da expressão de um acordo básico”. (p. 92). A simultaneidade de pontos de vista, assim reunidos nesse ato enunciativo, torna ambos os M. essencialmente polissêmicos e argumentativos, na expressão verbal do jogo de representações e intenções estabelecido entre os interlocutores, e no confronto de opiniões sobre um detalhe do tópico em centração. A motivação de natureza predominantemente fática e formulativa, sustentando o adiamento da resposta, envolve, mais amiúde os M. de instanciação pragmática de primeira e segunda pessoas – respectivamente ah e olha – e, mais esporadicamente, bom. Desenvolve-se nessas circunstâncias, e a partir desses M., verdadeiros enchimentos verbais que funcionam fundamentalmente para manter o canal de interlocução em aberto, enquanto se procura o rumo da formulação a ser dada ao tópico. O esquema é recorrente nas entrevistas (DID), o que parece natural pelo relacionamento assimétrico dos participantes, no qual o documentador dirige o diálogo pela contínua solicitação de novo depoimento do informante, nem sempre preparado para um pronto atendimento de cada nova questão. Bastam-nos aqui dois exemplos, além das passagens (1) e (2) do início, igualmente ilustrativas do fato: 277
(8) 187 Doc -
em alguma em alguma parte do nordeste você
188
que gosta de carne ... você não experimentou uma
189
carne ( )? |_
190 L -
Ah, a tal carne seca né? que eles faze/... tá falando? ...
191 Doc 192 L -
[ é ... aquela carne seca ao sol ...
193 Doc - isto
194 L -
não nós não tivemos ... nós não tivemos a oportunidade de
195
comer não ... (DID-RJ-328)
(9) 17
Doc - é verdade e que tipo de peça a senhora gosta e o que
18
chama mais atenção da senhora quando a senhora vai ao
19
teatro?
20
Inf - peças? olha nem sei viu? o que falar agora sobre
21
peças Todas as peças que eu tenho assistido eu tenho
22
gostado ... agora::... o que me chama muito atenção ... ah
23
é roupas eh::... cenários eu acho acho que uma::última peça
24
que eu assisti foi da::... foi lá defronte o SESC... no
25
teatro do SESC foi a da::... olha não lembro qual foi a
26
peça agora... uma peça muito comentada... (DID-SP-234)
A análise de preâmbulos como esses, que estampam, na superfície do texto, o processo de planejamento e construção da resposta, oferece uma amostragem de algumas constantes formais tipificadoras dos segmentos prefacia278
dores. Além da presença dos M., desenvolvem-se, com freqüência, seqüências inseridas entre a primeira pergunta e a resposta final, como as duas assinaladas em (8), desencadeadas sob pretexto de elucidação de aspectos da indagação do documentador. A essas características, soma-se freqüentemente a repetição de parte ou da totalidade das perguntas (l. 190 e 192, em (8) e l. 20 e 22, em (9)); a menção de condições cognitivas pessoais pouco favoráveis à resposta (cf. em (9): “nem sei viu? o que falar .......; cf. também em (1) e (2): “eu era tão pequena sabe que eu já não me lembro disto” .... “eu não posso dizer”, “aí você pegou porque eu não sei não...”), entre outras particularidades. A incidência desses traços nos preâmbulos fáticos, que asseguram o contato entre os interlocutores e trazem simultaneamente para dentro do discurso o monitoramento pessoal do processo de planejamento e formulação da resposta, é pouco observada nos casos em que os segmentos prefaciadores apresentam sua ênfase no conteúdo informacional, envolvendo o ajuste de alguma idéia expressa na proposição do tópico, via pergunta. Essa constatação, atinente ao plano formal, reflete a diversificação entre os dois tipos de atos ilocutórios prefaciadores, além de confirmar a diferença de foco dos M. sobre a estrutura (inter)pessoal ou ideacional do discurso.
2.3 Outras Instâncias de Abertura Fora das estruturas correlativas de pergunta-resposta, o papel textualinterativo dos M. manifesta-se em outras instâncias de organização do texto falado, a serem aqui especificadas, indiciando movimentos de abertura de aspectos variados da estruturação tópica, com maior ou menor grau de envolvimento na estrutura interpessoal do discurso. Os quatro M. entram, porém, com diferente peso na expressão dos aspectos a serem mencionados, nos novos enquadramentos, ficando por conta de bom e bem a cobertura do maior número de contextos e particularidades textuais diferenciadas. Já a atuação funcional de olha é bastante restrita, esgotando-se praticamente na sinalização do contato interlocutivo, pelo qual o falante busca a atenção do ouvinte, a quem a informação em curso é diretamente orientada: (10) 285 Inf - (.......) me lembro 286
de ter escorregado, caí ... dentro d’água e (es)tava me
287
afogando, vim ... vim pra cima assim e o rapaz esse,
279
288
estava ali do lado ... eu nunca me esqueço do jeito dele
289
de pergunta(r) “quer sair?” olha, eu (es)tava me afogando
290
e ele perguntou se eu queria sai(r) da água, eu nem ...
291
nem pude fala(r), não é ... Ai ... eu nunca me esqueço disso. (DID-POA-045)
A presença de olha e variantes é, por isso mesmo, típica dos inquéritos dialogados (D2 e DID), onde a remissão ao interlocutor costuma ser mais explícita. Seu desencadeamento esporádico fora desses inquéritos exige sempre um processo de relação interpessoal bem caracterizada, como o atestado no exemplo a seguir, tomado de uma elocução formal (EF), em momento particular em que a professora interrompe temporiamente o desenvolvimento da matéria para dirigir-se explicitamente a seus alunos. A abertura desse intervalo interacional explícito, em meio à aula, é definida pelo M.: (11) 138 bem nós VA:MOS não é admitir... aqui... em aula... que: exista 139 uma: complementariedade entre esses três saberes... ou três 140 conhecimentos... olha isso eu repi:to... porque... geralmente 141 naquela primeira avaliação:... eu co:bro um pouco... esse 142 aspecto... eu acho importante bem importante mesmo... essa 143 complementariedade (EF-Rec-337)
Quanto ao M. ah, aparece, em um de seus usos, dividindo terreno com bom, na abertura de falas citadas pelo locutor durante a conversação, para representar uma outra situação dialógica já transcorrida ou simulada. Posicionados no início da fala apresentada em formato de citação em discurso direto, os dois M. criam efeitos de espontaneidade, pela evocação de um traço comum da oralidade6: (12) 01
L-
(...) eu adorei o tal do acarajé porque quando
02
me serviram aqui, uma vez eu vi e não gostei...
03
sabe? mas vi feito por uma baiana de lá
280
04
indicaram... [ah ::... vai na fuLAna que a
05
fuLAna serve muito bem o acarajé...] nós fomos
06
eu gostei muito eu gosto muito de coisa mistu-
07
rada. (DID-RJ-328)
(13) 189 (...) Eu 190 não... eu não leio muito negócio de esporte, eu sempre 191 viro as folha(s) né... meu marido [“ah, onde é que se 192 viu, tu não lê esporte?”] que os outros gostam... mas eu 193 de esporte eu não... não... não me preocupo muito assim 194 ... não é... (...) (DID-POA-045) (14) 09
(...) aí tenho que
10
complementar o meu salário com o dinheiro dum, dum cargo à noite e que
11
se... conforme for eu acabo deixando, aperto o, o cinto e aí problema
12
de, de, aí que entra o problema de dinheiro, porque justamente eu não
13
posso deixar a, ainda, nesse momento, dizer, [bom, agora vocês vão fa-
14
zer isso, eu largo,] eu vou ter que pensar, fazer contas porque eu es-
15
tou com financiamento de compra de apartamento (...) (D2-RJ-355; p. 6)
Um segundo uso do M. ah é visível em passagens de diálogos nas quais costuma indiciar formas de reação espontânea do locutor perante seu parceiro, no enfoque do tópico em discussão. Manifestando um crescendo na revelação das ligações interpessoais, o referido M. entra no delineamento de convergências ou divergências de pontos de vista entre os interlocutores, fazendo parte do jogo argumentativo movido na relação entre os turnos. Nos exemplos apresentados a seguir, confluindo com o teor de concordância ou discordância aberto pelo M e ajudando a defini-lo, pode-se-ver, do ponto de vista lingüístico-discursivo, a sua combinação seja com a partícula de assentimento (sim), como em (15), seja, por outro lado, com o M. de contrapo281
sição argumentativa (mas), como em (16), ou com o enunciado de forte peso assertivo também contraposto ao anterior, como em (17). Ressalte-se que em (15) o próprio feitio próximo de interrogativa-tag do turno anterior (l. 6: “mas ele teria outros gastos, né?”) leva o informante a preferir a direção de confirmação, em seu turno (l. 7: “Ah, sim”): (15) 0
Inf.1 -
1
(...) ele já teria que sair da Zona Sul, pensar em termos de Zona Norte ou, ou talvez...
2
Inf.2 -
Mas não faz muita diferença não
3
Inf.1 -
Talvez a diferença não seja...
4
Doc. -
Mas alguma diferença ( )
5
Inf.1 -
É, é
6
Doc. -
mas ele teria outros gastos, né?
7
Inf.1 -
Ah, sim
8
Inf.2 -
É, teria outros gastos. (D2-RJ-355, p.2-3)
(16) 8
Inf.1 -
Mas acontece o seguinte, que aqui você tem outras pers-
9
pectivas, você tem outras chances que lá você não tem, já que estamos
10
falando de professores, não é, nenhum de nós... eu não conheço pro-
11
fessor que ensine em apenas um lugar, já começa por aí, certo?
12 13
Inf.2 -
Ah, mas eu ensino em dois lugares por quê? o dinheiro que eu ganho num só não dá, mas eu por mim estaria só na escola (...) (D2-RJ-355, p.4)
(17) 298 L1 - (...) mas acontece que eu 299
não acredito de maneira nenhuma que através dos meios de
300
comunicação que você dispõe você possa trazer o povo à cultura
301 L2 - ah pode e eu vou lhe mostrar como (D2-Rec-05)
282
O fato de um mesmo M. como ah, nos exemplos dados, poder encabeçar enunciados assim confirmadores da opinião do parceiro (15), ou estabelecedores da discordância (16 e 17), faz pressupor a hipótese da realização prosódica como possível indício antecipador do teor da manifestação pessoal explicitada no enunciado subseqüente. Uma tentativa de confirmação da hipótese dessa diferença de realização foi, entretanto, dificultada pela interferência de variáveis relacionadas às diversificações de informantes e/ou de regiões de sua procedência, nos exemplos encontrados no corpus, ilustrativos das duas direções argumentativas aqui consideradas. Pistas mais fortes das relações argumentativas assentadas no confronto de pontos de vista entre os interlocutores são dadas pelos M. bom e bem, na atividade conversacional. Sua presença está fortemente vinculada a diálogos que reúnem pronunciamentos dos interlocutores, sobre temas gerais de sua experiência comum. Os dois recortes abaixo permitem ilustrar a natureza das instruções antecipadas pelos dois M. para a decodificação da opinião do interlocutor sobre o depoimento do parceiro, e para situar a seqüência do discurso relativamente ao argumento anteriormente exposto: (18) 236 L1
foram dimensionadas as estradas para um tráfego muito mais leve
237
do que elas estão suportando... então vem aquele negócio
238
da lei da balança [
239 L2
bem ainda tem uma coisa também aqui é que sempre
240
quando chega no fim... na hora de botar a última camada de as-
241
falto [
242 L1
hum
243 L2
ou seja (de fazer) a CApa asfáltica sempre não tem dinheiro
244
... então... acaba (risos) sempre assim ( )
245 L1
[ houve uma
246
tentativa de se limitar a carga por roda quer dizer de e-
247
vitar que carros muito pesados com cargas muito pesadas
283
248
... trafeguem... acima quer dizer acima do peso para o que
249
ela foi construída... (D2-Sa-98)
(19) 319 L1
viu E eu
320
continuo achando que o Brasil só tem três problemas
321
graves: educação educação e educação agora...
322 L2
bom porque fome é mundial não é? a gente não vai falar
323
nisso (D2-Rec-05)
Discorrendo sobre as condições das rodovias brasileiras, L1 focaliza, em (18), a inadequação das estradas, como decorrência do excesso das cargas que passam a suportar no tráfego, em contraposição ao previsto. L2 acrescenta um dado a mais para o enfoque da inadequação, destacando, diferentemente, o aspecto contingencial da falta de dinheiro na etapa de conclusão das obras. Sem levar adiante o aspecto específico destacado por L2, L1 prossegue na complementação de seu próprio argumento anterior, centrado no problema do tráfego (l. 245-249). O M. bem, que aparece abrindo a fala de L2, apresenta-se bi-direcionado, apontando simultaneamente para trás – ao definir a sintonia com o outro locutor quanto ao ponto básico ( o de que as estradas não são boas) – e para frente –, ao antecipar que um ângulo diferente vai ser expresso, quanto às causas do problema. Igualmente, em (19), L2 antecipa, pelo M. bom, a admissão do ponto de vista de L1 quanto à questão da educação no Brasil, mas insinua também que essa admissão é relativa (há outros problemas mais graves, como a fome) e se dá sob certa condição: o de aceitar-se que se está falando de problemas específicos do Brasil e não de problemas comuns entre o Brasil e outros países do mundo. Em síntese, em ambos os exemplos, os M. indiciam, concomitantemente à avaliação positiva do conteúdo exposto pelo interlocutor, uma espécie de apreciação negativa implícita, dada em termos de discordância ou de restrição a uma aceitação total do fato declarado. Imprimem, portanto, no discurso, pistas de abertura de um lance típico de conciliação, concessão, ou de consentimento entre os interlocutores. 284
Observa-se, aqui, um ponto de confluência com as constatações feitas por Schiffrin (1987) para o inglês, a respeito do M. well. Segundo a Autora, os desacordos, as recusas, as respostas desfavoráveis são muito mais comumente marcados por Well, do que propriamente a concordância (p. 114-116). Para além desse dado, a confluência da perspectiva de concordância com a de discordância, reunidas numa só expressão, permite confirmar o estatuto de “partícula prototipicamente concessiva”, destacado por Vicher e Sankoff (1989) em relação a bem, que parece igualmente extensivo, no português, a bom, quando em enquadramentos similares ao observado em (19). O uso dos M. em contextos interacionais de posicionamento em relação ao argumento anteriormente expresso pode contemplar, retrospectivamente e simultaneamente, o conteúdo de duas falas: a do próprio locutor, em cujo interior o M. aparece, e a do parceiro, como acontece no exemplo (20) abaixo, com a forma bom: (20) 120 L1
nós tamos até fazendo uma estrada agora próximo às grutas
121
de Ituaçu... lá pro lado de Contendas ( )... é um fim de
122
mundo ali (vozes)
123 L2
não não é fim... bom... fim de mundo atualmente é (vozes)
124
porque você não tem onde ficar tem Ituaçu que é uma cida-
125
dezinha lá que inclusive me ofereceu hospedagem... mas me
126
disseram que é uma miséria que não tem nada que preste
127
lugar muito ruim... (D2-Sa-98)
Observa-se aqui, por parte de L2, uma reação imediata de desacordo (não não é fim) com a afirmação final de L1 (é um fim de mundo ali). Logo a seguir, entra o M. bom (l.123), sinalizando o cancelamento do desacordo, ou seja, revelando a intenção de reconsideração da discordância e, conseqüentemente, de concessão relutante ao ponto de vista do interlocutor. A re-orientação assim indiciada vem confirmada, de forma plena, no enunciado subseqüente ao M. (fim de mundo atualmente é). Empregos como esse inscrevem o M. bom entre os mecanismos sinalizadores da correção, aproximando-o do valor de unidades como ou me285
lhor, ou seja, isto é, quer dizer, etc, que atuam nesta outra esfera funcional, sem entretanto apresentarem a expressividade da sugestão polifônica de uma concessão ou consentimento do falante à opinião do interlocutor, traduzida por bom. Uma outra particularidade funcional bastante freqüente dos M. bom e bem diz respeito ao seu vínculo com a organização global da informação em tópicos discursivos e com a estruturação interna dos tópicos, envolvendo particularizações do assunto, dentro de seu campo de concernência. No que se refere ao primeiro aspecto, é visível a recorrência com que os dois marcadores aparecem, nas elocuções formais, abrindo operações metadiscursivas associadas à revelação do plano geral da tessitura do texto e, pois, à apresentação das grandes partes que entram em sua composição. O inquérito EF-SP-405, por exemplo, possibilita alguns recortes ilustrativos: (21) 54 55 56 57
BEM... então vamos tentar reconstruir a maneira de vida desse Povo para depois poder entender como surgiu a arte... e... porque surgiu um determinado estilo de arte...
(22) 150 151 152 153
...bom... então primeiro em nível de tema... a seguir... qual seRIA... o motivo pelo qual... eles:: ...começaram... a pintar ou a esculpir... estas formas...
(23) 384 385 386 387 388
(...) BOM... então chegamos aqui eles vão criar uma arte... naturalista realista... em:: virtude da função pragmática desempenhada por essa mesma arte dentro da sociedade... ou dentro do grupo... em que eles vivem...
(24) 388 389
bom... outra coisa que nós vamos ver... nos slides na na aula que vem... é a...
286
390
extrema precisão do desenho... eles conseguem
391
chegar a uma fidelidade linear... da natureza...
392
a extrema exatidão do desenho... ou precisão...
(25) 400
...bem... uma última coisa que eu gostaria
401
de dizer é o fato de que nessa época ainda não
402
existe preocupação com composição... o que a gente
403
encontra são desenhos... individuais...
A regularidade desse aspecto estrutural, detectável em maior ou menor escala em outras elocuções formais, permite associar essa modalidade de inquérito com um maior índice de planejamento prévio e uma maior centração na estrutura ideacional do discurso. O anúncio de cada passo novo no tratamento do assunto, sempre introduzido, nas passagens destacadas, pelos M. bom e bem, alternantes nessa função, são uma revelação a mais da consciência dos falantes de que a tessitura da informação não se dá de forma aleatória, mas obedece a uma estruturação em tópicos que se ordenam e se interrelacionam hierarquicamente. O destaque dessa organização aos interlocutores costuma fazer parte dos procedimentos didáticos das aulas e denuncia a preocupação com a clareza da exposição, em termos globais. O uso do M. como apoio para instanciar o avanço linear dos tópicos, no tratamento da matéria, acaba por torná-lo um mecanismo delimitador de partes que se iniciam subseqüentemente a outras que se fecham, no desenvolvimento seqüencial do texto. Como destaca Stammerjohann (1977), “todo sinal de abertura de alguma coisa de novo implica o fechamento daquilo que precede; sinais de abertura ou sinais de fechamento são, pois, sempre, sinais de delimitação.” (p. 118) Reconhecer o papel delimitador dos M. é reconhecer, simultaneamente, a sua bi-direcionalidade, como um pontuador discursivo anaforicamente incidente no fechamento da seqüência anterior, para cataforicamente viabilizar a progressão para a seqüência superveniente. Essa bi-direcionalidade inerente aos mecanismos mediadores da relação seqüencial das partes do discurso é concretamente assinalada, por exemplo, na passagem (22). Nela, a formalização do fecho do tópico precedente, 287
sobre os temas da arte no período paleolítico (“então primeiro em nível de tema”) e a apresentação do tópico seguinte (“a seguir... qual seRIA... o motivo pelo qual... eles:: ... começaram... a pintar ou a esculpir... estas formas...”) podem ser vistas como a explicitação discursiva da dupla orientação indiciada pela informação pragmática que bom codifica: a de que o locutor avalia o momento como adequado e favorável à introdução de algo novo no fluxo informacional, subseqüentemente a algo anteriormente dado. Essas duas formas de definir as relações estruturadoras do texto – por pistas indicativas fornecidas pelos M. bom e bem e por formulações com maior grau de transparência referencial, estabelecidas por outros tipos de M. ou expressões em geral – complementam-se quase sempre nessa ordem, na apresentação dos tópicos. A título ilustrativo dessa complementaridade, observem-se as duas passagens abaixo, extraídas de uma outra elocução formal: (26) 01 LOC. Então é como eu tinha dito a você...quarto ítem...é a forma...quinto... 02 dimensões...infância...puberdade...etc...sexto ítem...nós temos a::...explora03 ção...exploração aqui vale a dizer é exame...sétimo...nós temos os planos 04 cons::titutivos...sexto...exploração...exploração é o exame...feito na glân05 dula...nos planos constitutivos...nós temos a pele...temos o tecido subcutâ06 neo...e a camada...retro...mamária...com a sua definição...ligamento... (espe07 cial) da mama...oitavo...nós temos os vasos...e nervos...nono...é...e a veias 08 ...quem...copiaram? ...vou lhe passar alguma coisa...bom...então vamos...já 09 copiaram o que escreveu...bom...vamos começar...região mamária:: ...ora nós 10 definimos como sendo região mamária...a região ocupada pela glândula mamária 11 ...como vocês aqui estão vendo...
(EF-Sa-049) (27) 29 30 31 32 33 34 35 36
a partir da puberdade... é que essas glândulas por ações hormonais... então na mulher... por ação dos/ ...de hormônios femininos... né? ...pode incluir a progesterona... essas glândulas... então... se desenvolvem... ao passo que no menino... por ação também hormonal... pela produção da ( ) hormônio masculino... elaborado pelos tecidos... então essas glândulas... elas não se desenvolvem... porque esse hormônio tem uma ação cremadora... sobre essas glândulas... bem... além então em relação também quanto ao número... há casos de::–muito raros– de::
37
amastia... quer dizer... a ausência de mamas... mas é muito raro... entretanto...
288
38
não é tão raro o caso de::polimastia... poli. .como cês sabem... é um número a-
39 40
lém daquele normal... ou seja ou mais de dois... então a polimastia é mais comum... a amastia... não é tanto assim... visto... não é tanto assim encontrado...
(EF-Sa-049)
O trecho citado em (26) corresponde à parte inicial de uma aula de biologia que começa por uma súmula de itens classificatórios, repassados pelo professor, a título de recordação de assunto já abordado (l. 1-7). Após essa introdução, observa-se um primeiro sinal do locutor para o início do tratamento do tópico recortado para a aula ( l. 8: “bom ... então vamos”). Esse início é ligeiramente protelado pela interposição de uma pergunta à classe, feita pela professora como um ato indireto de fala para solicitar a atenção dos ouvintes para o seu discurso ( l. 8-9: “já copiaram o que escreveu...”). A re-abertura do tópico é destacada por nova incidência do M. bom, conjugada à de outro M. (l. 9: “bom ... vamos começar) e ao recurso de tematização ( l. 9: “região mamária...”), num tríplice processo de abertura enfática da exposição a ser iniciada, como matéria central da aula. A entrada propriamente na exposição se dá, imediatamente depois, pelo padrão de uma formulação tipicamente definidora (l. 9-10: “... ora nós definimos como sendo região mamária ... a região ocupada pela glândula mamária”). Aspecto bastante próximo se dá também na passagem (27), desta feita com o M. bem (l. 35), que igualmente atesta a decisão do professor para deslocar o ponto de centração do aspecto do desenvolvimento diferenciado das glândulas mamárias no homem e na mulher (l. 29-35), para a questão do número de glândulas e das anomalias de formação no que diz respeito a esse aspecto (l. 35-40). Uma vez mais é visível a compatibilidade do M. bem com os M. de progressão e de tematização (bem ... além então em relação também quanto ao número). Outra instância de abertura promovida pelos M. na estrutura tópica diz respeito à sua ocorrência no interior de um tópico, dando entrada a porções menores de informação, integradas no conjunto de referentes que o constituem. Destaca-se, nessa instância, a operação exemplificadora, visível no seguinte fragmento: (28) 27
(...) É, essa palavra
28
taxionomia quer, refere-se mais ou menos a uma classificação,
289
29
digo mais ou menos porque nós vamos ver qual é a diferença que
30
existe entre uma taxionomia e uma classificação, eu poderia, por
31
exemplo, dividir esta aula em os alunos homen(s) e as mulheres, eu
32
estaria, fazendo uma classificação sem, no entanto, dizer qual é o
33
mais importante, sem, no entanto dizer, qual dos dois é mais completo
34
talvez, os homens dissessem o mais importante não sei, mas mais
35
complexas são as mulheres, bem, eu poderia, dividir a, uma coleção
36
de livros em livros didáticos e não-didáticos, sem, no entanto,
37
dizer que, quais seriam os mais importantes, simplesmente, eu
38
classifiquei, mas eu, isso não acontece quando se faz uma taxionomia
39
então, vamos ver, vamos ajudando, taxionomia é uma classificação
40
mas é mais do que uma classificação. (EP-POA-278)
A informação focal nesse momento da mensagem é a do estabelecimento do sentido de taxionomia, por oposição ao de classificação. A exemplificação entra como recurso concretizador da diferença que se busca estabelecer, e é dada em dois lances: o primeiro (l. 30-35), mediado pelo M. prototípico da operação exemplificadora ( l. 30-31 –“por exemplo”); o segundo (l. 35-40), mediado pelo M. bem, que não define explicitamente a exemplificação, mas a indicia, delimitando-a simultaneamente como um segundo passo em relação ao segmento anterior. Ainda na instância intratópica, a atuação funcional dos M. estende-se às operações de retomada de um ponto de relevância temporariamente suspenso, em razão da interposição de informações subsidiárias incidentes na informação básica que vinha em curso. Essa atuação pode ser vista em passagens como a seguinte: (29) 163 Inf.2 -
(...) aí está ao lado um pirex todo forrado com queijo
164
fatias mais ou menos de um centímetro, põe aquele refogado ali
165
dentro e tapa, vai ao forno.
166 Inf.1 -
Também com queijo.
167 Inf.2 -
Hein?
290
168 Inf.1 -
Cobre com queijo.
169 Inf.2 -
Tapa, é claro, com queijo. Bem, aí vai ao forno / e junto vai
170
também já preparado o arroz que foi feito à parte (...) (D2-POA-291)
Observa-se no exemplo acima, como segmento inserido, uma seqüência lateral (Jefferson, 1972): o registro de procedimentos que vinha sendo feito em cadeia, em consonância com a ordem das ações referenciadas (l. 163-165), sofre uma suspensão, motivada por um pedido de esclarecimento do interlocutor (l. 166); seguem-se trocas de turnos (l. 166-169), centradas no problema incidental e, após a solução da questão secundária, o ponto de relevância tópica temporariamente suspenso é retomado, juntamente com o tom encadeado da formulação (l. 169-170). A coesão anafórica com a instância anterior do discurso é firmada concomitantemente pelo M. bem, pelo típico M. da sucessividade narrativa aí – responsável por reestabelecer o feitio de seriação de procedimentos –, e pela repetição da mesma frase final do segmento suspenso (“vai ao forno”). Instalado no ponto em que se acha, bem aí se destaca como elemento multifuncional, atuante a um só tempo como: pontuador do fim da seqüência desviante; sinalizador do começo da operação de retomada; delimitador de planos diferentes de relevância informacional, no interior do quadro de referências estabelecido; e articulador das porções descontínuas da informação focal do tópico.
3. Considerações finais 3.1 – A análise das formas bom, bem, olha e ah, aqui empreendida, pôde revelar a sua condição de M. prototípicos ou bastante próximos da prototipicidade, atestada pelos traços apurados no conjunto de suas ocorrências. Pôde revelar também, em concomitância com o preenchimento comum da função geral de abertura de unidades textuais, aspectos de especificidade entre eles, no tocante à natureza ou proporção de sua participação na estrutura correlativa pergunta/ resposta, e em outras instâncias de organização do texto falado. De modo geral, as particularidades identificadas nos diferentes âmbitos remetem ao dado preliminar, visto em 2.1, de que os quatro M. deixam transparecer traços sêmicos e funcionais diferenciados, como manifestação do vínculo que sutilmente preservam com as correspontes fontes lexicais homônimas, em formato categorial de adjetivo (bom), advérbio (bem), verbo (olha) 291
e interjeição (ah). Destacam-se, assim, no funcionamento textual-interativo dos M., nuanças particulares do fenômeno geral de acomodação de traços sêmicos para a sinalização de relações dentro do espaço discursivo. Os valores básicos depreendidos nessa ótica revelam que os M., nas instâncias de abertura em que atuam, recortam diferentemente dados do campo textual-interativo, ao apontarem seu foco predominantemente para a primeira pessoa (ah), para a segunda (olha), ou para o plano de uma “não-pessoa”, correspondente aos dados referenciáveis do tópico em centração (bom, bem). A proeminência dessas direções explica, por exemplo, em respostas prefaciadas, a natureza predominantemente fática e de auto-monitoramento formulativo dos preâmbulos abertos por olha e ah – os quais funcionam fundamentalmente para manter aberto o canal de interlocução, enquanto se procura o feitio da resposta propriamente dita –, em contraposição à tônica argumentativo-referencial dos prefácios desencadeados por bom e bem – que costumam exprimir formas de acerto ou ressalva sobre algum aspecto do tópico introduzido pela pergunta. O envolvimento com a “estrutura ideacional” do discurso dá conta também do fato de bom e bem monopolizarem, em relação aos demais M., o campo de atuação na macro-estruturação do texto, demarcando as grandes partes de uma exposição ou, em plano mais pontualizado, abrindo lances menores de informações integradas na constituição interna de um determinado tópico. A função seqüenciadora dos M., proeminente nesses contextos, convive com uma tênue expressão da relação dialógica assentada na consideração do interlocutor, a quem se destina a sinalização de cada passo da evolução da informação que vai sendo tecida. O adensamento do quadro interlocutivo, definido na dinâmica das situações discursivas, dá conta de momentos de assimilação de ah, e mais especialmente de bom e bem, a estruturas de forte acento interpessoal, onde se confrontam as opiniões dos interlocutores sobre um fato em consideração. Essa estruturas fazem ressaltar, em algumas instâncias, o estatuto prototipicamente concessivo assumido por bom e bem, na mediação de lances típicos de consentimentos ou admissões parciais de pontos de vista. Neles, a sinalização de uma concordância aparente antecipada pelos M., em início de enunciados, deixa automaticamente implícito um ponto de discordância com o argumento do parceiro. Essa propriedade confere aos dois M., de abertura, assim atuantes, a condição de unidades polifônicas, indiciadoras de diferentes vozes enunciativas reunidas na manifestação verbal do locutor. 292
3.2 – As particularidades textuais-interativas apuradas, se associadas à forma de distribuição dos quatro M. pelos inquéritos examinados, ganham importância na revelação de diferenças tipológicas dos textos, segundo o caráter mais dialógico ou menos dialógico de sua configuração. Vale lembrar, a esse propósito, que, no corpus do Projeto NURC, os inquéritos se dispõem numa escala decrescente de dialogicidade – aqui tomada restritamente em termos de coprodução verbal ativa – indo dos inquéritos de diálogo entre dois informantes (D2), passando pelos de diálogo entre informante e documentador (DID) e chagando aos de elocução formal (EF). A qualidade das referidas funções atestadas pelos M. e a distribuição das mesmas, segundo o tipo de inquérito, sugere um recorte preliminar nessa escala, que leva a formar um primeiro conjunto com D2 e DID, reunidos por características comuns que os distinguem de EF. Assim, D2 e DID se aproximam entre si pela incidência considerável dos M. mediando estruturas de pares adjacentes pergunta-resposta, que só excepcionalmente acontecem em EF, quando esta se abre para uma relação dialógica, em intervalos esporádicos de interação explícita implicando trocas de turnos. Do total de 27 exemplos encontrados, 24 (88,89%) ocorrem em contextos de interlocução de D2 e DID e apenas 3 (11,11%) em EF. Sugerindo um sub-recorte, essa incidência é nitidamente maior em DID (16= 59,26%) do que em D2 (8= 29,63%), o que se explica não propriamente pela maior intensidade dialógica daquele tipo de inquérito em relação a este, mas, antes, pelo maior índice da atuação inquiridora do documentador em DID, cujo papel principal é realimentar constantemente a fala do informante, fazendo perguntas a serem respondidas por ele. D2 e DID reúnem também o maior número de M. com orientação argumentativa direcionada à fala do interlocutor: 12 (92,30%), em confronto com 1 (7,70%) de EF. Neste particular, entre D2 e DID, a incidência já é bem mais acentuada em D2 (8= 61,54%) do que em DID (4= 30,76%), o que praticamente vincula o movimento de concordâncias, de discordâncias parciais ou totais e de ressalvas, a situações de crescimento da dialogicidade explícita, mais presente em D2. Em contrapartida, os textos de EF, que estampam o decréscimo da interlocução ativa, paralelamente a uma maior concentração no assunto e controle do andamento do fluxo informacional, carreiam uma outra especialização funcional dos M. Em EF se concentra, assim, a totalidade (13) das ocorrências de M. com foco na organização global da informação em tópicos dis293
cursivos; esse foco se manifesta pelas indicações relativas ao plano de tessitura do texto e à abertura formal de tópicos, nas circunstâncias em que esta é feita fora do contexto pergunta-resposta. Não se incluem nessa totalidade os vários empregos referidos à estruturação interna do tópico, envolvendo particularizações do assunto implicadas em seu desenvolvimento, os quais se distribuem mais ou menos uniformemente pelas três modalidades de inquérito analisadas.
NOTAS 1
As citações dos inquéritos de São Paulo são feitas conforme transcrições publicadas em Castilho e Preti (1986 e 1987) e Preti e Urbano (1988). As demais seguem transcrições apresentadas em mimeo.
2
Para maiores dados elucidativos sobre as variáveis selecionadas e sobre o elenco de alternativas dispostas em seu interior, v. Risso, Silva e Urbano (1996).
3
Esse total de ocorrências apresenta-se assim distribuído pelas quatro formas: 24 bom, 11 bem, 15 olha, 14 ah.
4
A preocupação em detalhar esses vínculos reveladores de uma espécie de fundo comum entre as duas instâncias (MD / não-MD), já revelada em outros estudos sobre marcadores, do Projeto Gramática do Português Falado (Risso, Silva e Urbano, 1996; Risso, 1993 e 1996), sugere a possibilidade de uma abordagem integrada das formas, pela qual a descrição gramatical das classes de palavras talvez devesse estender-se às propriedades textuais atestadas pelos M. Um passo nesse sentido é dado no tratamento do advérbio, em âmbito inferior, igual e superior à sentença, por Ilari et alii (1990).
5
As passagens de 1 a 4, transcritas no início deste trabalho, oferecem uma primeira ilustração desse contexto peculiar da ocorrência dos M. em respostas prefaciadas.
6
Não obstante esse torneio imitativo apoiado nos M., por meio do qual os locutores citantes bucam uma forma de representação do caráter espontâneo do oral, a citação de falas na interação verbal prossegue geralmente em formato idealizado e acusa a edição de particularidades de formulação inerentes à oralidade (hesitações, interrupções, entre outras). (V. dados a esse respeito em Marcuschi, 1992).
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296
ANATOMIA E FISIOLOGIA DOS MARCADORES DISCURSIVOS NÃO-PROTOTÍPICOS Giselle Machline de O. e Silva Equipe auxiliar: Vasti Rodrigues e Silva Ana Lúcia Braga Resende Simone Assafim
Introdução Ao estudarem os chamados marcadores discursivos (daqui em diante M.Ds.), Risso, Silva e Urbano (1995) propuseram traços1 a partir dos quais foram examinados todos os candidatos a M.Ds., isto é, todas as formas que os autores, seja por experiência, seja por conhecimento bibliográfico, suspeitavam serem M.Ds. Esses traços, ao mesmo tempo que os separam de outras formas, caracterizam-nos como M.Ds. e situam-nos ao longo de um continuum. A representação gráfica abaixo mostra que os itens estudados distribuem-se em dois grupos, conforme classifiquem-se ou não como marcadores. O espaço à esquerda é ocupado pelos marcadores discursivos que incluem tanto os prototípicos quanto os não-prototípicos. Uma linha vertical pontilhada separa-os dos discursivos não marcadores: limítrofes e totalmente rejeitados, elementos eliminados por não exibirem aqueles traços ou combinações de traços julgados requisitos indispensáveis. CANDIDATOS
A MARCADORES
MARCADORES DISCURSIVOS
DISCURSIVOS NÃO MARCADORES
M.Ds. prototípicos
M.Ds. não-prototípicos
Limítrofes
Né? então
assim, etc... por exemplo,
digamos que
totalmente rejeitados assim (adv)
digamos
O subconjunto denominado M.Ds. prototípicos, assim chamados por se caracterizarem por traços ou combinações de traços estatisticamente relevantes, inclui aqueles elementos fortemente seqüenciadores e fortemente interativos. Os primeiros, geralmente situados no início do enunciado, foram analisados neste volume por Mercedes Risso; os interativos, geralmente no final do enunciado, foram pesquisados por Hudinilson Urbano. Tratarei aqui de alguns que não foram considerados M.Ds. típicos, daqui para frente referidos como não-prototípicos. O modelo acima é simplificado, já que, por sua vez, as variáveis a que nos referimos, em sua maioria, são não-discretas. Um melhor modelo seria talvez uma cadeia, com superposição entre os vários estágios, ou ainda melhor, uma representação como a da propagação ondular. Este trabalho tratará dos M.Ds. por exemplo, digamos, etc... e assim. Além de terem sido considerados não-prototípicos, têm uma característica em comum: todos fazem referência implícita a um conjunto de elementos, como veremos na parte 3. Nosso objetivo é determinar quais desses M.Ds. estão correlacionados à teoria dos conjuntos, que correlações lingüísticas e externas fazem prever a escolha, por parte de um falante, de um dos elementos desse conjunto em detrimento dos outros, enfim qual o grau de tipicidade e uso dos mesmos. Também observaremos atentamente a demarcação entre os M.Ds. não-prototípicos, situados de um lado da fronteira, e os limítrofes, situados do outro lado, com o intuito de, futuramente, desvendar se há e, em havendo, como se dá a passagem de um lado a outro. Para isso, sempre que possível, cotejaremos os M.Ds. com as formas limítrofes que parecem exercer as mesmas funções discursivas. Assim, serão analisadas paralelamente as duas formas: M.D. digamos e limítrofe digamos que; (todas) essas coisas versus (tal) e coisa, etc... Essa comparação permitirá uma caracterização mais profunda do continuum e poderá trazer luzes quanto à origem dos M.Ds. Por fim, vale lembrar que a forma assim, que se distingue das listadas acima, por não dispor de uma contrapartida limítrofe e por abrigar estatutos categoriais e funções distintas – uma enquanto M.D. e outra enquanto advérbio – também será investigada criteriosamente Finalmente, investigaremos a colocação sintática dos M.Ds. aqui analisados dada a relevância desta variável, vislumbrada em Tarallo e Kato (1992), Kato e Tarallo (1993) e detalhada por Silva, Tarallo e Braga. Enquanto os dois primeiros trabalhos mostravam que os elementos discursivos, de modo geral, 298
ocupavam as fronteiras de constituintes das margens esquerda e direita, o último sustentava que os diferentes M.Ds. ocupavam um “nicho” preferencial, seja à direita seja à esquerda. Assim, porém, distinguia-se deles por ocupar outras fronteiras de constituintes e também por se colocar fora delas. Seriam justamente os menos prototípicos os que ocupariam essas posições não marginais? O corpus utilizado inclui 18 entrevistas completas e, para melhor equilibrar o tipo de entrevista quanto ao sexo/gênero do falante, acrescentaram-se ao corpus compartilhado as entrevistas DID, SA no100; EF, RJ no 364 e D2, SP no333.
1. Não prototipicidade Nesta parte resumiremos as razões pelas quais a maioria dos M.Ds. a serem tratados aqui foram considerados não-prototípicos em Risso, Silva e Urbano. Dissemos acima que alguns traços (agrupados em variáveis), ou melhor ainda, combinações de traços, foram julgados mais relevantes do que outros e que uma das variáveis mais pertinentes foi o tipo de articulação com os segmentos do discurso. Essa variável (variável 2) compreendia três traços: O traço 0 caracterizava os não-seqüenciadores, isto é, aqueles M.Ds. que pouco ou nada têm a ver com a articulação dos segmentos do discurso (né?, entende?, etc...): 47,0% de todos os elementos discursivos que foram, num primeiro momento, candidatos a M.Ds. incluíram-se nessa rubrica. O traço 1 foi atribuído àqueles candidatos a M.Ds. que promoviam a organização tópica do discurso (como agora e então): 47,8% foram inseridos nesse grupo. Em 2, foram agrupados os candidatos a M.Ds. que tinham, nesse particular, certa semelhança com advérbios e conjunções, ajudando na organização da estrutura frásica. A esse grupo pertenceram apenas 5,1% de todos os candidatos. Observa-se, portanto, que este último traço abriga poucos M.Ds. O M.D. assim, quanto a essa variável, recebeu o traço 0, insuficiente, por si só, para descaracterizá-lo como M.D. prototípico, pois, como dissemos, são as combinações de traços, e não os traços de per si, que serviram de critério para eliminar certas formas. Os demais M.Ds. a serem considerados aqui, como: por exemplo, etc..., e digamos receberam o traço 1. Outra variável bastante importante para a ordenação dos M.Ds. ao longo do continuum foi a orientação (modo e grau) da interação. Receberam o traço 0 (então, primeiro) os fragilmente orientadores, isto é, aqueles que sina299
lizam fraco envolvimento dos interlocutores, funcionando o enunciado em que ocorrem como os enunciados sem-M.D. (desnecessário recordar que num evento conversacional não teria sentido, por definição, existir orientação interacional realmente nula). Apenas 17,9% dos candidatos a M.Ds. classificaram-se como tal. O traço 1, secundariamente orientador, foi atribuído às formas através das quais o falante tenta envolver, embora indiretamente, seu interlocutor ou avaliar subjetivamente significações proposicionais (agora – quando claramente sinaliza haver uma guinada em seu discurso –, bom – quando sinaliza haver aparente concordância inicial, seguida de pontos polêmicos, etc...). Dos candidatos a M.Ds., 44,7% foram considerados como secundariamente orientadores. Finalmente foram codificados com o traço 2 os basicamente orientadores, aqueles que marcam um processo de relação interpessoal explícito, como nos requisitos de apoio discursivo (né, entende? etc...) ou naquelas formas de 4a pessoa (digamos) (37,5%). Nota-se, entre as duas variáveis mencionadas até agora, certa distribuição complementar: as formas altamente pontuadas quanto à articulação serão baixamente pontuadas quanto a envolvimento. O M.D. menos típico é aquele classificado com o traço 0 quanto à interação. Serão examinados, à luz dessa variável, os que supomos de início fracamente M.Ds.: dos tratados aqui, somente a etc... foi atribuído o traço 0; assim e por exemplo foram codificados como sendo 1; digamos e vamos dizer como 2, já que tentam, com a 4a pessoa, envolver o interlocutor. Da interrelação dessas duas variáveis formam-se as combinações abaixo (com as respectivas freqüências): ARTICULAÇÃO INTERAÇÃO não-seq. 0
seq. tópico 1
frágil
208/1169=17,79% 339/1169=29,00% 550/1169=
3/1169= 0,26%
0 secund.
etc...
2
0%
205/1169=17,54% 257/1169=21,98% 97/1169=8,30%
1 básica
seq. frasal 2
1/1169= 0,09%
totais linha 47,05% 559/1169=
por exemplo
assim
47,82%
57/1169= 4,88%
2/1169=0,17%
60/1169=
digamos
5,13%
Pelo critério da ação combinatória, vê-se que os M.Ds. digamos e assim já se situam numa combinação de freqüência baixa (0,09% e 8,30%, respectivamente), atípica portanto. Os demais continuam na sua luta pela sobrevivência entre os M.Ds. Algumas variáveis só serviram para separar os M.Ds. dos não300
M.Ds., sem distribuir típicos e não típicos pelo continuum. Entre elas, está a variável 01, que diz respeito à freqüência do M.D., seu padrão de recorrência. Todos os M.Ds., mesmo os supostamente não-prototípicos constantes deste presente trabalho, têm o traço 3 correspondente ao mais alto padrão de recorrência. A quarta variável – relação do M.D. com o conteúdo proposicional, isto é sua relação com a informação conteudística do enunciado – tampouco serviu para distinguir M.Ds. de não M.Ds. ou para diferenciar a os M.Ds. em pauta dos demais, os mais típicos. Com relação a esta variável, todos os M.Ds., ou pelo menos 91,8% deles, típicos ou não, se comportam do mesmo modo, isto é, são exteriores ao conteúdo, ao contrário de formas como eu considero..., faz isso, faz não sei que, eliminadas do rol dos M.Ds. Outra variável imprópria para distinguir os não-típicos é a transparência semântica que tenta verificar o grau de afastamento do M.D. da forma que provavelmente lhe deu origem. Haviam sido considerados quatro graus: semanticamente opacas (traço 0), isto é, formas que não deixam transparecer seu sentido gramatical, previsto pelas gramáticas, ou lexical, previsto pelos dicionários. Os graus 1 e 2 (respectivamente parcial e totalmente transparentes) se afastam progressivamente desse grau 0. Entre os postulantes a M.Ds., 53,4% receberam o traço 1, transparência parcial e 36,0% receberam traço 2, transparência total. Os M.Ds. mais típicos se caracterizariam pela transparência parcial. Ora, analisando à luz desta variável os M.Ds. que estamos tratando aqui, vemos que assim se comporta adequadamente, mas digamos, etc... e por exemplo são mais transparentes do que se esperaria de típicos M.Ds. A variável seguinte (06) trata da apresentação formal, isto é, da variabilidade das formas. Com efeito, espera-se que um M.D. esteja sob forma estereotipada e que, por conseguinte, seja pouco ou não variável. Foram atribuídos os traços 1 para forma única e 2 para forma variante. Os resultados apontaram para uma distribuição aproximada de 50% entre as duas freqüências2, não nos servindo agora, portanto, como traço distintivo. Das formas aqui analisadas, assim foi classificado como uma forma única e os demais como tendo formas variantes digamos (digamos assim); etc... (etc... e tal), por exemplo (como por exemplo). Quanto à relação com a estrutura sintática da oração (variável 07), os M.Ds. são considerados, particularmente por Schiffrin (1989),3 como sendo sintaticamente independentes (traço 1). Nossos resultados ratificam esta hipótese: 86,9% dos candidatos a M.Ds. ao qual essa variável se aplicava4 foram codificados como tal, evidenciando a força desse traço. 301
A demarcação prosódica é variável para cada forma e cada realização pode exibir ou não uma demarcação. A tendência é de que os M.Ds. sejam demarcados (68,9%). Veremos o comportamento dessa variável quanto a nossos M.Ds. não-prototípicos quando da sua análise individual. A autonomia comunicativa indica a possibilidade das formas poderem (traço 1) ou não (traço 0) constituir enunciados proposicionais em si próprios. Os resultados mostram que apenas 3,8% das formas então analisadas eram autônomas. Estes 3,8% não incluíam os marcadores objeto da análise em pauta. A quantidade de massa fônica foi incluída como variável na crença de que os M.Ds. tendem a perder essa massa que, conseqüentemente, se tornaria parca. Com efeito, é freqüente a redução desde a fonte até o M.D., haja visto não é? e né?. Receberam o traço 1 os candidatos com até três sílabas tonaicas e o traço 2 aqueles com mais de três. Os resultados evidenciaram o acerto dessa hipótese: a 96,7% dos candidatos foi atribuído o traço 1 e os M.Ds. que nos propusemos a estudar passaram garbosamente por essa variável. Em resumo, examinando a possibilidade das diferentes combinações suscitadas pela alternância entre os traços 0 e 1 na variável 02 (articulação de segmentos do discurso), 0, 1 e 2 na variável 03 (orientação da interação) e 1 e 2 na variável 06 (apresentação formal) formam-se matrizes, teoricamente possíveis, de combinações fortes. Essas combinações serão examinadas agora e eventualmente atribuídas aos nossos M.Ds. para que, finalmente, decidamos se são prototípicos ou não. No quadro abaixo, as matrizes estão dispostas em combinações de a a l. Nossos M.Ds. estão dispostos na parte de baixo da combinação mais aproximada, com a(s) codificação(ões) discrepantes. Observase, nesse quadro, que os M.Ds. examinados sofreram pequenos deslizes em alguns traços, situando-se, pois, no continuum entre os típicos e os limítrofes, mas ainda no campo dos M.Ds., como foi sugerido no gráfico da p.1, que representa o continuum.
302
VARIÁVEIS
01 02
COMBINAÇÕES 3 FORTES e
1
03 04 05 06
07 08
09 10
1
1
0
1
1
1
1
M.D.
1
2
assim
seus deslizes a) b)
3
1
2
1
1
1
1
1
0
1
c)
3
1
0
1
1
1
1
1
0
1
d)
3
1
1
1
1
2
1
1
0
1
2
por exemplo
e)
3
1
2
1
1
2
1
1
0
1
f)
3
1
0
1
1 2
2
1
1
0
1 etc...
g)
3
0
1
1
1
1
1
1
0
1
h)
3
0
2
1
1
1
1
1
0
1
i)
3
0
0
1
1
1
1
1
0
1
j)
3
0
0
1
1
2
1
1
0
1
k)
3
0
1
1
1
2
1
1
0
1
l)
3 25
0
2
1
1 2
2
1
1
0
1 digamos
2. Variáveis comuns a dois ou mais M.Ds. Descrição Consideramos nesta parte algumas das variáveis compartilhadas pelos M.Ds. aqui abordados. Os resultados correspondentes a elas serão apresentados na parte dedicada a cada um. Mais do que meramente querer descrever os M.Ds. menos prototípicos, interessa-nos compará-los entre si. 303
Para verificar se os M.Ds. aqui analisados estão ligados a dificuldades de processamento e se os elementos a que se referem são ou não prototípicos, investigamos-se três variáveis: a subjetividade e a concretitude do trecho anterior e/ou posterior e a coocorrência de descontinuidades nas proximidade. 2.1 A variável objetividade do assunto visava a verificar se: i – Estaria o assim e o digamos precedendo enunciados subjetivos? Uma resposta afirmativa constituiria uma evidência de que estes M.Ds. exerceriam a função de pausa preenchida, facultando ao falante um certo tempo para processar um enunciado mais laborioso, e argumentaria a favor da não prototipicidade dos elementos regidos por eles. ii – Tentaria o falante objetivar mais sua argumentação subjetiva citando exemplos mais objetivos? A hipótese subjacente era a de que um enunciado mais “difícil” de ser formulado deveria suscitar mais reformulações e hesitações, e de que um enunciado subjetivo é mais “difícil” de formular do que um objetivo. Como a “dificuldade” de um enunciado é inescrutável, foram usados subterfúgios para tentar alcançá-la. É difícil traçar o limite entre objetividade e subjetividade e, até onde se saiba, o uso desse conceito como aqui concebido não é usual em trabalhos lingüísticos. Foi, entretanto, utilizado com sucesso em Silva e Macedo (1989) a propósito do assim, demonstrando que de acordo com a hipótese, esse M.D. tendia a sinalizar contextos posteriores subjetivos. Para aferir a “objetividade” valemo-nos dos seguintes critérios: a) Foi julgado objetivo um enunciado descritivo ou de procedimento que, além de ter sido apresentado de forma fria e técnica, não acrescentava nenhuma opinião, nem comentário pessoal, enfim um enunciado que se referia ao mundo físico, exterior ao falante. Considerou-se ainda como enunciado objetivo aquele que não apresentava elementos anteriores nem posteriores que viessem a indicar algum grau de subjetividade, tais como verbos modais, expressões como “em termos de”, “uma espécie de” etc...): (2.1) Eu gosto muito de coisa misturada assim com azeite de dendê (DID, RJ-328, token 366)
b) Foi considerado como subjetivo o enunciado em que o falante exprimia suas opiniões, sentimentos e anseios, ou aquele em que o conceito era expresso por meio de adjetivos que remetem a quantidades imprecisas, depen304
dentes de avaliação pessoal (grande, pequeno) ou de qualidades (bom, gostoso) – que, de certo modo, são também opiniões –, enfim aquele enunciado que se referia ao mundo interno do falante. No exemplo seguinte, o que é “aromático” e agradável para uns, pode ser horrível para outro: (2.2) Então fica assim aromático [5] (D2-PoA-291, t. H140)
Para verificar se realmente existia uma correlação entre o maior uso de M.Ds. e a subjetividade do enunciado, optamos por examinar previamente a distribuição de peças de informação subjetiva e objetiva ao longo do texto, em enunciados sem marcadores. Para tal, estudamos uma amostra constituída por uma página de 4 entrevistas DID (aproximadamente 20 enunciados em cada uma). O levantamento do grau de subjetividade/objetividade do segmento após o verbo, posição usual dos nossos M.Ds., mostrou um predomínio de 48 enunciados objetivos (48/78 e 30=38,5%). 2.2 – Ainda com o mesmo espírito de aferir a prototipicidade do(s) elemento(s) referido(s) pelo M.D. (quando substantivos, acompanhados ou não de adjetivos), mediu-se a concretitude desse(s) elemento(s). Foram considerados concretos aqueles que, segundo Mira Mateus et alii (1989), designam “objeto físico, animado, localizado (ou pelo menos localizável) espaciotemporalmente, com propriedades perceptuais directamente observáveis” (ex. 2.1). O rótulo abstrato foi aplicado àqueles que, ao contrário, são não-palpáveis, àqueles que se mantêm no nível das idéias (2.3). 2.3 – Ainda para tentar circunscrever o grau de dificuldade experimentado pelo falante na sua enunciação, foi medida a presença de outras possíveis6 marcas formais de dificuldade, coocorrendo na proximidade do M.D., tais como hesitações, gagueiras e repetições não estilísticas. O que foi considerado “proximidade” variou para cada M.D. e dependia de suas peculiaridades. Quantificaram-se as descontinuidades anteriores e posteriores ao elemento. Parecia-nos que as dificuldades no processamento, por exemplo a dificuldade em encontrar de imediato um termo necessário à codificação de uma peça de informação, deixariam seus vestígios no texto. As descontinuidades só teriam razão de ser durante o processamento do termo procurado, portanto antes de sua enunciação. Há, entretanto, que se comparar esses vestígios anteriores com os posteriores, posto que descontinuidades existem no texto todo, em maior ou menor profusão. 305
(2.3) Agora:: eh nos assim na na nossa minha faixa de idade eu tenho impressão que o pessoal ainda é pelos filmes mais... que antigamente:: existiam mais os filmes bons. (DID-SP, l.008)
2.4 – Para a maioria dos M.Ds., a intuição e os estudos anteriores sugeriam a existência de uma correlação entre o tipo de M.D. e o status informacional da seqüência em que ele está articulado. Esse status tem sido analisado a partir das categorias de Prince (1992) ou de Chafe (1994) A tipologia da primeira é basicamente textual e compreende três tipos de entidades: novas, entidades que ainda não ocorreram no texto; evocadas, entidades já mencionadas previamente; e inferíveis, entidades que se depreende facilmente de outras presentes no texto prévio (2.4). Já Chafe tem uma fundamentação cognitiva e refere-se a referentes dados, novos e acessíveis. Para um estudo quantitativo, consideramos a proposta de Prince mais operacional, daí nossa opção pela mesma. Com relação a este grupo de fatores, nossa hipótese era a de que, em um enunciado sobre tópicos não totalmente dominados pelo falantes, haveria mais possibilidade de hesitação, daí o maior uso assim e digamos, por exemplo. Investigamos ainda se a informação precedia o M.D. (expansores), seguia-o (assim, digamos) ou circundava-o (por exemplo). (2.4) Eles fazem um molho com pimenta muito gostoso, se bem que é muito forte, né? A gente sente assim aquele gosto muito picante. (DID RJ-328, token 403)
Nesse enunciado, o gosto picante já estava implícito por ser inerente à pimenta e a muito forte. Como foi verificado posteriormente que as informações inferíveis e as evocadas se comportavam analogamente, foram amalgamadas em um só fator. 2.5 – Conforme já foi dito, o estudo do lugar onde se situa o M.D. é um dos objetivos desta fase da análise. Pioneiros no estudo dos M.Ds., Castilho (1986) e Marcuschi (1989) chamaram a atenção para a preferência dessas partículas pelas margens direita e esquerda. Silva (1990), por outro lado, nota que o M.D. assim, longe de ser marginal, situa-se sistematicamente diante de complemento, nunca entre sujeito e verbo, sofrendo, portanto, séria restrição sintática. Tratando-se aqui de um trabalho de cunho discursivo, cabe justificar porque não utilizamos as unidades discursivas como unidades de segmentação, 306
como as preconizadas por numerosos autores, como Castilho (1986), entre outros. Como os M.Ds. têm freqüentemente contorno entoacional peculiar, podem servir de marco para a segmentação de tais unidades, chegando até a poder constituir uma unidade de per si. Parece-nos circular dizer serem os M.Ds. marginais, se eles próprios servem de delimitação para as margens. A partir da proposta de Tarallo (1991) e Tarallo e Kato (1992), referida acima, passamos a utilizá-la em Silva, Tarallo e Braga (1994) com enorme ganho, já que, utilizando apenas um critério sintático, não há perigo de alegar ser circular e viciosa a análise da localização dos M.Ds. Nesse último trabalho, os autores sugerem que cada M.D. pode ter uma fronteira preferencial. Constatam, também, ser possível a presença de alguns M.Ds. fora de fronteira de constituinte. Verificar-se-á aqui que os M.Ds. em tela ocorrem preferencialmente numa fronteira (em qual delas) e, caso contrário, qual a outra localização preferencial.7 Por se tratar de M.Ds. não ligados às tomadas de turno, foi totalmente desnecessário verificar sua localização relativamente ao turno. Como muitas instâncias não estavam na fronteira, foram previstos para esses codificações agrupadas em duas variáveis: uma que previa qual a posição geral ocupada pelo M.D., se tópico, sujeito, complemento (qual) ou adjunto; e outra que discriminava mais finamente a posição: entre dois adjuntos adnominais, entre adjunto adnominal e nome, etc... 2.6 – Com o objetivo de detalhar a entoação dos M.Ds. verificando-se seu destaque, a pauta entoacional foi subdividida em diversas variáveis: pausa anterior, pausa posterior, estabilidade da altura, comprimento da última sílaba, intensidade auditiva, (des)aceleração do ritmo. Foi também utilizado, numa subamostra de 20 dados de cada M.D., o programa CECIL, sistema de análise fonética que permite refinar a análise acústica dos traços suprasegmentais. A – A pausa, medida de acordo com a metodologia descrita em Silva (199?), foi considerada relativamente à velocidade média da entrevista. B – Quanto à altura do(s) último(s) segmento(s) do M.D. relativamente aos primeiro(s), os padrões encontrados foram: a) estável, quando não havia percepção de subida nem descida; b) ascendente contínuo, quando havia uma subida desde o início; c) descendente quando, pelo contrário, identificava-se uma descida de altura;. d) ascendente/ estável:
307
como o gráfico indica, esse padrão consistiu em uma subida de altura inicial, seguida de uma estagnação. C – A variável relativa ao comprimento da última sílaba é binária, tendo sido considerada como alongada apenas a sílaba que oferecesse um alongamento perceptível. D – A variável intensidade também compreendia dois fatores, que visavam a identificar se o M.D. tinha sido emitido com intensidade inferior à do resto do enunciado ou não. (Não houve ocorrências de M.D. positivamente proeminente) E – A aceleração ou desaceleração do ritmo em que vinha sendo empregado pelo ouvinte foi registrada naqueles M.Ds. em que esse fenômeno era claramente perceptível em relação às últimas palavras anteriores e às primeiras posteriores ao M.D. O M.D. por exemplo foi, no entanto, codificado de maneira um pouco diversa já que seu padrão consiste em uma aceleração anterior a ele que se prolonga pelo exemplificante. 2.7 – É sabido que alguns M.Ds. tendem a se aglutinar a outros. São amalgamações comuns aí então, mas então, ah bom, etc... Mencionaremos como cada M.D. aqui estudado se comporta quanto a essa propriedade. 2.8 – As freqüências gerais foram corrigidas (v.c) de acordo com a duração de cada entrevista e foi, também, acrescentado o conceito de repartição. Com efeito, uma freqüência alta poderia refletir uma idiossincrasia do falante. Já a repartição indica em quantas entrevistas aparece o M.D. Um número pequeno confirmaria a idiossincrasia ou, dependendo da variável região, um regionalismo. Essa variável foi cotada de 1 a 18 (número de entrevistas analisadas). Considerando que a linguagem desabrocha durante a interação social, não poderiam faltar no elenco dos grupos de fatores comuns à análise de todos os M.Ds. as variáveis sociais sexo e região do informante e ainda o tipo de entrevista (EF, DID e D2) todas suficientemente conhecidas para dispensar descrição.
3. Teoria dos conjuntos Trataremos agora da relação dos M.Ds. etc..., por exemplo, digamos e assim com a teoria dos conjuntos, pois reivindicamos que todos se referem 308
implicitamente a um ou mais elementos dentro de um conjunto de elementos. O M.D. por exemplo ilustra tal uso: (3.1) Em lojas comerciais de artigos diversos,... por exemplo eletrodoméstico, nós temos o Correia Ribeiro. (DID, SA l.701)
O falante refere-se a um conjunto de lojas que acha desnecessário ou difícil identificar por meio de um enunciado explicativo. Certamente, qualquer outro estabelecimento comercial (de roupas, sapatos) que não vendesse produtos alimentícios (já descartados anteriormente no texto), serviria para o propósito do falante. No outro exemplo abaixo, da mesma forma, a falante se refere a diferenças observadas em peças teatrais. (3.2) eu tenho notado diferença por exemplo aquele teatro que tem lá na rua dos Ingleses que passou essa peça essa comédia que nós comentamos eu tenho a impressão que ela é mais assim ah não tem tanto preparo, tanto eh... (DID-SP 2 l.230)
Ao invés de dissertar sobre vários tipos de diferença, escolhe, como ilustração, no conjunto de peças, um dos elementos, uma peça daquele teatro citado. Vemos abaixo também um exemplo mais explícito de como o falante se vale simultaneamente da teoria de conjuntos (e aqui conscientemente) e desse grupo de M.Ds. (3.3) então uma firma x precisa de um determinado elemento y por exemplo então ela diz os::os elementos que eu gostaria... normalmente são dos concorrentes é de tal tal tal empresa (D2, SP l.1029)
Em outro enunciado, não encontrando explicitamente um elemento perfeitamente prototípico que sirva de escala para comparar com “as mais amplas”, serve-se de vários elementos (as religiosas, as morais) para que seus alunos expandam o conjunto de elementos éticos, fazendo-se uma idéia do que ela quer lhes transmitir. 309
(3.4) São as mais abrangentes, as mais amplas, mais do que por exemplo? Isso eu expliquei... eu acho que na segunda ou terceira aula. Mais do que as religiosas, mais do que:: as regras morais etc... (T-062b/EF, RE)
O M.D. assim também se relaciona à teoria dos conjuntos, sendo usado enquanto o falante, ao processar seu enunciado, procura, entre os termos de um campo semântico, o mais adequado elemento de um conjunto aberto pelo sub-tópico. Esse conjunto se aproxima também ao frame de Minsky (apud Brown & Fillmore,1983). (3.5) mas são muitas frutas silves...assim selvagens [1] que eles tiram assim mesmo da, da mata. (DID, RJ 051 31) (3.6) e, são frutas [2] assim, muito, assim, duras, sabe? (DID, RJ 063 31)
No exemplo 3.5, a falante abre um campo semântico, no caso um subconjunto de frutas cultivadas ou não e procura o elemento que melhor convenha aos seus propósitos, a descrição das frutas em pauta. Há até um indício dessa procura já que tinha, provavelmente, iniciado o elemento silvestre, que foi abandonado:
FRUTAS selvagens
não cultivadas
silvestres
Em 3.6, ela visivelmente procura um elemento adequado entre os congêneres de dura. Ela certamente teria preferido, dentre os do mesmo campo semântico, um adjetivo que intensificasse melhor a dureza da fruta. Não o encontrando, enuncia mesmo o dura e ainda pede, com o sabe?, a compreensão do ouvinte já que o termo escolhido não lhe parece o melhor. 310
Os dois M.Ds. aparentados digamos e vamos dizer assim também se referem a elementos de um conjunto no sentido de sinalizarem ao ouvinte a existência de um conjunto de elementos possíveis, apontar para um, avisando o seu interlocutor que qualquer um dos elementos próximos a ele teria igualmente servido ao seu propósito comunicativo, não havendo, portanto, nenhum compromisso de sua parte com esse elemento mais do que com outro. Ancorado na 4a pessoa, persiste, no uso enquanto M.D., uma referência ao interlocutor, buscando torná-lo cúmplice e acentuando seu não comprometimento. O M.D. etcétera também se refere a elementos de um conjunto. O falante cita alguns deles esperando que o ouvinte entenda e generalize o conjunto desejado. Com esse M.D. e valendo-se de apenas uma palavra, o falante leva o interlocutor a fazer uma síntese do resto dos demais elementos. Devido a esse aspecto é algumas vezes chamado de sintetizador. Funciona à semelhança de expressões explícitas que podem finalizar uma enumeração, como a do final de (3.7), em que o falante se refere ao conjunto após já ter citado seus elementos: (3.7) há possibilidade dependendo...do grau de conhecimento... de um juiz... de um advogado...de um promotor... enfim de um profissional de direito. (EF, SA l. 112)
Por outro lado, indica também que o conjunto se expande além dos poucos elementos citados. Por esse motivo, será aqui tratado como expansor.
4. Os M.Ds. Expansores Nesta seção analisaremos o M.D. etc..., sua outra possibilidade de realização etc... e tal e ainda as formas e tal e coisa, e tudo (o) mais, e numerosas outras, quando também consideradas M.Ds.8. Paralelamente, serão estudadas formas que desempenham a mesma função mas que foram consideradas como limítrofes. Vimos, na parte 1, que algumas propriedades do etc... (e das similares) o caracterizavam como M.D. não-prototípico. No decorrer desta segunda etapa, consideraremos a variável 07 – relação sintática com a estrutura oracional –, que distribui os elementos em pauta em dois subgrupos, conforme sejam sintaticamente dependentes ou não. Os primeiros situam-se ao lado dos 311
limítrofes, já que a dependência sintática pesou fortemente, por ser um traço eliminatório. Esse estudo sobre os expansores se calca nas hipóteses iniciais de que: i) nas enumerações, a maior dificuldade do falante em arrolar os membros que constituem um conjunto pode propiciar a ocorrência de expansores; ii) independentemente da dificuldade, o falante não utilizaria expansores se o tópico ilustrado pela enumeração fosse considerado relevante. A análise se baseará, portanto, primordialmente em variáveis que tentarão abeirar-se tanto do grau de dificuldade, quanto da relevância do tópico em que está inserida a enumeração. Dissemos: “tentar abeirar-se” pois temos total consciência da impossibilidade de aferir, exata e objetivamente, o grau de dificuldade quando de enumeração e hierarquização dos elementos de uma lista. Verificou-se, após a primeira análise desses M.Ds., que não bastava a análise do expansor propriamente dito, mas que se tornava necessário certa análise dos elementos que o precedem. Algumas das variáveis dizem, pois, respeito ao tipo de enumeração dos elementos do conjunto. Dada a definição de enumeração, pensávamos haver pelo menos dois elementos antes de um possível expansor. Deparamo-nos, no entanto, com formas de expansores após a citação de apenas um elemento (4.1) (4.1) o sexo na Suécia todo mundo fala normalmente...não tem problema... discute-se em casa... das... das filhas... da atividade sexual...coisa e tal... de meninas de 12... 15 anos não tem problema (D2-RJ l.768)
Considerou-se, então, que a enumeração seria a estrutura indispensável para a ocorrência de um expansor, mesmo que ela se reduzisse a um só elemento. O inverso nem sempre ocorre: uma enumeração pode conter ou não um expansor (cf. 4.2). (4.2) Doc. E o que que se cultivava na fazenda? Inf. Bom...ahn::até hoje se cultiva apenas eu hoje eu estou afastado do::...do habitat...(riu) mas::cultivava milho... cana de açúcar...e:: culturas que:: quer dizer não eram constantes culturas anuais... que se renovavam... por exemplo algodão... e::... depois plantava-se também às vezes eucaliptos... (DID-SP l.38)
312
Priorizou-se entretanto o estudo das enumerações em que ocorreu um expansor, já que a ênfase dada a essa pesquisa se concentra nos M.Ds. Tendo identificado a enumeração e o M.D. (ou o limítrofe) que a encerra, ainda há, em alguns casos, uma outra dificuldade, principalmente em enumerações curtas: a delimitação do escopo do M.D. Nem sempre há pistas cabais. As mais comuns são curvas entoacionais peculiares e paralelas para todos os elementos. Por vezes, a utilização da mesma estrutura formal quando da listagem de cada membro (o que é aqui chamado de paralelismo (Hilgert, 1989)), pode, eventualmente, fornecer pistas. No exemplo a seguir, aponta-se para duas possibilidades de interpretação (a e b): (4.3) Aí, pronto, tem as lanchonetes, esses bares de esses barzinhos da orla marítima e tem os cinemas (est) não é? tem os clubes sociais, que nós podemos pode-se...geralmente há reuniões entre os amigos, a) etc. e tal b) etc. e tal E durante a noite, não se fala, né? (DID, SA l.789)
Na interpretação a), o conjunto inclui os tipos de lazer: clubes sociais, cinemas, barzinhos de reuniões. Em b), o conjunto seria do tipo de reuniões: entre amigos, colegas, parentes. Nem a entoação, nem o paralelismo elucidam bem a questão. A incidência desse M.D. parecer constituir dificuldade para o analista; não, porém, para o ouvinte: nunca foi encontrado nenhum pedido de esclarecimento por parte do último. É bem verdade que a maioria das enumerações com expansor, e justamente aquelas com expansor de âmbito duvidoso, foi classificada como irrelevante. Esse âmbito do expansor foi de suma importância, já que, freqüentemente, do escopo dependeu toda a codificação, até mesmo a decisão de ser sintaticamente independente ou não, isto é, em última análise, a decisão de ser M.D. ou limítrofe. Veja-se por exemplo: 313
(4.4)
ele passava a incorporação saia vendendo cotas de terreno a)
isso tudo
b) c)
isso tudo isso tudo (D2-RJ l.551)
Em a), o “isso tudo” remeteria à oração “saía vendendo cotas de terreno”; em b), a “de terreno” (cotas de clube...); em c), ao verbo “saia” (anunciava...). Se não fosse, no caso b), haveria provavelmente uma preposição (disso tudo) paralelamente repetida, e no caso c), um verbo. Os aspectos considerados a seguir avaliarão a motivação que leva ao uso ou não de um expansor9. Como já foi dito, numerosos expansores e formas limítrofes podem desempenhar a mesma função. Listam-se abaixo as formas encontradas, agrupadas em núcleos em volta de TUDO (cf.4.4), COISA (4.1), TAL (4.13), SEI e, naturalmente, o próprio ETC... (4.8): M.Ds a)
LIMÍTROFES
N.
%
N.
22/62
35,5
0
15/62
24,1
1/8
e tal e coisa tal Total
6/62
14,5
0
não sei (o) que (tatata) mais não sei (o) que Total
7/62
11,3
3/8
etc... etc. e tal etc.etc.. Total
isso tudo tudo tudo (o) mais tudo isso todo esse negócio esse negócio todo Total
%
b)
c)
d)
314
12,5
37,5
e)
f)
essas coisas outras coisas interessantes uma coisa e outra por aí e coisa coisa e tal qualquer coisa assim umas coisas assim Total
6/62
9,7
3/8
37,5
3/62
4,8
1/8
12,5
e por aí vai afora nada disso tatata Total
A grande diferença entre as porcentagens apresentadas pelos diversos M.Ds. e pelos diversos limítrofes, além do pequeno número destes últimos, deve-se ao fato do etc... nunca exercer nenhuma função sintática, não podendo, portanto, ser classificado como limítrofe. Como esse foi o critério para a separação de M.Ds. e limítrofes, criou-se um desequilíbrio quantitativo entre os dois lados. Com o objetivo de aquilatar sua inserção no enunciado (Dubois, 1992), inserção essa curiosa para um M.D., foi analisada a presença (4.5) ou ausência (4.1) de conjunções imediatamente anteriores ao expansor. A forma etc... foi considerada sem conjunção, malgrado sua fonte, exceto se aparecesse explicitamente com ela como em: (4.5) o dia que você der autonomia financeira aos colégios... aos diretores e etc... (D2-RJ l.1271)
A grande proporção de expansores sem conjunção (39/62=62,9%) devese, em parte, à grande quantidade de etc. Mas, mesmo que fossem retiradas as 22 formas cujo núcleo é etc..., ainda haveria 16 ocorrências sem conjunção. Das formas limítrofes 4/8=50% vêm sem conjunção. Não há pois diferença relevante. Dubois (1992) encontrou um número mais baixo sem conjuntores no Québec (42%), o que se deve provavelmente ao menor número de etc... O paralelismo, como observamos previamente, ajudava a delimitar o âmbito do expansor. Para avaliar sua atuação, propusemos uma variável com três fatores: sem paralelismo, paralelo e misto. O rótulo do primeiro fator é 315
auto-explicativo, dispensando, conseqüentemente, maiores comentários. O segundo identificava aquelas enumerações em que havia repetição de estruturas, independentemente das alterações que pudessem sofrer no decorrer do ato de fala. O terceiro remetia ou à repetição de um item muito pequeno ou a uma lista com poucos elementos paralelos.10 Os resultados estão expostos na tabela seguinte, mas sua interpretação, correlacionando o paralelismo ao maior ou menor uso de expansores, demandou a comparação de paralelismo em uma amostra de enumerações sem essas partículas. Vê-se, na tabela abaixo, que há menos paralelismo naquelas enumerações com M.Ds. e limítrofes. Sabendo-se que as enumerações sem expansores são, via de regra, mais relevantes para o tópico em que estão inseridas (o que será visto adiante), cruzaram-se as variáveis relevância e paralelismo. Os resultados mostram que as enumerações relevantes tendem a ser mais paralelas (7/11=63,6%). Os índices percentuais para as não paralelas ou fracamente paralelas, no que diz respeito à relevância, são bem mais inferiores (15/35=42,8%). M.D. Nenhum paralelismo
25/42=59,5%
pouco ou paral. misto
7/42=16,7%
paralelismo
10/42=23,8%
Limítrofes 3/4=75,0%
Enumer. sem M.D. nem limítrofe. 20/54=37,0% 12/54=22,2%
1/4=25,0%
22/54=40,7%
Para analisar a relevância da enumeração, face à seqüência tópica em que estava inserida, valemo-nos dos seguintes fatores: a) Relevante – Consideraram-se relevantes as enumerações a serviço de tópicos que o falante julga essenciais, a ponto de prosseguirem no decorrer da entrevista, ou seja, tópicos retomados, explorados, expandidos. Ou que respondem diretamente à pergunta do documentador (4.2). Este conceito corresponderia aproximadamente ao de figura, nas narrativas. Nas EFs, quando a enumeração é justamente o tema da aula, relevante portanto mesmo que seja inferível ou velha, mesmo que óbvia, o professor, por motivos didáticos, se acha obrigado a ser redundante, enumerando todos os elementos, como em 4.6, em que não poderia haver outras paredes, nem menos do que essas. (4.6) ... tendo essa região, portanto, a forma também quadrilátera, apresentando a mesma...as mesmas paredes que o mediastino anterior, ou sejam seis pare-
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des: anterior, posterior, superior e inferior e as duas laterais, a lateral direita e a lateral esquerda.
b) Não Relevante – Foi considerada não relevante uma enumeração introduzida em forma de exemplo, para ilustrar o assunto predominante, podendo claramente ser omitida sem muito prejuízo para a compreensão, como no exemplo abaixo onde o acidente possível entrou fortuitamente no discurso. Corresponderia aproximadamente ao conceito de fundo, nas narrativas. (4.7) É a rede de... de eletricidade, esses fios de alta tensão, que ficam suspensos; quer dizer, é arriscado, não é, (rindo) a ter um... como de vez em quando acontece, tem acidentes, né, um fio daquele parte por aí e coisa. (L.551/DID masSA)
A hipótese subjacente a essa variável é que quanto mais relevante a enumeração menos partícula de expansão haveria, pois os elementos adquiririam importância de per si, excluindo o uso do elemento coringa. Veja-se o exemplo 4.8, mais abaixo: não teria cabimento o falante fornecer o primeiro elemento “os colonos” e sintetizar com e tal sonegando a informação pedida. Observem-se os resultados abaixo: M.Ds.
Limítrofes
Enumer. sem M.D. nem limítrofe.
não relevantes
32/62=51,6%
4/8=50,0%
10/54=19,0%
relevantes
30/62=48,4%
4/8=50,0%
44/54=81,0%
A tabela acima mostra que os M.Ds. e os limítrofes exibem a mesma percentagem e que as enumerações com expansores tendem a ser menos relevantes. A enumeração, se relevante, tenderá a dispensar os expansores. A disposição dos elementos que caracterizam uma enumeração (entonação, pausa, presença de um quantificador ou de uma conjunção entre os elementos) levou à classificação da mesma em aberta ou fechada. A inclusão desta variável partiu da hipótese de que as enumerações abertas deveriam ter menos partículas de extensão, já que o fechamento faz prever que já foram enumerados todos os elementos do conjunto, não havendo motivos para citar mais algum nem expandir o conjunto com expansor: 317
a) Aberta – Consideraram-se enumerações abertas aquelas cujos elementos não são limitados nem por conjunção (e/ou/também) nem por qualquer outro elemento delimitador ou quantificador. Não é de conhecimento geral que seja fechada, como no exemplo (4.9, abaixo). b) Fechada – Considerou-se fechada toda enumeração limitada por conjunção (e/ou/também) e/ou por elemento quantificador (como em (4.8)) ou ainda que seja de conhecimento geral que seja fechada, como seria o caso da enumeração dos planetas ou dos continentes. (4.8) Doc. Essas pessoas que trabalham... em fazenda têm um nome especial? Inf. Não eram chamá/ eram de dois tipos...de acordo com o trabalho... haviam os colonos... e os camaradas (DID-SP inf.23 l.56) M.Ds.
Limítrofes
Enumer. sem M.D. nem limítrofe.
aberta
25/29=86,2%
4/4=100%
19/50=38%
fechada
4/29=13,8%
0/4=0%
31/50=62%
Nota-se que efetivamente há maior quantidade de enumerações abertas do que fechadas com expansores (M.Ds. ou limítrofes) ao contrário das enumerações sem partículas. Quanto ao número de elementos da enumeração, foram consideradas as seguintes possibilidades: conjunto de um só elemento (4.1); de dois (4.8); de três (4.9); de mais de três (4.10). (4.9) fui recebido pela empregada... eu... Lina... as garotas e tal (D2-RJ l.586) (4.10) parece que o Brasil tem 15 ou 18 impostos... você tem os impostos federais... estaduais... municipais impostos relativos a impostos ( ) impostos de mercadorias em relação à produção de circulação...o IPM... o ICM e por aí vai afora. (D2-RJ l.719)
318
Esperava-se que o número de partículas de expansão aumentasse à medida que aumentasse o número de elementos e que tendesse a se estabilizar, já que, a partir de um certo número de elementos, já estaria definido o conjunto, tornando-se então desnecessário continuar. (Confessamos até, que por uma crença supersticiosa e cultural, achávamos que esse número seria três). Por outro lado, a limitação de memória poderia tornar difícil uma enumeração após a citação de alguns elementos. Vê-se pelos resultados abaixo que tal suposição não foi referendada pelos resultados estatísticos. M.Ds.
Limítrofes
Enumer. sem M.D. nem limítrofe.
1 elemento
33/62=53,2%
4/8=50,0%
———
2 elementos
19/62=30,6%
3/8=37,5%
5/50=10%
3 elementos
5/62= 8,1%
0/8=0%
20/50=40%
mais de 3 el.
5/62==8,1%
1/8=12,5%
25/50=50%
Ao contrário do esperado, a falsa enumeração, a de um elemento, é a mais freqüente; o número de partículas de expansão, seja M.D. ou limítrofe, decai à medida que aumenta o número de elementos, estabilizando-se a partir de três. Esse resultado torna difícil sustentar a hipótese geral de que a falta de memória, a dificuldade de processamento, é que fomentaria o uso de expansores, que se tornaria então um tipo de coringa, cuja função primordial seria a de substituir elementos esquecidos. É difícil sustentar que a memória comece a falhar logo após o primeiro elemento: até mesmo os afásicos com anomia (dificuldade de enunciar nomes, comuns ou próprios) nomeiam alguns, quando se lhes pede que elaborem uma lista de elementos conhecidos como de animais, flores etc... (Souza, comunicação pessoal).11 O número de elementos em enumerações sem expansores evidencia que os falantes do NURC não são tão desprovidos de memória. Mesmo que não se lembrem de todos os elementos, se a enunciação for relevante, os interlocutores procurarão citar o máximo de elementos do conjunto, como evidencia o exemplo abaixo em que o falante, embora sofra estoicamente e confesse várias vezes não lembrar, cita 11 elementos sem sintetizá-los, frisando que não fechou a enumeração. (4.11)Doc. De que instrumentos se compõe uma orquestra? Inf. Bom, tem o piano quando é solista ou também pode ser o primeiro violino, segundo violino, tem fagote, saxo... saxofone acho que tem
319
também, né? Saxofone, aquele como é que se chama que tocam assim, xilo... não é xilofone? Ou tem outro nome agora? É uma espécie de marimba assim, que que mais? Ah! Harpa, tem a harpa, tem aqueles não sei se é címbalos que se chamam aqueles tambores grandes, como é que se chamam? Bombo? Não. Eu não sei o nome daqueles... eu vejo na orquestra, mas eu não sei o nome de todos os instrumentos...fagote, trombone, não...ah! violoncelo também, viola, tudo isso e alguns... que, às vezes, eu não me lembro de todos também, né? Deve ter muito mais (DID-PoA l.441)
A dificuldade que o falante poderia ter tido ao procurar esses elementos foi correlacionada com o número de descontinuidades antes e entre os elementos da enumeração, comparando-o com os encontrados após essa enumeração, ambiente julgado neutro. Não foi constatado resultado significativo: para os M.Ds. foram encontrados 24/62=38,7% antes + durante a enumeração vs. 20/62=32,2% após. Para os limítrofes 3/8=37,5% antes + durante e 4/8=50% após. Esses resultados apontam novamente para a inexistência de dificuldade. Tudo leva, pois, a crer que a relevância ou não da enumeração é mais fundamental para a presença ou ausência do expansor de que fatores ligados à memória. Sempre preocupados com a maior ou menor prototipicidade dos elementos do conjunto envolvido com o M.D., medimos tanto sua objetividade quanto sua concretitude. Esperávamos que os elementos de uma enumeração terminada por um expansor fossem bastante prototípicos, embora não tanto quanto um exemplo: se o falante usa vários elementos, usa-os porque, provavelmente, não lhe ocorreu nenhum excelente, totalmente prototípico, que definisse o conjunto. Daí ter usado outra estratégia que não a exemplificação. A objetividade dos elementos com expansores (43/62=69,3%) ficou a meio caminho entre, por um lado, a dos regidos por assim (41,9%) e por digamos (30,2%) (cujos elementos, veremos, são totalmente não-prototípicos) e, por outro lado, a dos exemplificantes (94,6%), totalmente prototípicos. A dos expansores limítrofes foi de 6/8=75%. Da mesma forma, a concretitude foi de 50/62%=80,6%, enquanto a dos elementos envolvidos com assim foi de 31,3% e com digamos de 39,4%; no outro extremo, a dos exemplificantes foi de 86,4%. Acreditávamos que o status informacional dos elementos da enumeração terminada por expansores não exibiria nenhuma correlação significativa, já que este contexto encontra-se a meio caminho entre a prototipicidade do exemplificante, facilmente acessível, e a difícil procura de um elemento novo regido 320
por assim ou digamos. Assim mesmo, aferimos esse status para efeito de comparação com os demais M.Ds. O resultado (32/62=51,6) é neutro em relação aos demais M.Ds. Quanto à curva entoacional, nem os M.Ds. expansores nem os limítrofes apresentam características que os façam, de forma sensível, sobressair entoacionalmente do resto do enunciado, exceto quanto à tendência à curva entoacional ser descendente (37/95=38,9% dos M.Ds. e 15/32= 46,8% dos limítrofes). O comprimento da última sílaba é normal, assim como a rapidez e a força das partículas; o número de pausas anteriores é insignificante. O número de pausas posteriores é visto no quadro abaixo onde se nota haver menos pausas posteriores do que se suporia. M.Ds.
Limítrofes
nenhuma
76/95=80,0%
22/32=68,8%
curta
6/95= 6,3%
10/32=31,2%
média
10/95=10,5%
longa
4/95= 4,2%
Com respeito à associação com outros M.Ds., os resultados mostram que etcétera, os demais M.Ds. expansores e os expansores limítrofes tendem a se aglutinar entre si, sendo preterida a combinação com outros M.Ds., como foi visto na extensa lista apresentada. Todos os expansores, exceto dois situados dentro do complemento, se encontram em alguma fronteira e são marginais quanto à sua localização, isto é, ocorrem nas fronteira da margem, à direita (após complemento ou após um verbo sem complemento). Observe-se a pouca dispersão dos resultados. 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% f
a
e
d
o
x
321
As partículas expansoras, mesmo que medidas globalmente, exibiram freqüência e repartição pequena: respectivamente 62 e 9. É extremamente curioso e inexplicável o fato de essas partículas terem tantas formas, ao contrário dos demais M.Ds. Vale ressaltar, todavia, que o número de M.Ds., neste corpus, é inferior ao de outros (cf. nota 8). Seu âmbito de dispersão foi de 0 a 22. As ocorrências são derrisórias em DIDs (0,7 por hora), sobem em flecha em D2 (7,0 p.h.) e ocupam posição intermediária nos EFs (2,0 p.h.). A explicação pode ter a ver com uma idiossincrasia aliada a um regionalismo de duas entrevistas D2 (RJ e SP), que sozinhas perfazem 42/62=67,7% de todos esses M.Ds. Descartamos uma explicação que recorra apenas à idiossincrasia, porque os dois falantes de cada uma dessas duas entrevistas usaram com equilíbrio, respectivamente, (incluindo os limítrofes):14, 10, 13 e 10 instâncias. Não há correlações significativas com o gênero (3,8 p.h. para os homens e 4,0 p.h. para as mulheres). Damos a seguir a curva relativa às regiões, onde se observa haver um hipocentro na região sudeste: 8 7 6 5 4 3 2 1 0 Re
Sa
RJ
SP
PoA
Resumindo, notamos que o uso da partícula de expansão está intrinsecamente ligado às características da enumeração à qual está atrelada. As listas com elementos discretos, abertos e reais tendem a fomentar seu uso. A correlação do uso dos expansores com possível dificuldade de processamento é fraca. Mais pertinente é a correlação com a relevância do rol para a continuidade do tópico. Quanto mais relevante a enumeração, menos expansor e mais estratégias outras, como o paralelismo dos elementos. Não houve diferença apreciável entre o comportamento dos M.Ds. e o dos limítrofes.
5. Por exemplo O M.D. por exemplo compartilha com etc... o fato de ser também utilizado na língua escrita (5.15). Defendemos que um bom exemplo deve ser o 322
elemento conhecido e prototípico de um conjunto. No trecho 5.1, querendo demonstrar e argumentar que as imagens pré-históricas não teriam um propósito artístico mas sim ritual, a falante usa um objeto atual, comum, conhecido por todos, prototípico portanto: a igreja. (5.1) por ser no escuro demonstra que a imagem não foi feita para decorar a caverna ou para ser vista por outras pessoas certo? por exemplo numa igreja hoje você tem imagens que representam uma idéia religiosa uma série de coisas mas que estão lá para ser vistas também. (EF-SP l.255)
Nota-se que este enunciado, à primeira vista, não ilustraria a hipótese que estamos defendendo: a de que o M.D. por exemplo integra o rol dos M.Ds. que encontram sua explicação na teoria de conjuntos: a falante precisava, para apoiar sua argumentação, de um elemento que, de forma simultânea, remetesse a um lugar claro para abrigar a exposição de obras de arte (até aqui poderia ser o elemento museu, galeria de arte, igreja) e que servisse também a propósitos religiosos, afastando assim os dois primeiros candidatos. LUGAR DE ARTE
LUGAR RELIGIOSO
museu
galeria
sinagoga
igreja
templo
A análise do trecho em tela reforça, pois, a hipótese que busca a explicação para os M.Ds. em tela na teoria dos conjuntos: há (e muitos) conjuntos unitários, principalmente em subconjuntos advindos de intersecção, como é aqui o caso. Análises quantitativas privilegiam regularidades, ressaltam tendências. É interessante notar, entretanto, que esses M.Ds., por vezes, se afastam da regularidade, desempenhando um papel comum, de modo geral, aos M.Ds.: o de preencher espaços vazios. É o caso de 5.2, que, por se referir a um conjunto unitário, apenas define, sem exemplificar. Parece apenas manter o turno enquanto o falante processa o que vai dizer, como aliás confirmam as hesitações subseqüentes. 323
(5.2) Agora a ginecomastia secundária. É aquela em que, por exemplo, a... eh... atinge o homem em qualquer fase (EF-SA l.105)
As ocorrências de como por exemplo, e um único caso do M.D. um exemplo serão consideradas como variantes de por exemplo, que não apresentaram formas limítrofes com a mesma função. (5.3) ele... pra morar... se ele quisesse..., um exemplo, na zona Sul...um apartamento de CR$1000,00 é apartamento de que? (D2-RJ l.274) (5.4) Sabemos também que os sindicatos também devem levar adiante toda e qualquer reivindicação dos seus associados como por exemplo a questão relacionada diretamente com as vantagens ou os aumentos salariais (DID-RE l.47)
Cumpre ressaltar que, à semelhança de Vincent (1992), que pesquisou esses M.Ds. no francês do Québec, e à semelhança dos demais M.Ds. aqui tratados, o critério que permitiu a identificação do objeto da análise não foi o contexto exemplificatório, mas a presença formal de um marcador, já que se privilegiou a forma sobre a função. Funcionariam, todavia, como indícios de processo exemplificante as enumerações e os expansores, embora o aparecimento deste tipo de marcador, a princípio, devesse anular a possibilidade de ocorrência de um exemplificador. Com efeito, ambos, o etc... e o por exemplo, se valem dos recursos da teoria dos conjuntos, porém de modo distinto e, até certo ponto, contraditório, como exemplifica o trecho 5.5, no qual um marcador de exemplificação parece estar lado a lado com uma partícula expansora, dificultando a compreensão. (5.5) L1- ......o caso de uma alimentação L2- uma ração isso balanceada L1- balanceada L2- mas eu vejo aqui por exemplo, de vez em quando tem uma verdurinha etc e tal, por exemplo. (D2-PA fl.02)
324
Por exemplo refere-se a verdurinha como elemento prototípico de “ração balanceada”, parecendo avisar, todavia, que há outros elementos nesse conjunto (talvez legumes, saladas). A dificuldade de interpretação parece decorrer, justamente, do excesso de estratégias simultâneas, o que violaria a máxima da informação (Grice, 1982: 95), segundo a qual o falante não deve fazer “uma contribuição mais informativa do que é requerido”. Vê-se bem como funciona o mecanismo dos conjuntos pelo discrepante exemplo abaixo, onde o por exemplo era desnecessário, uma vez que o falante vai citar todos os elementos do subconjunto como explicita o fecho “até aí...”: (5.6) Não, eu não sou mecânico nenhum [abre um conjunto de coisas que um mecânico deve saber] eu sei fazer certas coisas no carro [abre um subconjunto de coisas que ele sabe fazer] por exemplo, trocar pneu, examinar se está passando corrente ou não, examinar se está passando gasolina ou não, até aí vão meus conhecimentos de carro. (D2-SA l.657)
Se o processo exemplificante é uma das diversas estratégias argumentativas que o falante usa para atrair seu interlocutor, induzindo-o a aderir à sua tese, o conhecimento do exemplo escolhido para tal fim deve ser compartilhado pelo interlocutor. A extensão do exemplo pode variar de uma simples palavra a uma pequena narrativa. Esta última possibilidade, também mencionada por Vincent (1992) a propósito do francês do Canadá, é pouco explorada pelos entrevistados do NURC12. Vimos na parte 1 os motivos que levaram à consideração desta partícula como M.D., embora não plenamente prototípica. Foram aplicadas agora algumas outras variáveis à análise desse M.D. As variáveis lugar do marcador em relação ao exemplificante, âmbito do exemplo, caráter de realidade do exemplificante e ordem dos constituintes foram adaptadas de Vincent (1992), no intuito de se compararem os resultados. As variáveis incluídas aqui têm por objetivo principal comprovar que usualmente o exemplo é um elemento prototípico, tendendo, portanto, a ser concreto, objetivo, específico e conhecido do falante. Foi observado o grau de concretitude tanto do exemplificante quanto do exemplificado, na hipótese de que o primeiro seja mais concreto do que o segundo. O falante busca objetivar e concretizar seus exemplos mesmo quan325
do são conceitos, orações etc... Veja-se o exemplo abaixo em que o entrevistado, por três vezes, tenta topicalizar um substantivo concreto do exemplificante, que é um pequeno episódio iterativo. (5.7) acho que é difícil mesmo a gente consertar isso. Por exemplo eu... minha casa, a porta de minha garagem... eh...de vez em quando, quando eu saio, quando eu volto, eu encontro sempre um carro estacionado na porta da minha garagem
Os resultados para concretitude do exemplificante (89/103=86,4%) e do exemplificado (39/81=48,1%) evidenciam que os primeiros tendem, realmente, a serem mais concretos do que os segundos. Ainda visando a aferir a concretitude, mediu-se a objetividade do exemplificante em relação ao exemplificado (cf. item 2.1). No exemplo (5.7) o exemplificante é objetivo enquanto (5.8) é subjetivo: (5.8) os sindicatos também devem levar... adiante... toda e qualquer reivindicação de seus associados como por exemplo a que... entende? A questão relacionada diretamente com as vantagens ou: ou aumentos salariais... que anualmente são levados em conta... (DID-RE l.50)
Os resultados encontrados (175/185=94,6% de exemplificantes objetivos e 95/184=47,3% dos exemplificados objetivos) mostram a tendência dos exemplificantes a serem mais objetivos do que os exemplificados. Ainda ligado à prototipicidade do exemplificante, foi quantificada a especificação do exemplo: se a hipótese se confirmar, o exemplificante deve tender a especificar o exemplificado. Tem-se abaixo um caso de especificação, consciente por parte do falante: (5.9) as cooperativas também são entidades realmente bastante significativas dentro de uma conjuntura... nacional por exemplo, para citar especificamente o caso de nosso país. (DID-RE l.106)
Nota-se a estratégia argumentativa cada vez mais particularizante no trecho abaixo, em que o falante, que discorria sobre o processo evolutivo dos 326
sindicatos em geral, passa por “determinados” sindicatos e finalmente particulariza com “nosso” sindicato, especificando suas deficiências. (5.10)Nós verificamos por exemplo que determinados sindicatos realmente tomam um passo adiante no que se refere ao conforto... temos o caso por exemplo aqui do nosso sindicato... sabemos por exemplo... das carências e das deficiências que o sindicato apresentava por não possuir uma sede adequada. (DID-RE l.63)
Vincent (1992) tomou como premissa, e não como hipótese, o fato de o exemplificante ser mais particular do que o exemplificado. Preferimos, aqui, testar empiricamente esse fato pois, caso não se confirmasse, ruiria estrondosamente a hipótese de o exemplificante ser um elemento de um conjunto mais amplo, o exemplificado. Para efeito de codificação, o exemplificante poderia ser mais específico, menos específico ainda equivalente ao exemplificado. Os resultados mostram que apenas um exemplificante (1/185) era mais geral do que o exemplificado. Nas demais ocorrências, ou exemplificante e exemplificado eram equivalentes (18/ 185=9,7%) ou os exemplificantes eram mais específicos (166/185=89,7%). O único caso em que o exemplo em si (o brasileiro) é mais geral do que o exemplificado (a pergunta: brasileiro “do norte” ou brasileiro “do sul?”) merece ser transcrito por sua estranheza que atribuímos justamente a essa característica. Observe a tentativa de emenda por parte do falante que, provavelmente, deve ter-se dado conta da estranheza: (5.11)Doc- Depende, que área, brasileiro do norte ou brasileiro do sul? F-
Por exemplo, que o brasileiro pra, eu acho que de um modo geral, nem o do sul que eu acho que tu come bem na tua casa (D2-PoA l.3)
Ainda para verificar o maior peso, a maior dificuldade, do exemplificado relativamente ao exemplificante, mediram-se possíveis marcas formais de dificuldades tanto do exemplificado quanto do exemplificante. Foram encontradas 100/206=48,5% marcas nos exemplificados e 42/206=20,4% nos exemplificantes. Para a análise do status da informação, privilegiamos, de modo geral, a proposta de Prince (1981), distribuindo as ocorrências em dois graus: novo e 327
não-novo (este último, produto da amalgamação de evocado e inferível após constatarmos que os resultados para duas dessas categorias eram semelhantes). Os exemplificados não foram codificados por serem todos evocados, quase que por definição: constituem o tópico, introduzido já há algum tempo, antes de receberem um exemplificante. Quanto a esses últimos, observou-se que são citados pela primeira vez (171/184=92,9), tão abruptamente (vimos que com freqüência parenteticamente), que a surpresa, o não esperado, parece ser até típico de um bom exemplo. O fato de um exemplo ser novo, desconhecido do ouvinte, pareceu-nos estranho e era contra a hipótese da prototipicidade. Face a esse resultado, decidimos utilizar, também, para a análise do exemplificante, a categoria mais mental de Chafe (1994). Codificou-se, portanto, também a disponibilidade do exemplificante, o que poderia constituir-se numa dificuldade: como saber-se o que é disponível para o ouvinte? Para contornar tal dificuldade, sempre que o elemento era conhecido por nós, consideramo-lo a fortiori conhecido pelo ouvinte. Em 5.12, por exemplo, Camaari não foi considerado disponível, porque nós não conhecemos esse lugar, embora seja provável que o ouvinte o conheça. A partir de tal procedimento, inverteu-se totalmente a proporção, passando os exemplos a serem quase totalmente disponíveis (178/ 184=96,7%). O marcador por exemplo possui grande mobilidade no contexto exemplificatório. Ele pode estar antes do exemplificante (5.8) ou depois (5.9). Há casos ainda em que o marcador aparece no meio do exemplo em si (5.12). (5.12)O que acontece é o seguinte: hoje em dia para você ir como nós vamos, por exemplo todo dia a Camaari, já é hoje em dia uma viagem... (D2-SA l.48)
O marcador tende a aparecer antes do exemplo em si (117/179=63,4), como já se esperava pelos resultados de Vincent. Entretanto, é considerável o número de marcadores nas outras posições: 34/179=20% após e 28/179=15,6% no corpo do exemplificante, afirmando a sua grande mobilidade. Os dados de Montréal são quase análogos quanto a posição inicial (61%), diferindo quanto à posição intrasegmental (34%) e final (4%). Segundo Vincent (1992), a função exemplificadora mudará respectivamente de ilustradora para construtora do argumento de acordo com a ordem dos constituintes do exemplo, isto é, a ordem do exemplificado em relação ao exemplificante que pode ser essa (5.8), ou o inverso (5.9). A ordem mais fre328
qüente é a primeira, uma vez que o falante tende a ir do geral para o particular. Em nossa investigação, em 207 casos analisados, apenas 7 (3,4%) não se apresentaram na ordem esperada. Ainda segundo Vincent, quanto ao âmbito, à abrangência, o exemplificante pode ser único ou extensível. O exemplificante é categorizado como único quando se percebe claramente que ele se basta a si mesmo. Geralmente é uma só palavra, uma só expressão, um só assunto (5.10). O exemplificante será classificado como extensível quando aparecem indícios de expansão codificados por etcétera e outros expansores, ou quando o falante se vale de várias expressões juntas para exemplificar um mesmo assunto como em (5.13), no qual poderia ter havido um expansor após “arroz”. (5.13)e tendo que almoçar... justamente... eu... eu como eu gosto por exemplo muito de feijão... muito de arroz...que são coisas que engordam. (DID-RJ l.328)
Nosso interesse por essa variável foi motivado pela hipótese de o exemplificante ser um elemento prototípico, não se justificando, portanto, nem a citação de vários elementos, nem sua extensão por meio de um expansor, como já se viu no exemplo 5.5, acima. A proporção de incidência de exemplificantes com âmbito único é muito grande em nosso corpus: 149/185=80,5%, maior do que em Montréal (65%), embora tal discrepância possa ter decorrido de tratamentos metodológicos distintos. Quanto ao caráter de realidade do exemplificante, o exemplo pode ser de caráter real (ex.5.11) ou irreal, fictício, hipotético (5.14). Se o exemplificante tem de fato o caráter prototípico, é de se esperar que apresente o traço [+real]. (5.14) eu digo mais ou menos porque nós vamos ver qual é a diferença que existe entre uma taxionomia e uma classificação, eu poderia, por exemplo, dividir esta aula em os alunos homens e as mulheres, eu estaria, fazendo uma classificação sem, no entanto, dizer qual é o mais importante. (EF-PoA 278 l.31)
Sendo o assunto da aula justamente a classificação, a mestra poderia ter escolhido uma classificação real, a classificação zoológica, por exemplo, ou até ter escolhido esse mesmo exemplo, apresentando-o, todavia, de um modo real: “a divisão entre sexos é uma classificação”. Os nossos resultados e 329
os de Vincent mostram que a incidência de exemplificantes reais é muito grande: (156/185=84,3% no NURC e 86% em Montréal), confirmando cada vez mais seu caráter prototípico. A pauta entoacional do por exemplo caracteriza-se principalmente pela tendência à maior rapidez (67/169=39,6) e menor força (25/169=14,8) que atinge não só o M.D. mas o exemplificante todo. Essa maior rapidez leva, em muitos casos, ao ensurdecimento ou perda da vogal posterior e do segmento final, reduzindo-se o M.D. a aproximadamente a [prexEmp]. A maior parte desse M.D. (70,4% ) tem o contorno entoacional estável mas há ocorrências de entonação descendente, ascendente ou até ascendente/estável. A pausa anterior é rara (10%) embora as posteriores são mais freqüentes (18,3%) e mais longas (Silva e Rodrigues e Silva, 1995). Essa pauta entoativa faz com o exemplificante possa ser sentido como uma parênteses, como o demonstra o exemplo (5.15), extraído do Jornal do Brasil de 10/11/95, p.6, numa reportagem sobre esquizofrenia: (5.15) Mostrando que o cérebro pode criar sua própria realidade (por exemplo, ouvindo vozes que não existem), este trabalho nos ajuda a entender a distinção entre mente e cérebro...
Tal parentetização provavelmente decorre do fato de o exemplo ser informação nova inserida bruscamente em um tópico que já vinha sendo veiculado e abandonada logo que seu objetivo foi alcançado. Esse M.D. não tende a se aglutinar a nenhuma outra forma, ressalvando os seis casos de como por exemplo, tratados como variante. A fronteira preferencial do por exemplo é a da margem esquerda, isto é, antes de sujeito ou antes de tópico, quando presente. 45,00% 40,00% 35,00% 30,00% 25,00% 20,00% 15,00% 10,00% 5,00% 0,00% f
330
a
e
d
o
x
O gráfico acima revela, entretanto, maior dispersão, não parecendo haver restrições à presença de por exemplo em nenhuma fronteira (o que destoa do geral), exceto a fronteira o, a mais próxima à da direita, entre complementos. A fronteira d, entre verbo e complemento, que costuma ter poucos preenchedores, mormente discursivos (cf. Tarallo, Kato et al, 1992 e Silva, Tarallo e Braga 199?) alcança 31,8%. É alta a proporção de por exemplo situado fora das fronteiras (30,4%), majoritariamente (78%) dentro do complemento. O M.D. por exemplo teve uma alta freqüência de 207, mas uma repartição de 16. Sua dispersão foi de 0 a 48 (abrangência altíssima). Não houve diferenças significativas entre os tipos de entrevistas (EFs 14,9 por hora; DIDs 17,1 p.h. e D2 14,5 p.h.).Quanto à distribuição segundo o gênero do falante, vale ressaltar que os homens privilegiaram muito esse M.D., o que confirma os dados de Vincent. O resultado relativo a regiões mostrou-se irregular. Concluímos, por enquanto, a análise do marcador por exemplo (veremos outras propriedades em 10) ressaltando que sua principal característica é anunciar um exemplificante que tende a ser: a) concreto, objetivo, real, específico e de âmbito único; b) de localização variável dentro do contexto exemplificador e tendendo a anunciar um ilustrador do argumento c) de freqüente destaque entoacional.
6. Digamos Com base em Vincent (1992), que analisou, no francês do Québec, uma partícula análoga (mettons), levantamos a hipótese de que digamos apresentava características de exemplificador. De fato, em alguns enunciados, como 6.1, esse M.D. parece exercer essa função: (6.1) Mas acho horrível o gosto puro da cebola em si então, digamos um refogado de camarão aonde vai a cebola, vai o alho, vai a pimenta [...] o gosto da pimenta, quer dizer, dependendo do tipo de pimenta... (D2-PoA,l.137)
Nesse exemplo, poderíamos classificar “um refogado de camarão” como sendo um exemplificante de caráter real e de âmbito único, e a parte exemplificada como um trecho argumentativo sobre pratos tradicionais. O falante assume que esse exemplo é “bom” para seu propósito. 331
Caruru vatapá
refogado de camarão conjunto de comidas com cebola
Verificamos, entretanto, que, no corpus do NURC, raramente esses M.Ds. se comportavam de modo análogo. O pseudo-exemplificante anunciado pelo M.D. digamos parecia não exibir as características de um exemplo. O falante parece usar, na maioria das vezes, esse M.D. porque não lhe ocorre nenhum “bom” exemplo, nenhum elemento prototípico do conjunto que tem em mente, elemento que seja objetivo, concreto, de conhecimento compartilhado e porque não deseja assumir sozinho a responsabilidade por escolher um elemento ruim. Sinaliza, pois, ao seu interlocutor que o elemento escolhido poderia ser um outro elemento daquele conjunto e que ele o torna cúmplice dessa imprecisão. Freqüentemente, o conjunto corresponde ao campo semântico do elemento procurado. (6.2) Então uma digamos assim perspectiva, ou linha, ou maneira de olhar o fenômeno jurídico ou o direito. (EF-RE t.191)
No exemplo acima, a professora de direito visivelmente não consegue se decidir pelo melhor elemento do conjunto de palavras que integram o campo semântico que abriu. Decide citar várias paráfrases, dando a alternativa ao aluno. Essa procura pode traduzir-se, também, por mais descontinuidades no texto do que no resto do enunciado. (6.3) Uma constituição... poderá já atualmente... ter... muitos de seus parágrafos (pausa de 3 seg.) digamos assim (pausa de 3 seg.) num estado...de caduquice (DID-RE l.504)
Em 6.4, o M.D. ainda exerce uma terceira função, a de sinalizar a imprecisão da exemplificação (já que a precisão do ano, 1918, é até excessiva para sua afirmação). Mas afirmar que é exatamente a década de 20, tornar-seia também preciso, já que a década de 20 engloba, para o fim de salário em questão, parte da década de 1910 (se é que também não se superpõe a de 30). Toda essa imprecisão é assinalada pelo M.D. 332
(6.4) Ele deve ter sido formado em odontologia por volta de 1917, 18 que ele se formou... então nessa época, vamos dizer, na década de 20, a relação salárioprofissional de nível superior ao aluguel seria a quarta parte. (D2-RJ l. 260)
Ainda foi encontrada uma quarta função, a de introduzir premissas, papel mais característico, entretanto, das formas limítrofes irmãs digamos que e vamos dizer que, (6.5) função que Vincent (1993) atribui a alguns exemplificadores, mas que aqui só foram desempenhadas pelas formas mencionadas e por uma única ocorrência de digamos. (6.5) vamos dizer que agora nessa época do an/ da da vida eu não pudesse pagar doze mil cruzeiros agora. (D2-RJ l.479)
Dessas quatro funções básicas, uma delas, a procura de um melhor elemento, assinalando ao interlocutor essa imprecisão e tornando-o cúmplice, é bem mais freqüente do que as demais: das 68 instâncias, 79,4% preencheram essa função enquanto apenas 13,3% encabeçaram exemplos, 5,9% aproximações e apenas 1,2% apresentaram uma premissa. Em contraposição, os quatro limítrofes encontrados desempenharam, todos eles, essa última função. Parece haver aqui uma especialização dos limítrofes. A hipótese adiantada para os exemplificadores era a de que um exemplo tenderia a ser um elemento concreto, objetivo, conhecido e real. Como se comportam a esse respeito os 9 digamos exemplificadores? E os de função de procura? Seria o elemento procurado tão prototípico quanto o exemplificante? A análise do modo realis ou irrealis ficou prejudicada, pois o próprio M.D. induz à interpretação do elemento posterior como irrealis. Na função de procura, esses M.Ds. anunciam apenas 19/54=35,2% de enunciados objetivos, enquanto que aqueles com função exemplificadora chegam a anunciar 9/ 9=100% , mais até do que os anunciados por por exemplo. Também é diferente a concretitude: enquanto os de procura anunciam poucos elementos concretos (13/33=39,4%), os que exercem outras funções anunciam maioria de concretos (7/11=63,6%). Com respeito ao status informacional, a hipótese relativa ao digamos com função de procura é que o elemento procurado seria novo, uma vez que é apresentado, até timidamente, com restrições, por meio do M.D. Com efeito, o 333
elemento regido por digamos com função de procura tende a ser mais novo (33/50=66,0%), percentagem mais elevada do que a apresentada pela mesma forma com outras funções (9/17=52,9%). Esta característica, provavelmente, explica a pequena quantidade desse M.D. em EFs, situação de fala caracterizada pelo planejamento prévio. No afã de encontrar um termo adequado, o falante deixa transparecer essa procura, abandonando o rastro das tentativas sob a forma de paráfrases. Uma evidência de que essas paráfrases estão ligadas a essa função de procura de elemento é sua coocorrência: de 54 digamos exercendo essa função, 22,2% apresentam duas tentativas e uma três (ex. 6.2). Dos 14 digamos exercendo as outras funções, nenhum apresentou esse tipo de repetições. Foi dito em 2.3 que se ocorressem dificuldades no processamento e se o falante não encontrasse de imediato o elemento de que necessitava, ficariam provavelmente vestígios dessa procura, além das paráfrases mencionadas acima. Esses vestígios se manifestam por descontinuidades diversas, anteriores ao elemento finalmente encontrado. De fato, antes daqueles digamos que exercem função de procura foram encontradas 23/53=43,4% de descontinuidades, enquanto naqueles que exercem outra função há apenas 2/14=14,3%. No ambiente posterior ao elemento precedido por digamos, ambiente presumivelmente sem dificuldade, foram encontrados 12/53=22,6% de descontinuidades. A pauta entoacional de digamos caracteriza-se por uma tendência à maior rapidez em 23,2% dos casos e menor força em 12,5% . O contorno da entoação é estável em 70% dos casos. Pausas posteriores (23,2%) são mais freqüentes e mais longas do que as anteriores (32,1%). Todas essas características se assemelham acusticamente a uma parentética13. Ao contrário do por exemplo, é apenas o M.D., e não todo o ambiente liderado por ele, que exibe essa característica (Silva e Rodrigues e Silva, 1995). Esse M.D. não tende a se associar com nenhuma outra forma. Vale lembrar que consideramos digamos assim, vamos dizer assim como formas variante de digamos e/ou vamos dizer e não como duas formas agregadas. Digamos (assim) e vamos dizer (assim), diferentemente dos expansores e de por exemplo, tendem a aparecer naquela fronteira que costuma abrigar poucos preenchedores, a fronteira central de regência entre verbo e complemento. Outra discrepância é que 57%, a maioria, situa-se fora de fronteira, mas desses, perto de 70% continuam a se aninhar no complemento, como os demais M.Ds. fora de fronteira. 334
50% 45% 40% 35% 30% 25% 20% 15% 10% 5% 0% f
a
e
d
o
x
Digamos (incluindo suas formas variantes) teve freqüência de 67 e repartição de 10, com âmbito desde 0 até 21. Raro em EFs (1,6 por hora), situação caracterizada por um preparo prévio do discurso, aumenta a freqüência em D2 (4,3 p.h.) e principalmente em DIDs (6,7 p.h.). Curiosamente, são mais empregados por homens, confirmando os dados de Vincent para mettons, exemplificador utilizado principalmente por homens (71%). Os valores por região, apresentados abaixo, mostram, nitidamente, que o Rio é um hipocentro ao contrário. 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0 Re
Sa
RJ
SP
PoA
Resumindo, digamos raramente atua como exemplificador; ao contrário, tende a funcionar como o anunciador de um elemento, usualmente, abstrato, subjetivo e novo. Nas suas imediações, por vezes, encontram-se elementos que podem ser interpretados como indícios da dificuldade, por parte do falan335
te, em se encontrar um elemento adequado. Não muito comum, principalmente na região Sudeste, na amostra analisada, foi mais usado por homens. O cotejo entre esse M.D. e os limítrofes, não aprofundada em conseqüência da baixa freqüência dos últimos, sugere que as funções codificadas por cada tipo são diferenciadas, podendo-se falar, pois, em uma especialização funcional.
7. Assim As propriedades intrigantes do M.D. assim manifestaram-se desde a primeira análise, em Macedo e Silva (1990). As gramáticas tradicionais enquadram o assim na classe dos advérbios de modo, dados os critérios morfológico (palavra invariável), sintático (palavra relacionada ao verbo, ao adjetivo ou a outro advérbio) e nocional (palavra que indica circunstância). No entanto, tais parâmetros podem se tornar inadequados quando se trata da língua em uso. A classificação de assim, na modalidade discursiva, como advérbio (um de seus usos mais comum está exemplificado em (7.1)), é problemática. Provavelmente há um continuum (outro!) entre o uso como advérbio de modo, um dêitico de baixa freqüência e difícil identificação no texto, que se refere ao mundo biofísico, e que seria como (7.1'), modificação do exemplo real (7.1), anafórico, e o uso como M.D., ilustrado em (7.3). (7.1) ...tem pessoas que têm... um talento... impressionante... minha avó era assim (D2-PoA, t.330) (7.1') minha avó era baixinha, chegava assim ó em mim (7.2) Às vezes quando elas têm tempo assim elas pegam uma turminha (DID-PoA, t.325) (7.3) Como por exemplo no Norte eles têm assim uma variedade de frutas imensa. (DID-RJ, t.49)
Complicando ainda a noção de continuum e a metodologia para a análise desse M.D., muitas instâncias têm duas interpretações, o que lhes confere um status mais de ambigüidade do que propriamente de etapa intermediária. A 336
diferença sutil, mas relevante, manifesta-se quando do estudo da distribuição por fronteira. As ocorrências que permitem duas leituras, prováveis etapas de transição entre um dêitico e um M.D., com idas e vindas (gramaticalização e desgramaticalização) (Martelotta et al, 1995), serão analisadas à parte e, eventualmente, comparadas com aquelas classificadas como M.Ds. Essa imbricação dos diferentes estágios faz com que o modelo da p. 1 se complique e mais pareça uma “metamorfose” do pintor Escher. Algumas peculiaridades deste M.D. já foram comprovadas em pesquisas anteriores: 1 – Silva e Macedo (1990) observaram, em corpus de falantes menos escolarizados, que este marcador ocorre, majoritariamente, entre um elemento (verbo ou nome) e seu complemento sintático ou semântico, tendo sido, por isso, chamado então de “anunciador de complemento”. Ressalte-se aqui que Ilari (1990) classificou-o de “flag”, atribuindo-lhe a faculdade de adquirir os traços gramaticais do elemento que ele anuncia. 2 – Silva e Assafin (1994) compararam o comportamento desse marcador com as hesitações e analisaram sua co-ocorrência com palavras menos freqüentes, com o intuito de investigar seu possível papel hesitativo. A investigação da correlação entre o uso deste M.D. e dificuldades de processamento já fora iniciada por Silva e Macedo (1990), que já haviam identificado tal função quando da análise da distribuição do assim em contextos que deixavam transparecer dificuldades de ordem social. 3 – Na parte 1, referimo-nos aos traços que Risso, Silva e Urbano (1994) atribuíram a assim. Consideraremos aqui, então, a variável que diz respeito à relação sintática com a estrutura oracional e que compreendia dois fatores: 0 – sintaticamente dependente – e 1 – sintaticamente independente. A maioria foi considerada 1, embora a nove instâncias (16%) tenha sido atribuído o grau 0. Essas instâncias, na sua maioria, foram consideradas ambíguas. No exemplo abaixo, a primeira ocorrência foi codificada como ambígua, a segunda foi retirada do corpus por ser um advérbio e somente a terceira, que recebeu a cotação 1 nesse quesito, foi considerada M.D. (7.4) Quer dizer assim1 para o Brasil eh para nós falarmos assim2 se nós tivermos de falar de alimentação brasileira realmente não não teria assim3 muita relação, né? (DID-RJ l.260)
337
1 – Ambíguo 2 – advérbio 3 – M.D. O objetivo central do atual estudo é o de investigar o porquê do emprego deste marcador como lubrificante do discurso, correlacionando seu o uso com dificuldades com as quais o falante se depara durante o processamento lingüístico do elemento seguinte. A hipótese é que, à semelhança de digamos com função de procura, o assim se coloque antes de um elemento não-prototípico, que tende a ser abstrato, subjetivo, novo e mais difícil de ser processado. O caráter abstrato da seqüência precedida por assim, mormente quando esta inclui um substantivo, é um dos indícios de não prototipicidade desse elemento. Para aferirmos a proporção de abstratos num texto, investigamos, nas entrevistas do NURC, a fronteira V...Co (a preferida por esse marcador) que dispensou este marcador, obtendo uma média de 19 complementos verbais por entrevista. Nessa amostra neutra, encontramos 46,5% abstratos. Em presença de assim, a abstração foi bem mais alta: 68,7% entre os assim M.Ds. e 75,5% entre os ambíguos. Já com relação ao advérbio, este índice desceu para 33,3%. Segundo os funcionalistas, há um aumento de abstraticização à medida que o segmento se gramaticaliza. Note-se, entretanto, que não foi medida aqui, propriamente, a abstração do assim mas sim do seu ambiente. Quanto ao traço objetividade, fizemos o mesmo levantamento em ambientes neutros, isto é, sem assim, obtendo 38% de subjetivos. Já na presença de um assim, sobe a subjetividade quando para 133/229=58,1% quando M. D.; desce para 30/66=45,5% quando ambíguo e ainda para 21,2% quando advérbio. Uma vez que a localização preferencial deste M.D. é a fronteira V...Co, investigamos o tipo de verbo que o antecede. Nosso objetivo era verificar se havia ou não uma correlação entre o tipo de verbos e o uso do assim. A escala usada para os tipos de verbo foi adaptada de Mira Mateus et al.(1889). Os resultados da tabela seguinte mostram que os verbos de opinião e os experimentais (que exprimem cognição, percepção, ou estados afetivos) favorecem as formas ambíguas e marcadores; diferindo, pois, radicalmente, dos de sentido identificacional (verbo ser), e dos verbos discendi. A freqüência mais elevada de assim, enquanto marcador ou ambíguo, com verbos de opinião e experimentais, é mais um argumento a favor da hipótese que explica o uso do M.D. assim como resultado de dificuldades de processamento.
338
M.D.
AMBÍGUO
ADVÉRBIO
N
%
N
%
N
%
ação
64
26,7
21
26,6
19
23,4
experimentais
24
10,0
10
12,6
3
3,7
posse
25
10,4
1
1,3
6
7,4
sentido identificacional
23
9,6
3
3,8
1
1,2
estado
32
13,3
18
22,8
14
17,3
opinião
29
12,1
4
5,1
1
1,2
modal
5
2,1
1
1,3
4
4,9
locativo
1
0,4
0
----
0
----
discendi
0
----
0
----
13
16,4
37
15,4
18
22,7
19
23,4
outros
Ainda para verificar a possível correlação entre emprego de assim o grau de dificuldade engendrada pela não prototipicidade do(s) elemento(s) regido(s) por ele, foram medidas as descontinuidades anteriores e posteriores à seqüência em pauta. O resultado apresentado assemelha-se ao obtido para digamos: 125/242=51,6% anteriores e 80/242=33,1% posteriores. Ao contrário de digamos, assim não fomentou paráfrases durante a procura do elemento. Quanto ao status informacional, os resultados mostram que o elemento encabeçado por assim tende a ser novo: 134/232=57,7% quando M.D. e 40/ 68=58,8% quando ambíguo. A ausência deste M.D. nas EFs (como será visto adiante) reforça nossa hipótese: quando o assunto é bem conhecido, como em aulas, preparadas de antemão, desaparecem as causas que fomentam sua utilização. À curva entoacional desse marcador foi concedida uma especial atenção por acreditarmos que, por intermédio deste fator, poderíamos distinguir os diferentes usos dessa forma, particularmente enquanto M.Ds. e não M.Ds. Essa hipótese havia sido sugerida pelos resultados de um experimento desenvolvido anteriormente por nós e que consistia na leitura de um enunciado que continha um marcador assim. De 20 dos nossos leitores, 14 alongaram a última sílaba. Verificamos, todavia, que esse alongamento não passa de um estereótipo que, audivelmente, só ocorreu em 12/197=6,0% dos dados produzidos fora da situação de teste. Essa baixa freqüência foi confirmada pelo CECIL. A 339
curva entoacional do M.D. é sempre estável, enquanto a dos advérbios é variável, visto que também pode ser descendente (30/63=47,6%) ou ascendente (18/63=28,6%). Essa distribuição possibilita, então, as seguintes estratégias: i – um alongamento constituirá um indício, para o ouvinte, de que não se trata de advérbio; ii – um não-alongamento não permitirá nenhuma decisão; iii – uma ascendência ou descendência eliminará a possibilidade de ser M.D.; iv – uma curva estável não resolverá a ambigüidade. (Silva e Assafim, 1995). Não foi encontrado nenhum tipo de aglutinação com M.D. assim. Por sua vez, há muitas ocorrências de assim-advérbio contíguas ao M.D. digamos e a sua variante vamos dizer. Quanto à localização de assim e de seus ambíguos correspondentes, à semelhança do observado para digamos, tendem a ocorrer não na fronteira de constituinte, mas sim fora dela (143/242=59,1% para o M.D. e 41/79=51,8% para os ambíguos). Os M.Ds. que ocupam uma fronteira caracterizam-se por pouca dispersão. Vale ressaltar que na fronteira da extrema esquerda, antes do sujeito ou do tópico, há uma maior proporção de ambíguos. Curioso é o aparecimento desse M.D. (6 casos) antes de sujeito, pois no corpus CENSO do Rio de Janeiro, de 64 falantes com menos escolarização, não havia sido encontrado nenhum nesta fronteira, parecendo haver séria restrição. Nota-se também a predominância da fronteira central de regência, confirmando sua função de “anunciador de complemento”. Um cotejo entre os vários assim quanto a esse quesito, para efeito de comparação, mostrou que os mesmos tendem a migrar para a fronteira d, entre V...Co e a sair da fronteira f, antes de sujeito, à medida que se tornam M.Ds. Quase todos os situados na x funcionam como advérbios e são os regidos por verbo discendi, distribuição não exibida pelos M.Ds. e ambíguos. 80% 70% 70%
60%
60%
50%
50%
40%
40% 30%
30%
20%
20% 10%
10%
0%
0% f
a
e
AMBÍGUO 340
d
o
x
f
a
ASSIM
e
d
o
x
35,00% 30,00% 25,00% 20,00% 15,00% 10,00% 5,00% 0,00% f
a
e
d
o
x
ADVÉRBIO Quanto aos 51,1% fora da fronteira, a maioria, tanto de M.Ds. (88,8%) quanto de ambíguos (95,2%) e de advérbios (22/23=95,7), está localizada num complemento, como os demais M.Ds. já analisados. O assim teve a mais alta freqüência dos M.Ds. aqui abordados (241, o triplo dos 81 advérbios). A repartição foi apenas de 16 (em um DID e uma EF, ambas de Salvador, não ocorreram). Sua abrangência também foi a maior, de 0 a 72 . Sua ocorrência é de 2,5 p.h. em EFs, discursos mais elaborados e preparados de antemão; 32,1p.h. nos DIDs e 25,1 p.h. nos D2s. É muito usado por mulheres, o que corrobora os resultados encontrados no corpus CENSO, de falantes menos escolarizados, em que a probabilidade de as mulheres usarem esse M.D. subiu a .64 (Silva e Macedo, 1992). Quanto ao uso por região, medido por hora, configura-se da maneira mostrada abaixo: 30 25 20 15 10 5 0 Re
SA
RJ
SP
PoA
Há uma analogia com digamos, exceto quanto a PoA, cuja freqüência sobe em vez de descer. Resumindo-se o que se viu, fica comprovada a estreita ligação do M.D. com dificuldades de processamento do elemento seguinte. A bem maior sub341
jetividade dos ambientes que aparecem após o assim, a abstração do elemento bem como o maior número de enunciados novos após assim, confirmam a hipótese de que este marcador anuncia segmentos não-prototípicos e mais “difíceis”. Chama a atenção a semelhança entre o comportamento de digamos, com função de procura, e o de assim. Mais do que semelhança, a distribuição complementar por sexo e quase por região pode ser indício do uso alternativo de um ou outro. O comportamento dos ambíguos não permitiu caminhar muito na comprovação de uma possível migração dos advérbios para o M.D.
8. Conclusões Os resultados sobre os fatos investigados são compatíveis com o modelo da teoria dos conjuntos que subjazeu a este trabalho. O elemento encabeçado por por exemplo (os exemplificantes) é de fato prototípico: concreto, objetivo, real e disponível. Ademais, o exemplificante tende a especificar o enunciado do qual está a serviço, o exemplificado. Pelo contrário, os elementos encabeçados pelos marcadores caracterizados como de procura de elementos, como digamos, como assim, não são prototípicos e tendem a ser abstratos, subjetivos e novos. As hesitações que coocorrem com esse marcador evidenciam dificuldades de processamento e sugerem que o mesmo está funcionando como um preenchedor de espaço vazio na conversa durante o processamento. As partículas de expansão tendem a fechar enumerações de elementos concretos e objetivos. Descartamos a hipótese que as via como um produto de esquecimento momentâneo dos elementos da enumeração em favor da hipótese alternativa que as vê como um coringa para enumerações de pouca relevância. Quanto maior a relevância, menor a quantidade de partículas de expansão, o que força um maior paralelismo na estrutura da enumeração. Assim e digamos, semelhantes quanto a várias propriedades, distinguem-se pelo fato de o segundo acumular outras funções além da principal, a de procura de um elemento, possibilidade vedada ao primeiro que só exerce essa. Malgrado essa diferença, os dois M.Ds. parecem encontrar-se em distribuição complementar, hipótese levantada após o cotejo da distribuição por região e sexo. Assumindo o verbo como medula espinhal do enunciado, conseqüentemente, como o ponto de referência a partir do qual caracterizar a distribuição 342
dos marcadores, veremos que assim e digamos tendem a ocorrer quase que exclusivamente à direita, principalmente entre verbo e complemento ou nome e complemento. Os fatores discursivos examinados justificam essa posição: é à direita que estão os segmentos novos que são enunciados a respeito do tópico discursivo representado geralmente pelo sujeito. Já os exemplificantes, que anunciam elemento disponível, estão situados preferencialmente na fronteira anterior ao sujeito. Essas duas características de digamos e de assim – não marginalidade e grande quantidade de ocorrência fora de fronteira – (diferentes das exibidas por por exemplo e pelos expansores) devem ser comparadas às dos M.Ds. prototípicos para verificar se se trata de propriedade compartilhada também pelos últimos. Ainda quanto à distribuição, os M.Ds. que estão fora de fronteira encontram-se quase totalmente dentro de um complemento, ignorando o sujeito: no total, menos de 1% estão dentro do sujeito. O fato de a informação do complemento tender a ser nova enquanto a do sujeito a ser velha não basta para explicar essa propriedade: a força da variável status informacional é incapaz de dar conta dessa quase impossibilidade da presença desses M.Ds. nos sujeitos. A não coocorrência dos M.Ds. estudados com outros M.Ds. independe de sua não prototipicidade. Essa propriedade, algumas vezes referida como aglutinadora por nós, parece própria apenas dos iniciadores de tópicos. A demarcação prosódica dos não-prototípicos parece ter sido mais débil do que a dos M.Ds. tomados globalmente (68,9%). Creditamos tal fato à tendência a esses M.Ds. não serem tão marginais. O exame incipiente da fronteira ocupada pelos M.Ds. e por alguns elementos não M.Ds. detectou diferenças dignas de estudos posteriores, tais como a especialização de função do digamos que, diferente da de seu alelo digamos, sem evidenciar, todavia, fronteiras drásticas. Tudo se passa como se houvesse um limite, a relação sintática com a estrutura oracional, limite esse necessário, mas de cunho político, como o arroio Chuí. Não foi avistado nenhuma serra de Caparaó, o que confirmou a idéia do continuum esquematizado na p. 1.
NOTAS 1
Não descreveremos sistematicamente os traços, só o fazendo esporadicamente em relação aos M.Ds. tratados neste trabalho. Sugerimos que Risso, Silva e Urbano (1995) seja lido anteriormente a este.
343
2
Os AA. julgaram que isso em nada retirava o caráter formulaico das unidades, pois as alterações de forma dos M.Ds., quando existem, são bem restritas, não atingindo flexões.
3
“Although markers often precede sentences, i.e. syntatic configurations of an independent clause plus all clauses dependent on it, they are independent of sentencial structure”. (p.32)
4
A algumas unidades essa variável não se aplicava, posto que já eram sintaticamente autônomas por si só (como interjeições, feed backs...).
5
Um dos AA não codificou todos os digamos da amostra por ter tido dúvidas quanto à sua identidade marcadora; daí não ter sido gratificado com o grau máximo de freqüência ao qual faria jus.
6
Nem sempre essas marcas indicam dificuldade. Esta é uma das razões que obrigam, metodologicamente, à comparação do ambiente anterior com o posterior.
7
Remetemos à leitura de Tarallo (1991), Tarallo e Kato (1992) para a descrição das fronteiras.
8
É junto a esse M.D. que se encontram mais formas de mesma função. A lista parece não se ter esgotada quando do estudo no corpus CENSO., de falantes não universitários. No NURC, a lista parece ser menos variada; além dessa diferença, há outra mais curiosa: no corpus CENSO não encontramos nenhuma forma etc.... De todas as comparações feitas entre os corpora CENSO e NURC quanto a numerosos M.Ds., estas parecem ser as únicas diferenças.
9
Algumas estão sendo usadas simultaneamente, de comum acordo, com Sylvie Dubois, que analisou um corpus do francês de Québec.
10
Utilizamos esta terminologia para as listas de um só elemento, quando várias características a respeito da relação de elementos torna-se impossível. Vale lembrar também que alguns dados foram desconsiderados quando da análise dessa variável (“nao se aplica”). A conseqüência numérica é que, nesses casos, o denominador não será de 62.
11
Ricardo Souza é professor de neurologia da UERJ, especializado em organização cerebral e padrões de afasia.
12
Ao contrário do NURC, no corpus Censo, onde também analisamos os exemplificadores, são extremamente comuns a exemplificantes-narrativas (Cf. Silva 1995).
13
As parentéticas estão sendo analisadas por Jubran, C. (Neste mesmo volume).
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347
PARTE II GRUPO SINTAXE I
ESTRUTURAS COORDENADAS ADITIVAS1 Roberto Gomes Camacho (UNESP/São José do Rio Preto)
0. Considerações iniciais No tratamento tradicional das conjunções, são geralmente confusos os critérios que delimitam subcategorias, como os que distinguem, por um lado, as subordinativas das coordenativas e, por outro, as adverbiais das integrantes. Assim, parece-nos que o melhor caminho a trilhar na busca de maior clareza e precisão é iniciar pela descrição do comportamento funcional de unidades conectadas por atuação de juntivos e, especificamente no caso do escopo do presente trabalho, pela descrição da relação semântica de conjunção, que resulta da atuação do conectivo e, tradicionalmente denominado aditivo. De um ponto de vista lógico, a relação-e equivale ao operador ∧, caso em que representaria o juntivo da sentença (1) abaixo. (1) Joana fez a salada e Paulo refogou a couve.
A rigor, não é possível saber a priori o valor de verdade de (1), mas é certo que ela é verdadeira ou falsa, sem qualquer outra possibilidade. Nesse caso, a questão que o cálculo sentencial coloca é como determinar o valor de uma sentença molecular, como (1), conhecidos os valores dos átomos que a compõem, isto é, (1a) e (1b). (1) a. Joana fez a salada. b. Paulo refogou a couve.
A resposta a essa questão é explorar todos os valores possíveis dos componentes de uma sentença como (1), atribuindo V para o valor de verdade 351
e F para o valor de falsidade de cada átomo A e B e construir, assim, uma tabela de verdade para o conjunto A ∧ B: A
B
A∧B
V
V
V
V
F
F
F
V
F
F
F
F
No caso da conjunção lógica, o valor de A ∧ B será V somente se tanto A quanto B tiverem valor V, sendo F em qualquer outro caso. Por essa operação lógica, conhecida como funcional-veritativa, afirma-se que o valor da sentença resultante depende exclusivamente do valor de cada um de seus membros componentes (cf. Hegenberg, 1972). A identidade entre e e o conectivo lógico ∧ prediz uma equivalência lógica, conhecida como lei de De Morgan (apud Schiffrin, 1986), segundo a qual a negação de P e Q é logicamente equivalente à negação ou de P ou de Q, conforme a fórmula seguinte, contida em (2). >
>
(2) ~ (P Q) = ~P Q ~Q
Observa-se, com efeito, que o cálculo sentencial explica várias interpretações de uma sentença, como (3), (3) Eu não quero pizza e cerveja.
possibilitando as seguintes leituras, todas cobertas pela lei de equivalência lógica de De Morgan: (3) a. Eu não quero pizza. b. Eu não quero cerveja. c. Eu não quero nem pizza nem cerveja.
O cálculo sentencial explica, sem dúvida alguma, um dos componentes semânticos da relação de conjunção; é, entretanto, uma versão simplificada de 352
um uso extremamente limitado da linguagem natural, cuja complexidade ultrapassa, na esmagadora maioria dos casos, a presença de conteúdos estritamente funcional-veritativos. É fato passivo entre os lógicos afirmar a existência de divergências entre a significação de símbolos formais, como ∧, e a de suas formas análogas nas línguas naturais, como e. Hegenberg (1972) admite por exemplo que, a rigor, (4) não tem sua verdade determinada pela verdade de seus átomos, pois o e da conjunção se traduz aproximadamente como “e em seguida”, envolvendo, nesse caso, sucessão temporal de eventos. Esse fato constitui um simples fragmento da complexidade funcional dos usos do juntivo e. (4) Joana casou-se e teve um filho
>
No caso específico de (1), é possível realmente assumir que, com efeito, e tem na língua, entre suas funções, a de juntar unidades lingüísticas equivalentes, sejam elas termos ou orações. Isso não significa, entretanto, que seja sua função semântica a de juntar logicamente o conteúdo de duas unidades. Dado que e tem alguns usos paralelos ao do operador lógico e outros que não são, deve-se admitir, em princípio, duas possibilidades teóricas para a análise do juntivo: de uma perspectiva da linguagem lógica, significaria analisar e como e, de uma perspectiva da linguagem natural, o contrário. Um dos argumentos freqüentemente usados para aproximar as línguas naturais da lógica é o de que, de um ponto de vista filosófico, as ciências deveriam ser dotadas de uma metalinguagem descritiva absolutamente explícita e destituída de ambigüidade. Nesse caso, o fato de as formas análogas das línguas naturais possuírem elementos em sua significação que não correspondem aos símbolos formais da lógica é considerado uma imperfeição, pois os conceitos que ligam não podem ser precisamente definidos. Conseqüentemente, em algumas circunstâncias, não é possível atribuir ao todo resultante um valor definido de verdade. O caminho adequado, para essa visão, é conceber e construir uma linguagem ideal que incorpore os símbolos formais, cujas sentenças sejam confiadamente livres das implicações metafísicas projetadas por essa indefinição conceitual (cf. Grice, 1975). De uma perspectiva divergente, a exigência filosófica de uma linguagem ideal baseia-se em certos pressupostos que não devem ser aceitos. Questiona-se, então, se a medida fundamental para julgar a adequação de uma língua deva ser sua capacidade de servir às necessidades da ciência, principalmente porque a linguagem natural serve a muitos outros propósitos importantes e não só à expressão da ciência. Além disso, deve haver espaço para uma lógica não353
simplificada e mais ou menos assistemática das contrapartes naturais dos símbolos formais, lógica essa que, conquanto deva ser auxiliada pela lógica simplificada, não pode ser por ela suplantada (Grice, 1975). Este é o ponto de vista adotado aqui e, nesse aspecto, fazemos nossas as palavras de Sweetser (1991): é um contra-senso analisar palavras da linguagem natural, como o juntivo e, como se fossem idênticas a entidades de uma metalinguagem construída, como a da lógica, e que é claramente derivada da linguagem natural. O máximo que é possível afirmar da relação entre ∧ e e é dizer que ∧ é uma cristalização matemática de um dos usos mais salientes de e. O que se vê da discussão acima é que as propriedades semânticas que se podem atribuir à conjunção não são tão bem definidas quanto as sintáticas. Posner (1980, apud Schiffrin, 1986) admite, por isso, haver duas possibilidades para decidir quantos valores semânticos é possível atribuir a um conectivo: a minimalista e a maximalista. Os que defendem a posição minimalista propõem uma entrada simples no dicionário para e. A conseqüência de uma semântica tão simplificada é a necessidade de acrescentar descrição pragmática para a interpretação do significado referencial com princípios que permitam inferir interpretações baseadas no contexto. Desse modo, o minimalista vê o contexto como fonte de inferências que interage com o significado mínimo da função coordenativa. >
Para os que defendem a posição maximalista, e é semanticamente mais rico que o conectivo lógico , por veicular relações causais e temporais (BarLev & Palacas, 1980, apud Schiffrin, 1986), ou por veicular uma relação de similaridade ou de identidade tópica (Cohen, 1971, apud Schiffrin, op. cit.; Lakoff, 1971) e, ainda, por veicular relações semânticas em diferentes níveis de análise, como o ideacional e o interpessoal (Halliday & Hasan, 1976; Sweetser, 1991). Os semanticistas que defendem a posição minimalista identificam as conjunções da língua natural com os conectivos lógicos; nesse caso, para suprir o significado básico com inferências adicionais, é necessário que os interlocutores usem princípios de interpretação pragmática (como as máximas de Grice). Em contraste, os que defendem a posição maximalista sustentam que os conectivos são dotados de valores semânticos específicos que contribuem para a interpretação pragmática das construções coordenadas. No caso específico do juntivo e, a visão maximalista o definiria como um caso de polissemia, em que múltiplos sentidos se alojariam num lexema, ou um caso de ambigüidade, em que múltiplos lexemas se alojariam numa única forma fonológica. 354
Ao pretenderem atribuir significado a conjunções tanto no nível da sentença quanto no nível do discurso, Halliday & Hasan (op. cit.) assumem uma posição ambígua, quanto às visões minimalista e maximalista, ao subcategorizarem o assim chamado uso conjuntivo ou coesivo da relação e, com base no nível de ocorrência. Segundo os autores, pode-se observar a existência de dois níveis: o do estado de coisas representado pelas predicações coordenadas, que como tais constituem eventos; e o nível do discurso, em que as sentenças constituem eventos lingüísticos, que dizem respeito à organização que o falante imprime a seu discurso. No primeiro caso, a coesão deve ser interpretada em termos da função ideacional da linguagem, como uma relação entre significados enquanto representação do conteúdo da experiência que o falante tem da realidade externa. No segundo caso, a coesão deve ser interpretada no nível da função interpessoal da linguagem, como uma relação entre significados, enquanto representação que o falante elabora da situação de interação2.
>
Uma diferença marcante entre os posicionamentos maximalista e minimalista, segundo Schiffrin (op. cit.) se refere ao tratamento do uso do juntivo e na conjunção simétrica, em que a ordem dos membros coordenados é reversível, e na conjunção assimétrica, em que a ordem é irreversível. Lakoff (1971) assume a posição de que, apenas na conjunção simétrica, o sentido de e equivale ao do conectivo lógico , uso que corresponde à conjunção estrutural de Halliday & Hasan. No outro sentido, não pode ser equivalente, porque a conjunção não somente é assimétrica, mas também são as duas orações ligadas como um todo que contraem a relação de pressuposição, permitindo deduzir que contêm um tópico comum e não partes delas, como ocorre no tipo simétrico. Conforme o exposto, à conjunção aditiva, assim como a outros juntivos da linguagem natural, se associam não apenas determinações funcionalveritativas que caracterizam a função ideacional, mas também determinações vinculadas às funções textual e interpessoal da linguagem (Halliday & Hasan, 1976). Diante disso, uma posição teórica possível seria admitir o estudo da significação das conjunções em dois planos: num deles, o literal, seriam registrados apenas os aspectos funcional-veritativos; noutro, registrar-se-iam as demais determinações, discursivamente orientadas, na linha da análise semântica minimalista. De acordo com Ilari (1995) “essa orientação pulveriza, por assim dizer, o estudo das conjunções, pois implica em decidir, para cada um de seus usos, até onde vai o sentido literal, e onde começam os aportes propriamente contextuais”. Esse segundo posicionamento torna não apenas 355
extremamente fragmentados os valores da conjunção aditiva, mas passa também a idéia, com a qual não concordamos, de que seja possível analisá-los, separando-os em planos muito bem delimitados da estrutura lingüística. Sabe-se, com efeito, que a maior parte dos estudos já feitos no passado sobre determinações semânticas pragmaticamente condicionadas está fortemente vinculada à estrutura do nível ilocucionário, ou do mundo dos atos de fala. Tem-se defendido que a expressão de certo conteúdo primário, associada ao conhecimento da situação extraverbal e dos processos de argumentação, permite a expressão indireta de algum outro conteúdo, que é sistematicamente relacionado ao primeiro, como as implicaturas conversacionais de Grice (1975). Esse tipo de análise, levado para o nível lexical, toma como pressuposto fundamental a existência de polissemia, separando cada conteúdo conforme o tipo de determinação pragmática e inserindo cada item, assim reduplicado, no seu nível de funcionamento. Essa posição é questionada por Sweetser (1991) que defende a idéia de que a conjunção aditiva é ambígua nos usos que se fazem nos domínios referencial, epistêmico e conversacional e é essa a posição teórica assumida neste trabalho. Uma análise simples das conjunções como operadores lógicos é muito fraca para explicar as ambigüidades no uso, ou para dar conta do fato de que essas ambigüidades entre domínios devem ser observadas inclusive numa conjunção simples, como e. Além da necessidade de receber uma análise léxicosemântica mais complexa, deve-se analisar a contribuição desse juntivo para a semântica da sentença no contexto de um estatuto polifuncional do enunciado, isto é, como um veiculador de conteúdo, como uma entidade lógica e como o instrumento de um ato de fala. Sweetser (op. cit.) sustenta que é implausível aplicar a algumas conjunções uma análise léxico-polissêmica, sendo metodologicamente preferível, em vez disso, tratá-las como exemplos do que Horn (1985) denomina ambigüidade pragmática3. Numa abordagem polissêmica, um morfema tem diversos valores semânticos relacionados; no tratamento da polissemia como ambigüidade pragmática, aplica-se uma única análise semântica de diferentes maneiras de acordo com o contexto pragmático. Sustenta Sweetser (op. cit.), com base numa abordagem funcional-cognitiva, que a semântica do campo lexical de alguns juntivos, entre as quais o aditivo, é inerentemente estruturada por uma compreensão cultural multiestratificada da linguagem e do pensamento. Em particular, na mesma medida em que se modela a compreensão de processos lógicos e de pensamento com 356
base na compreensão do mundo físico e social, modela-se a expressão lingüística em si não somente como descrição (um modelo do mundo), mas também como ação (um ato no mundo sendo descrito), e mesmo como uma entidade lógica ou epistêmica (uma premissa ou uma conclusão do mundo argumentativo). O propósito deste trabalho é fornecer uma classificação tipológica dos usos da relação de conjunção, examinando-os nos diferentes níveis da gramática do português falado, e, ao mesmo tempo, comprovar a hipótese de que a melhor interpretação teórica que decorre de sua análise é o da ambigüidade pragmática. Interpretar o juntivo e como um caso de ambigüidade pragmática implica demonstrar que os mesmos princípios que regem a coordenação simples e múltipla de termos, no nível da oração, aplicam-se à coordenação de orações no nível textual. O universo da investigação é constituído por uma amostragem do corpus mínimo do Projeto de Gramática do Português Falado, que constitui, por sua vez, uma seleção operada sobre o material coletado pelo Projeto da Norma Urbana Culta (NURC)/Brasil, gravados com informantes cultos procedentes de Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, historiado por Castilho (1990). Esse corpus, que já vem sendo exaustivamente descrito, é composto pelas seguintes entrevistas: Porto Alegre: EF 278, DID 045, D2 291; Rio de Janeiro: EF 379, DID 328, D2 355; São Paulo: EF 377, DID 234, D2 360; Recife: EF 337, DID 131, D2 005; Salvador: EF 049, DID 231, D2 098 A vocação naturalmente empírica deste trabalho implica a necessidade de levantamento quantitativo, com especial relevância para freqüências percentuais dos fatores mais significativos para o exame da relação de conjunção. Para a análise quantitativa, empregam-se alguns programas do pacote Varbrul (cf. Sankoff, 1975), especialmente o Makecell, para dados brutos de freqüência e o Crosstab, que fornece tabulações cruzadas entre dois fatores significativos. É ocioso dizer que se lança mão, sempre que necessário, do recurso aos exemplos construídos, na ausência de exemplos cruciais do corpus para a explicação de aspectos relevantes do comportamento sintático-semântico do juntivo. O roteiro que se pretende seguir é iniciar a análise pelo nível da conjunção de termos e, em seguida, pelo da conjunção de orações. Essa disposição 357
não obedece a uma ordem aleatória. Procede da hipótese de que a ligação entre orações é problemática por situar-se no limite entre as condições estruturais de organização e as determinações funcional-discursivas das quais depende a organização textual. Tomar, como ponto de partida, o uso do juntivo no nível da coordenação de termos pareceu uma decisão mais sensata. Este texto se organiza em duas partes. Na primeira, examina-se a coordenação de termos, em sua manifestação prototípica, estrutural, e em sua manifestação discursiva e, na segunda, a coordenação de orações em estruturas simétricas e assimétricas, descrevendo-se os processos de junção que envolvem também procedimentos discursivos de natureza pragmática.
1. A conjunção de termos 1.1 Coordenação simples Dik (1980) trata a coordenação sob a forma de expansão de elementos da estrutura em séries coordenadas de elementos similares. O seguinte esquema fornece uma representação formal do processo. (5) α→ α1, α2, ...., αn (n≥ 2)
Esse esquema opera sobre algum elemento α, expandindo-o numa série n-ária de termos coordenados do mesmo tipo. Como Termo, para Dik (1989), designa entidades do mundo, é possível distinguir os seguintes tipos de coordenação: (i) coordenação de termos; (ii) coordenação intratermos; e (iii) coordenação de orações, de que se tratará a seguir conforme o roteiro acima programado. A coordenação de termos representa uma espécie de atalho para o falante ser capaz de expressar que diferentes entidades se relacionam de maneira idêntica com o predicado, o que permite expressar dois estados de coisas com a mesma oração. Uma sentença, como João e Maria viram um fantasma, em que os termos desempenham duas funções sintáticas e duas funções semânticas, resume dois estados de coisas, representados na paráfrase João viu um fantasma e Maria viu um fantasma. A coordenação de termos produz habitualmente sentenças ambíguas por permitir tanto a interpretação coletiva quanto a distributiva. Na análise acima, está claro que a interpretação é distributiva: cada qual viu um fantasma e os dois fantasmas não se identificam. 358
Habitualmente, dois diferentes predicados verbais coordenados representam dois estados de coisas, referentes, todavia, às mesmas entidades. Segundo essa análise, casos, como os de (6a) deveriam ser tratados como coordenação de predicados verbais e o resultado do processo, como sentenças complexas. (6) a. nós encontramos nódulos.... nódulos estes que aparecem e desaparecem (EF-SSA-49:85)
Entretanto, a paráfrase de (6a), contida em (6b) contradiz claramente essa interpretação como uma generalização para todos os casos. (6) b. nós encontramos nódulos que aparecem e nós encontramos nódulos que desaparecem.
Os dois verbos parecem, então, consistir num único conjunto coordenado que, na qualidade de oração relativa, aplica-se à entidade singular nódulos. Essa interpretação é defendida por vários autores: Halliday & Hasan (1976), Mateus et al. (1992 ) e Perini (1995) admitem a possibilidade de tratar a coordenação de verbos e sintagmas verbais como coordenação de termos em orações como (6a). A interpretação coletiva, e não distributiva, de João e Maria viram um fantasma significa que os dois indivíduos referenciados pelos termos João e Maria viram simultaneamente o mesmo fantasma. É nessa segunda interpretação que, de um ponto de vista sintático, ocorre um processo de coordenação intratermos, conforme se verificou para o verbo de (6a). Não havendo duplicação de estados de coisas, os dois termos são coordenados numa única função sintática e semântica, como se observa em João e Pedro compraram um livro. O dinheiro não dava para comprar dois exemplares, que constitui, em função do contexto, inequivocamente um único estado de coisas. Quando se trata de dois termos na função de sujeito e dois na função de objeto, três interpretações são possíveis. As duas acima e uma terceira distributiva, como ocorre com João e Maria viram um fantasma e um vampiro, significando a possibilidade de uma espécie de dupla correlação anafórica, que atribui a João a visão do fantasma e a Maria, a do vampiro. O recurso mais comumente empregado para desambiguar a leitura é o emprego do advérbio respectivamente, dirigindo-a para uma interpretação inequivocamente distri359
butiva, como em João e Maria viram um fantasma e um vampiro respectivamente. O levantamento no corpus aponta para um total de 126 ocorrências de coordenação de termos, das quais apenas 10 casos, correspondentes a 7,9%, envolvem três ou mais termos em séries ordenadas, conforme se observa nos exemplos contidos em (7a-c) abaixo. (7) a. representam um conjunto or - de - na - do de definições ... CLASSIFICAÇÕES e proposições (EF-RE-337:178) b. o indivíduo tem que ter conhecimento, compreensão, análise e síntese (EF-POA-278:240) c. seis paredes...anteriores... posterior... superior... inferior... e as duas laterais (EF-SSA-49:277)
As conjunções encontradas se restringem às formas e e nem com a predominância da primeira: 124 ocorrências, correspondendo a 98,5% do total e apenas 2 ocorrências de nem, correspondentes a 1,5% do total, conforme se observa em (8-9) abaixo. (8)
gente vai pensar no homem do paleolítico superiOR ... como um homem que ainda não conseguiu se organizar socialmente nem politicamente ... eles ainda vivem em bandos (EF-SP-405:59)
(9)
então a arte SURge não em função:: de uma necessidade de auto-expressão... nem em função de uma necessiDAde... de::... embelezar o ambiente em que eu vivo... deveria ser uma necessidade estética de ver coisas bonitas... mas Unicamente... em função da necessidade de eu assegurar... a caça... e continuar podendo comer e me manter vivo (EF-SP-405:175)
A utilização de nem... nem nos dois casos, na coordenação de circunstanciais de modo e de causa, seja como termos simples, seja como SPs, em (8) e (9), respectivamente, configura um modo de marcação explícita e não ambígua do escopo da negação, que incide claramente sobre os circunstanciais. 360
No caso específico de (9) a utilização de nem... nem é mecanismo claramente argumentativo para a realização de um foco substitutivo (v. Dik, 1989), que aparece expresso logo após mas e o advérbio focalizador unicamente. Observe-se, a propósito, uma marcação prosódica adicional de focalização no acento especial na primeira sílaba do advérbio. (8), por sua vez, manifesta um tratamento pragmático similar, já que o uso de outra forma de negação, como a que se manifesta em (8a), mantém seu escopo sobre o circunstancial, no caso, advérbios predicativos. (8) a. um homem que ainda não conseguiu se organizar socialmente e politicamente.
Não é obra do acaso essa apropriação pragmática de uma função não ambígua do uso de nem... nem, principalmente em construções marcadamente focalizadoras, como (9). Parece que a repetição estrutural de nem, como ocorre em (10a) e (10b), constitui mesmo um mecanismo de focalização, empregado, nesse caso, para desambiguar o escopo da negação, que deixa de incidir sobre o verbo para incidir sobre o sujeito: (10) a. O Romário e o Bebeto não vão jogar contra a Argentina. b. Nem o Romário nem o Bebeto vão jogar contra a Argentina.
A relação de conjunção, representada pelo juntivo e, que Halliday & Hasan (op. cit.) denominam estrutural, pode ocorrer entre pares ou entre conjuntos de elementos que funcionam teoricamente em qualquer lugar da estrutura sentencial. Podem ser sintagmas nominais, adjetivais, verbais e preposicionais. Um par ou um conjunto de itens ligados por coordenação estrutural constitui um elemento complexo, que funciona como um elemento singular da estrutura em qualquer função sintática. Nos exemplos (11a), (11b) e (11c), aparecem, respectivamente, termos como sintagma nominal, sintagma adjetival e sintagma preposicional exercendo a mesma função na organização sintática que a dos elementos simples equivalentes. (11) a. eu por exemplo que estou acostumado a comer só verdura e carne (DID-RJ-328:128) b. a BR-262 já tá pronta né? tá... pronta... e linda (D2-SSA-98: 119)
361
c. principalmente na Amazonas e no Pará ... a influência indígena sobre a alimentação é muito grande (DID-RJ-328:128)
Subfunções no interior do SN, como a de quantificador, podem também ocorrer como termos complexos coordenados por e, como no exemplo hipotético, representado pela sentença (12) abaixo, em que os termos coordenados têm um valor distributivo: (12) José e Paulo compraram um e dois livros respectivamente.
A tabela 1 mostra a distribuição de termos coordenados segundo a função que exercem na estrutura sentencial. O processo de conjunção de termos não predomina em nenhuma das funções sintáticas, distribuindo-se mais ou menos uniformemente por toda estrutura sentencial. FUNÇÃO SINTÁTICA
N
%
complemento verbal
28
22,2
circunstancial
18
14,2
sujeito
17
13,4
predicativo
10
7,9
modificador
12
9,5
aposto
24
l9,0
complemento nominal
16
12,6
agente da passiva
01
0,7
TABELA 1: Função sintática dos termos coordenados Como a coordenação de termos é uma propriedade estrutural das línguas, em princípio, o processo pode ocorrer em qualquer nível da organização sintática. Por isso mesmo, a freqüência de termos coordenados deve simplesmente refletir a distribuição relativa de termos simples por função. Esse é o motivo que explica a baixa freqüência de termos coordenados na função de agente da passiva. 362
FATORES
MUDANÇA MUDANÇA NÃO POTENCIAL POTENCIAL
TOTAL
N
%
N
%
N
%
106
86,0
17
14,0
123
97,6
PRONOME + NOME
01
100,0
00
00,0
01
1,6
PRONOME
02
100,0
00
00,0
02
0,8
109
87,0
17
13,0
126
100,0
NOME
TOTAL
TABELA 2: Relação entre mudança potencial de ordem dos termos coordenados e forma de manifestação dos itens lexicais
É possível ressaltar duas características do comportamento da coordenação de termos no corpus considerado, de acordo com a freqüência da Tabela 2: conforme o esperado, há uma ocorrência majoritária de conjunção simétrica de termos, relativa a 87,0% dos casos. Comparem-se, a esse propósito, (13a) e sua paráfrase contida em (13b), que mostram um caso comum de termos coordenados cuja ordem é perfeitamente reversível. (13) a. então sucede que você vendo as estatísticas de tráfego de distribuição de carga e de peso (D2-SSA-98:184) b. então sucede que você vendo as estatísticas de tráfego de distribuição de peso e de carga
A simetria de termos é representada por alguma forma de manifestação lexical, com incidência de 97,6% do número total de casos (123/126). Essa alta freqüência de SNs na coordenação de termos, associada à posição estrutural, que é preferencialmente pós-verbal, indica que eles exercem predominantemente a função pragmática de introduzir informação nova na sentença. (14) e (15) são ocorrências prototípicas dessa modalidade de ocorrência. (14)
naquela época .... o que existia eram os bisontes e os mamutes também (EF-SP-405:146)
(15) ele pode fazer de três maneiras: translação, interpretação e extrapolação (EF-P0A-278:98)
363
Nos poucos casos de conjunção de pronomes, como (16a), e de pronomes+nomes, como (16b-c), as formas pronominais aí presentes remetem anaforicamente a algum referente já previamente mencionado no discurso, mantendo, então, estatuto informacional de entidade dada. Nas coordenações de pronome e algum item lexical, este sustenta o estatuto informacional de entidade nova: (16) a. É mais cômodo pra ela e pra mim, né? (DID-SSA-231:139) b. que também a gente vai dar um pouco mais de atenção a ela e a Alemanha dentro da Europa... (EF-RJ-379:140) c. ele e o Barte é que vão para a cozinha (D2-POA-291:81)
Os dados coletados manifestam, sem exceção, uma característica fundamental da coordenação de termos: a identidade de função sintática e de função semântica. Essa característica universal da conjunção de termos, denominada Condição do Constituinte Coordenado (Coordinate Constituent Constraint – CCC) por Schachter (1977), representa a formalização da idéia de “equivalência estrutural” contida na definição comum de coordenação. Assim, se uma função sintática for atribuída a um termo de uma série coordenada, a mesma função sintática deve ser atribuída a todos os termos da série, justamente o que ocorre em (17a). De acordo com a CCC, se dois constituintes ligados por coordenação não satisfizerem essas duas condições, o resultado é uma construção anômala4, como se observa na paráfrase de (17a), contida em (17b). (17) a.e que o estilo e a arte sempre vão refletir uma maneira de considerar o mundo e a natureza (EF-SP-405:107). b.?e que o estilo e pela arte sempre vão refletir uma maneira de considerar o mundo e a natureza.
Além da identidade sintática, a gramaticalidade da coordenação de termos deve ser assegurada pela identidade de função semântica. Essa segunda condição também é exemplarmente aplicada a todos os casos examinados de 364
coordenação de termos, como (18a), de modo a excluir automaticamente a possibilidade de casos estranhos, como a paráfrase de (18a), contida em (18b). (18) a. um homem que não conseguiu se organizar socialmente nem politicamente (EF-SP-405: 60) b. ?um homem que não conseguiu se organizar socialmente nem na alimentação
Observem-se ainda (19a) e (19b). A estranheza de (19a) tem motivação no fato de que argumentos na função semântica de agente e força são coordenados como sujeito, enquanto a de (19b) repousa no fato de haver coordenação de termos como satélites de companhia e modo. (19) a. ?João e o vento abriram a porta. b. ?João comeu com sua mãe e com bom apetite.
É necessário considerar, entretanto, algumas violações estilísticas da restrição semântica, como demonstra o exemplo (20a). (20) a. ?Maria faz uma fezinha e todas as suas próprias roupas.
A agramaticalidade de uma construção como essa não pode ser explicada em termos de uma violação da identidade funcional, já que uma fezinha e todas as suas roupas têm claramente o mesmo relacionamento funcional com o verbo fazer. O que parece estar envolvido, de acordo com Schachter (1977), é que fazer recebe o significado de apostar numa combinação e o significado de manufaturar na outra. No modelo de Gramática Funcional de Dik (1989), o esquema de predicado veicula todo o significado de uma oração; conseqüentemente, se um predicado verbal tem diversos significados claramente distintos, ele deve incluir esquemas de predicado distintos correspondentes. Nessa perspectiva, expressões idiomáticas, como fazer uma fezinha, recebem o esquema de predicado já pronto do léxico. Como se obtém a combinação de termos mediante a expansão de posições em esquemas de predicado, uma construção como (20a) não seria normalmente produzida. Entretanto, construções como (20b) têm como característica uma espécie de “contaminação” entre dois ou mais esquemas de predicado distintos e, como tais, são comumente reconhecidas 365
como expressões estilisticamente marcadas, popularmente denominadas “trocadilhos”. (20) b. Maria fez muito café, muitos amigos e uma fezinha na loto.
Não custa lembrar, a esse propósito que Garcia (1975: 32) já assinalava a necessidade de paralelismo semântico e estrutural entre estruturas coordenadas, bem como a ruptura estilística deles. É sua a citação seguinte de Carlos Drummond de Andrade: “Cardíaco e melancólico/o amor ronca na horta/ entre pés de laranjeira/entre uvas meio verdes/e desejos já maduros” (op. cit.: 32) e essas duas outras de Machado de Assis: “Marcela amou-me durante quinze dias e onze contos de réis.” (id.: 33) (os grifos são meus). A regra do paralelismo estrutural, uma exigência formal das gramáticas normativas, nem sempre é respeitada nos exemplos do corpus. Observemse, a esse propósito, os enunciados contidos em (21a-b). (21) a. eu tenho a impressão que eu vou botar num colégio logo maior e que ela fique até a faculdade (DID-SA-231:136) b. por isso ele tem que lançar mão... dos técnicos ... dos assessores ou seja ... de uma equipe de pessoas ... evidentemente habilitada e que possa prestar: ao mesmo... toda assistência devida (DID-RE-131: 252)
Os casos acima respeitam as regras de equivalência sintática e semântica, uma vez que se acham coordenadas expressões atributivas dos núcleos nominais colégio, em (21a) e equipe em (21b). Entretanto, o paralelismo estrutural foi rompido em virtude de uma coordenação entre um sintagma adjetival e uma expansão sob a forma de oração relativa. A Condição do Constituinte Coordenado formaliza, como observado acima, a intuição de que estruturas de termos coordenados apresentam equivalência estrutural, com base em dois princípios: são constituintes hierarquicamente equivalentes e o conjunto resultante representa a mesma função sintática e semântica que receberia um termo singular na mesma posição sintática. Da equivalência estrutural resulta a propriedade de reversibilidade: termos coordenados podem ser livremente intercambiáveis, sem provocar qualquer 366
alteração no valor semântico final da sentença. Com efeito, o exame dos dados revela que 87,0% (109/126) dos termos coordenados são livremente permutáveis entre si, como se observa, por exemplo, em (22a) e sua paráfrase, contida em (22b). (22) a. vocês tentem inclusive ver ... como é um pouco difícil... você separar a realidade industrial e a realidade agrícola... no Japão... (EF-RJ-379:240) b. vocês tentem inclusive ver ... como é um pouco difícil... você separar a realidade agrícola e a realidade industrial... no Japão...
É necessário, agora, examinar em que condições discursivas se enquadram os 17 casos de coordenação com constituintes não permutáveis, correspondentes a uma freqüência, até razoável, de 13% do total. Todos esses casos permitiriam, ainda que teoricamente, a reversão de ordem dos constituintes, mas o resultado seria uma estrutura sentencial pouco natural e até estranha. Considerem-se, por exemplo, (23a) e sua paráfrase (23b). (23) a. terça e quinta... a menina faz fonoaudiologia (D2-SP-360:103) b. quinta e terça... a menina faz fonoaudiologia
Teoricamente é possível reverter a ordem dos termos coordenados que compõem o circunstancial de tempo em adjunção, sem que a alteração produza qualquer mudança significativa no valor semântico do enunciado. Entretanto (23b) parece extravagante ao usuário comum da língua, porque fere um princípio funcional de iconicidade por motivação. A iconicidade por motivação, um princípio saussureano revisto por Haiman (1980), mostra-se exemplificado com maior clareza em seqüências de orações próprias dos discursos narrativos, na ordenação de constituintes e em outros fenômenos em que a organização estrutural da expressão verbalizada reflete a seqüência dos eventos5. Outros exemplos do corpus de ordem preferencial na coordenação, por razões de iconicidade, podem ser observados em (24a-d): (24) a. ela deve ser primitiva e secundária também (EF-SSA-49:95)
367
b. se acha dividida em duas porções...Uma anterior... e outra posterior... (EF-SSA-49:218) c. Agora, no primário e no ginásio, eu acho diferença (DID-SSA-231:52) d. é como aqui... a famosa ( )pessoal sábado e domingo se reúne para comer (DID-RJ-328:390)
Em casos, como os contidos em (25), bloqueia-se a possibilidade de intercambiar os constituintes em virtude de um processo de gradação semântica no tipo de expressão referencial envolvida nos constituintes coordenados: veados é uma expressão genérica, mas definida, enquanto alguma figura humana constitui expressão referencial indefinida, cujo aparecimento, se comparado ao de veados, está matizado pelo emprego do sintagma aspectual algumas vezes indicando baixa freqüência. (25) nós vamos reconhecer veados... - -sem qualquer (em nível) conotativo aí - - ... e algumas vezes MUIto poucas.. alguma figura humana (EF-SP-405:138)
Há enunciados, como os de (26a-b), que bloqueiam a possibilidade de permuta entre os constituintes em virtude de alguma razão pragmática: (26a) identifica um modalizador epistêmico que força a organização estrutural aí manifesta; o adjetivo modalizador linda de (26b) enuncia uma atitude avaliativa do enunciador, devendo, por isso, suceder à enunciação do adjetivo predicador pronta. (26) a. e no entanto o homem está ... sujeito e até certo ponto escravo da lei (EF-RE-337:68) b. a BR-262 já tá pronta ne? tá ... pronta ... e linda. (D2-SSA-98:119)
Em outros enunciados, o segundo componente de uma conjunção de termos contém alguma referência anafórica ao constituinte precedente no interior da coordenação, como ocorre com (27a-c), ou uma referência a um constituinte mencionado mesmo antes da coordenação, como (27-d). O que deter368
mina, nesses casos, o bloqueio da reversão da ordem dos constituintes coordenados são motivações de ordem estrutural, gramatical. (27) a. leis morais: religiosas e de outras naturezas econômicas etcetera... (EF-RE-337:68) b. a traquéia e:: os seus ramos de bifurcação (EF-SSA-49:280) c. eles estão gravando com Lula Porto acompanhados por Lula e por outro rapaz (D2-RE-05:184) d. perdão Alemanha e o Japão principalmente e a Itália... que também a gente vai dar um pouco de atenção a ela e à Alemanha dentro da Europa... (EF-RJ-379:140)
Observe-se, de passagem, que em (27c) uma motivação de ordem semântica se acrescenta à de ordem estrutural, já que Lula representa uma expressão referencial definida (é um nome próprio), enquanto outro rapaz, uma expressão referencial indefinida. Verifica-se, por último, nos exemplos (28-29), uma freqüência elevada de idiomatismos que podem ser considerados expressões prontas do léxico com certo matiz de modalização avaliativa. (28)
se a gente for parar para fazer as coisas calmamente não dá... pura e simplesmente não dá (D2-SP-360:134)
(29)
os advogados ... estão ... aptos a prestar TODA e qualquer assistência ... no setor jurídico (DID-RE-131:169)
Quanto ao exemplo (29), a coordenação dos pronomes indefinidos toda e qualquer parece representar um reforço do operador de existência, que passa a abranger o universo que denota, a ele se referindo também de forma distributiva. Não parece representar, como pura e simplesmente, um processo sintagmático bastante produtivo na variedade formal de português. Ao contrário, na expressão toda e qualquer, os dois itens juntos constituem uma lexia composta e a razão por que a expressão se popularizou como toda e qualquer 369
e não como qualquer e toda parece obedecer a algum princípio cognitivo de gradação silábica.
1.2 Coordenação intratermos Conforme já observado, cada termo coordenado contrai sua própria relação semântica com o predicado e as expressões lingüísticas resultantes podem em princípio expressar tantos diferentes estados de coisas quantas combinações de termos e predicado houver. Conseqüentemente, uma construção como (30a) pode ser interpretada como equivalente a (30b): (30) a. João e Pedro compraram um guia e três postais. b. João comprou um guia e João comprou três postais e Pedro comprou um guia e Pedro comprou três postais.
Isso explica a correspondência entre (30a) e (30b), sem que nenhum relacionamento derivacional direto seja estabelecido entre as duas construções. Desse modo, a conjunção de termos pode ser vista como uma espécie de atalho para expressar que diferentes entidades estabelecem a mesma relação com o predicado. Como essa propriedade permite produzir uma única sentença para dois diferentes estados de coisas extremamente relacionados e equivalentes, pode-se afirmar que o processo de coordenação é um dos mecanismos que contribuem para a economia dos sistemas lingüísticos. Por outro lado, o mesmo mecanismo implica que uma construção, como (31), não pode receber o mesmo tratamento que a coordenação de termos separados: em vez de dois Agentes distintos, correspondentes a dois termos distintos, são coordenados, em (31), dois termos num único Agente, consistindo no par João e Pedro e o resultado que se produz é que a sentença represente um único estado de coisas. Esse tipo de construção é o que Dik (1980) denomina coordenação intratermos. Esse processo sintático-semântico se define pela existência de uma única função sintática e de uma única função semântica, e o que se expande, nos moldes normais da coordenação, são os termos, não a posição estrutural. (31)
João e Pedro compraram um guia. O dinheiro disponível não dava para comprar dois.
Isso posto, considere-se , agora, o exemplo (32): 370
(32) nós tivemos aqui a visita dum grande sociólogo e educador Pierre Fourter (EF-POA-278:121)
Nessa sentença, sociólogo e educador são ambos predicados do nome Pierre Fourter. Como se aplicam a um e mesmo referente, não é possível a paráfrase contida em (32a). (32) a. nós tivemos a visita dum grande sociólogo Pierre Fourter e dum grande educador Pierre Fourter
Análise idêntica se aplica a (33) em que os adjetivos coordenados constituem predicados em adjunção ao sujeito: (33) a. população do Japão...extremamente GRANde pra sua área e extremamente laboriosa no sentido de que... SABIA que pra conseguir sobreviver... (EF-RJ-379:80)
Observe-se, agora, a série contida em (34a-c): (34) a. eu tenho a impressão... Pediatria e Puericultura ficou em outro departamento (DID-SSA-231:285) b. Então, Dermatologia e Moléstia Tropical seria um departamento só (DID-SSA-231:285) c. Neurologia e Psiquiatria é outro depar7tamento (DID-SSA-231:276)
A natureza semântica do predicado, em razão da presença de quantificadores, como um e outro, advérbios de exclusão como só, associada ou não à marcação de concordância verbal, constitui também um indicador seguro de que esses enunciados manifestam casos de coordenação intratermos. Prova disso é que não permitem a duplicação do predicado, como na paráfrase de (34b), contida em (35). (35) ? Então, Dermatologia seria um departamento só e Moléstia Tropical seria um departamento só
371
O comportamento sintático-semântico das sentenças contidas em (32) e (34b) lembra o de predicados simétricos, como Ricardo e Mário são parecidos, Fernando e Luciana formam um par feliz, ou de igualdades matemáticas, como Dois e dois são quatro, que obrigam uma escolha de termos combinados na posição de sujeito. (36a) é, por seu lado, um caso exemplar de sentença equativa com igualdades matemáticas e que, como tal, não admite também uma paráfrase com a interpretação de (36b). (36) a. Hemingway dizia que as duas grandes tragédias americanas do século tinham sido Pearl Harbor e Pearl Buck (D2-RE-05:252) b. ?Hemingway dizia que as duas grandes tragédias americanas do século tinham sido Pearl Harbor e Hemingway dizia que as duas grandes tragédias do século tinham sido Pearl Buck
Observe-se, agora o exemplo (37), que parece ser ambíguo. (37) esses três saberes não é? são ciências no sentido de que representam um conjunto or-de-na-do de definições ... CLASSIFICAÇÕES e proposições ... (EF-RE-337:178)
Pode-se pensar numa série coordenada em que definições, classificações, e proposições representam cada qual um conjunto. Há, entretanto, esquemas sintáticos para essa interpretação, como a repetição só da preposição ou do artigo seguido de preposição. A ausência desses esquemas permite inferir que, na verdade, os três termos coordenados constituem juntos uma única função de conjuntos. Além disso, o contexto aponta para uma definição de ciência que remete à noção de conjunto ordenado.
1.3 Coordenação múltipla de termos O exemplo (38) manifesta duplicação simultânea das funções sintáticas de sujeito e objeto e das funções semânticas de Agente e Meta, representando um caso de coordenação múltipla de termos. (38) João comprou um guia e Pedro, três postais.
372
Para enquadrar esse caso na perspectiva funcionalista aqui assumida para a explicação do processo de coordenação, é necessário, primeiramente, considerar a sentença simples e sua predicação subjacente, de acordo com o modelo funcional de Dik (1989): (39) comprarv (x1 : humano ) (x1))Ag (x2)Me
Uma construção como (38) requer a duplicação tanto da posição de Agente quanto da posição de Meta num esquema como (39). Aplicando-se o esquema geral de coordenação, mencionado acima em (5), toma-se o par referente às posições de Agente e de Meta, como um valor possível para n em a; com n = 2, produz-se (40). (40) comprarV (x1 : humano(x1))Ag (x2)Me e (x3 : humano( x3)) Ag (x4)Me (cf. Dik, 1980, p. 200)
Dado esse esquema de predicado, a inserção de termos apropriados nas posições argumentais fornece diretamente a predicação subjacente requerida para a sentença (38), com as seguintes vantagens: (i) usa-se o mesmo esquema da coordenação simples de termos, aplicando-se somente um valor diferente para α; (ii) o esquema prediz que pares coordenados podem ocorrer em séries mais longas, como (41), que mostra ser possível coordenar séries de pares de termos de quaisquer funções sintáticas e semânticas da oração e não somente pares de termos. (41) João comprou a cerveja, José, a carne e Pedro, o carvão .
A estrutura subjacente para uma sentença como (41) aplica-se recursivamente a (5) e espande α, atribuindo-lhe um valor de três termos, para cada par de função sintática e de função semântica da estrutura fornecida em (39), produzindo uma estrutura como (42): (42) comprarV (x1 : humano(x1))Ag (x2)Me e (x3 : humano( x3)) humano(x5)) Ag (x6)Me
Ag
(x4)Me e (x5 :
A função discursiva da coordenação múltipla de termos, rara na modalidade falada, é a de apresentar pares contrastivos de segmentos informacio373
nais e, em razão dessa função pragmática, os constituintes repetidos na expansão de termos devem representar informação nova, não previsível, como se observa em (43), única ocorrência desse tipo de expansão em todo o corpus examinado, em que dois diferentes SPs se expandem correlativamente em séries paralelas. (43) esta região está limitada para adiante ... pelo externo... para trás ... pela coluna dorsal ... e para o lado pela mediastínica direita e esquerda (EF-SSA-49: 212)
O formalismo embutido na regra de expansão de Dik, representado especificamente por (x1... 2... 3...n ) desautoriza a coordenação múltipla de termos idênticos, bloqueando, automaticamente (44): (44) Mariai comprou uma bicicleta, João um fusca e Mariai uma D20. (i = identidade correferencial)
Entretanto, não parece haver nenhum mecanismo que impeça (45) e (46) abaixo. (45) ? Maria guardou a fruta na geladeira e a maçã no armário. (46) ? Fernando Henrique Cardoso almoçou com Fujimori e o Presidente da República com Clinton.
Os constituintes coordenados de (45) e (46) são de fato diferentes termos, mas entre fruta e maçã, a relação de inclusão indica correferencialidade, de maneira praticamente similar à relação entre o nome próprio e a descrição definida, representada pelo epíteto Presidente da República e pelo nome próprio Fernando Henrique Cardoso. Nesse caso, a formalização contida em (x1... 2... 3... n) deveria conter a representação de que termos diferentes implicam também não-correferencialidade. Observou-se até aqui que não há limite fixo para a extensão de estruturas coordenadas. Quanto à organização estrutural, se houver dois ou mais termos coordenados, é perfeitamente possível estruturá-los em camadas, representadas pelos parênteses de (47a), que formalizam a organização do enunciado contido em (47). 374
(47) então fizeram quatro ou cinco departamentos: Medicina, Cirurgia, Neuropsiquiatria e, se não me engano, Pediatria e Puericultura (DID-SSA-231:276) (47) a. [(Medicina, Cirurgia, Neuropsiquiatria) e ((Pediatria) e (Puericultura))]
1.4 Valores adicionais da coordenação de termos Há valores adicionais resultantes do emprego do juntivo e cujas relações dificilmente podem ser categorizadas como coordenação. Como esses usos do juntivo são desencadeados por condições lexicais idiossincrásicas, não representam uma escolha do falante. Na expressão de numerais fracionários e correlatos, observada nos exemplos contidos em (48a-b), o emprego de e representa, na escrita, o símbolo matemático de adição de que resulta sempre uma grandeza única, o que desautoriza representar esse emprego como um processo de coordenação. (48) a. eles dormem sete sete e meia e acordam seis e meia (D2-SP-360:377) b. ela foi à escola com um ano e quatro meses (DID-SSA-231:76)
Por outro lado, há casos em que o uso de e depende da estrutura argumental de predicados nominais, não-deverbais, como relação, diferença, vínculo, choque, analogia etc. que, conforme empregados nos exemplos (49ae), exigem necessariamente dois argumentos. (49) a. tipo de relação capitalista de produção com um outro tipo de relação...que não é capitalista...entre o trabalho e o capital (EF-RJ-379:254) b. existe uma diferença... entre sociologia jurídica e sociologia... do direito? (EF-RE-337:93) c. os diversos vínculos... existentes entre patrões... e... empregados (DID-RE-131:270)
375
d. sempre haverá questões... de choque... entre patrões... e empregados (DID-RE-131:277) e. e fizemos uma analogia... comparamos ... não é? entre moldura ... de um quadro ... e a tela propriamente dita (EF-RE-337:227)
Não é possível atribuir a esse conectivo a mesma função que exercem os coordenadores propriamente ditos, restando, como problema residual, determinar se formam algum tipo de categoria correlativa com a preposição entre. Parece que a melhor solução já foi fornecida por Ilari (1995), ao sugerir que na coordenação dos argumentos de ficar, em sentenças, como O escritório do tradutor fica entre o Teatro Municipal e a Doceria Vienense, o predicado da oração é semanticamente falando “ficar entre”. Solução comparativa para os casos de (49a-e) seria considerar que a preposição entre compõe-se também com os predicados nominais, todos de dois lugares. Observe-se, todavia, que a correlação entre...e se mantém, talvez como uma extensão de outros casos, mesmo na ausência de predicadores nominais, em expressões, como a grifada em (50), que servem para indicar uma quantidade aproximada: (50) vocês agora eu acredito que já tenha tido... seis aulas de introdução à ciência do direito... e também entre cinco e oito aulas de teoria geral do estado (EF-RE-337:158)
Os dados apontam para alguns valores alternativos, especificamente discursivos, do juntivo e, que excedem o valor semântico da coordenação propriamente dita e o aproximam de operadores discursivos. O emprego de e conduz às especificações conhecidas de indicação de foco e de tópico e à especificação de uma função mais geral e menos específica, uma espécie de abreviação da continuidade discursiva. Para um exemplo da função de introdutor de foco observem os exemplos contidos em (51a-b) e para um exemplo de introdutor da função de tópico, no caso, tópico retomado, observe-se (52). (51) a. eh pauta industrial bastante grande ... quer dizer basicamente indústria de que? de equipamentos e pesados (EF-RJ-379:143)
376
b. chama-se mastectomia e mastectomia alargada (EF-SSA-49:167) (52) e o Japão... em termos de indústria competindo com Estados Unidos e... Alemanha no caso... agora em termos de desenvolvimento global... é um pouco difícil... eu... sabe? concordar... que seja uma economia desenvolvida... (EF-RJ-379:230)
Os casos de operador da abreviação da continuidade discursiva se referem a uma espécie de expressão fixa, todavia diferente dos casos acima discutidos, por duas razões: em primeiro lugar, não fica muito claro a que parte do discurso precedente se coordena a expressão iniciada por e e, em segundo lugar, e por isso mesmo, a expressão, mais ou menos fixa, inclui apenas o segundo membro da coordenação. Observem-se os exemplos (53a-c): (53) a. alguma com mais conteúdo mais séria que não seja comédia e tal (DID-SP-234:309) b. e fico naquelas lides domésticas e uma coisa e outra (D2-SP-360:161) c. manter contato com entidades aqui do bairro... com... os pais de alunos e tudo o mais (D2-SP-360:174)
2. A conjunção de orações 2.1 Coordenação simétrica e coordenação assimétrica É conveniente distinguir primeiramente os tipos simétrico e assimétrico de conjunção para ser possível descrever, em seguida, o estatuto funcional dessa distinção. A primeira decisão metodológica que se tomou para o exame dessas relações foi separar, no corpus, as combinações que admitem mudança potencial na ordenação dos membros coordenados das que não a admitem. A hipótese subjacente a essa operação é que, caso fossem reversíveis, as orações seriam independentes uma da outra e, portanto, representariam o processo de coordenação estrutural, como ocorre tipicamente com (54), em que o valor do juntivo se identifica com o conteúdo funcional-veritativo do operador lógico. 377
(54) João fritou o bife, Maria temperou a salada e Antonio refogou a couve.
Necessário se faz esclarecer que se entende por mudança potencial a adequação necessária do enunciado aos processos comuns de remissão anafórica, como se observa em (55a-b). (55) a. João fritou o bife e (pro) temperou a salada. b. João temperou a salada e (pro) fritou o bife.
Essa necessidade de adequação decorre de uma propriedade sintática que o juntivo e compartilha com outros coordenativos, como mas e ou: a de não permitir remissão catafórica, seja com proformas, seja com pronomes, relação perfeitamente possível com juntivos subordinativos. Comparem-se a esse propósito (56) e (57). (56) ?Domingo (ele/∅) leu jornal e José assistiu televisão toda a tarde. (57) Como (ele/∅)não precisasse sair para comprar jornal, José aproveitou para visitar Maria.
A tabela 3 representa o cruzamento do fator mudança potencial de ordem com natureza sintática da conjunção, em termos de subordinação ou independência estrutural. A noção de subordinação se refere a combinações que representam complementação, relativização e inserção de circunstância. FATORES
MUDANÇA
MUDANÇA
TOTAL
POTENCIAL NÃO POTENCIAL N
%
N
%
N
%
INDEPENDENTES
29
25,0
86
75,0
115
74,1
SUBORDINADAS
08
20,0
32
80,0
040
25,9
TOTAL
37
24,0
118
76,0
155
100,0
TABELA 3: Relação entre mudança potencial de ordem das orações coordenadas e grau de hierarquia sintática da conjunção
Um aspecto significativo para o qual apontam os resultados é que a grande maioria das sentenças coordenadas representa casos de conjunção 378
assimétrica, ou seja 76,0% do total. É pertinente observar que, no nível do período, os dados estatísticos de freqüência representam o oposto dos dados de conjunção de termos, no nível da oração (v. tabela 2, p. 363). Um outro aspecto significativo é que predominam enunciados sintaticamente independentes, ou seja 74,1% do total. É curioso que não parece haver qualquer correlação significativa entre a natureza sintática dos membros da conjunção e mudança potencial de ordem, quando seria de esperar que orações coordenadas subordinadas funcionassem como termos da oração que completam, havendo, então, possibilidade de mudança potencial na ordem dos conjuntos. Como mostra a tabela 3, a conjunção de orações pode subordinar-se a uma proposição de nível superior, comportando-se assim como termos. Exercem, nesse caso, funções sintáticas diversas no predicado de nível superior, seja como argumentos, seja como satélites. Observem-se os casos desse tipo de combinação de orações em (58a) e (58-b), que representam, respectivamente, exemplos de conjunção simétrica e de conjunção assimétrica. (58) a. agora, uma escola se compõe de um.... um... local em que haja condições do estudante ter aula e do professor dar a sua aula (DID-SSA-231:368) b. em função da necessidade de eu assegurar .... a caça ... e continuar podendo comer (EF-SP-405:180)
Esses resultados parecem indicar a função marcadamente textual da ligação entre orações, observada particularmente por Halliday & Hasan (1976), que subcategorizam a conjunção de orações como uso coesivo e aditivo de e, com base no escopo da ocorrência da sentença. Esses autores reconhecem duas propriedades decorrentes do uso do juntivo, anteriormente detectadas por Lakoff (1971), que correspondem ao que ela denomina conjunção simétrica e conjunção assimétrica. Duas orações podem formar uma conjunção, se são mutuamente relevantes ou se compartilham um tópico comum, conforme se observa em (59) abaixo, em que o tópico comum é a parte idêntica de cada oração. (59) a. João comprou o livro e João comprou o caderno.
379
Como a identidade se estende aos próprios itens lexicais, de modo que um deles, em pelo menos dois conjuntos, é exatamente o mesmo em forma e conteúdo, raramente ocorre a expansão do segundo, o que produz (59b) em vez de (59a). (59) b. João comprou o livro e o caderno.
O mesmo se aplica a orações coordenadas, como (60a) e sua paráfrase (60b), com as remissões anafóricas de praxe. (60) a. João comprou alimentos e João doou os alimentos para o Orfanato. b. João comprou alimentos e os doou para o Orfanato.
O tópico comum compartilhado nem sempre está explicitamente manifesto e identificável, como nos casos prototípicos observados em (59a-b) e (60a-b). Existem enunciados, como (61), cuja identidade, embora implícita, é incontestável, já que fazer salada e lavar talheres constituem duas atividades parciais relacionadas ao domínio comum de cozinhar. (61) Maria está fazendo a salada e Paulo está lavando os talheres.
Entretanto, há enunciados, como (62), que, em termos de tópico comum, constituem casos-limite e por isso nem sempre têm aceitabilidade garantida: (62) José fuma três maços por dia e eu conheço muitas pessoas que sofrem de câncer.
Para entender (62), o interlocutor deve lançar mão de sua experiência ou conhecimento do mundo, ou ainda do discurso prévio que compartilhou, e supri-lo com fatos adicionais que permitam estabelecer um elo entre uma parte de uma oração e uma parte da outra (Lakoff, 1971). Ele tem que fazer uma pressuposição sobre fumo e câncer e elaborar deduções baseadas nessas pressuposições e suas relações com os elementos manifestos no enunciado. Uma pressuposição está baseada no senso comum de que fumo demais provoca câncer. Deduz-se que pessoas que contraem câncer são, ou podem ser, as que 380
fumam demasiadamente, estabelecendo-se um domínio comum entre José e as demais pessoas que fumam muito. Diferentemente dos casos explícitos de identidade semântica, para que enunciados como esses possam ter um tópico comum, deve ser possível combinar itens explicitamente manifestos, pressuposições e deduções, para obter uma afirmação de identidade, cujo resultado deve envolver pelo menos um dos itens lexicais em cada membro da junção que, no caso acima, é José. (61) e (62) representam casos de conjunção simétrica, o que significa, por um lado, permitir a alteração da ordem das orações sem alteração de gramaticalidade e de significado e, por outro, permitir livremente qualquer número de membros, como ocorre em (63a-b) e (64). (63) a. José está lavando os talheres e Maria está fazendo a salada. b. José está lavando os talheres, Maria está fazendo a salada e Paulo está pondo a mesa. (64) Eu conheço muitas pessoas que sofrem de câncer, José fuma três maços por dia e Maria fuma quatro.
Essas propriedades não se aplicam à conjunção assimétrica em (65a), cuja alteração de ordem, em (65b), é possível mas não com o mesmo sentido original, de modo que (65a) e (65b) não são sinônimas por haver diferentes relações de causalidade entre as duas orações ligadas por e. (65) a. A polícia subiu o morro e os traficantes começaram a atirar. b. Os traficantes começaram a atirar e a polícia subiu o morro.
Segundo Lakoff (op. cit.), na conjunção simétrica, nenhuma das orações conectadas é pressuposta; na verdade, todas são afirmadas. Já na conjunção assimétrica, o primeiro membro do par é pressuposto para que o segundo seja interpretável. Observe-se, a esse propósito, (65c). (65) c. A polícia subiu o morro e os traficantes começaram a atirar, mas a polícia não subiu o morro.
Negar o primeiro membro de uma conjunção assimétrica resulta muito estranho, e torna o discurso sem sentido, o resultado habitual de negar a pres381
suposição. Negar que a polícia subiu o morro implica negar também sua conseqüência imediata possível, ou seja, que os traficantes começaram a atirar. É em razão disso que, conforme se afirmou acima, Hegenberg (1973) admite que sentenças como (65a-b) não têm sua verdade determinada pela verdade de seus átomos, pois o e da conjunção se traduz aproximadamente como “e em seguida”, envolvendo, nesse caso, sucessão temporal de eventos. Na coordenação simétrica, cada membro é independente do que o segue e do que o precede em qualquer parte da sentença completa. Em decorrência disso, cada membro retém sua integridade e nenhum adiciona significados ao outro, nem uma cadeia de membros precedentes torna o último ininteligível. Na coordenação assimétrica, o conjunto é, num certo sentido, maior que a soma das partes. Além de encadeamento, o conjunto inclui a idéia de que cada membro ligado leva ao outro e que nenhum seria verdadeiro, se os que o precedem não o fossem também. Extraídos do contexto, os membros não reteriam a junção causal ou implicacional, perdendo-se, assim, parte do significado de todo o enunciado. A assimetria de (65a) – mudança de ordem = mudança de interpretação da sentença – é aparentemente devida às convenções icônicas da ordem de palavras na narrativa. A ordem das orações é paralela à ordem dos eventos do mundo real, tornando-se desnecessário adicionar mais especificação de ordenação temporal aos eventos narrados. Em si mesmo, o juntivo e não indica sucessão temporal: tal valor semântico pode ser, por exemplo, atribuído a e depois de (66) abaixo; mas a ordem das duas orações pode, por convenção, ser icônica em relação à seqüência real dos eventos descritos. Sweetser (1991) propõe que esse uso narrativo é de fato somente um dos muitos modos de explorar a interação entre a linearidade inerente da linguagem e o conceito geral do tipo “pôr coisas lado a lado”. (66) cheguei em casa, vi televisão e depois vim para cá pra pra conversar (D2-RJ-355:87)
Dada a importância que assume a impossibilidade de mudança na ordem dos membros coordenados na conjunção assimétrica, cabe agora tentar demonstrar, mediante a elaboração de uma possível tipologia dos casos, a natureza da relação de acordo com os níveis de ocorrência do processo. O caso prototípico de bloqueio da reversibilidade potencial da ordem das orações é constituído por pequenos fragmentos narrativos em que cada 382
evento segue necessariamente o outro de acordo com a seqüência temporal, como demonstra o exemplo (66) acima. Há outros fragmentos de eventos não narrativos, representados abaixo pelos exemplos (67a-c), que ainda assim representam uma seqüência cronológica. (67) a. então esse camarão é refogado com a cebola e põe junto a pimenta (D2-POA-291:107) b. mexe apaga o fogo e põe dois ovos (D2-POA-291:136) c. põe aquele refogado ali dentro e tapa, vai ao forno (D2-POA-291:139)
Outros casos menos nítidos de seqüenciação aparecem nos exemplos (68a-b) que, todavia, sugerem a representação de diferentes fases num processo maior. (68) a. depois de um prazo o senhor paga tanto e pra entrar vai dar mais um tanto (D2-RJ-355:87) b. eles pescam muito peixe de rio e usam muito na alimentação (DID-RJ-328:131)
Os tipos simétrico e assimétrico de conjunção são semanticamente similares em função de uma relação inclusiva que torna a conjunção assimétrica apenas um caso especial da simétrica. Se, na conjunção simétrica, não for possível fazer a pressuposição “x e y compartilham a propriedade z”, não é correlativamente possível chegar à noção de “tópico comum” e obter uma interpretação aceitável da conjunção. Para Lakoff (op. cit.), essa regra também se aplica à conjunção assimétrica: o que se faz para obter esse tipo é construir uma pressuposição a respeito de uma causalidade ou anterioridade temporal potenciais de um membro em relação ao outro, exatamente como se constrói uma pressuposição de similaridade entre as partes de duas orações simetricamente ligadas. O tópico comum no tipo assimétrico de conjunção é a causalidade ou a anterioridade temporal. Embora relacionada, esta propriedade não é 383
idêntica à causalidade ou anterioridade temporal potenciais pressupostas, exatamente como o tópico comum de uma conjunção simétrica está relacionado, mas não é idêntico, à pressuposição6. Os dois tipos diferem, segundo Lakoff, porque, na conjunção simétrica, é necessário que somente partes das orações ligadas possam ser relacionadas por pressuposição, assegurando, desse modo, a dedução de um tópico comum. Na conjunção assimétrica, são as duas orações ligadas como um todo que contraem a relação e não partes delas7. Outro aspecto que cabe discutir: os dados apontam para uma identidade formal, na totalidade dos casos de conjunção levantados, em termos de tempo e aspecto verbal, independentemente, inclusive, de a conjunção de orações ser simétrica ou assimétrica. É interessante observar a esse propósito que, nas sentenças que representam limites de aceitabilidade, a correlação modotemporal pode indicar um critério de diferenciação entre a conjunção simétrica e a assimétrica. (69a) e (69b) constituem, com efeito, conjunções simétricas, mas apenas a segunda parece ser aceitável, desde que, por pressuposição e dedução, seja possível imaginar a existência de um tópico comum, que permita um mínimo de identidade semântica entre as orações coordenadas. (69) a. ?Maria come bolacha e Zezinho pendurou o gato no galho da árvore. b. Maria come bolacha e Zezinho pendura o gato no galho da árvore.
Na conjunção assimétrica, parece ser aceitável, também para o português, uma assimetria modo-temporal correlativa, desde que o verbo do primeiro membro da conjunção apareça no tempo genérico e o verbo do segundo, num tempo específico, conforme se observa em (70a). (cf. a esse propósito Lakoff, 1971): (70) a. Dez homens cabem num fusca e eu paguei cerveja para todo mundo.
(70a) é interpretável, se o emissor fez uma aposta de que pagaria a cerveja se dez homens coubessem num fusca. Como isso se realizou, ele pagou cerveja para todo mundo. Lakoff afirma que, com o verbo pontual em primeiro lugar, não seria possível interpretar (70a), mesmo na conjunção assimétrica, sob a condição de que somente algo genericamente verdadeiro pode fornecer as condições para a realização de um estado de coisas num 384
momento específico, mas não o contrário. No entanto, (70b) parece ser razoavelmente interpretável e isso porque o locutor realiza um ato de fala no segundo membro da coordenação, decorrente do estado de coisas que de fato ocorreu, expresso no primeiro membro, cuja paráfrase está contida em (70c): (70) b.Dez homens couberam no fusca e eu pago cerveja para todo mundo. c. Eu apostei que dez homens nunca caberiam num fusca e que eu eu pagaria cerveja para todo mundo se coubessem. Como dez homens de fato couberam no fusca, eu pago cerveja para todo mundo.
Observe-se, inclusive, que o contrário não seria interpretável, o que aponta para o fato de constituir (70a) uma conjunção realmente assimétrica: (70) d. ?Eu pago cerveja para todo mundo e dez homens couberam no fusca.
Em (70b), a mera forma dos membros denuncia o fato de que não pode estar envolvida a conjunção normal do domínio do conteúdo. O segundo membro da conjunção é um enunciado performativo e não constativo como o primeiro. Essa interpretação se conjuga de fato muito mais razoavelmente com o conteúdo da segunda oração do que uma leitura direta da conjunção de conteúdo. Observem-se agora (71a) e (72a). (71) a. José tirou um conceito baixo em Semântica e entrou para a Igreja Universal. (Portanto, ele abandonou a faculdade.) (72) a. José tirou um conceito baixo em Semântica e entrou para a Igreja Universal. (Portanto você pode ir para o mesmo caminho se fizer Semântica neste semestre.)
(71a), um boa resposta para “O que aconteceu a José?”, é um exemplo corriqueiro de ordenação icônica de eventos, tipicamente narrativa. Assumese tacitamente que a obtenção do conceito baixo precedeu logicamente a adesão religiosa. Se a relação de causalidade factual implica seqüenciação temporal, de modo que eventos precedentes causem eventos subseqüentes, (71b) 385
forneceria uma interpretação correta das duas orações, porém a relação de causalidade já não seria obviamente a mesma. (71) b. José entrou para a Igreja Universal e tirou um conceito baixo em Semântica. (Portanto, ele não tem mais tempo para estudar.)
(72a), por seu lado, é uma boa resposta para “Por que você não quer que eu curse Semântica este semestre?” Em vez de eventos narrativos colocados lado a lado, como em (71a-b), as orações de (72a) acham-se ordenadas como premissas lógicas sucessivas. A ordem das premissas é significativa e o sentido também mudaria se tivessem a ordem revertida, como ocorre em (72b), uma boa resposta para “Por que você não quer que eu entre para a Igreja Universal?”. (72) b. José entrou para a Igreja Universal e tirou um conceito baixo em Semântica. Portanto, você pode ir para o mesmo caminho se entrar para a Igreja Universal.
Nos exemplos (72a-b), o valor conclusivo e portanto é tanto um produto da ordem icônica de palavras, quanto o valor temporal e depois de (71a-b), que podem também envolver suposições de causação do mundo real. Entretanto, a ordenação icônica de (72a-b) se baseia em processos lógicos, não em eventos do mundo real. Além das diferentes conclusões que se podem tirar dessas duas sentenças, as duas orações coordenadas de (71a-b) são colocadas lado a lado num mundo lógico enquanto as de (71a-b) podem resultar de eventos previamente narrados do mundo real. De (72a-b) pode-se tirar apenas um resultado epistêmico, uma conclusão que resulta das premissas previamente enunciadas (cf. Sweetser, 1991:87-8)8.
2.3 Funções adicionais da coordenação de orações Para examinar o comportamento funcional da coordenação de orações, em termos de generalizações significativas para o português falado, é necessário executar, previamente, uma análise exaustiva dos casos de manifestação no corpus considerado. Mediante o uso de alguns programas do Pacote Varbrul, elaborou-se um procedimento descritivo, baseado nos seguintes fatores: iden386
tidade potencial de sujeito nos dois membros da coordenação, a forma de manifestação do sujeito na oração sindética e identidade potencial de tópico entre partes dos membros coordenados. Observe-se inicialmente a tabela 4, que mostra a tabulação cruzada entre identidade de sujeito e identidade de tópico nas estruturas coordenadas do corpus. FATORES
SUJEITOS
SUJEITOS
TOTAL
IDÊNTICOS NÃO-IDÊNTICOS
MESMO TÓPICO TÓPICO DIFERENTE TOTAL
N
%
N
%
N
%
112
97,3
23
57,5
135
87,1
03
2,6
17
42,5
20
12,9
115
74,1
40
25,8
155
100,0
TABELA 4: Tabulação cruzada entre identidade de sujeito e identidade de tópico nas duas orações coordenadas
Os dados da tabela 4 apontam para uma correlação entre identidade de sujeito e identidade de tópico nos membros da conjunção. Por um lado, em 77,4% dos casos, cada sentença manifesta identidade de termos na função de sujeito; por outro, um pouco mais que isso, em 87,1% do total, os membros de conjunção manifestam identidade de tópico. Entretanto, mais significativo é verificar que a identidade de sujeito se correlaciona fortemente com identidade de tópico, numa freqüência altamente majoritária: 97,5% dos casos (117/ 120). Mesmo quando é ausente a identidade de sujeito, é maior a incidência de manutenção tópica. Em conseqüência disso, os resultados indicam uma característica muito comum na conjunção, a de que à identidade sintático-semântica corresponde também a identidade pragmática, propriedade que inclui a identidade de tópico, postulada por Lakoff (op. cit.). Não é pura obra do acaso que incida sobre termos na função de sujeito essa condição de identidade: na estrutura sentencial típica do português, a ordenação SVO representa outra característica pragmática que consiste, em geral, no uso da posição inicial da sentença para a manifestação de tópico discursivo, que pode ou não coincidir com a de sujeito. (73), (74) e (75) são exemplos dessa estrutura predominante de coordenação. 387
(73) eu procuro ... por causa disso ... controlar mais a alimentação e uma vez por semana ... assim.. eu me dou ao luxo de comer doces (DID-RJ-328:50) (74) eles põem uma erva ... põem uma farinha misturada com água e servem como se fosse sopa (DID-RJ-328:1557) (75) essa pimenta frita com as cebolas, é exatamente que quebra o tom de excesso da cebola e ao mesmo tempo da pimenta, e dá um aroma (D2-POA-291:126)
Todos os casos acima ilustram um traço adicional, caracterizador da natureza fundamentalmente tópica do sujeito, e que se reflete exemplarmente na conjunção: o segundo membro manifesta uma forma remissiva, seja mediante o uso de pronome anafórico, seja mediante o uso de zero anafórico, e cuja freqüência a tabela 5 demonstra com meridiana clareza. FATORES
SUJEITOS
SUJEITOS
TOTAL
IDÊNTICOS NÃO- IDÊNTICOS N
%
N
%
N
%
PRONOMINAL
14
12,1
8
20,0
22
14,1
LEXICAL
00
00,0
25
62,5
25
16,1
ZERO ANAFÓRICO
96
83,4
06
15,0
102
65,8
ZER0 NÃO-ANAFÓRICO
04
3,4
00
00,0
04
2,5
ORACIONAL
01
0,8
01
2,5
02
1,2
TABELA 5: Tabulação cruzada entre identidade de sujeito nas duas orações e forma de manifestação do sujeito na segunda oração
A tabela 5 mostra uma tabulação cruzada entre identidade do sujeito e sua forma de manifestação na oração coordenada inicial. A identidade de sujeito, que caracteriza o processo semântico de conjunção, está fortemente correlacionada com um traço formalmente marcado de continuidade tópica, indicado pela freqüência majoritária de remissão por anáfora zero, da ordem de 83,4% (96/115), como se observa nos exemplos contidos em (76a-b) 388
(76) a. a gente se tranca em algum ambiente e se possível(∅) põe um aventalão:: e (∅) se fantasia de artista... (EF-SP-405:158) b. então surge a Segunda Guerra e (∅) encontra o Japão de que maneira? (EF-RJ-379:148)
Os outros casos manifestam uso pouco significativo, mas é a segunda freqüência, em termos comparativos, o da remissão por anáfora pronominal, da ordem de 12,1% (14/115), conforme se observa nos exemplos contidos em (77a-c). (77) a. se ela for uma criança como parece que é, totalmente desinibida, e que no ambiente que ela chega ela lidera (DID-SSA-231:239) b. mas acho que eles devem aprender o que a gente ensina o que consegue, e depois eles vão ter que se virar (DID-SSA-231:239) c. eu preciso ::.. me defender dos animais e eu preciso me esquentar na medida do possível... certo? (EF-SP-405:112)
Observe-se, mutatis mutandis, o comportamento estatístico dos casos de não-identidade de sujeito: muito significativamente, reinam absolutos os sujeitos lexicais, com uma freqüência de 62,5% (25/35), como demonstram os exemplos (78a-c) (78) a. existem mesmo alguns que são muito fechados... e que chegam a dizer que não há acordo... que não há de jeito nenhum complementariedade.... e:: existem outros... da minha linha... que é uma linha mais moderada (EF-RE-337:330) b. um pode ter ficado no nível do conhecimento porque repetiu aquilo que o professor disse e outro pode ter criado uma resposta nova, própria (EF-POA-278:65) c. tinha um outro carro com uma plataforma baixinha e um sujeito sentado nessa plataforma ... ia apanhando as bandeirinhas ... (D2-SSA-98:262)
389
Os casos de (78a-b) manifestam ao mesmo tempo sujeitos não-idênticos e lexicais em cada membro da conjunção, constituindo, como se vê, foco contrastivo. Já em (78c) o primeiro membro introduz uma entidade nova no discurso e o segundo o retoma, sob a forma de sujeito, havendo identidade entre o sujeito da oração coordenada e o circunstancial de lugar, ligado ao sujeito da oração inicial. Representam, por conseguinte, funções pragmáticas engatilhadas pelo uso do juntivo. Examinemos ainda outros casos de sujeitos lexicais, que se ilustram em (79a-c). (79) a. mas sempre falta alguma coisa e essas coisas vai entrando no dinheiro da gente (D2-RJ-355:109) b. existem outras, outras taxionomias que carac, que colocam em níveis completamente diferentes e há uma, a taxionomia que foi elaborada (EF-POA-278: 171) c. há um determinado momento em que eu vou colocar resumo na translação e há um determinado momento que eu vou colocar(r) o resumo como síntese, e aí? (EF-POA-278:252)
Todos os casos exemplificados manifestam o emprego de verbos existenciais, incluindo aí faltar, que indica existência negativa (cf. Pezatti, 1992). Em (79a), faltar apresenta uma entidade nova, veiculada caracteristicamente num SN indefinido e genérico. Tal entidade é retomada na posição de sujeito/ tópico no segundo membro da conjunção sob a forma de um SN definido e especificado, inclusive por flexão de número. Os demais casos ilustram sujeitos de verbo existencial nas duas orações ligadas por e, que cumulam ainda função pragmática de foco contrastivo. Por outro lado, têm alguma justificativa igualmente pragmática todas as ocorrências que combinam ausência de identidade de sujeito com formas remissivas, como anáfora zero e pronominal, na função de sujeito da segunda oração. Observem-se (80) e (81). (80) eu perguntaria agora e vocês já poderia responder (EF-RE-337: 92)
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(81) trabalhar depois de uma refeição daquelas realmente é impossível e talvez seja por isso que dizem que o baiano é preguiçoso (D2-RJ-355:76)
Em sentenças, como a contida em (80), o sujeito pronominal não é idêntico, porque o tópico discursivo está fora dele, ou seja no complemento verbal, representado por um constituinte zero, passível de ser recuperado no contexto discursivo. Já na sentença (81), manifesta-se um sujeito oracional no primeiro membro da conjunção, enquanto o do segundo se indetermina mediante o uso da terceira pessoa do plural. O tópico discursivo versa sobre refeições em geral e a segunda oração finaliza-o com um comentário modalizador. Como no caso de (80), o tópico nada tem a ver com o sujeito. Há outros exemplos de indeterminação do sujeito mediante zero nãoanafórico no segundo membro da conjunção. Em casos como esses, o tópico discursivo está centrado no processo em si que é a seqüência de atividades que caracteriza uma receita culinária. Não há qualquer relevância no sujeito, mas no processo e nos ingredientes em si, como no primeiro membro de (82a), que constitui o tópico dessa cadeia. Na seqüência, as sentenças (82b) e (82c) contêm dois membros coordenados com um zero não-anafórico na posição de sujeito. (82) a. então esse camarão é refogado com cebola e põe junto a pimenta (D2-POA-291:107) b. então faz esse refogado e põe tomate (D2-POA-291: 128) c. mexe, apaga o fogo e põe dois ovos (D2-POA-291: 136)
Casos similares se observam nas sentenças de (83) e (84), em que a segunda oração retoma, sob a forma de zero anafórico, o tópico da primeira, representado pelo complemento verbal. (83) assim nós temos falado sobre a glândula mamária... e acredito que não tenha ficado nada a ser lembrado (sobre glândula mamária) (EF-SSA-49:185)
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(84) eu vou dizer pra vocês o esquema e vocês vão copiar (o esquema) (EF-SSA-49:203)
Caso interessante o de (85): o primeiro membro da conjunção apresenta o tópico, que aparece sob a forma genérica e indefinida de uma entidade nova; no membro seguinte, o tópico é retomado, como convém a uma entidade dada, mediante uma construção de tópico, sob a forma de um SN específico e definido, seguido de anáfora pronominal. (85) os associados são obrigados a pagar uma determinada taxa... e essa taxa eventualmente ou anualmente... ela sofre me parece... que um reajuste (DID-RE-131:93)
Resta ainda demonstrar algumas subfunções discursivas adicionais e específicas no nível da conjunção de orações, que são pragmaticamente paralelas às observadas na coordenação de termos. Os casos mais representativos foram selecionados e agrupados conforme a função que exerce a conjunção. Considerem-se, inicialmente, os exemplos (86a-f) em que a função desempenhada pelo juntivo é a de introduzir tópico ou subtópico discursivo, representado pelas expressões grifadas, permitindo, assim, a continuidade e a progressão do texto. (86)a.Loc. Recife nós comemos coisas assim muito gostosas... também muito ligada a delícia a lagosta de peixe... eles também... eles comem muita coisa... a lagosta de lá é uma Recife... Doc. ( )ótima e barata Loc. é... a lagosta de lá é muito gostosa... e... e no/ em Fortaleza nós comemos também muita coisa ligada a mar e peixes assim muito gostosos... (DID-RJ-328:197) b.
eu estou rotulando de incursões foram quaisquer tipos de quê? de relações... em função de aumento de ampliação de território que os japoneses tinham conhecendo outras áreas... e acontece que chega... a Segunda Grande Guerra com o Japão realmente sendo uma das grandes potências... (EF-RJ-469:117)
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c. L1 piso pavimento... quer dizer você sente porque você não tem curvas assim muito fortes pra fazer... cê não sobe... rampas violentas... não desce rampas violentas... entendeu? características geométricas... e o pavimento em si que é um pavimento mais... espesso... prá aguentar um tráfego mais pesado... (D2-SSA-98:163) d. tanto isso é verdade que tem despertado... atenção... dos presidentes dos diversos sindicatos... existentes neste país... e há pouco tempo tivemos inclusive um conclave... (DID-RE-131:177) e. há casos de tumores... em que... o tratamento... é apenas paleativo... tumores malignos... em que apenas o tramento é paleativo dada a localização do tumor em relação aos elementos novos existentes no mediastino... e não há via de acesso (DID-RE-131:285) f. ele saiu de lá falando chinês, não é, fala chinês, fala diversas línguas e tem um prato hindu que fazem na China (D2-POA-291:179)
Considerem-se, agora, os enunciados (87a-d), cujas orações grifadas, todas introduzidas pelo juntivo e representando o segundo membro da conjunção, desempenham a função de introduzir constituinte focal, mediante o uso de mecanismos sintáticos usuais, como clivagem, colocação do foco no início da oração e interrogativa parcial. (87) a. os filmes mostram né?... as incursões do Japão procurando se defender... e a melhor maneira que ele encontrava para se defender era atacando (EF-RJ-469:76) b. mas a ba/ as sobremesas que eles usam muito é... são tortas... né? e onde tem sobremesas ... assim... doce de coco por exemplo... doce de coco... quindim... que eles usam muito... é na Bahia... (DID-RJ-328:280)
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c. que tenha regido o cinema atualmente em comparação ao cinema dos anos anteriores e no se/ e no que seria notada essa diferença? (DID-SP-234:360) d. não são esse tipo de fru... completamente diferente daquelas que nós estamos acostumados aqui no Rio... e os nomes realmente eu não guardei (DID-RJ-328:84)
Outra função discursiva muito recorrente nos dados é a que exerce o juntivo como introdutor do comentário elaborado pelo enunciador, como se observa nos exemplos (88a-e), alguns dos quais representam mecanismos de modalização avaliativa. (88) a. bom ocorre a guerra e... nada nessa história acontece por acaso... né? se realmente a guerra foi perdida pelos países do eixo ... é que as condições sociológicas ... econômicas e políticas etc. etc. fizeram com que fosse perdida a guerra (EF-RJ-469:149). b. quer dizer realmente é uma economia ... que não conseguiu ainda ... sabe? quer dizer dentro do meu ponto de vista ... apesar de ser ALTISSIMAMENTE industrializada ... ATINGIR a um desenvolvimento global... e vejam que nem poderia ... estão entendendo a comparação que eu estou fazendo (com) com a economia americana? (EF-RJ-469:210) c. porque:: esse país:: só pode crescer globalmente ... se não crescer globalmente ... e seria muito importante para o Brasil que o Nordeste crescesse (D2-RE-05:164) d. esse apartamento é um problema todo de, de, de compra de apartamento que é um, um, uma novela, uma novela mas novela triste, né, uma novela trágica e considero que as firmas que estão que vendem apartamento na planta são arapucas não são firmas (D2-RJ-355:110)
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e. e que o, eu não sinta exatamente aquela aquele momento a necessidade de comer mas também um prazer e o prazer não significa muito (DE-POA-291:56)
Muito recorrente também é o uso de e para introduzir modalização epistêmica, mediante o uso de expressões, como acho e tenho a impressão. Observem-se os exemplos (89a-c). (89) a. não fui preparado para isso, mas a gente foi adquirindo uma vivência da coisa né? e eu acho que o dinheiro todo que eu pudesse, se eu ganhasse assim na loteria e tal eu nunca jogaria em mercado de capitais (D2-RJ-355:175) b. eu acho que é tudo um conjunto né::? deve ser::.. ah maquiadores ah:: fundo música e::.. eu tenho a impressão que é um conjunto de de de trabalho:: medonho aquilo (DID-SP-234:176) c. eu tenho ido a:: ... televisão fazer uns programas ... ajudar um pessoal que que tem me pedido... e eu acho que a televisão é completamente diferente do que a gente assiste (DID-SP-234:181)
Observa-se em (90a-b) uma função estritamente pragmática, empregada para introduzir um constituinte focalizado na oração coordenada mediante clivagem. (90) a. eu por mim estaria só na escola e era isso que eu ia conversar com você (D2-RJ-355:59) b. ela funciona dando uma interpretação lógico-formal da lei e é isso que vocês vão aprender (EF-RE-337:161)
Ressalte-se que, diferentemente dos casos de focalização, expostos acima em (87), o juntivo exerce, nos casos de (90), a função de operador discursivo, já que não atua na coordenação de estados de coisas, conforme a função trivial do aditivo, mas na representação da função interpessoal, mediante a 395
qual se acentua alguma informação e, simultaneamente, abandona-se a dimensão do enunciado em favor da dimensão da enunciação. Esse limite, marca-o o uso do juntivo. Casos significativos desse limite são os exemplos (91a-b): (91) a. quando é que o professor solicita respostas do aluno que exigem apenas e eu digo apenas porque é o processo mental (EF-POA-278:55) b. outros dirão processos mentais superiores e a expressão habilidades mentais cabe muito bem (EF-POA-278:80)
As sentenças acima ilustram claramente um mecanismo empregado para retornar ao momento da enunciação, observável particularmente no caráter metalingüístico da oração introduzida por e.
2.3 Outros valores semânticos do juntivo e O juntivo e é o operador prototípico da coordenação, levando-se principalmente em conta o fato de que, no nível da conjunção de termos, sua função é expandir posições estruturais no interior de sintagmas de diversos tipos. No nível da conjunção de orações, atua, em função dessa prototipicidade, como o modo não-marcado de conexão na organização textual, já que veicula menos significado que outros juntores alternativos possíveis. Schiffrin (1986) postula esse traço de prototipicidade, apoiando-se em critérios de freqüência, distribuição, similaridade com a conexão assindética e contrastes sintagmáticos. Um dos critérios desenvolvidos por Schiffrin (op. cit.), o da distribuição de e em comparação à de outros juntivos, aponta para sua ocorrência em contextos tipicamente adversativos e conclusivos. É exatamente nesses dois contextos de distribuição que os dados levantados revelam alguns usos não estritamente aditivos de e, conforme se observa nos casos contidos em (92ad). (92) a. artista que começa fora de:: de horário que eles batem tudo então e o que aparece para nós na televisão é tudo muito organizado:: (DID-SP-234:192)
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b. tudo parece tão mascarado sei lá e quando aparece em cena o público vê uma coisa totalmente bonita né (DID-SP-234:266) c. ela está assumindo... tarefas assim... muito precocemente... não é?... e... possivelmente passe essa fase (D2-SP-360:226) d. a lei é feita para o homem... para proteger o homem... e no entanto o... homem está sujeito e até certo ponto escravo da lei... (EF-RE-337:53)
Em todos os casos acima, as orações coordenadas poderiam ser conectadas por um juntivo adversativo e (92d), com efeito, apresenta uma combinação do juntivo aditivo com um sintagma preposicionado, com valor adversativo, freqüentemente arrolado nas gramáticas como conjunção. Observe-se, agora o valor semântico do segundo membro da conjunção nos exemplos contidos em (93a-b), cujo conectivo poderia ser perfeitamente parafraseável por um tipicamente conclusivo, como portanto. (93) a. eram nômades e não se fixavam (EF-SP-405:85) b. ela que faz a feira junto com minha tia e normalmente eu não estou assim muito por dentro dos preços dos alimentos... (DID-RJ-328:56)
Embora os dados do corpus se restrinjam a esses valores, provavelmente os mais recorrentes no uso real, é perfeitamente possível arrolar uma série de sentenças que apontam para uma espécie de função de coringa do juntivo e: (94) a. Ana caiu num sono profundo e sua cor normal retornou aos poucos. b. Passamos o dia todo em São Paulo e fui visitar a Bienal. c. Pedro jogou ração envenenada no quintal e o cachorro do vizinho morreu. d. Pedro pôs ração estragada no prato e seu cachorro morreu. e. Me dê sua foto e eu lhe dou a minha. f. Essas são as pegadas da onça e ela passou por aqui há pouco tempo.
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Os casos contidos em (94a-d) indicam, respectivamente, simultaneidade (94a), inclusão temporal (94b), causa suficiente (94c), causa não suficiente (94d), condição (94e), conseqüência lógica (94f), além dos valores de sucessão temporal, conclusão e contraste semântico, já discutidos9.
3. Considerações finais No equacionamento da relação de conjunção, assumiu-se um compromisso teórico defendido por semanticistas maximalistas. Mais especificamente, assumiu-se um compromisso com o enfoque funcional-cognitivo de Sweetser (op.cit.), que trata os vários usos de e como casos de ambigüidade pragmática. Essa expressão sugere que há uma única forma fonológica em que se alojam pelo menos três diferentes lexemas, conforme se aplique o juntivo aos níveis do conteúdo, ao lógico-epistêmico e ao ilocucionário. A análise em geral permitiu verificar que, nos diferentes níveis estruturais, aqui codificados sob os rótulos de conjunção de termos e conjunção de orações, há uma incidência muito significativa de condições pragmáticas projetando procedimentos discursivos. Tais procedimentos estão ora diretamente vinculados ao estatuto informacional dos enunciados envolvidos, ora a necessidades pragmáticas de realização de atos de fala e de modalização avaliativa dos estados de coisas enunciados e que são tipicamente exercidos sob a forma de parentetização adjunta à predicação principal. Esses procedimentos são fortemente vinculados ao exercício da função interpessoal da linguagem (Halliday & Hasan, op. cit.) e é em razão disso que se reconhece a pertinência do conceito de ambigüidade pragmática para um mapeamento adequado dos usos do juntivo e numa gramática unificada, mas de condicionamentos multifuncionais. Outras funções relacionadas à continuidade e mudança de tópico achamse associadas indiretamente à relação de conjunção na medida em que, dos dois enunciados contíguos, o segundo manifesta, com elevada freqüência, mecanismos, como anáfora zero e pronominal, situados no pólo da identificação tópica mais fácil e menos surpreendente, no domínio funcional postulado por Givón (1981). Nesse caso, a conjunção de orações se correlaciona fortemente com outros domínios funcionais, representando um importante mecanismo para a identificação tópica. Outra direção para a qual apontam os resultados é a confirmação de que o juntivo e atua no nível do conteúdo, como um mero coordenador de idéias independentes; no nível semântico, como um mecanismo para a cons398
trução do texto e, no nível pragmático como um mecanismo interacional, seja no nível do conteúdo epistêmico ou no do conteúdo ilocucionário. Essa permeabilidade pelos diferentes níveis não chega a ser surpreendente. A literatura menciona um caso muito ilustrativo, o do advérbio agora, que se esvazia de seu valor dêitico na expressão da temporalidade para exercer uma função textual de articulação tópica, fortemente prospectiva, já que favorece a continuidade discursiva (cf. Ilari et al., 1990; Risso, 1993). É curioso observar, entretanto, que a necessidade de identidade semântica perpassa o juntivo e nos níveis sintático, textual e pragmático em que atua, incluindo-se os níveis da coordenação de termos e de orações, de modo a manter nitidamente a unidade na diversidade. Se é extremamente visível no nível da junção simples de conteúdo, no epistêmico e no ilocucionário, a visibilidade da identidade semântica se enfraquece, mas se mantém como inferências e deduções a partir de esquemas referenciais e cognitivos. Também não causa estranheza que a função do juntivo e para a construção do texto e para a construção do jogo interacional esteja arraigada no uso estritamente estrutural, nos termos de Halliday & Hasan (1976), cuja função é ligar idéias semanticamente equivalentes, uso que parece derivado da mesma estruturação cognitiva do espaço físico que nos permite a habilidade de “pôr coisas lado a lado”. Conseqüentemente, a multiplicidade de valores semânticos é parte constituinte da economia das línguas naturais humanas. De modo semelhante, postulam Mathiessen & Thompson (1988) que as diversas relações semânticas estabelecidas na combinação de orações permeiam o texto todo, independentemente do nível estrutural de organização envolvido. As relações que governam prioritariamente a organização textual irradiam reflexos na organização de partes estruturalmente inferiores. Não é difícil admitir a ambigüidade pragmática, quando se nota que, mesmo antes, Halliday & Hasan já admitiam a impossibilidade de postular biunivocidade para relações estruturais e relações semânticas (apud Neves, 1996). Note-se, com efeito, que as relações conjuntivas constituem um componente altamente generalizado no interior do componente semântico, com reflexos que, difundidos por todo o sistema lingüístico, assumem as mais diversas formas. Basta observar que a sucessão temporal se manifesta mediante predicados verbais, juntores, como preposição e conjunção, e adjuntos discursivos. São desses recursos que deriva o potencial coesivo das relações conjuntivas. Uma questão mais especulativa que surge é se a relação de conjunção não poderia resultar de uma transferência perceptual-cognitiva dos processos 399
comuns de repetição, originalmente próprias de situações ritualísticas. A natureza implícita da repetição na conjunção, comprometida com uma equivalência sintática e semântica e, muitas vezes, equivalência estrutural, pode ser indício de que apenas constitui uma fase mais elaborada e mais complexa do mecanismo de repetição. Sua expressão icônica mais simples talvez se encontre em processos morfológicos, como o de morfemas reduplicativos com função de pluralidade, forma de expressão que reflete a iconicidade em sua dimensão diagramática. Como mecanismo que perpassa várias processos da organização textual, a repetição é um mecanismo constitutivo não apenas do texto falado, mas também da própria situação de interação (Koch, 1994; Tannen, 1989). Se a conjunção de termos e de orações tem origem na transferência cognitiva dos processos comuns de repetição das situações rituais, o resultado, um tanto paradoxal, é o de um tipo de repetição implícita, já que raramente há reduplicação formal de constituintes. A junção aditiva de orações raramente faz uso da repetição de estrutura, embora esteja semanticamente comprometida com uma equivalência sintática, semântica e muitas vezes, porém em menor grau, com o paralelismo estrutural. Não obstante, é um mecanismo formal disponível na sintaxe da língua, que só é possível, se houver uma repetição tácita, mas que pode deixar de sê-lo por alguma outra razão comunicativa de facilitação da compreensão do interlocutor, como em (95a), já um tanto dificultada em razão da carga informacional que habitualmente procede de uma aula. (95) a. a maneira do homem pré-histórico era... BAsicamente eu preciso comer... e eu preciso:: ...me defender dos animais e eu preciso me esquentar na medida do possível... (EF-SP-405:109-13)
Justamente por evitar a repetição, a conjunção de orações vem sendo tratada mais como elipse, que é um fenômeno motivado pela distribuição de informação: é natural que se apaguem constituintes que representam informação velha e se conservem os que representam informação nova. Por conseguinte, a decisão pela escolha de conjunção com repetição, como (95a) e de conjunção sem repetição, como (95b), depende crucialmente de compromisso interacional com o interlocutor. 400
(95) b. a maneira do homem pré-histórico era... BAsicamente eu preciso comer....me defender dos animais e me esquentar na medida do possível... (EF-SP-405:109-13)
Nessa mesma linha de argumentação, a redescoberta da iconicidade figurativa pela Lingüística Cognitiva, uma linha funcionalista desenvolvida por Langacker, Fillmore, Lakoff e outros, permite descrever relações de homologia entre domínios conceptuais, como na metáfora. Esse enfoque funcional-cognitivo defende a idéia de que as categorias lingüísticas se estruturam com base nos mesmos princípios operacionais que organizam as demais categorias humanas (perceptuais, psicossociais, culturais, etc.). A grande inovação de Lakoff & Johnson (1980) e Lakoff (1987) é transferir a concepção cognitiva do módulo semântico para o da gramática. É nessa linha que se insere a posição de Sweetser (1991) aqui adotada de que a motivação cognitiva perpassa toda a gramática, no que se inclui especificamente o dos juntivos aditivos. Os casos mais simples de repetição se localizam inicialmente na coordenação simples e múltipla de termos e, no nível do período, na conjunção de conteúdo. Os casos mais complexos encontram seu espaço privilegiado nas associações semânticas, baseadas em dedução e pressuposição, num nível superior de abstração, em que a equivalência necessária, que faz a base da repetição, encontre sua melhor definição em processos metonímicos e metafóricos. O processo de coordenação parece consistir num caso exemplar do caráter formulaico da repetição, cujo domínio, como fator de estruturação da linguagem, se expande e se difunde por setores da gramática. Em sua forma mais simples, esse processo tem origem em procedimentos mais concretos de repetição e, mesmo no interior da relação de conjunção, outros processos menos abstratos, como a ordenação temporal, fornecem base para o desenvolvimento de processos semânticos mais complexos, como o raciocínio lógico e o argumentativo. Só isso bastaria para demonstrar que, em vez de meros autômatas reprodutores, os falantes são construtores, ao empregar uma modelização baseada em processos mais básicos, como uma verdadeira fonte de criatividade, cujo mecanismo inovador é o da iconicidade figurativa, que, sabe-se sobejamente, governa o processo da criação artística em prosa, mas sobretudo em poesia. É assim que a relação dialética entre o previsível e a novidade torna sempre possível a criação de significado. 401
NOTAS 1
Este texto é uma versão modificada do trabalho As orações aditivas e as orações alternativas, apresentado em co-autoria com Erotilde Goreti Pezatti, no 9o Seminário do Projeto Gramática do Português Falado, realizado em dezembro de 1995, em Campos do Jordão-SP. Após o debate, os autores decidiram separar a conjunção e a disjunção, ficando sob minha responsabilidade a análise do primeiro tipo de relação semântica.
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Não há dificuldade alguma em ver as determinações externas e internas associadas ao uso da conjunção; todavia, é difícil concordar com a separação entre o uso aditivo e o coordenado da relação juntiva estabelecida por e, e com a idéia de que, nesta segunda modalidade, não se estabelece coesão, principalmente porque, como se sabe, seus mecanismos são, em última análise, explicitamente revelados através de marcas lingüísticas, índices formais que se manifestam na organização seqüencial do texto. Sob certo aspecto, essa separação originalmente produzida está associada ao fato de que as conjunções veiculam outras determinações semânticas nas línguas naturais, além das estritamente funcional-veritativas, concebidas pela lógica, dentre as quais a textual. Nesse caso, a separação é intuitivamente correta, embora não é possível concordar com o que sugerem termos como estrutural ou coordenado, por um lado, e aditivo ou coesivo, por outro.
3
Uma palavra ou um sintagma é ambíguo quando tem dois diferentes valores semânticos. É também possível, porém, que uma forma lingüística tenha somente um valor semântico, mas ainda assim, múltiplas funções. Um exemplo saliente é a ambigüidade pragmática da negação (Horn, 1985): cp. Ela não está alegre, ela está triste e Ela não está alegre, ela está em êxtase. A diferença é que, no primeiro caso, entende-se a semântica da negativa como aplicada ao conteúdo da palavra alegre, enquanto, no segundo caso, como aplicada a alguma asserção subentendida de natureza epistêmica. Entende-se o significado do segundo exemplo acima como “Eu não diria que ela estava alegre, mas eu diria que ela estava em êxtase”. É o uso da negação que varia, não seu sentido (Sweetser, 1991).
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Investigando a relação entre a CCC e a Condição da Estrutura Coordenada (Coordinate Structure Constraint de Ross (1967), Schachter (1977) mostra que a condição que propõe pode dar conta de todos os casos de conjunção agramatical que a regra de Ross pretende explicar, embora o reverso não seja verdadeiro: certos fatos residuais que permaneceram sem explicação adequada na proposta de Ross, assim como exceções a sua regra, encontram abrigo natural na CCC.
5
Segundo Haiman (1980), o conceito de iconicidade é decorrente da noção de diagrama, isto é, um signo complexo que representa um conceito complexo. Estritamente falando, deve haver entre o diagrama icônico e o estado de coisas a que ele remete uma relação de homologia, relação que pode ser decomposta em duas propriedades diferentes: a de isomorfismo e a de motivação. No isomorfismo, deve haver relação biunívoca entre os pontos da realidade e os pontos do diagrama e, na motivação, deve haver identidade de relações entre as partes do diagrama e as partes do referente a que ele remete.
6
R. Lakoff argumenta que uma pressuposição entre A e B autoriza a dedução de que A e B são similares. Por conseguinte, o que ela pretende dizer, ao afirmar a necessidade de tópico comum na conjunção simétrica, é a possibilidade de redução por pressuposição e dedução a um predicado simétrico subjacente. O predicado subjacente à conjunção
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simétrica é “A e B são similares”, enquanto o predicado subjacente a uma das interpretações da conjunção assimétrica é “A segue B”. 7
Essa conceituação de Lakoff é um argumento adicional em favor de não separar nitidamente o uso estrutural e o coesivo do juntivo e, postulado por Halliday & Hasan (v. nota 2). As determinações semânticas demonstradas possibilitam antes aproximar os dois tipos que distingui-los completamente um do outro.
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A razão por que a “prioridade”epistêmica se reflete na ordem icônica de palavras, exatamente do mesmo modo que a prioridade temporal dos eventos, está na modelagem difusa da expressão lingüística do mundo interno com base na expressão do mundo “real” externo (cf. Sweetser, 1991). E pode também conectar entidades epistêmicas sem qualquer assimetria particular ou prioridade particular, numa maneira análoga à conjunção de conteúdo. Nesse caso, as premissas conjugadas por e são simplesmente colocadas lado a lado, como argumentos absolutamente iguais para alguma conclusão, e nenhuma premissa tem uma relação e-portanto com outra.
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Para um estudo mais detalhado desses valores e uma discussão de um tratamento teórico de fundamentação pragmática, v. Carston (1993).
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405
ESTRUTURAS COORDENADAS ALTERNATIVAS1
Erotilde Goreti Pezatti (UNESP/São José do Rio Preto)
0. Apresentação O objetivo deste estudo é fornecer uma descrição detalhada do comportamento sintático-semântico das conjunções coordenativas alternativas no português falado, ou mais especificamente da relação de disjunção, tradicionalmente denominada de alternância. O fundamento teórico que pretendemos aplicar na análise desse juntivo é o funcional, particularmente o enfoque denominado Gramática Funcional (GF), de Dik (1980). A GF trata a coordenação sob a forma de expansão de elementos da estrutura em séries coordenadas de elementos similares. O seguinte esquema fornece uma representação formal desse processo. α→ α1, α 2, ...., α n (n≥ 2) Essa representação opera sobre algum elemento α, expandindo-o numa série n-ária de elementos coordenados do mesmo tipo. Podem-se distinguir dois níveis de disjunção: (i) no nível da oração, a disjunção de termos; (ii) no nível do período, a disjunção de predicados ou orações, conforme se pode verificar pelos exemplos (1-2), extraídos do córpus. (1)
filosofia do direito... o que estuda?... estuda o fenômeno jurídico... aprofundan:do a partir... dos conhecimentos... científicos...ou da própria dogmática... do direito... (EF-RE-337:266)
(2)
não tem importância que a gente chama de análise ou chama de interpretação o importante é que o processo se realize (EF-POA-278:211)
Termo, para Dik (1989) designa entidades do mundo; sendo assim, a coordenação de termos representa um modo abreviado e econômico de expressar que diferentes entidades se relacionam da mesma maneira com o predicado, mecanismo que permite manifestar dois estados de coisa com uma única oração. Com efeito, uma oração como Ou Lula ou Fernando Henrique será o próximo presidente representa dois estados de coisa, que se podem identificar na paráfrase Ou Lula será o próximo presidente ou Fernando Henrique será o próximo presidente. Este trabalho se limita ao exame do juntivo ou, simples e duplo, que mantém alta freqüência no córpus, já que não ocorre nenhum caso de outros conectores duplos como ora...ora, quer...quer, seja...seja e às vezes...às vezes. A esse propósito, é interessante assinalar a ocorrência de um único caso, contido em (3), em que se usa um conector duplo misto, ou seja, ao invés de uma conjunção repetida, conforme prevêem as convenções normativas, utilizaramse dois conectores distintos para efetuar a correlação. (3)
um conhecimento que aprofunda mais aqueles outros DOIS ... seja como conhecimento num é? sociológico... ou conhecimento.. normativo... lógiconormativo... (EF-RE-337:269)
A ocorrência de seja...seja manifesta, na realidade, uma forma de repetição do predicado verbal, que parece estar se gramaticalizando como juntivo e cuja associação com ou é freqüentemente licenciada, com valor concessivo, como é possível verificar numa oração como Sejam os réus ricos ou pobres, a justiça tem que aplicar-se. (3), entretanto, manifesta uma ocorrência em que dificilmente se pode interpretar seja como verbo. O universo de pesquisa é uma amostragem representativa do córpus mínimo do Projeto de Gramática do Português Falado, composto por três tipos de inquérito: Elocuções Formais (EF), Diálogo entre Informante e Documentador (DID) e Diálogo entre dois Informantes (D2), colhidos em cinco capitais brasileiras. São eles: de Porto Alegre: EF-278, DID-045, D2-291; de Rio de Janeiro: EF-379, DID-328, D2-355; de São Paulo: EF-405, DID-234, D2-3603; 408
de Recife: EF-337, DID-131, D2-005; de Salvador: EF-049, DID-231, D2-098. Para facilitar o tratamento de grandes quantidades de dados empíricos, procedimento descritivo obrigatório no PGPF, a metodologia mais indicada é o uso de uma técnica eletrônica de processamento. Empregam-se, portanto, alguns programas do Pacote Varbrul (Sankoff, 1975), mais especificamente, o Makecell, para o levantamento de freqüências simples e o Crosstab para o exame de dados que exigem o cruzamento de dois fatores relevantes para a análise. Este texto se organiza em cinco partes. Na primeira discute-se a questão da disjunção de uma perspectiva lógica e de uma perspectiva lingüística, procurando mostrar que o processo na linguagem natural nem sempre coincide com o da linguagem formal. Como um reflexo da primeira, na segunda parte são abordados os dois tipos semânticos de disjunção, a inclusiva e a exclusiva e as condições possíveis para sua manifestação nos enunciados do córpus. Devido ao fato de a disjunção se dar em diferentes níveis, como afirmamos acima, examina-se, na terceira parte, a coordenação de termos e a coordenação de orações separadamente. Na seção 4, analisam-se os usos pragmáticos adicionais das ocorrências da conjunção ou, ficando a quinta parte reservada para as considerações finais.
1. As condições lógicas e discursivas da disjunção A linguagem lógica conhecida como Cálculo Sentencial define quatro conectivos lógicos (simbolizados pelos sinais ∧, ∨, →, ↔), a partir do uso corrente das palavras e, ou e se. A característica sintática comum desses conectivos é a de construírem enunciados complexos a partir de enunciados mais simples e a característica semântica é a verifuncionalidade, ou seja, o fato de apresentarem o valor de verdade da expressão resultante como uma função dos valores de verdade das expressões constituintes, excluído qualquer outro aspecto semântico (cf. Ilari, 1995). Desse modo, o Cálculo Sentencial admite para seus enunciados apenas dois valores de verdade (Verdadeiro ou Falso) e considera os conectivos como maneiras diferenciadas de mapear os valores de verdade dos enunciados componentes no valor de verdade do enunciado resultante, sendo, portanto, binários, ou seja, unem apenas dois enunciados de cada vez. Assim, os conectores de disjunção lógica apresentam-se como na tabela 1. 409
P
Q
P∨Q inclusivo
P∨Q exclusivo
V
V
V
F
V
F
V
V
F
V
V
V
F
F
F
F
Tabela 1. Tabela de verdade da disjunção
Concebido de início para dar conta dos esquemas de inferência que atuam em alguns tipos específicos de discurso científico, como o da aritmética, o Cálculo Sentencial pode ser encarado, à semelhança de muitas outras construções, como uma versão exata, mas extremamente simplificada, de um fragmento de linguagem natural. A comparação da linguagem natural com fragmentos construídos para fins lógico-científicos mostra que as conjunções da língua natural são mais complexas que os conectivos lógicos, pois apresentam ambigüidades e conteúdos não estritamente funcional-veritativos (Ilari, op. cit.). As condições lógicas para a existência da disjunção não coincidem com os requisitos de sua aceitabilidade nas línguas naturais. De um ponto de vista lógico, para haver disjunção exclusiva de duas proposições quaisquer, é necessário apenas que uma seja verdadeira e a outra falsa, condição não suficiente para a disjunção vista de um ponto de vista discursivo. No discurso, são necessárias três condições para que haja disjunção (cf. Charaudeau, 1992; Oliveira, 1995). A primeira é que pelo menos um elemento de uma das asserções disjuntas seja semanticamente idêntico a um dos da outra. (4), por exemplo, preenche esta condição. (4)
mas é preciso que eu aplique, que eu utilize os sinais de trânsito na hora certa, ou que eu tenha a habilidade de passar mais rápido pelo guardinha porque senão, eu (es)tou multada na primeira esquina (EF-POA-278:197)
Nessa disjunção uma entidade da primeira asserção (eu) se repete na segunda. Não é necessário, entretanto, que se repitam seqüências de itens lexi410
cais; a repetição pode ocorrer com base em outros mecanismos, como anáfora zero, em (5), ou especificações semânticas, em (6). Enfim, nas disjunções que ocorrem em situações reais de comunicação oral ou escrita, deve haver um eixo semântico comum aos termos disjuntos, sobre o qual se dá a oposição entre eles. (5)
para então... ele dizer... se há malignidade ou não nesse nódulo (EF-SSA-49:90)
(6)
ela vai dizer também que eu não posso aplicar, também sem fazer uma análise ou aplicação, então vamos voltar aqui (EF-POA-278:175)
A segunda condição é a existência de uma terceira asserção equivalente ao domínio semântico representado pelo eixo comum às asserções disjuntas. Essa asserção, posta ou pressuposta, deve ser mais geral que as outras duas, podendo, na maioria das vezes, ser introduzida por um conector adversativo. Isso significa que, quando se diz “(OU) A OU B”, admite-se uma dessas hipóteses, A ou B, MAS, em qualquer delas, põe-se ou pressupõe-se C, que se crê verdadeira, quer prevaleça A, quer prevaleça B. É o que ilustram as ocorrências (2) acima, e repetida aqui, e (7). (2)
não tem importância que a ge nte chama de análise ou chama de interpretação o importante é que o processo se realize (EF-POA-278:211)
(7)
hoje você paga o dobro ou o triplo mas você paga o dobro ou o triplo pela desvalorização do dinheiro (D2-RJ-335:117)
A terceira condição impõe que o locutor desconheça a seleção a operar, o que se pode manifestar através do emprego da interrogação (direta ou indireta), do imperativo, de construção hipotética e de construção declarativa referente a fatos futuros, representados respectivamente em (8-11). De fato, quem pergunta ignora a resposta; futuro e hipótese associam-se a dúvida (que por sua vez se associa a ignorância), e o imperativo refere-se a uma ação que o 411
locutor deseja ver praticada pelo interlocutor, mas tem dúvida quanto à realização desse desejo. (8) a. a senhora acha que houve alguma evolução ou:: ou que tenha regredido o cinema atualmente? (DID-SP-234:359) b. há muita... discussão aí entre posições opostas de que se o Japão seria uma economia ou um país desenvolvido. (EF-RJ-379:223) (9)
então, faz esse refogado e põe tomate, um ou dois tomates (D2-POA-291:192)
(10)
porque quando ele vai aferir ou vai investigar experimentar o homem... não é o que o homem diz... do experimento de laboratório mas sim o que o homem realmente está pensando... (EF-RE-337:142)
(11)
além naturalmente do departamento jurídico que é a peça ... de GRANde importância ... porque vai tratar exatamente de todas aquelas questões... de contra:to ou de distrato (DID-RE-131:240)
2. Disjunção exclusiva e inclusiva Desde praticamente as primeiras descrições gramaticais reconhece-se uma diferença nítida entre construção coordenativa ‘associativa’ e construção coordenativa ‘dissociativa’. A primeira engloba a coordenação copulativa (aditiva) e, para alguns que as incluem dentro das coordenadas, as adversativas e as causais; a segunda, a disjuntiva. É evidente que a base desta classificação bipartida está na classificação das conjunções coordenativas, estabelecida já na época clássica e que permaneceu na Idade Média, em conjunções que uniam (copulativas, adversativas e causais) e conjunções que ‘separavam’ (disjuntivas) (cf. Julia, 1986). 412
O sistema de conjunções e, particularmente das conjunções disjuntivas, na evolução do latim para o português, apresentou uma redução no seu inventário. Havia, no latim, duas conjunções fundamentais para indicar a disjunção, aut e vel. A primeira expressava a contraditoriedade ou disjunção exclusiva (A ou B, mas não AB) e a ausência de associação em todos os termos, seja como conjunção simples (A ou B), seja como dupla (ou A ou B). Vel, por sua vez, expressava disjunção inclusiva ou simples alternância. Apesar de os significados de aut e vel estarem bem diferenciados como disjunção exclusiva e inclusiva respectivamente, a relação entre elas não era a de uma oposição equipolente e não-neutralizada. Enquanto aut era uma partícula específica de coordenação com âmbito funcional bem delimitado, vel tinha um valor mais disperso e, possivelmente por isso, uma posição mais débil no sistema dos nexos de coordenação, indicando possibilidade de eleição. Essa debilidade de valor significativo impediu que fosse utilizada como conectivo disjuntivo, o que precipitou seu desaparecimento, sendo, desse modo, gradativamente substituído por aut (cf. Julia, 1986:164). Rubio (1976) observa que, dentre as possibilidades de disjunção em latim, a partícula aut era a forma geral, usada para expressar a disjunção alternativa entre dois termos, tanto para os que se excluem como para os semanticamente unidos e até equivalentes ou indiferentes à eleição. Vel, pelo contrário, não podia ser usada para expressar a disjunção exclusiva, tornando-se, portanto, o termo marcado da oposição, com um significado puramente inclusivo. Apesar dessa delimitação funcional, há ocasiões em que, devido tanto ao limite impreciso entre exclusão e inclusão quanto ao progressivo enfraquecimento de vel, com a conseqüente perda da consciência de seu âmbito funcional por parte dos falantes, registram-se usos pouco adequados dessa partícula, principalmente quando se distancia do período clássico. De qualquer modo, tudo indica que, apesar de certas exceções, os valores semânticos de aut e vel estavam relativamente bem delimitados em latim. Das conjunções disjuntivas latinas, o português só conserva, do ponto de vista do significante, a geral aut, tendo a outra desaparecido por completo. Dado o valor disjuntivo ‘exclusivo’ de aut, tudo parece indicar que, em princípio, o ou (< aut) português foi considerado pelas gramáticas como dotado de um valor equivalente ao de seu étimo latino, isto é, fundamentalmente ‘exclusivo’. Mais tarde, sem dúvida, as gramáticas corrigiram seu valor, atribuindo à partícula ou tanto o sentido específico como o ‘inclusivo’, pertencente a vel. 413
Por isso, passou-se a considerar que o português não dispunha de duas marcas diferentes para indicar relações de exclusão e inclusão e que estavam ambas representadas pela conjunção ou, cabendo ao contexto a responsabilidade de determinar se se trata de um ou outro sentido. Como no caso das conjunções latinas, sempre se considerou, em português, que a repetição reiterada da conjunção ou apenas introduzia uma certa ênfase ou algum outro tipo de alteração estilística no significado disjuntivo, sendo a especificação de seu valor exclusivo ou inclusivo um traço unicamente contextual. Todas as descrições da coordenação disjuntiva tendem a apresentá-la como um tipo uniforme de construção, com variantes puramente contextuais. Tudo parece indicar que, no tratamento da coordenação disjuntiva, subjaz a convicção generalizada de que o sistema português supõe uma redução de uma distinção semântica existente em latim, ao desaparecer um dos dois significantes diferenciados, com a conseqüente ampliação semântica da partícula que se manteve com o fim de expressar com uma só forma o significado do que antes era expresso por duas. O que parece apresentar-se como uma redução do sistema funcional latino em sua evolução para o português é, na verdade, uma sobrevivência do sistema, com mudança parcial dos recursos significantes. Se em latim a disjunção exclusiva e a inclusiva tinham como traço expressivo duas partículas distintas, sendo o recurso da repetição delas antes de cada membro coordenado uma mera variante estilística, o português, com uma única partícula disjuntiva (variantes à parte), utiliza esse recurso não como uma variante enfática (ou de algum outro matiz), mas com um valor distintivo equivalente ao que opunham as duas partículas latinas. Os significados ‘disjuntivos’ exclusivo e inclusivo estão perfeitamente delimitados em português em seqüências como (12) e (2), que aqui se repete. (12) é um controle muito natural ou você não tem filhos ou vai ser é castrado (EF-RJ-379:205) (2)
não tem importância que a gente chama de análise ou chama de interpretação o importante é que o processo se realize (EF-POA-278:211)
Em (12) estabelecem-se duas possibilidades únicas para não procriar: evitar filhos com qualquer tipo de contraceptivo ou ser castrado, sem opção a nenhuma outra. Há aí uma disjunção exclusiva. (2), pelo contrário, manifesta 414
uma disjunção inclusiva: pode-se chamar de análise, interpretação ou qualquer outro nome que, sem ser um ou outro, implique os dois. Observe-se que o enunciado contido em (13) é ambíguo com ou simples, e apenas alguma informação pragmática adicional, como a contida em (13a-b) permitiria desfazer a duplicidade semântica entre a interpretação inclusiva e a exclusiva: (13)
Maria quer pudim ou gelatina.
(13) a. Maria quer pudim ou gelatina (qualquer um dos dois, tanto faz). (13) b. Maria quer pudim ou gelatina (já que ela está de regime).
ou senão, o emprego de um simples mecanismo gramatical, como a repetição do juntivo, também desfaria a ambigüidade de (13) em favor de uma interpretação irrefutavelmente exclusiva, como se observa em (13c). (13) c. Maria quer ou pudim ou gelatina.
Parece evidente que uma análise do valor funcional do que se pode considerar dois nexos (disjuntivos) em português, o ou (simples) e ou...ou (duplo), permite comprovar a existência de duas formas diferentes que têm como significados diferenciados a inclusão e a exclusão respectivamente. Diferentemente do sistema latino, no português, a partícula não-marcada é a que comporta o significado primário inclusivo. A forma ‘...ou....’ pode representar tanto a inclusão quanto a exclusão; já ‘ou...ou...’, somente a exclusão (Oliveira, 1995). Essa distribuição é, na realidade, a situação normal na maioria das línguas e está em conexão com o tipo de relação lógica que implica o conteúdo inclusivo com respeito ao exclusivo: a disjunção inclusiva, ou alternativa, encerra em si mesma a possibilidade de uma exclusão, superando-a. Nosso córpus aponta 68 ocorrências de ou simples, correspondente a 88,3% do total geral, contra apenas 9 casos (11,6%) de ou duplo. A pequena incidência de ou duplo pode ser explicada pelo seguinte fato. O caráter nãomarcado da forma simples ‘...ou...’ faz com que suas possibilidades de ocorrência abarquem também as da forma ‘ou...ou’ (duplo), além de suas próprias, já que a exclusão, como parte de seus valores semânticos, poderia ser derivada 415
do contexto. Ou duplo nunca significa outra coisa que não a exclusão, seja qual for o contexto, mas é possível empregar ou simples (forma não-marcada), em contextos em que a interpretação exclusiva é claramente explícita e não-ambígua, quando se tornaria redundante o uso de ou duplo. É, por exemplo, o caso das formas imperativas ou interrogativas, normalmente destinadas, por seu próprio caráter, a obter uma única resposta, conforme se observa em (14) e (14a). (14) a senhora acha que há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo tipo? (DID-SP-234:228) (14) a. ? a senhora acha que ou há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo tipo?
Ou simples é, pois, polissêmico e seu uso inclusivo e exclusivo varia de acordo com a construção em que aparece. Na forma afirmativa, com conteúdos factuais de visão particularizante, o ou é sempre exclusivo, como se pode notar pelo exemplo (15) abaixo. É também exclusivo quando junta duas asserções negativas, como (16), ou quando uma é afirmativa e a outra negativa, como (17). Na forma interrogativa, em que cada um dos termos é o escopo da interrogação, também é possível só a interpretação exclusiva, como demonstra (14). (15) para um leigo... pode parecer eu falando assim na sociologia jurídica é que estuda...não é?essa realidade em adequação: com a lei ou a lei em adequação com a realidade (EF-RE-337:165) (16) O Brasil não enviou a contrapartida ou a obra não andou. Por isso o Banco Mundial suspendeu as liberações2. (17)
se a:: fruta... eh se eles iam conseguir a fruta ou não... (EF-SP-405:120).
(14) a senhora acha que há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo tipo? (DID-SP-234:228)
416
Em sentenças afirmativas, entretanto, em que os dois elementos ligados pelo conector são interpretados como sinônimos ou quase sinônimos, a disjunção é inclusiva, conforme se observa em (18). (18) são pessoas ... distribuídas... nas mais diferentes... assessorias... ou nos mais diferentes órgãos... (DID-RE-131:160)
Além dessas, as construções hipotéticas disjuntivas com ou simples, mesmo na forma afirmativa, são sempre inclusivas, conforme demonstra Oliveira (1995). A oposição entre factual e hipotético não é binária. O fato apresentado com visão particularizante é mais factual que o descrito com visão generalizante. Há um contínuo, que vai do ‘grau máximo de hipótese’ ao ‘grau máximo de factualidade’. Isso explica por que a disjunção se torna inclusiva em asserções factuais generalizantes, mesmo na forma afirmativa como (19). (19) é através exatamente... desse fator... de união: e de integração... que os indivíduos se AJUSTAM... ou que os indivíduos... pro eh: procuram levar ... a cabo... levar adiante... suas melhores... ou suas: mais justas... reinvidicações (DID-RE-131:68)
Ou simples é ainda inclusivo quando a construção disjuntiva for o escopo da negação, como em (2) e (20) ou o escopo da interrogação, como em (21). (2)
não tem importância que a gente chama de análise ou chama de interpretação o importante é que o processo se realize (EF-POA-278:211)
(20) não negamos nunca atender a um doente ou outro que chegue mesmo fora do horário ou que seja extra (DID-SSA-231:226) (21) qual seria o motivo pelo qual ... eles::...começaram... a pintar ou a esculpir... estas formas ... (EF-SP-405:152)
417
De qualquer forma, o que se nota é que, com relação às formas disjuntivas latinas, houve, no português, uma inversão do caráter das formas marcadas e não-marcadas. Em latim a forma marcada (vel) era a inclusiva e a não-marcada (aut), a exclusiva; já no português, a forma marcada (ou A ou B) é a exclusiva, e a não-marcada (A ou B), ambígua. Além disso, não se pode falar de redução do sistema funcional de coordenação alternativa na evolução do latim para o português, mas simplesmente de uma redução de formas e, conseqüente duplicação da única restante, para permitir uma dupla oposição funcional no sistema.
3. Níveis de coordenação disjuntiva 3.1 A disjunção entre termos A relação de coordenação de termos tem sido relegada a uma condição de pouco ou nenhum interesse por parte dos estudiosos. Ela tem sido tratada juntamente com a coordenação de orações como se as duas constituíssem um único processo. Neste estudo trataremos as duas separadamente pois acreditamos que, apesar de apresentarem pontos comuns, apresentam também divergências que procuraremos explicitar. A coordenação de termos pode ocorrer entre pares de itens funcionando teoricamente em qualquer lugar da estrutura sentencial. Um par de termos ligado por coordenação funciona como um elemento complexo singular da estrutura, exercendo a mesma função que a dos elementos simples equivalentes. Segundo Halliday & Hasan (1976), dois elementos coordenados estruturalmente, como ocorre na coordenação de termos, não apenas constituem um único termo na estrutura de nível superior de que fazem parte, mas também não há razão para que esse potencial seja limitado a dois elementos. Se houver mais de dois, o conjunto pode ainda ser estruturado em camadas de diferentes níveis de inserção sintagmática, como se observa em ((Corinthians ou Santos) ou (Palmeiras ou São Paulo)) será o campeão brasileiro, pressupondo-se que cada grupo de dois esteja numa chave. Não há, então, limite fixo para a profundidade e para a extensão de estruturas coordenadas de termos3. O levantamento no córpus aponta para um total de 53 ocorrências de coordenação de termos, das quais apenas dois casos, correspondentes a 3,77%, envolvem três ou mais termos, conforme se observa nos exemplos abaixo. 418
(22) vocês terão assim...um pouco...da sociologia...ou da psicologia...ou da ciência econômica... ou mesmo da histó:ria (EF-RE-337:153) (23) ela presta...aos usineiros... informações sobre o mercado... sobre a as condições econômicas... ou sobre digamos assim questões referentes a determinados... tipos de: de PREÇOS... (DID-RE-131:254)
Observa-se ainda a predominância de ou simples (48 casos correspondentes a 90,5%) contra apenas 5 casos (9,4%) de ou duplo, conforme exemplo (24), abaixo. (24) era uma tecnologia.. assimilada de duas formas... primeiro... pela própria... ahn... pelo próprio desenvolvimento interno deles... quer dizer a tecnologia aprendida ... ou as próprias custas... ou então copiada ...tá? (EF-RJ-379:111)
Na verdade, dois desses casos não podem ser considerados como ou duplo, uma vez que não implicam uma escolha entre duas alternativas, pelo contrário, indicam uma inclusão, podendo assim o juntivo ser elidido e até mesmo substituído pela conjunção aditiva e. É, portanto, uma mera repetição do conector, ou seja, um caso de polissíndeto. Confira as ocorrências (22a) e (25) abaixo, parafraseada em (25a). (22) a. vocês terão assim...um pouco...da sociologia... da psicologia.. da ciência econômica...e mesmo da histó:ria (25) como é que o público se manifesta ou depois de terminado um ato no intervalo ou depois da peça?... no que diz respeito à peça em si? (DID-SP-234:109) (25) a. como é que o público se manifesta depois de terminado um ato no intervalo e depois da peça?... no que diz respeito à peça em si?
Na coordenação de termos, o traço caracterizador da disjunção, inclusivo e exclusivo, se apresenta distribuído da seguinte forma: 20 casos de rela419
ção semântica de inclusão, correspondendo a 38% do total de ocorrências e 33 de exclusão, numa porcentagem de 62%. O predomínio da disjunção exclusiva se deve ao grande número de asserções afirmativas factuais particularizantes que, como observado anteriormente, são, em geral, exclusivas, salvo algumas exceções. As ocorrências (26) e (8), esta repetida aqui, exemplificam relações de inclusão e exclusão, respectivamente. (26) quer dizer se com alguns estaleiros (o Japão) vai poder conservar o seu poder ( ) capacidade de fazer sua fabricação... eh... muito produtiva de... navios ou peças etc... (EF-RJ-379:289) (8)
há muita... discussão aí entre posições opostas de que se o Japão seria uma economia ou um país desenvolvido (EF-RJ-379:223)
A relação de coordenação pode ocorrer entre pares de itens de várias estruturas sintagmáticas, com a condição de que os termos coordenados sejam estruturalmente idênticos. Desse modo a coordenação pode ser entre sintagmas nominais, preposicionais ou adverbiais, conforme se observa, respectivamente em (26) acima, (6), repetida aqui, (27) e (28) abaixo. (6)
ela ela vai dizer que eu não posso aplicar, também, sem fazer uma análise ou aplicação (EF-POA-278:175)
(27) não vai levar em consideração... que você diga que é... desse jei:to... ou daquela maneira... (EF-RE-337:148) (28) essa taxa eventualmente ou anualmente...ela sofre me parece... que um reajuste (DID-RE-131:93)
Subfunções no interior do SN, como a de quantificador, podem também ocorrer como termos complexos coordenados: 420
(29) se compõe habitualmente de dois ou três causídios (DID-RE-131:167)
Uma questão discutível é a possibilidade de se tratar a coordenação de verbos e sintagmas verbais como coordenação de termos, como admitem autores como Halliday & Hasan (1992), Mateus et al. (1992 ) e Perini (1995) em orações do tipo de (21), repetida abaixo: (21) qual seRIA... o motivo pelo qual... eles ::... começaram... a pintar ou a esculpir... essas formas... (EF-SP-405:152)
Habitualmente dois diferentes predicados verbais coordenados representam dois estados de coisas, referentes, todavia, às mesmas entidades. Segundo essa análise, casos como esses devem ser tratados como coordenação de predicados verbais e o resultado do processo, como sentenças complexas. Há casos, entretanto, que parecem contradizer essa análise. Observe-se que (21) não permite a paráfrase contida em (21a) (21) a. qual seria o motivo pelo qual eles começaram a pintar essa formas ou qual seria o motivo pelo qual eles começaram a esculpir essas formas
Os dois verbos parecem, então, consistir num único conjunto coordenado que, na qualidade de oração relativa, aplica-se à entidade singular motivo. A sentença é uma pergunta retórica, comum no discurso didático-pedagógico que constitui os inquéritos de elocução formal do NURC e sua seqüência no texto conduz à inferência de que pintar e esculpir constituem um único conjunto de atividades, já que é provocado pelo mesmo motivo, conforme expõe o informante. Além disso, como já assinalado anteriormente, o escopo da interrogação recai no conjunto disjuntivo e não em cada um dos termos coordenados. Como demonstram os dados, em qualquer nível da estrutura sentencial pode ocorrer o processo de coordenação. Assim, mediante uma condição universal, denominada Condição do Constituinte Coordenado (CCC), defendida por Schachter (1977) e Dik (1989), como uma formalização da idéia de “equivalência estrutural” contida na definição comum de coordenação, os constituintes ligados por coordenação devem ter identidade de função sintática e de 421
função semântica. Caso os constituintes de uma coordenação não satisfizerem esses requisitos, mas mesmo assim ocorrerem numa estrutura que se pode interpretar somente como coordenada, a sentença resultante é anômala4, como (30-31). (30) ?Luís ou por Paulo quebrou o vaso. (31) ?Luís quebrou o vaso ou por Paulo.
Essas duas condições são exemplarmente aplicadas a todos os casos coletados de coordenação de termos, mas observamos que, na disjunção, diferentemente da conjunção, podem-se coordenar termos com diferentes funções semânticas como (32), com argumentos Agente e Força na posição de sujeito, possibilitando a interpretação de exclusividade, ou seja, ou um ou outro (abriu a porta). (32) Ou João ou o vento abriu a porta
Deve-se observar, no entanto, que tais funções semânticas apresentam um traço em comum, o de instigador da ação, que os coloca numa mesma categoria, o de argumento ativo, ou seja, desempenham o mesmo hiperpapel. A relação de exclusividade aponta para um mecanismo de modalização epistêmica, manifestado pelo uso do juntivo duplo, na medida em que o locutor manifesta incerteza sobre o estado de coisa verbalizado. Entretanto, nos demais casos, os dados demonstram que orações como (33) são automaticamente bloqueadas pela condição do constituinte coordenado. (33) ?João come freqüentemente ou com bom apetite.
Quanto às funções sintáticas que os termos complexos exercem na estrutura da oração, observa-se que a coordenação de termos ocorre predominantemente com a função sintática de complemento verbal, seja objeto direto, indireto ou complemento adverbial, com 16 ocorrências, equivalendo a 30,1%, conforme se observa respectivamente nos exemplos (34-35) e (18), aqui repetida. (34) eu falando assim na sociologia jurídica é que estuda... não é? essa realidade em adequação: com a lei ou a lei em adequação à realida:de... (EF-RE-337:165)
422
(35) se refere à despedida... ou à saída de um determinado... empregado (DID-RE-131:170) (18) são pessoas... distribuídas... nas: mais diferentes... assessorias... ou nos mais diferentes órgãos (DID-RE-131:160)
Houve um total de 9 adjuntos adverbiais coordenados (16,9%), 13 adjuntos adnominais (24,5%) e 9 termos na função de predicativo (16,9%), conforme se observa respectivamente nos exemplos (28), (36-37). (28) essa taxa eventualmente ou anualmente... ela sofre me parece... que um reajuste (DID-RE-131:93) (36) a minha avó era assim, ela, qualquer prato, podia se(r) o mais complexo, de gosto mais estranho ou mais exótico possível, ela detectava tempero por tempero (D2-POA-291:169) (37) essa ginecomastia pode ser... primitiva ou secundária (EF-SSA-49:57)
Termos na função de sujeito e de complemento nominal tiveram respetivamente 2 e 3 ocorrências, correspondendo a 3,7% e 5,6%, conforme se observa em (38-39). (38) dá pra passar um carro ou um caminhão (D2-SSA-98:225) (39) eles têm noção de atrasados ou não atrasados (D2-SP-360:295)
O levantamento acima mostra que a coordenação de termos é uma propriedade estrutural das línguas e, por isso, em princípio, pode ocorrer em qualquer nível da estruturação sintática. Nesse caso, os dados descritos, referentes 423
à distribuição da coordenação por função sintática, podem simplesmente refletir a maior ou menor freqüência relativa de termos em cada função. Há, entretanto, uma observação adicional que merece algum destaque. Quanto à posição, os termos coordenados apresentam-se pospostos em relação ao verbo, principalmente em função de complemento, posição ocupada pelos elementos de maior carga informacional. Do total de ocorrências, há apenas um caso em que os termos coordenados se posicionam antes do verbo. Essa posição se justifica porque, nesse caso, os termos desempenham função pragmática de Tema (cf. Dik, 1989), cuja posição é sempre no início da predicação. (40) para outros ou na minha opinião... não existe por tal... motivo ou tais motivos (EF-RE-337:113)
Os dados demonstram ainda que os termos coordenados por meio das conjunções alternativas se apresentam sempre na forma lexical (100% das ocorrências), ou seja, não há um único caso em que os elementos coordenados sejam dois pronomes, ou um nome e um pronome, como (41-42), perfeitamente previsíveis na língua. (41) Ela ou eu faremos o trabalho. (42) Ela ou Pedro fará o trabalho.
Geralmente não há elemento interferente entre os termos coordenados, pois, das 53 ocorrências, apenas 7 (13,2%) apresentam alguma cisão no par coordenado, como se verifica nas ocorrências abaixo: (23) informações sobre o mercado... sobre a as condições econômicas ... ou sobre digamos assim... questões referentes a determinados tipos de: de PREÇOS... (DID-RE-131:254) (24) era uma tecnologia.. assimilada de duas formas... primeiro... pela própria... ahn... pelo próprio desenvolvimento interno deles...quer dizer a tecnologia aprendida ... ou as próprias custas... ou então copiada ...tá? (EF-RJ-379:111)
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(43) de uma a duas colheres de Puro purê ou senão Ketchup (D2-POA-291:131) (44) eu me dou ao luxo de comer doces... sabe ou outras coisas (DID-RJ-328:52) (45) isso aí eu acho que esse ponto vocês... perceberam já num é? e finalmente... a terceira perspectiva a filosófica... ou como nós colocamos... filosofia do direito...o que estuda? (EF-RE-337:264)
A coordenação exige, como se viu, identidade sintática e semântica das unidades envolvidas, que se acham sempre no mesmo nível, sem que haja entre elas qualquer tipo de hierarquia estrutural. Tal fato nos induziria a pensar que, em razão disso, elas podem ser livremente permutáveis. No entanto, o que se observa pelos dados é que, na coordenação disjuntiva de termos, a inversão livre é limitada, ocorrendo em apenas 21 casos, correspondentes a 39,6%, como exemplificado em (46). (46) não importa se sociologia jurídica ou sociologia do direito (EF-RE-337:119)
Nossos dados mostram que a maioria das ocorrências, correspondentes a 60,3%, não permite inversão dos termos coordenados. Nesses casos, razões de natureza semântica e/ou discursiva, que comprometem a identidade total dos termos coordenados, torna-os obrigatoriamente assimétricos. Essas ocorrências obedecem a um princípio geral de motivação externa, que Haiman (1985) denomina princípio da iconicidade. Segundo esse princípio a estrutura da linguagem reflete a estrutura da realidade externa ou experiencial, podendo ser dividida em dois aspectos, a correspondência de partes, denominada isomorfismo e a correspondência de relações entre partes, denominada motivação. Os membros de relação disjuntiva que não permitem inversão manifestam casos de ordenação icônica, por motivação, conforme os casos seguintes: do mais definido para o menos definido, como (47); do menos para o mais 425
genérico, como (48); e finalmente, os casos mais transparentes de ordenação icônica, como (49-50). (47) das coisas menores assim...ou na escola ou numa faculdade (DID-SSA-231:358) (48) eu me dou ao luxo de comer doces... sabe? ou outras coisas (DID-RJ-328:87) (49) essa ginecomastia pode ser...primitiva ou secundária (EF-SSA-49:95) (50) eu estudei acho que uns três anos balé três ou quatro (DID-SP-234:278)
3.2 A disjunção entre orações É importante notar que ou tem sido freqüentemente tratada como operador lógico, e daí como a evidência mais fundamental para estruturação lógica inerente da linguagem natural. No entanto, ou compartilha um conjunto muito mais abrangente de funções do que a conjunção lógica de proposições. O levantamento no córpus aponta para um total de 24 ocorrências de orações coordenadas por meio da conjunção ou. Observa-se que a grande maioria dos casos constitui ocorrências de ou simples (83,3%); ou duplo aparece apenas em quatro casos, listados abaixo. (51) que eu cheguei em casa, vi televisão e depois vim pra cá pra, pra conversar ou dessa maneira ou ir prum cinema ou prum teatro, (D2-RJ-355:87) (52) prefiro ficar assi/a a aqui assistindo televisão ou dormindo ou lendo jornal (DID-SP-234:98) (12) é um controle muito natural ou você não tem filhos ou vai ser é castrado (EF-RJ-379:205)
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(53) ou aquele que foi... diz que foi ele que fez... tomou a/ (que) fez aquilo ou então e:: é o pai ou a mãe aquele que não estiver presente (D2-SP-360:265)
Tal como ocorre na disjunção entre termos, aqui também há casos de repetição pura e simples da conjução ou (polissíndeto), descaracterizando o ou duplo, já que não se percebe uma obrigatoriedade de escolha entre as duas alternativas implicadas nas ocorrências (51) e (52) acima. O disjuntivo ou pode perfeitamente ser elidido, conforme paráfrase em (51a) e (52a). O mesmo não se pode dizer de (12) e (53). (51) a. que eu cheguei em casa, vi televisão e depois vim pra cá pra, pra conversar dessa maneira, ir prum cinema, prum teatro (52) a. prefiro ficar assi/a a aqui assistindo televisão, dormindo, lendo jornal
Assim a incidência de ou duplo fica restrita a apenas duas ocorrências. Essa pouca incidência se explica pelo fato de seu uso se tornar redundante em construções que não admitem senão a interpretação exclusiva. Isso ocorre, por exemplo, com sentenças interrogativas em que cada um dos termos está no escopo da interrogação, sendo por isso normalmente destinadas a obter uma única resposta. É o que se observa em (14-17), repetidas aqui, e (54). (14) a senhora acha que há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo tipo? (DID-SP-234:228) (17) se a:: fruta eh se eles iam conseguir a fruta ou não... (EF-SP-405:120) (54) depende se essa definição é uma sim ples re, devolução, repetição daquilo que o professor disse ou se essa definição tem um caráter de elaboração própria, então, aí, nós estaremos em nível bem mais complexo (EF-POA-278:59)
Quanto ao valor exclusivo e inclusivo, observa-se uma equiparação, já que obtivemos exatamente 12 ocorrências de uso inclusivo e 12, de exclusivo, correspondendo cada um a 50% do total dos casos. 427
O levantamento mostrou ainda que 83,3% das ocorrências (20 casos) apresentam sujeitos idênticos nas duas orações coordenadas, e apenas 4 casos (16,6%), exibem sujeitos diferentes, como (60). (60) na medida... em que acabava a caça do lugar OU (que) em virtude da da época do ano no inverno por exemplo... os animais iam hibernar outros... imigravam para lugares mais quentes eles também precisavam acompanhar... o a migração da caça se não eles iam ficar sem comer... (EF-SP-405:71)
A identidade de sujeitos acarreta, obviamente, uma grande porcentagem (66,6%) de sujeitos nulos, representados por anáfora zero, e anáforas pronominais na segunda oração coordenada, contra apenas 25% de sujeitos lexicais, conforme se observa respectivamente em (12) e (61) abaixo. Dois casos dizem respeito a sujeitos inexistentes, ou seja, sujeito de infinitivo, conforme exemplificado em (62). (12) é um controle muito natural ou você não tem filhos ou vai ser é castrado (EF-RJ-379:205) (61) a senhora acha que houve alguma evolução ou:: ou que tenha regredido o cinema atualmente? (DID-SP-234:359) (62) criar uma pessoa... ou criar uma imagem... é mais ou menos a mesma coisa (EF-SP-405:190)
Há um único caso em que o sujeito da segunda oração é pronominal, apesar de não idêntico ao da primeira oração, como (14) (repetida aqui), e três casos em que, embora idênticos, os sujeitos aparecem na forma lexical, como exemplificada em (19), também repetida. (14) a senhora acha que há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo tipo? (DID-SP-234:228)
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(19) é através exatamente... desse fator... de união: e de integração... que os indivíduos se AJUSTAM... ou que os indivíduos... pro eh: procuram levar ... a cabo... levar adiante... suas melhores... ou suas: mais justas... reinvidicações (DID-RE-131:68)
Afirma R. Lakoff (1971) que o emprego da conjunção ou pode causar uma relação sintática simétrica ou assimétrica entre os membros coordenados. No primeiro caso, as duas alternativas são mutuamente exclusivas mas equivalentes e independentes uma da outra, permitindo assim a mudança de ordem; já no uso assimétrico, a segunda alternativa depende da primeira, por isso a inversão é bloqueada. Assim a ordem de disjuntos assimétricos reflete a prioridade de uma oração sobre a outra, ou a dependência do segundo em relação ao primeiro: o conjunto primário, independente, precede o secundário, dependente. Em opções independentes, a ordenação dos disjuntos é irrelevante. Para duas opções independentes, das quais pelo menos uma é verdadeira, seria tão razoável dizer “se não B, então A”, quanto dizer “Se não A, então B”. A ordenação livre das orações-ou reflete a falta de prioridade de uma opção sobre a outra. Se, contudo, as duas opções não são independentes uma da outra, então há a interferência de outro fator. Ou ‘assimétrico’ reflete a dependência de uma das alternativas sobre a outra. Os dois membros da disjunção não precisam ainda ser mutuamente exclusivos em si mesmos, isto é, quando se diz (63), não significa que os dois eventos descritos não poderiam ambos ocorrer, mas implica que há um relacionamento unidirecional entre eles. (63) Todo fim de semestre, João envia um capítulo pronto de sua tese ou no dia seguinte seu orientador liga reclamando.
Considerando “Todo fim de semestre João envia um capítulo pronto de sua tese” como A, e “seu orientador liga reclamando” como B, pode-se argumentar usando somente a coordenação alternativa assimétrica “se não A, então B”. Sabe-se, na verdade, que, no mundo real, A não somente é temporalmente anterior, mas realmente exerce uma influência causal em B, e que o contrário não pode ser verdadeiro: de modo algum a reclamação subseqüente do orientador influencia o envio prévio de um capítulo pronto da tese por José. 429
Como vimos, a ordem icônica de palavras pode explicar a maioria das diferenças entre disjunção simétrica e assimétrica. Com o juntivo ou, a assimetria linear da ordem de palavras está aberta à interpretação icônica, já que não há uma relação semântica assimétrica inerente entre os dois membros da disjunção. O dados mostram que prevalece, no córpus, o uso simétrico, como exemplificado em (52), repetida aqui, já que a maioria das ocorrências (18 casos correspondentes a 75%) permite inversão de ordem. (52) prefiro ficar assi/a a aqui assistindo televisão ou dormindo ou lendo jornal (DID-SP-234:98)
Há, no entanto, casos (6 ocorrências, correspondentes a 25%) que não permitem a inversão dos elementos coordenados. Em alguns a assimetria se deve a uma relação lógica de causa/conseqüência estabelecida entre as duas asserções: a segunda se apresenta como conseqüência da primeira, conforme se observa em (12) acima. A impossibilidade de inversão se deve também a outro fator de assimetria que é a prioridade de uma oração sobre a outra. No córpus analisado encontramos ocorrências constituídas de uma asserção afirmativa seguida de uma negativa. Ora a afirmação tem prioridade lógica sobre a negação: primeiramente se afirma algo para depois negá-lo. Assim, temos assimetria, e conseqüentemente ordem obrigatória, em (5), repetida abaixo, não sendo possível a paráfrase em (5a). (5) para então... ele dizer... se há malignidade ou não nesse nódulo (EF-SSA-49:90) (5) a. ?para então... ele dizer...se não há malignidade nesse nódulo ou há.
Observamos haver identidade percentual entre a incidência de construções subordinadas e a de pares com mudança potencial de ordem, de modo que dos 18 casos com membros permutáveis, 14, equivalentes a 82,3%, são orações subordinadas, conforme exemplo (64). (64) toda aquela assistência médica hospitalar... que os sindicatos vem habitualmente cumprindo ou que vem/ os sindicatos se propõem a fazer... (DID-RE-131:250)
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No entanto não se exclui a possibilidade de ocorrerem, na condição de subordinação, duas orações coordenadas que não admitem mudança potencial de ordem, como se observa em (5) acima. Casos como esses representam uma incidência percentual de apenas 11,7% (2 ocorrências) do total de orações subordinadas (17 casos), que são coordenadas entre si. As orações subordinadas se comportam como termos e nesse caso exercem funções sintáticas diversas no predicado de nível superior, tanto como argumentos quanto como satélites. Observem-se os exemplos abaixo de encaixamento. (4)
mas é preciso que eu aplique, que eu utilize os sinais de trânsito na hora certa ou que eu tenha a habilidade de passar mais rápido pelo guardinha (EF-POA-278: 197)
(54) a categoria do conhecimento (inserção nossa) depende se essa definição é uma definição simples, re, devolução, repetição daquilo que o professor disse ou se essa definição tem um caráter de elaboração própria (EF-POA-278:59)
(20) não negamos nunca atender a um doente ou outro que chegue mesmo fora do horário ou que seja extra (DID-SSA-231:226)
Observe-se, agora, a inserção de orações coordenadas na posição de satélites de diversas circunstâncias: (52) prefiro ficar assi/ a a aqui assistindo televisão ou dormindo ou lendo jornal (DID-SP-234:98) (60) na medida... em que acabava a caça do lugar OU (que) em virtude da da época do ano no inverno por exemplo... os animais iam hibernar outros... imigravam para lugares mais quentes eles precisavam acompanhar... o a migração da caça se não eles iam ficar sem comer... (EF-SP-405:71)
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Com relação às orações independentes (7 casos), constata-se que a inversão da ordem é irrelevante já que 3 ocorrências a permitem e 4 não, conforme exemplificado em (53) e (65) respectivamente. (53) ou aquele que foi... diz que foi ele que fez... tomou a/ (que) fez aquilo ou então e:: é o pai ou a mãe aquele que não estiver presente (D2-SP-360:265) (65) elas são:... complementa:res ou não: Eduardo? (EF-RE-337:79)
Segundo R. Lakoff (1971), é necessário que os membros coordenados pelos juntivos e, ou e mas tenham um tópico comum. Na maioria das sentenças que envolvem disjunção, seja no nível da coordenação de termos, seja no nível da coordenação de orações, cumpre-se a condição da necessidade de tópico comum em virtude de uma manifestação explícita desse tipo de identidade na superfície da sentença e, sem dúvida, tem muito a ver com isso a regra de identidade sintática e semântica dos constituintes coordenados de Schachter, anteriormente mencionada. Outras seleções, como repetição de estrutura por anáfora zero ou pronominal, também constituem mecanismos relacionados com a necessidade de um tópico comum, geralmente inscrito na representação superficial da sentença. Quando não manifesto explicitamente, o tópico comum pode derivarse de combinações mais ou menos complexas de pressuposições e deduções, que explicam, então, a ocorrência de (66). Esta, por sua vez, não representa uma disjunção entre elementos manifestos, ligados por ou. A sua paráfrase, contida em (66a), permite obter o tópico comum por pressuposição e, desse modo, a sentença (66) não viola a condição da identidade tópica. (66)
João acabou a tese ou você não sabe?
(66) a. Você pode me responder se o João terminou a tese, ou, porque você não sabe, você não pode me responder?
Sweetser (1991), na realidade, reinterpreta a condição de identidade tópica entre os membros da disjunção e os casos de simetria e assimetria de R. Lakoff, mostrando que o juntivo ou atua tanto no nível do conteúdo, quanto no 432
epistêmico ou mesmo no do ato de fala, rotulados de “disjunções retóricas” por Lakoff. No domínio do conteúdo, empregar ou indica que um dos disjuntos deve descrever o genuíno estado de coisas no mundo real; repete-se, portanto, dois estados de coisa. Assim, a interpretação de (8), (8)
há muita... discussão aí entre posições opostas de que se o Japão seria uma economia ou um país desenvolvido. (EF-RJ-379:223)
como ‘discute-se muito sobre’, ou “o Japão é uma economia desenvolvida” ou “o Japão é um país desenvolvido”, descreve a situação verdadeiramente. O mesmo ocorre em (12), (12) é um controle muito natural ou você não tem filhos ou vai ser é castrado (EF-RJ-379:205)
cuja interpretação de ‘ou se evita filhos por algum meio anticonceptivo’ ‘ou se é castrado’, verdadeiramente descreve o futuro estado de coisas. A relação entre estados de coisa é o único emprego de ou tratado sistematicamente pelos estudiosos e gramáticos, que ignoram as outras funções, como a de juntor de inferências (uso epistêmico) e de atos de fala (uso ilocucionário). Cabe ressaltar que, no córpus analisado, só se registraram casos de coordenação no domínio do conteúdo. Observe-se agora a sentença contida em (67). (67) O orientador de João vai ligar amanhã reclamando, ou (então) ele já enviou um capítulo pronto de sua tese.
A interpretação provável de (67) é que os dois membros da disjunção são conclusões epistêmicas tiradas da evidência disponível e não como estados alternativos possíveis do mundo real. Seria difícil imaginar uma leitura de conteúdo inteligível para (67): as duas orações não expressam alternativas possíveis do mundo real, mas alternativas epistêmicas normais. Presume-se que uma predição proposta sobre o comportamento futuro de alguém está baseada em alguma inferência do que de fato ocorre habitualmente. Contudo, 433
desde que não oferecemos usualmente predições com a intenção de que sejam consideradas incorretas (pelas razões de Grice, 1975), o falante não pode, cooperativamente, estar oferecendo alternativas genuínas. O que está em discussão em (67) não são alternativas do mundo real, mas somente alternativas epistêmicas e uma não tem prioridade definida sobre a outra (cf. Sweetser, op. cit.). A mesma interpretação epistêmica se aplica a (68) que, diferentemente de (67), contém orações disjuntas em relação simétrica. (68) A.- João entregou a tese no prazo? B. - A gráfica atrasou a encadernação ou ele não fez as correções a tempo.
Observe, agora, a sentença (69) (69) Entregue a tese no prazo ou você perde a bolsa.
Na disjunção assimétrica acima, o segundo membro da coordenação dá suporte para o enunciado expresso no primeiro membro, de modo que o receptor é obrigado a escolher entre seguir a ordem dada ou ver realizar-se a segunda força ilucionária, que é um ato de ameaça. Como presumivelmente o receptor desejará afastar a segunda alternativa, o efeito da disjunção é o de uma ordem reforçada. A interpretação da disjunção como ato de fala representa ordens, sugestões e perguntas, como se reinterpreta, nos termos de Sweetser, o exemplo acima contido em (69). Note-se, ainda, que é impossível estender a interpretação de Charaudeau (1992), válida para a disjunção de estados de coisas, para a disjunção nos níveis epistêmico e ilocucionário. Como vimos, na interpretação desse autor, a disjunção pressupõe a existência de uma terceira asserção mais geral, posta ou pressuposta. No caso da disjunção epistêmica, a conclusão que se deduz poderia representar essa asserção, mas no caso da disjunção no nível ilocucionário, não parece haver uma terceira asserção, porque, nesse nível, não há realmente relação disjuntiva.
4. Usos adicionais da disjunção Os dados evidenciaram usos da conjunção ou, que não são abordados na literatura sobre o assunto e que dificilmente podem ser categorizados como 434
coordenação. Alguns representam idiomatismos, ou seja, expressões prontas do léxico, como se verifica nos exemplos (70-71). Nessas expressões, o conjunto todo assume o papel de um modalizador avaliativo. (70) fatias mais ou menos de um centímetro (D2-POA-291:139) (71) pode chama(r) de comida exótica, até, inclusive as bebidas, um troço muito, muito interessante sabe, claro que pruma vez ou outra, porque tinha uns temperos umas pimentas ali que ah! não era sopa (D2-POA-291:198)
Outros casos indicam um uso especificamente discursivo, fora do âmbito da coordenação propriamente dita. Todos os casos detectados no córpus se referem ao exercício de uma função de retificação. A retificação ocorre indiferentemente ao tipo de inquérito, embora predomine em elocuções formais, certamente em razão de um grau maior de monitoramento sociolingüístico do discurso. Essa retificação pode indicar uma correção do termo anterior emitido equivocadamente como em (72) e (73). (72) num posso entretanto responder essa questão... porque foge um pouco ao meu setor sei entretanto que as eleições... ou que o período presidencial... é: mantido... durante três anos... (DID-RE-131:234) (73) já que ele... é... um elemento que preside... o órgão tido como executivo... ou seja o órgão dirigente... o órgão executor... aquele que vai realmente PRESTAR... ou que vai TOMAR ou elaborar todas aquelas decisões e fazer/pôr em andamento (DID-RE-131:144)
A retificação parece indicar ainda a intenção do falante de ser mais fiel à informação que deseja passar para o ouvinte ou mais didático, como demonstra (74). 435
(74) a preocupação central... vai ser em torno da caça... então vai.. nós vamos ver isso refletido desde os temas OU:: se a gente se reportar ao problema da análise iconográfica... DES::de ... o:: tema pré-iconográfico... que nós vamos reconhecer... até... ao iconográfico propriamente ainda não existe... (EF-SP-405:124)
Há casos em que o termo anterior é substituído por um sinônimo que parece ser mais adequado àquela situação discursiva, conforme se pode observar em (45), repetida aqui, e (75). (45) isso aí eu acho que esse ponto vocês... perceberam já num é? e finalmente... a terceira perspectiva a filosófica... ou como nós colocamos... filosofia do direito...o que estuda? (EF-RE-337:264) (75) não não vamos pensar isso... porque então nós estamos... numa faixa diferente... não é mais a faixa da ciência DO normativo... mas ciência normativa... que é a ética ou como disse João a própria domi dogmática jurídica... não é se enquadra... muito mais nesse tipo de... ciência (EF-RE-337:316)
Muitas vezes a repetição tem como função simplesmente refletir, no registro verbal, a preocupação do falante com as circunstâncias vigentes de interação social, preocupação que, se excessiva, pode conduzir a uma certa verbosidade, já que boa parte das expressões retificadores nada acrescenta ao sentido da expressão retificada (cf. Labov, 1970). Observem-se, particularmente, (76-77) em que o termo retificador é apenas uma expressão mais formal que a retificada: (76) e há pouco tempo tivemos inclusive um conclave... dos mais importantes... que se verificou... no Rio de Janeiro...onde... depois... ou após muitos anos... nós tivemos o imenso prazer... de observar um diálogo.... cada vez mais crescente entre os presidentes dos diversos sindicatos... que estava presentes àquela reunião àquele conclave... com o senhor ministro do trabalho Arnaldo Prieto... (DID-RE-131:179)
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(77) para se tornar realmente uma ciência a sociologia jurídica... que é através de métodos e técnicas de pesquisa... empírico... ou seja... observando... no local... ou in loco a realidade social (EF-RE-337: 134)
Exemplo curioso é o que ocorre em (78), uma série ordenada de retificação que acrescenta cada vez menor grau de formalidade e que parece ser uma espécie de indício de erudição: (78) mostra num é? nesse trechinho... ou nessa citação... que os três... saberes ou três perspectivas ou três linhas ou três maneiras... de se olhar o direito... mostra que... todas três... na realidade... definem... classificam... e têm proposições...sobre as relações... pertinentes ao direito... (EF-RE-337:179)
Outros casos parecem representar de fato uma retificação discursiva, que obedece a uma orientação icônica: substituem-se termos genéricos, ou mesmo mais vagos, por termos mais particularizantes ou mais específicos. Nesses casos a retificação tem a função de orientar o interlocutor no sentido de que o falante pretende fazer uma observação do tipo “para ser mais específico”. Observem-se os seguintes exemplos: (79) quando o indivíduo ou quando o aluno for capaz (EF-POA-278:135) (80) as cooperativas também são... entidades... realmente bastante... significativas... dentro de uma conjuntura... ou dentro da conjuntura... nacional (DID-RE-131:60)
Há também o processo de retificação que, ao contrário da direção hiponímica da relação entre os termos, observada nos exemplos acima, o que se repropõe é uma direção generalizante, mediante o uso de operadores de definitude e número. (81) ah... juntas numa determinada refeição ou nas refeições (D2-POA-291:172)
437
(82) eu coloco correto... porque você disse PARA ALGUNS auto:res... ou alguns estudiosos... existe diferença... mas para outros ou na minha opinião... não existe por tal... motivo ou tais motivos... (EF-RE-337:114)
5. Considerações finais O juntivo ou do português deriva diretamente da forma latina aut, originalmente o termo não-marcado de uma oposição com vel, uma vez que, enquanto o primeiro ligava membros mediante uma relação indiferentemente exclusiva ou inclusiva, o segundo, o termo marcado da oposição, ligava unicamente membros alternativos em relação de inclusão. Apesar da redução de itens funcionais, em virtude do desaparecimento de vel, concluímos que, na gramática do português, sobrevive o sistema funcional. Nesse caso, o recurso formal para a manutenção das relações semânticas de inclusão e de exclusão, de que lançou mão o português, é uma reduplicação do juntivo ou, termo marcado, em oposição à forma simples, empregada indiferentemente para ambas as situações. Pode-se dizer, então que, na ausência de vel, a gramática do português compensou a perda de informação envolvida na oposição latina com uma mudança estrutural parcial dos recursos formais, preservando, funcionalmente, as distinções semânticas básicas. O estatuto polissêmico da forma simples explica sua maior incidência e um uso muito mais generalizado no córpus examinado que abrange os casos em que a forma dupla poderia ser empregada. A baixa freqüência da forma dupla do juntivo justificou-se plenamente no fato de que o contexto fornece a base para um uso não ambíguo da relação de exclusividade, de modo a tornarse redundante o seu emprego. Disso se conclui que o uso da forma dupla fica circunscrita somente aos casos absolutamente ambíguos de disjunção, em relação ao eixo semântico inclusão-exclusão. Uma característica que o juntivo alternativo compartilha com outros conectores coordenativos, principalmente aditivos e adversativos, é uma condição de equivalência estrutural entre partes dos membros coordenados, que os dados analisados aqui cumprem exemplarmente. Tal exigência, representada na Condição do Constituinte Coordenado, postulada por Schachter (1977), formaliza-se na identidade simultânea de função semântica e de função sintática. Na coordenação de orações, em que os membros disjuntos auxiliam na 438
organização da estrutura textual, nem sempre a identidade está explícita na superfície sentencial, caso em que a exigência de um tópico comum (R. Lakoff, 1971) se cumpre mediante combinações de pressuposições e deduções. Outra característica que o juntivo alternativo compartilha com os aditivos e adversativos é que as relações que estabelecem entre termos e orações podem ser simétricas ou assimétricas, dependendo da possibilidade de inversão potencial da ordem dos elementos em disjunção. Já nesse âmbito, a relação de dependência causal afasta o significado da disjunção dos limites impostos pela natureza de conexão estrita de um operador lógico. Os casos de disjunção a que se impõe uma relação formal assimétrica entre os membros coordenados obedecem ao princípio geral das convenções icônicas da ordem de palavras. No nível da coordenação de termos, alguma ordenação perceptual das entidades do mundo real representadas no enunciado implica ordenação linear correspondente. No nível de orações, a ordem enunciada é paralela à ordem dos eventos descritos, inclusive em termos de causalidade, na medida em que eventos precedentes são a causa de eventos subseqüentes, mas não o contrário. Quando se tratar de ordenação de premissas lógicas, não se obedece a nenhum princípio temporal, mas algum fato precede logicamente o outro. O fato de a prioridade epistêmica refletir-se na ordenação icônica das palavras, do mesmo modo que a prioridade temporal dos eventos, na relação de disjunção, justifica-se, segundo Sweetser (1991) na modelação difusa da expressão lingüística do mundo interno com base na expressão do mundo “real” externo. Embora o juntivo ou possa ser analisado como um operador lógico, as funções que exerce no âmbito funcional-discursivo ultrapassa as meramente funcional-veritativas, inerentes ao domínio lógico: estende-se desde o domínio do conteúdo, em que liga dois estados de coisas, ao domínio do mundo lógico-epistêmico e do mundo dos atos de fala. O sentido básico que é possível depreender dos casos analisados é não apenas juntar alternativas, mas também preencher todas as opções possíveis, de modo que uma delas, ou uma asserção mais geral de que delas decorra, tenha que ser a alternativa correta. Assim, em contraste com o operador lógico, o juntivo ou veicula a expectativa entre os interlocutores de que somente uma das opções expressas será de fato a correta. Esse princípio decorre do fato de que seria, no mínimo, estranho não estabelecer uma relação de conjunção, se o falante sabe que as duas possibilidades expressas co-ocorrem, ou apresentar uma única alternati439
va, se sabe que é, de fato, a única possível. As máximas de Grice requerem que sejamos tão informativos quanto necessário. É por isso que enunciar possibilidades disjuntas evoca a implicatura de que o emissor realmente não apenas desconhece a possibilidade correta, como também oferece ao interlocutor todas as alternativas possíveis (cf. Sweetser, 1991). Além dessa diferença básica entre o valor lingüístico e o valor estritamente lógico da relação de disjunção, os dados permitem observar o uso ambíguo do juntivo ou, a partir de sua atuação nos níveis do conteúdo, epistêmico e ilocucionário. Desse modo, palavras funcionais ou gramaticais, como ou, freqüentemente analisadas como operadores lógicos, desprovidos de conteúdo, atuam simultânea e analogamente em diferentes domínios do sistema lingüístico e, ainda que mantenham o conteúdo básico alternativo, exercem diferentes funções discursivas, em cada nível de atuação.
NOTAS 1
Este trabalho é uma versão modificada do estudo intitulado As conjunções aditivas e alternativas, apresentado em co-autoria com Roberto Gomes Camacho, no IX Seminário do Projeto de Gramática do Português Falado, realizado em dezembro/95, em Campos do Jordão-SP. Após o debate, por sugestão do relator, Luiz Carlos Travaglia, os autores decidiram separar os dois processos de coordenação em dois diferentes trabalhos, ficando sob minha responsabilidade o estudo da disjunção.
2
Não houve esse tipo de ocorrência no córpus analisado.
3
Halliday & Hasan opõem essa função estrutural, que denominam estrutural ou coordenado, à função propriamente coesiva dos conectivos, que denominam aditivo ou coesivo. Como os mecanimos de coesão se manifestam mediante o uso de marcas formais de caráter linear na estruturação seqüencial do texto, é hoje um pouco difícil concordar com a separação que os termos implicam.
4
Investigando a relação entre a CCC e a Condição da Estrutura Coordenada (Coordinate Structure Constraint) de Ross (1967), Schachter (1977) mostra que a condição que propõe pode dar conta de todos os casos de conjunção agramatical que a regra de Ross pretende explicar, embora o reverso não seja verdadeiro: certos fatos residuais que permaneceram sem explicação adequada na proposta de Ross, assim como exceções a sua regra, encontram abrigo natural na CCC.
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441
OS ENUNCIADOS DE TEMPO NO PORTUGUÊS FALADO NO BRASIL
Maria Luiza Braga (UNICAMP-CNPq) Pesquisador auxiliar: Ronald Beline Mendes
A abordagem gramatical tradicional inclui as orações de tempo, à semelhança das demais adverbiais, entre as subordinadas. Os gramáticos mais renomados explicam o porquê do rótulo ‘adverbial’ e referem-se a certas propriedades desse tipo de oração. A título de exemplo, citem-se Bechara (1973) e Rocha Lima (1972). O primeiro discorre sobre o modo como elas se articulam com a oração principal, distinguindo as justapostas das conectivas; o segundo enfatiza a forma das adverbiais, diferenciando as desenvolvidas das reduzidas. No que tange ao critério de classificação dos diferentes tipos de adverbial, baseiam-se no conectivo subordinativo que as introduz, por vezes, remetendo a critérios semânticos. A caracterização das orações de tempo não escapa a essa maneira de ver os fatos lingüísticos e salienta suas propriedades formais e funcionais como se pode observar nas citações de Bechara e Celso Cunha, abaixo “É papel da oração temporal trazer à cena um acontecimento ocorrido antes de outro, depois de outro ou ao mesmo tempo que outro. Para cada um desses aspectos possui a oração temporal, quando desenvolvida, conjunções apropriadas.” (Rocha Lima, 1972: 274-283) “(as orações subordinadas adverbiais) funcionam como adjunto adverbial de outras orações e vêm normalmente introduzidas por uma das conjunções subordinativas.... classificam-se em temporais, se a conjunção é subordinativa temporal.” (Celso Cunha, 1970: 409-412)
Matthiessen e Thompson (1988) questionam classificações semelhantes a essas. Alegam que as chamadas subordinadas adverbiais, diferentemente das subordinadas encaixadas, que funcionam como um constituinte da oração matriz, não se comportam como um advérbio ou adjunto de sua oração ‘principal’. Segundo eles, essas orações não podem ser substituídas por um SPREP que preserve o mesmo sentido: “When we replace one of them with a prepositional phrase in context, trying to preserve part of the meaning, we will typically find that the complement of the preposition is a nominalization, not an ordinary noun, and this is quite significant.” (1988: 280)
Além do mais, continuam, as chamadas adverbiais podem se combinar ou com uma única oração ou com uma seqüência de orações. No primeiro caso, ainda se poderia falar em uma função de advérbio, mas não no segundo: “When one clause combines with just one other clause, it may seem to function as an adverbial, although it does not. But when once clause combines with a combination of clauses, it is quite clear that there is no single clause it could be an embedded constituent part of.” (1988: 280)
Tais características, na opinião deles, justificam uma distinção entre orações encaixadas, por um lado, e combinação de cláusulas (clause combining ou clause complex na terminologia de Halliday (1985)). Reiteram Halliday (1985) para quem as orações deixam-se analisar segundo o grau e modo de interdependência. Quanto ao grau de interdependência, as chamadas adverbiais são classificadas como estratégias de hipotaxe ou de parataxe; já quanto ao tipo de interdependência, podem ser caracterizadas como projeção ou expansão. A última categoria, expansão, por sua vez, compreende outras três – elaboração, extensão e realce (enhancing). As orações de tempo que nos interessam são enquadradas na categoria hipotaxe de realce (enhancing hypotaxis) que é assim conceituada por Matthiessen e Thompson: “enhancing hypotaxis refers to hypotatic clause combining involving some kind of circumstancial relation like condition, reason, purpose and other kinds of cause, time, space, and means: one clause enhances another clause circumstantially.” (1988: 283-284)
444
Examinamos os dados do português oral à luz dos argumentos apresentados por Matthiessen e Thompson (1988) e verificamos que eles se sustentam parcialmente. Com efeito, os SPREPs que parafraseiam as orações de tempo constituem, na maioria das vezes, uma nominalização como mostra o exemplos abaixo, nos quais as orações “quando nós passamos” e “quando nós voltamos da Argentina” podem ser substituídas, respectivamente, por “quando da nossa passagem” e “na nossa volta da Argentina”. (1) Loc: ...E a gente gostou tanto que ficava todo dia jogando. Lembro um dia que nós passamos no hotel, mas a gente não jogava dinheiro nada, só assim na brincadeira... então passou, umas velha(s), umas senhoras de mais idade, que nos viram sempre jogando, quando nós passamos elas disseram assim: essas viciadas (DID-POA, 045, p.10)
Loc: ... fomos... fomos a/viemos... quando nós voltamos da Argentina nós fizemos pernoite só em Curitiba. (DID-RJ, 328, p.141)
Quanto ao segundo argumento, vale mencionar que em português também encontramos ocorrências em que uma oração de tempo se combinava não com uma outra oração mas com uma seqüência de orações, como ilustra (2), abaixo: (2) Loc.:.. eu adorei o tal do acarajé...porque quando serviram aqui de uma vez... eu vi e não gostei. (DID-RJ, 328, p.139)
Em outras ocorrências inverteu-se este padrão, isto é, uma seqüência de orações de tempo vincula-se a apenas uma oração núcleo, como exemplifica o trecho seguinte, uma clivada. Observe que a conjunção da segunda oração de tempo não vem explicitada, cabendo ao ouvinte recuperá-la: 445
(3) Loc: ...foi buscar umas galinha e trouxe tudo dentro de um saco. Encheu dois saco de galinha. Quando ele chegou em casa e começou a tirar aquelas galinha, era só galinha morta que saia (DID-POA, 045, p.19-20)
Há ainda uma terceira opção que consiste na vinculação de duas seqüências de orações, uma delas consistindo de orações de tempo: (4) isso a gente, nós já explicamos em classe... porque quando ele vai aferir ou vai investigar, experimentar o homem... não é (interessa) o que o homem diz... do experimento do laboratório... mas sim o que o homem está realmente pensando...porque você pode estar pensando uma coisa e dizendo outra. (EF-REC, 337, p.06)
Estas diferentes possibilidades de vinculação, embora relevantes, não serão aprofundadas aqui.1 Vale ressaltar, todavia, que corroboram a posição sustentada por Matthiessen e Thompson (op. cit.), e de Hopper e Traugott (1993), qual seja, a de que as chamadas adverbiais constituem um tipo distinto tanto das encaixadas quanto das coordenadas. Por aceitarmos tal posição e para sinalizarmos a diferença entre os vários processos de combinação, a partir de agora, fundamentando-nos em Halliday (1985), Matthiessen e Thompson (1988) e Hopper e Traugott (1993), passamos a nos referir a elas como orações hipotáticas de realce. Feitas estas ponderações, passamos a considerar algumas propriedades dos enunciados de tempo.
1. Algumas propriedades formais das orações de tempo 1.1 Os conectivos que introduzem as orações de tempo No discurso oral do português, as orações de tempo são introduzidas principalmente por quando, venham as orações em pauta antepostas à oração núcleo, ordem não-marcada, ou não. Nas amostras de fala em análise, encontramos 2 (duas) ocorrências que fogem a esse padrão: 1(uma) de logo que e 1 446
(uma) de enquanto, que, juntas, representam 2,5% dos dados (2/78). Aparentemente foram motivadas pela necessidade de precisar a informação codificada pela oração de tempo: enquanto, em (5), remete à duração mais prolongada e simultânea do estado de coisas codificado pela satélite, enquanto a locução logo que, em (6), sinaliza a estreita proximidade temporal dos dois eventos, proximidade que se diluiria caso essa locução fosse substituída por quando. (5) Loc: .. A gente andava acho que mais era dentro dágua, porque criança eu sei que me lembro de pequena e as minha(s) também, enquanto são pequenas, só que(r) (es)ta(r) dentro d’água, né? (DID-POA, 045, p.17-18)
(6) Loc: AI achei fabuloso... cenário de Hair uma ma:: Maravilha faz tempo que eu assisti logo que começou eu fui... achei um cenário uma coisa ah Ótima (DID-SP, 281, p.105)
Diferentemente da escrita (Crocci de Souza, 1996), portanto, no discurso oral que estamos examinando, qualquer que seja o grau de formalidade, os falantes pouco exploram o rol de conjunções e locuções conjuntivas mais ‘apropriadas’, no dizer de Rocha Lima (1972), isto é, daquelas capazes de circunscrever mais precisamente o tempo do estado de coisas expresso pela oração núcleo. As leituras que se superpõem à delimitação temporal parecem decorrer de recursos outros, como ilutram (1), acima, e (7) abaixo: (7) Loc: ... a Laizinha, ela vai na praia eu acho que durante o veraneio todo, com a possibilidade inclusive de comer peixe fresco, come quando eu levo (D2-POA, 291, p.22)
Os trechos acima mostram que as acepções temporais dependem mais crucialmente dos traços linguísticos da sentença em si ou do contexto maior em que se inserem. O enunciado (1) apresenta as características típicas das narrativas de experiência pessoal: orações com verbos no aspecto perfectivo, dispostas numa seqüência temporal que, presumivelmente, reproduz a ordem 447
dos acontecimento, como eles ocorreram ou teriam ocorrido (Labov, 1972). Já em (8), é o aspecto imperfectivo que garante a leitura de recorrência e, principalmente, de condição: come, sempre que eu levo, se eu levo. Exemplos como os dois últimos são paradigmáticos das demais ocorrências, que podem ser distribuídas em dois subgrupos, segundo seu caráter factual/real ou eventual/potencial. Tal distinção, relevante semântica e pragmaticamente, não se faz acompanhar de diferenças no que diz respeito à realização do sujeito e ordem, como mostra Braga (1998), razão porque será ignorada no decorrer desse trabalho.
1.2 A realização do sujeito nas orações de tempo Visando a caracterizar as orações de tempo em relação ao sujeito, distribuímo-las em três subgrupos conforme ele tivesse sido codificado por um SN cujo núcleo era um substantivo (SN pleno, daqui para frente), um pronome anafórico, ou não viesse realizado foneticamente (zero daqui para frente)2. As percentagens obtidas revelaram que o sujeito das orações de tempo tende a ser realizado foneticamente, as ocorrências de zero representando apenas 25,0% (15/61)3 dos dados. Buscando explicar tal distribuição, correlacionamos a variável em pauta com duas outras – posição da oração de tempo e identidade entre sujeito da oração de tempo e núcleo, variáveis que lidam, cada uma a seu modo, com a informação codificada pelo sujeito e com o tratamento dispensado a ela na sentença de tempo. Os resultados obtidos para esses cruzamentos encontram-se na tabela 1.
posição
sujeito identidade
anaf. pron. No %
SN No
pleno %
anaf. No
zero %
sim
12
52,0
5
22,0
6
26,0
não
11
48,0
6
26,0
6
26,0
sim
5
63,0
3
37,0
não
5
71,0
anteposição
posposição
total
33
2 13
29,0 15
Tabela 1: Tipo de sujeito, posição da oração e identidade entre sujeito das orações núcleo e hipotática
448
A tabela acima mostra que o sujeito das orações de tempo tende a ser codificado, majoritariamente, por anáfora pronominal, tendência que se fortalece nas orações pospostas que não compartilham o sujeito com a núcleo. As percentagens para SNs plenos e Zeros são idênticas, ou quase idênticas, e sugerem que a opção por uma ou outra codificação não é sensível ao traço identidade do sujeito, em se tratando de orações antepostas; em se tratando de orações pospostas, são não confiáveis, visto o número reduzido de tokens por célula. Os resultados acima sugerem, então, que, com referência ‘as células mais confiáveis, as correlações entre tipos de sujeito (anáfora pronominal, zero e SN pleno), posição da oração de tempo e compartilhamento do sujeito não são tão significativas, como esperávamos. Levam a crer, conseqüentemente, que é a própria oração hipotática que constitui um contexto favorável à explicitação do sujeito. Corroboram, então, uma hipótese de Haiman, qual seja, a de que a explicitação do sujeito é um traço das hipotáticas: “There is in fact good evidence that subordinate clauses are characterized by their failure to undergo reduction... subordinate (adverbial) clauses mark subject, tense and mood on the verb whether this is identical with that of the main verb or not.” (1985: 216).
1.3 A correlação tempo-modo nos enunciados de tempo Nesta parte consideramos a correlação tempo-modo nos enunciados de tempo. O quadro abaixo, em que arrolamos todas as combinações instanciadas na amostra em análise, revela que o leque das combinações viáveis, embora amplo, é explorado de forma seletiva pelos falantes. oração: núcleo
hipotática
No
%
presente – indicativo
presente – indicativo
47
60,5
5
futuro – subjuntivo
1
1,5
8
futur. pres. comp. – indic.
2
2,5
4
7
9,0
17
8
10,5
3
pret. imperfeito – indic. pret. imperf. – indicativo pret. perf. – indicativo
exemplo
449
pret. perf. – indicativo
pret. perf. – indicativ
7
9,0
1
pret. imperfeito – indicat
2
2,5
18
presente – indicativo
1
1,5
9
fut. pres. comp. – indic futuro – subjuntivo
1
1,5
10
futuro pretérito – indic
presente – indicativo
1
1,5
19
presente – subjuntivo
presente – indicativo
1
1,5
11
Quadro 1: Correlação tempo-modo nos enunciados de tempo
Um re-arranjo dos resultados acima mostra que, em 66,0% (60/78) dos enunciados de tempo, a oração nuclear e a hipotática compartilham o mesmo tempo e modo. tempo + + – –
modo + – + –
N. 61 2 14 1
% 78,0 2,5 18,0 1,5
Quadro 2: Correlação tempo-modo nos enunciados de tempo, 2a. versão
As 17 (dezessete) ocorrências que fogem ao padrão explicam-se por razões diferentes: i – um pouco mais da metade (10/17=59,0%) foi motivada pelo jogo entre aspecto perfetivo/imperfectivo, no tempo pretérito, tão relevante para a codificação dos efeitos de figura e fundo (Hopper e Thompson, 1980). Os exemplos (12), a seguir, ilustram um desses usos; ii – as demais parecem se correlacionar com a formalidade do contexto. Foram utilizadas, principalmente, em EFs, situação de fala caracterizada pelo planejamento prévio do conteúdo a ser desenvolvido na sala de aula ou em palestra, assimetria de papéis e controle do turno da fala. É provável que a esse efeito de natureza social se some um outro, o da contribuição do sotaque idioletal dos falantes que as empregaram: a maioria das correlações pouco produtivas, ilustradas em (8)-(10), foi produzida por uma mesma falante. A hipótese quanto à contribuição do sotaque idioletal é reforçada pelo trecho (11) abaixo, extraído de um DID, em que uma oração de tempo no presente do 450
indicativo se vincula a uma núcleo no presente do subjuntivo. O inesperado dessa correlação explica-se quando se verifica que a oração de tempo funciona como um adendo a uma oração de finalidade e que o falante que a produziu privilegia as orações de finalidade introduzidas por para que, a fim de que, locuções que requerem presente do subjuntivo. (8) presente do indicativo + futuro do subjuntivo Inf: Então quando o indivíduo, ou quando o aluno for capaz de inferir a partir daquela comunicação, ele está já com o nível de extrapolação (EF-POA, 278, p.11)
(9) pretérito perfeito indicativo + presente do indicativo Inf: ... a, quando ele usa a interpretação, ele já preparou o, a, processo mental do aluno para uma extrapolação (EF-POA, 278, p.15)
(10) futuro do presente composto + futuro do subjuntivo Inf: Então vejam aqui, quando estiver trabalhando com compreensão, ele vai atuar sobre uma comunicação (EF-POA, 278, p.08)
(11) presente do subjuntivo + presente do indicativo Inf: ...um acordo entre a classe patronal e a classe trabalhadora a fim de que se evite o chamado dissídio coletivo... quando não há acordo entre patrões e empregados (DID-REC, 131, p.02)
Por fim, cumpre lembrar que estudamos as orações do enunciado de tempo segundo a predicação para verificar se havia diferenças sistemáticas entre núcleo e satélite no que concerne a essa variável. Para desenvolver tal análise, usamos as traços propostos por Dik (1989) – dinamismo, controle e telicidade – que, combinados, levam aos seis fatores listados abaixo: 451
realização [+ dinamismo] [+ controle] [+ telicidade] atividade
[+ dinamismo] [+ controle] [- telicidade]
mudança
[+ dinamismo] [- controle] [+ telicidade]
dinamismo [+ dinamismo] [- controle] [- telicidade] posição
[- dinamismo] [+ controle]
estado
[- dinamismo] [- controle]
Dado o número relativamente pequeno de dados de que dispúnhamos, optamos por, em um segundo processamento, amalgamar as categorias acima, reduzindo-as a três: ação (realização e atividade), processo (mudança e dinamismo) e situação (posição e estado). Nossos resultados mostram que as orações nucleares e as hipotáticas caracterizam-se pela codificação de ações e situações, sendo escassas as ocorrências de processo.
2. A posição das orações de tempo Comentamos anteriormente que, embora as orações de tempo pudessem se antepor ou pospor à oração núcleo, a primeira posição constituía a ordem não-marcada e representava 72,0% (56/78) dos dados. Face a essa distribuição, decidimos examinar o co-texto em que apareciam os enunciados de tempo com vistas a identificar as possíveis correlações capazes de explicá-la. É desnecessário recordar que a ordem dos constituintes, oracionais e não-oracionais, não é regulada apenas por razões estilísticas ou idioletais. Como lembram Bates e Macwhinney (1987), qualquer língua natural precisa codificar uma grande variedade de funções, valendo-se apenas dos recursos limitados do canal acústico-articulatório. Ao manusear a ordem dos constituintes, o falante, de uma certa forma, subverte tais limitações e consegue sinalizar significados, leituras, sutilezas que não se deixam apreender tão somente pelo conteúdo referencial dos itens lexicais. Buscando explicar a ordem em que podem aparecer os constituintes, os dois autores asseveram que: “units particularly high in information value tend to be placed in highpriority, salient or ‘privilegied’ points across a sentence. ... since the beginnings and ends of utterance units are more salient and perceivable than middle positions, highly informative elements will tend to be
452
placed at the beginnings or ends regardless of their ‘natural’order in the real-world events being described.” (1987:215)
A proposta referida acima, quando aplicada às orações tempo, pouco esclarece, visto que as orações em pauta ocupam, quase categoricamente4, os ‘pontos salientes da sentença’, isto é, começo e fim. Já que apenas ocasionalmente as orações de tempo aparecem inseridas dentro da oração núcleo, seríamos levados a concluir, então, que sempre elas estariam ocupando uma posição privilegiada! Thompson (1985) e Ford (1988) adotam uma perspectiva diferente. Ao investigarem a ordem das chamadas adverbiais, em inglês, afirmam que a diferente localização das orações de tempo se correlaciona com papéis textuais diferenciados. Aquelas que aparecem antes da oração núcleo criam o pano de fundo, a orientação temporal para os eventos que serão referidos nas seguintes. Já aquelas que aparecem pospostas delimitam, restringem a asserção codificada pela oração núcleo. A distribuição dos dados do português oral parece corroborar essa hipótese. Também nessa língua as orações de tempo em posição inicial criam molduras temporais, quadros de referência a partir dos quais se desenvolve uma seqüência tópica, como mostra o exemplo (7) acima. A essa função podem se superpor outras, tais como a sinalização de uma mudança na orientação do discurso que estava sendo desenvolvendo. Podem indicar que um novo episódio, um novo argumento, uma nova seqüência está se inciando. Estariam funcionando, então, como marcadores lingüísticos formais de começo de ‘parágrafo’ (Brown e Yule 1983). O trecho seguinte ilustra uma destas ocorrências. Na parte imedidatamenne anterior à oração de tempo, a falante discorria sobre a preparação que antecede a apresentação de uma peça. A seguir faz uma pausa, reproduzida na transcrição pelas reticências, usa um marcador discursivo – bom – e começa a narrar um episódio de que ela participara: (12) Inf: porque o grupo que trabalha em Hair é enorme né?...você assistiu né? Doc: uhn uhn. Inf: tenho impressão que ali levou tanto tempo de ensaio...bom eu quando:: tinha uns dezoito quinze a dezoito anos eu estudei balê ... e tive oportunidade de trabalhar fazer uma cena com o:: (DID-SP, 281, p.107-108)
453
Ocasionalmente, as orações de tempo em posição inicial constituem legítimos ‘tópicos chineses’5 servindo, então, para circunscrever o desenvolvimento seguinte do discurso. O trecho seguinte, em que a oração de tempo, seguida por uma vírgula, é facilmente parafrasável por quanto a comida, em relação à comida, com referência à comida, constitui uma dessas ocorrências. (13) L1: Acho que comer bem está exatamente uma postura na mesa, tranqüilo que(r) dizer é, é, despreocupado. Com cenário gastronômico. L2 Opa, melhor ainda. O comer, sempre... quando eu falo em comer, por exemplo, é um negócio que, que me atinge diretamente, porque, em primeiro lugar, eu gosto de come(r). (D2-POA, 291, p.06)
As ocorrências marcadas, isto é, aquelas que aparecem pospostas à núcleo explicam-se quer por necessidades de construção tópica, quer por necessidades de acréscimo de informação, como ilustram os exemplos (14) e (15), a seguir: (14) Loc:... eu acho que a televisão é completamente:: diferente do que a gente assiste e lá no teatro não, o teatro é uma coisa que aparece, agora a televisão a gente ve o mínimo né? do máximo que eles fazem então no teatro eu acho que e é bem mais difícil eu tenho a impressão que é em mais difícil porque a televisão é horroroso quando eles estão fazendo programa. (DID-SP, 281, p.108)
(15) Loc::
... porque nós não somos tão felizes de ter sempre empregada... então ah... apesar que eu sou um marido muito bom porque a verba da empregada continua a ter mensalmente... quer dizer... quando a gente não tem empregada...quer dizer. (D2-RJ, 355, p.97)
O exemplo (14) constrói-se pelo contraponto de dois subtópicos, o teatro e a televisão, que se alternam ao longo desta seqüência. Os itens lexicais 454
teatro e televisão, por sua vez, aparecem sempre na posição de tópico frasal, algumas vezes como tópico frasal marcado, outras como não-marcado. Nessas circunstâncias, a anteposição da oração núcleo explica-se pela necessidade de manter alternância entre teatro e televisão já instaurada anteriormente. Se a oração de tempo quando eles estão trabalhando aparecesse anteposta, romperia o paralelismo sintático e, provavelmente, afetaria o processamento do tópico discursivo. Já a oração de tempo do outro exemplo caracteriza-se como um adendo motivado pela necessidade de acréscimo de informação, possivelmente considerada relevante pelo falante. Observe que a classificação como núcleo é uma categorização a posteriori que o analista impõe aos dados. A curva entonacional final de sentença (Chafe, 1988), a hesitação, o marcador discursivo (quer dizer) constituem indícios de que a chamada oração núcleo tinha sido concebida como uma unidade que deveria bastar a si própria e que a oração de tempo quando a gente não tem empregada constituiu um legítimo adendo (Chafe, 1988). Chafe explica a ocorrência de construções como (15) em termos cognitivos. Ford (1988) discorda desta interpretação e atribui-lhe uma motivação interacional: o falante acrescenta informação porque quer agir colaborativamente. Não vemos incompatibilidade entre as duas interpretações. A etapa cooperativa posterior – acréscimo de informação relevante – pressupõe uma etapa cognitiva, a avaliação do estado de consciência do interlocutor e do status informacional das orações produzidas até então. Segundo uma outra vertente funcionalista, a da Gramática Funcional, exemplos como o último classificam-se como ‘cauda’ (tail) uma das funções pragmáticas arroladadas por Dik (1989). Para esse autor, as funções pragmáticas são codificadas ou no próprio corpo ou nas extremidades da oração (funções pragmáticas intra e extra-oracionais). As primeiras correspondem às dimensões tópico e foco e as segundas, tema e cauda. As duas últimas são ‘separadas’da oração a que remetem por disjuntura ou contorno entonacional especial. A cauda, lembra Siewierska (1991), tanto serve para clarificar ou modificar algum constituinte da predicação quanto para providenciar informação adicional, não vinculada a um item da predicação. Mostramos, até o momento, que a cada ordem parece corresponder uma função, um papel ‘textual diferenciado’, nas palavras de Thompson (1985) e Ford (1988), como mencionamos previamente. Algumas vezes, no entanto, um mesmo falante alterna as duas posições, como ilustra (16) abaixo: 455
(16) Doc .... e tal eu gostaria de saber que tipo de filme a senhora mais aprecia... tá? e:: o que mais chama atenção das senhora para ir ao cinema quando a senhora vai que a senhora disse que vai poucas vezes ao cinema. Loc: é. Doc: né? Então eu gostaria de saber quando a senhora vai ao cinema... o que mais precisa conter o cinema para levar a senhora até ele? (DID-SP, 281, p.111)
A hipótese que busca a explicação para essa alternância no status informacional das orações sublinhadas não se sustenta. No trecho imediatamente anterior, o documentador e a falante justamente discorriam sobre cinema, tipos de filmes apreciados pela segunda, freqüência com que ela ia a cinemas. Tratava-se, pois, de informação evocada, dada, conhecida e sem laivos contrastivos. Seria, então, a ordem das orações de tempo ‘livre’, isto é, poderiam as posições ser intercambiadas sem conseqüências perceptíveis? Acreditamos que não. Acreditamos que a facilidade ou impossiblidade de alteração na ordem das orações de tempo decorre dos papéis desempenhados por elas. A reversão da posição é totalmente bloqueada nos casos de adendos e ‘tópicos chineses’, já que, nessas circunstâncias, há uma interdeterminação entre posição e função; é altamente improvável nos casos em que a oração de tempo funciona como um marcador de início de ‘parágrafo oral’; parece não acarretar maiores problemas quando tão somente criam a moldura temporal ou restringem a asserção codificada pela oração núcleo. Vale lembrar, porém, que a mudança na ordem, mesmo nos últimos casos, embora gramaticalmente possível, sempre acarretará uma mudança na interpretação dos papéis que lhe são atribuídos.
Conclusão Neste artigo, investigamos as orações de tempo introduzidas por conectivo subordinativo, usando como corpus a amostra mínima compartilhada pelos membros do Projeto da Gramática do Português Falado. Inicialmente, cotejamos o tratamento que a abordagem gramatical tradicional e a vertente funcionalista concedem às orações de tempo. Em seguida, examinamos estas 456
orações à luz de algumas propriedades formais: natureza do conectivo que as introduz, realização do sujeito, a correlação tempo-modo entre a oração hipotática e a oração núcleo com que se articula. Por fim, consideramos algumas questões relativas à posição das orações em pauta. Mostramos que a anteposição constitui a posição não-marcada e que as diferentes localizações estão associadas a diferentes funções.
NOTAS 1
Elas não constituem uma propriedade exclusiva das orações de tempo. As hipotéticomodais e as condicionais exibem comportamento similar, como mostram Amparo (1997) e Ferreira (1997), respectivamente.
2
Os trechos (8), (1) e (2) ilustram, respectivamente, os fatores arrolados.
3
Para esse cálculo excluímos os verbos impessoais.
4
A posição constitui, portanto, outra propriedade que distingue o registro escrito e falado no que tange às orações de tempo. No primeiro, as ocorrências de intercalação são relativamente freqüentes (Crocci da Souza, 1996).
5
Estamos usando a expressão tópico chinês com a acepção que lhe é atribuída por Chafe: “What the (chinese) topics appear to do is to limit the applicability of the main predication to certain restricted domain... the topic sets a spatial, temporal, or individual framework within which the main predication holds... In brief, ‘real’ topics (in topic prominent languages) are not so much “what the sentence is about” as “the frame within which the sentence holds.” (1976: 50-51)
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AS CONSTRUÇÕES CAUSAIS
Maria Helena de Moura Neves (UNESP) Auxiliares de pesquisa: Elaine Maria de Souza Eliana Cristina Domingos
1. O que é uma construção causal? A relação causal stricto sensu diz respeito à conexão causa-conseqüência, ou, pelo menos, causa-efeito entre dois eventos. Obviamente, essa relação assim estreitamente entendida implica subseqüência temporal, mas sabe-se muito bem que as expressões lingüísticas de elo causal (e.g. as marcadas pelo conector porque ou seus equivalentes) não se restringem a esse tipo de indicação, que decorre de uma relação de “causa real”, ou “causa efetiva”. Basta lembrar a distinção tradicional entre as modificações do modum/ do dictum, ou remeter a formulações como a de Ducrot (1983) sobre relações argumentativas, ou a de Halliday & Hasan (1976) sobre relações “na tese”, em oposição a relações “no conteúdo” para verificar a necessidade de que o estudo dos enunciados tradicionalmente rotulados como “causais” não se subordine ao exame de manifestações da relação causa-conseqüência, aliás apenas extralingüisticamente comprovável. Uma boa definição das construções complexas causais é a que ressalta o fato de o segmento que expressa a causa ser uma pressuposição, e, portanto constituir o fundo, ou seja, a parte recessiva do significado, e a parte “causada” da construção ser dominante, isto é, ser a figura (Garcia, 1994:93 e 371).
2. A concepção lógico-semântica da construção causal Pode-se dizer que nas relações causais intervêm alguns esquemas lógicos ligados à relação condicional, mas a discussão sobre esses esquemas não é
determinante num exame que se pretenda lingüístico, já que ela implica desvinculação das implicações do enunciado. Com efeito, um exame desse tipo diria, por exemplo que em (01) então aí eu levei minhas filhas, elas adoraram, né...não queriam i(r), mas no fim foram, porque sabiam que iam outros jovens também (EF-SP-405:90-95)
o fato de os jovens saberem que outros jovens também iam fazer a viagem é uma condição que, preenchida, consiste numa causa para irem nessa viagem. É a relação que se expõe neste esquema: Ø se (= desde que) iam outros jovens (e elas sabiam disso) – CONDIÇÃO PREENCHIDA
Ø elas foram – FATO REAL Entretanto, esse tipo de consideração limitaria extremamente as expressões a ser rotuladas como “causais”, o que se comprova pelo próprio fato de que, nas 195 frases com conectivos do tipo causal do corpus examinado, não ocorre nem uma vez aquela relação causal típica da expressão de causa eficiente, que é a que liga dois eventos em subseqüência temporal, como em “ele foi demitido porque roubou”, já que mesmo um enunciado como (1), com o qual é fácil raciocinar em termos de causalidade lógica, é raro no corpus usado. Nesse modo de ver, se se levar em conta a indicação de Givón (1976) de que é a relação temporal dos fatos que permite que eles sejam interpretados em relação de causalidade, tem de ser afirmado que nenhum enunciado do nosso corpus constitui uma “construção causal”, no sentido restrito. Por outro lado, sabe-se muito bem que, em (1), o falante expressa uma relação que não pode ser unilateralmente interpretada, de modo a limitar a análise aos dois estados de coisas abstraídos do todo em que foram expressos. Assim, não se pode simplesmente dizer que, dado aquele conhecimento que os jovens possuíam, necessariamente seguiu-se a realização da viagem. Não apenas se requerem outras “causais reais” (como, por exemplo, haver disponibilidade de tempo e de dinheiro para a viagem) – isto é, a condição preenchida não é suficiente – como, ainda, pode discutir-se se, de fato, essa foi uma condição necessária para a viagem, ou se, simplesmente, é o falante (a mãe dos jovens) que invoca o argumento em seu enunciado. Não é difícil defender que a comprovação de relações de causalidade lógico-semântica não se inclui no âmbito da investigação lingüística, e que, 462
em termos de enunciados reais, a noção de causalidade tem de ser investigada no complexo de domínios envolvidos na produção dos enunciados. Sweetser (1990) propõe que as construções causais sejam interpretadas levando-se em consideração o seu funcionamento em três diferentes domínios de interpretação semântica. Assim, as construções causais, segundo Sweetser, apresentam três leituras possíveis: a) No domínio do conteúdo, a junção marca a causalidade de um evento no mundo real, como em: (02) Então eles pegavam os pássaros que não podiam voar .... porque estavam com as penas grudadas de petróleo (D2-SSA-98:34-36)
Observa-se, aí, que a causalidade de um evento no mundo real une as duas cláusulas: as penas dos pássaros cheias de petróleo constituem, no mundo real, a causa da impossibilidade do vôo dos pássaros. Outras ocorrências do mesmo tipo são: (03) eu por exemplo tô acostumada a comer só verdura e carne eu tive muita dificuldade em me alimentar lá porque tudo é à base de peixe... e peixes também desconhecidos para nós... eles... pescam muito peixe de ri::o... e usam muito na alimentação peixe de rio... sabe? (DID-RJ-328: 127-130) (04) Então, é difícil, nas escolas, as crianças praticarem natação, porque não tem escola com piscina, raras são as escolas que têm piscina, não é? (DID-SSA-231: 323-324) (05) os sindicatos são entidades portanto ... que não são obrigadas ... a pagar o chamado imposto sobre a renda ... porque são entidades sem fins lucrativos. (DID-RE-131: 145-149) (06) a menina faz fonoaudiologia porque está com três anos e pouco ... e ainda não fala (D2-SP-360: 103-106)
b) No domínio epistêmico, a junção marca a causa de uma crença ou conclusão, como em: 463
(07) Eles acham que é o melhor estágio que eles fazem, é um dos melhores estágios, é o de Dermatologia. Porque nós temos condições de mostrar pra eles muitos doentes, que é o importante (DID-SSA-231: 174-177)
O conhecimento do falante de que no estágio de dermatologia os estudantes têm mais oportunidade de ter contato com os doentes é a causa da conclusão de que eles o consideram o melhor estágio. São do mesmo tipo ocorrências como (08) como eu gosto por exemplo muito de feijão... muito de arroz... que são coisas que engordam e pra eu manter isso na hora do almoço... eu não posso carregar demais na hora da/do café... (DID-RJ-328: 327-330) (09) agora nesse mês, como a UPC não aumentou e como diminuiu o número de UPCs, o que vai acontecer é que eu vou pagar um pouquinho menos. (D2-RJ-355: 197-199) (10) cabendo evidentemente ao senhor presidente... a tomada de uma posição... que deverá ser uma posição definitiva... já que ele... é... um elemento que preside... o órgão tido como executivo... ou seja o órgão dirigente... o órgão executor... (DID-RE-131: 235-241) (11) ... evidentemente a ELE caberá tomar a decisão ... final ... mas ele não pode se portar como um elemento ditatorial ... mesmo porque ele não é ... uma enciclopédia ambulante (DID-RE-131: 258-262)
c) No domínio dos atos de fala, a junção indica uma explicação causal do ato de fala que está sendo desempenhado. É o caso de: (12) você já imaginou para para fazer a peça Hair quanta gente que não foi ... éh éh:: não foi éh:: preparada ali ... porque o grupo que trabalha em Hair é enorme né? ... (DID-SP-234: 246-249) (13) hoje em dia os filmes são mais vazios sei lá ... eu acho não sei por isso é que eu deixo de ir ao cinema porque eu vou s/realmente se eu sei que o filme é bom viu? (DID-SP-234: 367-370)
464
(14) em casa o café é muito demorado ... muito complicado quer dizer então até eles comerem todas as coisas que fazem ... parte do café eles demo::ram um briga com o outro a divisão tem que ser absolutamente exata ... porque se um tiver mais do que o outro sai um monte de briga (D2-SP-360: 316-318) (15) agora dias que não tem aula ele pergunta e a resposta é negativa aí então ele diz para a irmã ... “levanta que hoje não tem aula podemos brincar” aí levan::tam (D2-SP-360: 342-345) (16) vocês escolheram um péssimo entrevistado, porque eu sou um sujeito que gosto muito de falar muito pouco (D2-SSA-98: 87-88) (17) João um momentinho porque eu encontrei ... uma definição ... não é? (EF-RE-277-278)
Sweetser observa que uma interpretação “correta” não depende da forma, mas de uma escolha pragmaticamente motivada entre considerar as construções como representação de unidades de conteúdo, ou de entidades lógicas, ou de atos de fala.
3. Uma avaliação pragmática das construções causais Para as orações condicionais aponto, noutro capítulo deste volume, a consideração de um valor tópico (e, conseqüentemente, pressuposto) dentro da organização discursiva. Esse valor se reflete na organização real dos enunciados, até porque se privilegia a ocorrência da oração condicional anteposta à oração núcleo. No caso das construções causais, levados em conta todos os tipos de conectivo, pode-se observar uma maior complexidade quanto a essa questão. Em primeiro lugar, as causais iniciadas por como são antepostas, em 100% dos casos, enquanto as iniciadas por que (que relacionam atos de fala) são pospostas, em 100% dos casos. Das duas ocorrências iniciadas por já que encontradas, uma é anteposta e uma é posposta. A única oração causal introduzida por desde que é posposta. Nas iniciadas por porque (o conectivo de mais de 50% das orações causais de nossa amostra), há um único caso de anteposi465
ção, ocorrência que apresenta, porém, a oração causal extraposta por correlação e por clivagem, e focalizada pelo elemento só (portanto, marcadamente deslocada para a esquerda): (18) não é só porque eu preciso me vestir que eu vou fazer um vestido:: maravilhoso... ou que eu vou bordar... uma:: tela para pendurar em casa (EF-SP-405: 166-170)
O mesmo raciocínio aqui invocado na análise das construções condicionais (Jespersen, 1940), que propõe miniconversações na origem dos enunciados condicionais (especialmente os factuais), pode ser estendido às causais encabeçadas por como: (8)
como eu gosto por exemplo muito de feijão... muito de arroz... que são coisas que engordam e pra eu manter isso na hora do almoço... eu não posso carregar demais na hora da/do café... (DID-RJ-328: 327-330) A: Eu gosto de feijão e arroz, que engordam, não é? B: (É.) A: Então/por isso eu não posso carregar na hora do café.
(09) agora nesse mês, como a UPC não aumentou e como diminuiu o número de UPCs, o que vai acontecer é que eu vou pagar um pouquinho menos. (D2-RJ-355: 197-199) A: A UPC não aumentou e o número de UPCs diminuiu, não é? B: (É.) A: Então/por isso eu vou pagar um pouquinho menos.
Do mesmo modo que ocorre nas construções condicionais, pode presumir-se que a concordância sobre a validade da proposição de A, obtida no consentimento (silencioso) de B, funciona como base para o que A diz em seguida (no caso, agora, um enunciado consecutivo), e a contraparte declarativa da pergunta de A constitui um tópico para sua declaração em subseqüência. Sobre o esquema obtido nessa dialética, a oração causal com como (sempre anteposta) assenta preferentemente a noção partilhada entre ouvinte e falante, sobre a qual ele assenta a porção seguinte (e nova) de seu discurso. Dito de 466
outro modo, informativamente a oração núcleo “eu não posso carregar demais na hora do café”, de (8), constitui um rema cuja aplicabilidade foi restringida espacial, temporal e individualmente na porção do enunciado que traz a causa (Chafe, 1976). O mesmo não se pode dizer das construções causais com porque. Sejam base para discussão os enunciados: (19) eu tenho ido pouco ao cinema porque éh:: sei lá eu:: o pessoal que vai “ah::” diz que tal filme não é bom eu prefiro ficar em casa e não ir mas tenho assistido filmes bons (DID-SP-234: 329-332) (20) não sei eu não posso falar muito de ci/ de de cinema porque não sou muito... dada a cinema né?... (DID-SP-234: 345-347) (21) e os nomes realmente eu não guardei porque são nomes muito... que tem assim uma influência muito indígena... né? (DID-SP-234: 84-86) (22) agora... é engraçado que você saindo do Brasil... a gente sente uma falta muito grande dessa parte de verduras... eu falo muito em verduras porque justamente é a base da minha alimentação... entende? (DID-RJ-328: 228-230)
Nessas, como nas outras ocorrências do corpus, o raciocínio pode também conduzir-se, em termos de miniconversações, porém com diferente roteiro. A diferença fundamental diz respeito ao próprio foco da interrogação, isto é, ao segmento que corresponde à informação buscada, que não é mais o segmento que está na oração núcleo, mas o que está na oração causal: (19) A: Eu tenho ido pouco ao cinema. B: (É? Por quê?) A: Porque o pessoal que vai diz que o filme não é bom. (21) A: Eu não guardei os nomes. B: (É? Por quê?) A: Porque são nomes que têm uma influência muito indígena.
467
O artifício logra demonstrar que a expressão da causa introduzida por porque é, em princípio, remática, enquanto a proposição constante da oração nuclear é temática, sendo apresentada como compartilhada, não-nova. Daí porque fica favorecida a posposição das orações com porque, como se verá mais adiante. Não pode deixar de ser acentuado o fato de que as orações causais encabeçadas por porque constituem exatamente a resposta a uma pergunta – a um pedido de informação – encabeçada pelo advérbio interrogativo “por que?”. Do mesmo modo que ocorre com os outros advérbios interrogativos da língua (de tempo: “quando?”; de modo: “como?”; e de lugar: “onde?”) – todos demandadores de informação na esfera dos circunstantes –, a resposta que se obtém constitui, com certeza, informação nova, já que responde a uma solicitação específica, cabendo bem em posição posposta ao núcleo. Se não, vejamos a estranheza da segunda resposta que se indica, em cada caso: – Quando você vai ao cinema? – Vou amanhã/quando puder. ? Amanhã/quando puder vou. – Como você vai ao cinema? – Vou de carro. ? De carro vou. – Aonde você vai? – Vou ao cinema. ? Ao cinema vou. Entretanto, é só no caso da interrogação de causa (com por que?) que a resposta (exatamente a oração causal) apresenta forma de introdutor (a conjunção) homônima (porque). A relação causal expressa por como não partilha a mesma característica, como já se discutiu acima. Ao invés de constituir resposta a um pedido de informação, (isto é, ao invés de ser informação solicitada, e, portanto, nova), a oração causal introduzida por como (sempre anteposta) é entendida como veiculadora de informação partilhada, consensual, e como apoio para a progressão informativa que a oração núcleo – ela sim – realiza. Nosso corpus oferece um enunciado complexo em que os dois tipos de expressão causal (com como e com porque) ocorrem, e que se presta à análise que aqui se faz: 468
(23) você estava conversando comigo no início sobre essa parte de preços... eu pouco posso...porque aqui em casa...como nós temos empregada...ela que faz a feira junto com a minha tia e normalmente eu não estou assim muito por dentro dos preços dos alimentos...embora eu ouça minha tia às vezes falar que está tudo muito caro... (DID-SP-324: 53-58) 1)
relação porque: A: Eu pouco posso. B: (É? Por quê?) A: Porque aqui em casa é a empregada que faz a feira junto com minha tia, eu não estou por dentro dos preços.
2)
relação como: A: Vocês têm empregada, não é? B: (É.) A: Então/por isso ela faz a feira junto com a minha tia e eu não estou por dentro dos preços.
No caso da relação como, a pergunta (que se supõe assentada em algo previamente dito) pede verificação da proposição de causalidade; no caso da relação porque, é a proposição nuclear que é verificada. A partir daí, no caso da relação como, é sobre a proposição de causalidade verificada (dada) que se assenta a proposição nuclear consecutiva (nova); no caso da relação porque, sobre a proposição nuclear verificada (dada) se assenta a expressão causal (nova). O encaixamento das duas relações, nesse exemplo, cria um jogo de relevâncias informativas no jogo da causalidade (lato sensu): 1)
relação porque: Asserção nuclear a verificar – A: Eu pouco posso. Pedido de verificação – A: (É?) Pedido de informação sobre a causalidade – A: (Por quê?) Informação nova sobre a causalidade – B: Porque aqui em casa (...) é a empregada que faz a feira e eu não estou por dentro dos preços.
2)
relação como: Proposição causal a verificar – A: Vocês têm empregada, não é? (Verificado) – B: (É.)
469
Informação nova sobre a conseqüência ou efeito – A: Então/por isso ela faz a feira junto com minha tia e eu não estou por dentro dos preços.
As porções da informação vêm enredadas de tal modo que a proposição composta “aqui em casa é a empregada que faz a feira junto com minha tia e eu não estou por dentro dos preços”, ao mesmo tempo que é apresentada como causal com informação nova (com porque), também é apresentada como nuclear com informação nova (resultado de uma causal com como). Isso significa que, de todo modo, a informação que aí vem é nova, mas ela entra em duas relações causais: em uma delas, vem na causa (relação marcada por porque), e, na outra, vem na conseqüência (relação marcada com como). Na mesma ordem de raciocínio podem ser examinadas as ocorrências de orações com já que, as quais, entretanto, em termos de distribuição de informação, ora se comportam como as de porque (são remáticas, e pospostas), como em (10), ora se comportam como as de como (são tópicas, e antepostas), como em (24): (10) cabendo evidentemente ao senhor presidente... a tomada de uma posição... que deverá ser uma posição definitiva... já que ele... é... um elemento que preside... o órgão tido como executivo... ou seja o órgão dirigente... o órgão executor... (DID-RE-131: 235-241) A: A tomada de posição do presidente deverá ser definitiva. B: (É? Por quê?) A: Porque/já que ele é um elemento que preside o órgão. (24) já que você...você está querendo fazer uma viagem, (rindo) eu vou lhe contar hoje sobre uma viagem (D2-SSA-98: 94-95) A: Você está querendo fazer uma viagem, não é? B: (É.) A: Então/por isso eu vou lhe contar hoje sobre uma viagem.
O fato de, no primeiro caso, a causal ser posposta, e, no segundo, ser anteposta, evidencia a relação entre a posição sintática e a organização tópica. Não se pode, entretanto, limitar a investigação da ordem ao contexto formado pelas duas orações ligadas pelo nexo semântico causal, já que, como aponta Schiffrin (1985), o próprio aparecimento em primeiro lugar de uma ou 470
outra dessas orações é determinado pela organização discursiva, especialmente por pressões de continuidade tópica. Vejam-se os trechos em: (03) a alimentação de outros estados é bem diferente daqui do Rio... cê sabe? Doc:do sul norte Loc: [é... a do sul é mais parecida com a da/a nossa... Doc:porque? qual é a base ( )? Loc: porque eu acho que a base é mais a carne sabe... lá em cima não eles têm muito produtos é... - - inclusive coisas assim muito que engorda também - - mas é muito produto ligado a mar... Doc:Você lembra assim? Loc: no Manaus por exemplo... éh tudo deles tem base com peixe... carne lá é muito difícil verduras também é muito difícil eu por exemplo tô acostumada a comer só verdura e carne eu tive muita dificuldade em me alimentar lá porque tudo é à base de peixe... e peixes também desconhecidos para nós... eles... pescam muito peixe de ri::o... e usam muito na alimentação peixe de rio... sabe? (DID-RJ-328: 127-132) (25) todos os serviços... que ele presta... aos seus associados são efetivamente de um valor... inestimável temos também por exemplo... uma assistência jurídica... que é demasiadamente importante principalmente naquelas questões jurídicas... relacionadas entre: empregados e patrões muitas vezes um associado... é despedido... do emprego... e não tem a quem... recorrer exatamente por falta de condições financeiras... para contratar um bom causídico a fim de que o mesmo possa prestar o mesmo... uma assistência... adequada... que se impõe... principalmente em casos em que o associado não tem realmente... condições... porque: não dispõe de uma bagagem de conhecimento jurídico... que possa realmente levar à frente ou levar adiante... a sua questão... para isso o sindicato dispõe de um departamento jurídico... como caso por exemplo é o caso do sindicato dos comerciários. (DID-RE-131: 91-97) (22) churrasco da Argentina... Dizem que se equipara ao/ao do Rio Grande do Sul... é realmente é parecido se bem que o do/... Rio Grande do Sul são um pouco mais minguados ... né? os churrascos da... de Buenos Aires... mas era cada bife que você não agüentava comer...Agora... é engraçado que você saindo do Brasil... a gente sente uma falta muito grande dessa parte de
471
verduras...eu falo muito em verduras porque justamente é a base da minha alimentação entende? (DID-RJ-328: 225-230)
Em (3), o tema do trecho maior é a alimentação dos outros Estados, e, portanto, é natural iniciar-se a construção causal com a indicação da “dificuldade” que há em se alimentar em Manaus, para só em seguida dar-se a causa dessa dificuldade (“tudo é à base de peixe”). Igualmente em (25) a causa (“não dispõe de uma bagagem de conhecimento jurídico”) deve seguir-se à indicação da falta de “condições” do “associado”, já que o tema que vem sendo desenvolvido é exatamente a “assistência” que o sindicato presta aos associados. Em (22) ocorre, mesmo, de a oração nuclear da construção causal, “eu falo muito em verduras” ser metalingüisticamente anafórica, remetendo a toda a porção anterior do texto, na qual o tema tinha sido “verduras”, o que faz que, necessariamente, ela abra a construção, antepondo-se à oração causal. Nessa colocação, a oração nuclear traz, naturalmente, carga praticamente zero de novidade, e a causal carrega a informação nova.
4. O tratamento funcionalista da construção causal A proposta de Sweetser (1990) sobre a existência de três níveis – de conteúdo, epistêmico e conversacional, ou dos atos de fala – para a análise das combinações oracionais pode ser concebida dentro do modelo mais genérico e abrangente – das camadas ou níveis de análise – aplicável a todas as expressões lingüísticas de uma língua, assim como o propôs Dik (1989), Hengeveld (1989), Hengeveld et alii (1990). No modelo de Dik (1989), a construção da estrutura subjacente da cláusula requer, antes de mais nada, um predicado. O primeiro nível é, então, o do predicado, que, designando propriedades ou relações, se aplica a um certo número de termos, referentes a entidades, para produzir-se o segundo nível, mais elevado, da predicação. A predicação designa um estado de coisas, concebido como algo que pode ocorrer em algum mundo (real ou mental). Por sua vez, ela pode ser construída dentro de uma estrutura de terceiro nível, a proposição, que designa um “conteúdo proposicional”, ou seja, um fato possível. Finalmente, a proposição, revestida de força ilocucionária, constitui a frase, que corresponde a um ato de fala (quarto nível). Pode-se, portanto, estabelecer o seguinte paralelo: 472
a) a predicação (estado de coisas), em correspondência com o nível de conteúdo de Sweetser; b) a proposição (fato possível), em correspondência com o nível epistêmico de Sweetser; c) a frase (ato de fala), em correspondência com o nível conversacional ou nível dos atos de fala de Sweetser. Seria possível pensar, ainda, na relação entre as propostas desses dois autores (Dik e Sweetser) e a discussão das metafunções de Halliday (1970, 1973a, 1973b, 1977, 1985). De acordo com Halliday & Hasan (1976), as quatro categorias de conjunção (aditiva, adversativa, causal e temporal) podem expressar dois tipos de relações: 1. Relação entre eventos: é aquela que existe como relação entre fenômenos externos à situação de comunicação e é, por isso, chamada externa. Tal relação pode ainda ser chamada de experiencial (ou ideacional), e é interpretada como uma relação entre os significados no sentido de representações de conteúdos (ou experiências) da realidade externa. Tal tipo de relação corresponderia ao domínio de conteúdo de Sweetser e ao nível da predicação de Dik. 2. Relação entre argumentos: é aquela em que segmentos são relacionados como etapas em um argumento, com o significado: “primeiro uma proposição no jogo do discurso é representada, depois de outra”. Trata-se, pois, de uma relação interna à situação comunicativa. Ela pode ainda ser chamada de interpessoal, e se dá entre significados, no sentido das representações das impressões particulares do falante acerca da situação. Corresponderia aos domínios epistêmico e dos atos de fala de Sweetser e aos níveis da proposição e da frase (atos de fala) de Dik. O que ocorre é que as construções causais – diferentemente de construções como as temporais, – não se operam simplesmente entre predicações (ou estados de coisas), situando-se, mais geralmente, numa camada superior, no mínimo a proposição (Dik, 1989; Hengeveld, 1989; Hengeveld et alii., 1990). Observe-se: (26) você quer dizer mas se o homem faz a lei/por que ele fica ele se torna escravo da lei? em parte porque... quan:do... nós... nascemos somos socializa:dos nós já encontramos... uma quantidade bem grande de leis... (EF-RE-337: 94-98)
473
O que ocorre é a localização temporal de um estado de coisas (predicação): quando nós nascemos
somos socializados
localização temporal
estado de coisas
O conjunto aí enunciado constitui uma proposição (um “fato possível”, nos termos de Dik, 1989). Essa proposição, por sua vez, entra em relação causal com outra proposição: o homem se torna escravo da lei
porque
PROPOSIÇÃO 1
(quando nascemos) somos socializados PROPOSIÇÃO 2
RELAÇÃO CAUSAL
Exatamente porque se dá entre proposições (e não no nível da predicação) é que a relação causal lingüisticamente expressa não pode ser definida sobre base material, ou seja, como uma relação de causa eficiente. Mesmo nos casos em que entre os estados de coisas subjacentes às proposições se possa defender que haja uma relação de causa material, como em (1) (o primeiro exemplo citado), essa materialidade é irrelevante em termos da construção causal. Sabe-se muito bem que, em (1), não é porque, de fato, o “saber” expresso na oração causal pode ser a causa da “ida” expressa na oração núcleo que a construção tem legitimidade como causal, mas porque o falante a enuncia como causalmente relacionada, não importando a materialidade / a efetividade / a realidade, ou não, dessa causalidade. Mais frouxa ainda é a relação “causal”, que se dá na camada mais alta, a das próprias frases/enunciados que codificam os atos de fala (“clauses”, em Dik, 1989): (27) também nós vamos encontrar ... na glândula mamária ...uns prolongamentos ... ela não é ... uniforme ... porém ela não é uniforme porque nós vamos encontrar ... alguns prolongamentos ... e dentre esses prolongamentos ... existe um ... mais acentuado. (EF-SSA-49: 172-175)
ela não é uniforme
porque
ATO DE FALA 1
ATO DE FALA 2 RELAÇÃO CAUSAL
474
vamos encontrar prolongamentos
Com certeza, como se verá, adiante, em 6., não é o pretenso refinamento da interpretação semântica (distinguindo entre “causa”, “razão”, “motivo”, “explicação”, “justificação”, etc.) que vai, por si, responder pela distinção entre esses dois grandes grupos que a tradição vem contrastando sob os rótulos de “subordinadas causais” e “coordenadas explicativas”. Se não, comparemse, por exemplo, (28), que é do primeiro tipo, e (29), que é do segundo tipo, ambas constituindo “explicações” (não causas efetivas), só que atuando em camadas diferentes: (28) é a categoria conhecimento nós vamos separá-la das demais porque a partir das outras, tem, sido dentro da área cognitiva existe o processo mental mais simples, mais elementar que é o que Bloom denominou de conhecimento (EF-POA-278: 74-77) (29) e vejam que eu sempre que eu (es)tou falando eu me refiro aos autores, porque nós estamos seguindo uma posição, existem outras, outras taxionomias (EF-POA-278: 256-258)
Em (28), o falante “explica” por que vai separar a categoria conhecimento das demais; em (29), o falante também “explica”, mas agora ele explica por que se refere “aos autores”, isto é, por que emitiu determinado enunciado/ praticou determinado ato de fala. Se o termo subordinação é excessivamente marcado do ponto de vista sintático para utilizar-se em referência a uma ligação entre “enunciados”, ou “frases” (= atos de fala), o termo coordenação, por outro lado, precisa ser mais especificamente definido para se referir a esse tipo de ligação (no caso a tradicionalmente chamada “coordenação explicativa”). Aqui me referirei a esses dois tipos de construção “causal” baseando-me na natureza dos segmentos postos em ligação, nos termos de Dik (1989): •
entre predicações (= estados de coisas), ou proposições (= fatos possíveis);
•
entre frases (= atos de fala).
5. Características básicas verificadas nas construções causais em exame Consideram-se aqui construções causais as que apresentam entre si uma relação – lato sensu considerada – de causa a efeito. Assim entendidos, 475
causa abrange causa real, razão, motivo, justificativa ou explicação, e efeito abrange conseqüência real, resultado, conclusão. Como o objeto da investigação é especialmente o uso dos conectores apropriados para introduzir orações subordinadas adverbiais, só se consideram os casos de orações causais conjuncionais. Em termos da gramática tradicional, o que se analisa são as orações conhecidas como “subordinadas causais” e “coordenadas explicativas”. A conclusão do trabalho não mantém, porém, essa oposição subordinação/coordenação, já que o exame de propriedades não justificou a manutenção. 5.1. Os tipos de predicação (segundo Dik, 1989) encontrados na oração nuclear estão no gráfico 1 e os tipos encontrados na oração causal estão no gráfico 2. MUDANÇA 1,02% REALIZAÇÃO 4,62%
[vazio] 5,66%
POSIÇÃO 6,16%
DINAMISMO 11,28%
ESTADO 38,46%
ATIVIDADE 32,80%
Gráfico 1 – Tipos de predicações encontradas na ORAÇÃO NÚCLEO.
MUDANÇA 5,12% REALIZAÇÃO 4,11%
[vazio] 0,52%
POSIÇÃO 6,16%
ESTADO 53,35%
DINAMISMO 7,67% ATIVIDADE 23,07%
Gráfico 1 – Tipos de predicações encontradas na ORAÇÃO CAUSAL.
476
A distribuição dos tipos de predicação nas orações componentes da construção causal é apresentada no Quadro 1:
causal
%
explicativa
%
total
%
Quadro 1 Tipos de predicação (Dik, 1989) das orações que compõem construções causais
ESTADO
22
20.95
23
25.55
45
23.07
ATIVIDADE
08
7.63
07
7.78
15
7.70
DINAMISMO
01
0.95
05
5.56
06
3.08
POSIÇÃO
03
2.86
01
1.11
04
2.06
REALIZAÇÃO
02
1.90
01
1.11
03
1.53
MUDANÇA
01
0.95
01
1.11
02
1.02
37
35.24
38
42.22
75
38.46
ESTADO
18
17.15
12
13.34
30
15.39
ATIVIDADE
13
12.39
09
10.00
22
11.28
DINAMISMO
03
2.86
–
–
03
1.53
POSIÇÃO
02
1.90
01
1.11
03
1.53
MUDANÇA
03
2.86
–
–
03
1.53
REALIZAÇÃO
02
1.90
–
–
02
1.02
∅
–
–
01
1.11
01
0.52
41
39.06
23
25.56
64
32.80
ESTADO
08
7.63
04
4.45
12
6.16
ATIVIDADE
01
0.95
02
2.22
03
1.53
MUDANÇA
03
2.86
–
–
03
1.53
DINAMISMO
01
0.95
01
1.11
02
1.02
POSIÇÃO
–
–
01
1.11
01
0.52
REALIZAÇÃO
01
0.95
–
–
01
0.52
14
13.34
08
8.89
22
11.28
oração núcleo
Estado
oração adverbial
TOTAL
Atividade
TOTAL
Dinamismo
TOTAL
477
Posição
ESTADO
02
1.90
03
3.34
05
2.57
POSIÇÃO
01
0.95
02
2.22
03
1.53
DINAMISMO
–
–
02
2.22
02
1.02
ATIVIDADE
–
–
01
1.11
01
0.52
MUDANÇA
–
–
01
1.11
01
0.52
03
2.85
09
10.00
12
6.16
ESTADO
01
0.95
03
3.34
04
2.06
DINAMISMO
01
0.95
01
1.11
02
1.02
ATIVIDADE
–
–
02
2.22
02
1.02
REALIZAÇÃO
01
0.95
–
–
01
0.52
03
2.85
06
6.67
09
4.62
01
0.95
01
1.11
02
1.02
01
0.95
01
1.11
02
1.02
ESTADO
04
3.81
02
2.22
06
3.08
ATIVIDADE
01
0.95
01
1.11
02
1.02
POSIÇÃO
–
–
01
1.11
01
0.52
REALIZAÇÃO
01
0.95
–
–
01
0.52
MUDANÇA
–
–
01
1.11
01
0.52
06
5.71
05
5.55
11
5.66
105
100
90
100
195
100
TOTAL
Realização
TOTAL
Mudança
ESTADO TOTAL
∅
TOTAL
TOTAL
Um cálculo mais acurado dos resultados expostos no Quadro 1 permite verificar que as quatro primeiras posições (totalizando 57%) combinam estado e atividade, predicações marcadas pela ausência de telicidade. Seguem-se as combinações entre estado e dinamismo ou dinamismo e estado (9%) e entre estado e posição ou posição e estado (5%), também predicações não-télicas. O total de construções que só envolvem predicações não-télicas é de 86%, e, assim, apenas 14% das construções causais envolvem pelo menos um estado de coisas télico, e apenas 0,5% (apenas 1 caso) tem duas predicações télicas (realização e realização) na construção. Vistas separadamente as duas predicações da construção causal, verifica-se que são altamente ocorrentes as predicações não-dinâmicas (estado e 478
posição). As predicações de estado estão em 38% das orações núcleo e em 53% das orações causais. Verifica-se, ainda, que elas estão em cerca de 70% de todas as construções examinadas, seja numa, seja noutra das orações. As predicações de atividade estão em 33% das orações núcleo e em 23% das orações causais; em 45% dos casos, as predicações de atividade aparecem em alguma das duas orações. Esses resultados estão de acordo com as conclusões de Neves (1997), que, estudando as construções lato sensu causais (as causais propriamente ditas, as condicionais e as concessivas) e as temporais, verificou um contraste entre as temporais e as “causais”, assim resumido: a) só as temporais têm mais predicações de Atividade que de Estado; b) só as temporais têm maioria de predicações com o traço [+ dinamismo]; c) só as temporais têm maioria de predicações com o traço [+ controle]; d) nas temporais a prevalência de predicações com o traço [- télico] é menor que nas outras. 5.2. O Quadro 2 pode evidenciar as combinações encontradas, tendose em vista o conjunto de construções com relação de causalidade: Quadro 2 Resumo das combinações de tipos de predicação (Dik, 1989) nas construções causais ORAÇÃO NÚCLEO ESTADO
∅
23.07
15.39
6.16
2.57
2.06
1.02
3.08
ATIVIDADE
7.70
11.28
1.53
0.52
1.02
–
1.02
DINAMISMO
3.08
1.53
1.02
1.02
1.02
–
–
POSIÇÃO
2.06
1.53
0.52
1.53
–
–
0.52
REALIZAÇÃO
1.53
1.02
0.52
–
0.52
–
0.52
MUDANÇA
1.02
1.53
1.53
0.52
–
–
0.52
–
0.52
–
–
–
–
–
38.46
32.80
11.28
6.16
4.62
1.02
5.66
ESTADO
ORAÇÃO ADVERBIAL
ATIVIDADE DINAMISMO POSIÇÃO REALIZAÇÃO MUDANÇA
Ø TOTAL
479
Verifica-se claramente nesse Quadro que certas casas ficam vazias, e que certas combinações são muito raras. O número de casas vazias aumenta mais ainda se se registram as combinações separadamente, isto é, vistas em cada um dos subtipos: as orações “causais” stricto sensu (as tradicionalmente denominadas “subordinadas adverbiais causais”) (Quadro 3) e as orações tradicionalmente denominadas “coordenadas explicativas” (Quadro 4): Quadro 3 Combinações de tipos de predicação (Dik, 1989) nas construções chamadas “subordinadas adverbiais causais” (causais de enunciado) ORAÇÃO NÚCLEO ESTADO
20.95
17.15
7.63
1.90
ATIVIDADE
7.63
12.39
0.95
DINAMISMO
0.95
2.86
POSIÇÃO
2.86
1.90
REALIZAÇÃO
1.90
MUDANÇA
ESTADO ORAÇÃO ADVERBIAL
ATIVIDADE DINAMISMO POSIÇÃO REALIZAÇÃO MUDANÇA
TOTAL
∅
0.95
0.95
3.81
–
–
–
0.95
0.95
–
0.95
–
–
–
0.95
–
–
–
1.90
0.95
–
0.95
–-
0.95
0.95
2.86
2.86
–
–
–
–
35.24
39.06
13.34
2.85
2.85
0.95
5.71
Quadro 4 Combinações de tipos de predicação (Dik, 1989) nas construções chamadas “coordenadas explicativas” (causais de enunciação) ORAÇÃO NÚCLEO ESTADO
25.55
13.34
4.45
ATIVIDADE
7.78
10.00
DINAMISMO
5.56
–
POSIÇÃO
1.11
REALIZAÇÃO MUDANÇA
ESTADO ORAÇÃO EXPLICATIVA
ATIVIDADE DINAMISMO POSIÇÃO REALIZAÇÃO MUDANÇA
∅ TOTAL
480
∅
3.34
3.34
1.11
2.22
2.22
1.11
2.22
–
1.11
1.11
2.22
1.11
–
-
1.11
1.11
2.22
–
–
1.11
1.11
–
–
–
–
–
-
1.11
–
–
1.11
–
–
1.11
–
1.11
–
–
–
–
–
42.22
25.56
8.89
10
6.67
1.11
5.55
Uma diferença notável é que ocorrem mais predicações télicas nas orações adverbiais causais pertencentes às construções causais de enunciado (13%) que nas pertencentes às construções causais de enunciação (4%) e que, pelo contrário, ocorrem mais predicações télicas nas orações nucleares pertencentes às construções causais de enunciação (8%) do que nas pertencentes às construções causais de enunciado (4%). 5.3. Quanto à relação modo-temporal nas construções causais, o que se encontrou está registrado no Quadro 5:
explicativa
%
total
%
presente do indicativo
PRESENTE DO INDICATIVO
62
60.19
52
59.10
114
59.68
PRET. PERFEITO INDICATIVO
06
5.82
04
4.55
10
5.23
–
–
03
3.40
03
1.57
PRET. IMPERFEITO DO IND.
01
0.97
01
1.14
02
1.04
FUTURO DO PRETÉRITO DO IND.
01
0.97
–
–
01
0.53
70
67.95
60
68.19 130
68.05
PRESENTE DO INDICATIVO
06
5.83
07
7.95
13
6.80
PRET. PERFEITO DO INDICATIVO
02
1.94
03
3.40
05
2.61
PRET. IMPERFEITO DO INDICATIVO
02
1.94
–
–
02
1.04
PRET.MAIS QUE PERFEITO COMP.
–
–
01
1.14
01
0.53
10
9.71
11
12.49
21
10.98
PRET. IMPERFEITO DO INDICATIVO
03
2.92
03
3.40
06
3.14
PRESENTE DO INDICATIVO
01
0.97
04
4.55
05
2.61
PRET.MAIS QUE PERFEITO COMP.
–
–
01
1.14
01
0.53
FUTURO PRETÉRITO DO IND.
–
–
01
1.14
01
0.53
PRET. PERFEITO DO INDICATIVO
01
0.97
–
–
01
0.53
FUTURO IMPERFEITO COMP.
01
0.97
–
–
01
0.53
06
5.83
09
10.23
15
7.87
ORAÇÃO ADVERBIAL
FUTURO DO PRESENTE COMP.
TOTAL
pret. perfeito do ind.
TOTAL
pret. imperfeito do ind.
TOTAL
causal
ORAÇÃO NÚCLEO
%
Quadro 5 Relação modo-temporal nas construções causais
481
futuro presente comp
PRESENTE DO INDICATIVO
07
6.79
02
2.27
09
4.72
PRET. PERFEITO DO INDICATIVO
03
2.92
–
–
03
1.57
PRESENTE CONTÍNUO
01
0.97
–
–
01
0.53
11
10.68
02
2.27
13
6.82
01
0.97
04
4.55
05
2.61
01
0.97
04
4.55
05
2.61
PRESENTE DO INDICATIVO
01
0.97
02
2.27
03
1.57
PRET. PERFEITO DO INDICATIVO
03
2.92
–
–
03
1.57
FUTURO DO PRETÉRITO DO IND.
01
0.97
–
–
01
0.53
05
4.86
02
2.27
07
3.67
103
100
88
100
191
100
TOTAL
presente não ind.
PRESENTE DO INDICATIVO
TOTAL
futuro do pretérito do ind.
TOTAL
TOTAL
As relações entre predicações no presente do indicativo constituem 60% dos casos. Diferentemente do que ocorre com as relações condicionais, seguem-se, pela ordem, esquemas que envolvem forma verbal ligada à telicidade, o pretérito perfeito: 7% com pretérito perfeito na núcleo e com presente na adverbial, e 5% com pretérito perfeito na adverbial e com presente na núcleo. Apenas 2% combinam pretérito perfeito com pretérito perfeito. 5.4. O cruzamento entre o tipo de estados de coisas envolvidos nas orações núcleo e a forma modo-temporal de seus verbos está no Quadro 6:
TIPO VERBO
TEMPO VERBAL
causal
%
explicativa
%
total
%
Quadro 6 Relação entre a forma verbal e o tipo de predicação (Dik, 1989) das orações nucleares nas construções causais
estado
PRESENTE DO INDICATIVO
30
28.57
33
36.66
63
32.30
PRET. IMPERFEITO
03
2.85
04
4.44
07
3.58
PRET. PERFEITO
02
1.90
01
1.12
03
1.53
FUTURO DO PRESENTE
01
0.96
–
–
01
0.52
FUTURO PRETÉRITO
01
0.96
–
–
01
0.52
37
35.24
38
42.22
75
38.45
TOTAL
482
atividade
PRESENTE DO INDICATIVO
28
26.67
16
17.77
44
22.56
PRET. IMPERFEITO
02
1.90
04
4.44
06
3.08
FUTURO DO PRESENTE DO IND.
04
3.80
02
2.22
06
3.08
FUTURO DO PRESENTE COMP.
04
3.80
–
04
2.05
FUTURO DO PRETÉRITO
01
0.96
01
1.12
02
1.02
PRET. PERFEITO
01
0.96
–
–
01
0.52
PRET. PERFEITO COMP.
01
0.96
–
–
01
0.52
41
39.05
23
25.55
64
32.83
PRESENTE DO INDICATIVO
09
8.57
07
7.78
16
8.20
FUTURO DO PRETÉRITO
03
2.85
–
–
03
1.53
FUTURO DO PRESENTE
02
1.90
–
–
02
1.02
–
–
01
1.12
01
0.52
14
13.32
08
8.90
22
11.27
02
1.90
06
6.66
08
4.10
–
–
02
2.22
02
1.02
01
0.96
–
–
01
0.52
–
–
01
1.12
01
0.52
TOTAL
03
2.86
09
10.00
12
6.16
PRETÉRITO PERFEITO
03
2.85
06
6.66
09
4.62
TOTAL
03
2.85
06
6.66
09
4.62
PRETÉRITO PERFEITO
01
0.96
01
1.12
02
1.02
TOTAL
01
0.96
01
1.12
02
1.02
06
5.72
05
5.55
11
5.65
06
5.72
05
5.55
11
5.65
105
100
90
100
195
100
TOTAL
dinamismo
PRET. PERFEITO
TOTAL
posição
PRESENTE DO INDICATIVO PRET. PERFEITO PRET. IMPERFEITO
FUTURO DO PRETÉRITO
realização
mudança
∅
∅ TOTAL
TOTAL
Verifica-se que, das 75 orações com predicação de estado, 63 (84%) estão no presente do indicativo. Como 8 das 12 orações núcleo (67%) do tipo Posição estão no presente do indicativo, há um total de 82% de predicações não-dinâmicas que estão na forma de presente do indicativo. Somando-se ao presente o imperfeito do indicativo e o futuro, tem-se um total de formas ver483
bais não ligadas à telicidade de 96% para as predicações de Estado, e de 95%, para todas as predicações não-dinâmicas. Nas predicações não-télicas dinâmicas, verifica-se que a predominância do tempo presente é menor (70%, sendo 69% nas de Atividade e 73% nas de Dinamismo). Somado o presente com o pretérito imperfeito e com o futuro, chega-se a 96% para Atividade e Dinamismo. Já nas predicações télicas, só ocorre o pretérito perfeito. 5.5. O cruzamento entre o tipo de estados de coisas envolvidos nas orações causais e a forma modo-temporal de seus verbos está no Quadro 7:
TIPO VERBO
TEMPO VERBAL
causal
%
explicativa
%
total
%
Quadro 7 Relação entre a forma verbal e o tipo de predicação (Dik, 1989) das orações causais
estado
PRESENTE DO INDICATIVO
50
47.62
40
44.44
90
46.15
PRET. IMPERFEITO
05
4.76
03
3.32
08
4.10
PRET. PERFEITO
01
0.96
02
2.21
03
1.53
FUTURO DO PRESENTE COMP.
–
–
02
2.21
02
1.02
PRET. PERFEITO COMP.
–
–
01
1.12
01
0.52
56
53.34
48
53.30 104
53.32
PRESENTE DO INDICATIVO
20
19.04
18
20.00
38
19.48
FUTURO PRETÉRITO
01
0.96
01
1.12
02
1.02
PRET. IMPERFEITO
–
–
01
1.12
01
0.52
PRET. PERFEITO
–
–
01
1.12
01
0.52
01
0.96
–
–
01
0.52
–
–
01
1.12
01
0.52
TOTAL
atividade
PRET. PERFEITO COMP. PRET. MAIS QUE PERFEITO COMP. FUTURO DO IMPERFEITO COMP.
01
0.96
–
–
01
0.52
23
21.92
22
24.48
45
23.10
PRESENTE DO INDICATIVO
04
3.80
06
6.65
10
5.09
PRET. IMPERFEITO
01
0.96
–
–
01
0.52
TOTAL
dinamismo
PRET. PERFERFEITO
–
–
01
1.12
01
0.52
01
0.96
–
–
01
0.52
PRET.MAIS QUE PERFEITO COMP.
–
–
01
1.12
01
0.52
FUTURO DO PRESENTE COMP.
.–
–
01
1.12
01
0.52
06
5.72
09
10.01
15
7.69
FUTURO DO PRETÉRITO
TOTAL
484
posição
PRESENTE DO INDICATIVO
mudança
PRET. PERFEITO
TOTAL
TOTAL
realização
PRET. PERFEITO TOTAL
∅
∅ TOTAL
TOTAL
06
5.70
06
6.65
12
6.15
06
5.70
06
6.65
12
6.15
07
6.66
03
3.32
10
5.12
07
6.66
03
3.32
10
5.12
07
6.66
01
1.12
08
4.10
07
6.66
01
1.12
08
4.10
–
–
01
1.12
01
0.52
–
–
01
1.12
01
0.52
105
100
90
100
195
100
Verifica-se que, das 104 orações com predicação de Estado, cerca de 90 (87%) estão no presente do indicativo. Como 100% das orações causais de Posição estão no presente do indicativo, são 88% de predicações não-dinâmicas (102) na forma de presente do indicativo. Somando-se ao presente o imperfeito do indicativo e o futuro, tem-se um total de formas verbais não ligadas à telicidade de 96% para as predicações não-dinâmicas. Nas predicações nãotélicas dinâmicas, verifica-se que a predominância do tempo presente é um pouco menor nas de Atividade (85%) e menor ainda nas de Dinamismo (67%). Somado o presente com o pretérito imperfeito e com o futuro, chega-se a 93% para Atividade e a 87% para Dinamismo. Já nas predicações télicas, só ocorre pretérito perfeito. 5.6. Comparando-se os quadros 6 e 7, verifica-se que as predicações não-dinâmicas ocorrem no presente do indicativo mais nas orações causais do que nas nucleares: Estado ocorre no presente em 46% das orações causais e em 32% das nucleares, e Posição está no presente em 6% das orações causais e em 4% das nucleares. As predicações dinâmicas não-télicas, por sua vez, ocorrem no presente mais nas orações núcleo: Atividade está no presente em 22% das orações núcleo e em 19% das causais, e Dinamismo está no presente em 8% das orações núcleo e em 5% das causais. Quanto às predicações télicas, Realização não ocorre no presente em nenhuma oração. 5.7. A relação de modo verbal entre as orações das construções causais pode ser vista no Quadro 8:
485
Quadro 8 Relação entre o modo verbal da oração nuclear e da oração causal apódose
prótase
causal
%
INDICATIVO
INDICATIVO
103
98.10
GERÚNDIO
INDICATIVO
02
SUBJUNTIVO
INDICATIVO
IMPERATIVO
INFINITIVO
explicativa
%
total
%
86
95.56
189
96.92
1.90
–
–
02
1.02
–
–
02
2.22
02
1.02
INDICATIVO
–
–
01
1.11
01
0.52
INDICATIVO
–
–
01
1.11
01
0.52
total
105
53.85
90
46.15
195
100
Todos os tipos de construções têm mais de 95% de indicativo nas duas orações. Há algumas diferenças entre os dois subtipos que serão estudados separadamente a seguir (em 6.1 e 6.2). Merece especial referência o fato de que só nas construções explicativas ocorrem verbos no subjuntivo e no imperativo na oração núcleo.
6. Os subtipos de construções causais Na história dos estudos sobre construções causais, várias têm sido as propostas de critérios para distinguir-se entre os esquemas que a tradição liga a uma “subordinação causal” (causais do enunciado) e os que a tradição liga a uma “coordenação causal” (causais da enunciação). Diz García (1994:371), a propósito da diferença entre esses dois tipos de construção: “Não é que todas as causais sejam interordenadas, nem todas sejam coordenadas, nem parte interordenadas e parte coordenadas: é que formal, funcional e semanticamente as causais da enunciação são expressões alter que se comportam como expressões alius (coordenadas que parecem interordenadas) e as causais do enunciado são expressões alius que se comportam como expressões alter (interordenadas que parecem coordenadas).” (tradução minha). O que García propõe é que não se tente uma diferenciação paradigmática entre as conjunções que atuam nos dois tipos de construção, mas que se considere a existência de uma ambigüidade estrutural entre essas conjunções, derivada da própria definição que elas têm. 486
Entre os critérios sintáticos, lembrem-se especialmente os propostos por Kovacci (1986), e, especialmente, para as causais com verbo no indicativo, que são as prototípicas. As causais de enunciado que tenham verbo no indicativo (as “circunstanciais”): a)
podem inverter a ordem de seus membros, colocando-se o causante antes do causado (característica já apontada pela maioria dos estudiosos, como compatível com o caráter não coordenado dessas construções):
(02)
Então eles pegavam os pássaros que não podiam voar .... PORQUE estavam com as penas grudadas de petróleo
(D2-SSA-98: 34-36) (02a) Então eles pegavam os pássaros que, PORQUE estavam com as penas grudadas de petróleo, não podiam voar b)
admitem a ênfase da causa, operada por mas:
(02b) não podiam voar ... mas porque estavam com as penas grudadas de petróleo c)
são compatíveis com a construção cindida:
(02c) era porque estavam com as penas grudadas de petróleo que não podiam voar d)
podem construir-se com a oração causal em infinitivo:
(02d) não podiam voar por estarem com as penas grudadas de petróleo
As causais de enunciação que tenham verbo no indicativo (as “modificadoras de modalidade”) : a)
não podem inverter a ordem de seus membros (característica compatível com um caráter coordenado dessas construções):
(30)
eu adorei o tal do acarajé ... porque quando serviram aqui uma vez ... eu vi e não gostei ...
(DID-RJ-328: 171-172) (30a) *porque quando serviram aqui uma vez ... eu vi e não gostei ... eu adorei o tal do acarajé b)
não admitem ênfase operada por mas:
(30b) *eu adorei o tal do acarajé ... mas porque quando serviram aqui uma vez ... eu vi e não gostei c)
não são compatíveis com a construção cindida:
487
(30c) *eu adorei o tal do acarajé ... foi porque quando serviram aqui uma vez ... eu vi e não gostei d)
não podem construir-se com a oração causal em infinitivo:
(30d) *eu adorei o tal do acarajé ... por quando serviram aqui uma vez ... eu ter visto e não ter gostado
Critérios semânticos propostos por Kovacci (1986) também podem ser lembrados. Nas causais do enunciado, a modalidade da frase afeta todo o conjunto da construção (tanto a causa como a conseqüência): (02e) Declaro que (os pássaros) não podiam voar .... porque estavam com as penas grudadas de petróleo
E não: (02f) *Porque estavam com as penas grudadas de petróleo, declaro que (os pássaros) não podiam voar
Nas causais da enunciação, a modalidade de frase só afeta a oração causal: (30e) Porque quando serviram aqui uma vez ... eu vi e não gostei declaro que adorei o tal do acarajé Isso ocorre porque a causal, nesse caso, responde à pergunta: “que fundamento, motivo ou razão há para declarar que adorei o tal do acarajé? “ O corpus estudado oferece vários bons exemplos dessa característica, como se verá em 6.2.
6.1 As construções com relação causal entre proposições É neste tipo de construção que surge a questão da “realidade” ou “efetividade” da causação. Mais do que de “realidade”, considero pertinente falar de “factualidade” da relação causal: a questão não é dois estados de coisas serem relacionados, quanto à causa, mas é o falante propô-los como tal. Desse modo, considerando-se que a “causalidade” é enunciada, e não (cientificamente) comprovada, ela deve ser entendida como referente a qualquer zona que se situe no amplo espectro que vai, por exemplo, da causa eficiente à justificação, passando por relações como razão, motivo e explicação. 488
No nosso corpus verificam-se 53,84% de construções causais do tipo I, ou seja, entre proposições (105 ocorrências em 195). Dessas, cerca de 92% têm a oração/proposição causal anteposta, considerados todos os conectivos (porque, como, já que, desde que). Excluindo-se as orações iniciadas por como, em que a anteposição é categórica, a porcentagem de proposições causais pospostas sobe para 98%, havendo apenas dois casos dentre os 105, de anteposição, ambos os casos apresentando algum tipo de condicionamento, como já se discutiu em 3., acima. A primeira reflexão que esses resultados sugerem diz respeito ao estatuto subordinado dessas construções, já que, como tem sido proposto (Haiman, 1985), que já apontei acima, à subordinação se liga uma maior mobilidade dos termos em relação. Isso não se confirma no caso das construções causais, o que, entretanto, não surpreende, se se considerar a integração dos diversos componentes (sintático, semântico, pragmático) determinantes da estruturação do enunciado, conforme discuti acima, em 3. Uma verificação superficial da relação causa-efeito/conseqüência pode induzir à preconização de uma motivação icônica que favoreça a anteposição da expressão de causa em relação à de conseqüência. Não se esqueça, porém, que não se pode buscar nos enunciados a pura ordenação lógica ou cronológica de eventos, já que, por definição, cada enunciado constitui uma versão particular – com base cognitiva, é evidente – da organização dos fatos. Vistos na sua ordem natural/lógica, pois, os eventos causalmente relacionados – associados, na base, à subseqüência temporal, como já observei no início deste trabalho – se disporiam na ordem causa-conseqüência. Examinada, porém, a construção causal como o enunciado de “fatos possíveis” por um falante, (que emite “proposições”), a ordem se subordina à escolha que esse falante faz da apresentação dos fatos, o que reflete não apenas a percepção dos eventos (perspectiva cognitiva), mas, ainda, a organização de uma porção de fala particular, dentro da qual o aspecto cognitivo é apenas um dos componentes, subordinado à intenção comunicativa. Nesse ponto-de-vista, pode-se inverter o raciocínio, quanto à questão da iconicidade nas construções causais: na verdade, a ordenação conseqüência-causa num enunciado pode ser considerada icônica no sentido de que reflete a ordem pela qual de um efeito se deduz uma causa. Para exprimir essa relação entre causa e conseqüência, aliás, o falante não dispõe apenas do complexo formado por uma oração nuclear mais uma oração causal (com como, porque, já que, etc.). Ele pode, por exemplo, enunciar, ao invés de (31), que é o que ocorre no corpus, algo como (31a): 489
(31) L1 ... não citei como o primeiro mais exótico no princípio porque eu não lembrava o nome do peixe (D2-POA-291: 260-261) (31a) Eu não lembrava o nome do peixe, por isso/então não citei como o primeiro mais exótico no princípio.
O que ocorre são diferentes estratégias que regem a escolha, com diferentes efeitos informativo-pragmáticos: entre uma e outra formulação muda a distribuição de informação, em termos de progressão informativa, assim como diferentemente se resolve, no nível do texto, a continuidade tópica. Disso trata, com base em Schiffrin (1985), Paiva (1991:35 ss.), que examina como “causais” esses dois tipos de enunciado.
6.2 As construções com relação causal entre frases Tradicionalmente chamadas “coordenadas explicativas”, as frases de expressão de causa que entram nessas construções, encabeçadas por porque ou que, são sempre pospostas. A partir daí pode ser invocada, em primeiro lugar a questão da imobilidade posicional das frases envolvidas, a qual favorece, realmente, sua interpretação como coordenadas (Haiman, 1985). Além disso, é possível que o desligamento sugerido pela frouxa ligação entre dois enunciados (“clauses”, no modelo de Dik, 1989), correspondentes a dois diferentes atos de fala, tenha sido o responsável direto pela interpretação tradicional, com assimilação de “independência” a “coordenação”. Esse tipo de ligação, diferente da subordinação entre orações, pode visualizar-se com os esquemas que se oferecem, abaixo, para as ocorrências (12), (32), (15) e (33): (12) você já imaginou para para fazer a peça Hair quanta gente que não foi ... éh éh:: não foi éh:: preparada ali ... porque o grupo que trabalha em Hair é enorme né? ... (DID-SP-234: 246-249) (32) é graças a este colegiado ... que o senhor presidente vai evidentemente pautar: suas decisões ... porque evidentemente nós temos que ... admitir ... que um indivíduo ... não tem condições ... de resolver: todas aquelas questões ... atinentes ao sindicato (DID-RE-131: 246-252)
490
(15) agora dias que não tem aula ele pergunta e a resposta é negativa aí então ele diz para a irmã ... “levanta que hoje não tem aula podemos brincar” aí levan::tam (D2-SP-360: 342-345) (33) L2 mas é isso que deve ser proibido ... porque se você usa os meios de comunicação usa televisão usa rádio pra difundir o quê? pra difundir livros? ... uma propaganda você não pode ... num programa ... você num PODE (D2-RE-05: 351-354)
Observem-se os esquemas: Realizo esse primeiro ato de fala
(12) ENUNCIADO 1
PORQUE
Você já imaginou...? Interrogação (32) ENUNCIADO 1
Asserção PORQUE
ele vai evidentemente pautar
ENUNCIADO 2 evidentemente nós temos que admitir
Asserção modalizada epistemicamente
(15) ENUNCIADO 1
ENUNCIADO 2 o grupo que trabalha em Hair é enorme
Asserção modalizada deôntica e epistemicamente PORQUE
ENUNCIADO 2
levanta
hoje não tem aula
Injunção
Asserção
(33) ENUNCIADO 1 isso deve ser proibido Asserção modalizada deonticamente
PORQUE
ENUNCIADO 2 você não pode... Asserção modalizada deonticamente
As frases causais de enunciação iniciadas por porque constituem 95,55% dos casos (86 em 90), e as iniciadas por que são 4,45% (4 em 90). Essa grande diferença percentual se explica se se pensar que, em todos os casos de ocorrência de que, é possível a substituição por porque, sem perda da mesma expressão de causalidade, como se vê em: (34) Doc. Na sua opinião, qual o esporte favorito do gaúcho? Inf. Eu acho que é o futebol, que a gente só ouve fala(r) em futebol ... só futebol, né ... (DID-POA-045: 226-228)
491
(34a) Doc. Na sua opinião, qual o esporte favorito do gaúcho? Inf. Eu acho que é o futebol, porque a gente só ouve fala(r) em futebol ... só futebol né ... (35) e o ... foi ... fomos com um tio meu, que o pessoal já tinha ido na frente (DID-POA-045: 307-311) (35a) e o ... foi ... fomos com um tio meu, porque o pessoal já tinha ido na frente (36) Japonês melhor que americano NÃO É!, que o operário japonês não é um operário (EF-RJ-379: 228-229) (36a) Japonês melhor que americano NÃO É!, porque o operário japonês não é um operário
Nem sempre, porém, se pode fazer o inverso. Parece que o fato de o conectivo que não constituir inequivocamente um elemento causal condiciona sua mais baixa escolha. Vejam-se os pares: (30) eu adorei o tal do acarajé ... porque quando serviram aqui uma vez ... eu vi e não gostei ... (DID-RJ-328: 171-172) (30a) *eu adorei o tal do acarajé ... que quando serviram aqui uma vez ... eu vi e não gostei ... (37) eu acho que a gente se sente muito bem comendo assim frutas de manhã ... né? você tem a impressão que ... eh ... são coisas leves ... porque fruta ... as frutas que são colocadas são frutas leves ... (DID-RJ-328: 331-334) (37a) ? eu acho que a gente se sente muito bem comendo assim frutas de manhã ... né? você tem a impressão que ... eh ... são coisas leves ... que fruta ... as frutas que são colocadas são frutas leves ... (38) Então a gente ... quando tem também esses encontros, que chamam-se regionais, porque teve esse encontro mundial, né, e às vezes têm ... quando é de todo mundo e outras vezes tem nacional, que é então só do Brasil (EF-SP-405: 84-90) (38a) *Então a gente ... quando tem também esses encontros, que chamam-se regionais, que teve esse encontro mundial, né, e às vezes têm ... quando é de todo mundo e outras vezes tem nacional, que é então só do Brasil
492
Em (30a), o que facilmente se interpretaria como pronome relativo; em (37a) ele poderia ser interpretado como conjunção integrante. Em (38a), por outro lado, parece que a perda interpretativa que o grande número de truncamentos dá ao texto não suportaria a indefinição categorial e semântica do que , “pedindo” a maior explicitude do porque. De todo modo, pode-se falar, em princípio, de comutabilidade dos conectores que e porque nesses contextos, como se pode falar, também, na possibilidade de a relação causal entre as frases se manter (embora não explícita), se forem omitidos esses conectores: (34b) Doc. Na sua opinião, qual o esporte favorito do gaúcho? Inf. Eu acho que é o futebol, ∅ a gente só ouve fala(r) em futebol ... só futebol, né ... (35b) e o ... foi ... fomos com um tio meu, ∅ o pessoal já tinha ido na frente (36b) Japonês melhor que americano NÃO É!, ∅ o operário japonês não é um operário
Essa possibilidade confirma a independência entre os dois segmentos relacionados por causalidade nesse tipo de construção, independência que, obviamente relacionada com não-subordinação, tem levado – graças à tradicional dicotomização entre subordinação e coordenação – à consideração dessas frases como “coordenadas”. A denominação, também tradicional, “explicativas” é, do mesmo modo, facilmente compreensível, já que, nesse tipo de relação causal – estabelecida entre atos de fala, e portanto entre segmentos de absoluta independência –, nunca está abrigada a causalidade real/efetiva/material/eficiente, e nem mesmo a causalidade emanada da visão dos fatos (“proposições”) do falante.
7. Considerações finais As considerações particulares foram: a) O estudo das construções causais ocorrentes numa língua natural não pode governar-se pelos esquemas lógicos. Esse estudo necessariamente abriga a investigação do complexo de domínios envolvidos na produção dos enunciados. 493
b) Uma interpretação correta das construções causais depende de uma escolha pragmaticamente motivada para a consideração do que essas construções representam. c) As construções causais com a oração causal anteposta (representativamente as com como) e as construções causais com a oração causal posposta (representativamente as com porque) constituem diferentes organizações das relações causais, do ponto de vista informativo: as primeiras trazem a causa em função temática, representando basicamente informação compartilhada, enquanto as outras trazem a causa em função remática, representando basicamente informação nova. d) Um estudo funcionalista (Dik, 1989) das construções causais, considerando as diferentes camadas de constituição da frase, permite a consideração de dois grandes grupos, o das causais de enunciado (em que se relacionam predicações ou proposições) e o das causais de enunciação (em que se relacionam atos de fala). O estudo funcionalista permite ainda a consideração desses diferentes grupos na sua relação com as funções da linguagem (Halliday, 1985). e) As construções causais encontradas no NURC apresentam predominantemente predicações não-télicas (86%) e não-dinâmicas (70%). Predomina o tempo presente, especialmente nas predicações de estado (84% nas orações nucleares e 87% nas orações adverbiais), o que tem relação com o caráter não-télico das predicações. Em resumo, neste estudo examinaram-se as construções causais do corpus selecionado do NURC, buscando-se discutir a noção de causalidade em relação ao complexo de domínios envolvidos na produção dos enunciados. Assim, ao lado da reflexão sobre os esquemas lógico-semânticos implicados na relação causal, buscou-se uma definição pragmática dos enunciados que se constroem sobre essa relação, envolvendo-se especialmente a questão da distribuição da informação, à qual se vincula a questão da ordem. O estudo das construções complexas considerou, afinal, os diferentes domínios de interpretação semântica, conduzindo-se dentro da proposta funcionalista de organização dos enunciados em camadas, e abrigando-se, ainda, no modelo mais amplo que estabelece as metafunções da linguagem.
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496
AS CONSTRUÇÕES CONDICIONAIS
Maria Helena de Moura Neves (UNESP) Auxiliar de pesquisa: Elaine Maria de Souza
1. O que é uma construção condicional? Diz Haiman (1978) que não existe uma definição satisfatória, nem filosófica, nem lingüística, para as construções condicionais das línguas naturais, e que, na falta dessa definição, o único critério para a identificação dos membros da classe é a forma superficial: em inglês, a conjunção if, nas outras línguas, as conjunções correspondentes. Desse modo, em português, a análise dessa classe de construções se representaria na análise das orações iniciadas por se (ou equivalentes). Na verdade, essa orientação tem sido visível em muitos estudos disponíveis dessas construções. Geraldi (1978), por exemplo, traz, no título, a expressão enunciados condicionais, mas todo o trabalho se desenvolve sobre o que vem denominado como enunciados da forma ‘se S1, S2’.
2. A concepção lógico-semântica da construção condicional Dentro de uma construção condicional a proposição subordinada é tradicionalmente chamada prótase e a principal é chamada apódose. Diz-se que a construção se apóia basicamente numa hipótese, razão pela qual o termo período hipotético é o que está presente, nos estudos clássicos, como designação genérica das construções condicionais. A relação que se instaura entre o conteúdo da prótase (entidade p) e o conteúdo da apódose (entidade q) é uma relação do tipo condição para realização conseqüência/resultado da resolução da condição enunciada (resultado que se resolve em realização, ou nãorealização, ou eventual realização).
Desse modo, já se prevêem três grandes tipos de construções ligadas a uma proposição condicionante: a)
dada a realização/ a verdade de p, segue-se, necessariamente, a realização/a verdade de q (real);
b)
dada a não-realização/ a falsidade de p, segue-se, necessariamente, a nãorealização/ a falsidade de q (irreal);
c)
dada a potencialidade de p, segue-se a eventualidade de q (eventual).
É óbvio que o uso lingüístico real das construções condicionais não reflete pura e simplesmente a condicionalidade definida numa implicação lógica se ... então, isto é, não exige uma relação condicional de valores de verdade, e isso tem sido freqüentemente ressaltado pelos estudiosos (Haiman, 1978; 1986; Comrie, 1986). Há construções condicionais que se aproximam daquela relação “bem comportada”, que abriga a noção de realização no mundo real, na apódose, dependente de uma condição suficiente, na prótase, como em: (01) inclusive ... se eu tiver ... ele disse que vai ser necessário ... um aborto (D2-SP-360: 83-86) (02) então ... se eu comer muito na hora do café eu não vou ter vontade de almoçar (DID-RJ-328: 310-311) (3)
... se na mulher se retira os ovários ... retirando portanto a fonte pro/ da/ eh:: / elaboradora de hormônio ... feminino ... o:: as glândulas mamárias ... elas se atrofiam... (EF-SSA-49: 84-89)
Sweetser (1990) denomina de conteúdo essas condicionais, opondo-as às epistêmicas e às de atos de fala, de que tratarei mais abaixo. Na verdade, o que difere é a leitura dos enunciados segundo seu funcionamento nesses diferentes domínios de interpretação semântica. Nas construções condicionais com leitura de conteúdo, existe mais concretamente uma relação causal, no sentido de que um estado de coisas capacita, e, assim, motiva, a realização de outro: em (3), por exemplo, pode-se entender que a retirada dos ovários (fonte elaboradora de hormônio feminino) é condição suficiente para a atrofia das glândulas mamárias, e que, portanto, a 498
retirada dos ovários, se ocorre, causa a atrofia das glândulas mamárias. O mesmo raciocínio feito para (3), que é uma factual (ver, abaixo, 5.1.), vale para contrafactuais (ver, abaixo, 5.2.) também de conteúdo do tipo de: (03a) Se se tivessem retirado os ovários, as glândulas mamárias se teriam atrofiado.
Nessa construção se registra que a retirada dos ovários teria sido condição suficiente, e, portanto, teria sido capacitação e motivo para a atrofia das glândulas mamárias. De todo modo, é muito difícil considerar que a interpretação de qualquer construção condicional se resolva na relação de condicionalidade (ou de causalidade) lógica, dependente dos valores de verdade das duas orações. A indicação de que a relação de condicionalidade/ causalidade mais concreta e direta existente entre os dois estados de coisas (refletidos nas duas predicações) de uma construção condicional pode ser avaliada como de conteúdo desvincula a interpretação dessas construções de uma relação puramente lógica. Do mesmo modo se deve raciocinar em relação às construções condicionais do tipo epistêmico, exatamente as que mais se poderia considerar como refletindo relações lógicas do tipo se ... então: (04) Se ela for uma criança tímida, eu vou ter que botar num colégio menor (DID-SSA-231: 121-122) (05) se ela foi criada para um FIM ... OUtro ... que NÃO ... a contemplação estética ... ela é pragmática (EF-SP-405: 303-305) (06) A identificação, se tiver assim, um caráter já de uma pequena, um pequeno exame, então já está com um nível mais complexo (EF-POA-291: 98-100) (07) se essas características estão explícitas da mesma maneira como eu as coloquei isso é conhecimento (EF-POA-278: 104-105) (08) se ele armazenou aquilo e devolve da mesma maneira como ele a recebeu, ele não fez nenhum trabalho, ele não manipulou essa informação (EF-POA-278: 120-123)
499
Pode-se dizer com Sweetser (1990) que, nessas construções, o que se expressa é a idéia de que o conhecimento da verdade da premissa hipotética expressa na prótase é uma condição suficiente para se deduzir a verdade da proposição expressa na apódose. A proposta é paralela à que se fez para as condicionais de conteúdo, mas já não se relacionam simples estados de coisas (predicações), e, sim, proposições, o que significa que o que está expresso na apódose (por exemplo, em (8), que “ele não fez nenhum trabalho, ele não manipulou a informação”) é uma conclusão a que levou aquilo que está expresso na prótase (por exemplo, em (8), a hipótese de que “ele armazenou aquilo e devolve da mesma maneira como ele a recebeu”). Em outras palavras, o que se diz em (8) é que, “se ele armazenou aquilo e devolve da mesma maneira como ele a recebeu”, eu concluo que “ele não fez nenhum trabalho, ele não manipulou essa informação”. É óbvio que essas construções também se distinguem das relações se ... então consideradas do ponto de vista lógico-formal, já que, como aponta Sweetser (1990), a satisfação dos valores de verdade do antecedente e do conseqüente, embora necessária, do mesmo modo que ocorre nas condicionais de conteúdo, não é suficiente para assegurar a condição de felicidade das construções condicionais epistêmicas. Um terceiro tipo de construções proposto por Sweetser (1990) leva facilmente a discussão sobre condicionalidade para o terreno pragmático. Trata-se das condicionais de atos de fala, do tipo de : (09) bem ... então :: ... a partir disto olha nós vamos poder entender ... qual o tipo de arte que se desenvolveu porque se eu quero criar ... uma réplica da realidade ... um DUplo do animal que eu quero caçar qual é o único estilo que eu posso usar? (EF-SP-405: 289-293) (10) também uso o método técnico-jurídico o método indutivo o método antigo o analógico então por que é que não tem que se considerar ciência? já que é objeto de método dedutivo (EF-RE-337: 310-313)
Nessas construções, o que está expresso na prótase influencia, possibilita ou causa a realização de um ato de fala, que vem na apódose. Assim, em (9), a hipótese de eu “criar uma réplica de realidade, um duplo do animal que eu quero caçar” me faz perguntar “qual é o único estilo que eu posso usar?”. 500
Tem sido apontada a existência de atos de fala condicionais (Van der Auwera, 1986), com exemplos clássicos nos quais expressamente se indica a realização de um ato de fala na apódose, como, por exemplo, em frases com condições de polidez do tipo de “se é que eu posso perguntar que é que o levou a fazer isso?”. Mas não apenas essas construções – com condições de polidez e sem um valor de condicionalidade genuíno – trazem implicação condicional de um ato de fala. As construções (9) e (10) acima também se parafraseiam como “se (prótase), então eu realizo este ato de fala (apódose)” e se incluem entre as construções condicionais de atos de fala.
3. Uma avaliação pragmática das construções condicionais Não é necessário que a análise se restrinja às construções desse terceiro tipo de Sweetser (1990) para que ela se coloque no terreno pragmático. Com efeito, as relações interacionais podem ser entrevistas na montagem de construções dependentes de condicionalidade, e noções ligadas à distribuição e ao fluxo da informação são participantes dessas construções. Haiman (1978) afirma que as orações condicionais são tópicos das construções em que ocorrem. A primeira evidência, diz Haiman, está no fato de que as definições de condicionais (encontradas na literatura filosófica) são muito semelhantes às definições de tópicos (encontradas na lingüística, em particular em Chafe, 1976), sendo possível, ainda, numa revisão dessas definições, torná-las virtualmente idênticas. Tanto as condicionais como os tópicos são dados, constituindo a moldura de referência em relação à qual a oração principal é verdadeira (se for uma proposição) ou apropriada (se não for). Outra evidência, esta morfológica, é a semelhança superficial que têm, em muitas línguas não-aparentadas, as orações condicionais e os tópicos, já que semelhanças na forma superficial das categorias gramaticais geralmente refletem semelhança subjacente dos significados. Um exemplo que Haiman fornece é a partícula hua -mo, que marca tópicos potenciais e que ocorre invariavelmente em orações condicionais. Por outro lado, a grande similaridade entre as prótases e as perguntas polares, tradicionalmente apontada (por exemplo, por Jespersen, 1940), também pode ser interpretada nessa direção que aproxima tópicos e prótases: os tópicos podem ser estabelecidos como tais pelos significados de miniconversações como as que, seguindo Jespersen, podem estabelecer-se, por exemplo, para as ocorrências (11) e (12): 501
(11) dependendo do tipo de pimenta se for pimenta malagueta por exemplo eu não gosto (D2-POA-291: 146-148) A: É pimenta malagueta? B: (É.) A: Então eu não gosto. (12) a alternativa que a gente dá para ele é se não quiser ir à escola então vai trabalhar ... (D2-SP-360: 350-352) A: Não quer ir à escola? B: (É.) A: Então vai trabalhar.
Como se explica esse complexo? O falante A propõe uma questão e fica implícito o consentimento de B para a validade da sua proposição. Por essa espécie de consentimento (obtido em silêncio), estabelece-se uma concordância sobre a validade da proposição, que, então, funciona como base para aquilo que A diz em seguida. Assim, a contraparte declarativa da pergunta de A é estabelecida como um dado, ou um tópico, para a declaração subseqüente de A. A partir desse raciocínio, o que a oração condicional apresenta é uma parte do conhecimento partilhado pelo falante e seu ouvinte, e, como tal, constitui o esquema selecionado pelo falante para assentar a porção seguinte de seu discurso. Ora, isso é o que faz um tópico, já que, como diz Chafe (1976), o tópico determina uma estrutura espacial, temporal ou individual que limita a aplicabilidade da predicação principal a um domínio restrito. Sweetser (1990) não aceita a ligação pura e simples entre condicionalidade e topicidade proposta por Haiman, observando que as condicionais têm mais complexidade do que a que vem sugerida nessa proposta, já que é necessário que se considerem: a) o grau e a natureza da identificação entre prótases e tópicos; b) o exame de outras características das condicionais lingüísticas (por exemplo, a hipoteticidade da prótase), além da ligação entre condicionalidade e topicidade. 502
O que Sweetser aponta, em resumo, é que, embora prótases condicionais possam freqüentemente carregar informação dada, elas têm outras funções mais específicas, e, afinal, topicidade não é uma definição de condicionalidade. A base dessa restrição, porém, é a identificação de dado com velho: Sweetser diz que, se o tópico for considerado como ligado a informação velha ou a uma apresentação mental de informação, as condicionais contrafactuais não poderão ser consideradas como tópicos. Para que elas sejam assim consideradas, será necessário que tópico seja definido como qualquer unidade lingüística que expressa uma moldura em relação à qual alguma coisa é apresentada. Assim, uma prótase pode ser considerada dada em relação à apódose, isto é, puramente no sentido de que sua aceitação (mesmo que hipotética) deve presumivelmente preceder qualquer consideração do conteúdo da apódose. Se uma condicional de conteúdo é dada, a informação é irrelevante, e o falante melhor faria se expressasse apenas o conteúdo da apódose, desvinculado de condicionalidade. Já no caso das condicionais epistêmicas e de atos de fala, a estrutura condicional pode ser relevante, mesmo quando o conteúdo da prótase já está aceito por ambos os interlocutores, pois há fortes razões sociais para se apresentarem conclusões e atos de fala como condicionais, mesmo que a condição já esteja garantidamente satisfeita. A prótase funciona, nesses casos, como tópico e como moldura, servindo para distinguir o contexto dentro do qual a apódose deve ser vista. Tudo o que Sweetser (1990) aponta em relação à condição de dado das condicionais, invocada por Haiman (1978), entretanto, não invalida a proposta básica de Haiman. De fato, como diz Sweetser, a condição de dado reside de preferência no cenário do discurso, não na semântica condicional, mas isso é o que está implícito também na proposta de Haiman, que apenas reúne condicionais e tópicos como dados, como moldura de referência para a apódose. Por outro lado, Haiman não identifica, propriamente, dado e velho, considerando informação velha apenas a que está nos tópicos de retomada. A impossibilidade de definição de condicionalidade por factualidade, que Sweetser aponta, é verdadeira, mas não parece que Haiman tenha pretendido essa definição. Obviamente, não se pode ignorar o aspecto problemático de se invocar a noção de dado para definir-se tópico, como bem indica Schiffrin (1992), já que o que é compartilhado muda, no decorrer (e em função) do discurso. Mais confortável é a restrição da noção de tópico ao sentido do que o inglês chama aboutness (“aquilo sobre que se fala”), como quer Akatsuka (1986), um crítico de Haiman. Entretanto, o essencial no correlacionamento entre condicionais e tópicos – que foi especialmente considerado em importantes estudos a partir do texto de Haiman (1978) – é o encaminhamento para uma desvinculação 503
entre a condicionalidade lógico-semântica e a condicionalidade expressa no discurso de uma língua natural. Esse tipo de investigação foi determinante, por exemplo, para uma análise das construções condicionais do tipo empreendido por Ford e Thompson (1986), um estudo que investiga, em textos reais, as funções discursivas das orações condicionais, considerada, especialmente, sua posição na construção. Na distinção que faz entre tópico de retomada e tópico de contraste, Haiman (1978), indica que ambos são dados, mas, enquanto o primeiro tipo é estabelecido pelo contexto anterior, e, portanto, carrega informação velha, o segundo é selecionado pelo falante a propósito de conteúdos que ainda não comunicou a seu ouvinte. Não é pelo discurso que o tópico contrastivo é estabelecido como dado, mas por um acordo que o falante solicita de seu ouvinte, o que explica por que ele é marcado como uma pergunta: a pergunta constitui um pedido para afirmação ou reconhecimento da existência do tópico. E, como as perguntas, as orações condicionais são estabelecidas como fatos dados num tal contexto em que o falante está em busca de validação. Haiman (1974) lembra a comutabilidade que há, em inglês, entre o complementizador de interrogação polar indireta whether e a conjunção condicional if : I don’t know {whether} Max is coming (or not) {if} Em português, como em outras línguas aparentadas, como, por exemplo, o francês, há uma evidência ainda maior, na identidade formal desses dois elementos, que pode observar-se na seguinte seqüência: Loc 1: Eu não sei se (se 1) saindo antes das seis horas da manhã saio melhor. Loc 2: Eu acho que se (se 2) sair antes das seis horas da manhã, sai melhor. (D2-SSA-98: 124-127)
Ø se 1: conjunção integrante (complementizador); Ø se 2: conjunção condicional.
4. Características básicas das construções condicionais em exame Em primeiro lugar, indique-se que vou basear a análise nos tipos de estados de coisas (segundo Dik, 1989) expressos nas predicações envolvidas 504
em relação condicional. A escolha dessa classificação parece adequada porque, diferentemente da de Chafe (1970), ela não se limita à indicação das unidades semânticas do verbo (ação, processo e estado), mas abriga componentes como telicidade e controle, que me parecem pertinentes para avaliação de qualquer relação do tipo causal/condicional. No corpus aqui examinado, encontram-se três tipos básicos de estrutura: a) se p, q (cerca de 90%); b) se Ø, q (cerca de 7%); c) se p, Ø (cerca de 3%). Os tipos de predicação nas duas orações componentes da construção condicional se distribuem segundo o Quadro 1: Quadro 1 Tipos de predicação (Dik, 1989) das orações que compõem construções condicionais prótase
apódose
Estado
Atividade
Real
%
Irreal
%
Eventual
%
Total
Estado
04
20,00
–
–
08
17,03
12
16,90
Atividade
03
15,00
–
–
08
17,03
11
15,49
Realização
01
5,00
02
50,00
–
–
03
4,22
Dinamismo
01
5,00
–
–
02
4,25
03
4,22
Ø
–
–
01
25,00
01
2,13
02
2,82
Total
09
45,00
03
75,00
19
40,44
31
43,65
Atividade
01
5,00
–
–
10
21,27
11
15,49
Estado
01
5,00
–
–
06
12,76
07
9,85
Dinamismo
–
–
–
–
04
8,51
04
5,63
Posição
01
5,00
–
–
01
2,13
02
2,82
Ø
–
–
–
–
02
4,25
02
2,82
Mudança
01
5,00
–
–
–
–
01
1,41
Total
04
20,00
–
–
23
48,92
27
38,02
Dinamismo Atividade
%
–
–
–
–
02
4,25
02
2,82
Dinamismo
01
5,00
–
–
–
–
01
1,41
Estado
–
–
–
–
01
2,13
01
1,41
Total
01
5,00
–
03
6,38
04
5,64
505
Mudança
Posição
Realização
01
5,00
–
–
–
–
01
1,41
Mudança
01
5,00
–
–
–
–
01
1,41
Ø
01
5,00
–
–
–
–
01
1,41
Total
03
15,00
–
–
–
–
03
4,23
Estado
01
5,00
–
01
1,41
Atividade
–
–
–
Total
01
5,00
–
01
5,00
–
Atividade
01
5,00
–
Total
02
10,00
–
–
–
–
02
2,82
Estado
–
–
01
25,00
01
2,13
02
2,82
Total
–
–
01
25,00
01
2,13
02
2,82
Realização Estado
Ø
20
– –
01
2,13
01
1,41
01
2,13
02
2,82
–
–
–
01
1,41
–
–
–
01
1,41
04
47
71
Verifica-se que as quatro primeiras posições (totalizando 57,74%) combinam estado e atividade, predicações marcadas pela ausência de telicidade. Outros 29,58% ainda se referem a combinações entre estados de coisas não télicos, o que dá um total de 87,32%, restando 12,68% para envolvimento de pelo menos uma predicação télica na construção condicional. Verificam-se algumas diferenças relacionadas com os diversos tipos de condicionalidade, que serão analisadas nas análises parciais apresentadas mais adiante. Quanto à relação modo-temporal nas construções condicionais, o que se encontrou está registrado no Quadro 2: Quadro 2
IRREAL
IRREAL
%
EVENTUAL
PRESENTE DO INDICATIVO
12
60,00
–
–
07
FUTURO DO SUBJUNTIVO
–
–
–
–
PRESENTE DO SUBJUNTIVO
–
–
–
–
01
5,00
–
–
–
13
65,00
PERFEITO DO INDICATIVO
Ø TOTAL
506
%
14,91
19
26,76
15
31,92
15
21,12
02
4,25
02
2,82
–
–
–
01
1,41
–
–
01
2,13
01
1,41
–
–
25
53,21
38
53,52
% EVENTUAL %
%
presente do indicativo
Total
%
ORAÇÃO CONDICIONAL
Total
%
ORAÇÃO NÚCLEO
REAL
REAL
%
Relação modo-temporal nas construções condicionais
futuro do presente
futuro do pretérito
pret. imperfeito do ind.
pret. perfeito do ind.
fut. do pretérito comp.
fut. do presente comp.
presente contínuo
pret. imperfeito do subj.
Ø
FUTURO DO SUBJUNTIVO
–
–
–
–
07
14,91
07
9,86
PRESENTE DO INDICATIVO
01
5,00
–
–
03
6,38
04
5,63
TOTAL
01
5,00
–
–
10
21,29
11
15,49
PRET. IMPERFEITO DO SUBJ.
–
–
01
25,00
02
4,25
03
4,22
FUTURO DO SUBJUNTIVO
–
–
–
–
02
4,25
02
2,82
TOTAL
–
–
01
25,00
04
8,50
05
7,04
PRET. IMPERFEITO DO SUBJ.
–
–
–
–
03
6,38
03
4,22
PRET. IMPERFEITO DO IND.
01
5,00
–
–
–
–
01
1,41
TOTAL
01
5,00
–
–
03
6,38
04
5,63
PRET. PERFEITO DO IND.
02
10,00
–
–
–
–
02
2,82
PRESENTE DO INDICATIVO
01
5,00
–
–
–
–
01
1,41
TOTAL
03
15,00
–
–
–
–
03
4,23
PRET. IMPERFEITO DO SUBJ.
–
–
02
50,00
–
–
02
2,82
TOTAL
–
–
02
50,00
–
–
02
2,82
PRET. PERFEITO DO IND.
01
5,00
–
–
–
–
01
1,41
TOTAL
01
5,00
–
–
–
–
01
1,41
FUTURO DO SUBJUNTIVO
–
–
–
–
01
2,12
01
1,41
TOTAL
–
–
–
–
01
2,12
01
1,41
FUTURO DO SUBJUNTIVO
–
–
–
–
01
2,12
01
1,41
TOTAL
–
–
–
–
01
2,12
01
1,41
01
5,00
01
25,00
03
6,38
05
7,04
01
5,00
01
25,00
03
6,38
05
7,04
TOTAL
20
04
47
71
Destacam-se como as quatro posições mais ocorrentes (63,36%) relações que só envolvem presente e futuro, relações essas que ainda ocorrem em posições de freqüência mais baixa (que somam 8,46% dos casos), o que acaba totalizando 71,82%. Por outro lado, formas temporais mais diretamente ligadas com telicidade, como o pretérito perfeito ocorrem em apenas 7% dos casos. As implicações da relação modo-temporal nessas construções será vista no exame de cada tipo de relação condicional. A relação entre os modos verbais aparece no Quadro 3: 507
Quadro 3 Relação entre o modo verbal da oração nuclear e da oração condicional ORAÇÃO
ORAÇÃO
NÚCLEO
CONDICIONAL
R EAL
%
IRREAL
%
EVENTUAL
%
TOTAL
%
Indicativo
INDICATIVO
19
95,00
–
–
10
21,28
29
40,85
Indicativo
SUBJUNTIVO
–
–
03
75,00
32
68,08
35
49,30
Subjuntivo
SUBJUNTIVO
–
–
–
–
01
2,13
01
1,40
Indicativo
Ø
–
–
–
–
01
2,13
01
1,40
01
5,00
01
25,00
03
6,38
05
7,05
Ø
TOTAL
20
04
47
71
Verifica-se que quase 50% das ocorrências apresentam o verbo da prótase no subjuntivo e o da apódose no indicativo, e que pouco mais de 40% apresentam ambos os verbos no indicativo. Há, porém, grandes diferenças entre os diversos subtipos, como se verá no estudo particular de cada um deles. As diferenças ainda dependem do conectivo empregado, como também se verá.
5. Os subtipos de construções condicionais 5.1 Condicionais factuais/reais 5.1.1 Introdução Toda a literatura tradicional sobre as construções com relação condicional diz que o período real, ou factual, repousa sobre a realidade. O enunciado da prótase é concebido como real, e, a partir daí, o enunciado da apódose é concebido como uma conseqüência necessária, e, portanto, também real. A generalização, porém, não se faz sem algumas perdas, como se verifica quando se avaliam usos efetivos da língua. E a primeira questão que se deve levantar é que real e factual constituem designações que verificam diferentes camadas do enunciado, já que a realidade é atributo da predicação (que exprime um estado de coisas) enquanto a factualidade é atributo da proposição (que exprime um fato possível) (entendidos esses termos segundo Dik, 1989). No nosso corpus verificaram-se 75% de orações condicionais antepostas no período hipotético factual, contra 15% de pospostas e 5% de intercaladas (além de 5% de construções que não apresentaram oração núcleo expres508
sa). Pode-se invocar, aí, já de início, uma iconicidade lógico-semântica, com a seguinte configuração: 1) enuncia-se a ocorrência de um estado de coisas como preenchimento de uma condição (prótase); 2) a partir daí, enuncia-se um estado de coisas como real/uma proposição como factual (apódose), em conseqüência do preenchimento daquela condição. Como já apontava Greenberg (1963), a ordem prótase-apódose é a ordem não-marcada em todas as línguas, o que, segundo Comrie (1986), pode ligar-se ao fato de as prótases, e não as apódoses, serem marcadamente nãofactuais; a ordem canônica, assim, constituiria uma espécie de gramaticalização da noção de hipoteticidade, que é a noção básica das construções condicionais. Outras hipóteses explicativas de Comrie para a ordem prótase-apódose, predominante em todas as línguas, são a ligação dessa ordem com a seqüência temporal e a ligação com a relação causa-efeito. Outra explicação que vem sendo proposta, por outro lado, desloca o princípio da iconicidade para o campo da organização discursiva, seja com base no processamento argumentativo (Comrie, 1986), seja com base na organização informativa do texto (Haiman, 1978), como se viu, acima, em 3. Na verdade, a iconicidade, nesses casos, pode ser mais produtivamente avaliada em termos discursivos, já que a natureza de tópico que se pode atribuir, em geral, às condicionais responde facilmente, pela tendência de sua ocorrência no início da frase (Haiman, 1978).
5.1.2 A natureza da construção Todos os tipos de estados de coisas ocorrem nas construções factuais, tanto na prótase como na apódose. Os tipos de predicações encontrados na apódose estão no gráfico 1, e os tipos encontrados na prótase estão no gráfico 2:
509
POS IÇÃO 5%
[vazio] 5%
DINAMIS MO 10%
E S T ADO 35% MUDANÇA 10% AT IVIDADE 25% R E AL IZAÇÃO 10%
Gráfico 1 - Tipos de predicações encontradas na apódose..
[vazio] 5% REALIZAÇÃO 10%
ESTADO 45%
MUDANÇA 15% POSIÇÃO 5%
DINAMISMO 5%
ATIVIDADE 15%
Gráfico 2 - Tipos de predicações encontradas na prótase .
A combinação desses tipos de predicação está representada no quadro 4:
510
Quadro 4 Tipos de predicação (Dik, 1989) das construções condicionais factuais
apódose
prótase
número de orações
porcentagem
Estado
estado
04
20 %
atividade
01
05 %
posição
01
05 %
realização
01
05 %
07
35 %
estado
03
15 %
atividade
01
05 %
realização
01
05 %
05
25 %
estado
01
05 %
mudança
01
05 %
02
10 %
atividade
01
05 %
mudança
01
05 %
02
10 %
estado
01
05 %
dinamismo
01
05 %
total
02
10 %
01
05 %
01
05 %
01
05 %
01
05 %
20
100 %
total Atividade
total Realização
total Mudança
total Dinamismo
Posição
atividade total
Ø
mudança total TOTAL
511
Verifica-se que estado e atividade aparecem combinados em 45% dos casos. Ainda outros 20% combinam estados de coisas não-télicos, enquanto 35% envolvem pelo menos um predicado télico. Essa configuração deve ser comparada com os outros tipos de construções condicionais, mas já se pode verificar que, em relação ao todo das construções condicionais (Quadro 1), há, nas factuais, um maior envolvimento de construções télicas. A natureza consecutiva da predicação nuclear da construção condicional factual/ real vem freqüentemente realçada por um elemento conclusivo/ resumitivo encabeçando a oração núcleo, venha ela posposta, como em (13), ou anteposta, como em (10): (13) se se há presença de uma coloração ... mais forte mais intensa que a da pessoa ... e::... essa aréola ... possui ... uma série de:: tubérculos ... então o tubérculo é nomeado de ( ) (EF-SSA-49: 115-118) (10) também uso o método técnico-jurídico o método indutivo o método antigo o analógico então por que é que não tem que se considerar ciência? já que é objeto de método dedutivo (EF-RE-337: 310-313)
Veja-se o processo de condução dos enunciados: (13) a) se (já que, desde que) há presença de coloração mais forte; b) então (daí, em conseqüência): o tubérculo é nomeado de x. (10) a) já que (se) é objeto de método dedutivo; b) então (daí, em conseqüência): por que é que não tem que se considerar ciência? (= não há razão para que não se considere ciência)
Verifica-se que: a)
o elemento se encabeça um dado, algo apresentado como verificado: diz-se que um estado de coisas é ou não é, embora colocando-se a proposição no escopo do verificador de verdade se;
b)
o outro segmento que contrabalança a construção constitui, realmente, o posto: diz-se que, em vista do verificado, outro estado de coisas é ou não é.
Construções desse tipo se enquadram entre as que alguns autores colocam dentro dos diversos usos do se implicativo (que se parafraseia como “se ... 512
então”) (Ducrot, 1972; Geraldi, 1978): “há uma relação implicativa entre o fato expresso pela proposição antecedente” “e o fato expresso pela conseqüente” (Geraldi, 1978:28). Trata-se do que se poderia chamar, conciliando-se as duas tradições, de implicativo real, ou melhor, implicativo factual: um fato, enunciado como condição preenchida, implica outro, simplesmente enunciado. O universo das construções condicionais factuais não se reduz, porém, ao uso que acabo de avaliar. Os falantes dizem muito freqüentemente coisas como (14), (15) e (16): (14) e (15) se há Chacrinha se há público pra Chacrinha é porque não tá havendo preparação ... (D2-RE-05: 57-58) (16) porém, se há persistência do nódulo ... é porque aquele nódulo é patológico (EF-SSA-49: 102-103)
Nesses casos, o tipo de pressuposto protático é o mesmo: assenta-se um fato, embora se lembre, pelo se, que se procedeu a uma verificação da verdade desse fato, ou que se encarou esse fato pela ótica de um preenchimento de condição. A outra parte da construção hipotética, porém, é diferente: ao invés de simplesmente se enunciar um fato como implicado ou conclusivo traz-se a conclusão do ponto de vista discursivo (expressa, em (14) e em (16) com a predicação é), e acrescenta-se a causa, do ponto de vista do encadeamento dos estados de coisas: •
em (14) e (15) a) se (já que, desde que) há Chacrinha/há público para Chacrinha; b) (então, daí, em conseqüência, SE CONCLUI QUE), é (isso ocorre) porque (pela seguinte causa:) não está havendo preparação.
•
em (16)
a) se (já que, desde que) há persistência do nódulo; b) (então, daí, em conseqüência, SE CONCLUI QUE), é (isso ocorre) porque (pela seguinte causa:) aquele nódulo é patológico. 513
Verifica-se, pois que, enquanto o elemento se encabeça um dado com o carimbo de factualidade verificada, o outro segmento que contrabalança a construção traz outro dado, também factual: por exemplo, em (16), afirma-se a persistência do nódulo (que o se indica ter sido verificada), sobre a pressuposição do seu caráter patológico (que o porque registra, em termos de causalidade). Essas construções se enquadram entre as que vêm colocadas (Ducrot, 1972; Geraldi, 1978) como de se inversivo (parafraseáveis por “se... é porque”), sob o argumento de que é a oração introduzida por se que “contém a conseqüência do fato expresso pela segunda parte do período” (Geraldi, 1978:29). A explicação não parece tão simples, já que, numa mesma ocorrência, podem confluir os tipos se ... então e se... é porque, como se vê em (17): (17) isso se a mãe buZIna ... mais brabamente então é porque está atrasado (D2-SP-360: 296-299)
Em primeiro lugar, cabe aqui uma reflexão com base na classificação de Sweetser (1990) em condicionais de conteúdo, condicionais epistêmicas e condicionais conversacionais. De fato, enquanto as factuais com a fórmula se (já que, etc.) ... então podem ser Ø
de conteúdo
(13) se se há presença de uma coloração ... mais forte mais intensa que a da pessoa ... e::... essa aréola ... possui ... uma série de:: tubérculos ... então o tubérculo é nomeado de ( ) (EF-SSA-49: 115-118) Ø
epistêmicas
(05) se ela foi criada para um FIM ... OUtro ... que NÃO ... a contemplação estética ... ela é pragmática (EF-SP-405: 303-305) Ø
conversacionais
(10) também uso o método técnico-jurídico o método indutivo o método antigo o analógico então por que é que não tem que se considerar ciência? já que é objeto de método dedutivo (EF-RE-337: 310-313)
514
as factuais da fórmula se ... (então) é porque, como em (14) a (17), só podem ser epistêmicas, sempre indicam uma conclusão, na apódose. Por outro lado, pode-se propor um exercício muito interessante com estas últimas construções que simplificarei para análise: (14a) e (15a) se há Chacrinha se há público pra Chacrinha é porque não está havendo preparação. (16a) se há persistência do nódulo ... é porque aquele nódulo é patológico. (17a) se a mãe buZIna ... mais brabamente então é porque está atrasado.
Elas podem ser vistas, de fato, como inversão das seguintes construções, que, por sua vez, são da fórmula de (13): (14b) e (15b) se não está havendo preparação, há público para Chacrinha. (16b) se o nódulo é patológico, há persistência do nódulo. (17b) se ele está atrasado, a mãe buZIna.
O que ocorre é que, nessas construções, enuncia-se, na prótase, não apenas uma condição suficiente (que é a que define condicionalidade em geral, segundo Sweetser (1990)), mas, ainda, uma causalidade ligada à condicionalidade preenchida, o que permite a construção de se inversivo, isto é, a construção com expressão de causalidade ligada à condicionalidade preenchida. Isso explica também por que não se pode fazer indiscriminadamente o exercício correspondente contrário com frases do tipo de (13): (13) se se há presença de uma coloração ... mais forte mais intensa que a da pessoa ... e::... essa aréola ... possui ... uma série de:: tubérculos ... então o tubérculo é nomeado de ( ) (EF-SSA-49: 115-118)
Se (13) carrega apenas uma condicionalidade suficiente (e não também condicionalidade necessária), não pode produzir construção de se inversivo, sem que se altere o significado. Assim: (13a) se o tubérculo é nomeado de ( ) é porque há presença de uma coloração mais forte e essa aréola possui uma série de tubérculos
515
só será correspondente a (13) se a presença de coloração mais forte e a existência de tubérculos na aréola forem condições não apenas suficientes, mas também necessárias para essa determinada nomeação do tubérculo. Outra reflexão produtiva pode estar em invocar as camadas de constituição do enunciado (Dik, 1989; Hengeveld, 1989, Hengeveld, K. et alii., 1990) nas quais as relações se manifestam, indicação que, de certo modo, pode ser relacionada à tripartição proposta por Sweetser: Camadas ou níveis de Dik
• predicação (estados de coisas) • proposição (fato possível) • frase (atos de fala)
Domínios de Sweetser
• conteúdo • epistêmica • conversacional ou dos atos de fala
Verifica-se que, em (14) a (17), a relação de condicionalidade de base está no nível das proposições (é epistêmica), mas há uma causalidade interveniente que está no nível dos estados de coisas, ou das predicações (é de conteúdo). As inversas propostas como (14b) a (17b) são do nível das predicações (de conteúdo), já que a causalidade é que se põe como hipotética, isto é, como condicionalidade. As construções (1) a (3), por seu lado, são do nível das predicações (de conteúdo), razão pela qual não é possível que elas sejam invertidas de modo a levar à fórmula se... (então) é porque. Assim, observe-se que o que se diz em (03) ... se na mulher se retira os ovários ... retirando portanto a fonte pro/ da/ eh:: / elaboradora de hormônio ... feminino ... o:: as glândulas mamárias ... elas se atrofiam... (EF-SSA-49: 84-89)
não necessariamente corresponde a uma inversa: (03a) se as glândulas mamárias se atrofiam, então é porque se retiraram os ovários
5.1.3 O esquema modo-temporal nas construções factuais/reais Das 20 construções condicionais factuais/reais de nossa amostra, 19 trazem expressa a oração núcleo e apresentam os seguintes esquemas modotemporais de construção: 516
Quadro 5 Relação modo-temporal nas construções condicionais factuais oração núcleo
oração condicional
número
porcentagem
presente do indicativo
PRESENTE DO INDICATIVO
12
60 %
PRET. PERFEITO DO INDICATIVO
01
05 %
13
65 %
PRET. PERFEITO DO INDICATIVO
02
10 %
PRESENTE DO INDICATIVO
01
5%
03
15 %
01
5%
01
5%
01
5%
01
5%
01
5%
01
5%
01
5%
01
5%
20
100 %
TOTAL
pret. perfeito do indicativo
TOTAL
futuro do presente do ind.
PRESENTE DO INDICATIVO TOTAL
futuro do presente composto
PRET. PERFEITO DO INDICATIVO TOTAL
pret. imperfeito do indicativo
PRET. IMPERFEITO DO INDICATIVO TOTAL
Ø TOTAL
TOTAL
1) A primeira observação diz respeito ao fato de que todas as ocorrências têm o verbo no modo indicativo em ambas as orações, o que configura exatamente a factualidade das construções. 2) Das 20 construções condicionais reais analisadas, 12 (60%) têm ambas as orações, a prótase e a apódose, no presente, configurando aquele real no presente que se pode considerar como típico: (18) não Ed. mas se pode não precisa essa auto-análise você pode fazer tudo sem ter pressa ... (D2-RE-05: 222-223) (19) um leigo se acha que a estrada é boa, (superp) para ele é de primeira classe (D2-SSA-98: 331-332)
517
(20) se é a mãe perguntando diz que quem quebrou foi o pai ((risos)) se é o pai (D2-SP-360: 266-268)
3) Também configura um real bem característico o arranjo temporal em que, a partir de uma condição presente se assegura um estado de coisas em futuridade, como em (21): (21) mas ... se a gente está num nível de vida ... em que a preocupação principal é se manter vivo ... qualquer atividade nossa vai estar relacionada com::com essa preocupação ... então a arte SURge não em função:: de uma necessidade de auto-expressão (EF-SP-405: 170-174)
Nesse caso, embora se jogue com o futuro na apódose (vai estar), o estado de coisas expresso é assegurado como real, como uma conseqüência positiva e necessária do estado de coisas (no caso, um estado) expresso na prótase. 4) O real no presente se apresenta, ainda, com um dos membros do período hipotético no passado, que deve ser télico, para que se configure um resultado no presente. É o caso: a) de (5), que tem prótase de passado, com uma predicação do tipo mudança (algo passou a existir): (05) se ela foi criada para um FIM ... OUtro ... que NÃO ... a contemplação estética ... ela é pragmática (EF-SP-405: 303-305)
b) de (22), que tem apódose de passado, com uma predicação do tipo realização (alguém quebrou algo) (22) é inclusive se há alguma coisa quebrada por exemplo eu chego ... foi um dos dois ... ou aquele que foi ... diz que foi ele que fez (D2-SP-360: 263-265)
5) Também com uma prótase em passado (télico), o real no presente pode envolver futuridade, isto é, pode representar-se por um fato que, em con518
seqüência de condição preenchida no passado, é assegurado como real, embora projetado no vir-a-ser: (23) Então, se se a Maria Lúcia fez ver per, percutir com a sua colocação, ele vai dizer que eu não posso aplicar, também, sem fazer uma análise ou aplicação (EF-POA-278: 252-254)
O real no passado, por outro lado, ocorre tanto em predicação télica, como (24), quanto não-télica, como (25): (24) Se ... realmente a guerra foi perdida pelos países do eixo, é que as condições ... sociológicas, econômicas e políticas etc etc fizeram com que fosse perdida a guerra (EF-RE-337: 125-127) (25) quanto à coleta se eles dependiam ... da colheita ... de ... frutos ... raízes ... que es NÃO plantavam ... que estava à disposição deles na natureza ... eles também tinham que obedecer o ciclo :: ... vegetativo ... (EF-SP-405: 76-79)
6) Como nas construções condicionais, em geral, também nas condicionais reais pode ocorrer elipse da oração núcleo, cujo conteúdo, então, se deve depreender do contexto: uma prótase é assegurada como condição preenchida, e, a partir daí, só se pode recuperar na apódose uma predicação que codifique um estado de coisas conseqüente, e, portanto, real: (26) se o Japão conseguiu tudo isso e chegou à Segunda Grande Guerra com a economia que ele chegou ... né? (EF-RE-337: 134-136)
Pela própria ocorrência do pedido de confirmação expresso pelo marcador né?, facilmente se verifica a natureza assegurada da predicação elíptica que constitui o núcleo dessa oração. 7) Um tipo de núcleo naturalmente ligado à construção condicional real é a oração interrogativa, tanto posposta à condição, com em (9) e (27), quanto anteposta à condição, como em (10): 519
(09) bem ... então :: ... a partir disto olha nós vamos poder entender ... qual o tipo de arte que se desenvolveu porque se eu quero criar ... uma réplica da realidade ... um DUplo do animal que eu quero caçar qual é o único estilo que eu posso usar? (EF-SP-405: 289-293) (27) você quer dizer mas se o homem faz a lei por que ele fica ele se torna escravo da lei ... (EF-RE-337: 94-95) (10) (...) também uso o método técnico-jurídico o método indutivo o método antigo o analógico então por que é que não tem que se considerar ciência? já que é objeto de método dedutivo (EF-RE-337: 310-313)
Trata-se de interrogações parciais, isto é, de interrogativas que pedem um termo da predicação: Ø um SN, no caso de (9): “qual é o elemento x?” Ø um SAdv, no caso de (27) e (10): “por que a predicação x?” Essas interrogações se lançam – dentro da configuração geral do hipotético real – como conseqüências de condições que foram satisfeitas e que, para cada uma dessas ocorrências, assim se podem enunciar: Ø dado que (realmente) eu quero criar um réplica da realidade (9); Ø dado que (realmente) o homem faz a lei (27); Ø dado que (realmente) ela é objeto de método dedutivo (10). A asseguração da realidade pode vir, mesmo, explicitada (veja-se o advérbio realmente) tanto na oração núcleo, como em (28), quanto na condicional, como em (24): (28) porque eu vou s/realmente se eu sei que o filme é bom viu? (DID-SSA-231: 369-370)
520
(24) Se ... realmente a guerra foi perdida pelos países do eixo, é que as condições ... sociológicas, econômicas e políticas etc etc fizeram com que fosse perdida a guerra (EF-RE-337: 125-127)
Veja-se que, nesta última ocorrência, a explicitação se reforça com a clivagem da conseqüência (apódose): “se realmente, é que q”.
5.1.4 Factualidade e argumentação Evidências permitem afirmar que o mais geral que se pode dizer da construção condicional real/factual é que ela envolve uma relação condição preenchida – conseqüência/ conclusão, o que a situa, na verdade, num cruzamento entre condicional e causal. Uma das evidências é que o conectivo se desses enunciados poderia ser substituído, sem alterações essenciais, pelo conectivo causal de assentamento (de posto): já que. É o que se vê em (18) e (19): (18) mas se (já que) pode não precisa essa auto-análise (D2-RE-05: 222) (19) um leigo se (já que) acha que a estrada é boa, (superp) para ele é de primeira classe (D2-SSA-98: 331-332)
Observe-se que o conectivo já que é, mesmo, um conectivo ocorrente em prótases de factualidade: (10) então por que é que não tem que se considerar ciência? já que é objeto de método dedutivo (EF-RE-337: 311-313)
O fato de o período hipotético real enunciar um complexo formado por condição preenchida (portanto, licenciamento de conseqüência) + conseqüência/conclusão o destina a utilização em processos argumentativos nos quais seja necessária ou conveniente a expressão de um fato assegurado. Marcado521
res que destacam a frase em bloco (inclusive, então) como argumento ocorrem, por exemplo, em: (22) é inclusive se há alguma coisa quebrada por exemplo eu chego ... foi um dos dois ... ou aquele que foi ... diz que foi ele que fez ... (D2-SP-360: 263-265) (23) Então, se se a Maria Lúcia fez ver per, percutir com a sua colocação, ela vai dizer que eu não posso aplicar, também, sem fazer uma análise ou aplicação (EF-POA-278: 252-254)
Outra evidência do uso do bloco condicional factual com valor quase documental, e, portanto, como argumento forte, está em (25), em que prótase e apódose são, por adição (com o elemento também), postas, equilibradamente, como fatos assegurados, um e outro. Embora p ainda enuncie uma condição preenchida para q, enfraquece-se essa relação e, correlativamente expresso, surge outro componente da macro-relação causa-conseqüência, que é um matiz contrastivo: “se, por um lado p, por outro lado, ainda, q”: (25) quanto à coleta se eles dependiam ... da colheita ... de ... frutos ... raízes ... que eles NÃO plantavam ... que estava à disposição deles na natureza ... eles também tinham que obedecer o ciclo :: ... vegetativo ... (EF-SP-405: 76-79)
Ø p: eles dependiam da colheita (condição preenchida); Ø q: eles tinham que obedecer ao ciclo vegetativo (fato real conseqüente); Ø relação adicional (expressa no também): não só q depende de p, mas p também depende de q (“não apenas p, mas também q / não apenas q, mas também p’’). Alguns estudiosos (Ducrot, 1972; Geraldi, 1978) enquadram construções do tipo de (25) como construções de se optativo (com paráfrase: “se, por um lado ..., por outro ...”), dizendo que “há entre as duas orações uma oposição” (Geraldi, 1978:30). Com efeito, como se preconiza nessa proposta, em (25) pode haver “mudança de ordem entre as orações”, configurando uma “mudança de enfoque”: 522
(25a) se (por um lado) eles tinham de obedecer o ciclo vegetativo, (por outro) eles dependiam da colheita de frutos ... raízes que não plantavam.
Diz Geraldi (1978:30) que, nesses casos, “inexiste qualquer relação de causa-efeito entre as duas orações”. Isso, realmente, ocorre se se pensar simplesmente numa implicação de dois estados de coisas, na realidade do mundo; não vale, entretanto, para a indicação de que a segunda proposição (fato possível) se enuncia após enunciar-se uma primeira proposição que vem com o atestado de verificada, dado pelo se, construído com um passado certo, e que, em vista desse estatuto factual que a verificação de preenchimento de condição lhe confere, é usada como finca-pé de um contraste com uma proposição que tem orientação argumentativa diferente. Por tudo isso ainda é possível dizer que construções como as de (25) de certo modo participam do tipo que Haiman (1978) chama semifactual (condicional-concessiva) e que Geraldi (1978), seguindo Ducrot (1972) chama se concessivo (em que o se é parafraseado por “ainda que”, “mesmo que”), definindo-o “com base no fato de introduzir um conteúdo que implicaria, causaria o contrário do fato expresso na segunda parte do período (oração principal)” (p.31): (25b) mesmo dependendo da colheita de frutas ... raízes que não plantavam, ainda assim eles tinham de obedecer o ciclo vegetativo.
As condicionais-concessivas – sejam factuais ou não – constituem, segundo König (1986), um tipo específico de condicionais, caracterizando-se pelo fato de que apresentam um relacionamento entre um conseqüente e um conjunto de condições antecedentes, conjunto tipicamente especificado ou por uma disjunção ou por uma quantificação ou por uma focalização. O que Comrie (1986) acentua, ao tratar das condicionais-concessivas, por outro lado, é a discrepância entre esse tipo de orações (que negam vínculo causal entre prótase e apódose) e as condicionais em geral (que se caracterizam por um forte vínculo causal entre prótase e apódose). Esse vínculo causal é acentuado também por Harris (1986), mas uma boa relativização da afirmação desse vínculo está na indicação de Lehman (1974) de que, nas construções condicionais, o antecedente fica em aberto (sua verdade é pressuposta), e a interpretação causal a que se chega é do tipo “tomando-se como certo”, ou “desde que”. Desse modo, as condicionais se situam, na escala de expressão de causalidade, num ponto médio 523
do contínuo que vai das causais às concessivas, que são os dois pontos extremos.
5.2. Condicionais contrafactuais/irreais 5.2.1 Introdução A frase hipotética chamada contrafactual ou irreal é uma construção que, nos termos de Renzi (1991), comunica uma falsidade segura, e repousa sobre a não-realidade, apresentando estados de coisas como não-existentes, tanto na protáse (condição) como na apódose (conseqüência). Dos quatro períodos hipotéticos irreais do nosso corpus, apenas três trouxeram expressa a oração núcleo; dentro desses, duas condicionais ocorreram antepostas ao núcleo, e uma ocorreu posposta, mas apenas porque ela se repetiu após a apódose: (29) e (30) a imagem que eu fazia era a a seguinte se o Japão fosse uma Birmânia, por exemplo que é um dos países atrasados, as economias industriais que ganharam a Segunda Guerra não teriam ajudado o Japão, quer dizer de outra maneira, se o Japão fosse a Birmânia né? (EF-RJ-379: 129-139)
Embora se trate de uma amostra muito pequena, parece que, como no caso das reais, é possível invocar uma motivação icônica para a ordem nessas frases: 1o) enuncia-se como não-existente um estado de coisas: o Japão não é uma Birmânia (prótase); 2o) a partir daí, enuncia-se como conseqüentemente não-existente outro estado de coisas que dele dependia: as economias industriais que ganharam a Segunda Guerra ajudaram o Japão.
5.2.2 A natureza da construção Pode-se manter, pois, para as construções condicionais contrafactuais a consideração de que a relação mais ampla expressa é a de causa-conseqüên524
cia. O que se observa, porém, é que essa relação consecutiva, diferentemente do que ocorre no caso dos períodos hipotéticos reais, se dá com inversão da polaridade da prótase e da apódose. Observe-se, quanto a (29) e (30) acima: 1o) prótase positiva: se o Japão fosse ð pressuposto negativo: o Japão não é; 2o) apódose negativa: as economias não teriam ajudado ð conteúdo asseverado positivo: as economias ajudaram Observe-se agora em (31): (31) mastectomia ... infelizmente ... a glândulas mamárias é sede de tumores ... se benignos só seria bom ... mas ... infelizmente é sede de muitos tumores malignos ... (EF-SSA-49: 195-197)
1o) prótase positiva: se (os tumores fossem) benignos só ð pressuposto negativo: eles não são só benignos; 2o) apódose negativa: seria bom ð conteúdo asseverado negativo: não é bom.
5.2.3 O esquema modo-temporal nas construções contrafactuais/ irreais Só ocorreram construções condicionais contrafactuais com a prótase na forma do imperfeito do subjuntivo. Na apódose, ocorreu futuro do pretérito composto em (29) e (30) e futuro do pretérito simples em (31), passagens já transcritas acima. Como se pode observar, a falsidade das construções ilustradas em (29) e (30) é assegurada na própria indicação morfológica dada pelo futuro do pretérito composto (que é na verdade, um passado): dizer que, em dependência de uma determinada condição, X teria/não teria feito algo é necessariamente dizer que X não fez/fez algo. Assim, por exemplo, mesmo que não se soubesse de antemão que as economias a que se refere o texto, de fato, ajudaram o Japão no pós-guerra, a construção se garantiria como contrafactual. Por outro lado, no caso das apódoses em futuro do pretérito simples (que é, realmente, um futuro), as indicações morfológicas apenas garantem uma falsidade possível. 525
Para que a falsidade seja assegurada, isto é, para que a leitura seja contrafactual, é necessário que o confronto entre o conteúdo proposicional e o conhecimento do mundo enunciado assim o permita. Desse modo, por exemplo, em (31), o que garante a contrafactualidade da construção é que já se sabe muito bem que nem todos os tumores são benignos. Por outro lado, a falsidade dos conteúdos proposicionais, e, portanto, a contrafactualidade da construção é garantida, independentemente de qualquer asseguração do contexto e de qualquer informação prévia, se a prótase estiver no mais-que-perfeito do subjuntivo (seja simples ou composto o futuro do pretérito da apódose). Um exercício com algumas das ocorrências de período hipotético real pode mostrar isso: (16) porém se há persistência do nódulo ... é porque aquele nódulo é patológico (EF-SSA-49: 102-103) (Factual). (16a) se tivesse havido persistência do nódulo, aquele nódulo seria/teria sido patológico: – não houve persistência ðo nódulo não era patológico (Contrafactual). (17) isso se a mãe buZIna ... mais brabamente então é porque está atrasado (D2-SP-360: 296-299) (Factual). (17a) se a mãe tivesse buzinado mais brabamente, (seria porque) ela estaria/teria estado atrasada: – a mãe não buzinou ð ela não estava atrasada (Contrafactual).
Com uma prótase no pretérito mais que perfeito do subjuntivo, pois, deixa-se de enunciar uma mera hipótese, que poderia, ou não, ser falsa (falsidade provável), mas, com a evidência de um passado, se garante a irrealidade dos estados de coisas postos em relação de condicionalidade.
5.3 Construções eventuais/ potenciais 5.3.1 Introdução Dizem-se eventuais as construções condicionais cuja prótase repousa sobre a eventualidade; o enunciado da apódose, no caso, é tido como certo, desde que eventualmente satisfeita a condição enunciada. 526
Nos 44 períodos hipotéticos eventuais que trazem oração núcleo, em nossa amostra, 28 prótases ocorreram antepostas, 8 pospostas e 8 intercaladas. Embora a proporção de prótases de eventualidade antepostas seja menor que no caso das construções factuais e contrafactuais, ainda assim se verifica uma direcionalidade icônica que vai do condicionante para o condicionado: (32) eu acho que se sair antes das seis horas da manhã sai melhor (D2-SSA-98:126) (33) e no fim eu paguei mesmo pra conseguir entrar no apartamento quase cem mil cruzeiros. Se eu não tivesse cem mil cruzeiros não entrava (D2-SSA-98:131-132) (34) se a gente for parar para fazer as coisas calmamente não dá (D2-RJ-355: 133)
Na verdade, como se verá mais abaixo, a natureza peculiar que apresentam as construções hipotéticas com prótase não-anteposta corrige essa suposição de desvio da iconicidade.
5.3.2 A natureza da construção O caráter de eventualidade da apódose das construções condicionais ficou evidenciado no exame que fiz dos tipos de predicação ocorrente nessa oração nuclear: todas as predicações encontradas são [- tel], isto é, nenhuma delas representa um estado de coisas acabado. Os tipos de predicação encontrados na apódose estão no gráfico 3:
527
POSIÇÃO -DIN +CONTR -TEL DINAMISMO +DIN -CONTR -TEL
2,27%
13,63%
ATIVIDADE +DIN +CONTR -TEL 47,73% ESTADO -DIN -CONTR -TEL 36,37%
Gráfico 3 - Tipos de predicação encontradas na apódose.
O mesmo ocorre na prótase. Os tipos encontrados estão no gráfico 4: DINAMISMO +DIN -CONTR -TEL 6,52%
ESTADO -DIN -CONTR -TEL
POSIÇÃO +DIN -CONTR -TEL 2,18%
ATIVIDADE +DIN +CONTR -TEL 50,00%
41,30%
Gráfico 4 - Tipos de predicação encontradas na prótase.
A configuração da construção hipotética eventual em termos de natureza das predicações mostra as seguintes predominâncias:
528
Quadro 6: Tipos de predicação encontrados nas construções condicionais eventuais
apódose
prótase
núm. de orações
porcentagem
Atividade
atividade
10
21.28 %
estado
08
17.03 %
dinamismo
02
4.26 %
posição
01
2.12 %
21
44.69 %
estado
08
17.03 %
atividade
06
12.76 %
dinamismo
01
2.12 %
Ø
01
2.12 %
16
34.03 %
atividade
04
8.52 %
estado
02
4.26 %
06
12.78 %
01
2.12 %
01
2.12 %
atividade
02
4.26 %
estado
01
2.12 %
03
6.38 %
47
100 %
total Estado
total Dinamismo
total Posição
atividade total
Ø
total TOTAL
Como se vê, quase 70% das ocorrências combinam entre si os tipos predicativos atividade e estado. A comparação das construções eventuais, de um lado, com as reais e as irreais, de outro, indica que: 529
a) as reais se mostram compatíveis com telicidade, tanto na prótase (veja-se (5)), como na apódose (veja-se (22)), como também em ambas (veja-se (24)): (22) é inclusive se há alguma coisa quebrada por exemplo eu chego ... foi um dos dois ... ou aquele que foi ... diz que foi ele que fez (D2-SP-360: 263-265) (05) se ela foi criada para um FIM ... OUtro ... que NÃO ... a contemplação estética ... ela é pragmática (EF-SP-405: 303-305) (24) Se ... realmente a guerra foi perdida pelos países do eixo, é que as condições ... sociológicas, econômicas e políticas etc etc fizeram com que fosse perdida a guerra (EF-RE-337: 125-127)
b) as irreais se mostram compatíveis com telicidade na apódose (vejam-se (29) e (30)): (29) e (30) a imagem que eu fazia era a a seguinte se o Japão fosse uma Birmânia, por exemplo que é um dos países atrasados, as economias industriais que ganharam a Segunda Guerra não teriam ajudado o Japão, quer dizer de outra maneira, se o Japão fosse a Birmânia né? (EF-RJ-379:129-139)
Com efeito, tanto o que é seguro (factual) quanto o que é descartado (contrafactual) podem enunciar-se como acabados (télicos), o que não ocorre com o que é simplesmente possível (eventual). Quanto à predicação dos tipos de estados de coisas nas construções eventuais, observa-se que o tipo atividade predomina tanto nas predicações da prótase como nas da apódose, seguindo-se, em ambas o tipo estado; o tipo dinamismo é o terceiro ocorrente em ambas as predicações, mas com percentual bem inferior. Comparando-se os três tipos de construções condicionais (factuais, contrafactuais e eventuais), observa-se que, quanto à predicação da oração núcleo, predominam nas reais e nas irreais as predicações de estado, seguindo-se, nas reais, atividade, e nas irreais, realização; quanto às predicações da oração 530
condicional, as poucas irreais que ocorreram são exclusivamente de estado, e nas reais predomina também estado, seguido de atividade e de mudança. Verifica-se, pois, que, tanto na prótase como na apódose, as eventuais se distinguem das reais e das irreais pelo fato de que, nestas duas últimas, estado predomina sobre atividade, enquanto nas eventuais atividade predomina sobre estado. Quanto à ordem das orações, pode-se observar que as construções de eventualidade vêm antepostas em apenas 17% dos casos, entendendo-se, de certo modo, que o fato de essas construções fazerem uma hipotetização pode explicar tal comportamento. Por outro lado, porém, como se verá abaixo, existem motivações para a direção oposta na montagem da construção. A evidência do sentido condicionante ð condicionado trazida por marcadores de direcionalidade, invocada no caso das construções de realidade, embora seja também observada no caso das construções eventuais, é bem menos ocorrente (apenas 4 casos em 47) e é limitada ao elemento conclusivo então, não ocorrendo nunca marcadores que sejam propriamente de uma relação causa-conseqüência (como porque ou é porque): (12) ... (quer dizer o que espera por ele) ... que a alternativa que a gente dá para ele é se não quiser ir à escola então vai trabalhar ... (D2-SP-360: 350-352) (35) se você comer uma comida típica baiana ... realmente é tão incrementada ... tão cheio de óleo ... tão cheia de coisas assim ... eles ... eh ... eu acho que é de carbohidratos né ... que eles chamam ... então eu acho realmente que você fica satisfeita pro resto do dia ... é muito pesada (DID-RJ-328: 351-358) (06) A identificação, se tiver assim, um caráter já de uma pequena, um pequeno exame, então já está com um nível mais complexo (EF-POA-291: 98-100) (13) apenas digo a vocês o seguinte ... se se há presença de uma coloração ... mais forte mais intensa que a da pessoa ... e:: ... essa aréola ... possui uma série ... de:: tubérculos ... então o tubérculo é nomeado de ( ) (EF-SSA-49: 115-118)
De todo modo, as construções eventuais são, por natureza, do tipo chamado implicativo (Ducrot, 1972; Geraldi, 1978), já que o preenchimento da 531
condição enunciada implica o estado de coisas que está na predicação nuclear da frase. O que não se pode dizer é que essa implicação signifique causalidade. Com efeito, observem-se as ocorrências: (11) dependendo do tipo de pimenta se for pimenta malagueta por exemplo eu não gosto (D2-POA-291: 146-148) (36) porque se eu fizer esse gato e deixasse durante doze mil anos ... ele vai continuar sendo um gato sem valor ... (EF-SP-405: 281-283) (37) se vocês me trouxerem o livrinho aquele eu respondo todos eles e (es)tou no nível do conhecimento (EF-POA-278: 284-285)
Com certeza, em (11) “a pimenta ser malagueta” não é causa de “o falante gostar”; em (36), “eu fazer o gato e deixar durante doze mil anos” não será a causa de “ele continuar a não ter valor”; em (37) “o livro ser trazido” não será causa de “haver resposta”. Casos há, porém, em que se pode dizer que a relação causa-conseqüência existe: (32) eu acho que se sair antes da seis horas da manhã sai melhor (D2-SSA-98: 126-127) (em que sair às seis da manhã é causa de maior facilidade). (38) porque se um tiver mais do que o outro sai um monte de briga na realidade não acabam tomando tudo não comendo tudo que tem (D2-SP-360: 316-318) (em que um ter mais do que o outro é causa de muita briga).
Algumas construções hipotéticas eventuais não fazem parte de esquema de implicação. Por isso mesmo, e mantendo a motivação icônica, elas se apresentam geralmente não-antepostas. Algumas relações não-implicativas encontradas são: a) Ressalva. O próprio esquema construcional é evidência dessa relação: a prótase ou se pospõe à oração núcleo, como em (39) e (40), ou se intercala 532
entre o sujeito e o predicado dela, como em (41), (42) ou, ainda, se pospõe ao complemento direto da oração nuclear deslocado à esquerda, como em (43): (39) Porque eu também não estou com pressa demais porque eu não vou chegar em Belo Horizonte no mesmo dia, vou ter que dormir ou em Conquista ou dormir na divisa, ou em Teófilo Otoni, se o tempo der. (D2-SSA-98: 128-131) (40) eles têm um curso ... têm dado um curso ano passado deram pra não sei quantos mil e tantos universitários e que eles estavam oferecendo à escola se fosse interesse (D2-RJ-355: 237-239) (41) porque eu se puder ainda acabo ca ... pedindo transferência pra Universidade Federal do Paraná ... (D2-RJ-355: 51-53) (42) você se quiser vai a pé, a Universidade é no centro da cidade (D2-RJ-355: 60-63) (43) E eu acho que o dinheiro todo que eu pudesse, se eu ganhasse assim na loteria e tal eu nunca jogaria em mercado de capitais, nada disso, eu sempre ficaria em imóveis, mesmo porque agora eu tenho uma terceira condição importante que é a questão de família, de filhas e tal. (D2-RJ-355: 226-229)
Em qualquer caso, enuncia-se a apódose (o condicionado), ou parte dela, para, então, evocar-se um condicionante do qual depende o que se enuncia na apódose. Isso funciona como um afterthought (Chafe, 1984) que leva a uma relativização do conteúdo da apódose (ou da parte dela) enunciada, o que a curva entonacional bem mostra. b) Condição necessária e suficiente (somente se): (44) a segunda resposta vocês têm de uma maneira ... um pouco rápida porque já leram ... eu volto/ somente se alguém tiver alguma pergunta (EF-RE- 337: 84-86)
O que se diz é que: 533
se ninguém tiver pergunta, eu não volto; nada que alguém tenha, que não seja “alguma pergunta”, me fará voltar. c) Condição necessária e suficiente com inversão de polaridade (a não ser que): (45) e eu posso extrapolar, eu vou dizer que o esse gráfico, com este rendimento aqui, é que eu posso predizer, essa turma, seguramente, entrará em gê três a não ser que faça um esforço ou poderei dizer que, na maioria das disciplinas a turma será aprovada, das as características que a, a carta apresenta, entenderam, então? (EF-POA-278: 212-217)
O que se diz, invertendo-se a polaridade é que: a) se fizer um esforço a turma não entrará em gê três (como no inverso de “se não fizer esforço entrará”); b) nada que não represente “fazer um esforço” fará a turma deixar de “entrar em gê três”.
5.3.3 O esquema modo-temporal nas construções eventuais Os 44 períodos hipotéticos eventuais que trazem expressa a oração núcleo em nossa amostra apresentaram os seguintes esquemas modo-temporais de construção registrados no Quadro 7: Quadro 7 Relação modo-temporal nas construções condicionais eventuais oração núcleo
oração condicional
número
porcentagem
presente do indicativo
FUTURO DO SUBJUNTIVO
15
34.10 %
PRESENTE DO INDICATIVO
07
15.90 %
PRESENTE DO SUBJUNTIVO
02
4.54 %
VERBO ELÍPTICO
01
2.28 %
25
56.82 %
FUTURO DO SUBJUNTIVO
07
15.90 %
PRESENTE DO INDICATIVO
03
6.82 %
10
22.72 %
TOTAL
futuro do presente do ind.
TOTAL
534
pret. imperfeito do ind.
PRET. IMPERFEITO DO SUBJ.
03
6.82 %
FUTURO DO SUBJUNTIVO
01
2.28 %
04
9.10 %
FUTURO DO SUBJUNTIVO
02
4.54 %
PRET. IMPERFEITO DO SUBJ.
02
4.54 %
04
9.08 %
01
2.28 %
01
2.28 %
44
100 %
TOTAL
futuro do pretérito do ind.
TOTAL
presente contínuo
FUTURO DO SUBJUNTIVO TOTAL
TOTAL
Se se aceitar, com Renzi (1991) que o uso do indicativo na prótase assinala a possível verdade dos conteúdos, enquanto o uso do subjuntivo assinala sua possível falsidade, tem de ser postulado que a possível verdade é bem menos escolhida no condicionamento de uma eventualidade (10 ocorrências de indicativo num total de 44, ou seja, 22,72%). A oposição pode ser ilustrada pelo confronto de (46), em que ocorre subjuntivo, com (46a) e, por outro lado, de (47), em que ocorre indicativo, com (47a): (46) porque se você não tiver outra opção não tiver Chacrinha não tiver Flávio Cavalcanti ( ) não tiver Sílvio Santos o povo ( ) o povo vai ligar pra TV universitária (D2-RE-05: 310-315)
Compare-se com: (46a) se você não tem outra opção não tem Chacrinha não tem Flávio Cavalcanti não tem Sílvio Santos o povo ( ) o povo vai ligar pra TV universitária.
E: (47) mas é isso que deve ser proibido ... porque se você usa os meios de comunicação usa televisão usa rádio pra difundir o quê? pra difundir livros? ... uma propaganda você não pode ... num programa ... você num PODE (D2-RE-05: 351-354)
Compare-se com: (47a) se você usar os meios de comunicação usar televisão usar rádio pra difundir ( ) uma propaganda você não pode.
535
Facilmente se pode concordar em que (46) (ocorrente com subjuntivo) é menos provável que (46a) (com indicativo), enquanto (47) (ocorrente com indicativo) é mais provável que (47a) (com subjuntivo), já que o indicativo aponta preferencialmente para a possibilidade de a prótase ser verdadeira, enquanto o subjuntivo aponta preferencialmente para a possibilidade de a prótase ser falsa. A interpretação dos dados do Quadro 7 mostra que há alguns esquemas que servem especialmente à expressão da eventualidade na construção hipotética. 1) O esquema mais ocorrente (34,10%) é o que conjuga presente do indicativo com futuro do subjuntivo, dando um misto de futuridade: (11) dependendo do tipo de pimenta se for pimenta malagueta por exemplo eu não gosto (D2-POA-291: 146-148) (48) Então vocês podem se preferirem começar por uma ou só falar uma ... (D2-SSA-98: 66-68) (32) eu acho que se sair antes das seis horas da manhã sai melhor (D2-SSA-98: 126-127) (42) se quiser vai a pé, a Universidade é no centro da cidade (D2-RJ-355: 60-63) (38) porque se um tiver mais do que o outro sai um monte de briga na realidade não acabam tomando tudo não comendo tudo que tem (D2-SP-360: 316-318)
2) A forma verbal acentuadamente mais ocorrente na prótase é o futuro do subjuntivo: além das 15 ocorrências do esquema apresentado acima, ainda se registram 7 ocorrências com apódose em futuro do presente, 2 em futuro do pretérito, 1 em presente contínuo e 1 em pretérito imperfeito, num total de 26 ocorrências (em 44) de futuro do subjuntivo na prótase (59,09%). Observa-se que todos os esquemas modo-temporais que abrigam apódose no futuro do subjuntivo (seja a prótase um presente ou um futuro do indicativo) são exclusivos das construções eventuais: (11) dependendo do tipo de pimenta se for pimenta malagueta por exemplo eu não gosto (D2-POA-291: 146-148)
536
(42) se quiser vai a pé, a Universidade é no centro da cidade (D2-RJ-355: 60-63) (49) porque :: já pensou que que eu vou dizer para ele se ele não for eu não sei realmente eu chego na eu fico :: indecisa (D2-SP-360: 357-362) (50) pra nós falarmos assim ... se nós tivermos de falar de alimentação brasileira ... realmente não ... não teria assim muita relação ... né? (DID-RJ-328: 258-263) (02) então ... se eu comer muito na hora do café eu não vou ter vontade de almoçar ... (DID-RJ-328: 310-312)
Na verdade, o condicionamento da apódose presente ou futura a uma eventualidade jogada para o futuro assenta exatamente a conjuntura que caracteriza o período hipotético eventual: tem-se como certa a realidade de um enunciado se (e somente se) satisfeita, no vir-a-ser, a condição enunciada. 3) Outro esquema que ocorre no nosso corpus apenas na expressão da eventualidade não é, porém, privativo dela. Trata-se do esquema que conjuga pretérito imperfeito do indicativo e pretérito imperfeito do subjuntivo: (51) por isso que eu estou dizendo, minha vontade ... problema de trabalhar em dois ou três lugares não é problema de querer trabalhar, eu por mim trabalhava na Escola de Belas Artes se o salário que me pagassem na Escola de Belas Artes me desse pra co ... viver condignamente (D2-RJ-355: 103-105) (33) e no fim eu paguei mesmo pra conseguir entrar no apartamento quase cem mil cruzeiros. Se eu não tivesse cem mil cruzeiros não entrava (D2-RJ-355: 131-132)
O mesmo esquema serve à expressão da irrealidade, e a interpretação decorre, especialmente, da informação do ouvinte (que pode, inclusive, ser dada pelo próprio contexto), a qual lhe permite decidir, aí, que: a) em (51), a falante diz que, por ela, trabalharia em dois ou três lugares, incluindo a Escola de Belas Artes, isso na dependência de essa escola lhe 537
pagar um salário maior; daí se depreende que, se for preenchida essa condição, ela poderá trabalhar na referida escola; b) em (33), a falante afirma textualmente (em porção do texto que precede o período hipotético) que a condição expressa não pode ser tomada como não preenchida; pelo contrário, como elucida o contexto, ela, realmente, pagou o que se exigia, e o que o período hipotético apresenta é a relação condicionante-condicionado potencial entre “pagar cem mil cruzeiros” e “entrar no apartamento”. 4) Da mesma natureza é outro esquema que também traz o pretérito imperfeito do subjuntivo na prótase, conjugando-o, porém, com futuro do pretérito do indicativo na apódose: em dependência da informação textual/pragmática do ouvinte, a interpretação é eventual ou é irreal. Ambas as possibilidades ocorreram na nossa amostra: (43) E eu acho que o dinheiro todo que eu pudesse, se eu ganhasse assim na loteria e tal eu nunca jogaria em mercado de capitais, nada disso, eu sempre ficaria em imóveis, mesmo porque agora eu tenho uma terceira condição importante que é a questão de família, de filhas e tal. (D2-RJ-355: 226-229)
Interpretação: a) a condição pode ser preenchida (ela pode ganhar na loteria); b) conseqüentemente o estado de coisas da apódose pode realizar-se (Eventual). (31) mastectomia ... infelizmente ... a glândulas mamárias é sede de tumores ... se benignos só seria bom ... mas ... infelizmente é sede de muitos tumores malignos... (EF-SSA-49: 195-197)
Interpretação: a) a condição não pode ser preenchida ( nem todos os tumores são benignos); b) conseqüentemente, o estado de coisas da apódose não pode realizar-se (Irreal)
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5.3.4 Eventualidade e argumentação Como em qualquer frase hipotética, ocorre, nos blocos eventuais, a colocação de toda a construção eventual (prótase + apódose) em foco, como um bloco emitido em conclusão de alguma porção do texto anterior: (48) Então vocês podem se preferirem começar por uma, ou só falar uma ... (D2-SSA-98: 66-68) (52) mas eu mas eu coloco um pouco mais ... justifique ... então aí João se você justificar da maneira ... como você me responde:u ... eu coloco correto ... (EF-RE-337: 181-183)
Com efeito, qualquer bloco hipotético, por exprimir uma relação entre uma condição que se hipotetiza (como possivelmente/realmente verdadeira/ falsa) e um estado de coisas que depende de que a condição seja satisfeita, constitui uma construção que se presta muito eficientemente para apoio de argumentação, não importa seja ela factual, contrafactual ou eventual; essas diferenças, aliás, são postas a serviço do ofício de argumentar: Compare-se (23) (visto em 5.1.3 como factual) e (52) (apontado aqui como eventual): (23a) Depois da aplicação, nós vamos ficar numa delas em análise. A partir daí, se a Maria Lúcia fez a colocação x, ela vai dizer y. (52a) Eu peço que você justifique. A partir daí, se você justificar da maneira x, eu faço a consideração y.
Como no caso das construções condicionais reais, as eventuais favorecem a ocorrência de outros marcadores que colocam todo o período hipotético em foco, servindo ao processo de argumentação. Um exemplo é o marcador de inclusão que se vê em (1): (1)
inclusive ... se eu tiver ... ele disse que vai ser necessário ... um aborto (D2-SP-360: 83-86)
6. Considerações finais 6.1. O esquema condicional básico se x, y estabelece um possível mundo x, e será verdade apenas no caso em que y for verdadeiro nesse mundo x. 539
Nessa definição se enquadram todos os esquemas condicionais, tanto os eventuais como os factuais e os contrafactuais. Os esquemas eventuais constituem os hipotéticos prototípicos, porque neles é que se está em dúvida sobre o mundo A, estando, pois, a oração condicional se x fazendo uma adição hipotética e provisória ao estoque de conhecimento partilhado entre falante e ouvinte. Como sugere Stalnaker (1975), a crença que o falante tem sobre a condicional deverá ser a mesma crença, que ele tem sobre a conseqüente. Considerado um possível mundo A que se diferencie minimamente do mundo real, a construção Se A, B será verdade apenas no caso em que B seja verdade naquele mundo. Por esse raciocínio se consegue avaliar a verdade de qualquer construção hipotética Se A, B e se consegue, mesmo, verificar por que é possível uma construção como “Se o Collor era caçador de marajás, minha avó é bicicleta” e não é possível uma construção como “Se o Collor era caçador de marajás, minha avó é a mãe de meu pai”. Para Haiman (1978) nem as que ele chama semifactuais (tipo condicional-concessivo), como (25) oferecem dificuldade, se se parte do raciocínio acima: (25) quanto à coleta se eles dependiam ... da colheita ... de ... frutos ... raízes ... que es NÃO plantavam ... que estava à disposição deles na natureza ... eles também tinham que obedecer o ciclo :: ... vegetativo ... (EF-SP-405: 76-79)
De fato, contrariamente à expectativa, o mundo B (da apódose) é verdade no mundo A (da prótase) (assim como no mundo não-A). 6.2. Assim, das construções condicionais eventuais é que se pode dizer que são, por excelência, construções hipotéticas: hipotetiza-se uma condição (na prótase) e enuncia-se um estado de coisas como dependente da satisfação dessa condição (na apódose). Esse estado de coisas é carimbado como possível, e sua realização é tida como eventual, com uma eventualidade que, em dependência da condição enunciada: a) poderá resolver-se no futuro (mesmo com forma verbal de presente): (41) porque eu se puder ainda acabo ca ... pedindo transferência pra Universidade Federal do Paraná ... (D2-RJ-355: 51-53) (01) inclusive ... se eu tiver ... ele disse que vai ser necessário ... um aborto ... então ... estamos naquele negócio eh ... como fazer :: ... (D2-SP-360: 83-86)
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(04) Aí depende muito do temperamento dela, não é? Eu vou ver. Se ela for uma criança tímida, eu vou ter que botar num colégio menor. (DID-SSA-231: 121-122) (44) a segunda resposta vocês têm de uma maneira ... um pouco rápida porque já leram ... eu volto/ somente se alguém tiver alguma pergunta (EF-RE- 337: 84-86) (52) mas eu mas eu coloco um pouco mais ... justifique ... então aí João se você justificar da maneira ... como você me responde:u ... eu coloco correto ... (EF-RE-337: 181-183) b)
poderá ter-se resolvido no passado:
(33) e no fim eu paguei mesmo pra conseguir entrar no apartamento quase cem mil cruzeiros. Se eu não tivesse cem mil cruzeiros não entrava (D2-SSA-98: 131-132) c)
pode, simplesmente, resolver-se, sem que entre em questão o tempo de ocorrência:
(32) eu acho que se sair antes das seis horas da manhã sai melhor (D2-SSA-98:126) (51) por isso que eu estou dizendo, minha vontade ... problema de trabalhar em dois ou três lugares não é problema de querer trabalhar, eu por mim trabalhava na Escola de Belas Artes se o salário que me pagassem na Escola de Belas Artes me desse pra co ... viver condignamente (D2-RJ-355: 103-105) (43) E eu acho que o dinheiro todo que eu pudesse, se eu ganhasse assim na loteria e tal eu nunca jogaria em mercado de capitais, nada disso, eu sempre ficaria em imóveis, mesmo porque agora eu tenho uma terceira condição importante que é a questão de família, de filhas e tal. (D2-RJ-355: 226-229) (38) porque se um tiver mais do que o outro sai um monte de briga na realidade não acabam tomando tudo não comendo tudo que tem (D2-SP-360: 316-318)
6.3. Essas construções por excelência hipotéticas (as eventuais) são as mais utilizadas pelos falantes de nosso corpus (47 em 71 = 66,19%). É evidente que, quando o falante lança uma predicação condicionante para uma outra 541
predicação, é de se esperar que mais freqüentemente esteja servindo ela como hipótese a ser verificada, já que, para condições resolvidas (que implicam causalidade, seja afirmada, como no caso das factuais, seja negada, como no caso das contrafactuais), a língua dispõe de outros recursos mais efetivos, como a própria expressão de relações causais. Veja-se, por exemplo, o caso dos enunciados condicionais factuais (14) (15) e (20) e dos enunciados contrafactuais (29) e (30): (14) e (15) se há Chacrinha se há público pra Chacrinha é porque não tá havendo preparação ... não tá havendo condução do público pra aceitar uma comunicação séria (D2-RE-05: 57-59) (20) se é a mãe perguntando diz que quem quebrou foi o pai ((risos)) se é o pai (D2-SP-360: 266-268)
Enunciados possíveis: (14) e (15): “Há Chacrinha, há público pra Chacrinha porque não tá havendo preparação”. (20): “Diz que quem quebrou foi o pai porque foi a mãe que perguntou” (29) e (30): a imagem que eu fazia era a a seguinte se o Japão fosse uma Birmânia, por exemplo que é um dos países atrasados, as economias industriais que ganharam a Segunda Guerra não teriam ajudado o Japão, quer dizer de outra maneira, se o Japão fosse a Birmânia né? (EF-RJ-379: 129-139)
Enunciado possível: °
“As economias industriais que ganharam a Segunda Guerra ajudaram o Japão porque o Japão não é uma Birmânia.”
6.4. A observação da conjugação de relações em jogo nas frases factuais de se é a que evidencia, mais do que no caso dos outros enunciados condicionais, um fato importante para o analista do uso lingüístico: o enunciado efetivo incorpora significados que se situam em diferentes camadas, o que permite, no caso em questão, uma convivência de diferentes tipos de relações implicativas, que vão desde as que se estabelecem entre as predicações até as que se estabelecem entre atos de fala. Aliás, essa é uma diferença intuida em Frege (1978 542
[1892]) que já distingue relação do tipo se entre “pensamentos completos” e entre partes de um pensamento, sendo uma parte condicionante da outra.
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AS CONSTRUÇÕES CONCESSIVAS
Maria Helena de Moura Neves (UNESP) Auxiliar de pesquisa: Silvana Zamproneo
1. O que é uma construção concessiva? Numa definição tradicional, a construção concessiva é uma frase complexa, constituída pelo conjunto de uma oração nuclear, ou principal, e uma subordinada concessiva (Renzi e Salvi, 1991). As construções concessivas têm sido enquadradas, juntamente com as adversativas, entre as conexões contrastivas (van Dijk, 1980). Para Halliday e Hasan (1976), a relação adversativa, que compreende as construções adversativas e as concessivas, tem o significado básico de “contrariedade à expectativa”, derivado do conteúdo do que está sendo dito, ou do processo comunicativo e da relação falante-ouvinte. Assim posta a questão – e conhecida a força “argumentativa” das orações adversativas – fica a tarefa de distinguir as relações “coordenadas”, que marcam as tradicionais “adversativas”, das relações “subordinadas”, que marcam as tradicionais “concessivas”. A resolução da relação entre adversativas e concessivas não é simples, como não é simples a implicação que se pode apontar entre relações causais, condicionais e concessivas, todas elas expressivas de uma conexão “causal” lato sensu entendida, e todas elas explicáveis em dependência de satisfação / não-satisfação de necessidade / de suficiência de determinadas condições. Algumas definições para a construção concessiva estão em Harris (1988, p. 72):
•
um antecedente concessivo contém “um fato, ou noção, apesar do qual a proposição principal se sustém” (Burnham, 1911, p. 4);
•
“nas concessivas, contrariamente a uma expectativa justificável, a escolha do elemento disjunto é totalmente irrelevante, pelo menos para o resultado expresso na proposição principal” (Haiman, 1974, p. 357);
•
numa sentença concessiva “a verdade da oração principal é asseverada, a despeito da proposição contida na oração subordinada” (Mitchell, 1985, p. 706).
A origem dos termos “concessão” / “concessiva” é dada por Hermodsson (1994) como ligada ao substantivo latino concessio, cujo significado é “concessão / cessão”, razão pela qual a relação oracional que expressa esse sentido é denominada por gramáticos e lingüistas concessiva. Hermodsson considera, entretanto, que o termo é inadequado, concordando com Sandfeld (1936, p. 371, apud Hermodsson, 1994), que diz: “nada existe de “concessão” em bien qu’il soit malade, que não significa “il est malade, j’en conviens”, mas pura e simplesmente “malgré sa maladie”. Numa evidente assimilação entre construções concessivas e construções causais sob a noção mais geral de causatividade, propõe Hermodsson (1994, p. 93), então, que o termo concessiva seja substituído por não-causal (alemão: inkausal), entendendo que “a expressão com obwohl (apesar de), como é fácil de reconhecer, dá o sentido oposto de uma expressão causal, já que anula a causalidade prevista”. Entende ele que a construção concessiva pode ser qualificada como uma negação da relação normal suposta entre as proposições citadas na premissa maior e na menor, uma negação, por assim dizer, de nível sintagmático. Um outro ponto de vista apresenta Anscombre (1985), que utiliza a afirmação acima de Sandfeld para ilustrar a confusão existente entre a concessão ou concessio (conceito metalingüístico) das gramáticas tradicionais e a “concessão” (conceito derivado do verbo conceder) da língua ordinária. Tal confusão leva a considerar que é uma concessão, no sentido metalingüístico, tudo aquilo rotulável como concessão, no sentido da língua ordinária, o que implica que a descrição de um enunciado por um falante (em outros termos, sua intuição sobre o enunciado) é considerada como uma análise lingüística. A concessão gramatical é, portanto, confundida com a realização desse ato ilocutório particular que foi provocado pelo uso performativo de eu concordo / admito que. Observa, então, Anscombre que mesmo os conectores tipicamente concessivos não são parafraseáveis por expressões desse tipo. Para que a substituição de um conector concessivo por uma dessas expressões (eu concordo que, eu admito que, etc.) seja possível, é necessário que se acrescente, 546
na oração nuclear, como expressão de oposição, um segundo conector do tipo mas, contudo, todavia, entretanto. Assim, o resultado são construções que mesclam a marca concessiva e a adversativa, e que, aliás, são correntes na língua, como se terá oportunidade de ver mais abaixo.
2. A concepção lógico-semântica da construção concessiva Numa construção concessiva, vista a partir do esquema lógico, pode-se chamar p à oração subordinada e q à nuclear. Uma construção é desse tipo quando p não constitui razão suficiente para não q (Mira Mateus et alii, 1983). Em outras palavras, pode-se dizer que, apesar de o fato / o evento expresso em p constituir uma condição suficiente para a não-realização do fato / evento expresso em q, q se realiza; e nesse sentido se pode dizer que a afirmação de q independe do que quer que esteja afirmado em p. Diz van Dijk (1980) que as conexões contrastivas, entre as quais se incluem as concessivas, se caracterizam por abrigarem eventos cujo curso e cujas propriedades contrariam as expectativas acerca daquilo que os mundos normais deixam transparecer. Na verdade, porém, como se discute mais abaixo, não se trata realmente de relações entre “mundos”, pois a construção concessiva não pode ser equacionada sem que interfira a relação falante-ouvinte, e sem que se evoquem noções como compartilhamento de conhecimentos, plausibilidade de argumentação e admissão de objeção. De todo modo, é evidente uma relação entre construções concessivas, condicionais e causais. Harris (1988) aponta a existência de um espectro semântico que se estende desde as orações causais – passando pelas condicionais e condicionais-concessivas – até as concessivas. Enquanto nas orações causais (que estão num extremo) a relação de causa entre a subordinada e a nuclear é afirmada, nas concessivas (que estão no outro extremo) o vínculo causal entre as orações envolvidas é negado. Sob esse aspecto da relação causa / conseqüência, pode-se dizer que, nas construções concessivas, uma causa (ou uma condição) é expressa na oração concessiva, mas aquilo que dela se pode esperar é negado na oração nuclear. Para uma construção como (01) engraçado que eu gosto muito de chuchu embora todo mundo ache chuchu uma coisa assim sem graça ... aguada ... mas eu gosto ... (DID-RJ-328: 27-30)
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pode-se indicar o esquema Ø chuchu é uma coisa sem graça ... aguada – A Ø eu gosto de chuchu – B Ø Não A (chuchu não ser uma coisa sem graça ... aguada) é condição necessária para B (para eu gostar de chuchu). Ou: A (chuchu ser uma coisa sem graça) é condição suficiente para não B (para eu não gostar de chuchu). Ø Entretanto: não ocorre Não A (que é a condição necessária para B), e (surpreendentemente) ocorre B, isto é, A não consegue ser causa de Não B. Ou: ocorre A (que é a condição suficiente para não B, e (surpreendentemente) ocorre B. Para uma construção como (02) eu só como queijos brancos ... eu evito comer os outros queijos ... embora goste muito ... (DID-RJ-328: 621-623),
por outro lado, pode-se indicar o esquema: Ø eu gosto muito dos outros queijos – A Ø eu evito comer os outros queijos – B Ø A (eu gostar dos outros queijos) é condição necessária para não B (para eu não evitar comer). Ou: Não A (eu não gostar dos outros queijos) é condição suficiente para B) (para eu evitar comer). Ø Entretanto: ocorre A, e (surpreendentemente) não ocorre não B, isto é, A não consegue ser causa de não B. Ou: não ocorre Não A, e (surpreendentemente) ocorre B. Esquemas que envolvem quantificação podem complicar o jogo, pela relação mútua dos conjuntos envolvidos. Veja-se (03): (03) nós temos as reuniões ... muito mais participação, porque, mesmo que alguns professores faltem porque tenham outros ... outros afazeres no ambulatório, mas sempre tem um bom número de reuniões; (DID-SSA-231: 298-302)
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Ø alguns professores faltam – A Ø tem um bom número de reuniões – B Ø Professores não faltarem é condição necessária para B. Ou: professores faltarem é condição suficiente para Não B. Ø Entretanto: professores faltarem ocorre (parcialmente: alguns professores faltam), e (mesmo assim) não ocorre Não B / ocorre B. De qualquer modo, parece evidente a ligação da concessão com a nãosatisfação de condições e com a frustração de causalidades possíveis. A admissão de estreitas relações entre a construção concessiva e a condicional é especialmente tratada em Lopes (s/d), onde se indica que uma concessiva pode ser simultaneamente subentendida e negada por uma condicional, que pode ser representada pela fórmula lógica simples pð~q. Assim, para cada uma das frases concessivas abaixo é possível apresentar-se a condicional contraditória respectiva: (04) contei também o número de estudantes ... quarenta e um ... e: eu tenho quase certeza, embora não tenhamos a lista (EF-RE-337: 142-146) (04a) eu não tenho certeza, se não temos a lista. (05) (...) isso faz com que ... a pessoa ... embora ... queira fugir da re:gra / ... não consiga ... num é? (EF-RE-337: 106-108) (05a) a pessoa, se quer fugir da regra, consegue.
Note-se que, se a oração nuclear é negativa, como no enunciado (05), a condicional contraditória respectiva é positiva; se a oração nuclear é afirmativa, como no enunciado (04), ela corresponde a uma negativa, na respectiva construção condicional. Pode-se dizer, pois, que uma oração nuclear afirmativa em uma construção concessiva será, na condicional contraditória, uma negativa (como em (04)), e que uma oração nuclear negativa em uma construção concessiva será uma oração afirmativa na respectiva construção condicional (como em (05)). Diz Lopes (s/d, p. 3) que “todo o jogo das relações entre 549
construções contrastivas (isto é, concessivas ou adversativas) por um lado, e construções condicionais correlacionadas, por outro lado, envolve sempre a intervenção de pelo menos uma negação”. Em Renzi e Salvi (1991) também se discute a relação entre construções concessivas e construções condicionais. Para as construções concessivas, destaca-se o contraste existente entre os eventos expressos nas orações subordinada e nuclear. Assim, com referência ao enunciado de relação concessiva (06) L1: ... trabalhava al / no :: albergue noturno ... L2: ahn L1: eh como assistente social sabe? embora não :: ... L2: L1: não tivesse curso (D2-SP-360: 431-435),
se pode dizer que, se uma pessoa não tem curso, não se espera que ela trabalhe como assistente social. O que se espera, no caso, pode, sim, ser expresso por uma construção condicional que tenha negação na apódose. Desse modo, a expectativa, em (06), seria assim expressa: (06a) Se ela não tem curso, ela não trabalha como assistente social.
Deve apontar-se, porém, que, embora condicionais e concessivas compartilhem similaridades, há alguns pontos diferenciadores fundamentais, especialmente porque, na condicional, a escolha de um dos elementos disjuntos contidos implicitamente na prótase influi no resultado expresso na apódose. Assim, tome-se a ocorrência: (07) porém se há persistência no nódulo ... é porque aquele nódulo é patológico (EF-SSA-49: 102-103)
Na prótase, a probabilidade de “haver persistência de nódulo” está oposta à probabilidade de “não haver persistência de nódulo”. A opção do disjunto “haver persistência de nódulo” é compatível com a apódose “o nódulo ser patológico”, enquanto a opção “não haver persistência de nódulo” não é compatível com a apódose. A realização do conteúdo da apódose depende da esco550
lha de um dos disjuntos implícitos na prótase, ou seja, depende da opção que se faça por um dos disjuntos, havendo sempre uma conseqüência implicada: (07a) Se há persistência no nódulo é porque aquele nódulo é patológico. (07b) Se não há persistência no nódulo é porque aquele nódulo não é patológico.
Se nas condicionais a escolha disjuntiva na prótase determina o resultado expresso na apódose, o mesmo não ocorre nas concessivas, em que o resultado contido na oração nuclear é independente da escolha que se faça de qualquer dos elementos disjuntos. Tomem-se as ocorrências: (05) (...) isso faz com que ... a pessoa ... embora ... queira fugir da re:gra / ... não consiga ... num é? (EF-RE-337: 106-108) (08) então, todas as subca(tegorias) todas as categorias, mesmo que tenham, que tenham subcategorias elas terão dentro delas próprias, níveis de gradação, então, vamos exemplificar. (EF-POA-278: 146-149)
A disjunção pode ser assim explicitada: (05a) isso faz com que a pessoa, queira ela fugir da regra ou não, não consiga. (05b) isso faz com que a pessoa, quer queira fugir da regra quer não, não consiga. (08a) todas as subca(tegorias) todas as categorias, tenham elas subcategorias ou não, elas terão dentro delas próprias níveis de gradação. (08b) todas as subca(tegorias) todas as categorias, quer tenham subcategorias quer não, elas terão dentro delas próprias níveis de gradação.
A escolha de qualquer um dos elementos disjuntos não influi no conteúdo da oração nuclear, pois é incapaz de alterá-lo. Em português, o elemento quer é usado para expressar a disjunção entre duas ou mais alternativas (quer...quer...), e, desse modo, é usado em construções concessivas, além de combinar-se com pronomes relativos ou interrogativos de valor indefinido, como em quem quer que. Em inglês o 551
morfema -ever corresponde a esse último valor de quer (however, whenever, wherever, whoever, etc.). Como aponta Haiman (1974), tal morfema é, de fato, representado em algumas línguas – é o que ocorre no português – por um verbo de volição. Exercícios do tipo acima indicado, invocados para definir o valor das construções concessivas (bem como das causais ou das condicionais), podem dar a falsa idéia de que o que explicita o valor dessas construções é o mecanismo lógico-semântico que se possa “descobrir” a partir de tais jogos. É evidente, entretanto, que uma análise das conjunções como operadores lógicos seria uma operação extremamente simplificada. Diz Sweetser (1990) que uma análise desse tipo é insuficiente para explicar a ambigüidade pragmática que existe no uso de tais itens lexicais, já que as conjunções são ambíguas entre os usos nos domínios de conteúdo, epistêmico e conversacional (ou dos atos de fala). Se nos casos de polissemia um morfema apresenta diferentes valores semânticos, na ambigüidade pragmática, ao contrário, um único valor semântico é, pragmaticamente, aplicado de maneiras diferentes, de acordo com o contexto pragmático. Segundo Sweetser, uma análise das conjunções será produtiva para a semântica da frase se esta for interpretada de uma destas três maneiras: como um veículo portador de conteúdo, como uma entidade lógica ou como um instrumento de um ato de fala. E todas as conjunções são passíveis de leitura nesses domínios. Para o caso das causais, Sweetser explica, mais especificamente, as três leituras possíveis1. Também no caso das concessivas se pode tentar buscar essas três possíveis leituras. Como casos de domínio de conteúdo, considerem-se as ocorrências (09) e (10): (09) cada um tem as suas características embora ... mesmo mei::o mesma educação :: totalmente diferentes (D2-SP-360: 1502-1506)
A leitura de domínio de conteúdo da ocorrência (09) seria algo do tipo: “a existência de pessoas com características totalmente diferentes em uma família numerosa ocorre, apesar do fato de que elas estão sujeitas ao mesmo meio e à mesma educação, fato que, por sua vez, poderia naturalmente ter levado à existência de características idênticas dessas pessoas”. 552
(10) normalmente eu não estou assim muito por dentro dos preços dos alimentos ... embora eu ouça minha tia às vezes falar que está tudo muito caro ... (DID-RJ-328: 53-58)
Nesse enunciado é possível a leitura “a minha ignorância a respeito dos preços dos alimentos é um fato que ocorre, apesar do fato de que eu ouço minha tia falar que os alimentos estão caros, fato que, por sua vez, poderia terme deixado por dentro do assunto”. Note-se que, no domínio de conteúdo, a relação ocorre entre fatos ou eventos de um mundo: um fato é apresentado na oração concessiva como obstáculo, porém esse obstáculo é incapaz de impedir a realização do fato expresso na oração nuclear. Verifica-se, pois, que a leitura do domínio de conteúdo é a mais próxima do esquema lógico da relação concessiva. Como caso de domínio epistêmico, considere-se o enunciado (11): (11) então a gente já limitou bastan :: te nesse período extremamente vasto de seiscentos mil anos ... embora ... de vinte mil a doze mil ... (quer dizer) praticamente oito mil anos ... ainda seja ... um período Muito maiOR do que ... o que conhecemos ... historicamente ... (EF-SP-405: 17-22)
A leitura do domínio epistêmico do enunciado (11) poderia ser algo como: “é verdade que a gente já limitou bastante nesse período vasto de seiscentos mil anos, apesar de que não é menos verdade que o período de vinte mil a doze mil anos ainda seja um período maior do que o que conhecemos historicamente, o que poderia levar à conclusão de que a gente ainda não colocou limite suficiente nesse período extremamente vasto de seiscentos mil anos”. Note-se que a leitura de domínio epistêmico implica que o que vem expresso na oração nuclear contraria a conclusão a que se poderia chegar a partir da premissa contida na oração concessiva. Neves (1984), tratando de um dos valores semânticos do conector interfrasal mas, o de “negação de inferência”, apresenta a fórmula concessiva “q nega a inferência de p” e a fórmula inversa “p nega a inferência de q” como um tipo de concessiva “invertida”. Estabelecendo-se um paralelo entre esses dois tipos de inferência propostos em Neves (1984) e os domínios de conteúdo e epistêmico propostos 553
em Sweetser (1990), verifica-se que concessivas do tipo “q nega a inferência de p” correspondem ao domínio de conteúdo, e as chamadas concessivas “invertidas”, do tipo “p nega a inferência de q”, correspondem ao domínio epistêmico. O falante é livre para escolher entre realizar uma construção concessiva para leitura no domínio de conteúdo ou realizar uma construção de leitura epistêmica. Retomem-se, por exemplo, as ocorrências (09) e (10), do domínio de conteúdo: a) concessiva / domínio de conteúdo: (09) cada um tem as suas características(q), embora ... mesmo mei::o mesma educação(p) :: totalmente diferentes(q) (q nega a inferência de p, que seria: “todos têm as mesmas características”) (10) normalmente eu não estou assim muito por dentro dos preços dos alimentos(q) ... embora eu ouça minha tia às vezes falar que está tudo muito caro(p) (q nega a inferência de p, que seria: “eu estou por dentro dos preços dos alimentos”)
Invertendo-se p e q, tem-se uma possível leitura epistêmica, conforme se verifica nas paráfrases: b)
concessiva invertida / domínio epistêmico:
(09a) embora cada um tenha as suas características totalmente diferentes(p), (tem) mesmo meio (e tem) mesma educação(q) (p nega a inferência de q, que seria: “todos têm as mesmas características) (10a) eu ouço minha tia às vezes falar que está tudo muito caro(q), embora normalmente eu não esteja assim muito por dentro dos preços dos alimentos(p) (p nega a inferência de q, que seria: “eu estou por dentro dos preços dos alimentos”)
É possível pensar-se numa relação icônica entre a construção com leitura de domínio de conteúdo, de um lado, e a relação de causa / efeito que liga os fatos de um mundo expressos em p e q, de outro lado, relação que, por sua vez, é negada na construção concessiva. Em outras palavras, em uma concessiva de conteúdo há a frustração de uma expectativa de causalidade entre os fatos expressos em p e q. Para as ocorrências (09) e (10) podem pressupor-se as seguintes relações causais que são negadas nas respectivas construções concessivas: 554
(09b) todos têm as mesmas características por causa do mesmo meio e da mesma educação. (10b) eu estou por dentro dos preços dos alimentos porque eu ouço às vezes a minha tia falar que está tudo muito caro.
Já nos casos de domínio epistêmico não é possível pensar-se nessa relação icônica, mas em processos mentais, de raciocínio do falante, o qual, a partir de premissas, chega a conclusões. Em uma concessiva epistêmica, o que o falante faz é apresentar na oração nuclear uma proposição incompatível com a conclusão. Para as paráfrases epistêmicas (09a) e (10a), pode-se pensar nas seguintes conclusões (negadas nas respectivas concessivas): (09c) cada um tem as suas características totalmente diferentes, logo eles não têm o mesmo meio nem a mesma educação. (10c) normalmente eu não estou assim muito por dentro dos preços dos alimentos, logo eu não ouço minha tia falar que está tudo muito caro.
Pode-se verificar, também, que, em alguns casos, não existindo elementos modalizadores epistêmicos, se se inverter a ordem de uma concessiva de domínio epistêmico (como (11)), produzindo-se uma concessiva em que q nega a inferência de p (como (11a)), a leitura será de conteúdo: (11) então a gente já limitou bastan :: te nesse período extremamente vasto de seiscentos mil anos(q) ... embora ... de vinte mil a doze mil ... (quer dizer) praticamente oito mil anos ... ainda seja ... um período ainda Muito maiOR do que ... o que conhecemos ... historicamente ... (p) (p nega a inferência de q, que seria: “de vinte mil a doze mil – praticamente oito mil anos – já não é um período muito maior do que o que conhecemos historicamente”) (11a) de vinte mil a doze mil, (quer dizer) praticamente oito mil anos, ainda é um período muito maior do que o que conhecemos historicamente(q), embora a gente já tenha limitado bastante nesse período extremamente vasto de seiscentos mil anos(p) (q nega a inferência de p, que seria: “de vinte mil a doze mil – praticamente oito mil anos – já não é um período muito maior do que o que conhecemos historicamente”)
Se a inversão de p e q nas construções concessivas de domínio de conteúdo produz uma leitura de domínio epistêmico, nem todos os casos de 555
inversão de p e q nas concessivas de domínio epistêmico têm em uma leitura de domínio de conteúdo. Há casos em que, mesmo com a inversão de p e q, a leitura será invariavelmente epistêmica. Tal é o caso dos enunciados abaixo: (04) eu tenho quase certeza (do número de estudantes) embora não tenhamos a lista (EF-RE-337:12-17) (12) acho ... muito importante é a apresentação é rótulo embora isso não embora isso em alguns casos não pese muito ... (D2-POA-291:651-652) (1)
eu gosto muito de chuchu embora todo mundo ache chuchu uma coisa assim sem graça ... aguada ... mas eu gosto (DID-RJ-328:27-30)
Note-se que em (04), (12) e (01) uma leitura epistêmica é inevitável, uma vez que ocorrem os modalizadores epistêmicos “ter certeza” (em (04)) e “achar” (em (12) e (01)). Quanto ao domínio dos atos de fala, verificam-se casos como os seguintes: (13) L1: É, a cachoeira é bonita L2: Muito bonita L1: Se bem que agora você não vê (D2-SSA-98:1-2) (14) carne nós comemos muito no sul ... se bem que a viagem que eu fiz ao sul foi há muitos anos (DID-RJ-328:184-186) (15) mesmo que seja pra Alemanha ou pra França eu telefono ... (D2-RE-151:811-814)
Em (13), no ato de fala declarativo, expresso pela oração nuclear, o falante (L1) qualifica a cachoeira como bonita, mas no segundo ato de fala ele avalia o seu interlocutor (L2) como inapto para concordar ou não com seu 556
ponto de vista de que a cachoeira seja bonita, já que não pode vê-la. Ou seja, o falante declara que o ouvinte não tem condições de avaliar ou emitir qualquer opinião sobre o tema em questão. Em (14), o falante, por meio de um ato de fala declarativo, assegura que no Sul se come carne, e logo a seguir introduz um outro ato de fala declarativo que o qualifica como um falante que não tem condições de fazer afirmações categóricas a respeito da alimentação no Sul, uma vez que já faz algum tempo que esteve lá. A justificativa do falante para sua auto-avaliação como declarante inapto é explicitada na seqüência da construção: “eu não lembro mais assim muito o que nós comemos lá ... assim ... mas é mais à base de churrasco ... né?” Em (15), há dois atos de fala diferentes. A oração concessiva apresenta um impedimento para o ato de telefonar, e a segunda oração, entretanto, constitui um compromisso com esse ato, com o verbo funcionando performativamente. Os enunciados, muitas vezes, são passíveis de leituras em mais de um domínio. As construções que permitem uma leitura de domínio de conteúdo passam, de qualquer forma, por uma avaliação do falante. Somente quando inserido dentro de seu contexto de ocorrência, é que se pode decidir a qual dos três domínios pertence o enunciado. Sendo assim, no corpus analisado verificou-se que a grande maioria das 55 construções concessivas permite uma leitura de domínio epistêmico (43, ou seja, 78,2%), enquanto apenas 5 (9,1%) podem ser ditas de domínio de conteúdo e 7 (12,7%) de domínio dos atos de fala. Tais resultados evidenciam que concessivas são mais votadas a contrastar conteúdos proposicionais ou a negar conclusões possíveis a partir de premissas dadas. As construções concessivas de leitura epistêmica codificam relações “internas” ao processo de comunicação (Halliday e Hasan, 1976) e são aptas a representar a crença ou o conhecimento do falante. Essas leituras em mais de um domínio podem ser vistas em relação com camadas correlacionadas propostas por funcionalistas (Dik, 1989; Hengeveld, 1989; Dik e Hengeveld, 1991). Dentro do modelo de Dik, os enunciados (09) e (10) corresponderiam ao nível da predicação, em que a relação se dá entre estados de coisas que ocorrem em algum mundo real (09) ou mental (10). Ao nível da proposição corresponderiam as ocorrências (11), (04), (12) e (01), nas quais a relação ocorre entre conteúdos proposicionais, ou fatos possíveis. Finalmente ao último nível, o da frase, corresponderiam as ocorrências (13), (14) e (15), nas quais a relação se dá entre atos de fala. 557
3. Uma avaliação pragmática das construções concessivas Um estudo da concessão apenas do ponto de vista lógico, conforme já se acentuou, não conseguirá dar conta da complexidade dessa relação. É necessário, principalmente, levar-se em conta a natureza essencialmente argumentativa de uma construção concessiva, que, mais do que relacionar estados de coisas, põe em contraste argumentos do discurso. Moeschler e Spengler (1981) distinguem dois tipos de concessão: a lógica e a argumentativa. Na concessão lógica, que corresponderia às ocorrências dadas no capítulo precedente dentro do domínio de conteúdo, a relação de negação da expectativa “p é causa de q”, cuja fórmula seria “p causa ~q”, existe objetivamente no mundo extralingüístico, ou seja, diz respeito a fatos do mundo real, mais que a fatos do discurso. Na concessão argumentativa, que é a que interessa neste capítulo e que corresponderia aos casos dos domínios epistêmico e dos atos de fala propostos em Sweetser (1990), existem dois argumentos que conduzem a conclusões implícitas contrárias. A oração concessiva (p) argumenta em favor da conclusão r, ao passo que a oração nuclear (q) argumenta em favor de não-r; o que pode ser representado na fórmula: pðr q = ~r q = argumento mais forte para ~r do que p é para r Na ocorrência abaixo: (16) uma coisa que eu como também ... embora o pessoal aqui em casa não coma muito ... são os miúdos do boi ... (DID-RJ-328: 461-464)
Imaginando-se um contexto de dúvida entre fazer ou não um prato com miúdos de boi, tem-se: Ø p “o pessoal em casa não come muito miúdos de boi” ARGUMENTA em favor de r “não fazer o prato” Ø q “eu como miúdos de boi” ARGUMENTA em favor de ~r “fazer o prato com miúdos de boi” 558
Ø resultado final: q é argumento mais forte (para “fazer o prato”) do que p (para “não fazer o prato”) Para (17), se se pensar em um contexto no qual alguém está tomando uma decisão entre ter ou não mais filhos, tem-se: (17) gostaríamos demais de mais filhos ... embora eu fique quase biruta ... (D2-SP-360: 90-94)
Ø p “ficar quase biruta por causa dos filhos” ARGUMENTA em favor de r “não ter mais filhos Ø q “gostar de mais filhos” ARGUMENTA em favor de ~r “ ter mais filhos” Ø resultado final: q é argumento mais forte (para “ ter mais filhos”) do que p (para “não tê-los”) Para (18) pode-se pensar em um contexto no qual alguém está optando por usar o molho de pimenta na alimentação ou não usá-lo: (18) eles fazem um molho com pimenta muito gostoso ... se bem que é muito ... que é muito forte ... (DID-RJ-328: 184-186)
Ø p “o molho de pimenta é muito forte” ARGUMENTA em favor de r “não usá-lo” Ø q “o molho de pimenta é muito gostoso” ARGUMENTA em favor de ~r “usálo” Ø resultado final: q é argumento mais forte (para “usar o molho de pimenta”) do que p (para “não usá-lo”) Hermodsson (1994) afirma que quando se fala em “concessão” – termo amplamente difundido nas gramáticas e em trabalhos lingüísticos – podese pensar em dois possíveis empregos do conceito: a concessão no diálogo e a concessão no monólogo. No segundo caso, o falante distancia-se de sua própria proposição mediante uma afirmação explícita, por exemplo, “eu me enganei”, algo semelhante a uma retomada; ou então, ele se distancia de um ponto de vista que é pressuposto no contexto dado. Já no caso da concessão no diálogo, o falante faz uma proposição, o ouvinte discorda dela e, em seguida, o falante, cedendo à afirmação contrária, distancia-se de sua proposição inicial. 559
A partir do corpus, tentarei ilustrar, com as respectivas paráfrases (12a), (06a) e (19a), o jogo que se estabelece no caso da concessão no diálogo: (12) acho ... muito importante é a apresentação é rótulo embora isso não embora isso em alguns casos não pese muito ... não é? (D2-POA-291: 651:652) (06) L1: ... trabalhava al / no :: albergue noturno ... L2: ahn L1: eh como assistente social sabe? embora não :: ... L2: L1: não tivesse curso (D2-SP-360: 431:435) (19) L1 ah ... é requinte embora seja um requinte ... às vezes de baixo custo, mas é requinte (D2-POA 37: 104:108) (12a) A: A apresentação, o rótulo em alguns casos pesa muito. B: A apresentação, o rótulo em alguns casos não pesa muito, pois ... A: Você tem razão / É verdade / Eu admito que a apresentação, o rótulo em alguns casos não pesa / pese muito. (06a) A: Tinha curso. B: Não tinha curso, pois ... A: Você tem razão / É verdade / Eu admito que não tinha / tivesse curso. (19a) A: Não é um requinte de baixo custo. B: É um requinte de baixo custo, pois ... A: Você tem razão / É verdade / Eu admito que é / seja um requinte de baixo custo.
Hermodsson ainda deixa claro que a “concessão” deve ser separada do ato de “consentimento”, que ocorre 560
“quando, em um diálogo, o falante concorda com a opinião do outro, sem antes estabelecer a sua própria afirmação divergente. Há um semnúmero de formas de expressão do consentimento, como por exemplo, eu sou da sua opinião, eu estou de acordo com você; o mais freqüente é, como Engel salienta, a palavra sim “ (1994, p. 62).
Nesse caso, então, não há distanciamento de nenhum ponto de vista, diferentemente do que ocorre na concessão, como se viu acima. Relacionando o conceito “concessão” com as frases chamadas “concessivas”, o autor afirma que, nestas, nada estaria concedido, e o falante não se estaria distanciando de seu ponto de vista inicial. Relacionando, por outro lado, o ato de “consentimento” com as frases concessivas, Hermodsson salienta que um período concessivo não deve ser interpretado na sua totalidade como um consentimento, “mas representa o oposto, em que na oração principal se levanta uma objeção contra a expressão da oração subordinada” (p. 62). O autor, entretanto, admite que, tanto na oração nuclear quanto na oração subordinada, podem ocorrer expressões que falam explicitamente de um consentimento, e cita os exemplos: “Embora, como eu quero admitir, o Reno esteja contaminado, muitos peixes vivem lá” e “ Embora o Reno esteja contaminado, vivem, como eu quero admitir, muitos peixes lá”, nos quais o verbo admitir tem como escopo, no primeiro exemplo, a oração concessiva, e, no segundo exemplo, a oração nuclear. Argumenta, pois, Hermodsson que em nenhum dos casos a estrutura frasal teve, na sua totalidade, o sentido de consentimento. Bechara (1954) aponta uma origem argumentativa para o pensamento concessivo. Sem distinguir entre monólogo e diálogo, como faz Hermodsson (1994), ele afirma que “a concessão deve ter nascido no momento em que as declarações do falante sentiram o peso da argumentação contrária do interlocutor.(...) A prática cotidiana habilitou o homem a pressupor, no correr de suas asserções, a objeção iminente. Enunciar o pensamento contando e obstruindo os obstáculos que o interlocutor ou interlocutores apresentariam era o propósito da idéia concessiva” (p. 9).
Ocorre, na construção concessiva, que o falante pressupõe a objeção do ouvinte (elemento hipotético), e declara que tal objeção não impedirá nem modificará o propósito expresso na oração nuclear (elemento opositivo). Existem, pois, duas etapas no pensamento concessivo, que exatamente o aproxi561
mam do pensamento condicional: elaboração de hipótese de objeção por parte do ouvinte, e refutação a essa objeção. O que se propõe aí é que o falante apresenta na oração concessiva uma objeção do ouvinte por ele pressuposta, mas que faz prevalecer a idéia expressa na oração nuclear. Esse mecanismo pode ser explicitado por miniconversações do tipo que, com base em Jespersen (1940), se propuseram no caso das condicionais (Haiman, 1978). No caso das concessivas pode-se pensar em tópicos de contraste estabelecidos na relação falante-ouvinte em que o falante pressupõe a objeção do ouvinte, mas a rejeita. O conteúdo da oração concessiva será compartilhado por ambos, razão pela qual acredito que o que se pode sugerir são interrogações do tipo de “pedido de confirmação”, como se indica a seguir, no exame das ocorrências (20), (21) e (04): (20) Mesmo que seja só de nome a gente já ouviu falar nessa taxionomia (EF-POA-278: 52-53) (21) eles precisam de muita energia aqui no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, Paraná e São Paulo, embora se tenha uma situação semelhante, nós não chegamos a te(r) temperatura tão baixa (D2-POA-37: 968-971) (04) contei também o número de estudantes ... quarenta e um ... e: eu tenho quase certeza embora não tenhamos a lista (EF-RE-337: 12-17) (20a) A: Foi só de nome, não é? B: (É.) A: (Mas) a gente ouviu falar dessa taxionomia. (21a) A: Tem-se uma situação semelhante, não é? B: (É.) A: (Mas) nós não chegamos a te(r) temperatura tão baixa. (04a) A: Não temos a lista, não é? B: (É.) A: (Mas) eu tenho quase certeza.
Todo esse raciocínio aponta para uma base argumentativa da construção concessiva, ponto exato em que podem ser examinadas as similaridades e 562
as diferenças entre concessivas e adversativas. Tente-se uma correlação das ocorrências concessivas abaixo (“subordinadas”) – em que o falante refuta uma objeção – com possíveis formulações do tipo adversativo (“coordenadas”) – em que o falante admite uma proposição: (05) isso faz com que ... a pessoa ... embora ... queira fugir da re:gra / ... não consiga ... num é? (EF-RE-337: 106-108) (22) Eles querem sempre ... por mais que a gente dê, eles querem sempre mais coisas, né? (DID-SSA-231: 236-238) (18) eles fazem um molho com pimenta muito gostoso ... se bem que é muito ... que é muito forte ... né ... a gente sente assim aquele gosto muito picante ... (DID-RJ-328: 184-186)
Construção concessiva (“subordinação”) Oração concessiva
Oração nuclear
(05) embora queira fugir da regra
a pessoa não consegue
(22) por mais que a gente dê
eles sempre querem mais
(18) se bem que é muito forte
eles fazem um molho muito gostoso
Construção adversativa correspondente (“coordenação”)
Primeira coordenada
Coordenada adversativa
(05) (a pessoa) quer fugir da regra
mas não consegue
(22) a gente dá muito
mas eles sempre querem mais
(18) (o molho) é muito forte
mas é muito gostoso
A operação argumentativa nesses esquemas pode assim ilustrar-se, usando-se (18) como padrão: 563
Esquema concessivo : a) alguém/você pode me objetar que o molho que eles fazem é muito forte, e eu não desconheço isso; b) (de qualquer modo / ainda assim) o molho é muito gostoso. Esquema adversativo : a) eu admito que o molho que eles fazem é muito forte; b) (de qualquer modo / ainda assim) o molho é muito gostoso. Esse misto concessivo-adversativo fica bem evidente nos casos em que ambas as conjunções (a “subordinativa concessiva” e a “coordenativa adversativa” ) vêm expressas: (03) nós temos as reuniões ... muito mais participação, porque, mesmo que alguns professores faltem porque tenham outros ... outros afazeres no ambulatório, mas sempre tem um bom número de reuniões (DID-SSA-231: 298-302) A: Alguns professores faltam, não é? B: (É.) A: Mas sempre tem um bom número de reuniões. (01) eu gosto de comer couve-flor ... gosto mui / engraçado que eu gosto muito de chuchu embora todo mundo ache chuchu uma coisa assim sem graça ... aguada ... mas eu gosto ... (DID-RJ-328: 27-30) A: Eu gosto muito de chuchu. Todo mundo acha chuchu uma coisa assim sem graça, não é? B: (É.) A: Mas eu gosto. (19) L1 ah ... é requinte embora seja um requinte ... às vezes de baixo custo, mas é requinte (D2-POA-37: 107-108)
564
A: É requinte. É um requinte de baixo custo, não é? B: (É.) A: Mas é requinte.
Nesses casos, o esquema tem de prever que a oração concessiva, ao mesmo tempo que expressa a refutação a uma possível objeção do interlocutor / de qualquer pessoa, expressa também o assentimento referente a alguma validade dessa objeção. Assim, para as frases acima, tem-se: (03) ESQUEMA CONCESSIVO (refutação a uma possível objeção): mesmo que alguns professores faltem, (tem sempre um bom número de reuniões) ESQUEMA ADVERSATIVO (admissão / assentimento): (alguns professores faltam), mas tem sempre um bom número de reuniões (01) ESQUEMA CONCESSIVO (refutação a uma possível objeção): embora todo mundo ache chuchu uma coisa sem graça (eu gosto muito de chuchu) ESQUEMA ADVERSATIVO(admissão / assentimento): (todo mundo acha chuchu uma coisa sem graça), mas eu gosto muito de chuchu (19) ESQUEMA CONCESSIVO (refutação a uma possível objeção): embora seja um requinte às vezes de baixo custo, (é requinte) ESQUEMA ADVERSATIVO (admissão / assentimento): (é um requinte às vezes de baixo custo), mas é requinte
Nesse tipo de construção – em que, na mesma frase, tanto se expressa a refutação a uma objeção (esquema concessivo), como a admissão (maior ou menor) de uma proposição (esquema adversativo) – percebe-se a determinação de uma ordem fixa (na qual a refutação, em sendo uma admissão, tem de preceder a outra proposição), mas nas construções concessivas puras (sem o elemento adversativo presente), não apenas a ordem é livre, como também, conforme se verificou no corpus analisado, é mais freqüente a posposição da concessiva. Assim, das 55 construções examinadas, 39 (71%) se apresentaram com a concessiva posposta, 11 (20%) com a concessiva anteposta, havendo 565
apenas 5 casos (9%) de concessivas intercaladas dentro da oração nuclear, casos que devem ser examinados levando-se em conta a organização da informação, associada à condução argumentativa do texto, como se verá abaixo. Com efeito, pode parecer adequado a um determinado propósito comunicativo que primeiro se refute uma possível / previsível objeção do interlocutor e depois se faça uma asseveração, mas também é bastante plausível que seja mais natural primeiro asseverar-se algo, para depois se prover uma “defesa” do ponto de vista expresso. Esse último caso aparece muito claramente em ocorrências como: (23) L1 a relação salário profissional de nível superior ao aluguel seria a quarta parte, relação de dois mil cruzeiros, o sujeito pagava quinhentos cruzeiros, apesar que a unidade não era cruzeiro (D2-RJ-355: 18-20) (24) L1 é ... “fez uma negrice” que(r) dize(r) te(r) dize(r), isso é uma coisa da nossa linguagem, ela existe, embora temos uma Lei Afonso Arinos não sei mais quê, tá, tá, tá há uma série de ah ... de ... de ... de ... de restrições à discriminação (D2-POA-37: 439-443) (18) eles fazem um molho com pimenta muito gostoso ... se bem que é muito ... que é muito forte ... né ... a gente sente assim aquele gosto muito picante ... (DID-RJ-328: 184-186)
Para as orações concessivas assim pospostas não se pode invocar a função de tópico. Elas têm muito de um afterthought (Chafe, 1984), ou “adendo”, em que o falante volta ao que acaba de dizer, pesando a posteriori objeções à sua proposição. Conectivos mais volumosos como apesar (de) que, se bem que são especialmente votados para essa função de aportar conteúdos ou argumentos novos após aparentemente concluída uma primeira porção do enunciado, e após uma quebra marcada no andamento da fala. Veja-se que os próprios elementos lexicais que compõem determinadas locuções concessivas (a pesar (de) que, se bem que) mostram esse tipo de processo. No caso de apesar de que / apesar que (além de ainda que), o corpus em estudo apresenta 100% de posposição, e, no caso de se bem que, a porcentagem de posposição é de 92% (11 em 12 ocorrências). A posposição é necessária, por outro lado, em casos em que a “ressalva” incide num ponto particular do enunciado, por exemplo um sintagma nominal, como em (25), ou um sintagma adjetivo, como em (26): 566
(25) durante a noite eu faço também outra refeição ... embora com menos coisas que engordem ... porque eu tenho uma vida assim muito sedentária ... eu faço pouco exercício ... quase toda a minha atividade profissional é ... é mais sentada (DID-RJ-328: 38-42) refeição → embora (refeição) com menos coisas. (26) o objetivo da pesquisa bibliográfica, da consulta bibliográfica, seria a análise de uma série de fontes para depois se apresentar um todo novo reformulado. Ainda que com características de cada um deles (EF-POA-278: 335-339) reformulado → ainda que (reformulado) com características de cada um deles.
A questão da posposição da oração concessiva pode ser relacionada com a própria natureza argumentativa da construção, em termos de interação. Em textos conversacionais, como os do corpus analisado, podem encontrar-se casos em que os dois interlocutores compõem juntos a construção concessiva: um falante emite uma proposição e o seu interlocutor toma a palavra para fazer o aporte do segmento concessivo. São casos como: (27) L2: Tem, porque lá você não tem problema de transporte porque a cidade é pequena você se quiser vai a pé, a Universidade é no centro da cidade L1: Apesar que tem aí um outro ângulo pra você analisar, depois eu vou comentar com você ... (D2-RJ-355: 1-5) (13) L1: É, a cachoeira é bonita L2: Muito bonita L1: Se bem que agora você não vê ... (D2-SSA-98: l.33, p.25 e l.1-2, p.26)
As orações concessivas intercaladas, por outro lado, entram no mecanismo de topicalização de elementos da oração nuclear. Em (28), por exemplo, a concessão destaca qualificações: 567
(28) o testosterona ... ele inibe inibe ... exato ... é o seguinte ... é porque a verdade é que tanto no sexo feminino quanto no masculino há sempre uma produção significante embora pequena mas de hormônio do sexo oposto ... entendeu? (EF-SSA-49: 91-94)
Em (16), a oração concessiva compõe o jogo iniciado pelo deslocamento à esquerda e topicalização do complemento do verbo da oração nuclear: (16) uma coisa que eu como também ... embora o pessoal aqui em casa não coma muito ... sãos miúdos do boi ... (DID-RJ-328: 461-464)
Muito comum é a concessão vir imediatamente posposta ao sujeito da oração nuclear, operando, pois, mais diretamente sobre ele. Nesses casos as duas orações têm sujeito correferencial e a concessiva não explicita o sintagma sujeito: (05) isso faz com que ... a pessoa ... embora ... queira fugir da re:gra / ... não consiga ... num é? (EF-RE-337: 106-108) (8)
então, todas as subca(tegorias) todas as categorias, mesmo que tenham, que tenham subcategorias elas terão dentro delas próprias, níveis de gradação, então, vamos exemplificar. (EF-POA-278: 146-149)
Essa colocação parece operar num mecanismo de acentuação do caráter tópico do sujeito.
4. Características básicas das construções em exame A distribuição dos tipos de predicação nas duas orações componentes da construção concessiva é apresentada no quadro 1.
568
Quadro 1 Tipos de predicação (Dik, 1989) das orações que compõem as construções concessivas
oração concessiva
oração nuclear
total
%
ESTADO
estado
18
32.72
atividade
10
18.18
realização
02
3.64
mudança
01
1.82
posição
01
1.82
32
58.18
estado
03
5.45
atividade
03
5.45
posição
01
1.82
07
12.72
estado
05
9.08
dinamismo
01
1.82
06
10.90
estado
02
3.64
dinamismo
01
1.82
posição
01
1.82
04
7.28
01
1.82
01
1.82
estado
02
3.64
atividade
02
3.64
posição
01
1.82
05
9.10
55
100
total ATIVIDADE
total DINAMISMO
total POSIÇÃO
total MUDANÇA
atividade total
total TOTAL
569
Como se pode observar, mais de 60% das ocorrências combinam os estados de coisas estado e atividade, sendo freqüentes os tipos com concessiva e nuclear de estado (32% do total), e com concessiva de estado e nuclear de atividade (18% do total). As combinações com predicações télicas se reduzem a quatro casos (cerca de 7% ao todo). Vistas separadamente as duas predicações, verifica-se que as predicações de estado estão em cerca de 58% (32 em 55) das orações concessivas e em cerca de 55% (30 em 55) das orações nucleares. Verifica-se, ainda, que elas estão em 80% (44 em 55) de todas as construções examinadas seja numa seja noutra das orações. As predicações de atividade estão em cerca de 13% (7 em 55) das orações concessivas, em cerca de 29% (16 em 55) das orações nucleares, ocorrendo, no total (seja numa seja noutra das orações) em cerca de 36% (20 em 55) dos casos. Quanto à relação modo-temporal, nas construções concessivas, o que se encontrou está registrado no quadro 2: Quadro 2 Relação modo-temporal nas construções concessivas oração nuclear
oração concessiva
presente do indicativo
PRESENTE DO SUBJUNTIVO
futuro do presente do ind.
40%
11
20%
01
1.82%
34
61.82%
PRESENTE DO SUBJUNTIVO
03
5.45%
PRET. IMPERFEITO DO SUBJ.
02
3.63%
PRET. PERFEITO DO IND.
01
1.82%
06
10.90%
02
3.63%
PRET. IMPERFEITO DO IND.
02
3.63%
PRESENTE DO INDICATIVO
01
1.82%
TOTAL
05
9.08%
PRESENTE SUBJUNTIVO
01
1.82%
PRESENTE DO INDICATIVO
01
1.82%
02
3.64%
PRET. IMPERFEITO DO SUBJ.
TOTAL
570
22
PRET. IMPERFEITO DO SUBJ.
TOTAL
pret. imperfeito do ind.
porcentagem
PRESENTE DO INDICATIVO
TOTAL
pret. perfeito do ind.
número
presente do subjuntivo
PRESENTE DO SUBJUNTIVO TOTAL
futuro do pretérito do ind.
PRESENTE DO SUBJUNTIVO TOTAL
infinitivo
PRESENTE DO SUBJUNTIVO TOTAL
–
VERBO ELÍPTICO TOTAL
TOTAL
01
1.82%
01
1.82%
01
1.82%
01
1.82%
01
1.82%
01
1.82%
05
9.10%
05
9.10%
55
100
O esquema modo-temporal mais comum é o que conjuga presente do indicativo com presente do subjuntivo (40%) seguido pelo esquema que apresenta presente do indicativo com presente do indicativo (20%). Se se considerar que há 5 casos (quase 10%) de orações com verbos elípticos, vê-se que todas as demais ocorrências somam apenas 30%. Observe-se, ainda, que, entre essas, 10 (cerca de 18% do total) têm pelo menos uma das orações em tempo presente. Quanto à relação de modo, como se vê no quadro 3, abaixo, o esquema mais freqüente é indicativo na nuclear e subjuntivo na concessiva (58%), seguido do esquema indicativo-indicativo (29%), não se esquecendo o fato de que quase 10% das construções têm verbo elíptico na concessiva. Quadro 3 Relação entre o modo verbal da oração nuclear e o da oração concessiva
oração nuclear
oração concessiva
total
%
indicativo
subjuntivo
32
58.18
indicativo
indicativo
16
29.10
subjuntivo
subjuntivo
01
1.81
infinitivo
subjuntivo
01
1.81
Ø
05
9.10
total
55
100
571
Tem de ser considerado o fato de que o emprego do modo verbal é diretamente associado ao conectivo concessivo usado. Veja-se o quadro 4: Quadro 4 Relação entre conectivo e modo verbal
MODO
EMBORA
VERBAL
SE
MESMO
AINDA
POR
APESAR
APESAR
BEM
QUE
QUE
MAIS
DE
QUE
QUE
QUE
QUE INDICATIVO
TOTAL
/
SUBJUNTIVO*
20 76.92% 02 16.67% 06 100% 01 33.33% 03 100%
–
–
–
– 32 58.18%
01 3.85% 10 83.33% –
–
–
– –
–
03 100%
02
100% 16 29.10%
01 3.85% –
– –
–
–
– –
–
–
–
–
– 01 1.81%
–
– –
– –
– 01 33.33% –
–
–
–
–
– 01 1.81%
∅
04 15.38% –
– –
– 01 33.33% –
–
–
–
–
– 05 9.10%
TOTAL
26
INDICATIVO
/
INDICATIVO
SUBJUNTIVO SUBJUNTIVO
INFINITIVO
/
/
SUBJUNTIVO
12
06
03
03
03
02
55
* oração nuclear x oração subordinada
Como se observa, a conjunção mais freqüente (embora) tem 76.92% das ocorrências no esquema indicativo na nuclear-subjuntivo na hipotática, sendo que em apenas uma ocorrência não há subjuntivo na oração concessiva. Em contrapartida, se bem que tem 83.33% das ocorrências no esquema indicativo-indicativo. Todas as construções com mesmo que e com por mais que apresentam o esquema indicativo na nuclear-subjuntivo na hipotática, enquanto todas as construções com apesar(de) que apresentam o esquema indicativo-indicativo. Do cruzamento entre os tipos de conectivos encontrados e a posição das orações concessivas, resulta o seguinte quadro:
572
Quadro 5 Relação entre posição da oração concessiva e conectivo CONECTIVO
ANTEPOSTA
%
POSPOSTA
%
INTERCALADA
%
TOTAL
%
MESMO QUE
05
45.45%
–
–
01
20.00%
06
10,92%
–
–
03
7.70%
–
–
03
5,45%
03
27.28%
19
48.72%
04
80.00%
26
47,27%
APESAR QUE
–
–
02
5.12%
–
–
02
3,64%
APESAR DE QUE
–
–
03
7.70%
–
–
03
5,45%
SE BEM QUE
01
9.09 %
11
28.20%
–
–
12
21,82%
POR MAIS QUE
02
18.18%
01
2.56%
–
–
03
5,45%
TOTAL
11
55
100%
AINDA QUE
EMBORA
39
05
Como se observa, a conjunção embora ocorre preferentemente em orações concessivas pospostas (73.08%), e o mesmo ocorre com a conjunção se bem que (91.67%). Ocorreram sempre pospostas as orações com ainda que e apesar (de) que e nunca pospostas as orações com mesmo que. Quanto ao jogo da polaridade nas construções concessivas, no corpus de análise verificam-se três possibilidades, das quatro que poderiam ser esperadas: 1. Relação polar com negativa na oração nuclear: (05) (...) isso faz com que ... a pessoa ... embora ... queira fugir da re:gra / ... não consiga ... num é? (EF-RE-337: 106-108) (10) você estava conversando comigo no início sobre essa parte de preços ... eu posso dizer ... porque aqui em casa ... como nós temos empregada ... ela que faz a feira junto com a minha tia e normalmente eu não estou assim muito por dentro dos preços dos alimentos ... embora eu ouça minha tia às vezes falar que está tudo muito caro ... (DID-RJ-328: 53-58)
573
(02) eu só como queijos brancos ... eu evito comer os outros queijos ... embora goste muito ... eu só faço essas extravagâncias assim uma vez por semana ... (DID-RJ-328: 621-623) (evitar comer = não comer).
2. Relação polar com negativa na oração concessiva: (04) contei também o número de estudantes ... quarenta e um ... e:eu tenho quase certeza embora não tenhamos a lista (EF-RE-337: 12-17) (16) uma coisa que eu como também ... embora o pessoal aqui em casa não coma muito ... são os miúdos do boi ... (DID-RJ-328: 461-464) (03) nós temos as reuniões ... muito mais participação, porque, mesmo que alguns professores faltem porque tenham outros ... outros afazeres no ambulatório, mas sempre tem um bom número de reuniões (DID-SSA-231: 298-302) (faltar = não comparecer).
3.Oração nuclear e oração concessiva afirmativas: (20) Mesmo que seja só de nome a gente já ouviu falar nessa taxionomia (EF-POA-278: 52-53) (17) desistimos ... eu pelo menos desisti não se toca mais no assunto ... mas realmente então está encerrado, mas gostaríamos demais de mais filhos ... embora eu fique quase biruta ... ((risos)) porque é muito a gente vive de motorista o dia (D2-SP-360: 90-94) (01) eu gosto de comer couve-flor ... gosto mui / engraçado que eu gosto muito de chuchu embora todo mundo ache chuchu uma coisa assim sem graça ... aguada ... mas eu gosto ... (DID-RJ-328: 27-30) (29) o churrasco da Argentina dizem que se equipara ao ... ao do Rio Grande do Sul ... é realmente ... é parecido ... se bem que o do Rio ... o do Rio Grande do Sul são um pouco mais minguados ... né ... os churrasco da /de Buenos Aires ... mas era cada bife que você não aguentava comer ... (DID-RJ-328: 223-228)
No quadro 6 se indica como os dados do corpus se distribuem no jogo de polaridade expresso nas relações concessivas: 574
Quadro 6 Relação entre a posição da oração concessiva e o jogo de polaridade
ANTEPOSTA
POSPOSTA
INTERCALADA
TOTAL
ORAÇÃO NUCLEAR NEGATIVA
03
27.27%
05
12,82%
01
20%
09
16,36%
02
18.19%
09
23,08%
01
20%
12
21,82%
ORAÇÃO CONCESSIVA AFIRMATIVA
06
54.54%
25
64,10%
03
60%
34
61,82%
TOTAL
11
20%
39
70.90
05
9.10
55
100
ORAÇÃO CONCESSIVA AFIRMATIVA
ORAÇÃO NUCLEAR AFIRMATIVA ORAÇÃO CONCESSIVA NEGATIVA
ORAÇÃO NUCLEAR AFIRMATIVA
Se se conceber o pensamento concessivo como uma relação de incompatibilidade entre oração concessiva e oração nuclear, facilmente se pensa na existência de polaridade entre tais orações como uma das maneiras de incompatibilidade, aliás a mais extrema delas. Entretanto, a polaridade não é necessária, já que, no corpus analisado, os casos com ambas as orações em forma afirmativa correspondem a mais de 60% do total, como se vê no quadro acima. Ocorre que a “diferença” sobre a qual concessivas e adversativas se apóiam não diz respeito aos predicados (estados de coisas), mas às predicações (proposições), que incorporam inferências com as quais o falante e ouvinte estão comprometidos. No jogo ligado à polaridade expresso nos nossos enunciados, podem estabelecer-se três esquemas: Esquema 1: Relação polar:
ORAÇÃO CONCESSIVA AFIRMATIVA
(inferência afirmativa
+ ORAÇÃO NUCLEAR NEGATIVA frustração expressa na oração nuclear negativa)
(05a) Se quer fugir da regra, consegue. (conseqüência pressuposta) (05b) Embora queira fugir da regra, não consegue. (inferência frustrada)
575
Esquema 2: Relação polar:
ORAÇÃO CONCESSIVA NEGATIVA
(inferência negativa
+ ORAÇÃO NUCLEAR AFIRMATIVA frustração expressa na oração nuclear afirmativa)
(04a) Se não temos a lista, não tenho certeza do número de estudantes. (conseqüência pressuposta) (04b) Embora não tenhamos a lista, eu tenho quase certeza do número de estudantes. (inferência frustrada)
Esquema 3: Sem relação polar: ORAÇÃO CONCESSIVA AFIRMATIVA + ORAÇÃO NUCLEAR AFIRMATIVA (inferência afirmativa
frustração expressa na oração nuclear afirmativa)
(17a) Se eu fico quase biruta por causa dos filhos, não gostaríamos de ter mais filhos. (conseqüência pressuposta) (17b) Embora eu fique quase biruta por causa dos filhos, gostaríamos de ter mais filhos (inferência frustrada)
O exame dos esquemas concessivos em que não está envolvida relação de polaridade entre os dois segmentos mostrou a existência de outras relações, que podem genericamente ser designadas como “de desigualdade”, do mesmo tipo que ocorre nos contextos de mas (Neves, 1984). Nesses contextos, vai-se, num continuum, desde uma desigualdade pouco caracterizada até a anulação. A construção concessiva se enquadra preferencialmente num subtipo de casos em que q não elimina p mas se contrapõe a ele, com negação de inferência entre ambos. Enunciados com mas nessa relação são: “Você anda perto dos quarenta. Tenho vinte e cinco (...) Mas eu dou uma lição a você” (em que q nega a inferência de p); ou: “O gado seria todo baio. Mas o gado baio não é bom de leite.” (em que p nega a inferência de q) (Neves, 1984, p. 29). “Concessão” e “contraposição”, entretanto, não se confundem, nem simplesmente se opõem: a questão da contraposição se refere à diversidade que, realmente, o mas evidencia; a questão da concessão, por sua vez, se refere a uma admissão, (real ou retórica), que precede a expressão da diversidade (Neves, 1984, p. 23). 576
Essa contraposição contida nos enunciados concessivos, quando não se resolve por relação de polaridade (sim → não; não → sim), necessariamente envolve outro nível de desigualdade. Alguns casos são apontados nas ocorrências (20), (30), (22), (31), (28) e (29): (20) Mesmo que seja só de nome a gente já ouviu falar nessa taxionomia (EF-POA-278: 52-53) (30) mas a ba / as sobremesas que eles usam muito é ... são tortas ... né? e onde ... onde tem sobremesas ... assim ... doce de coco ... por exemplo ... doce de coco ... quindim ... que eles usam muito ... é na Bahia ... né cocadas ... isso ... eh ... eles ... se bem que é ... é a preços bem exorbitantes ... (DID-RJ-328: 279-284) (22) Eles querem sempre ... por mais que a gente dê, eles querem sempre mais coisas, né? (DID-SSA-231: 236-238) (31) vocês imaginem a quantidade do operariado do Japão, não é? mesmo quer dizer, por mais ... intensivo que seja o uso capital, a mão-de-obra ainda é a riqueza do Japão (EF-RJ-379: 232-234) (28) o testosterona ... ele inibe inibe ... exato ... é o seguinte ... é porque a verdade é que tanto no sexo feminino quanto no masculino há sempre uma produção significante embora pequena mas de hormônio do sexo oposto ... entendeu? (EF-SSA-49: 91-94) (29) o churrasco da Argentina dizem que se equipara ao ... ao do Rio Grande do Sul ... é realmente ... é parecido ... se bem que o do Rio ... o do Rio Grande do Sul são um pouco mais minguados ... né ... os churrasco da / de Buenos Aires ... mas era cada bife que você não agüentava comer ... (DID-RJ-328: 223-228)
Algumas dessas “diferenças” podem ser mostradas em esquemas muito genéricos:
577
Oração nuclear (20) a gente ouviu falar
Oração concessiva só de nome (restrição)
(30) sobremesas que eles usam muito a preços exorbitantes (restrição) (28) há uma produção significante
a produção é pequena (antonímia)
(29) é parecido
são mais minguados (antonímia)
Oração concessiva (22) a gente dá bastantes coisas
Oração nuclear eles querem mais (diferença de grau)
(31) é intensivo o uso do capital
a riqueza ainda é a mão-de-obra (diferença de grau no tempo)
As ‘’diferenças’’ podem não ser tão localizadas, já que não dizem respeito a simples conteúdos, mas, de qualquer modo, significam uma alteração no sentido da argumentação, como se vê em (17), (18) e (14). (17) desistimos ... eu pelo menos desisti não se toca mais no assunto ... mas realmente então está encerrado mas gostaríamos demais de mais filhos ... embora eu fique quase biruta ... (D2-SP-360: 90-94) (18) eles fazem um molho com pimenta muito gostoso ... se bem que é muito ... que é muito forte ... né ... a gente sente assim aquele gosto muito picante ... (DID-RJ-328: 184-186) (14) carne nós comemos muito no sul ... se bem que a viagem que eu fiz ao sul foi há muitos anos ... eu não me lembro mais assim muito o que nós comemos lá ... assim ... mas é mais a base de churrasco ... né? (DID-RJ-328: 217-220)
Os esquemas são: 578
(17) gostaríamos de mais filhos
→
filhos deixam biruta →
(18) o molho é gostoso
→
o molho é forte →
(14) comemos muita carne no sul →
faz tempo, não me lembro mais →
Pode-se concluir que tanto o critério da incompatibilidade, ligado à relação polar entre a oração nuclear e a subordinada, quanto o critério de similaridade entre perguntas polares e orações concessivas são produtivos para a definição e determinação da natureza da construção concessiva. Quanto à semelhança entre condicionais e concessivas, é interessante evocar Haiman (1974), que aponta, como evidência sintática dessa semelhança, a possibilidade de apagamento da conjunção subordinante, seguido pela inversão sujeito-verbo. No português esse recurso sintático também é eficiente para mostrar a similaridade dessas construções. Algumas construções condicionais, como (32) e (33), e algumas concessivas, como (20), (08) e (31), permitem, mediante certas alterações, essa possibilidade apontada por Haiman: Ø
Condicionais:
(32) a imagem que eu fazia era a a seguinte se o Japão fosse uma Birmânia, por exemplo que é um dos países atrasados, as economias industriais que ganharam a Segunda Guerra não teriam ajudado o Japão, quer dizer de outra maneira, se o Japão fosse a Birmânia né? (EF-RJ-379: 129-139) (32a) fosse o Japão uma Birmânia, as economias industriais que ganharam a Segunda Guerra não teriam ajudado o Japão. (33) e no fim eu paguei mesmo pra conseguir entrar no apartamento quase cem mil cruzeiros. Se eu não tivesse cem mil cruzeiros não entrava (D2-RJ-355: 131-132) (33a) Não tivesse eu cem mil cruzeiros não entrava.
Ø
Concessivas:
(20) Mesmo que seja só de nome a gente já ouviu falar nessa taxionomia (EF-POA-278: 52-53) (20a) Seja só de nome, a gente já ouviu falar nessa taxionomia. (08) todas as categorias, mesmo que tenham, que tenham subcategorias elas terão dentro delas próprias, níveis de gradação (EF-POA-278: 146-149)
579
(08a) tenham ou não subcategorias, todas as categorias terão, dentro delas próprias, níveis de gradação (31) por mais intensivo que seja o uso do capital, a mão-de-obra ainda é a riqueza do Japão (EF-RJ-379: 232-234). (31a) seja intensivo o quanto for o uso do capital, a mão-de-obra ainda é a riqueza do Japão
5. Subcategorização das construções concessivas As construções concessivas têm sido subclassificadas em factuais / reais, eventuais / potenciais e contrafactuais / irreais (Lopes, s/d; Mira Mateus et alii, 1983). Alguns autores, como Quirk et alii (1978) e Renzi e Salvi (1991), preferem chamar de concessivas somente àquelas construções correspondentes ao tipo factual, como (04) e (34), cabendo às concessivas que exprimem eventualidade, como (35) e (03), a denominação condicionais-concessivas: (04) contei também o número de estudantes ... quarenta e um ... e:eu tenho quase certeza embora não tenhamos a lista (EF-RE-337: 12-17) (34) L2: ... é eu tenho a impressão eu não posso dizer porque é difícil ... para a gente dizer porque de jeito nenhum ele falou “você vai fazer isso” ... nunca ... mas eu acho que ele falava tanto tanto tanto e eu o admirava embora minha meta fosse Itamarati eu sempre ... Doc: Diplomacia L2: pensei em fazer Diplomacia sempre sempre (D2-SP-360: 1516-1524) (35) Agora, (superp) o bom é sair antes das seis, porque mesmo que você não pegue o congestionamento urbano, não pega a Heitor Dias, mas, quando chega ali da ... de Água Comprida pra frente, o tráfego começa a ... a engrossar (D2-SSA-98: 30)
580
(03) nós temos as reuniões ... muito mais participação, porque, mesmo que alguns professores faltem porque tenham outros ... outros afazeres no ambulatório, mas sempre tem um bom número de reuniões (DID-SSA-231: 298-302)
Os estudiosos, em geral, tratam essa subcategorização das concessivas equacionando a questão em termos de conteúdos, o que, na verdade, retira as construções do seu efetivo funcionamento, contemplando apenas a avaliação dos estados de coisas envolvidos. Para Renzi e Salvi (1991) o que há em comum entre as concessivas factuais e as condicionais-concessivas é que em ambas se instaura uma relação de contraste entre o tipo de evento representado pela proposição subordinada e o representado pela proposição nuclear. A diferença entre elas reside no fato de que, enquanto nas concessivas factuais tanto p quanto q devem ser verdadeiras para que a asserção global seja também verdadeira (ou seja, a enunciação de uma factual implicita a verdade dos conteúdos tanto de p como de q), nas condicionais-concessivas o conteúdo proposicional da oração nuclear deve ser verdadeiro, mas o da subordinada pode ser verdadeiro ou falso. Em Quirk et alii (1978), por outro lado, se observa que nas condicionais-concessivas existe uma incerteza epistêmica sobre a eventual ocorrência do conteúdo proposicional de p. No corpus analisado, em um total de 55 ocorrências, encontram-se 48 (87,27%) com leitura factual / real e 7 (12,73%) com leitura eventual / potencial. As concessivas contrafactuais / irreais do tipo de “Mesmo que tivéssemos / tivéssemos tido a lista não saberíamos / teríamos sabido quantos eram os estudantes presentes” não ocorreram. O quadro 7 apresenta a relação entre os tipos de conectivos e a ordem das orações concessivas, segundo os dois subtipos encontrados:
581
Quadro 7 Relação entre conectivo e ordem das orações nas construções factuais e eventuais EMBORA
SE
MESMO
AINDA
POR
APESAR
APESAR
BEM
QUE
QUE
MAIS
DE
QUE
QUE
QUE
INTERCALADA
POSPOSTA
ANTEPOSTA
QUE
FACTUAL
EVENTUAL
FACTUAL
EVENTUAL
FACTUAL
EVENTUAL
TOTAL
T O TA L
03 11.54% 01 8.33% 02 33.33% –
–
01 33.33%
–
–
–
–
07 12.74%
–
–
01 33.33%
–
–
–
–
04
–
–
–
03
50%
–
19 73.08% 11 91.67% –
–
01 33.33% 01 33.33% 03
–
100%
37 67.27%
–
–
–
–
02 66.67% –
–
–
–
–
–
02
3.64%
04 15.38% –
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
04
7.27%
–
–
01 16.67% –
–
–
–
–
–
–
–
01
1.81%
26
–
100% 02
7.27%
–
– 12
06
03
03
03
02
55
Verifica-se que os conectivos embora, se bem que e apesar (de) que só aparecem em construções factuais, sendo que a posposição da oração concessiva ocorre em 73.08% das construções factuais com embora, em 91.67% das factuais com se bem que e em 100% das factuais com apesar (de) que. Desses três conectivos, somente embora introduz orações concessivas intercaladas nas construções factuais. Por outro lado, mesmo que e ainda que são mais comuns em construções eventuais. O conectivo mesmo que é mais freqüente em eventuais com a oração concessiva anteposta, enquanto ainda que é mais freqüente em eventuais com a oração concessiva posposta. Somente mesmo que introduz orações concessivas intercaladas nas construções eventuais. Nesse quadro ainda se observa que as orações concessivas em construções eventuais aparecem preferentemente antepostas, enquanto em factuais elas aparecem preferentemente pospostas, fato que deve ser examinado em relação com a questão da condução argumentativa, associada à distribuição da informação, conforme se discutiu, acima, no item 3. A relação modo-temporal entre as orações das construções concessivas factuais está no quadro 8:
582
Quadro 8 Relação modo-temporal nas construções concessivas factuais
oração nuclear
oração concessiva
número
porcentagem
presente do indicativo
PRESENTE DO SUBJUNTIVO
17
35,42%
PRESENTE DO INDICATIVO
11
22,92%
PRET. IMPERFEITO DO SUBJUNTIVO
01
2,08%
29
60.42%
PRESENTE DO SUBJUNTIVO
03
6.25%
PRET. IMPERFEITO DO SUBJUNTIVO
02
4,17%
PRET. PERFEITO DO IND.
01
2,08%
06
12.50%
PRET. IMPERFEITO DO SUBJUNTIVO
02
4,17%
PRET. IMPERFEITO DO IND.
02
4,17%
PRESENTE DO INDICATIVO
01
2,08%
05
10.42%
01
2,08%
01
2.08%
01
2,08%
01
2.08%
01
2.08%
01
2.08%
05
10.42%
05
10.42%
48
100%
TOTAL
pret. perfeito do ind.
TOTAL
pret. imperfeito do ind.
TOTAL
futuro do pretérito do ind.
PRESENTE DO SUBJUNTIVO TOTAL
futuro do presente do ind.
PRESENTE DO INDICATIVO TOTAL
presente do subjuntivo
PRESENTE DO SUBJUNTIVO TOTAL
–
VERBO ELÍPTICO TOTAL
TOTAL
Verifica-se que, dentre as orações concessivas das construções factuais, 56.25 % trazem o verbo no modo subjuntivo e 33.33.% têm o verbo no indicativo, havendo, ainda, cerca de 10 % com a oração concessiva truncada (sem o verbo). Isso significa que a relação de modo que ocorre entre as ora583
ções, nas construções concessivas factuais, acompanha de perto a que ocorre nas construções concessivas em geral (veja-se o quadro 3). Quanto ao tempo, podem ser feitas as seguintes observações: 1) 60,42% das construções factuais têm ambas as orações no presente (do indicativo ou do subjuntivo), configurando um “real no presente” típico: (36) eu diria que ... é mais sério do que isso ... embora ... isso seja seríssimo ... (EF-RE-337: 417-420) (16) uma coisa que eu como também ... embora o pessoal aqui em casa não coma muito ... são os miúdos do boi ... (DID-RJ-328: 461-464) (02) eu só como queijos brancos ... eu evito comer os outros queijos ... embora goste muito ... eu só faço essas extravagâncias assim uma vez por semana ... (DID-RJ-328: 621-623) (05) (...) isso faz com que ... a pessoa ... embora queira fugir da re:gra / ... não consiga ... num é? (EF-RE-337: 106-108) (18) eles fazem um molho com pimenta muito gostoso ... se bem que é muito ... que é muito forte ... né ... a gente sente assim aquele gosto muito picante ... (DID-RJ-328: 184-186) (24) L1: é ... “fez uma negrice” que(r) dize(r) te(r) dize(r), isso é uma coisa da nossa linguagem, ela existe, embora temos uma Lei Afonso Arinos não sei mais quê, tá, tá, tá há uma série de ah ... de ... de ... de ... de restrições à discriminação (D2-POA-37: 439-443)
2) Uma outra configuração de factualidade é encontrada em construções com a oração concessiva no presente e a nuclear num futuro tido como certo, como em (37): (37) o rendimento vai ser bem menor, então o rendimento dele também será menor, apesar de que existe um teto mínimo que é subvencionado pela Direção Central, menor que aquilo, nenhum deles recebe (DID-POA-43: 126-129)
584
Nesse caso, embora se jogue com futuridade na nuclear, os fatos enunciados por ambas as orações são assegurados, respeitada a ressalva que a concessiva aporta. 3) O factual no presente pode apresentar-se, ainda, com a oração concessiva no presente e a oração nuclear em passado télico: (20) Mesmo que seja só de nome a gente já ouviu falar nessa taxionomia (EF-POA-278: 52-53) (11) então a gente já limitou bastan :: te nesse período extremamente vasto de seiscentos mil anos ... embora ... de vinte mil a doze mil ... (quer dizer) praticamente oito mil anos ... ainda seja ... um período MUIto maiOR do que ... o que conhecemos ... historicamente ... (EF-SP-405: 17-22)
Em (20) – que poderia apresentar também o verbo da concessiva em forma de imperfeito – temos na oração nuclear uma predicação do tipo mudança (+dinamismo –controle +telicidade), e em (11) a predicação é de realização (+dinamismo +controle + telicidade). 4) Também com uma oração concessiva que exprime, no presente, um desejo de ação futura (marcada pelo advérbio futuramente) e com a oração nuclear no passado, a concessão pode ser factual: (38) L1 foi melhor (pedir demissão do serviço) embora futuramente eu pretenda trabalhar eu quero continuar os estudos ... e :: e trabalhar fora mas por enquanto ainda não as crianças dependem muito de mim ... (D2-SP-360: 1212-1218)
5) O “real no passado”, por sua vez, pode ocorrer tanto em predicação télica, como (34) e (14), quanto em predicação não-télica, como (06) e (23): (34) embora minha meta fosse Itamarati eu sempre ... Doc: Diplomacia L2: pensei em fazer Diplomacia sempre sempre (D2-SP-360: 1516-1524)
585
(14) carne nós comemos muito no sul ... se bem que a viagem que eu fiz ao sul foi há muitos anos ... eu não lembro mais assim muito o que nós comemos lá ... assim ... mas é mais à base de churrasco ... né? (DID-RJ-328: 217-220) (06) L1: ... trabalhava al / no :: albergue noturno ... L2: ahn L1: eh como assistente social sabe? embora não :: ... L2: L1: não tivesse curso (D2-SP-360: 431-435) (23) L1 a relação salário profissional de nível superior ao aluguel seria a quarta parte, relação de dois mil cruzeiros, o sujeito pagava quinhentos cruzeiros, apesar que a unidade não era cruzeiro (D2-RJ-355: 18-20)
Se a telicidade se mostrou apropriada à expressão tanto do factual no presente, como em (20) e (11), quanto do factual no passado, como em (34) e (14), nas eventuais / potenciais todas as predicações são do tipo não-télico, ou seja, nenhuma delas representa um estado de coisas acabado. Do total de ocorrências, há 71% que combinam entre si os tipos predicativos estado e atividade. Quanto ao tempo / modo verbal das construções eventuais, todas as ocorrências apresentaram a oração concessiva no subjuntivo, e no presente, com variações dos tempos verbais na nuclear: presente do indicativo, como em (15), futuro do presente do indicativo, como em (08): (08) então, todas as subca(tegorias) todas as categorias, mesmo que tenham, que tenham subcategorias elas terão dentro delas próprias, níveis de gradação, então, vamos exemplificar. (EF-POA-278: 146-149) (15) é e eu normalmente faço o seguinte eu mando carta simples ... quando não telefono..quando eu tenho mais urgência telefono ... mesmo que seja pra Alemanha ou pra França eu telefono ... (D2-RE-151: 811-814)
586
6. Considerações finais 1. Em uma construção concessiva, cujo esquema básico é embora p, q, a relação lógico-semântica que se estabelece é a de frustração da implicação pressuposta, que pode ser uma implicação causal ou uma implicação condicional, como se observa na ocorrência abaixo: (06) L1: ... trabalhava al / no :: albergue noturno ... L2: ahn L1: eh como assistente social sabe? embora não :: ... L2: L1: não tivesse curso (D2-SP-360: 431-435)
Ø implicação causal pressuposta: (06a) Porque não tinha curso, não trabalhava como assistente social.
Ø implicação condicional pressuposta: (06b) Se não tinha curso, não trabalhava como assistente social.
Ø frustração das implicações causal e condicional pressupostas: (06c) embora não tivesse curso, trabalhava como assistente social.
Em uma construção concessiva, portanto, a causalidade pressuposta na oração concessiva (p) é negada na oração nuclear (q); e a condição pressuposta em (p), por sua vez, não é suficiente para evitar q, ou seja, é ineficaz para evitar o cumprimento de q. A frustração da implicação causal / condicional pressuposta está diretamente relacionada aos esquemas envolvidos no jogo da polaridade, vistos no item 4: Ø p negativo → pressuposição negativa → q positivo frustra a pressuposição negativa Ø p afirmativo → pressuposição afirmativa → q negativo frustra a pressuposição afirmativa 587
2. Se, por um lado, são noções de natureza lógico-semântica que relacionam as construções concessivas à causalidade e à condicionalidade, por outro lado, é a sua natureza essencialmente argumentativa que as aproxima das construções adversativas. Tanto as construções concessivas quanto as adversativas são essencialmente dialógicas (Danon-Boileau et alii, 1991), ou seja, envolvem a presença de dois locutores, e o jogo argumentativo entre falante e ouvinte envolve, em muitos casos, um misto concessivo-adversativo. É justamente essa natureza argumentativa e dialógica das construções concessivas que explica o fato de tais construções codificarem com maior freqüência a oposição entre pensamentos (domínio epistêmico de Sweetser ou nível proposicional de Dik) e entre atos de fala (domínio conversacional de Sweetser e nível da frase de Dik), e com baixa freqüência os eventos / fatos do mundo real (domínio do conteúdo de Sweetser ou nível da predicação de Dik). 3. Se a ambigüidade das conjunções nos domínios do conteúdo, epistêmico e dos atos de fala só se resolve no contexto pragmático (Sweetser, 1990), por outro lado, entretanto, nem sempre o contexto consegue dar conta dessa ambigüidade, como se observa no enunciado abaixo, em que uma leitura tanto de domínio epistêmico como de ato de fala é possível: (23) L1: a relação salário profissional de nível superior ao aluguel seria a quarta parte, relação de dois mil cruzeiros, o sujeito pagava quinhentos cruzeiros, apesar que a unidade não era cruzeiro (D2-RJ-355: 18-20)
Na leitura epistêmica, a relação concessiva é entre dois pensamentos: o falante introduz um primeiro raciocínio, expresso na oração nuclear, e, na oração concessiva, o segundo raciocínio, um afterthought, completa o anterior. Já na possível leitura do domínio dos atos de fala, o falante, pelo ato de fala concessivo, reitera o anterior, expresso na oração nuclear. Outras construções são ambíguas entre as leituras de domínio epistêmico e de domínio do conteúdo, como se observa em (39): (39) (...) Vai te (r) um ... um outro jantar mas nós não / vamo (s) porque meu marido já se incomodou ou outra vez porque é jantar esse tipo americano, né? se bem que lá é muito organizado (DID-POA-45: 29-33)
588
Na leitura epistêmica, a oração concessiva, introduzida por se bem que, corresponde a um julgamento do falante acerca do local onde o jantar ocorrerá. Pode-se pensar em um modalizador epistêmico implícito: (39a) é jantar esse tipo americano, se bem que (eu sei que) lá é muito organizado.
Na leitura de domínio de conteúdo, o falante está colocando em relação dois fatos do mundo real: “ocorre no mundo real / é verdade que o jantar é tipo americano assim como também ocorre / não é menos verdade que lá é muito organizado”. É possível, ainda, que haja ambigüidade entre o domínio dos atos de fala e de conteúdo: (40) olha ... eu ... não ... não ... não tenho ... não tenho realmente porque trabalhando em escolas de segundo grau ... sabe ... eles não fornecem a merenda escolar ... se bem que este ano nós conseguimos lá pra escola uma merenda ... (DID-RJ-328: 487-496)
Na leitura do domínio dos atos de fala, o falante coloca em oposição dois atos ilocutórios declarativos. No domínio de conteúdo, “eles não fornecem a merenda escolar” e “nós conseguimos lá pra escola uma merenda” são dois fatos que ocorrem no mundo real. 4. A posição da oração concessiva contribui para a organização da informação: Ø as orações antepostas, em geral, funcionam como tópicos das construções em que ocorrem; Ø as orações pospostas, normalmente, atuam como afterthought ou “adendo”; Ø as orações intercaladas contribuem para a topicalização de elementos da oração nuclear. 5. A subcategorização das construções concessivas em factuais, eventuais e contrafactuais está relacionada ao tipo de conectivo utilizado. Como se observa no quadro 7 do item 5, os conectivos embora, se bem que e apesar (de) que são votados às construções factuais: não houve nenhum caso no qual tais conectivos expressassem relações eventuais. Por outro lado, mesmo que, 589
ainda que e por mais que ocorrem em construções factuais e eventuais. Entretanto, mesmo que e ainda que ocorrem com maior freqüência nas eventuais. Se se concebem as construções concessivas eventuais como casos de condicionais-concessivas, pode-se entender que os conectivos dessas construções, ao lado do condicional-concessivo prototípico mesmo se, freqüentemente apresentam um duplo papel semântico: expressar uma condição hipotética, isto é, uma possível condição (valor condicional eventual), e ao mesmo tempo negar a relevância dessa eventual condição para o cumprimento do estado de coisas da oração nuclear (valor concessivo). O tipo de conectivo determina o modo verbal empregado nas orações concessivas (quadro 4): embora, ainda que, mesmo que, por mais que favorecem o modo subjuntivo; se bem que, apesar (de) que, o modo indicativo.
NOTA 1
O estudo das construções causais está em outro capítulo deste livro.
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591
PARTE III GRUPO SINTAXE II
ELEMENTOS NULOS PÓS-VERBAIS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO ORAL CONTEMPORÂNEO
Sonia Maria L. Cyrino (UEL)
Introdução O objetivo deste trabalho é aprofundar a pesquisa sobre a Gramática do Português Falado, abordando a ocorrência de elementos nulos pós-verbais. Dillinger et al. (1996), estudando os padrões de complementação no Português Falado, já apontam para a ocorrência do objeto nulo, e também para o não-preenchimento do objeto indireto. A conclusão daquele trabalho propõe que haveria um “fundo” sintático para a frase do português, sendo esse S-V-O. Naquele trabalho, o complemento nulo foi analisado como sendo homogêneo. Este trabalho continua a análise, focalizando o não-preenchimento pós-verbal, e mostrando que o complemento nulo não é homogêneo. Para tanto, classifico as ocorrências do complemento nulo em elipse de VP, objeto direto nulo e objeto indireto nulo. Somente após uma análise teórica tal classificação é possível. Assim, este trabalho está organizado da seguinte forma: primeiramente, apresento a justificativa para a “elipse de VP”, e sua ocorrência no PB oral, pela análise do corpus compartilhado do NURC. Em seguida, passo a descrever a proposta teórica para “objetos diretos nulos” e “objetos indiretos nulos” para, depois, mostrar sua ocorrência no PB nos dados do NURC. Utilizei os dados já codificados em Dillinger et al. (1996), acrescentando alguns grupos de fatores e retirando outros. Além disso, os resultados aqui apresentados não se restringem a dados dos inquéritos do Rio de Janeiro e de São Paulo, como é o caso de Dillinger et al., por constituírem, depois de minha
seleção, uma amostra muito pequena. Analisei também os dados dos inquéritos de Salvador, Porto Alegre e Recife que integram o corpus compartilhado. Uma outra diferença é que meu estudo não se restringiu somente a sentenças principais; neste trabalho, analiso os complementos nulos em todo o tipo de oração.
1. Elementos nulos pós-verbais Como já observado em vários estudos, o português brasileiro é uma língua que apresenta elementos fonologicamente nulos (representados aqui como “___”) na posição pós-verbal, como podemos ver em (1): (1)
a. João viu a Maria e Pedro também viu ___. b. João comprou o casaco mas não usou ___. c. Maria deu o casaco para o mendigo e João deu o brinquedo ___.
Contudo, a ocorrência de elementos nulos pode ser vista como nãohomogênea. Dentro da perspectiva teórica da gramática gerativa, não podemos dizer que em (1) há o mesmo tipo de complemento nulo. Dizemos que em (1a) há elipse (mais precisamente, elipse de VP, ver abaixo), em (1b) há um objeto direto nulo, e em (1c) há um objeto indireto nulo. Podemos ver que em (1a) temos o mesmo verbo ocorrendo nas duas orações que formam a sentença. Em (1b), no entanto, os verbos são diferentes e o objeto direto do segundo verbo está ausente. Em (1c), o objeto indireto do verbo está fonologicamente nulo. Embora a distinção pareça difícil de ser detectada, procuro mostrar neste trabalho que é possível usar esses e outros critérios para estabelecê-la (ver também nota 2). Abaixo, passo a analisar cada fenômeno apontado acima, mostrando sua justificativa teórica para, em seguida, mostrar sua ocorrência no PB oral contemporâneo.
2. A elipse de VP Matos (1992) estuda amplamente o fenômeno “elipse de VP” 1 em PE, dentro da teoria gerativa, no modelo de regência e ligação. A autora assume 596
elipse de VP para o português, propondo que o verbo (V) seria alçado para uma categoria flexional (INFL) e, depois disso, o que restasse no sintagma verbal (VP), ou seja, o vestígio do verbo que foi alçado e seu complemento (se houver) seriam elididos. Temos, assim, “elipse de VP” – ver também Kato (1991a,b). O estudo de Matos não apresenta dados quantitativos, mas a autora descreve a elipse de VP no PE, detalhando as condições de sua ocorrência. Nesse estudo, a autora observa que a elipse de VP, entre outros aspectos, requer: 1) a presença de advérbios de denotação predicativa, como “também”, “também não”, “sim”, “não”, que funcionam como “operadores de denotação predicativa idêntica” (Matos, 1992:108).
A escolha do advérbio decorre da polaridade da frase não elíptica. Em frases coordenadas (elípticas ou não) em que haja a repetição de um VP, é necessária a presença desses advérbios para explicitar a relação de denotação idêntica. A função desses advérbios é “permitir o confronto entre duas predicações distintas, mas de conteúdo parcialmente idêntico” (p. 108). Vejamos o exemplo (3) ((23a) em Matos, 1992:108): (3)
* A Maria tinha atribuído as culpas do desastre ao motorista e/mas a Teresa tinha (atribuído) [ _ ]
Podemos ver que (3) é agramatical pois não apresenta nenhum dos advérbios de “denotação predicativa”. Esta sentença fica gramatical assim que um desses advérbios, sublinhados abaixo em (4), ocorre: (4)
a. A Maria tinha atribuído as culpas do desastre ao motorista e a Teresa também tinha (atribuído) [ _ ] b.A Maria tinha atribuído as culpas do desastre ao motorista, e/mas a Teresa não tinha (atribuído) [ _ ]
A elipse de VP pode ocorrer em orações subordinadas como em (5), e respostas curtas como em (6), ((94) e (98) em Matos, 1992:132-133). Mas a presença dos advérbios nem sempre é possível nesses casos, conforme mostra (7), ((112b) em Matos, 1992:138-139): 597
(5)
O João não come chocolate depois de lavar os dentes, mas tem [um amigo ] que come [VP [ ___ ] ]
(6)
A - A Maria tem visitado os amigos ultimamente? B - a. Não, não tem [VP ___ ] b. Sim, tem [VP ___ ]
(7)
*O fato de a Maria dizer que alguém tirou os livros da estante leva-me [a querer [saber[ quem também tirou [VP ___ ]]]
Matos não explica a impossibilidade de (7), mas afirma que a presença desses advérbios somente é possível em frases com conteúdo proposicional distinto, ainda que tenham conteúdo predicativo idêntico, conforme mostra (8a) e (8b), ((119) e (120) em Matos, 1992:142): (8)
a. O João tinha lido esses livros ao filho, e a Maria também tinha ___ * O João tinha lido esses livros ao filho e a Maria tinha ___ b. O João tem passeado muito ultimamente, e há um amigo nosso que também tem ___ * O João tem passeado muito ultimamente, e há um amigo nosso que tem ___
A função desses advérbios, como vimos acima, é explicitar a relação de denotação idêntica. 2) Em português, o VP nulo deve ser licenciado por um V (ou seqüência de Vs que tenha um V principal), ou por um auxiliar, devendo haver um paralelismo estrutural entre a seqüência antecedente e a elíptica. Além disso, existe uma condição de identidade sobre o V principal (condição essa não existente no chinês, ver Otani & Whitman, 1991), isto é, os verbos licenciadores da seqüência devem ser idênticos (exemplo (132a) em Matos, p. 148): (9)
598
O João compreendeu a situação antes que todos os outros tivessem compreendido [ ___ ]
Em elipse de VP, assim, os licenciadores do VP nulo têm de veicular o conteúdo do núcleo predicativo do VP. Além disso, deve haver identidade entre o conteúdo do VP em que há elipse, e o conteúdo de seu antecedente. Deve haver, em outras palavras, um mesmo vocabulário terminal (exemplos (133a) em Matos, 1992:148): (10) *O João colocou os livros na estante e a Maria não pôs ___
O português brasileiro (PB) possui elipse de VP? Assumo que sim. Porém, visto a gramaticalidade de (7) acima em PB, podemos notar que há diferenças entre o PE e nossa língua quanto à elipse de VP. Mary Kato (comunicação pessoal) sugere, por exemplo, que a diferença possa estar na posição para a qual o V se move: em PE para uma posição mais alta, talvez Sigma (ver Martins, 1994), e em PB, o V se moveria para INFL. Contudo, parece que os requerimentos para elipse de VP (i.e., presença de advérbios de denotação predicativa, identidade verbal) existem também para o PB. Os asteriscos em (3) e (8) acima também são válidos para nossa língua. Da mesma forma, (10) não é possível em PB como elipse de VP (em que todo o VP está elidido). (10) pode, porém, ocorrer com o objeto nulo – o que está elíptico é somente o objeto direto do verbo2: (11) O João colocou os livros na estante e a Maria não pôs ___ na estante (mas no armário).
É possível assumir que PB também apresenta elipse de VP, e que as condições para tal ocorrência, i.e., ocorrência de advérbios de denotação predicativa, e identidade entre os verbos licenciadores, são obedecidas da mesma forma que em PE. Além disso, os dados diacrônicos confirmaram essa posição (ver Cyrino, 1994). O estudo mais detalhado dessa mudança, e a proposta teórica para elipse de VP em PB encontra-se em andamento (Cyrino, em andamento). Neste trabalho, dados do NURC já codificados (complementos) foram analisados para detectar casos de elipse de VP. Seguindo os critérios acima, foram usados, além dos grupos de fatores em Dillinger et al. (1996), os seguin599
tes: a) a presença de identidade verbal e, b) a presença de advérbios de denotação predicativa. Contudo, somente cinco exemplos foram detectados com “presença de identidade verbal”; um deles não se enquadraria na elipse de VP, pois trata-se de uma repetição do que foi dito (12). O outro, (13), é uma resposta curta, que deve ser analisada como elipse de VP (Matos, 1992): (12) ... agora na mai/oria das vezes eles dizem que foi eles; ... dizem; ... (D2/SP) (13) Ah, a tal carne seca, né, que eles fazem, que você está falando, aquela carne seca ao sol? Não, nós não tivemos. Isso nós não tivemos a oportunidade de comer não. (DID/RJ)
Dos casos reais de elipse de VP, dois envolvem verbos de ligação (14), e o outro envolve o verbo fazer (15): (14) a. Mas não, vice-presidente é o outro, ele foi ___ no ano passado. (DID/SAL) b. Dizem que está muito abandonado aquele troço por lá... Bom, mas está ___ por isso, R., porque não tem vias de acesso. (D2/SAL) (15) aprendeu a fazer o xixi dela no sanitário... que ela não fazia ... (DID/SAL)
Quanto à presença de advérbios de denotação predicativa, excetuandose o “não” do exemplo (15) acima, quatro exemplos foram encontrados, dois casos de elipse de VP (cf. (16)). (16) a. ... meu avô também provou .... (D2/PA) b. ... eu também aprendi, mas no Barroso ainda ... (DID/PA)
600
Os únicos outros casos (cf. (17)) não se encaixariam nessa categoria. Temos um caso de “topicalização” (17a), e uma oração relativa (17b): (17) a. As comidas de Fortaleza nós comemos também muito bem (DID/RJ) b. e depois vou para Belo Horizonte, que é uma cidade que eu também não gosto; não gosto .... (D2/SAL)
Mesmo assim, nos dados já codificados de onde o exemplo (16a) foi tirado, não há a sentença anterior (provavelmente, “todo mundo provou o ketchup”), para que a elipse de VP fosse bem identificada. A presença dessa sentença anterior, no entanto, não seria necessária para se propor elipse de VP (ver Chao, 1987 e Fiengo & May, 1994). Além desses exemplos, não foram encontrados mais dados que pudessem levar a uma análise da ocorrência da elipse de VP no PB. Sem estarem computadas as perguntas dos entrevistadores, poucas sentenças eram do tipo que pudessem apresentar, ou evidenciar elipse de VP. Assim, há necessidade de se estender a pesquisa aos dados completos, inclusive para poder ter, no caso de diálogos, também a pergunta do documentador, para melhor caracterizar a elipse de VP.
3. Objetos diretos e indiretos nulos 3.1 O objeto direto nulo no PB Dentre os elementos nulos pós-verbais no PB, o mais estudado tem sido, sem dúvida, o chamado “objeto nulo” do português brasileiro, um elemento fórico semelhante a um pronome (nulo), pois sempre tem um antecedente seja na mesma sentença, seja no discurso anterior. Na verdade, diversas análises propõem que em PB esse elemento nulo seja, de fato, pronominal, diferente do objeto nulo do português europeu, o qual seria um elemento nulo do tipo “variável” (c.f. Raposo, 1986, para o PE; e Galves, 1989a,b; Farrell, 1987, 1990; Maia, 1990; Kato, 1991a, b, para o PB). Porém, o problema apresentado pelas formulações do objeto nulo do PB como um elemento pronominal nulo, ou seja, pro, é a determinação das 601
condições de licenciamento/identificação dessa categoria vazia. Observa-se que não há consenso entre as propostas para o objeto nulo como sendo o elemento pro para o PB, pois os diversos autores citados acima propõem diferentes formas para esse licenciamento e identificação. Assim, Kato (1991a) mostra que não se pode caracterizar a proposta do objeto nulo como sendo somente um tipo de elemento nulo. Em seu artigo, Kato chama a atenção para o fato de que dependendo da estrutura da sentença, ou do contexto, o objeto nulo deve ser analisado como sendo o resultado de diferentes fenômenos, que incluem, além de um pro licenciado e identificado por um clítico nulo, elipse de VP e o “exopro” (isto é, o objeto nulo dêitico). Seguindo essa intuição, Cyrino (1994) mostra que o fenômeno “objeto nulo” tem uma natureza não-homogênea, não só no PB, mas também em outras línguas. Em outras palavras, não podemos falar de uma única categoria para o fenômeno denominado “objeto nulo”: o que ocorre são diversos tipos de estruturas, todas resultando numa posição de objeto que é (fonologicamente) nula. Além disso, diversos estudos variacionistas descrevem sincronicamente um certo tipo de “objeto nulo” do PB. Nesses estudos (cf. Omena, 1978; Pereira, 1981; Tarallo, 1983; Duarte, 1986; Corrêa, 1992), observa-se a ocorrência de um elemento fonologicamente nulo na posição de objeto, principalmente quando seu antecedente é [-animado]. Esse aspecto é um fator importante que não tinha sido levado em conta em análises teóricas anteriores sobre o objeto nulo. De fato, Omena (1978) mostra que o antecedente do objeto nulo em PB é, na maioria das ocorrências, um ser inanimado, exerce a função de complemento, e é, na maioria das vezes, não-específico (indefinidos, coletivos, abstratos). Um outro trabalho (Duarte, 1986) também mostra que, dentre os “condicionamentos sintáticos” para o objeto nulo, se o antecedente é “sentencial” há um maior favorecimento para a categoria vazia: “com o objeto sentencial, o apagamento é quase absolutamente categórico” (Duarte, 1986:24). Além disso, observando o traço semântico do antecedente, Duarte mostra que o fator mais importante é o fato de ser [- animado]. Seus dados revelam que há uma “alta incidência de preenchimento do objeto quando seu antecedente apresenta o traço [+animado] e a forte tendência ao uso da categoria vazia quando o objeto se refere a um antecedente [-animado]” (p. 26). Duarte compara a ocorrência do objeto nulo no PB quando seu antecedente é sentencial (considerado também como [-animado]), ao que ocorre em 602
outras línguas, como o espanhol, italiano, francês e PE, através de elicitações a falantes nativos dessas línguas. A autora pede que falantes expressem em sua língua nativa o conteúdo de uma sentença como (18) ((6) em Duarte): (18) Eu fui ganhar a chave de casa com 19 anos. Eu conto ___ pra todo mundo.
Em todas as línguas acima, os falantes preenchem a posição de objeto com o clítico neutro “o”. Tendo em vista essas observações, Cyrino (1994), baseando-se no trabalho de Fiengo & May (1994), propõe que o PB pode apresentar objeto nulo como resultado de um fenômeno de reconstrução de sintagma nominal (no caso, DP) no nível de representação Forma Lógica (FL). A pergunta, então, seria: o objeto nulo do PB é “elipse” como elipse de VP? Kato (1991a,b) afirma que “elipse de VP” estaria envolvida em certos casos de objeto nulo. Mas o objeto nulo seria o mesmo que “elipse de VP” em PB? Como vimos acima, segundo Matos (1992), em PE, para que elipse de VP seja possível, é preciso que haja identidade entre os verbos nas estruturas envolvidas, isto é, entre o verbo antecedente e o verbo licenciador da seqüência inaudível. Assim, por exemplo (19), seria gramatical em PE, enquanto (20) seria agramatical: (19) João descascou a banana, mas Pedro não descascou ___ OK em PE OK em PB (20) João descascou a banana, mas Pedro não comeu ___ * em PE OK em PB
A diferença entre (19) e (20) é que os Vs envolvidos são idênticos em (19), mas não em (20). Em PB, contudo, (20) é perfeitamente gramatical, assim como (19). Se assumimos que PB possui elipse de VP, do tipo em (19), o que ocorre em (20) 603
é um OBJETO NULO. Assim, a diferença entre elipse de VP e objeto nulo em PB é que o primeiro tipo de fenômeno impõe identidade verbal, condição essa não necessária para a ocorrência do segundo, assim como o proposto em Matos (1992). Segundo a análise desenvolvida em Cyrino(1994), o objeto nulo do PB em sentenças como (21a,b) é resultado de reconstrução em FL e elipse em Forma Fonética (FF): (21) a. João comprou o casaco, mas não usou ___ b. Maria comprou o casaco sem experimentar ___ !
Nessa análise, o objeto nulo do PB é visto como resultado de reconstrução quando seu antecedente é [-animado]. Essa análise leva em conta que, dependendo de certos traços do antecedente, o objeto nulo do PB será possível ou não. Assim, o objeto nulo com antecedente [+animado, +específico/referencial] em PB somente existiria dentro de uma estrutura de reconstrução, com elipse de VP. No entanto, quando o antecedente é [-específico/referencial], podemos ter no PB um objeto nulo cujo antecedente é [+animado]. Em (22a), temos um exemplo extraído de Duarte (1986) ((e) corresponde ao objeto nulo nesses exemplos, segundo a autora), e em (22b), a representação da reconstrução, o objeto nulo estando em itálico: (22) a. A FEBEM é um dos elos dessa corrente que cria o menor infrator; não é ela o único responsável, o único elo que cria (e), e como tal ela não consegue recuperar (e).(p.13) b. A FEBEM é um dos elos dessa corrente que cria [ o menor infrator]; não é ela o único responsável, o único elo que cria [o menor infrator], e como tal ela não consegue recuperar [o menor infrator].
Cyrino (1994), porém, apresenta uma análise baseada em textos escritos e resultados de outros estudos que não levam em conta a diferenciação existente entre os diversos tipos de elementos nulos pós-verbais. Neste trabalho, o objeto direto nulo no corpus compartilhado do NURC é analisado, para verificar se os resultados provenientes de textos escritos (peças teatrais em Cyrino, 1994) podem ser comparáveis a resultados de dados de um corpus oral. Parto da proposta que o objeto nulo do PB é reconstrução de sintagma nominal em FL e elipse em FF, como explicitado acima. 604
3.2 O problema do objeto indireto nulo Neste trabalho, foram observadas também as ocorrências de objeto indireto nulo e de dois complementos nulos. Dillinger et al. (1996) observam que o “fundo” sintático do Português falado seria S V C0, salientando a alta ocorrência do objeto indireto nulo. Os autores também sugerem que os objetos indiretos (ou C1) que foram codificados como argumentos, poderiam, na verdade, ser reanalisados como adjunto, seguindo Perini (1989) e Dillinger (1991), que “salientam a dificuldade de se distinguir (por meios estruturais) entre objeto indireto (SP complemento) e adjuntos adverbias preposicionados, levantando a hipótese dessa distinção tradicional ser espúria ou de natureza nãosintática” (Dillinger et al. 1996: 317). Além disso, Dillinger et al. observam que com verbos de dois complementos, geralmente um só complemento aparece lexicalizado, e dos dois complementos possíveis, é o objeto direto que é preferencialmente lexicalizado. “Essa constatação reforça a análise feita acima definindo a estrutura S V C0 como o fundo preferencial. O pressuposto de “exigência” lexical, junto com o princípio de Projeção (Chomsky, 1981), levaria à previsão de maior incidência de realização do segundo complemento (C1), o que no presente contexto tende novamente a questionar o estatuto argumental de C1” (p. 318). O estudo de Dillinger et al. também levantou a possibilidade do tipo de transitividade do verbo de dois complementos poder estar relacionado com a realização lexical. O resultado foi o mesmo: a tendência é do C1 ser fonologicamente nulo e C0 ser realizado fonicamente. C1 foi somente realizado quando havia necessidade de “introduzir informações novas por ele”, da mesma forma que o C0 foi apagado “por redundância no contexto discursivo” (p. 318). Porém, a existência de um co-referente no discurso favoreceu mais o apagamento de C1 do que de C0. A ocorrência do objeto indireto nulo não foi ainda muito estudada em PB. Na realidade, o objeto indireto pode ser fonologicamente nulo em línguas até mesmo como o inglês, dependendo do verbo3. Segundo Larson (1988) (ver também nota 3), o objeto indireto é interno a VP. Assim, em PB, para um sintagma verbal com dois complementos como (23), teríamos uma estrutura como (24): (23) dar uma flor para minha professora
605
(24)
VP /
\
Spec V’
V’ /
\
V
VP
|
/
e
NP |
\ V’ /
uma flor V | dar
\ NP | (para) minha professora
Recorde que, em PB, o objeto direto nulo, segundo minha proposta, é um caso de reconstrução em FL e elipse em FF (um outro exemplo de reconstrução em FL e elipse em FF seria o caso da elipse de VP). Será que poderíamos considerar o objeto indireto nulo também como um caso de reconstrução em FL e elipse em FF? Gostaria de propor uma resposta afirmativa. Os autores que estudaram a elipse de VP sempre propuseram que deve haver um “licenciador” para a seqüência inaudível (Zagona, 1982; Lobeck, 1987; Chao, 1987; Matos, 1992; Fiengo & May, 1994). Em inglês, por exemplo, esse licenciador seria o INFL: (25) John saw his mother but Peter didn’t.
Em português, seria, a grosso modo (c.f. Matos, 1992, Cyrino, 1994 e Cyrino, em andamento), o V, que teria sido alçado a INFL: (26) João viu sua mãe mas Pedro não viu.
O objeto nulo do PB (elipse de sintagma nominal) seria licenciado da mesma maneira que a elipse de VP, ou seja, teria também o V (alçado a INFL) como seu licenciador. O inglês não apresentaria o objeto nulo pelo fato de que 606
o V, por não ser alçado a INFL, não serve como licenciador de elipse nessa língua (ver também Lobeck, 1995)5. Em PB, portanto, o V, alçado a INFL, “serve” como licenciador de elipse. No caso do objeto indireto nulo em sentenças como (27), em que a estrutura seria a proposta em Larson, ou seja, como em (24) acima, o V (em INFL) licenciaria a elipse (e reconstrução em FL): (27) Você deu uma flor para sua professora? Não, dei uma maçã.
Em alguns casos, por exemplo, verbos que correspondem aos verbos que admitem movimento dativo (“dative shift”) em inglês (cf. nota 3), teríamos adjuntos, isto é, uma outra estrutura, conforme sugerido por Dillinger et al. (1996): (28) Você recebeu uma carta de seu amigo? Não, recebi um cartão.
A diferenciação desses verbos seria através da comparação com o inglês (cf. nota 3), em que a possibilidade do objeto indireto nulo nesses casos indica que não pode estar interno a V (se adotarmos a estrutura em (24)), já que o V não pode licenciar o objeto indireto nulo nessa língua, por não ser alçado a INFL. Maiores estudos, portanto, seriam necessários para se poder caracterizar essa classe verbal. A possibilidade de reconstrução de DP (e elipse em FF) , no entanto, não depende apenas de um “licenciador”. Em Cyrino (1994), a ocorrência de objetos diretos nulos está ligada também ao traço semântico do antecedente. Como vimos, minha proposta naquele trabalho é que somente objetos que tenham seu antecedente com traços [-específico] poderiam ser resultado de elipse em FF e reconstrução em FL. Em PB, houve uma mudança diacrônica que estendeu para o traço [-animado] a possibilidade de reconstrução do antecedente em FL e elipse em FF. Assim, neste estudo, deveremos verificar a ocorrência dos traços do antecedente na ocorrência do objeto indireto nulo, para confirma a análise de reconstrução. Abaixo segue uma descrição geral das ocorrências de objetos diretos e indiretos nulos detectadas, e, em seguida, uma discussão desses resultados. 607
3.3 Objetos diretos e indiretos nulos: descrição dos resultados Para a análise desses elementos nulos pós-verbais, usei os dados utilizados em Dillinger et al., isto é, a região de São Paulo e Rio de Janeiro. Porém, como mencionado acima, também utilizei outros dados, provenientes do corpus compartilhado das regiões: Porto Alegre, Salvador e Recife. Alguns grupos de fatores foram criados para que o objetivo desta pesquisa fosse alcançado. Outros grupos foram aproveitados dos dados já codificados, e utilizados quando da ampliação do corpus (Porto Alegre, Salvador, Recife). Se tanto o objeto direto como o objeto indireto nulos podem ser resultado de reconstrução em FL, e se, segundo minha proposta em Cyrino (1994), a possibilidade de reconstrução de DP em FL está ligada ao traço semântico [especificidade/referencialidade], é imprescindível verificar, entre outras ocorrências, a incidência de objetos nulos trazendo esse traço. Essa, portanto, foi uma das modificações introduzidas nos grupos de fatores iniciais (Dillinger et al., 1996). Abaixo seguem os grupos de fatores usados para quantificar as ocorrências de elementos nulos pós-verbais: 1. antecedentes do objeto direto nulo [+específico, +animado] Ex.:... o meu problema agora é onde botar para ser alfabetiza da... (DID/SP) [+específico, -animado] Ex.: Eu achei ruim demais... (DID/RJ) [-específico, +animado] Ex.: Quer dizer, o ideológico influencia (EF/RJ) [- específico, -animado] Ex.: Lá vende assim por um preço baratíssimo (DID/SP) 2. Antecedente do objeto indireto nulo [+específico, +animado] Ex.:..aprender a fazer coisas que em casa a mãe não tem condi ções de ensinar (DID/SAL) [+específico, -animado] Ex.: ai eu gostei muito... (DID/RJ) 608
[-específico, +animado] Ex.:Eles aí indicaram: ah, vai na fulana que a fulana serve muito bem o acarajé... (DID/RJ) [-específico, -animado] Ex.: As comidas baianas eu gostei muito, sabe,... (DID/RJ) 3. tipo de verbo (como em Dillinger et al.) transitivo direto (comprar) transitivo indireto (gostar) bitransitivo verbos da classe de IR (Compl. circunstancial) verbos da classe de POR (dois compl. – um é circunstancial) verbo leve (ou ligação) verbo pronominal (lembrar-me) 4. estatuto do complemento vazio (como em Dillinger et al.*) lexicalizado (João come muito) pronome vazio (co-referente no discurso) vazio de tópico** predicativo * Porém, excluí dos dados certos complementos codificados como “vazio” em Dillinger et al., por entender que não entrariam em minha codificação: complemento vazio lexicalizado no clítico (João se levantou) advérbio elidido vestígio de QU vazio de clítico identificador vestígio de extraposição vazio de clítico + co-referente no discurso ** para verificar os traços semânticos do antecedente 609
5. Papel temático do complemento vazio agente paciente (afetado) tema (não afetado) experienciador fonte meta/beneficiário* locativo *Em Dillinger et al., são codificados separadamente, mas em minha codificação considerei-os em conjunto, pela dificuldade de distinção, em certos casos. 6. Papéis temáticos de dois complementos vazios (como em Dillinger et al.) tema e locativo tema e fonte tema e meta experienciador e tema argumentos de comparação (preferi isto a aquilo) A seguir, apresento os resultados, mostrando o quadro distribucional das estruturas e categorias. Com relação à ocorrência geral de complementos nulos, temos: Tabela 1. Ocorrência de complementos nulos REGIÃO
total
Obj. direto nulo
SP
49
25(51%)
19(39%)
5(10%)
RJ
44
22(50%)
19(43%)
3(7%)
Salvador
31
24(77%)
4(13%)
3(10%)
P. Alegre
61
32(52%)
25(41%)
4(7%)
Recife
27
13(48%)
10(37%)
4(15%)
TOTAL
212
116(55%)
77(36%)
19(9%)
610
Obj. indireto nulo 2 compl. nulos
Primeiramente, vamos observar os antecedentes do objeto direto nulo, com o seguinte resultado: Tabela 2. Antecedentes do objeto direto nulo ANTECEDENTE
N.
%
[-esp., +ani]
07
6,3
[-esp., -ani]
23
20,5
[+esp., -ani]
72
64,3
[+esp., +ani]
10
8,9
112
100
TOTAL
Embora haja um grande número de objetos nulos [+específico], podemos ver que a maioria desses é também [-animado]. Esse resultado confirma, mais uma vez, a tendência do objeto direto nulo ter um elemento [-animado] como antecedente: Tabela 3. Antecedentes do objeto direto nulo ANTECEDENTE
N.
%
[+animado]
17/112
15.2
[-animado]
95/112
84.8
[+específico]
82/112
73.2
[-específico]
30/112
26.8
Quanto ao objeto indireto nulo, temos o seguinte resultado: Tabela 4. Antecedentes do objeto indireto nulo ANTECEDENTE
N.
%
[-esp., +ani]
32
41.5
[-esp,. -ani]
11
14.3
[+esp., -ani]
20
26
[+esp., +ani]
14
18.2
TOTAL
77
100
611
Neste caso, os traços do antecedente apresentam-se bem distribuídos: Tabela 5. Antecedentes do objeto indireto nulo ANTECEDENTE [+específico] [-específico] [+animado] [-animado]
N. 34/77 43/77 46/77 31/77
% 44,1 55,8 59.7 40.3
Com relação à ocorrência de dois complementos nulos, podemos observar: Tabela 6. Antecedentes de complementos nulos em verbos que exigem dois complementos
[+esp., +animado] [+esp., -animado] [-esp., +animado] [-esp., -animado] TOTAL
Objeto direto N. % 1 5.3 9 47.4 2 10.5 7 36.8 19 100
Objeto indireto N. 0 1 15 3 19
% 0 5.3 78.9 15.8 100
Este quadro é interessante, pois mostra que o objeto direto nulo é, na maioria das vezes, [-animado], seja ou não específico, quando temos dois complementos nulos, enquanto que o objeto indireto nulo nesse tipo de estrutura, ocorre com o antecedente [+animado], porém [-específico]: Tabela 7. Antecedente de complementos nulos em verbos com dois complementos Objeto direto
612
Objeto indireto
N.
%
N.
%
[-específico]
9/19
47.4
[+específico]
10/19
52.6
1/19
[-animado]
16/19
84.2
4/19 21.1
[+animado]
3/19
15.8
15/19 78.9
18/19 94.7 5.3
Olhando a classificação dos verbos nas sentenças com dois complementos, observamos o seguinte: 3 sentenças ocorrem com verbos do tipo “por” (dois complementos, um é circunstancial – seguindo Dillinger et al.): (29) ... porque eles já ajudam bem; ... (D2/SP) ...ah ajuda demais, né? (D2/SP) ... e ... uma coisa que eu nao me arrependi foi ter botado ela com um ano e quatro meses... quando eu matriculei... (DID/SAL)
Os outros 16 exemplos são de verbos bitransitivos, como nos exemplos: (30) ... dizem; (D2/SP) ... agora, dias que não tem aula ele pergunta... (D2/SP) ... lá vende assim, por um preço baratíssimo... (DID/SP) ... e servem como se fosse uma sopa e o pato cozido ali dentro... (DID/SP) ... eles querem sempre, por mais que a gente dê, eles querem sempre mais coisa, né? (DID/SAL)
Já o resultado de tipo de verbo para objetos direto e indireto nulos estão na tabela abaixo: Tabela 8. Tipo de verbo e objetos diretos e indiretos nulos Tipo de verbo
Objeto direto nulo
Objeto indireto nulo
N.
%
classe POR
18
16.1
16 20.8
bitransitivos
6
5.4
45 58.4
88
78.6
16 20.8
112
100
77
transitivos TOTAL
N.
%
100
O estatuto do complemento vazio mostrou uma predominância para “pronome vazio”. Essa codificação foi usada, seguindo Dillinger et al., mas sabemos que em muitos casos, o estatuto do elemento vazio não é “pronome 613
vazio” (c.f. discussão “pro” vs. “reconstrução” para o objeto direto, acima, e também discussão sobre objeto indireto), mas é um elemento anafórico, com antecedente no discurso. Tendo esse “caveat” em mente, vejamos a tabela 9: Tabela 9. Estatuto do objeto direto e indireto nulo Estatuto
Objeto direto nulo
Objeto indireto nulo
N.
%
pronome vazio
98
87.5
elemento topical.
14
12.5
2
2.6
112
100
77
100
TOTAL
N.
%
75 97.4
Quanto a papel temático do complemento vazio, temos a predominância de “tema” para o objeto direto nulo e “meta/beneficiário” para o objeto indireto nulo. Nos verbos com dois complementos nulos, da mesma forma, a predominância foi “tema e meta” para C0 e C1 nulos. Observamos também a seguinte ocorrência de complementos nulos vs. tipo de oração, cf. tabela (10). Aqui podemos ver que há uma maior ocorrência de complementos nulo quando a sentença é matriz: Tabela 10. Tipo de oração e complementos nulos Tipo de oração
Obj. dir. nulo N.
%
Obj. ind. nulo N.
2 compl.
%
N.
%
matriz complemento
78 69.6 3 2.7
53 68.8 3 3.9
13 0
68.4 0
adjunto
24 21.4
15 19.5
5
26.3
relativa
7
6.3
6
7.8
1
5.2
TOTAL
112
100
77
100
19
100
Diálogos parecem favorecer o objeto direto nulo, enquanto que elocuções formais favorecem o objeto indireto nulo. Os números foram opostos: obtive 100 (65.4%) objetos diretos nulos, e 53 (34.6%) objetos indiretos nulos em diálogos (DID e D2), enquanto que para elocuções formais, os números foram 14 (36.8%) objetos diretos nulos e 24 (63.2%) objetos indiretos nulos. 614
Abaixo, discuto esses resultados.
3.4 Discussão Conforme observamos na tabela 1 acima, com exceção de Salvador, a distribuição entre objetos diretos e objetos indiretos nulos é semelhante entre as várias regiões do país. Contudo observamos um maior número de ocorrências de objeto direto nulo do que objeto indireto nulo. Esse resultado parece ser diferente do resultado encontrado em Dillinger et al. Porém, ao contrário do que ocorre naquele estudo, não estou considerando objetos preenchidos. Assim, não estou considerando a variação existente entre a opção nulo vs. lexicalizado. Quanto a antecedentes, podemos observar que os resultados de meu estudo diacrônico estão confirmados na pesquisa sincrônica do português oral. Compare as tabelas 2 e 3 acima com as tabelas 11 e 12 abaixo, que trazem dados de Cyrino (1994): Tabela 11. Ocorrência de objetos nulos no século XX ANTECEDENTE
N.
%
[+esp., +ani]
0
0
[+esp., -ani]
64
67.4
[-esp., +ani]
4
4.2
[-esp., -ani]
27
28.4
TOTAL
95
100
Tabela 12. Antecedente do objeto direto nulo no século XX ANTECEDENTE
N.
%
[+animado]
4/95
4.2
[-animado]
91/95
95.8
[+específio]
64/95
67.4
[-específico]
31/95
32.6
As tabelas mostram que o objeto nulo do PB, que pode ser considerado elipse (de DP) em FF e reconstrução em FL, ocorre em 64,3% dos objetos 615
diretos com antecedente [ +específico, -animado] nos dados do NURC, e 67,4% com o mesmo tipo de antecedente nos dados diacrônicos (escritos) (tabelas 2 e 11). Quando observamos a ocorrência dos traços do antecedente separadamente (tabelas 3 e 12) também observamos a semelhança de resultados. Já com relação ao objeto indireto nulo, há uma distribuição semelhante entre os traços [animacidade] e [especificidade], como mostra tabela 5. Há, porém, uma maior incidência (41.5%) de objetos indiretos nulos com o traço [específico, +animado] (c.f. tabela 4). Esse resultado está de acordo com minha sugestão acima de que seria possível a elipse do objeto indireto se este estiver dentro do VP. Nesse caso, seria interessante observar se o traço do objeto indireto complemento de V é [-específico]. Conforme argumento em Cyrino (1994), esse traço está presente em objetos nulos que ocorrem ilhas no PE, razão pela qual proponho que esses também são resultado de reconstrução em FL. Em outras palavras, o traço [-específico] em PB levaria à possibilidade de reconstrução de DP em FL e elipse em FF, se houver um V licenciando aquela posição. Ao observar esse aspecto com o verbo dar, por exemplo, para comparar com give do inglês, dos três exemplos que encontro dois têm o antecedente do objeto indireto com o traço [-específico]: (31) a. quer dizer que dá trabalho (D2/SP) b. Então eu posso dar um conceito de liberdade (EF/PA)
O outro exemplo é: (32) quando eu dava comida na boca (DID/SP)
e o antecedente é a filha da informante. Neste caso, porém, dar comida seria equivalente a alimentar (feed, em inglês), e a estrutura poderia já não ser a mesma, isto é, poderíamos não ter a estrutura de Larson (1988), e, portanto, a possibilidade de elipse/reconstrução ocorreria com certos verbos; com outros, como vimos a estrutura seria diferente, e o estatuto do objeto indireto seria o de um adjunto, seguindo Dillinger et al. (ver nota 3). Ao considerar a ocorrência de objetos indiretos nulos, observei que a maioria ocorreu com o verbo (bitransitivo) dizer, como nos exemplos em (33)4: 616
(33) a. se tem aula ele diz: “droga estou com sono quero dormir eu tenho dor disso dor daquilo” (D2/SP) b. quando eu disse ainda há pouco pra decifrar-se (D2/RE)
No caso de dois complementos nulos, a ocorrência do objeto indireto nulo com o traço [-específico, +animado] é muito grande (78.9%) (tabela 6). Aliás, como já ressaltado na seção acima, a tabela 7 mostra que quando dois complementos são nulos, a maioria dos objetos diretos são [-animado] (confirmando mais uma vez os resultados do estudo diacrônico), e a maioria dos objetos indiretos nulos ocorre com antecedentes [-específico]. Duas observações ainda são destacadas dos resultados. A primeira é a ocorrência de objetos diretos e indiretos nulos em qualquer tipo de oração, tendo a maior incidência ocorrido nas sentenças principais e nas sentençasadjunto. O resultado é interessante principalmente com relação à ocorrência do objeto direto nulo; porém, não é um resultado inédito e somente confirma pesquisas anteriores. Uma outra observação que me parece interessante é o fato de que objetos indiretos nulos são favorecidos em elocuções formais e não em diálogos, ao contrário do que ocorre com os objetos diretos nulos. Essa constatação pode sugerir que o objeto direto nulo tem um caráter mais anafórico do que o objeto indireto nulo, o que também reforça a idéia de “adjunto” para certos objetos indiretos. Um estudo mais detalhado desses fenômenos, no entanto, encontrase em andamento (Cyrino, em andamento).
Conclusão O objetivo deste estudo foi determinar a ocorrência de elementos nulos pós-verbais no português oral do Brasil. Dentre esses elementos, destacam-se: a elipse de VP, o objeto direto nulo e o objeto indireto nulo. Os resultados deste estudo não foram suficientes para determinar com mais exatidão a ocorrência da elipse de VP, como observado acima, não somente pela falta de dados suficientes, mas também porque os dados usados não incluiam perguntas do entrevistador, para podermos determinar a ocorrência do fenômeno. Respostas curtas, apesar de serem também considerados um fenômeno de elipse de VP por Matos (1992), são estudadas em um trabalho à parte, por de Oliveira (neste volume). 617
Quanto à ocorrência de objetos diretos nulos, os resultados confirmam as pesquisas sincrônicas e diacrônicas existentes: o objeto direto nulo do PB é preferencialmente [-animado] e ocorre em qualquer tipo de estrutura, seja ilha ou não. Mais importante, os resultados deste estudo confirmam assim os resultados provenientes de um corpus escrito (peças teatrais) , mostrando que esse tipo de pesquisa pode revelar, da mesma forma, a situação da língua oral. Como diz Adams (1987), na verdade, os autores não podem mudar muito a sintaxe da língua escrita se querem ser entendidos. Quanto à ocorrência dos objetos indiretos nulos, destacou-se a importância de estudos futuros quanto à sua estrutura sintática, e os resultados até agora obtidos parecem confirmar a sugestão levantada em Dillinger et. al. acerca do estatuto dessa categoria, e a existência de certos objetos indiretos nulos como resultado de reconstrução.
NOTAS 1
“Elipse” é um fenômeno que ocorre em várias línguas, sendo a omissão de constituintes que, de alguma forma, podem ser interpretados. Na gramática tradicional é o que se chama “zeugma”. Na gramática gerativa, além de elipse de VP como em (i), (i) a. John saw Mary, but Peter didn’t ____ João viu a Maria, mas Pedro não viu ___ outros fenômenos são estudados e classificados como despojamento (ii), escoamento (iii) e lacuna (iv): (ii) a. John gave Mary some candies and Fred ___ too. João deu doces a Maria e Fred ___ também. b.John gave Mary some candies and ___ some flowers too João deu doces a Maria, e ____ flores ___ também. c. Someone gave some candies to Mary, but not ___to Jeff. Alguém deu chocolates a Maria, mas ___ ao Jeff não. (iii) a. We all know what happens under certain weather conditions. But we have no idea why ___ or how ___ (these things happens) Nós todos sabemos o que acontece sob certas condições climáticas. Mas não temos idéia por que ___ ou como ___ (essas coisas acontecem). (iv) a. John likes movies, and Bill ___ concerts. João gosta de cinema, e Bill ___ de concertos. Um estudo mais detalhado dessas construções encontra-se em Chao (1987), Matos (1992) e também Cyrino (em andamento).
618
2
Raposo (1986) afirma que o objeto nulo não pode ser confundido com a elipse de VP. O autor dá os exemplos: (i) a. Você colocou os livros na estante? Sim, coloquei ____ b. Joana entregou os livros ao Manuel, mas eu sei de muita gente que nunca teria entregue ____ Nesse exemplos, segundo Raposo, o que está ausente não é somente o objeto, mas todo o VP. Teríamos, então, elipse de VP. Porém, é muito difícil distinguir entre as duas estruturas, conforme aponta Matos (1992). Uma sentença como (ii) é ambígua: (ii) A Joana viu. Para Matos, que estuda a elipse de VP em português europeu (PE), há meios de se distinguir o objeto nulo de elipse de VP: 1) o objeto nulo inclui somente o objeto direto do verbo, enquanto a elipse de VP inclui todos os argumentos e adjuntos que pertencem ao VP: (iii) a. A Joana viu ___ na TV ontem.
→ objeto nulo
b. O Pedro viu [o desastre] [na TV] [ontem], e a Joana também viu [ ___ ] [ ___] [ ___ ]
→ elipse de VP
2) o conteúdo referencial do objeto nulo pode ser fixado pragmaticamente, ou por um fragmento do discurso prévio, ou por um contexto situacional. Já o conteúdo da elipse de VP é fixado por um antecedente lingüístico (Chao, 1987, e Fiengo & May, 1994, não concordam com essa restrição à elipse de VP): (iv) CONTEXTO: alguém procura [as chaves] [em uma gaveta]. Outra pessoa entra na sala, e, percebendo o que se passa, diz: “A Maria pôs ___ na primeira prateleira da estante”
→ objeto nulo
“??* A Maria também procurou ___”
→ elipse de VP
3) o objeto nulo é sujeito à subjacência, e elipse de VP não é. (v) CONTEXTO: Alguém pensando nos bolos que estão em cima da mesa, diz: “*O rapaz que trouxe ___ da pastelaria era teu afilhado”
→ objeto nulo
“O Luís comprou [pastéis de nata] [em Belém] [hoje], e a Maria tem uma amiga que também comprou [ ___ ] [ ___ ] [ ___ ]
→ elipse de VP
Em PB, tais testes não funcionam exatamente, pois em PB o objeto nulo é mais livre para ocorrer. A sentença asteriscada em (iv), por exemplo, não soa terrível para mim (“A Maria também procurou, mas não achou”), e a sentença asteriscada em (v) certamente é boa em PB. Assim, seriam fenômenos distintos? Em Cyrino (1997), proponho que há, na realidade, uma distinção a ser feita entre elipse de VP e objeto nulo em PB, mas ambos são resultado de um mesmo processo em FL. 3
Em (ia) abaixo, o objeto indireto nulo é possível; já em (ib) seria agramatical:
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(i) a. Did you receive a letter from your friend? No, I received a card. b. Did you give a flower to your teacher? *No, I gave an apple. Já o objeto direto nulo é impossível em ambas as sentenças, conforme mostra (ii): (ii) a. Did you receive a letter from your friend? *No, I received from my aunt. b. Did you give a flower to your teacher? *No, I gave to my friend. Em PB, contudo, tanto o objeto direto como o objeto indireto podem ser nulos nessas sentenças: (iii) Você recebeu uma carta de seu amigo? a. Não, recebi um cartão. b. Não, recebi de minha tia. (iv) Você deu uma flor para sua professora? a. Não, dei uma maçã. b. Não, dei para a minha amiga. É interessante notar que a possibilidade de objeto indireto nulo em inglês parece estar co-relacionada com a possibilidade ou não de DATIVE SHIFT. É conhecido o fato de que alguns verbos em inglês permitem essa operação, enquanto outros, não: (v) a. I received a letter from my friend * I received my friend a letter. b. I gave a flower to my teacher I gave my teacher a flower. Parece que a possibilidade de objeto indireto nulo só existe para verbos que NÃO permitem “dative shift”. Tomando como exemplo os verbos apontados em Larson (1988), podemos verificar que essa generalização se verifica: (vi) a. Did you donate money to charity? (*Did you donate charity money?) No, I donated jewelry. b. Did you distribute apples to children? (*Did you distribute children apples?) No, I distributed candies. c. Did you contribute your time to the auction? (*Did you contribute the auction your time?) No, I contributed my money. Se, por outro lado, olharmos também os verbos que permitem “dative shift” (de acordo com a gramática “COLLINS COBUILD English Grammar”), e que não podem ser usados intransitivamente, podemos verificar que a ausência do objeto indireto é impossível:
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(vi) a. Did you advance some money to your daughter? (Did you advance your daughter some money?) *No, I advanced some hope. No, I advanced her some hope. b. Did you hand some candies to your friends? (Did you hand your friends some candies?) *No, I handed some apples. No, I handed them some apples. c. Did you accord your blessing to your son? (Did you accord your son your blessing?) *No, I accorded my inheritance. No, I accorded him my inheritance. Mais uma vez, o objeto direto nulo é totalmente impossível nesses casos: (vii) Did you hand some candies to your children? (Did you hand your children some candies?) *No, I handed ___ to my friends. *No, I handed my friends ___. Em vista dessas observações, poderíamos tentar verificar se haveria realmente uma relação entre os dois fenômenos. Segundo Larson (1988), uma sentença com o verbo give, que permite o objeto duplo, teria a estrutura em (viii). Larson argumenta que tanto give my teacher a flower como give a flower to my teacher têm a mesma estrutura subjacente: (viii)
VP /
Spec V’
\ V’
/
\
V
VP
|
/
e
NP
\ V’
|
/
a flower V | give
\ NP | (to) my teacher
Segundo Larson, mesmo construções que não permitem “dative shift”, como em (viii) acima, teriam a mesma estrutura. “Dative shift” não pode ocorrer por causa da preposição, que, nesses casos, não seria “redundante” com o verbo, isto é, o verbo não teria um papel temático “meta” (que seria o papel temático também atribuído pela preposição “to”), e assim a preposição não poderia ser reduzida a um simples marcador de Caso. Em outras palavras, a preposição não pode “absorvida”. Isso incluiria casos até como (ix):
621
(ix) I cut the salami with the knife. *I cut the knife the salami. Incidentalmente, podemos obervar que essa sentença admite o objeto indireto nulo: (x) Did you cut the salami with the knife? No, I cut the bread. Na proposta de Larson, o objeto indireto nulo é complemento de V. Portanto, o objeto indireto também não poderia ser nulo em inglês. Porém, conforme vimos acima em (ib) e (vi), certos verbos permitem o objeto indireto nulo. Assim, se assumirmos que objetos indiretos nulos também seriam resultados de reconstrução em FL, e elipse em FF, a estrutura de Larson poderia somente explicar por que o objeto indireto nulo não é permitido com certos verbos em inglês. Recorde que Larson propõe que a estrutura com objeto duplo é sempre como em (viii), isto é, o objeto indireto sempre estaria sob VP. Então a pergunta é: por que certos objetos indiretos podem ser nulos em inglês, como em (ib) e (vi)? Duas respostas, ou, alternativas de análise, são possíveis. Para explicar o caso de verbos que permitem o objeto indireto nulo no inglês, como nos exemplos em (ia) e (vi), poderíamos propor que: a) é uma questão lexical, isto é, alguns verbos permitem o objeto indireto nulo, outros, não. Em outras palavras, certos verbos permitem que seus complementos permaneçam implícitos, como apontado em uma nota de rodapé em Larson (1988:358) para o caso do objeto direto (“tema”) em: John wrote a long letter to his mother. John wrote to his mother. A questão seria verificar que tipo de papel temático poderia permanecer implícito no caso do objeto indireto nulo. ou, então, que: b) Ao contrário do que Larson propõe, a estrutura para os casos de objeto indireto nulo, ou seja, para os casos de verbos que não permitem “dative shift”, não é como (viii). Uma vez que há uma co-relação entre possibilidade de “dative shift” e “objeto indireto” nulo, seria interessante investigar a segunda alternativa de análise. Inicialmente, gostaria de seguir a sugestão de Dillinger et al. (1996), e propor que alguns objetos indiretos não estariam, em termos de estrutura, dentro do VP, nem em inglês, nem em português. Esses objetos indiretos seriam aqueles que não permitem “dative shift”, como em (ib) e (vi). A explicação de Larson, em termos da preposição não ser redundante nesses casos, e, portanto, não poder ser absorvida, não seria necessária. Se fossem considerados como adjuntos, e não complementos, poderíamos explicar a possibilidade de não-realização desses objetos indiretos. Por outro lado, a estrutura de Larson existiria somente para verbos que permitem “dative shift” (e não permitem objeto indireto nulo). Nesse caso, o objeto indireto não poderia ser nulo, pois em inglês o V não pode “licenciar” a elipse. A nãoocorrência de elipse (e reconstrução em FL) para objetos indiretos (e diretos) em inglês fica, assim, explicada. Maiores detalhes ainda seriam necessários para justificar tal proposta. Um estudo teórico sobre o assunto encontra-se em andamento (Cyrino, em andamento).
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4
Na realidade, essa é uma simplificação do problema. Desde Pollock (1989), argumenta-se a favor da hipótese do INFL dividido em TP e AGRP (Tense Phrase e Agreement Phrase). Lobeck (1995) mostra por que não é possível haver elipse de VP em francês e alemão, embora nessas línguas o V seja alçado a INFL, através da hipótese do INFL dividido. A questão, portanto, deve ser analisada em mais detalhes quando a questão de outras línguas está em jogo, trabalho em andamento.
5
Esse verbo pode ocorrer com objeto indireto nulo mesmo em inglês, e não pode ocorrer com “dative shift”: John said something to Mary. a. John said something. b. *John said Mary something.
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PARTE IV GRUPO DE MORFOLOGIA DERIVACIONAL
ADJETIVOS DENOMINAIS NO PORTUGUÊS FALADO
Margarida Basilio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) Léa Gamarski (Universidade Federal Fluminense)
Introdução Este trabalho aborda a formação e características de adjetivos denominais no português falado e está dividido em duas partes. Na primeira, a cargo de M. Basilio, focalizam-se questões gerais relacionadas à formação e funções de adjetivos denominais e determinam-se algumas condições gerais de produtividade e de produção de adjetivos denominais no português falado. Na segunda, a cargo de L. Gamarski, focalizam-se análises numéricas específicas e cotejam-se resultados de adjetivos denominais com resultados prévios obtidos para adjetivos deverbais no que tange às ocorrências de adjetivo em posição adnominal ou predicativa nos diferentes tipos de inquérito no corpus pesquisado. A análise se baseou nos três tipos de inquérito utilizados no corpus mínimo compartilhado do Projeto Gramática do Português Falado, correspondentes a São Paulo e Rio de Janeiro. Conforme os trabalhos anteriores do grupo, só serão objeto de análise as formações regulares, isto é, formações fonológica e semanticamente transparentes.
I Questões gerais 1. Adjetivos denominais e funções das Regras de Formação de Palavras (RFPs) As funções mais relevantes para a formação de palavras são a de mudança categorial e a semântica, em correspondência ao duplo papel do léxico
como sistema de representação conceitual e provedor de dados para a construção de enunciados lingüísticos. A função de mudança categorial numa RFP corresponde à existência da mudança de categoria lexical na formação da palavra enquanto exigência da construção textual ou da estrutura sintática, conforme ilustrado em (1) (1)
a. É fundamental que Pedro participe. b. A participação de Pedro é fundamental.
Em (1)b. a estrutura sintática, que depende de requisitos ou escolhas de construção textual, exige uma forma nominalizada. A função semântica, por outro lado, corresponde à necessidade de formação de novos elementos denotativos. Neste caso a RFP efetua uma alteração semântica de caráter geral e previsível, a partir do item derivante, conforme ilustrado em (2). (2) fazer / refazer / desfazer
Em (2), formamos os verbos refazer e desfazer adicionando as alterações semânticas de reincidência e reversão, respectivamente representadas pelo prefixos re- e des- , ao verbo básico fazer. Neste caso, não há mudança de categoria lexical. Processos de formação de palavras que envolvem mudança de categoria lexical (como 1b.) nem sempre se restringem a uma função de mudança categorial. Por exemplo chorão é derivado de chorar, não para fins de uso em posições estruturais previstas para substantivos, mas para caracterizar pessoas que choram mais do que o normal ou conveniente. Assim, embora a mudança de categoria esteja envolvida num processo de formação de palavras, a função fundamental deste processo pode ser semântica em vez de categorial. Na formação de adjetivos denominais a mudança de categoria lexical está obrigatoriamente presente, mas a função semântica pode ser de relevância maior. Por exemplo, nas formações X-udo, a semântica de substantivos referentes a partes do corpo é usada para formar adjetivos que caracterizam pessoas como tendo essas partes em quantidade ou dimensão maior do que o desejável, a partir de um padrão de normalidade qualquer. Já em formações Xal não há uma função semântica visível direta, configurando-se apenas uma função de mudança categorial. 630
2. Principais processos de formação de adjetivos denominais Os principais processos de formação de adjetivos denominais são os de adição dos sufixos -ico, -al, -oso, -ês, -ense, -ano, -ário, ado, -udo, embora haja muitos outros como -ino, -il, etc. O sufixo -ico se adiciona basicamente a radicais gregos, constituindose num caso peculiar, na medida em que tipicamente opera sobre bases presas, sobretudo compostas, embora também se possa adicionar a bases livres não derivadas. É característico da língua culta, mormente científica e acadêmica, sendo natural, portanto, sua predominância nos textos de EF do corpus. Alguns exemplos são: Agronômica, tecnológica, pré-histórico (D2-SP 360); arqueológicas, esotéricas, iconográfico (EF-SP 405); geográficas, ideológicos, econômicas (EF-RJ 379), típica, alcoólica (DID-RJ 328). Os sufixo -al se adiciona a radicais latinos primitivos ou derivados com a estrutura Xção, Xmento, Xncia (mas não Xagem, Xda, Xidade ou Xeza). Sua freqüência é significativa em todos os tipos de Inquérito. Alguns exemplos do corpus são teatral, musical (DID-SP 234); cultural, educacional (D2SP 306); central, individuais (EP-SP 405); industrial, naval feudal (EF-RJ 379); profissional, mental (DID-RJ 328). O sufixo -ar pode ser considerado como uma variedade de -al, que ocorre quando a base apresenta um /l/. Esta condição limita bastante a utilização de -ar. Alguns exemplos do corpus são escolar (D2-SP 360) e familiar (EP-SP 405). O sufixo -oso adiciona-se a radicais latinos primitivos ou derivados de estrutura Xmento, Xncia e Xidade (mas não Xção, Xagem, Xda e Xeza). Alguns exemplos do corpus são: maravilhoso, preguiçosa (DID-SP 234); harmonioso (EF-RJ 379), famosa, substanciosas, idosos (DID-RJ 328). Os sufixos -ês e -ense formam adjetivos pátrios e correlatos, adicionando-se, portanto, a nomes próprios referentes a locais, simples ou compostos. As ocorrências do corpus incluem Francesa (DID-SP 234); japonesa, chineses (EF-RJ 379). Também ocorrem como pátrios formações em -ano como em americanas (EF-RJ 379); baiana, italiana (DID-RJ 328). O sufixo -ário forma adjetivos de base latina a partir de bases presas e formas livres primitivas ou derivadas de estrutura Xção, Xmento e Xncia (mas não Xda, Xagem ou Xeza). Alguns exemplos do corpus são universitário, autoritárias (D2-SP 360); diárias (D2-RJ 328); bancário, inflacionárias (DIDRJ 355). O sufixo -ado se adiciona sobretudo a bases não derivadas, algumas vezes em formações parassintéticas. Alguns exemplos no corpus são engraça631
do, requintado (DID-SP 234); errada (D2-SP 360); pesada (EF-RJ 379); aguada, chocolatado, folgada (DID-RJ 328); despreparado (D2-RJ 355). O sufixo -udo se adiciona a substantivos não derivados em geral designando partes do corpo, embora haja alguns exemplos de formações com outras bases. Não foram registradas formações no corpus examinado. Algumas formações envolvendo sufixos minoritários, de produtividade duvidosa ou condições gerais de produção reduzidas foram encontradas no corpus, tais como medonho, sonoro, infantil, estudantil (DID-SP 234); ordeiro, razoável (D2-SP 360); europeu, Latina, financeiro (EF-RJ 379); selvagens, brasileiro (DID-RJ 328) etc. Estes não serão objeto de análise. No que se refere à função semântica, os sufixos -ice, -al e -ário apresentam apenas propriedades gerais de adjetivação, ou seja, apresentam tão somente a semântica de caracterização do substantivo a que se referem no enunciado, a partir da semântica do substantivo base, conforme ilustrado em (3). (3)
a. O processo psíquico deve ser levado em conta. b. A pressão arterial deve ser controlada. c . As metas educacionais são prioritárias.
Os demais sufixos apresentam ao lado da função geral da caracterização outros significados mais restritos, o que explica sua produtividade menor (Basilio 1993). Assim, por exemplo, -oso e -ado podem indicar presença do elemento ou propriedade expressa no substantivo base como em perigoso, ambicioso, aguado, errado; -oso pode indicar causação, como em escandaloso proveitoso; -ês , -ense e -ano indicam origem, como em norueguês, riograndense, baiano, etc; e -udo expressa a idéia de excesso, como em narigudo, barrigudo, etc.
3. Formação e funções de adjetivos denominais nos enunciados É importante distinguir a função semântica ou de mudança categorial de uma RFP, a que aludimos na primeira seção, da função que adjetivos em geral exercem em enunciados. Na literatura sobre adjetivos é tradicional a distinção entre adjetivos em termos de função denotativa ou predicativa, mas há divergência entre autores em relação ao estabelecimento de sub-classes a partir dessas funções. Castilho e Castilho (1992) por exemplo, falam da sub632
classe de adjetivos predicativos, enquanto Ilari (1992) fala da dupla função dos adjetivos. Do ponto de vista morfológico a situação é pouco clara neste particular, já que o mesmo adjetivo pode ocorrer em mais de uma função, o que favoreceria o tratamento em termos exclusivamente de função, embora determinados sufixos pareçam se direcionar a uma função única, o que favoreceria o tratamento como sub-classe. Segundo Lobato (1993), um adjetivo em função denotativa acrescenta uma propriedade semântica às propriedades da expressão nominal a que ele se refere, daí resultando uma conjunção de propriedades que especifica uma nova classe natural como em engenheiro florestal. Já em função predicativa o adjetivo atribui a propriedade semântica ao referente denotado pela expressão nominal que ele modifica, tendo-se, em conseqüência, uma leitura proposicional. Com isto, na função predicativa a classe natural denotada pelo substantivo não muda, já que o adjetivo apenas atribui uma propriedade semântica ao referente denotado pelo substantivo e não às propriedades denotativas deste. Esta abordagem tem pontos em comum, embora não se identifique, com a que Ilari (1992) atribui ao tratamento da gramática tradicional, segundo a qual a função predicativa do adjetivo corresponderia a uma afirmação de inclusão, enquanto na função de adjunto o adjetivo definiria a interseção dos conjuntos denotados por substantivo e adjetivo. Além das funções denotativa e predicativa os adjetivos denominais também apresentam o que se poderia chamar de função argumental, a saber, a função de expressar em forma adjetiva o argumento interno ou externo de formas nominalizadas (Perini, 1978; Bastos, 1980), conforme ilustrado abaixo. (4)
os constantes ataques estudantis ao presidente estão causando graves problemas à Coréia.
Temos, assim, três funções principais exercidas pelos adjetivos denominais: a função de preenchimento argumental, de caráter sintático; a função denotativa, de caráter semântico lexical; e a função predicativa, de caráter proposicional. Lobato (1993) observa que adjetivos que são exclusivamente de função denotativa são sempre pós-nominais em português. Castilho e Castilho (1992), em outra abordagem, nos remetem a Casteleiro (1981), segundo o qual há, além da posição pós-nominal e do caráter denotativo (ou classificatório, de 633
referência, etc), uma série de propriedades distribucionais que distinguem adjetivos predicativos do que ele denomina de não-predicativos. Para Casteleiro, dentre outras propriedades menores, adjetivos predicativos podem corresponder a uma relativa, aceitam gradação, não são compatíveis com paráfrases de estrutura de SN, aceitam os verbos copulativos ser e estar, podem funcionar como predicativos do objeto com verbos como achar, julgar, considerar, e outros que tais, e podem funcionar como aposto, etc., ao contrário dos não-predicativos, como vemos abaixo: (5) função denotativa a. O que a senhora considera uma boa peça teatral? (DID-SP 234: 32) b. peça que é teatral c. ?peça teatralíssima d. ?Quando uma peça está teatral? e. uma boa peça de teatro f. *a senhora julga esta peça teatral? g. *Teatral, a peça levava duas horas h. *uma boa teatral peça (6) função predicativa a. É uma menina ordeira (D2-SP 360:1260) b. que é ordeira c. menina muito ordeira, extremamente ordeira d. a menina é ordeira e. * é uma menina de ordem f. todos as consideramos ordeira g. Ordeira, a menina está sempre guardando tudo nos devidos lugares h. minha ordeira filha, que acaba me deixando exausta
Os adjetivos em função argumental apresentam a maioria das características dos de função denotativa, mas, ao contrário dos predicativos de 634
Casteleiro (1981), sempre podem corresponder a um sintagma preposicionado e não aparecem em posição pré-nominal não apositiva, como vemos abaixo. (7)
a. as incursões americanas (EF-RJ 379:745) b. as incursões que são americanas c. *incursões muito americanas d. as incursões eram americanas e. as incursões dos Estados Unidos f. *consideramos as incursões americanas g. Americanas, as incursões prosseguiam sem trégua sua rota h. *as americanas incursões
Em boa parte de literatura sobre adjetivos existe uma preocupação fundamental com a atuação predicativa e com questões de ordem e escopo (Borges Neto, 1991; Lobato; 1993; Ilari, 1992, etc). De cunho morfológico, entretanto, nosso trabalho se preocupará mais com as funções a serem tipicamente exercidas por adjetivos denominais, com um especial interesse na função denotativa. Já vimos que adjetivos de função denotativa denotam novas classes naturais através do acréscimo de sua propriedade denotativa às do substantivo a que se referem. Assim, fica clara a motivação para a formação de adjetivos denominais: a combinação de propriedades denotativas de um substantivo com as propriedades denotativas de outro substantivo propicia a multiplicação virtualmente infinita das possibilidades de denotação numa língua. Em outras palavras, adjetivos denominais são formados sobretudo para serem utilizados na formação de novas unidades denotativas no nível dos enunciados. É importante considerar a relevância da função denotativa dos adjetivos denominais, em oposição à função predicativa dos adjetivos em geral, na medida em que aquela, ao contrário desta, embora se realizando sintaticamente, é de caráter fundamentalmente lexical, no sentido de dupla função do léxico de representar conceitos e fornecer elementos para a construção de enunciados. Ou seja, a formação de unidades denotativas pela adjunção de adjetivos denominais a substantivos seria um ponto extremo (?) numa cadeia de processos que passam pela derivação e pela composição, por um lado, e, por outro, pela formação de expressões com verbos de suporte (“light”verbs). Isto, naturalmente, envolve a questão ainda não resolvida da definição de item lexical e 635
a tarefa de estabelecer critérios de diferenciação entre sintagmas S + Adj e palavras compostas. A relevância da função denotativa de adjetivos denominais se faz sentir de maneira especial no caso de palavras de cunho muito geral que necessitam de um preenchimento semântico a ser fornecido via de regra por um adjetivo denominal, substantivo ou sintagma preposicionado. Alguns exemplos com adjetivos denominais estão em (8) (8)
a. e isso se deve ao fator monetário (DID-SP 234:476) *e isso se deve ao fator b. toda a parte judicial (D2-SP 360:807) *toda a parte c. em termos industriais (EF-RJ 379:179) *em termos d. atravessando situações históricas (EF-RJ 379:48) *atravessando situações e. aspecto econômico (EF-RJ 379:129) *aspecto f. deixar de comer coisa salgada à noite (DIR RJ 328:20) *deixar de comer coisa
Entretanto, o caso de ocorrência mais numerosa, por causa do maior número de elementos disponíveis, se constitui da especificação de substantivos de diferentes graus de generalidade, com o objetivo de definir referentes específicos, com em (9) (9)
a. e bebida alcoólica? (DID-RJ 328:772) b. ah às empresas estatais (D2-RJ 355:28) c. abriram uma conta bancária (D2-RJ 355:196) d. eu fico numa tensão nervosa (DID-SP 234:392-3) e. é baseado em pesquisas arqueológicas (EF-SP 405:26)
em que só temos especificação, de modo que o enunciado continua válido mesmo com a retirada do adjetivo. 636
A idiomaticidade de sintagmas formados com adjuntos adnominais, colocada por Ilari (1992) e referida por Castilho e Castilho (1992), apresenta um problema a mais para a abordagem da formação de palavras no português falado, dado que, do ponto de vista morfológico, apenas construções absolutamente regulares poderiam ter sido formadas no decorrer do ato de fala, mas a referência a entidade concretas, ainda que aparentemente de semântica regular, constituem fator problemático para o levantamento de dados confiáveis, como vemos abaixo: (10) a. fundo musical né (DID-SP 234:411) b. que o público infantil acho que gostou (DID-SP 234:441-2) c. se o material escolar já foi re/arrumado (D2-SP 360:950) d. Engenharia Agronômica (D2-SP 360:950) e. indústria naval japonesa (EF-RJ 379:69) f. nessa área de merenda escolar (D2-RJ 355:487)
onde a cristalização do uso parece ter peso maior que a alteração de significado. Assim, por exemplo, a. poderia ser questionado como idiomático, pois no mesmo texto a informante usa fundo sonoro; em b., a semântica é impecável, pelo menos em um sentido, mas é altamente implausível a formação infante+il no ato de fala, dada a freqüência praticamente nula de ambos os elementos. O mesmo acontece com a base de naval, embora em menor escala. Já em c., d. e f. o problema é o caráter institucionalizado da expressão como um todo, apesar da regularidade da formação adjetiva e da possível transparência semântica. Esta situação levanta questões interessantes, na medida em que o fator uso se revela de fundamental relevância também em sintagmas envolvendo adjetivos denominais, e não apenas em palavras derivadas, e a regularidade parece não garantir a plausibilidade não apenas da formação das palavras derivadas no decorrer do ato de fala, (como em infantil) e nem do uso dos adjetivos denominais de função denotativa. Considere-se, por exemplo, engenharia agricultural, em vez de agronômica. Teríamos, em outras palavras, o fenômeno de bloqueio (Aronoff, 1976) atuando no nível do sintagma, ou seja, restringem-se sobremaneira as reais possibilidades da fala em termos concretos, embora continue infinito o potencial de combinações S + Adj. Denom. para a formação de unidades denotativas. 637
Entre os adjetivos ou usos não predicativos, a segunda função para os adjetivos denominais é a de expressar através de adjetivação o argumento interno ou externo de uma forma nominalizada, conforme ilustrado em (11) (11) a. toda a evolução humana (EF-SP 405:203) b. industrialização japonesa (EF-RJ 379:62) c. incursões americanas (EF-RJ 379:74-5) d. lançamentos imobiliários (D2-RJ 355:569)
Conforme observamos acima, estas construções apresentam mais características em comum com os adjetivos de função denotativa, do ponto de vista de possibilidades distribucionais. Isto é natural quando observamos que a função precípua destes adjetivos é argumental, em oposição a predicativa.
4. Condições de produção: observações preliminares Logo a partir dos primeiros levantamentos ressalta a superioridade numérica de formações X-al e X-ico em EF, em detrimento de formações como X-oso, X-ês, X-do, etc.: temos 23 ocorrências de X-ico e 30 de X-al (das quais 5 em -ar), em contraposição a 5 de X-oso, 2 de X-ês, e assim por diante. Em DID , a configuração é bem diferente, sendo X-al e X-oso os mais freqüentes, em detrimento de X-ico (17, 15 e 8 formações respectivamente). Finalmente, em D2 temos ainda a prevalência de X-al (22 ocorrências), mas X-ico é mais significativo (13 ocorrências), enquanto X-oso regride para 7 ocorrências, número também atingido por X-ês. Fica claro, portanto, que as formações X-al apresentam as melhores condições de produção dentre todos os adjetivos denominais, prevalecendo em todos os inquéritos. A análise também estabelece, como já era de se esperar, que os textos formais apresentam as melhores condições de produção para adjetivos X-ico; e observamos, finalmente, que DID favorece as formações em -oso em comparação com os outros inquéritos. Outro fator a ser considerado é o fator da função semântica: enquanto -al e -ico são semanticamente vazios, -oso, -ês, etc. apresentam especificações semânticas. Em conseqüência, espera-se que os primeiros sejam mais produtivos (Basilio, 1993), o que é compatível com nossos resultados, que indicam ocorrência maior dos sufixos semanticamente neutros. 638
No que tange à ocorrência de adjetivos denominais nas três funções possíveis, há uma predominância clara de ocorrência em função denotativa, um número bem menor de ocorrências em função predicativa, e um número pequeno de ocorrências em função argumental. Mas o ponto mais relevante em nossas observações é o de que as possibilidades de função predicativa em adjetivos denominais se concentram em determinadas formações morfológicas. Encontramos uma significativa incidência de formações X-oso e X-ado que partilham a função semântica de algo como “conter”. Alguns exemplos são: (12) a. eu achei aquilo horroroso viu? (DID-SP 234:263) b. aí também foi engraçado (DID-SP 234:127) c. é muito sigiloso né? (D2-SP 360:1074) d. necessária ao desenvolvimento harmonioso (EF-RJ 379:16) e. é muito pesada e é engraçado como isso influi (DID-RJ 328) f. justamente por esse ano eu estar assim mais folgada (DID-RJ 328:559) g. o brasileiro ele é muito despreparado (D2-RJ 355:514)
Outras formações também podem ocorrer, conforme os exemplos em (13): (13) a. hoje para nós extremamente racionalistas (EF-SP 405) b. potências também capitalistas (EF-RF 379)
em que temos formações X-ista, que não são, entretanto, adjetivos propriamente ditos (Basilio, 1989). Algumas formações em -al, -ico e -ário também ocorrem, mas todas apresentam irregularidades como vemos nos exemplos (14) (14) a. e as imprevistas são são normais (D2-RJ 355:623) b. vitaminas que são necessárias (DID-RJ 328:726) c. uma alimentação mais ou menos regular (DID-RJ 328:744) d. a guerra é o mais social possível (EF-RJ 379:126) e. nada de original certo? (EF-SP 405)
639
f. ela é pontual? (D2-SP 360:207-8) g. uma arte muito mais conceitual (EF-SP 405:333)
Embora ocorram duas ou três instâncias em que formações em -al parecem ser regulares, como em (15) abaixo (15) essência tradicional da economia japonesa (EF-RJ 379:91-2)
podemos afirmar que as melhores condições de produção para estas formações envolvem as funções denotativa e argumental, ao contrário das demais formações, que teriam na função predicativa melhores condições de produção. Este estado de coisas é provavelmente relacionado às propriedades semânticas de cada grupo. Aliás, é interessante observar que as formações X-al, X-ário e X-ico, embora não se limitando às funções denotativa e argumental, só são usadas como predicativas em sentido metafórico, conforme ilustrado abaixo (16) a. na linguagem teatral não sei (DID-SP 234:215) acho a linguagem dela muito teatral para o meu gosto b. fundo musical, né? (DID-SP 234:411) a voz dele é tão musical c. se o material escolar já foi re/arrumado (D2-SP 360:194) o trabalho dele está progredindo mas ainda é muito escolar d. em termos aí econômicos (EF-RJ 379:174) econômicas, as ofertas de natal certamente atrairão fregueses e. quase toda minha atividade profissional (DID-RJ 328) infelizmente ele não está sendo nada profissional
Podemos então retornar à questão função/sub-classe de adjetivos. Do ponto de vista de descrição do processo morfológico, os sufixos apenas formam adjetivos. Como os mesmos sufixos podem exercer diferentes funções, ainda que assumindo variações semânticas, não faz sentido incluir a função no processo de formação. Assim, sub-classes de adjetivos estariam descartadas, no que concerne à descrição de processos de formação. No entanto, é óbvio que formações com sufixos de função semântica especificada terão condições 640
melhores de produção em função predicativa e praticamente nulas, por exemplo, em função argumental; enquanto os semanticamente neutros terão melhores condições de produção nas funções denotativa e argumental e só em casos especiais na função predicativa. No que se segue, passaremos à análise quantitativa de adjetivos denominais em comparação com os deverbais em situações de uso nos diferentes tipos de inquérito no corpus pesquisado.
II A partir da identificação da estrutura morfológica das formações adjetivas derivadas e de suas possíveis funções semânticas, procurou-se mostrar a maneira como formas resultantes de diferentes processos morfológicos de adjetivação se manifestam no discurso. Com base no corpus pesquisado, procurou-se investigar, por um lado, se níveis distintos de formalidade no discurso implicariam em algumas diferenciação na produção de categorias morfológicas específicas, com suas respectivas funções semânticas, além de categorias. Por outro lado, procurou-se verificar especificamente a função dos adjetivos como predicativos ou denotativos, sua distribuição na estrutura sintática e sua possível contribuição para a caracterização e distinção entre esses três níveis de língua falada culta. No tratamento dos sufixos fez-se uma retomada dos processos formadores de adjetivos deverbais (Gamarski, 1996), para seu posterior confronto com os denominais. Em termos de produção, no total de adjetivos deverbais computados (185), destaca-se a pequena produção de adjetivos em X-tivo e X-vel, quando comparada à de X-nte e X-do. 93,0% têm função predicativa, havendo, conseqüentemente, escassa incidência de denotativos, ausentes nas formações em X-vel. (gráfico 1). Considerando o papel semântico que desempenham nos sintagmas, quando em função sintática como adnominais (SNA) ou predicativos (SNP), os adjetivos funcionam na transmissão de informação e de expressividade, ou seja, podem subcategorizar o substantivo e ter um caráter informacional, ou então atribuir a este uma propriedade subjetiva e ter um caráter valorativo, devendo-se levar em conta o fato de que no discurso os adjetivos podem funcionar simultaneamente nas duas dimensões (Bastos, 1993). 641
Assim, embora a distinção entre valorativos e informacionais careça eventualmente de precisão, evidencia-se entre as formações em X-vel a predominância de valorativos (87,0%); X-tivo e X-nte não se distinguem neste aspecto, mas, entre os predicativos em X-do, os informacionais mostram forte incidência (80,2%). Evidencia-se também que 60% do total de deverbais ocorrem em função sintática predicativa (SNP), não se incluindo aí os denotativos, que têm freqüência zero em SNP. A diferença entre a estruturação de adjetivos em SNAs e SNPs não se faz marcar no que diz respeito à expressividade (22,6%) e à informatividade (25,2%), mas ao fato de os deverbais, de função eminentemente predicativa incidirem mais em SNPs , com 60,0%. (Gráfico 2) Quanto à produção dos adjetivos deverbais em cada um dos três níveis de língua pesquisados, verifica-se uma produção crescente de EF para DID e D2: 27,0%, 35,7% e 37,3%, respectivamente, no total e nos predicativos. Portanto, maior incidência em níveis de língua considerados menos formais (gráfico 3). Constata-se, portanto, a relevância da função semântica dos sufixos formadores de adjetivos deverbais na formação de palavras, e a forte incidência de adjetivos predicativos, especialmente os informacionais, e sua maior freqüência em SNPs e em textos considerados menos formais. Gráfico 1 Percentuais de incidência de adjetivos deverbais denotativos (D) e predicativos (P) nos três tipos de inquérito T = 185 D P
6 ,9 9 3 ,1
100 80 60 40 20 0 D
642
P
Gráfico 2 Percentuais de incidência de adjetivos deverbais denotativos (D) e predicativos (P) em SNA e SNP nos três tipos de inquérito T = 185 S NA D P
S NP 13 33
60 50
0 60
40 SNA
30
SNP 20 10 0 D
P
Gráfico 3 Percentuais de incidência de adjetivos deverbais denotativos e predicativos em cada tipo de inquérito T = 185 D EF 40 DID 35 D2 30
P 3,2 2,2 1,6
13 33,5 35,7
25 D
20
P
15 10 5 0 EF
DID
D2
Os dados mostram, por outro lado, que os adjetivos denominais computados, em um total de 254 formações, não repetidas em mesmo tipo de texto e estrutura sintática, constituem 57,9% das ocorrências de adjetivos derivados (439). Os sufixos de função eminentemente gramatical constituem 67,7% das ocorrências, apresentando-se os adjetivos denominais prioritariamente em sua função denotativa, com 62,6% das ocorrências (gráficos 4 e 5). Do total de denominais, 62,6% são denotativos e 60,6% em SNA; considerando apenas os denotativos (159), 96,9% ocorrem em SNA. Mesmo entre os predicativos (95) predominam as estruturas em SNA (gráfico 6). 643
Portanto, os denominais apresentam maior incidência de denotativos e, especialmente, de estruturas em SNA. Gráfico 4 Percentuais de incidência de adjetivos denominais denotativos e predicativos nos três tipos de inquérito T = 254
D P
6 2 ,6 3 7 ,4 70 60 50 40 30 20 10 0 D
P
Gráfico 5 Percentuais de incidência de adjetivos denominais denotativos e predicativos em SNA e SNP nos três tipos de inquérito T = 254 SNA D P
SNP 60,6 27,6
70 60
2 9,8
50 40
S NA
30
S NP
20 10 0 D
644
P
Gráfico 6 Percentuais de incidência de adjetivos denominais denotativos e predicativos em cada tipo de inquérito T = 254
D EF DID D2
30
P 27,2 18,1 17,3
25 20
14,6 15 7,9 D
15
P
10 5 0 EF
DID
D2
Para Bastos, “substantivos e adjetivos denominais, quando em SNAs, atuam em conjunto na referência a entidades: a entidade é identificada a partir de informações veiculadas tanto pelo substantivo quanto pelo adjetivo. “Independentemente do tipo e da ‘quantidade’ de informação veiculada (que varia dependendo da função do SNA na construção discursiva, das relações anafóricas entre SNAs, de propriedades sintáticas e semânticas de adjetivos e substantivos), substantivos e adjetivos são necessariamente co-funtores na identificação de entidades” (Bastos, 1993:129). Esta análise de Bastos é diferente de análises tradicionais, pois não considera que o papel do adjetivo seja necessariamente secundário ao do substantivo, no sentido de que o adjetivo é tipicamente visto apenas como um ‘delimitador/qualificador’ da categoria identificada pelo substantivo. Por sua vez, em SNP, o adjetivo e o SN adjetivado atribuem propriedades (caracterizadoras ou modalizadoras) a entidades e colocações do discurso. Deduz-se daí que a predicação veiculada pelo adjetivo no SNP é uma atividade lingüística diferente da exercida pelo adjetivo no SNA, e de que esta predicação funciona como comentário a uma entidade tópica do discurso. Considerando, em cada um dos três níveis de língua falada, a incidência de adjetivos denominais, sua função semântica e realização sintática, verifica-se que as EF ocorrem com 42,1%, seguidas de DID e D2, com 28,3% e 26,4%, respectivamente, com predominância de denotativos, especialmente em EF, e 96,9% de estruturas em SNA (gráficos 6 e 7). 645
Entre os predicativos, há 73,7% de SNAs, as EFs com a maior incidência (32,6%), seguidas de DID (25,3%) e D2 (15,8%) . Entre os predicativos em SNP, porém, os DID têm 14,7% ante os 6,3% de EF e %,3% de D2, elevação que se deve à presença de valorativos em -oso (gráfico 8) . Gráfico 7 Percentuais de incidência de adjetivos denominais denotativos em SNA e SNP em cada tipo de inquérito T = 159 S NA E F 45 D ID 40 D2
S NP 42 ,1 28 ,3 26 ,4
35
1,3 0,6 1,3
30 25
SNA
20
SNP
15 10 5 0 EF
D ID
D2
Gráfico 8 Percentuais de incidência de adjetivos denominais predicativos em SNA e SNP em cada tipo de inquérito T = 95 SNA EF DID D2
SNP 32,6 25,3 15,8
35 30
6,3 14,7 5,3
25 20
SNA SNP
15 10 5 0 EF
DID
D2
Assim, na medida em que a função semântica dos sufixos é mais relevante, as diferenças entre as EF e os DID se mostram menos marcadas. Entre646
tanto, em termos gerais, evidencia-se, entre os denominais, a produção de adjetivos denotativos, em que a função gramatical do sufixo é mais relevante que a categorial, atuando, substantivo e adjetivo, na identificação de entidades do discurso, e não apenas como delimitadores de uma categoria identificada pelo substantivo. As estruturas em SNA são dominantes nos três tipos de inquérito e, nessas condições, a freqüência dos denotativos cresce, nos três níveis de língua falada culta, dos menos formais para os mais formais. Em termos de produção, portanto, a análise de textos de língua falada culta mostra a ocorrência de adjetivos deverbais com 42,1% do total de adjetivos derivados, os denominais com 57,9%. Quanto à função, constata-se a relevância da função semântica dos sufixos formadores de adjetivos deverbais e a função semântica eminentemente predicativa (93,1) e informacional (80,2%) dos adjetivos resultantes de tais processos de formação de palavras. Do total de deverbais, verifica-se, entre os denotativos, maior incidência de formações em SNA; entre os predicativos, 64,5% de incidências em SNP, de modo que no discurso os adjetivos e os SNs adjetivados pós-cópula atribuem uma propriedade predicadora a uma entidade, funcionando como comentário a uma entidade tópica do discurso. No que diz respeito à produção de deverbais em cada um dos três níveis de língua falada pesquisados, evidencia-se uma produção crescente de EF para DID e D2. Assim, a uma menor formalidade no discurso corresponde uma maior incidência de deverbais predicativos, donde se conclui que adjetivos deverbais ocorrem em textos de língua falada culta prioritariamente em função semântica predicativa, em estrutura sintática predicativa e maior freqüência em textos considerados mais informais. O conjunto de formações deverbais coloca ainda problemas interessantes para a teoria morfológica, uma vez que um sufixo como -vel, reconhecido como marcador de adjetivo deverbal, na forma e no significado previsível que atribui a uma base especificada, tem uma produção bastante restrita , exemplo eloqüente da importância da distinção entre condições de produtividade e condições de produção (Basilio,1993).
647
Gráfico 9 Percentuais de incidência de adjetivos deverbais predicativos em SNA e SNP em cada tipo de inquérito T = 172 SNA EF DID D2
30
SNP 11,6 10,5 13,4
25 20
13,9 25,6 25 SNA
15
SNP
10 5 0 EF
DID
D2
Entre os adjetivos denominais, pelo contrário, predominam os denotativos (62,6), em estruturas de SNA (88,2%) e os sufixos em que é mais relevante a função categorial (67,7%). Entre os predicativos também predominam as estruturas em SNA (73,9%), e constituem 37,4% das formações, predominantemente informacionais. Neste caso, substantivos e adjetivos são, como propõe Bastos, co-funtores na identificação de identidades, atuando em conjunto na referência a entidades, identificadas a partir de informações veiculadas tanto pelo substantivo quanto pelo adjetivo. Nessas condições de produção, as EF têm a maioria das ocorrências, diferindo significativamente de DID e D2 (gráfico 7). Por sua vez, entre os predicativos em SNP predominam os valorativos e adjetivos em que a função semântica é mais relevante que a categorial, e nesse caso as diferenças entre EF e DID se mostram menos marcadas (gráfico 8). Fica, portanto, evidenciada a oposição que se estabelece no uso de adjetivos denominais e deverbais em textos de língua falada culta, pela maior incidência , nos denominais, dos denotativos em SNA, em proporção decrescente de EF para DID e D2; nos deverbais, ao contrário, pela maior incidência dos predicativos em SNPs, em uma proporção crescente de EF para DID e D2. 648
Enfim, verifica-se que são significativas, para uma análise do português falado e a caracterização dos níveis de formalidade no discurso, as diferenças que se estabelecem no uso dos adjetivos deverbais e denominais, por suas distintas realizações morfológicas, semânticas e sintáticas.
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PARTE V GRUPO DE MORFOLOGIA FLEXIONAL
CORRELAÇÃO MODO-TEMPORAL NAS CONSTRUÇÕES COMPLEXAS: CONCESSIVAS Ângela C.S. Rodrigues (USP) Odette G.L.A S. Campos (UNESP-Araraquara) Paulo T. Galembeck (UNESP-Araraquara)
1. Uma questão que se coloca para os que pretendem investigar as relações entre orações é o da correlação (ou concordância) de tempos e modos entre as orações da frase complexa, ou seja, da manifestação formal das relações que se estabelecem entre as orações do complexo subordinativo por meio de marcas de flexão verbal modo-temporal. Distribuídas as tarefas entre os que se propuseram a desenvolver o tema Conjunções, coube ao GT de Morfologia Flexional o estudo desta questão. Apresentamos neste texto algumas observações sobre os esquemas modo-temporais que ocorrem em um dos complexos subordinativos que não incluem estruturas encaixadas, isto é, o das concessivas, resultado das escolhas efetuadas pelos informantes de NURC/Brasil. Objetiva-se explicitar as “regras” de combinação das formas verbais que emergem dos enunciados analisados, buscando sugerir explicações para elas. 2. O problema da correlação modo-temporal nas construções complexas não constitui preocupação maior para os estudiosos da gramática da língua portuguesa. Preferem apresentar a questão em termos de emprego ou uso de tempos e modos verbais nos diferentes tipos de orações, sem chamar atenção para a possível interrelação ou interdependência entre eles nas “frases” complexas. O trabalho de Mateus et alii constitui honrosa exceção. Suas autoras remetem a esta questão, por exemplo, quando afirmam que a utilização (correlativa) de certos tempos verbais constitui um processo que assegura a coesão temporal (Mateus et alii, 1983:198; 1987:142).
Entretanto, os estudiosos da gramática latina preocuparam-se com esta questão. Ernout e Thomas (1959:407-20) esclarecem que, em latim, no interior de uma mesma frase, uma certa conformidade tende a se estabelecer entre os tempos das diversas proposições subordinadas e o da principal. Deste fato resulta um complexo conjunto de relações ao qual se dá o nome de concordância de tempos ou consecutio temporum. Ainda que também se estabeleça a concordância de tempos do indicativo, de uma maneira geral, são os tempos do subjuntivo que, em matéria de concordância, são levados em conta, porque a estreita correspondência deste modo com o indicativo no sistema da conjugação permitia um jogo notável. A concordância de tempos do subjuntivo é definida pela seguinte regra: I. ao presente (ou ao futuro) do indicativo na proposição principal corresponde na subordinada um presente ou um perfeito do subjuntivo. Ex.: dico / dicam quid faciat, quid fecerit, quid facturus sit II. a um tempo passado da proposição principal corresponde na subordinada um imperfeito ou mais-que-perfeito do subjuntivo. Ex.: dixi/dicebam/dixeram quid faceret, quid fecisset, quid facturus esset Contudo, são muitos os casos em que esta regra não se aplica e ela, na sua simplicidade, não dá conta de numerosas exceções. Devem ser consideradas as condições impostas pelos valores particulares dos próprios tempos verbais e pela natureza das diversas proposições subordinadas. É interessante o apelo ao valor semântico das unidades que compõem o complexo sintático subordinado. Os autores enfatizam a idéia de que, desta forma, a concordância dos tempos não se restringe a uma regra única, não é um processo artificial, mas a expressão de uma tendência natural que favorece o paralelismo morfológico do indicativo e do subjuntivo na conjugação. Além disso, ela sempre foi menos rígida na língua falada do que na língua escrita (grifo nosso). Modernamente, a questão da concordância dos tempos foi por Weinrich (1968) retomada no seu estudo decisivo para a formulação da hipótese da dicotomia entre os dois grupos temporais que compõem o sistema das línguas em geral: Grupo Temporal I: tempos do mundo comentado; Grupo Temporal II: tempos do mundo narrado. São pontos fundamentais da proposta analítica de Weinrich: 654
1. As orações têm suas próprias leis. Assim, um tempo, uma vez situado no contexto do discurso vivo, exerce sobre os tempos adjacentes da oração uma pressão estrutural que limita a liberdade de eleger entre todos os tempos possíveis. Estas limitações de liberdade combinatória tornam-se particularmente evidentes quando se forma uma oração complexa ou um período. É o fenômeno da consecutio temporum ou da concordância de tempos. 2. Estudos de concordância de tempos no francês mostram que as normas de concordância são mais flexíveis na língua falada. 3. Os tempos se combinam em estruturas não só paradigmáticas mas também sintagmáticas, distribuindo-se na oração e no texto segundo uma ordem necessária e determinada. 4. A existência de duas situações comunicativas fundamentais, a de comentar e a de narrar, explica a distribuição dos tempos verbais em dois grupos: I. do mundo comentado – presente, presente contínuo, futuro do presente simples e composto do indicativo; II. do mundo narrado – pretéritos perfeito, imperfeito, mais-que-perfeito, futuro do pretérito do indicativo. Ainda que Weinrich se refira a formas verbais do indicativo, pensamos ser possível estabelecer uma equivalência entre formas do indicativo e do subjuntivo, semelhante à sugerida por Gili Gaya (1972:176). 5. A concordância dos tempos é uma limitação combinatória dos tempos de modo que na frase não ocorre intercâmbio entre os dois grupos. Estas idéias serão retomadas em outro momento deste trabalho. 3. Três observações iniciais se fazem necessárias. A primeira delas diz respeito à perspectiva de análise adotada. O estudo do esquema modo-temporal nas construções que não incluem estruturas encaixadas passa pela discussão das seguintes questões: 1. o tipo de junção, ou de coesão interfrásica que se estabelece entre as orações que compõem os diferentes tipos de construções sob análise; 2. os valores expressos por essas construções, ou a concepção que se faz dos enunciados da oração núcleo e da oração subordinada; 3. os conectores que entram neste tipo de construção. Em outras palavras, a análise do material coletado baseou-se em duas hipóteses essenciais: 1a.: existe correlação entre valor das construções concessivas e esquema modo-temporal empregado para expressão desse valor; 2a.: existe correlação entre conectores e jogo modo temporal que se estabelece nas construções concessivas. 655
A segunda observação refere-se ao critério de seleção das ocorrências. É preciso esclarecer que: 1. foram descartadas as orações com verbo elíptico, independentemente de seu estatuto sintático; 2. foram desdobrados os complexos subordinativos com uma oração subordinante e várias subordinadas em que se repete o conector de subordinação. Ex: por mais que se vá filosofar acerca do assunto, por mais que se crie teorias, que se monte de arcabouços teóricos (...) a gente paga ali... (D2-POA, Inq. 120: 856-866).
Por fim esclarecemos que, para fins de codificação e análise das ocorrências, levou-se em conta sempre a seqüência, ou ordem, oração núcleo (subordinante) – oração subordinada. 4. As orações concessivas entram em construções que exprimem a contrajunção, ou junção contrastiva. Consideremos os enunciados abaixo. (1)
contei também o número de estudantes...quarenta e um...e: eu tenho quase certeza embora não tenhamos a lista (EF-RE, Inq.337: 12-17)
(2)
eu só como queijos brancos...eu evito comer os outros queijos...embora goste muito...eu só faço essas extravagâncias assim uma vez por semana... (DID-RJ, Inq.328: 621-623)
Entende-se por contrajunção um tipo de relação, ou junção, que se instaura entre o conteúdo proposicional de um dos membros do complexo concessivo e que pode ser explicado da seguinte maneira: em (1) e em (2), o conteúdo preposicional do membro da seqüência encabeçada por embora e articulada por contrajunção exprime a não satisfação de uma condição necessária para que se verifique a ocorrência do conteúdo proposicional do outro membro da seqüência, a oração núcleo. “Assim, a contrajunção pode exprimir a não satisfação de condições (necessárias, prováveis ou possíveis) para que uma dada situação tenha lugar”(Mateus et alii, 1983:194-195).Os enunciados (1) e (2) são, portanto, casos em que se instaura entre os conteúdos da oração subordinada concessiva p e da oração núcleo q uma relação de contrajunção. 656
Em termos lógico-semânticos, pode-se falar na existência de três tipos de construções concessivas, ou de construções ligadas a uma proposição contrastante: factuais, hipotéticas ou contrafactuais. Em outros termos, os conectores concessivos entram em enunciados factuais, hipotéticos e contrafactuais. Nas ocorrências sob análise, entretanto, tais conectores compõem apenas enunciados factuais e hipotéticos, o que se confirmará mais adiante. Sejam os enunciados que seguem. (3)
uma coisa que eu como também...embora o pessoal aqui em casa não coma muito...são os miúdos do boi... (DID-RJ, Inq.328: 461-464)
(4)
eu gosto de comer couve-flor...gosto mui/engraçado que eu gosto muito de chuchu embora todo mundo ache chuchu uma coisa assim sem graça...aguada...mas eu gosto... (DID-RJ, Inq.328: 27-30)
(5)
L2 ...é eu tenho a impressão eu não posso dizer porque é difícil...para a gente dizer porque de jeito nenhum ele falou “você vai fazer isso”...nunca...mas eu acho que ele falava tanto tanto tanto e eu o admirava embora minha meta fosse Itamarati eu sempre... Doc diplomacia L2 pensei em fazer Diplomacia sempre sempre (D2-SP, 360: 1516-1524)
As ocorrências (3) e (4) correspondem a construções contrastivas factuais/reais na medida em que o conector embora serve para unir dois enunciados que são apresentados pelo falante como reais ou verdadeiros. Se em (3) a locutora afirma que ela e o pessoal de sua casa comem miúdos de boi, ainda que não nas mesmas proporções, em (4), os fatos de a interlocutora gostar de chuchu e de todo mundo achar chuchu algo sem graça apresentam-se como reais no seu mundo de referência. As ocorrência (3) e (4) são exemplos de enunciados factuais do presente, em que se utilizam com maior freqüência nos inquéritos sob análise: – em q (oração núcleo): presente do indicativo; – em p (oração concessiva): presente do subjuntivo. 657
O enunciado (5) corresponde a um exemplo de construção concessiva factual do passado, que apresenta o seguinte esquema modo-temporal: – em q (oração núcleo): pretérito perfeito do indicativo; – em p (oração subordinada): pretérito imperfeito do subjuntivo. Consideremos agora os enunciados abaixo transcritos. (6)
nós temos as reuniões...muito mais participação porque, mesmo que alguns professores faltem porque tenham outros...outros afazeres no ambulatório, mas sempre tem um bom número de reuniões: (DID-SSA, Inq. 231: 298-302)
(7)
Agora, (superp) o bom é sair antes das seis, porque mesmo que você não pegue o congestionamento urbano, não pega a Heitor Dias, mas, quando chega ali da...de Água Comprida pra frente, o tráfego começa a...engrossar (D2-SSA, Inq. 98: 30,p.30)
Em (6) e (7), o conteúdo proposicional das orações concessivas encabeçadas por mesmo que exprime a não satisfação de condições (necessárias, prováveis, possíveis) para que uma dada situação tenha lugar, vista como algo que eventualmente ou possivelmente pode acontecer, o que não compromete a realização do evento explicitado na oração núcleo. Assim, em (6), os professores podem eventualmente faltar às reuniões, mas elas acontecem, apesar disso, com freqüência; em (7), o informante esclarece que, depois das 6 horas, o tráfego começa sempre a engrossar, ainda que exista a possibilidade de seu interlocutor pegar congestionamento. Construções desse tipo são construções concessivas hipotéticas. 4.1 Os comentários que seguem constituem fruto da interpretação dos resultados de cálculos de freqüência estampados nas tabelas que seguem. Tabela 1 – Correlação modal e valor lógico semântico do complexo concessivo
Real
Ind x Ind.
Ind. x Subj.
16/36 = 44 %
20/36 = 56 %
36/49 = 73,5 %
13/13 = 100 %
13/49 = 26,5 %
33/49 = 67 %
49
Hipotético Total
658
16/49 = 33 %
Total
Tabela 2 – Correlação modal tendo em vista conectores e valor lógico-semântico do complexo concessivo Ind. x Ind. Real embora
Hipotético
1/19 = 5,3%
Ind. x Subj. Real Hipotético 16/19 = 84,2%
TOTAL
2/19 = 10,5% 19/49 =38,7%
mesmo que
1/6 = 16,6%
ainda que
2/2 = 100%
2/49 =4,1%
2/12 = 16,6%
12/49 =24,4%
se bem que
10/12 = 83,3%
por + que
1/5 = 20%
apesar que
2/2 = 100%
apesar de que
3/3 = 100%
TOTAL
16/49 = 32,6%
5/6 = 83,3%
4/5= 80%
6/49 =12,2%
5/49 =10,2% 2/49 =4,1%
3/49 =6,1% 20/49 = 40,8% 13/49 =26,5%
49
Os resultados da Tabela 1 mostram que a maioria das construções com verbo explícito nos dois membros do complexo concessivo (36 ocorrências, num total de 49, correspondentes a 73,46% delas) podem ser classificadas de factuais/reais. Desse total, 19 são introduzidas por embora, e 17 delas correspondem a enunciados cujo esquema modo-temporal prototípico é o das factuais de presente, em que se combinam presente do indicativo em p e presente do subjuntivo em q. Apenas uma ocorrência, ex. (5), corresponde a um enunciado factual de passado. Aliás, no material analisado, embora entra quase que exclusivamente em construções factuais. Confirmam-se as palavras de Mateus et alii (1983:571): “Outra propriedade semântica dessa construção: para que todo enunciado seja verdadeiro, p e q têm de ser verdadeiras”. Os dados mostram também que outros conectores compõem as construções concessivas factuais (Tabela 2). Um deles é se bem que: todas as 12 construções com se bem que podem ser classificadas como factuais, 11 delas de presente e apenas 1 de passado. Entretanto, o esquema modo-temporal que se observa nessas construções é diferente do esquema das concessivas com embora, pois em 10 casos das 12 ocorrências observa-se uso exclusivo de formas de indicativo, tanto na oração núcleo como na subordinada concessiva. Esta é uma primeira observação sobre o conector se bem que, a que se seguirão outras em outro momento deste trabalho. 659
Também os conectores apesar que, apesar de que e ainda que entram exclusivamente em construções factuais. Os dados confirmam ser mesmo que o conector típico das construções hipotéticas, pois de um total de 6 ocorrências, 5 constituem complexos com concessiva encabeçada por esse conector. Os outros 4 casos são do conector por mais que. Cf. exemplos (8) e (9). (8)
Eles querem sempre... por mais que a gente dê, eles querem sempre mais coisas, né? (DID-SSA, Inq. 231: 236-238)
(9)
olha, eu acho o seguinte: em primeiro lugar, eh, puxa, e todo aquele negócio, puxa a digressão sobre, sobre assuntos tremendamente desgastados, por mais que se vá filosofar acerca do assunto, por mais que se crie teorias, que se monte de arcabouços teóricos aí pra explicar ou pra pra definir, o Celso Furtado escreve livros, o, o, o Delfin Neto faz pronunciamentos, o Roberto Campos tem lá os seus artigos, a gente paga ali a, a Visão (D2,POA, Inq. 120: 856-866)
Nestas construções combinam-se preferencialmente: presente ou futuro do presente do indicativo na oração núcleo com presente do subjuntivo na concessiva. Isto não quer dizer, entretanto, que este conector não seja também usado com valor de embora numa construção hipotética, ou eventual, de passado. É o que se verifica em (10), com o mesmo esquema modo-temporal já explicitado. (10) de qualquer forma mesmo que a nossa idéia fosse outra...éh como nós...querí:amos vir para a casa com:...uma certa urgência...e parecia que a casa nunca mais terminava quando chegamos em: março...no meio da construção então nós simplesmente paramos éh:: despedimos todo mundo ficamos com dois três homens aqui (DID-RE, Inq. 04: 226-231)
Outras observações são sugeridas pela Tabela 3.
660
Tabela 3 – Correlação modo-temporal e valor lógico-semântico do complexo concessivo Ind. x Ind. Real pres. x pres.
10/33 = 30%
Hipotético
Ind. x Subj. Real 15/33 = 45,5%
pres. x imperf. imperf. x pres.
Hipotético
TOTAL
8/33 = 24,2%
33/49=67,3%
1/1 = 100%
1/49=2,0%
1/1 = 100%
1/49=2,0%
imperf. x imperf. 2/4 = 50%
2/4 = 50%
4/49=8,2%
perf. x imperf.
1/1 = 100%
1/49=2,0%
perf. x pres.
1/4 = 25%
perf. x perf. fut. pres. x pres.
1/1 = 100% 1/2 = 50%
fut. pret. x pres. pres. x perf. TOTAL
3/4 = 75% 1/49=2,0%
1/2 = 50%
2/49=4,1%
1/1 = 100%
1/49=2,0%
1/1 = 100% 16/49 = 32,6%
4/49=8,2%
1/49=2,0% 20/49 = 40,8%
13/49=26,5%
49
Em primeiro lugar, 15 ocorrências, num total de 49, apresentam presente do indicativo na oração núcleo combinado com presente do subjuntivo na concessiva. Este pode ser considerado o esquema prototípico das construções concessivas factuais/reais de presente (Cf. 4.1). Têm o mesmo valor de factualidade das construções com presente do indicativo em ambas as orações do complexo concessivo; o córpus sob análise apresenta 10 ocorrências deste tipo de combinação, que correspondem a 22,5% do total de construções concessivas. Predominam, portanto, construções concessivas factuais de presente, de que também são exemplos outros tipos de combinações bem pouco freqüentes, tais como: – presente do subjuntivo na oração núcleo e presente do subjuntivo na concessiva. Ex. (12) isso faz com que ...a pessoa...embora ...queira fugir da re:gra/.não consiga.num é? (EF-RE, Inq. 337: 106-108)
661
Explica-se a forma de presente de subjuntivo na oração núcleo do complexo concessivo por ser ela oração encaixada de uma estrutura subordinada. – futuro do pretérito do indicativo e presente do subjuntivo. Ex. (13) desistimos...eu pelo menos desisti não se toca mais no assunto...mas realmente então está encerrado mas gostaríamos demais de mais filhos...embora eu fique quase biruta...((risos)) porque é MUITO a gente vive de motorista o dia (D2,SP, Inq. 360: 90-94)
Por seu turno, as construções concessivas factuais de passado apresentam os seguintes esquemas temporais: – perfeito do indicativo na oração núcleo e imperfeito do subjuntivo na concessiva (Cf. 4.1). – imperfeito do indicativo na oração núcleo e imperfeito do subjuntivo na concessiva. Ex. (14) L1 ...trabalhava al/ no:: albergue noturno... L2 ahn L1 eh como assistente social sabe? embora não::.. L2 L1 não tivesse curso (D2-SP, Inq. 360: 431-435)
– imperfeito do indicativo na oração núcleo e imperfeito do indicativo na concessiva. Ex. (15) a relação salarial profissional de nível superior ao aluguel seria a quarta parte, relação de dois mil cruzeiros, o sujeito pagava quinhentos cruzeiros, apesar que a unidade não era cruzeiro (D2-RJ, Inq. 355: p.1,l.18-20)
Já dissemos que, nos inquéritos sob análise, as construçõs concessivas hipotéticas apresentam diferentes esquemas modo-temporais, sendo que o mais freqüente é: presente do indicativo na oração núcleo e presente do subjuntivo na concessiva, de que é exemplo o enunciado que segue. (16) problema de representação...de se um advogado...pode ser preposto...do empregados na Justiça do Trabalho...ainda que não seja empregado da empresa...problema de se o estagiário pode recorrer...se o sindicato pode recorrer (EF-RE, Inq. 259: 43-47)
662
Outras combinações foram encontradas: – futuro do presente na núcleo e presente do indicativo na subordinada. Ex. (17) então, todas as subca(tegorias) todas as categorias, mesmo que tenham, que tenham subcategorias elas terão dentro delas próprias, níveis de gradação, então, vamos exemplificar (EF-POA, Inq. 278: 146-148)
– pretérito perfeito do indicativo e presente do subjuntivo.Ex. (18)
olha, eu me propus a faze(r ) a pesquisa (...) exatamente pra tentê, pra tenta(r ) coloca(r ) durante a pesquisa, ainda que vocês não levem (D2-POA, Inq. 120: 419-421)
Em síntese, as observações arroladas mostram ser pertinente sugerir a hipótese de uma relação entre valor das construções concessivas e esquema modo-temporal empregado para expressão desse valor. 4.2 A análise até agora desenvolvida, bem como os resultados estampados na Tabela 2 autorizam-nos também a hipotetizar uma relação entre os conectores das construções concessivas e o jogo modo-temporal neste complexo de subordinação. Estamos pensando na possibilidade de o conector interferir nas sentenças que articula sintaticamente (Ilari,1995) na medida em que desencadeia determinada forma verbal. A Tabela 4 vai sugerir uma série de observações sobre esta questão. É conveniente esclarecer que nela: 1. I representa a correlação modal Indicativo X Indicativo, e S, Indicativo X Subjuntivo; 2. as “casas” em branco indicam 0 (nenhuma) ocorrência.
663
Tabela 4 – Correlação modo-temporal e conectores do complexo concessivo
I pres. x pres.
S
1/19 13/19
pres. x imperf.
mesmo que I
S 3/6
ainda que I
se bem que
S
I
S
1/2
8/12
1/12
por mais que I
apesar que
S
I
5/5
1/2
S
I
S
imperf. x imperf.
1/49 = 2,0%
1/19
perf. x imperf.
1/12
1/2
1/3
1/49 = 2,0%
1/3
4/49 = 8,2%
1/6
perf. x pres.
2/19
1/6
1/49 = 2,0% 1/2
perf. x perf.
4/49 = 8,2% 1/12
fut. pres. x pres.
1/49 = 2,0%
1/6
fut. pret. x pres.
1/3
1/19 1/12 18
19/49 = 38,8%
2/49 = 4,1% 1/49 = 2,0%
pres. x perf. 1
TOTAL 33/49 = 67,3%
1/19
imperf. x pres.
TOTAL
apesar de que
6 6/49 =12,2%
2
10
1/49 = 2,0% 2
5
2/49 = 4,1%12/49 = 24,5%
5/49 = 10,2%
2 2/49 = 4,1%
3 3/49 = 6,1%
49
664
embora
Os resultados da Tabela 4 nos revelam que: 1. o esquema modo-temporal mais freqüente (23 casos num total de 33) é o que apresenta presente do indicativo na oração núcleo e presente do subjuntivo na concessiva; as orações do complexo concessivo são conectadas preferencialmente por embora (13 ocorrências), mas também por mesmo que (3 casos), por mais que (5 casos) e ainda que (1 caso). 2. com freqüência também significativa (12 casos), aparece a combinação presente do indicativo na oração núcleo e presente do indicativo na subordinada concessiva; as orações desse complexo concessivo são conectadas, na sua maioria (10 casos) por se bem que, como acontece em (19). (19) espreme duas ou três duzias de bergamota PA...faz uma jarra...que quer dizer sauDÁvel...se bem que lá em casa eu...se faz isso com mais freqüência por causa da gurizada que é uma (D2-POA, Inq. 291: 454-457)
Por outro lado, observamos na Tabela 1 que o modo mais utilizado nas orações subordinadas concessivas é o subjuntivo, que aparece em 33 ocorrências, correspondendo a 67% do total das concessivas; as restantes 16 ocorrências apresentam indicativo na subordinada. Os resultados sugerem que o esquema modo-temporal das construções concessivas prevê forma verbal do indicativo na oração núcleo e do subjuntivo na concessiva. Haveria, então, necessidade de se buscar explicação para o indicativo na subordinada concessiva: pensamos na possibilidade de essas orações apresentarem um estatuto sintático-semântico diferente do das concessivas prototípicas, ou ainda na possibilidade de as conjunções concessivas que introduzem a subordinada terem valores (funções) argumentativos especiais. Esta é a questão que passamos a considerar. Os complexos concessivos com forma verbal do indicativo tanto na oração núcleo como na subordinada são os que têm a oração concessiva encabeçada por se bem que (não de forma exclusiva), apesar que e apesar de que. Pelo fato de as concessivas apresentarem também a correlação modal Indicativo X Subjuntivo, foram elas alvo de análise mais cuidadosa. (20) ah::é republicado o livro de Vicente Licinio Cardoso “A Filosofia da Arte”...que havia se originado num curso de arte feito aos arquitetos...e... ao qual apenas eu
665
vou me referir...porque se bem que ele tenha no panorama no panorama geral brasileiro muita imporTância...ah::é um livro que não pa/ apari/ ah:: apresenta nenhuma originaliDAde...limitando-se a uma divulgação das idéias de Taine (EF-SP, Inq. 156: 34-42) (21) o barroco baiano era muito mais rico...como solução brasileira ...era muito mais original...se bem que ele aparentemente fosse mais pobre (EF-SP, Inq. 156: 550-554) (22) vai ter um...um outro jantar mas nós não/vamos ter porque meu marido já se incomodou ou/ outra vez porque é jantar esses tipo americano, né? se bem que lá é muito organizado (DID-POA, Inq. 45: 29-33) (23) eu por exemplo que estou acostumada a comer só verdura e carne...eu tive muita dificuldade de me alimentar lá ...porque é tudo na base do peixe e peixes também desconhecidos pra nós... eles pescam muito peixe de rio e usam muito na alimentação peixe de rio...sabe...se bem que são gostosos...sabe? (DID-RJ, Inq. 328: 127-132) (24) a relação salário profissional de nível superior ao aluguel seria a quarta parte, relação de dois mil cruzeiros, apesar que a unidade não era cruzeiro (D2-RJ, Inq. 355, p.1:18-20) (25) o rendimento vai ser bem menor, então o rendimento dele também será menor, apesar de que existe um teto mínimo que é subvencionado pela Direção Central, menos que aquilo ninguém recebe. (DID-POA, Inq.43: 126-129)
Os enunciados (20) e (21) constituem exemplos de construções contrastivas factuais, a primeira de presente e a segunda de passado, ou seja, o conector se bem que une orações cujo conteúdo proposicional é apresentado pelo falante como real ou verdadeiro. São, por isso, exemplos típicos de complexos concessivos com esquema modal característico: em q – indicativo, em p – subjuntivo. Nos demais exemplos, são formas de indicativo que aparecem em ambas as orações do complexo concessivo e de fato não se instaura uma relação de contrajunção entre seus conteúdos. Não são, por isso, exemplos típicos de construções concessivas. 666
Em (22), o conteúdo da concessiva corresponde a um comentário adicionado pelo falante à informação de que seu marido não vai a um jantar por ser ele um jantar tipo americano (afterthought). Fica implícita a idéia de que este tipo de jantar não se prima pela organização, na opinião da informante, idéia explicitada na oração concessiva. Não se pode falar em relação de contrajunção entre os conteúdos das duas orações ligadas sintaticamente por se bem que, mas entre um conteúdo pressuposto e o da oração subordinada. Este conector introduz uma digressão, razão por que, em termos discursivos, pode ser considerado um marcador de digressão, estabelecendo uma relação de contrajunção com um conteúdo pressuposto. Em (23), fica implícita a comparação entre peixe de mar e peixe de rio sugerida pela interlocutora carioca, que precisou alimentar-se de peixes de rio, ainda que não a eles acostumada, em sua viagem pelo norte do Brasil. Uma construção concessiva canônica traria o conteúdo da oração encabeçada por se bem que expresso numa oração núcleo de complexo concessivo com subordinada encabeçada por embora.Cf.: (22a) embora seja jantar tipo americano, lá é muito organizado
O mesmo procedimento se utiliza em: (23a) embora sejam peixes de rio, eles são gostosos
Assim, em termos lógico-semânticos, se bem que não introduz oração concessiva prototípica. Neste caso, há que se definir o estatuto sintático desta conjunção. Considerações semelhantes podem ser feitas sobre os conectores apesar que e apesar de que, nos exemplos (24) e (25). Dissemos em 4.1 que as construções concessivas factuais apresentam, com maior freqüência, o esquema modo-temporal: - em q: presente ou pretérito perfeito do indicativo; - em p: presente ou pretérito imperfeito do subjuntivo. Acrescentamos, agora, mais uma observação. A ordem das orações do complexo concessivo pode inverter-se: conector p, q ou q, conector p, sem que a relação semântica entre as proposições se altere (Mateus et alii,1983:471). Assim, podemos ter: 667
(20a) ah:: é um livro que não pa/ apari/ ah:: apresenta nenhguma originaliDAde se bem que ele tenha no panorama geral brasileiro muita importância... (21a) se bem que ele aparentemente fosse mais pobre o barroco baiano era muito rico... como solução brasileira era muito original
Nestas condições, tal inversão não é possível nos complexos concessivos com formas verbais do indicativo em ambas as orações, sem comprometimento da relação semântica entre as orações, como se observa em: (22b) * se bem que lá é muito organizado porque é jantar esses tipo americano, né? (23b) * se bem que são gostosos...sabe...e usam muito na alimentação peixe de rio (24a) * apesar que a unidade não era cruzeiro o sujeito pagava quinhentos cruzeiros (25a) * apesar de que existe um teto mínimo (...) menos que aquilo nenhum deles recebe
Em outros termos, nestas construções só é possível uma ordem: q, conectores se bem que, apesar que, apesar de que. Tabela 5 – Correlação modal e mudança potencial da ordem das orações do complexo concessivo Ind. x Ind. Sim
embora
Não
1/19 = 5,3%
Ind. x Subj. Sim
16/19=84,2
Não
2/19=10,5%
TOTAL
19/49=38,7%
mesmo que
6/6=100%
6/49=12,2%
ainda que
2/2=100%
2/49=4,1%
2/12=16,7%
12/49=24,4%
se bem que
10/12 = 83,3%
por + que
2/5=40%
apesar que apesar de que TOTAL
1/16 = 6,3%
3/5=60%
5/49=10,2%
2/2 = 100%
2/49=4,1
3/3=100%
3/49=6,1%
5/16 = 93,8% 28/33=84,8%
5/33=15,2%
49
A Tabela 5 confirma que é possível a mudança de ordem das orações do complexo concessivo quando se estabelece a correlação modal Indicativo 668
X Subjuntivo; ao contrário, tal inversão tende a não acontecer quando se estabelece a correlação Indicativo X Indicativo. Acrescentem-se a estas características das construções concessivas em questão as diferenças de entonação observadas na emissão de um e outro complexo, ou seja, nas concessivas prototípicas e nas encabeçadas por se bem que, apesar que, apesar de que. Uma explicação funcional sugerida por Neves (1995) para casos de condicionais semelhantes a este pode ser aproveitada, ou parafraseada, para estas “pseudo-concessivas”: A observação da conjugação de relações em jogo nas frases factuais de se bem que, apesar que, apesar de que é a que evidencia um fato importante para o analista do uso lingüístico: o enunciado efetivo incorpora significados que se situam em diferentes camadas, o que permite uma convivência de diferentes tipos de relações implicativas que vão desde as que se estabelecem entre as predicações até as que se estabelecem entre atos de fala. Este fato é decisivo para a explicação do uso de formas do indicativo ou do subjuntivo na subordinada concessiva. Resta a questão: tais construções seriam, de fato, concessivas? 4.3 Cabe-nos ainda a tarefa de buscar resposta para a questão: por que determinadas combinações temporais são usadas com maior freqüência que outras nos inquéritos sob análise? Pensamos na possibilidade de Weinrich (1968) fornecer resposta para esta questão. Retomemos as informações contidas na seção 3 deste trabalho. Além de constatar que a existência de duas situações comunicativas fundamentais, a de comentar e a de narrar, explica a distribuição dos tempos verbais em dois grupos, verificou também que a concordância dos tempos é uma limitação combinatória dos tempos, de modo que, num mesmo período, não se combinam tempos de dois grupos ou sistemas. Em outras palavras, um tempo, uma vez situado no contexto do discurso vivo, exerce sobre os tempos adjacentes da oração uma pressão estrutural que limita a liberdade de eleger entre todos os tempos possíveis. Os resultados da Tabela 6 mostram a correlação temporal no complexo concessivo.
669
Tabela 6 – Correlação temporal e combinatória de situações comunicativas
pres. x pres.
coment.xcoment I S 10 23
pres. x imperf.
narr.x narr. I S
coment.x narr. I S
1 1 1
TOTAL 33/49=67,3% 1/49=2,0%
imperf. x pres. imperf. x imperf.
narr.x coment. I S
1
1
4/49=8,2%
perf. x imperf.
1
1/49=2,0%
perf. x pres.
4
4/49=8,2%
perf. x perf. fut. pres. x pres. fut. pret. x pres.
1
1/49=2,0%
1 1
1
2/49=4,1%
1
1/49=2,0%
pres. x perf. TOTAL
1/49=2,0%
1 12 27 39/49 = 79,6%
1 1/49 = 2,0%
1 1/49 = 2,0%
1/49=2,0% 2 6 8/49=16,3%
49
O predomínio da combinação de tempos do mundo comentado no complexo concessivo, fundamentalmente formas de presente, constitui possível sintoma de que nos inquéritos analisados os interlocutores tendem a fazer comentários, tecer considerações, emitir opiniões a respeito de um assunto, um tópico discursivo estabelecido entre eles mesmos e o documentador; é nítido seu envolvimento, ou comprometimento tácito com o conteúdo do diálogo. Resta-nos verificar se este fato também caracteriza outros complexos subordinativos. Os resultados da Tabela 6 confirmam a hipótese de Weinrich, que sugere a existência de uma limitação combinatória dentro de um período complexo. Ainda que se possa pensar numa maior flexibilidade das normas de concordância de tempo na língua falada, fica evidente a tendência de escolha de tempos do mesmo grupo temporal no âmbito do complexo concessivo. No caso das formas de subjuntivo, porque ligadas a um tempo pleno do indicativo que lhes determina a intenção comunicativa, a concordância tende a ser mais consistente. 670
5. Pensamos ser válido afirmar que a análise dos complexos concessivos no inquéritos do PROJETO DE GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS FALADO levou à confirmação das hipóteses formuladas no início do trabalho. De fato, existe correlação entre: 1. valor das construções concessivas, 2. conectores e jogo modo-temporal que se estabelece neste tipo de construção complexa. Mais do que isso, no caso das concessivas, o estudo da correlação modotemporal se impõe, pois o jogo modal que se estabelece no complexo subordinado pode ser pista para definição de seu valor lógico-semântico, de que resultam relações sintáticas diferentes entre elas. Por fim, algumas questões sugeridas no decorrer do trabalho devem ser retomadas com mais vagar. São elas: 1. a confirmação da hipótese de que as regras de correlação modal seriam impostas pelo complexo sintático enquanto as de correlação temporal seriam exigência do texto; 2. a possível obrigatoriedade dessas regras, no sentido de a substituição de uma forma verbal do indicativo por uma de subjuntivo implicar diferentes valores semânticos; 3. a possibilidade de que formas de indicativo e subjuntivo seriam intercambiáveis em outras orações subordinadas, como acontece às condicionais hipotéticas, hipótese confirmada por Gryner (1995) e as condições que favoreceriam tal processo. Para estas e outras questões buscaremos sugerir resposta em outros estudos sobre correlação de tempos e modos nas frases complexas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ERNOUT, A. et THOMAS, F. (1959) Syntaxe Latine. 2.ed. Paris, Librairie Klincksieck. GILI GAYA, S. (1972) Curso Superior de Sintaxis Española. 10. ed. Barcelona, Bibliograf. GRYNER, H. (1995) Variação modal como estratégia argumentativa. Texto inédito. ILARI, R. (1995) Um roteiro para o estudo das conjunções. Texto inédito. MATEUS, M. H. M. et alii. (1983) Gramática da língua portuguesa. Coimbra, Almedina (1.ed.), 1987 (2.ed.). 671
NEVES, M. H. M. (1995) As construções condicionais. Texto inédito. WEINRICH, H.(1968) Estructura y Función de los tiempos en el Lenguaje. Madrid, Gredos.
RESUMO Trata-se do estudo da manifestação formal das relações que se estabelecem entre as orações do complexo concessivo, um dos complexos subordinativos que não incluem estruturas encaixadas. A análise dos dados coletados nos inquéritos do NURC/ Brasil baseou-se em duas hipóteses fundamentais: 1. Existe correlação entre valor das construções concessivas e esquema modo-temporal empregado para expressão desse valor; 2. Existe correlação entre conectores e jogo modo-temporal que se estabelece nas construções concessivas.
672
O USO DO FUTURO DO PRETÉRITO NO PORTUGUÊS FALADO
Luiz Carlos Travaglia (Universidade Federal de Uberlândia)
1. Introdução O objetivo deste estudo é observar o uso do futuro do pretérito no Português falado culto, buscando verificar como os falantes cultos do Português utilizam tal forma verbal. Não vamos tratar da flexão ou da forma, mas do uso textual da forma e dos valores que regulam seu uso e sua escolha para constituir um texto. Para realizar o estudo utilizamos parte do “corpus” mínimo do Projeto de Gramática do Português Falado e trabalhamos com os seguintes inquéritos: D2
DID
EF
SP-360 (66 min.)
SSA 231 (46 min.)
SP-405 (35 min.)
POA 291 (80 min.)
RJ-328 (40 min.)
REC-337 (60 min.)
SP-59 (20 min.)
1
No “corpus” analisado encontramos 76 (setenta e seis) ocorrências de futuro do pretérito, em 29 (vinte e nove) passagens. Como se poderá observar, parece-nos, pela análise dos dados que os valores e empregos básicos dessa forma verbal na língua falada não apresentam nenhuma diferença fundamental em relação ao que se tem colocado nos estudos sobre a língua escrita. Talvez alguma diferença básica possa estar: a) em valores e empregos que aparecem só no escrito ou só no falado (não detec-
tamos nenhum emprego neste caso); b) na freqüência maior ou menor de certos valores e empregos em uma ou outra modalidade (escrita/falada). A confirmação dessa hipótese exige o estabelecimento de um elenco de valores e empregos e uma quantificação dos mesmos nas duas modalidades, usando um “corpus” suficientemente amplo e representativo das diferentes circunstâncias em que cada modalidade é empregada e, portanto, das variedades de dialeto e registro dentro de cada modalidade. Portanto tal estudo parece não poder ser feito apenas com o “corpus” do Projeto de Gramática do Português Falado que se restringe à língua falada culta e a certos tipos de inquéritos que não permitem a ocorrência de diversos tipos de interação oral, em que certos usos poderiam aparecer. Este é sem dúvida um projeto muito vasto e que não representava nosso objetivo neste estudo.
2. Sobre o valor do futuro do pretérito 2.1. Tradicionalmente as gramáticas apresentam o futuro do pretérito como um tempo que é empregado: a) para exprimir uma situação2 passada, presente ou futura como posterior a um momento que pode ser representado por outra situação, data etc. ou como diz Cunha (1972:316) “para designar ações posteriores à época de que se fala”. Para Said Ali (1964: 164) o futuro do pretérito “exprime fatos inexistentes, mas realizáveis posteriormente à época de que se fala” (1)
a – Em 1980 meu irmão se casou, dois anos depois se separaria da mulher. b – Se não tivesse morrido, meu irmão teria hoje trinta anos. c – João afirma que estaria melhor se tivesse estudado.
b) “para exprimir a incerteza (probabilidade, dúvida, suposição) sobre fatos passados” (Cunha,1972: 316). Para Said Ali (1964: 164) essa incerteza é expressa pelo futuro do pretérito para os fatos passados, pois para os fatos presentes ela seria expressa pelo futuro do presente. Said Ali chama este emprego de futuro problemático. (2)
a – Seria mais ou menos meia noite quando saíram da festa. b – Seu irmão teria naquela época uns cinco anos. c – Haveria naquela passeata cem mil pessoas.
674
c) “como forma polida de presente, em geral denotadora de desejo” (Cunha, 1972: 316) ou como diz Bechara (1968: 339) o futuro do pretérito denotaria “asseveração modesta em relação ao passado” (veja exemplo 3c) (cremos, por um exemplo dado: cf. 3d, que se trata também de presente). (3)
a – Gostaria que você convidasse o João para sua festa. b – Você seria capaz de guardar um segredo? c – Eu teria ficado satisfeito com um pouco de atenção. d – Nós pretenderíamos saber a verdade. e – Você me faria um favor?
Observe-se que nestes casos podemos sempre postular a presença de uma condição pressuposta e perfeitamente deduzível de modo que não precisa ser explicitada, a saber: a e d) se eu puder lhe pedir isto/se for possível/se houver possibilidade/se eu(nós) puder(mos); b) se eu lhe contasse; c) se você me tivesse dado; e) se eu lhe pedir. d) “em certas frases interrogativas e exclamativas, para denotar surpresa ou indignação” (Cunha, 1972: 316) (4)
a – Teria meu próprio irmão roubado meu anel? Seria ele o ladrão? b – Seria possível tanta traição?
Aqui nos parece que a surpresa ou indignação é dada pela entonação e pelas circunstâncias e não pelo futuro do pretérito que ficaria mais responsável pela incerteza, permitindo ao falante deixar no ar o fato de que se recusa a, que lhe custa acreditar naquilo que diz. Portanto não teríamos um valor diferente do arrolado em b acima. e) “nas afirmações condicionadas, quando se referem a fatos que não se realizaram e que, provavelmente, não se realizarão.” (Cunha,1972: 317) ou como diz Said Ali (1964: 165) “para caracterizar as asserções condicionadas”, quando “se alude a fato que não se realizou e provavelmente não se realizará”3 ou segundo Bechara (1968: 339) “para denotar que um fato se dará, agora ou no futuro, dependendo de certa condição” (5)
a – Se eu tivesse dinheiro, compraria um carro novo. b – Se me oferecessem o emprego, eu aceitaria. c – Nossa vida seria insuportável sem o auxílio da fé.
675
Para o futuro do pretérito composto ter-se-ia os seguintes empregos: f) “para indicar que um fato teria acontecido no passado, mediante certa condição” (veja ex. 6a) ou “para exprimir a possibilidade de um fato passado” (veja ex. 6b-d)(Cunha, 1972: 317) (6)
a – Teria sido melhor se ele não tivesse casado. b – Teria sido melhor se ele não soubesse? c – Teria sido melhor casar com Tereza? d – Encontraria ele sua casa sem a minha ajuda?
Parece-nos que o primeiro emprego é o mesmo dado em e para o futuro do pretérito simples, com a diferença de que com o composto só se poderia ter passado. Já o segundo emprego seria uma variação do valor registrado em b e que não se limita ao futuro do pretérito composto (cf. exemplo 6c). g) “para indicar a incerteza sobre fatos passados, em certas frases interrogativas que dispensam a resposta do interlocutor” (Cunha, 1972:317). Said Ali (1964:165) diz que este é um uso do futuro problemático (veja b acima) que “é linguagem polida que não obriga o interlocutor a responder” e compara com o pretérito perfeito que obrigaria a uma resposta (veja ex. 7b). Observe-se que para Said Ali não é um uso particular do futuro do pretérito composto. (7)
a – Teria o meu sócio levado os contratos? b – Quem levaria a bengala?/Quem levou a bengala? (Said Ali, 1964: 165)
A dispensa de resposta parece não ser um fato decorrente do uso do futuro do pretérito (temos perguntas com outras formas verbais de caráter puramente retórico), mas com a situação de interação. O valor seria mesmo o da incerteza, o que faz com que este emprego possa ser reunido ao de b. h) um valor específico do futuro do pretérito composto é a expressão de hipóteses passadas contra factuais, ou seja, sem possibilidade de realização, pois a condição não se verificou. (8)
676
Se você tivesse contado para o chefe que perdi o documento ele teria me despedido.
Em oposição a outros tempos como o pretérito imperfeito (cf. 9A) e o futuro do presente (cf. 9B – aqui, além da modalidade, o tempo é diferente) o futuro do pretérito indicaria algo como apenas provável em oposição a algo mais certo. (9)
A) a – Se você não me ajudasse, estaria perdido. b – Se você não me ajudasse, estava perdido. B) c – Sem a sua ajuda estarei perdido. d – Sem a sua ajuda estaria perdido.
Como se pode observar todos estes empregos se englobam em alguns valores básicos, que elencamos em (10): (10) a) expressar situação posterior a um momento de que se fala, seja este representado por outra situação ou não; b) expressar situação cuja realização provável é condicionada a outra. Neste caso pode-se apresentar a situação como realizável (com o futuro do pretérito simples) ou como irrealizável (com o futuro do pretérito composto); c) expressar incerteza (dúvida, hipótese, suposição, probabilidade). Quando a frase é interrogativa pode-se complementarmente ter as idéias de “levantamento de possibilidade” e de “não obrigação de resposta do interlocutor”; d) forma polida de solicitação direta ou indireta (esta pela expressão de desejo).
Como observamos anteriormente, a forma polida de solicitação ou expressão de desejo é na verdade resultado de uma construção condicionada em que a condição não se explicita por ser pressuposta e inferível. Assim, considerando (10d) uma variação derivada de (10b), os valores ficariam reduzidos a apenas três. 2.2. Corôa (1985) tem como preocupação primeira a interpretação semântica dos tempos verbais. Partindo das proposições de Reichenbach e diversos autores que seguiram sua proposta para descrição dos tempos e valendo-se de três momentos4 que para tais estudiosos e para ela são “relevantes para a distinção dos tempora de uma língua natural”, diz que no estudo dos futuros (do presente e do pretérito) “não se pode ignorar a importância das 677
oposições modais” que “jogam com a virtualidade inerente ao vir-a-ser”. Para ela (p. 55-61), seguindo Martin e Nef (1981)5, o futuro do pretérito (que é chamado de condicional), ao contrário do futuro do presente que parte de mundos possíveis para um mundo que é, “inscreve o processo em um vir-a-ser carregado de incertezas”, restrito à conjetura, com numerosos empregos modais, partindo “de uma base temporal mais possível de ser, para um mundo altamente hipotético, passando pelo modal”, o que é representado pelo esquema abaixo: 7
condicional
condicional temporal
condicional modal
condicional hipotético
universo diferente do universo do falante O futuro do pretérito teria uma representação como a de (11), na qual o símbolo “-” indica não simultaneidade e seria bem representado por exemplos como os de (12), dados pela autora. (11) MR-MF-ME (12) a – O garoto viria mais cedo. (José disse que o garoto viria mais cedo) b – Na mangedoura nascia (nasceu) aquele que viria a ser (seria) o salvador do mundo.
Parece-nos que a melhor representação para estes exemplos é “MRME-MF”, pois neles o evento é anterior à fala. A explicação que este modelo dá para as interpretações ditas modais e hipotéticas se baseia na virtualidade do vir-a-ser. Parece-nos que esta explicação não seria a melhor, uma vez que há casos em que a situação já é realizada. Talvez o melhor seja explicar pelo valor de posterioridade a um dado momento que propomos abaixo. O trabalho de Corôa, se atém ao plano da frase e não se preocupa com o plano do texto que é central neste estudo. 678
2.3 – Em Travaglia (1991: 130-131 e 169-174), tratando do funcionamento textual discursivo das formas e categorias verbais, propusemos que o valor básico do futuro do pretérito é marcar posterioridade de uma situação em relação a outra ou a um momento dentro do texto e que desse valor derivam seus outros valores. Portanto o futuro do pretérito é essencialmente um seqüenciador, dentro do texto. A posterioridade marcada pelo futuro do pretérito é de natureza diversa da posterioridade estrita ao momento da fala (embora esta possa ocorrer com o futuro do pretérito), que caracteriza o tempo futuro (indicação de uma situação como tendo ocorrência posterior ao momento da fala) que é expresso pelo futuro do presente e também por outras formas verbais como o presente do indicativo. Assim poderíamos dizer que a posterioridade do futuro (do presente) é uma posterioridade dêitica, enquanto a do futuro do pretérito é de outra natureza, pois é a indicação de posterioridade a um momento (representado ou não por outra situação) que pode eventualmente coincidir com o momento da fala. A posterioridade, que é o valor básico do futuro do pretérito, pode ter duas naturezas distintas: uma temporal e uma nocional. Temos portanto dois valores: uma posterioridade temporal e uma posterioridade nocional. A posterioridade temporal se subdivide em dois valores: um cronológico e o valor polifônico do futuro do pretérito. A posterioridade nocional se subdivide em quatro valores: a condição, a possibilidade, a polidez e o desejo. Portanto temos: Cronológico Temporal Polifônico Posterioridade Condição Nocional
Possibilidade Polidez Desejo
Por apresentar sempre uma situação como posterior a um momento X de que se fala (representado ou não por outra situação), o futuro do pretérito 679
sempre apresenta a situação como tendo, neste momento (que fica sempre como um momento de referência), uma realização virtual e daí derivam os seus valores ditos modais. Ou seja, a situação expressa pelo futuro do pretérito é “sempre vista como não realizada no momento X, derivando daí um valor de irrealidade da situação neste momento. No passado, a situação pode ser irreal em X, mas realizada posteriormente e antes do momento da enunciação e portanto real neste momento. Se a situação não pode ser real no momento da enunciação ou porque uma condição anterior não se realizou ou porque sua realização é posterior a esse momento”, valores como o de condição e possibilidade, desejo, polidez (com nuanças de incerteza, dúvida, hipótese, probabilidade) aparecem6. Vamos a seguir comentar sobre cada um destes valores e como eles apareceram no “corpus” analisado. Para facilitar as referências elencamos as 76 (setenta e seis) ocorrências de futuro do pretérito no “corpus” analisado, em 29 (vinte e nove) passagens e vamos nos referir a cada ocorrência pelo número da passagem neste elenco, seguido de uma letra, quando houver mais de uma ocorrência numa passagem. As quantificações feitas sobre estas ocorrências aparecem no quadro 1, em que as ocorrências estão divididas de acordo com o tipo de inquérito em que apareceram e de acordo com o valor que apresentam. QUADRO 1
P O S Temporal T E R I O R I Nocional D A D E
680
Cronológico
D2
DID
EF
Total
–
–
9/24
9/76
37,5%
11,84%
Polifônico
–
–
–
–
Condição
26/40
8/12
8/24
42/76
65%
66,67%
33,33%
55,26%
Polidez
3/40
4/12
–
7/76
7,5%
33,33%
4/40
–
Desejo
10% Possibilidade
7/40
–
17,5%
9,21% 1/24
5/76
4,17%
6,58%
6/24
13/76
25%
17,11%
Número de Ocorrências
40/76
12/76
24/76
76/76
por tipo de inquérito
52,63%
15,79%
31,58%
100%
O valor de posterioridade temporal cronológico aparece sobretudo em trechos narrativos sobre eventos passados. Nestes casos o momento X a que a situação no futuro do pretérito é posterior está expresso no co-texto. Mas se temos este valor sem narração nem sempre o momento X está explícito mas pode ser inferido. São exemplos deste valor (13b,c,d,e), (14d,e) e (15a,b,d). Em (13b,c,d,e) a situação é posterior a “prometi”, em suas diversas ocorrências em trechos de narração passada. Em (14d,e) a posterioridade é a um momento não explícito no co-texto, mas deduzível, algo como: “depois de explicar tudo isto eu perguntaria e vocês responderiam”. Observe-se que não temos uma narração passada, mas a colocação de uma probabilidade de acontecimento. É o mesmo que acontece em (15a,b,d), onde teríamos momentos X inferíveis tais como: “depois de dizer isto você colocaria” (15a), “depois de perguntar o que estuda a sociologia do direito eu poderia perguntar também o que estuda a sociologia jurídica” (15b) e “depois de eu explicar tudo o que expliquei alguém já poderia me dizer” (15d). (13) Inf.- ........ portanto temos entre oito nove grupos... no máximo... talvez eu tenha deixado algum grupo ... de fora... contei também o número de estudantes... quarenta e um... e: eu tenho quase certeza embora não tenhamos a lista... que vocês: são... no total cinqüenta e um... quer dizer sempre tá faltando... não é? um pouco... então eu gostaria (13a) que a presença fosse... mais: compacta... melhor... prometi também que a aula de ho:je seria... (13b) alguma coisa... num é? liga:da a esse estudo que vocês fizeram... e prometi... também... prometi também... que: diria (13c) a vocês se... eu iria (13d) exigir cobrar... algo do que vocês já fizeram... e que deixaria (13e) isso para dizer hoje... pois bem... não vou pedir por escrito... (NURC/REC-EF 337 l. 11-25) (14) Inf.- ............. eu acho importante bem importante mesmo... essa complementariedade embora os sociologistas... não é o sócio os sociólogos do direito não... os sociologistas... não é? entre aspas... do direito... sendo mais radica:is então diriam (14a) não há de jeito nenhum complementariedade... a mesma coisa o filósofo do direito... diria (14b) eu não tenho na:da a ver com a dogmática jurídica... e também não: para não dizer e muito menos ... com os sociólogos do direito... e ainda... o pessoal da dogmática jurídica também... faria (14c) a mes:ma... coisa... pensando... sociologia jurídica é uma coisa filosofia é outra... NADA tem a ver... uma com a outra... então... sociologia
681
do: direito... ou sociologia jurídica... eu perguntaria (14d) agora e vocês já poderiam (14e) responder... João... existe uma diferença... entre sociologia jurídica e sociologia... do direito? (NURC/REC-EF 337 l. 142-156) (15) Inf.- mas eu mas eu coloco um pouco mais... justifique... então aí João se você justificar da maneira... como você me reponde:u... eu coloco correto... porque você disse PARA ALGUNS auto:res... ou alguns estudiosos... existe diferença... MAS:... para outros ou na minha opinião... não existe diferença... tal... motivo ou tais motivos... aí você colocaria (15a) por exemplo... que para você:... é sinônimo... ou são sinônimos... e para outros não... então... esse é um aspecto... voltando a complementariedade... o primeiro vamos dizer assim aspecto importante para entender essas três... perspectivas é isso... é notar... que quan:do... eu pergunto... o que estuda a sociologia do direito eu poderia (15b) perguntar também o que estuda a sociologia jurídica e eu estaria... (15c) fazendo a mes:ma pergunta... não importa se sociologia jurídica ou sociologia do direito... e o que estuda isso... alguém já poderia (15d) me dizer? (NURC/REC-EF 337 l. 181-196)
O valor de posterioridade temporal polifônico parece ser próprio do discurso relatado, de uma fala em que alguém vai contar algo que outrem disse, mas sem se responsabilizar pela certeza de que o discurso relatado realmente ocorreu. O momento X a que a situação no futuro do pretérito seria posterior é uma condição que justamente coloca em dúvida a validade/existência do discurso relatado: “se for verdade o que/que falou, (disse que) teria provas do envolvimento do presidente do banco neste desfalque”. (Se isto aparecesse) Em uma notícia de jornal (isto) apareceria numa forma como: “O promotor teria provas do envolvimento do presidente do banco no desfalque”. Normalmente isto ocorre porque o produtor do texto toma o discurso relatado de segunda mão e não quer se comprometer com sua validade. Mesmo no relato de fatos, se o falante põe o futuro do pretérito para marcar seu não comprometimento com a verdade do relato, é porque ele não assistiu aos fatos e está colocando-os na responsabilidade de outrem como num discurso indireto num cruzamento de construções como as de (16a,b), resultando em algo com uma condição subtendida como em (16c,d)7. (16) a – O delegado disse: João foi morto pelo irmão.
682
b – O delegado disse e se for verdade o que ele disse João teria sido morto pelo irmão. c – João teria sido morto pelo irmão segundo o delegado (se for verdade o que este disse). d – (Se for verdade o que o delegado disse) João teria sido morto pelo irmão. Em um texto como: João foi morto anteontem com três facadas. A polícia está investigando o caso. Há suspeitas de que ele (João) teria sido morto pelo irmão.
Nestes casos, a idéia de não comprometimento do falante com o que está dizendo derivaria da realização virtual que o futuro do pretérito atribui à situação, devido a sua marcação de posterioridade. Na posterioridade nocional a situação expressa pelo futuro do pretérito é posterior a um momento X (representado por outra situação ou não), mas não uma posterioridade no tempo, é uma posterioridade do tipo lógico em que temos noções tais como: causa —> conseqüência, condição —> condicionado em que a situação no futuro do pretérito é sempre a conseqüência, o condicionado e o momento X a que ela é posterior é a causa, a condição (representada por uma causa propriamente dita, um fim ou uma condição). De acordo com a forma como este tipo de momento X é apresentado temos os diferentes valores daí derivados: condição, possibilidade, polidez, cortesia, todos com as nuanças de incerteza, dúvida, probabilidade, hipótese. Estes valores é que geram os usos do futuro do pretérito habitualmente chamados de modais. Em todos os casos de posterioridade nocional do futuro do pretérito parece sempre ser possível perceber uma posterioridade temporal de base como se o valor nocional fosse uma metáfora do temporal. O valor de posterioridade nocional condição apareceu no “corpus” analisado nas seguintes ocorrências: (14 a,b,c), (15c), (17a,b,c,d,e,f,g), (18c), (19a,b,c,d), (20a,b,c,d,e,f), (21b), (22), (28b,c,d,e,f,g), (29b), (30c). Neste caso a condição a que o futuro do pretérito é posterior pode estar marcada explicitamente no co-texto como uma condição (veja 19b,c,d) ou vir no co-texto, mas não explicitamente como condição (com marca de condição) e ter que ser inferida como condição. Veja (17a,b,c,d,e,f) em que as condições formam uma verdadeira cadeia: “se houvesse aumento de vencimentos, haveria uma promoção” “se houvesse a promoção, eles passariam para o nível dois” “se passassem para o nível dois abriria mais vagas/ formariam mais ou menos mil vagas” 683
“se formasse mais ou menos mil vagas, seriam... seria o concurso para as cem vagas” “se fosse (fizesse) o concurso entraria o pessoal novo como nível um...” Como se pode observar em (17) cada situação é posterior a outra e pode-se perceber que todas em se realizando seriam cronologicamente ordenadas, mas aqui temos apenas a hipótese e a posterioridade é nocional e não temporal. Em (18c) temos o mesmo caso de condição inferida como tal: “se eu fizesse orientação educacional, eu acho que me realizaria mais”. Do mesmo modo em (20e,f) (com a tecnologia hoje por exemplo, a serviço integralmente = se usar a tecnologia que tem hoje integralmente a serviço da produção de alimentos, não teria problema nenhum, seria bem resolvido o problema) e em (21b) (“se tivesse piscina/condições, seria a natação) e muitos outros exemplos. Em (19a) (“para ser roupa de praia descontraída livre ela precisaria digamos, normalmente (ser) uma roupa leve”) e (22) (“para mostrar que não é propriamente uma ciência que se chama ciência normativa o que é que vocês diriam”) a condição nocional é dada por uma finalidade. Em (14a) (os sociólogos do direito sendo mais radicais então diriam não há de jeito nenhum complementariedade), temos a causa como momento X na posterioridade nocional. O mesmo pode-se dizer de (14b,c), embora nestas ocorrências se considerarmos a condição “se você perguntasse” (inferível da situação mas não do cotexto) teríamos um caso de posterioridade nocional de possibilidade. (17) L2- enquanto nã/não for ser resolvido esse projeto não o projeto que tem... sabe? para os procuradores uma lei... nossa uma regulamentação nossa L1- sei L2- e isso:: éh significa um aumento de vencimentos... e e:: além de que... da/ dentro do aumento de vencimentos haveria...(17a) uma promoção de todo o pessoal que está agora... L1- certo... L2- (porque) o:: pessoal que está agora começa com vinte a:: vinte bê:: e assim vai indo [ L1-
certo
L2- então todos esses... a partir de vinte a e vinte bê... que é o nível... atualmente mais baixo... tá? são os soldados rasos como a gente conta
684
L1- uhn... L2- eles passariam (17b) para nível dois... L1- certo L2- e aí aí aí então a/abri/a... abriria... (17c) mais vagas L1- certo L2- quer dizer então que nessa altura se formariam (17d) mais ou menos umas mil vagas que seriam... (17e) seria (17e) o concurso para as cem vagas que entraria (17f) o pessoal novo como nível um... L1- certo então enquanto não... L2- então é L1- for [ L2- (porque se) não tem vagas [ L1-
estruturado esse projeto
L2- não hão há possibili/não não pode ser feito concurso porque não tem vagas... L1- certo L2- do pessoal que está sendo promovido... L1- ( ) L2- por semestre que seria (17g) a promoção normal... de qualquer funcionário... ah não não há vinte vagas ainda... L1- ah:: então não tem como [ L2- então não pode ser feito um concurso... (NURC/SP-D2 360 l. 519-556)
(18) L1- .................................................................................................mas é que daí eu terei tempo disponível para fazer coisas extras [ L2-
(para)
L1- não é?
685
Doc. o que a senhora gostaria (18a) de fazer? [ L2- (o que a senhora) L1- eu... gostaria (18b) de fazer orientação educacional... sabe?... eu gosto eu leio... sobre isso e eu acho que me realizaria (18c) mais... como orientadora do que como professora quer dizer a professora ela... no fundo ela é uma orientadora... porque:: quase sempre ela É procurada pelos alunos... quando surgem os problemas não é? então... mas eu acho que um:: trabalho assim... DE gabinete.. eu gostaria (18d) mais sabe? ... então... futuramente eu pretendo... reiniciar os estudos... mas por enquanto não (NURC/SP-D2 360 l. 1232-1247) (19) Doc.a maneira de vestir na praia e a maneira de vestir na cidade. I1- praia é totalmente descontraída livre, sem fala(r) na roupa de banho, falando de praia, não de banho, claro, banho não interessa. I2- a roupa de banho, acho que ela acompanha I1- é roupa esporte I2- a evolução natural da moda I1- ela precisaria (19a) digamos, normalmente I2- (superposição) e não faz sentido que seja diferente porque I1- uma roupa leve I2- se o homem não vestisse como veste hoje, ou a mulher, se a mulher não vestisse como veste hoje, não haveria (19b), ele iria (19c) lá na, na praia e usaria por exemplo um biquini ou monoquini que é o mais agora a tanga, mais monoquini é o mais assim digamos de causa(r) sensação............... (NURC/POA-D2 291 l. 1089-1102) (20) I1- atualmente a população do mundo atualmente é na ordem de três a quatro bilhões, mais ou menos isso. I2- sim I1- bom, uma ocasião eu li um livro dum, dum especialista alemão nesse assunto, então ele prevê até o ano dois mil, claro que essa previsão sempre em
686
condições normais, não havendo uma guerra né, total ou qualque(r) coisa assim, nesse gênero, ou uma epidemia, enfim, em condições normais, então, passaria (20a) talvez até um pouco do dobro, passaria (20b) a sete e meio talvez a oito bilhões isso até, até o ano dois mil. I2- (ininteligível) I1- até o título do livro é “Corrida para o ano dois mil”, bom, se o homem tive(r) pão, tiver alimento até lá, tudo vai bem, agora então ele faz um alarde do da alimentação, e tem muitos especialistas que são, que são negativos quanto a quanto a esse ponto, então ele faz uma análise de todo o potencial que existe na, superfície, na superfície da terra daria (20c) pra alimenta(r) trinta bilhões, trinta e não oito, trinta, porque se acredita que vai estabiliza(r) esse crescimento chegando na ordem dos vinte e cinco a trinta bilhões, estabiliza não pode mais, então, aí, vai fica(r) naquilo e que teria (20d) , sem toca(r) no fundo do mar, sem tocar os oceanos, viver com o que sobra. Atualmente com o, com a, com a tecnologia hoje por exemplo, a serviço integralmente, não teria (20e) problema nenhum, seria (20f) bem resolvido o problema, mas sempre surgem outros problemas de ordem política... são as guerras... e são isso (NURC/POA-D2 291 l. 1500-1526) (21) Doc.qual é digamos assim o esporte que você:: aconselharia (21a) (ao) tipo de crianças conforme... os primeiros anos do curso primário criança do curso secundário L1- ah bom qualquer tipo de esporte é válido... viu? agora o esporte... que melhor pro organismo... por causa de todos os músculos e (tu/) é a natação... então É difícil nas escola... as criança praticarem natação porque não tem escola com piscina... raras são as escolas que tem piscina ... né?... aqui pelo menos (é o) Instituto Normal... tem piscina quando eu estudei eu já ia às aula agora... acho que só ele porque::... nem os outros não tem [ Doc.
eles não têm condições ( )
L1- não tem piscina... seria (21b) A natação o melhor exercício para a criança... ainda mais criança que tem problema respiratórios... (NURC/SSA-DID 231 p. 10)
687
(22) Inf.- ...... para mostrar: que... não é propriamente uma ciência que se chama ciência normativa... o que é que vocês diriam sobre isso? quem encontrou: uma resposta... que encontre como satisfatória... para os demais... (NURC/REC-EF 337 l. 474-478).
O valor de posterioridade nocional de possibilidade é muito próximo do valor de posterioridade nocional de condição. A diferença parece estar em que a condição que representa o momento X a que a situação no futuro do pretérito é posterior é inferida não de elementos do co-texto mas de um conhecimento de mundo e/ou da situação. Este valor aparece em (20c,b,d,e,f), (23), (24), (25), (26), (27), de que podemos destacar alguns exemplos de condições inferíveis não do co-texto: (23) “I elas intão (se falaram) já deveriam tá ó(lha) pur dentru da situação” (24) “reeducação não mas (se eu quisesse definir melhor) seria exercícios com a fonoaudióloga” (25) “mas nem seria possível (se eu quisesse)” (20c) “faz uma análise de todo o potencial que existe na, superfície, na superfície da terra (que se usado) daria pra alimenta(r) trinta bilhões” (26) “independente do que ele é... como ele deveria ser (se fosse o ideal) (27) “qual seria (se pudéssemos determinar) o motivo pelo qual eles começaram a pintar ou a esculpir estas formas” (23) L - ... intão, a Tereza falô assim: “é u Vanderlei, né?” Eu dis(se) qui é. Aí, “eu vi eli quinta-feira conversandu c’uma minina lá na floricultura”, né? Mais eu num liguei. E - I elas intão já deveriam tá ó(lha) pur dentru da situação! L - Não. Num tavam. (NURC/SP-D2 59 p. 1 l. 30-35) (24) L2- ...................... depois eh:: terça e quinta... a menina faz fonoaudiologia porque ela está com três anos e pouco... e ainda não fala... fala muito pouco... então ela faz... reeduca/... reeducação não mas seria... exercícios... com a fonoaudióloga para ver se::... se começa a falar mais rapidamente... (NURC/SP-D2 360 l. 103-108)
688
(25) L1- mas::... trabalhava al/no albergue noturno... L2- ahn L1- eh como assistente social sabe? embora não... [ L2-
sei
L1- não tivesse curso L2- uhn L1- mas::... fazia o atendimento do pessoal... encaminha::va... e::... depois então eu tive que deixar... fui obrigada a deixar dada a dificuldades... em casa [ L2- mas nem:: seria possível [ L1-
não
L2- né? ( ) [ L1- de jeito nenhum e quando eles são pequenos [ L2-
ahn
L1- mais dificuldades a gente tem para... pessoal... para servir né? (NURC/SP-D2 360 l. 431-446) (26) Inf.- .............. e finalmente... a terceira perspectiva... a filosófica... ou como nós colocamos... filosofia do direito... o que estuda?... estuda o fenômeno jurídico... a-pro-fundan: do... a partir... dos conhecimentos... científicos... ou da própria dogmática... do direito... esse fenômeno/... então novamente... a filosofia do direito... é nada mais do que... um tipo de estudo... um conhecimento... que aprofun:da mais: aqueles outros DOIS... seja um conhecimento num é sociológico... ou conhecimento... normativo... lógico-normativo... vamos dizer que o conhecimento... da filosofia do direito num é? sobre o fenômeno jurídico... ele transcen:de... à pesquisa... isso significa... daí não haver o rigor no estudo... ele vai além: de... ele diz como o comportamento deve ser... independente do que ele é.. como ele deveria ser... vocês realmente estão percebendo gente? tão compreendendo mesmo? (NURC/REC-EF 337 l. 434-450)
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(27) Inf.- ... bom... então primeiro em nível de tema... a seguir... qual seRIA... o motivo pelo qual... eles::... começaram a pintar ou a esculpir... estas formas... ((vozes)) (NURC/SP-EF 405 l. 150-153)
O valor de posterioridade nocional de polidez aparece em (18a), (21a), (28a), (29a), (30a,b) e (31) em que temos perguntas polidas do documentador que não obrigam à resposta ou pedidos, solicitações e que têm condições pressupostas tais como “se posso perguntar........”, “se eu pudesse saber gostaria que me dissesse”, “se eu lhe perguntasse”, “se eu lhe pedisse” ou algo parecido. A condição pressuposta aparece pelo uso do futuro do pretérito e este uso teria a função de preservar as faces na interação conversacional. (28) Doc.- Você falou em:: carreira... boa para a mulher né? L2- ahn ahn Doc.- que tipo de carreira... fora de casa... seriam (28a) digamos conveniente... L2- olha ah o ti/ o ti/ ah o especificamente o tipo de carreira ah eu acho que isso seria (28b) qual/ qualquer uma ( ) quer dizer:: o o:: lado... de ciências mais human/ ah de o lado humano o ou de::... ciências exatas como chamava-se no MEU tem::po ((risos)) [ L1- ( ) L2- né? quer dizer eu acho que isso in/independeria (28c) da da... variaria (28d) de acordo com a com a::... com o dom de cada pessoa com o interesse de cada pessoa né? mas eu acho o problema PAra... a mulher... dona de casa a mulher-mãe a mulher-esposa... é o problema de horários de adaptar a carreira... com... a a:: [ L1-
a casa
L2- com a casa com a administração da casa [ L1-
do lar
L2- principalmente com o:: fato de ser mãe e aí a coisa complica muito... então tem carreiras que seriam (28e) brilhantíssimas para a mulher que seriam
690
(28f) lindas... ma/mas aí de um dos lados teria (28g) que sofrer... quer dizer ou a mulher [ L1-
( )
L2- se dedica... inteiramente à carreira e aí... co/com prejuízo... dela como mãe como dona de casa... ou então ela se dedica exclusivamente... à dona de casa e à mãe e aí com prejuízo da carreira... quer dizer então eu acho uma carreira BOa para mulher nessas condições a carreira que a gente pode::... resolver todos os problemas... sem:: prejudicar nenhuma parte... não é? (NURC/SP-D2 360 l. 646-677). (29) Doc. –
qual seria (29a) a tradução direta desse head hunter?
L2- éh éh... seria (29b) um contato direto... éh e/eles telefonam... falam:: com a pessoa... através de uma mensagem... que que de modo nenhum pode ser identificada porque que começa com a pessoa pode estar muitíssimo bem no lugar que está e de maneira nenhuma pensando em sair... então... o telefonema de alguém ah:: intermediário de um concorrente pode complicar a situação DA pessoa naquela empresa... (NURC/SP-D2 360 l. 1043-1051)
(30) Doc.agora... por exemplo assim nas escolas onde há::... éh::... uma parte assim artística com a (aula) de cultura qual que seria (30a) o material? ... que levaria (30b) ahn? L1- bom prá aula de música a::acredito que não precisa material né? .......................................................................................................... ... mas a escola eu acho que não tem escola nenhuma que faça esse... esse tipo de ensinamento SÓ na universidade... mas ginásio primeiro grau e segundo Doc. ( ) escolinha de arte ( ) [ L1- sim esse tipo de escola à parte né?... mas no currículo... escolar... quer dizer seria... (30c) [ Doc.fazem parte [
691
L1-
hein?
Doc.nessa escolinha fazendo parte do currículo. (NURC/SSA-DID 231 p. 12 e 13) (31) Loc. ............................................................................................ a alimentação de outros estados é bem diferente daqui do Rio... sabe? Doc.[ você foi ao sul... ao norte? como é que você compararia? ( ) Loc. [ é... a do sul é mais parecida com a da/ a nossa... (NURC/RJ-DID 328 l. 111-116)
O valor de posterioridade nocional de desejo aparece em (13a), (18b,d), (32), (33), que têm condições pressupostas tais como “se fosse possível”, “se eu pudesse”. Este uso é próprio de textos injuntivos. (32) L2- ( ) realmente deve ser uma delícia ter uma família gran/ bem grande com bastante gente... eu sou filha única... ah tenho um irmão de treze anos... mas gostaria deMAIS de ter tido... mais irmãos... porque quando::... com meu irmão eu já:: já tinha curso universitário já já tinha saído da faculdade quer dizer então não tem quase que vantagem nenhuma não é? (NURC/SP-D2 360 l. 63-69) (33) L2- ........................................................................ eu pelo menos desisti não se toca mais no assunto... mas realmente então está encerrado mas gostaríamos demais de mais filhos... embora eu fique quase biruta... ((risos)) (NURC/SP-D2 360 l. 90-93)
De todos estes valores o mais concreto, no sentido de ter uma relação direta com o mundo real, é o temporal cronológico porque ele corresponde à seqüência das situações no tempo do mundo real. Pelo que se pode observar no quadro 1, as quantificações ali registradas não permitem fazer nenhuma descoberta interessante sobre a distribuição dos diferentes usos e valores do futuro do pretérito pelos diferentes tipos de inquérito, mesmo no que diz respeito a sua distribuição em diálogos (D2 e DID) e 692
monólogos (EF). Pode-se todavia observar que os valores do futuro do pretérito ligados à “posterioridade nocional” (88,16%) são muito mais freqüentes que os valores ligados à “posterioridade temporal” (11,84%). Contudo não se pode afirmar que isto seja uma tendência da língua falada (e mesmo da língua em geral), porque, como vimos, os valores ligados à posterioridade temporal (seja no uso cronológico, seja no uso temporal) tendem mais a ocorrer em textos narrativos passados e os trechos desse tipo textual no “corpus” analisado se reduz a umas poucas pequenas passagens, uma vez que os inquéritos do NURC que compõem o “corpus” mínimo do Projeto de Gramática do Português Falado são basicamente dissertativos. É preciso registrar este fato, embora seja esperável que a tendência se confirme, mesmo se tomarmos um “corpus” equilibrado em termos da quantidade de textos dos tipos básicos para a composição de textos (descrição, dissertação, injunção, narração), pois não são muitas as circunstâncias em que o falante precisa fazer um uso polifônico do futuro do pretérito ou um uso com o valor de posterioridade temporal cronológica para indicar um fato passado que se realizou posteriormente a outro fato também passado. Mas isto é uma hipótese a confirmar através de um estudo como o que acabamos de sugerir. Um outro fato digno de nota nas quantificações feitas diz respeito à evidente predominância do uso do futuro do pretérito com o valor de “posterioridade nocional de condição” com mais da metade das ocorrências (55,26%) e se, como sugerimos na conclusão, juntarmos a ele as ocorrências com valor de “posterioridade nocional de possibilidade”(17,11%) teremos um total de 72,37% das ocorrências com este valor, ou seja, praticamente dois terços das ocorrências de futuro do pretérito. Esta parece ser não só uma tendência da língua oral, mas também da língua escrita e, como a primeira hipótese sobre a “posterioridade nocional” como um todo, algo a se confirmar através do mesmo estudo. Assim teríamos a seguinte escala decrescente de freqüência para o uso dos valores do futuro do pretérito: (34) posterioridade nocional de condição e possibilidade > posterioridade nocional de polidez e desejo > posterioridade temporal cronológica e polifônica.
Diante do exposto, poder-se-ia questionar, tendo em vista o quadro de valores do futuro do pretérito, se, na verdade, não se teria duas formas verbais em vez de uma: o futuro do pretérito (que corresponderia ao valor temporal) e o condicional (que corresponderia ao valor nocional). Este segundo freqüentemente abordado como valores modais do primeiro. Se não tivéssemos o valor básico de posterioridade unindo todas as formas, prevaleceria a segunda hipó693
tese (a da existência de duas formas no Português). Todavia, como se tem o valor de posterioridade como fundamental e capaz de explicar todos os valores com que a forma chamada “futuro do pretérito” aparece em seus usos, parece que este fato é argumento bastante forte para sustentar e recomendar a opção pela primeira hipótese: a de que se tem apenas uma forma com um valor básico (posterioridade) do qual derivam todos os valores com que a forma aparece em seu uso nos textos da língua. Esta hipótese é preferível, portanto, por ser mais generalizante e ter maior poder explicativo.
3. Conclusão Como se viu não é conveniente descrever o futuro do pretérito como uma forma verbal que marca futuro em relação a um momento do passado como habitualmente se tem feito, dizendo que este é seu valor temporal e que os demais usos são usos modais. Tal caracterização só é válida para o valor de posterioridade temporal cronológica em narrações passadas. Na verdade o futuro do pretérito marca posterioridade em relação a um momento do passado, do presente ou do futuro (o momento de que se fala, seja ele representado por outra situação ou por uma marcação qualquer de um momento). Essa posterioridade só é concreta e temporal em casos de narrações de fatos passados. Nos demais casos a posterioridade é mais ou menos “abstrata”, “metafórica”, “lógica” noções a que quisemos fugir devido ao seu comprometimento, o que buscamos fazer chamando essa posterioridade de nocional, sempre na base da relação “condição —> condicionado” em que a primeira precede a segunda em termos de realização: a condição precisa existir primeiro para “depois” surgir o condicionado. Isto pode ser mais ou menos próximo do temporal o que levou Martin e Net (1981) a proporem a escala: condicional temporal > condicional modal > condicional hipotético (cf. esquema em 2.2), numa alusão ao fato de que há usos do futuro do pretérito que são mais ou menos próximos da seqüência cronológica do mundo real. Nos textos narrativos em que as seqüências cronológicas de situações (ações) são a essência mesma do texto a posterioridade temporal cronológica tem mais chance de surgir. Nos demais tipos de textos prevalece a seqüência do tipo nocional por diferentes razões. Assim, na dissertação e descrição cuja essência é a simultaneidade cronológica das situações8, o que prevalece é a seqüência lógica/nocional do tipo “condição —> condicionado”, que, dependendo de como a condição é apresentada, gera diferentes valores (condição, possibilidade, cortesia, desejo). Por ser marcador de posterioridade e atribuir sempre realização virtual à situação que 694
expressa em relação ao momento X (momento de que se fala, momento de referência) o futuro do pretérito gera complementarmente os valores de incerteza, hipótese, dúvida, probabilidade (e daí também o de não comprometimento no uso polifônico), sobretudo fora das narrações passadas (em que as situações, embora virtuais em relação ao momento X, são realizadas e reais no momento da fala). Talvez seja possível reduzir os valores nocionais a apenas dois. Para isto juntar-se-iam num só caso: a) por um lado valores de condição e possibilidade que parecem se distinguir tão somente pelo fato de a condição aparecer explicitamente no cotexto como condição ou ser inferível a partir do co-texto (condição) ou ser inferível da situação ou do conhecimento de mundo (possibilidade); b) por outro lado valores de polidez e desejo, ambos com condição pressuposta, e distinguindo-se tão somente por ser a expressão de uma solicitação (polidez) ou de uma vontade (desejo). Pode-se inclusive argumentar que neste segundo caso tem-se uma vontade expressa de modo polido em oposição ao presente do indicativo em que o desejo é mais imposto diante do interlocutor e, além disso, em muitos casos, é difícil distinguir se temos uma solicitação polida ou um desejo (como nas perguntas do documentador que elencamos como casos de polidez). Confronte (35a) com (35b) para a solicitação e (35c) e (35d) para o desejo. (35) a – Você me empresta seu livro? b – Você me emprestaria seu livro? c – Quero ir ao cinema. d – Gostaria de ir ao cinema.
De tudo isto parece se poder dizer que o futuro do pretérito tem como valor básico a marcação de posterioridade, derivando daí todos os usos particulares, com os diversos valores e nuanças que têm sido levantados nas análises de ocorrências. Esta, sem dúvida, é uma generalização altamente desejável para a descrição do funcionamento do verbo no Português não só na modalidade falada, mas também na escrita. Ou é (seria) preferível dizer (para não se comprometer/se se desejar não se comprometer): (Se se confirmar a análise aqui proposta) esta seria uma generalização altamente desejável para a descrição do funcionamento do verbo no Português não só na língua falada, mas também na língua escrita. 695
Também, como vimos, a relação dos usos e valores do futuro do pretérito com tipos textuais se dá muito menos com tipos tais como diálogo/monólogo e muito mais com tipos como descrição/dissertação/injunção/narração. Uberlândia, novembro de 1995.
NOTAS 1
Este inquérito é constituído por uma gravação secreta e foi gentilmente cedido a nós pelo professor Dino Preti. A transcrição que recebemos deste inquérito (SP-59) é diferente dos inquéritos do NURC, publicados em São Paulo, pois o transcritor buscou registrar certos fatos fonéticos. Respeitamos a transcrição feita.
2
Estamos empregando o termo situação para referir todos os tipos de processos que podem ser indicados pelo verbo e seus complementos: ações, fatos, fenômenos, estados etc.
3
Segundo Said Ali (1964: 165) se na asserção condicionada nos referimos “a um fato cuja realização esperamos ou, pelo menos, não julgamos impossível, empregamos o futuro do presente”.
4
Na definição de Corôa (1985: 42) estes três momentos são: a) “Momento do Evento (ME): é o momento em que se dá o evento (processo ou ação) descrito; é o tempo da predicação.”; b) “Momento da Fala (MF): é o momento da realização da fala; momento em que se faz a enunciação sobre o evento (processo ou ação); é o tempo da comunicação.”; c) “Momento de Referência (MR): é o tempo da referência; o sistema temporal fixo com respeito ao qual se define simultaneidade e anterioridade; é a perspectiva do tempo relevante, que o falante transmite ao ouvinte, para a contemplação do ME.”
5
Martin, R. e Nef, F. (1981). “Le futur linguistique: temps linéaire ou temps ramifié?” in Langages, Le temps gramatical, dec. 1981:81-92.
6
Cf. Travaglia (1991:173-174).
7
Este exemplo (16) não é do “corpus” citado, mas foi construído pelo autor para mostrar os fatos em foco.
8
Cf. Travaglia (1991).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECHARA, Evanildo (1968) Moderna gramática portuguesa. São Paulo, Nacional. 696
CALLOU, Dinah Maria Isensee e LOPES, Célia Regina (orgs.) (1993) A linguagem falada culta na cidade do Rio de Janeiro – Vol. II: Diálogo entre informante e documentador. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras/UFRJ. CASTILHO, Ataliba Teixeira de e PRETI, Dino (orgs.) (1986). A linguagem falada culta na cidade de São Paulo – Vol. I: Elocuções formais. São Paulo, T.A. Queiroz Editor. ________. (1987) A linguagem falada culta na cidade de São Paulo – Vol. II: Diálogos entre dois informantes. São Paulo, T.A. Queiroz Editor/FAPESP. CORÔA, Maria Luiza Monteiro Sales (1985). O tempo nos verbos do Português: uma introdução à sua interpretação semântica. Brasília, Thesaurus. CUNHA, Celso (1972) Gramática do Português contemporâneo. Belo Horizonte, Bernardo Álvares. SAID ALI, M. (1964) Gramática secundária da Língua Portuguesa. São Paulo, Melhoramentos. TRAVAGLIA, Luiz Carlos (1991) Um estudo textual-discursivo do verbo no Português do Brasil. Campinas, Tese de doutorado – UNICAMP/IEL.
697
PARTE VI GRUPO DE FONÉTICA E FONOLOGIA
A SÍLABA E SEUS CONSTITUINTES Leda Bisol (PUC-RS/UFRGS)
Este estudo examina as sílabas do português brasileiro à luz da teoria métrica, firmando-se na linha dos que defendem a idéia de que a sílaba possui uma estrutura interna de constituintes. Essa é uma questão amplamente discutida na Literatura. Há, de um lado, o modelo métrico com a hipótese da estrutura hierarquizada, por árvore representável, com defensores como Kiparsky (1979), Selkirk (1982), Harris (1983), que tem raízes, como afirma Kenstowicz (1994), em Pike and Pike (1947), Pike (1967) e Kurilowicz (1948), e cujos argumentos fundamentam a análise que segue. Há, por outro lado, o modelo CV, que limita a três camadas a constituição da sílaba: a mais subjacente, formada de um só elemento, representado por (s), significando a sílaba como entidade abstrata; a camada intermediária, de dois elementos constituída, C e V ou simplesmente X, indicativos da posição do elemento silábico na linha temporal; e a terceira, a dos segmentos especificados em traços fonéticos. Tem origens em Kahn (1976), passa por Clements & Keyser (1985) e aprimora-se com Itô (1986). Há propostas dessas derivadas como a de Levin (1985) e a de Noske (1981), ambas firmadas na teoria dos princípios e parâmetros, mas essencialmente diferenciadas uma de outra, ou a de Milliken (1988) com ênfase no perfil de sonoridade da palavra. Existe, ainda, a abordagem mórica (Hayes, 1991), que ignora os constituintes tradicionais, capitulando a relevância da mora na teoria fonológica.
1. Os constituintes É importante reconhecer que a sílaba ocupa uma posição fixa na hierarquia prosódica, pois ela é um elemento fundamental na fonologia das línguas como domínio de muitas regras ou processos fonológicos. É tida como a estrutura basilar (Nespor & Vogel, 1982).1
(1) Hierarquia Prosódica
Φ
Frase fonológica
ϖ
ϖ
5 σ
5 σ
σ
Palavra fonológica
5 σ
σ
5 σ
σ
Pé σ
Sílaba
A idéia de que as entidades fonológicas estejam organizadas em constituintes, valores tradicionalmente conhecidos na sintaxe, vem fundamentando, sobretudo, as análises que dizem respeito à sílaba e ao acento, desde a introdução das representações não-lineares na fonologia gerativa. Tradicionalmente, os constituintes silábicos são conhecidos por ataque e rima, o segundo dos quais domina um núcleo e, opcionalmente, uma coda, como (2) expressa. Em outros termos, a sílaba possui necessariamente um núcleo, sua essência, que, seguido ou não por coda, forma a rima; essa vem precedida pelo ataque que, em português, não é obrigatório. (2)
Sílaba
(Ataque)
(=σ)
Rima N
(C)
V
(Cd) (C)
Essa estrutura gera o inventário básico {CV, VC, V, CVC}, com que se descreve grande parte das línguas do mundo. Estruturas mais complexas como {CCV, VCC, CCVCC} são dele derivadas. O núcleo é identificado por meio do Princípio de Sonoridade Seqüencial (PSS) que, na base de uma escala, assinala os picos de sonoridade de uma cadeia de sons, picos que funcionam como cabeças de sílaba. Na maioria das línguas, somente vogais são picos silábicos. Outras admitem soantes também 702
e ainda há os casos especiais, como o Berber, em que qualquer consoante pode ser centro silábico (cf. Prince & Smolenski, 1993). Por conseguinte o primeiro passo na construção de uma sílaba é a identificação do pico que, em nossa análise, toma o nome de núcleo (N). Esse projeta a rima e a rima projeta a sílaba.2 Em português, somente vogais funcionam como núcleos. Todas as vogais de uma seqüência são, no primeiro momento, picos silábicos, ou seja, núcleos de sílaba. E, porque o português não tem vogais longas, a seqüência VV, inicialmente, é sempre dissilábica. Glides são derivados de vogais altas por silabação, como mais adiante veremos. Estrutura silábica e silabificação andam juntas, mas podem ser entendidas como instruções diferentes. A primeira é uma teoria sobre a sílaba, em forma de árvore, que diz respeito aos princípios gerais de composição da sílaba básica (PCSB). Figura no léxico profundo, representando o conhecimento que o indivíduo tem da estrutura silábica de sua língua, um saber que vai emergindo à medida que a capacidade da linguagem se desenvolve. A segunda é o mapeamento de uma cadeia de sons ao molde canônico, depreendido de PCSB, para fins de análise. Estamos, pois, considerando, seguindo Selkirk (1982), que as regras de composição da sílaba básica são, na verdade, princípios expressáveis por meio de uma árvore de ramificação binária, os quais, em se tratando do português, geram o padrão canônico CCVC (C), em que C parentético é o resultado de uma regra particular. (3) Princípios de Composição da Sílaba Básica (PCSB)
σ
(A)
(C)
R
(C) [+soa] [-nas]
N
(Cd)
V
(C) [+soa] ou /S/
703
De (3) advêm as seguintes informações: i. A sílaba do português tem estrutura binária, representada pelos constituintes ataque e rima, dos quais apenas a rima é obrigatória. ii. A rima também tem estrutura binária, núcleo e coda. O núcleo é sempre uma vogal, e a coda é uma soante ou /S/. iii. O ataque compreende ao máximo dois segmentos, o segundo dos quais é uma soante não-nasal.
A distinção entre rimas simples e complexas, que a ramificação de R em (3) representa, é de suma relevância para a descrição do acento em sistemas sensíveis ao peso da sílaba, como o português e outras muitas línguas (cf. Halle & Vergnaud, 1987 e Hayes, 1991). Também certas regras precisam referir-se aos constituintes silábicos ou a limites com eles relacionados, como a vocalização da lateral que ocorre somente em posição de coda (maL ~maw), e as variantes da vibrante que, nessa posição, se manifestam com mais prodigalidade. E para dar conta da estrutura derivada CCVCC, que inclui o C parentético, uma regra adicional se faz presente: (4) Regra de adjunção de /S/ (RAS)
Acrescente /S/ à rima bem formada. Tal regra existe em função de um pequeno conjunto de palavras: fausto, monstro, austral, claustro, auspícios, auscultar, austero, solstício, interstício, perspectiva e poucas mais. Fazem parte das formas, tradicionalmente ditas novas ou reconstruídas por via erudita (leitura ou escrita), que entraram no português nos séculos XIV e XV quando, segundo Nunes (1930:15), o português passou a tomar duas feições: a popular e a literária. Vale observar que esta segunda posição é somente ocupada por /S/, que sempre sucede à rima bem formada, plenamente preenchida, portanto VC, como au, er, ou ol: aus(tral); (in)ters(tício) ou sols(tício). Por conseguinte, palavras como claustro e perspectiva apresentam, inicialmente, uma rima VC, que permite ser aumentada para VCC: 704
(5)
σ
PCSB O C c
σ
RAS R
C V l a
O C u
(stro)
C c
R C l
V C C a u s
(tro)
É interessante observar que palavras como perspectiva tendem a manifestar-se como pespectiva, com o deslocamento de S para a primeira posição da coda, ajustando-se ao padrão básico, representado por (3), enquanto as que ao /S/ precede ditongo, exemplificadas por claustro, se mantêm inalteráveis. Se o padrão derivado começa a balancear, é possível que RAS venha a sofrer alterações. Os dados do NURC, Projeto da Norma Culta, documentam casos de perda dessa estrutura: (6)
Há três pespectivas que vocês leram de novo... EF-RE-337:117 ...através de uma pespectiva chamada... EF-RF-337:123
Admitimos que PCSB, com seu padrão derivado, participem de todo o processo derivacional, funcionando como condição de boa formação. Isso significa que as sílabas se organizam de acordo com princípios gerais, de modo que uma representação fonológica subjacente é bem formada se não for diferente do padrão canônico. Por isso distinguimos PCSB e silabificação, entendida essa como escansão dos segmentos de uma cadeia de sons, de acordo com o padrão canônico. A silabificação procede da seguinte forma: primeiramente núcleos são identificados via escala de sonoridade. (7) Identificação de núcleo
N
N
N
N
bi
ci
cle
ta 705
Assim que o núcleo for identificado, a rima é projetada e, conseqüentemente, a sílaba, sua projeção máxima: (8) Projeção do núcleo
σ
σ
σ
σ
R
R
R
R
N
N
N
N
bi
ci
cle
ta
Então (σ), de acordo com o padrão canônico, ramifica para a esquerda, mapeando a consoante adjacente mais próxima, para formar o padrão universal CV: (9) Formação do ataque σ A
R
σ A
N b
i
A
R N
c
i
σ
σ R
A
N c
l
e
R N
t
a
O mapeamento à esquerda prossegue se mais consoantes houver, organizando-se o ataque complexo como em (10), de acordo com Princípio da Maximização do Ataque (Selkirk, 1982:359) ou “Onset First Principle” de Clements and Keyser (1983:37), atendendo também ao princípio universal de Sonoridade Seqüencial (Ver 2.1). (10) Formação do ataque complexo
σ A bici
c
R l e ta
Só então a coda se constitui por anexação à rima das consoantes adjacentes, ainda não silabificadas. Na palavra borda, por exemplo, a adjunção de 706
C à direita da primeira Rima, posição a ser ocupada por /r/, cria uma rima complexa, depois da composição dos ataques da palavra toda. (11) Expansão da rima
σ A
R
b o r
σ A
R
d
a
Os Princípios de Composição da Sílaba Básica, expressos em (3) com (4) acrescido, não são suficientes para gerar expressões bem-formadas. Geram, ao contrário, mais do que a língua suporta. Princípios universais e princípios de língua particular desempenham papéis relevantes. Os últimos tomam a forma de restrições positivas ou negativas. Comecemos pelos primeiros.
2. Princípios universais Os princípios universais constituem o seguinte conjunto: Princípio de Sonoridade Seqüencial (PSS), Princípio da Maximização do Ataque (PMA), que inclui o padrão universal CV, Princípio do Licenciamento Prosódico (PLP) e Princípio da Integridade Prosódica (PIP).
2.1 Princípio de Sonoridade Seqüencial (PSS) Uma visão fonética da sílaba em que picos de silabicidade coincidem com picos de sonoridade, presente na Literatura desde tempos muito antigos, hoje vem sendo referido como Princípio de Sonoridade Seqüencial. Pressupõe um contorno de sonoridade para a sílaba, em termos de sonoridade crescente no ataque e decrescente na coda. Platôs (sonoridade plana) ficam restringidos ao contorno, isto é, somente ocorrem entre sílabas. (12) a. Seqüenciamento de Sonoridade
b. Platô (entre sílabas)
far.
do
p a s .t a
par.
tir
c a r. r o 3
707
A sílaba, por conseguinte, contém instantes de maior ou menor sonoridade, que são mensuráveis através de uma escala, cujos detalhes de escansão oferecem algumas variantes. Valemo-nos da escala de Clements (1989), em que vocóide, aproximante e soante constituem os elementos básicos para a definição de sonoridade. (13) Escala de Sonoridade Obstruinte
Nasal
Líquida
i
e/E
a
–
–
+
Aberto 1
–
+
+
Aberto 2
–
–
–
+
+
+
Vocóide
–
-
+
+
+
+
Aproximante
–
+
+
+
+
+
Soante
0
1
2
3
4
5
A sonoridade fica, pois, definida como propriedade dos sons decorrente dos traços binários das classes maiores. E vale observar que, quanto maior o número de valores positivos nesta distribuição escalar, maior a perceptibilidade do som. Perceptibilidade é uma característica da sonoridade (Clements, 1990). Como nesta escala existe uma regra de implicação do tipo aberto 1 implica aberto 2, que implica vocóide, que implica aproximante, que implica soante, a vogal média, aberta, que pressupõe, para sua definição, a presença de aberto 3, fica com o mesmo grau de sonoridade da média fechada (cf. op. cit). Entendendo-se por silabificação o processo de mapear uma seqüência de segmentos ao molde silábico da língua, o segmento, candidato a uma determinada posição, tem de atender à hierarquia de sonoridade crescente em direção ao pico e decrescente a partir dele. Então, porque platô não é admitido em sílaba do português, a cadeia de dois elementos com o mesmo grau de sonoridade que se observa em aptidão, por exemplo, não pode ser escandida como *a.pti.dão, pois formaria um platô, proibido no interior de sílaba. A escala desenha curvas de soância como se observa nos exemplos abaixo. É isso que (15) reflete.
708
(14) a. a
Escala Vogal
5
vogal alta
3
líquidas
2
nasais
1
obstruintes 0
t r i z
p a r
l
l l l
l
l
l
l
(15) Princípio de Sonoridade Seqüencial (PSS)
Entre qualquer membro de uma sílaba e o pico silábico, a sonoridade é crescente.
2.2 Princípio de Preservação de Estrutura (PPE) A silabação é um processo contínuo, segundo Selkirk (1982), Halle & Vergnaud (1978), Mac Carthy (1979), Clements & Keyser (1983), Itô (1986). Isso significa que a silabificação4 está disponível em todos os estratos lexicais e em todos os níveis. No léxico, atua na derivação e na flexão, incorporando na escala da hierarquia prosódica segmentos livres. No pós-léxico, como ressilabação, reestrutura prosodicamente segmentos já silabificados ou silabifica elementos licenciados por extraprosodicidade. De acordo com o modelo da Fonologia Lexical, regras lexicais devem atender ao Princípio do Ciclo Estrito e ao da Preservação de Estrutura. O primeiro exige que tais regras somente se apliquem em cadeias derivadas, ou seja, sobre o resultado da aplicação de uma regra de formação de palavra ou sobre o resultado de uma regra fonológica. No entanto, a silabação, assim como o acento, por serem alimentadores de regras cíclicas, segundo Kyparsky (1985) e Kaisse & Shaw (1985), podem aplicar-se diretamente, sem a intervenção de regra morfológica. Isso ocorre, porque são regras que constroem estruturas e o Ciclo Estrito atinge somente regras que mudam estruturas. O Princípio de Preservação de Estrutura (Kiparsky, 1982) assegura que todas as condições lexicais, inclusive as de estrutura silábica, estão garantidas durante todo o processo cíclico. Isso significa que fica proibido no léxico criar estruturas silábicas novas, ou seja, não admitidas pelos princípios de composição da sílaba básica (PCSB). 709
O Princípio de Preservação de Estrutura, por exemplo, proíbe vogais nasais no processo derivacional, lexical, pois não existem no sistema subjacente, uma vez que o contraste fonológico se estabelece entre uma vogal seguida de um segmento nasal e a vogal oral (VN x V), como em canto versus cato ou senda versus seda. Então, uma sílaba com vogal nasal será, no sistema interno, necessariamente VN, isto é, uma estrutura de ligação dupla. Em outros termos, uma vogal nasal com uma só linha de associação é vedada, mas uma vogal nasal, com dupla associação, o sistema prevê: (16)
/k a N t o/
mas não
[N] (canto)
*/k a t o/ [N] (canto)
Sílabas que extrapolam o padrão canônico pelo número de seus componentes ou que seriam proibidas pela Condição de Coda são produtos póslexicais, como, por exemplo, as sílabas assinaladas em (17), resultantes de uma regra de apagamento de vogal, que opera quando esse princípio já está desativado. Em outros termos, são o resultado de uma regra fonética: (17) dentes > dents,
parentes > parents, medicina > medsina
Tais seqüências seriam bloqueadas no léxico pelos princípios de Composição da Sílaba Básica (PCSB), que não reconhecem essas africadas, mas são liberadas no pós-léxico. (18) ...e daí eu fiz vestibular pra me[dsi]na... e cursei a faculdade de me[dsi]na... •
•
(DID-SA 231:32)
Dados como esses argumentam em favor da seguinte pressuposição, amplamente documentada por fatos de diferentes línguas: (19) O Princípio de Preservação de Estrutura está desativado no pós-léxico.
Isso significa que regras variáveis, que delineiam diferenças dialetais, geográficas ou sociais, ou que possam estar apontando para o começo de uma história de mudança, e que, por tais razões, fogem ao padrão canônico, são 710
regras pós-lexicais. A língua é um ser vivo e, como tal, em estado de mudança, sinalizado por variações que ocupam um espaço no sistema. A Fonologia Lexical reserva-lhes o pós-léxico. Nesse ponto, vale fazer a seguinte observação, que se apóia em Kiparsky (1985), Kaisse and Shaw (1985) e Itô (1986): porque a silabação e a dessilabação aplicam-se continuamente no decorrer da derivação e a ressilabação somente no pós-léxico, resultados diferentes de uma e outra são esperados, uma vez que muitos princípios lexicais não atingem o pós-léxico. O Princípio da Preservação da Estrutura é lexical, embora haja estudos mostrando que pode ser desativado em níveis menos profundos do Léxico (Borowsky, 1990). São lexicais também os Princípios de Sonoridade e Licenciamento Prosódico. O Princípio da Integridade Prosódica, também lexical, fica restringido ao nível da palavra pronta, como mais adiante veremos. No Pós-léxico, o Princípio de Sonoridade Seqüencial mostra-se enfraquecido e os demais inoperantes. Apenas o Licenciamento Prosódico mantém-se sempre ativo.
2.3 Princípio da Maximização do Ataque (PMA) Línguas que maximizam o ataque, como as línguas romanas, entre as quais o português, desenvolvem-no primeiramente, deixando a formação da coda por último.5 Isso significa que a formação de todos os ataques de uma cadeia de segmentos tem prioridade sobre a expansão das rimas. O PMA também inclui como universal que a seqüência CV seja sempre tautossilábica. (20) Princípio da Maximização do Ataque (PMA) Na atribuição da estrutura silábica de uma cadeia de segmentos, os ataques são maximizados em conformidade com os princípios de composição da sílaba básica da língua (Selkirk, 1982: 359).
Exemplifiquemos com a palavra fragrância:
711
(21) a.
b.
c.
graN σ
fra σ
si σ
a σ
C
V
C
V
C
V
V
r
a
r
a
s
i
a
σ
σ
CC V
CC V
f r a
g r a σ CC V C
> fra.graN.si.a
g r a N
Como dissemos, inicialmente, a silabação é um processo de mapeamento que tem como ponto inicial a identificação dos núcleos, em seguida o mapeamento iterativo do ataque, e só por fim o da coda.6 O Princípio de Maximização do Ataque, além de ser controlado por PSS, é também controlado por uma condição de língua particular, a Condição do Ataque, assim como a rima é controlada pela Condição da Rima, como mais adiante veremos. Esse princípio garante que a cadeia VCV seja sempre escandida como V.CV e não *VC.V. Por conseguinte, uma cadeia de sons como ala será escandida como /a.la/ e não */al.a/, ainda que ambas não firam o Princípio de Sonoridade referido. Enfim, o fato de CV constituir um padrão universal enquanto VC é para muitas línguas uma estrutura marcada tem direta relação com Maximização do Ataque que, como condição de boa-formação da sílaba básica, tem sido respeitado em muitas análises (cf. Selkirk, 1982:358).
2.4 Princípio do Licenciamento Prosódico Esse princípio diz respeito à silabação exaustiva e foi formalizado por Itô (1986) em termos de Licenciamento Prosódico, independentemente motivado, e 712
em termos de Silabação Máxima por Mascaró (1989:3). Segundo Mascaró, todo segmento deve ser silabado, respeitando os princípios universais e particulares, ainda que por meio de posições vazias, a serem preenchidas por “default” ou expansão de traços. E, segundo Itô, todo segmento que não for silabado ou licenciado por extraprosodicidade é apagado ainda no nível lexical. A idéia de que material fonológico não-associado deva ser apagado está presente em toda a literatura não-linear, estabelecendo-se como uma restrição geral da representação fonológica (cf. Harris, 1983). O desenvolvimento da fonologia prosódica impôs uma hierarquia na organização do material fonológico, já mencionada, que pressupõe um escalonamento: segmento < sílaba < pé < palavra, etc. É o material sem status prosódico, isto é, não-associado, que será alcançado pela regra de apagamento supracitada. Há, segundo Itô, dois meios de o segmento alcançar status prosódico: associar-se ao nível imediatamente mais alto pela silabação ou ficar sob a égide da extraprosodicidade, que atinge unicamente entidades da borda do domínio. Elementos licenciados por uma e outra modalidade são preservados, ou seja, fazem parte do domínio da palavra durante o processo derivacional. Todo material prosodicamente não licenciado será apagado, no fim do léxico, pela regra de Apagamento do Elemento Extraviado (AEE), como último recurso, pois pode ser salvo, antes disso, por epêntese. Sílabas ocultas por extrassilabicidade (extraprosódicas) são reintroduzidas pela regra de Adjunção da Sílaba Extraviada, bastante ativa na derivação. Essa regra foi primeiramente posta por Liberman and Prince (1977:293) nos seguintes termos: (22) Adjunção da Sílaba Extraviada Qualquer sílaba não-contada pela regra de acento ou pela concomitante construção de árvore, é acrescida como irmã fraca ao pé mais próximo à sua esquerda, respeitando os limites da palavra.
Tal convenção estabelece que, em qualquer nível da estrutura métrica, material perdido (da borda) pode ser incorporado ao pé adjacente como membro metricamente fraco. Isso garante que segmentos protegidos pela extrassilabicidade venham à superfície como elementos fracos de um pé métrico, embora tenha a desvantagem de propiciar a criação de sílabas que fogem 713
ao padrão canônico. Mas isso é controlado pela parametrização dos princípios ou pela organização do léxico, como veremos no desenrolar desta análise. Seguindo a trilha de Harris (1983) e Itô (1986), fica estabelecido que a regra de Apagamento do Elemento Extraviado (AEE) se aplica no fim do léxico, em nossos termos, no nível da palavra pronta, ainda sob o controle do Princípio da Preservação de Estrutura, atingindo somente os segmentos nãolicenciados. (23) a)
...aquele aspecto formal que você está aprendendo na Faculdade de Direito. EF, RE, 337:104
b)
...esse aspeto... eu acho importante, bem importante mesmo... (EF-RE 337:142)
Como vemos, o mesmo informante usa as variantes aspecto ~aspeto. A consoante /k/, subjacente, é superficializada em (23a) por enfraquecimento da Condição de Coda; e em (23b), em virtude de não estar associada, é apagada por AEE, pois não tem a proteção da extraprosodicidade, que somente recai sobre segmentos da borda vocabular. (24) Por Afrouxamento da CC: a. σ
Por AEE:
σ
σ
R
R
R
R
a s p
e
o
a s
k t
b. σ
p
σ
σ
R
R
e
k' t
o
B
Com respeito à extraprosodicidade, admitimos, seguindo Itô, que segmentos podem ser por ela guardados até o fim do processo derivacional como princípio universal. Só é desativada no pós-léxico. Tomemos, pois, de Itô (1986: 102), a seguinte orientação: (25) Extraprosodicidade Lexical
universal
sim
Nível da palavra
língua específica (português)
sim ou não
Pós-lexical
universal
não
714
É da obra citada o princípio em discussão, que exige que todo segmento seja prosodicamente licenciado por extraprosodicidade ou por silabação. Segmento não licenciado é apagado por AEE no nível lexical, como foi referido. (26) Princípio do Licenciamento Prosódico (PLP) (Itô, 1986:3) Todas as unidades fonológicas devem pertencer a unidades mais altas. Segmentos devem pertencer a sílabas, sílabas a pés, pés a palavras fonológicas ou frases.
Uma versão deste princípio que dá conta dos processos epentéticos toma em Mascaró (1989:38), a que já fizemos menção, a forma (27), que estipula que todos os segmentos de uma cadeia de sons devem ser silabados, ainda que por meio de posições vazias: (27) Princípio da Silabificação Máxima (PSM) Se o processo de silabação deixar Cs flutuantes porque violam requisitos da rima ou do ataque, então reaplique o processo de mapeamento, silabando-os de acordo com a convenção geral de Silabificação Vazia.
Dessa forma, uma consoante flutuante é mapeada junto a um V do molde canônico, sem material fonético. Passemos a considerar agora a preservação da integridade prosódica.
2.5 Princípio da Preservação da Integridade Prosódica (PIP) Até que ponto se preserva a integridade dos constituintes métricos é a questão que se coloca. Sabemos que as sílabas se organizam em pés métricos sobre os quais as regras de acento atuam. E que, atribuído o acento no decorrer do ciclo derivacional, ele só pode ser apagado sob a Condição de Apagamento de Acento (CAA), segundo Halle & Vergnaud (1987), pois as relações métricas, estabelecidas em nível mais alto, não atingem configurações mais baixas. De acordo com essa proposta, na entrada de cada ciclo, o asterisco indicativo de portadores de acento é apagado, quando o sufixo não for por si mesmo domínio de acento, mas é preservado em caso contrário. 715
Considerando-se que o apagamento da vogal temática (AVT) é uma regra geral do português, no processo derivacional, observe-se que em (28a), o acento da palavra original é apagado ao ser acrescentado o sufixo -eiro, e um novo acento é atribuído, enquanto o acento da palavra original de (28b) permanece ao entrar -mente, que recebe acento próprio. O acento primário em (28b) converte-se em acento secundário. Todavia, se um prefixo for anexado a uma dessas palavras, como em (28c), os constituintes prosódicos estabelecidos permanecem intocáveis, a não ser que ocorra choque de acentos. (28)
(* .) a. ca.sa
CAA
(* .)
→
ca.sa+eiro
AVT
↓
→
ca.sei.ro
φ
(*) b.
fe.liz
(*) (* c.
(*) →
(* .)
fe.liz + men.te
.)
in.fe.liz.men.te
(* .) →
(*) (* →
(*
.)
fe.liz.men.te
.)
in.fe.liz.men.te
(pos.lex).
A perda do acento em [liz] (28c) para evitar o choque acentual pode vir acompanhada de outras alterações, que resultam de regras rítmicas de aplicação tardia, como a do acento secundário. No léxico, os constituintes prosódicos são preservados, com efeitos que serão apreciados no item 7, quando na prefixação nos detivermos. Passemos às condições específicas do português.
3. Condições de língua particular Princípios Universais têm de ser complementados por Condições de Língua Particular. Se assim não fosse, entre as várias possibilidades de escansão, dificilmente se alcançaria o melhor resultado. São as Condições de Língua Particular, de natureza fonotática, que fazem a escolha mais restrita e que argumentam em favor de a sílaba possuir dois constituintes. Existe uma relação 716
fonotática estreita entre os elementos que compõem o ataque assim como existe entre os que compõem a rima. Daí provêm dois tipos de condição de boaformação: Condição do Ataque e Condição da coda.
3.1 Condição do Ataque Admitir que a silabação comece pela consoante mais à esquerda seria sustentado por produções da fala de crianças, em fase de aquisição. Dizem bici[kE]ta por bicicleta e não bici[le]ta; dizem pato por prato e nunca rato por prato; dizem puma por pluma e não luma por pluma. No entanto somos obrigados a admitir que isso é apenas um reflexo de que a aquisição do padrão CCV é tardia, com envolvimentos translingüísticos, pois facilmente a hipótese de “Primeiro a consoante mais à esquerda” esbarra com contra-evidências. Assim, em casos como pneumonia e psicologia, a vogal epentética se coloca, em português, após a primeira consoante, formando com ela uma sílaba, o que indica que a primeira consoante e não a segunda havia sido inicialmente excluída. Da mesma forma, palavras como stela, sfera, com /e/ epentético, consagrado pela escrita, assim como em siglas e palavras novas, spá ~ispá, slide>eslide, por exemplo, é a primeira consoante que a epêntese salva, e não a segunda. Em seqüência de três consoantes, se a silabação começasse com o segmento mais à esquerda, limitado o ataque a duas posições esqueletais, perder-se-ia justamente a consoante que nunca é omitida nem dúbia silabação oferece, como o que aconteceria com /t/ na palavra substantivo: su.b(s)(t)an.ti.vo, deixando /t/ flutuante, e também /s/ por ordem das coligações possíveis. Tudo isso reforça a idéia de que o ataque começa a formar-se pela consoante à esquerda, mais próxima ao núcleo, com a qual o padrão universal CV é primeiramente criado. O ataque, assim como todo constituinte silábico do português, compreende ao máximo dois elementos. Esses têm de ser selecionados adequadamente, de modo que sejam produzidos grupos consonantais ou ataques complexos bem-formados. Grupos permitidos são aqueles que se compõem de obstruintes não-contínuas ou contínua labial, combinadas com líquida, vibrante simples ou lateral, excluídos os grupos /dl/ e /vl/. Nesse particular, há semelhanças com o espanhol (cf. Harris, 1983). Os exemplos abaixo mostram os grupos permitidos: (29)
717
pr
prato
pl
plátano
fl
flanco
br
braço
bl
bloco
fr
franco
tr
trato
tl
Atlas
vl
–
dr
drama
dl
–
vr
livro
kr
cravo
kl
clamor
gr
grama
gl
glosa
Os grupos /dl/ e /vl/ não existem, a não ser em raros nomes próprios como Adler e Vladimir. Também /tl/ em início de palavra não se encontra, embora ocorra em onomatopaicos (tlim-tlim). Interpretamos a inexistência desses grupos como vazios do sistema, abertos a empréstimos ou a palavras novas. Os grupos permitidos têm, na primeira posição, uma consoante [-contínua] ou [+contínua, labial] e, na segunda, uma soante não-nasal, revelando dois graus de distanciamento de sonoridade entre os segmentos que compõem o ataque, e minimamente um grau entre os que compõem a rima. Esse aclive com diferenças expressivas e declive atenuado permitem, nas palavras de Clements (1990), definir a sílaba como um ciclo de sonoridade. (30) Condição Positiva do Ataque Complexo
Ataque C
C
[-cont] [+soa, - nas] [+cont, lab] Tal condição exclui os grupos sr, sl, zr, zl, ∫r, ∫l, Ér, Él, assim com xr, xl, enfim qualquer seqüência que não satisfaça os requisitos de (30). Segmentos de sonoridade idêntica ou vizinha, como obstruinte + nasal ou nasal + líquida, são rejeitados da mesma forma que platôs como mnemônico, que a epêntese recupera. Tomemos alguns exemplos:
718
(31) Ataque satisfeito
a.
c r e. d o
p l a. tanos
f r a. c o a. t l e. ta
a. d r o
b. Sonoridade reversa ou platô
b.
* a. r l e.quim
*
* s t e. la
a. l m a
c. Condição de Ataque ferida
c.
* I. s r a.el
* i. s l a. mico
Os exemplos de (31a) satisfazem a Condição de Ataque. Os de (31b) são proibidos porque formam platô ou têm sonoridade invertida. Ambos os casos não atendem à seqüência de sonoridade. Os de (31c) atendem a esse princípio mas ferem a Condição do Ataque. Esses fatos apontam para o papel relevante da Condição do Ataque, instruída pelo seqüenciamento de sonoridade.
3.2 Condição da Coda A posição de coda é preenchida por qualquer soante e também por /S/, como mostram os exemplos seguintes: (32)
σ
σ
A R
A R
N Cd s e
A R
N Cd y
m a
N Cd m e
r
l
σ
σ
A R
A R N Cd m a
σ
N Cd N (so)
m e
S
719
A única obstruinte [-soante] que se apresenta nesta posição é /S/. Não se trata de uma particularidade do português, mas das línguas romanas em geral. Daí a seguinte restrição negativa de estrutura silábica: (33) Condição da Coda
*
C] σ [-soante], exceto /S/
Essa condição negativa de boa-formação, ao proibir qualquer obstruinte exceto /S/, tem o poder de eliminar resultados malformados, admitindo elementos que não puderam ser incorporados pelo Ataque, mas deixando outros flutuantes. (34)
σ
σ
R
R
N Cd
N Cd
V
C s
i
i.s'rael is.ra.el
V
C
a
p
a. p'to
O segmento /S/, que não tinha sido admitido no ataque, em Israel, é agora incorporado devidamente à coda. No entanto /p/, em apto, bloqueado no ataque por (30), também é rejeitado pela Condição da Coda. Será salvo por epêntese, como veremos mais adiante. A Condição da Coda e os demais princípios fazem predições do tipo: (35)
a.
Cd C [+soa] sal.to
720
b.
Cd C /S/ pas.to
c.
Cd C
C
[+soa] [+cont, cor] pers.cru.tar
b.
c.
*Cd
*Cd
*Cd
|
|
|
C
C
C
|
|
|
[-soa]
[-soa]
pak.to
af.ta
[-soa] ad.ver.so
Cd | C C | | tOra k s | | [-cont] [+cont] [-so] tO.raks
A descrição estrutural da Condição da Coda é satisfeita em (35a). Não é satisfeita em (35b), porque se apresenta com uma obstruinte. Mas (35c) não é por ela bloqueada, embora contenha uma consoante [-cont]. É possível que isso se deva às linhas de associação múltipla, que fazem parte dessa estrutura, pois aí se encontram estruturas melódicas duplamente ligadas que não são previstas pela Condição da Coda, razão pela qual a correspondência deixa de estabelecer-se, e o bloqueio sem razão de existir. Linhas de associação têm de ser exaustivamente interpretadas, segundo reza a Condição de Ligação (Hayes, 1986). Essa solução para a palavra tórax foi proposta por Steriade (1982), (apud Borowsky, 1986), com relação ao grego, e retomada por Itô (1986). Trata-se do fato de que formas com dupla ligação no “tier” laríngeo, isto é, que compartilham de voz e/ou aspiração por espraiamento, ilustrada pelo grego ático, através da própria palavra tOraks, nas obras citadas, e que seriam incorretamente não silabadas em virtude da Condição de Coda daquela língua, eram de fato retidas. A explicação encontrada por Steriade reside nas linhas duplas que o espraiamento cria, tornando tais seqüências inafetadas pela referida condição. Semelhantemente em português, palavras com a terminação ks, seqüência de dois distintos segmentos, sofreriam em posição final de palavra um proces721
so de assimilação laríngea, que criaria linhas duplas, como (35c) exemplifica, ficando preservadas do apagamento. Isso pressupõe que /S/, em português, em posição de Coda, esteja subespecificado quanto ao traço sonoro, adquirindo-o por assimilação ou redundância. Palavras como tórax, ônix e látex guardariam, dessa forma, resquícios da forma latina e responderiam positivamente à Condição de Ligação, abaixo expressa: (36) Linking Constraint (Hayes, 1986:331) Association lines in structural descriptions are interpreted as exhaustive.
Admitir essa análise deixaria problemas pendentes em português. Como explicar as variantes tOraks ~tOrakis e tOraks>torásico ~ toráksico? O fato é que, ainda que o português preserve, como no grego ático, a terminação ks, essa coda mostra-se titubeante. A isso voltaremos no item (6).
4. Domínio O domínio da silabação é a palavra; e o da ressilabação, a frase. Como um processo contínuo, a silabação fica disponível em todos os estratos do componente lexical, envolvendo radicais e afixos. No pós-lexical, atua sobre elementos já silabados, tomando o nome de ressilabação. Um dos processos mais gerais, nesse caso, é o da conversão da coda em ataque (37), como (38) exemplifica. (37) Ressilabação ...CVC]σV]σ → CV]σ CV ]σ (38) ... para da resclarecimentos sobre mercados de capitais. (D2-RJ 355: 12) ...mas faze ruma análise. (EF-RE 337: 359) ... fi zos três anos de científico no mesmo colégio. (DID-SA 231: 31)
722
5. Particularidades 5.1 Ditongos A regra de formação de coda é que dá conta do ditongo, pois a mesma posição das soantes, /n, l, r/, pode ser ocupada por uma vogal alta, atendendo aos requisitos de sonoridade. Por regra universal, a vogal da coda em glide converte-se. (39)
σ
σ
σ
A R
A R
A R
N Cd s e
N Cd n (da)
s
e
N Cd l (va)
p a
u (ta)
O ditongo poderia ser analisado como um núcleo ramificado. Duas evidências, porém, sustentam o postulado da rima ramificada: a) o português não possui, no seu sistema fonológico, vogais longas, que, com a forma de oo, ee, aa, etc. estariam repetindo uma posição de núcleo; b) o português não possui rima constituída da seqüência VGL (vogal, glide, líquida); ao contrário, o glide ocupa a mesma posição estrutural da líquida na coda. Por conseguinte, o ditongo lexical é definido como seqüência de duas vogais, das quais a de maior sonoridade é escolhida por PSS como núcleo e a outra inserida na coda, reservada a qualquer soante, traço que a vogal possui. É nesse caso que se converte em glide. Todas as vogais entram como núcleos silábicos, inclusive as altas, mas quando o processo de silabação começa, vogais altas, adjacentes a vogais nãoaltas, são incorporadas à coda: (40)
Picos Formação do Ataque
CVC
bo. i. na CV.V.CV CVC –
re.i.no CV.V.CV CVC –
boy
boy. na
rey.no
CVC
CVC.CV
CVC.CV
bo. i CV. V
723
A inexistência de formas como *boyl, *reyn, *sayr mostram que o glide ocupa a mesma posição das demais soantes. Essas seqüências seriam tão estranhas ao sistema como os nomes próprios de exceção Danrley e Carlton, com duas soantes na coda. Além dos ditongos supramencionados, formados na derivação lexical, existem os da etapa subseqüente, a flexão, também decrescentes: (41) vou , sai, sais, coronéis, amáveis
Como vemos, os ditongos que se formam no léxico são naturalmente decrescentes.
5.2 Ditongos crescentes Ditongos crescentes são derivados pós-lexicalmente, por ressilabação, ri.a.cho > rya.cho; his.tó.ri.a > his.tó.rya. Na ressilabação, livremente, a vogal é desligada e associada ao ataque, criando-se um ditongo crescente, com um glide consonantizado. Enquanto as ramificações silábicas em nível lexical são sempre binárias, no nível pós-lexical estão livres desta condição. Assim a forma lexical kri.ow pode tornar-se uma só sílaba no pós-léxico, kryow (CCCVC), extrapolando o padrão canônico, como variante de estilo ou dialetal. Esses dados refletem uma questão amplamente discutida na Literatura: a que argumenta em favor da hipótese, já comentada, de que regras pós-lexicais não enxergam restrições ou CBFs. (42)
Léxico
~
Pós-léxico
ki.a.bo
~
kya.bo
vi.u.va
~
vyu.va
kri.ow
~
kryow
su.or
~
swor
su.a.ve
~
swa.ve
(43) ...você sabe que é prática não é só t[yu]ria (teoria) (DID-SA 331: 144)
724
Qualquer usuário da língua, a que se solicite a silabação de palavras como fiança, aliado ou história, naturalmente, fará: fi.an.ça, a.li.a.do, his.to.ri.a, dando à vogal alta o status de núcleo silábico. Mas tenderia a não fazê-lo com palavras do tipo: teimoso, perau ou leitura. Ditongos crescentes são hiatos lexicais. Em nível pós-lexical pode a vogal alta converter-se em glide, formando o ditongo crescente. Então passa a fazer parte do ataque, sem o bloqueio da Condição de Ataque, neste nível inoperante.
5.3 As seqüências /kw,gw/ A única exceção que o português apresenta é a seqüência kw e gw diante de /a/ e /o/, resquícios do latim, que se encontra em poucas palavras como ditongo crescente, não comutável por hiato: (44) água, quais, adequar, enxaguar, Paraguai, Uruguai e poucas mais.
Algumas destas palavras apresentam a variante com velar simples: (45) quatorze ~catorze; quociente ~cociente; quotidiano ~cotidiano; quotizar ~cotizar; cinqüenta ~cincoenta.
Duas propostas, entre outras, podem ser apresentadas: Por se tratar de um pequeno número de palavras, facilmente alistáveis, figurariam com ditongo no léxico profundo, isto é, o ditongo não seria gerado, mas estaria presente na forma subjacente. Ter-se-ia um ditongo lexicalizado. A segunda alternativa, a que preferimos (cf. DELTA 89), diria que essas palavras estão registradas no léxico profundo com um segmento complexo no ataque, o que facilitaria a explicação da perda do glide, dando margens às variantes citadas. O segmento complexo somente se manifestaria na seqüência kw ou gw seguida de /a/ ou /o/. Em todas as demais, a contraparte com hiato responsável pelas variantes está presente. O segmento complexo é aqui definido em termos de Clements (1989), ou seja, um segmento com duas articulações, particularmente, uma articulação dorsal (primária) e uma articulação labial (secundária): gw ou kw. Embora sustentem essa análise as flexões verbais como eu enxáguo, eu águo, respectivamente provenientes de enxaguar e aguar, o português moderno apresenta alternantes como adeqúo em vez de adéquo, de adequar, que a 725
gramática tradicional rejeitaria. Se itens da linguagem infantil como aga, aua podem ser entendidos como simplificação da consoante complexa por desligamento do traço vocálico ou do nó responsável pelos traços articulatórios da consoante, dá-se com o verbo adequar e outros itens similares, por outro lado, modernamente, um fato oposto. Parece estar se processando uma reanálise do traço vocálico da consoante complexa, subjacente, que, por promoção, adquire o status de vogal. Dessa forma, anexa-se a seqüência em pauta ao conjunto de hiatos que alternam com ditongos crescentes. Concebida a velar diante de a/o como consoante complexa, o ditongo crescente que se depara em quais, Uruguay, Paraguay e poucas outras manifestar-se-ia apenas no pós-léxico como um processo de conversão do traço vocálico da consoante complexa em glide. É neste nível que o glide no ataque emergiria, alinhando-se aos demais ditongos crescentes, somente aí formados. Por outro lado, vale mencionar que não soaria estranho alguns itens serem registrados no léxico profundo com essa consoante complexa, pois o sistema está familiarizado com outras consoantes complexas, como a nasal e a lateral palatal. Ficam aqui as duas propostas registradas.
5.4 Seqüência de três vogais Formas como arroio, apoio, maio, que na estrutura mais interna são três vogais nucleares, manifestam na primeira silabação um ditongo decrescente. A presença deste ditongo é percebida pela regra de acento, pois não existem palavras proparoxítonas com essa seqüência de vogais. Assim, a segunda sílaba das palavras proparoxítonas deve incidir na posição fraca do pé que as constituem e, neste caso, incidiria em sílaba pesada. Não poderia existir *árroio, *ápoio, assim como não existiria *pádeiro ou *cáderno, mas existe arróio, apóio, padéiro, cadérno. Isso sinaliza a presença de um ditongo decrescente na penúltima sílaba, uma rima ramificada. (46) a. Silabação inicial
726
σ
σ
σ
AN
N
N
C V
V
V
m a
i
o
b. Silabação pronta
σ
σ
A R
R
N Cd
N
C
V
C
V
m
a
i
o
Essa estrutura sempre produz o efeito de ambissilabicidade, como se o glide fizesse parte também da sílaba seguinte, reflexo de uma regra de aplicação tardia, ou seja, pós-lexical 7. É tradicionalmente conhecido o fato de que o português rejeita hiatos verdadeiros, introduzindo em tais casos um glide para formar um ditongo, que tem como (47) o efeito de ambissilabicidade. (47) a.
passear, passeio
b.
cereal ~ceryal
idea, ideya
ideal ~idyal
Lea ~Leya
rédea ~rédya
boa ~bowa
história ~histórya
koroa ~korowa
memória ~memórya
5.5 Seqüência de vogais idênticas Das considerações que seguem ficam fora as vogais finais que, na primeira iteração, formam ditongo decrescente. (48) a.
b.
vadiice
<
vadio
friissimo
<
frio
viúva è
vi.ú.va
~
v[yú]va
ciúme è
ci.ú.me
~
c[yú]me
suíno è
su.í.no
~
s[wí]no
ruína è
ru.í.na
~
r[wí]na
727
c.
gratuito
è
gra[túy]to
fortuito
è
for.[túy].to
fluido
è
[flúy]do
Uma vogal com acento possui mais sonoridade do que uma vogal sem acento. Mas a silabação precede o acento, então esse critério é insustentável para resolver a ambigüidade que a seqüência de duas vogais da mesma altura oferecem. Segundo Harris (1985:16), em V1V2 de igual altura, V2 é mais sonoro, o que pode ser tomado como universal, desde que contra-exemplos não se fizerem disponíveis. Os dados do português estão em conformidade com essa afirmação, como (49b) revela. Ao lado do hiato, produto lexical, encontra-se o ditongo crescente, variante pós-lexical. Também vogais não-altas idênticas poderiam figurar entre os exemplos, admitindo-se a elevação da vogal em posição menos sonora: compreensao~compr[y]ensão, cooperar~c[w]operar, desde que a fusão não as tenha reduzido a uma só vogal. Por conseguinte, na seqüência de duas vogais idênticas, em que o PSS não pode operar para a seleção do núcleo, a silabação inicial leva primeiramente à formação de hiatos e, mais tarde, à ressilabação opcional, que forma um ditongo crescente (49b), de acordo com a lei do mais sonoro. Nota-se, todavia, certa tendência a preservar o hiato se as vogais forem idênticas também quanto a seus articuladores (49a). Somente um pequeno conjunto de palavras estaria em contradição (49c). Essas tendem a formar ditongo decrescente, embora a variante hiato não esteja descartada. A idéia desenvolvida neste estudo é que as vogais de altura diferente com alta na segunda posição formam, no léxico, ditongo decrescente, enquanto vogais da mesma altura ou de altura diferente, com alta na primeira posição, continuam hiatos até o fim do léxico, abrindo-se, no pós-léxico, a possibilidade do ditongo crescente. As exceções, como o segundo membro dos seguintes pares, devem de ser lexicalizadas: sauna/saúva, pau/baú. A silabação criaria naturalmente *sawva e *baw. São casos de acento imprevisível, que têm de ser resolvidos lexicalmente.
5.6 Ditongos Variáveis Os ditongos decrescentes variáveis, amplamente analisados em dissertações e artigos, ei diante de /s, r/, e ou, sem distinção de contexto, mostram-se nos dados do NURC com o mesmo status variável. 728
(49) vogal simples ...a gente vive de motorista o dia intero (inteiro) (D2-SP 360 :94) ...o depósito de doze mil cruzeros (cruzeiros) (D2-RJ 355: 182) ...fala poco (pouco) (D2-SP 360: 104) ...tudo tem base com pexe (peixe) (DID-RJ 355: 118) ...eles fazem bolinho de fejão (feijão)... (DID-RJ 355: 165) ...só assim na brincadera (brincadeira) (DID-POA 045: 180)
(50) ditongo ...despesas de casa... de feira... de mercado (D2-RJ 355: 83) ...acaba sendo uma loucura (D2-SP 360: 121) ...temperamento assim... muito ordeiro (D2-SP 360: 205)
6. Epêntese A epêntese, como parte da silabação, está disponível em todos os níveis lexicais, assim como no pós-léxico. Se os princípios de composição da sílaba básica deixarem dessilabado material que viole os princípios universais ou convenções de língua particular, a silabação iterativa, motivada pelo Princípio do Licenciamento Prosódico, processa-se em torno de nós vocálicos vazios, preenchidos, mais tarde, por “default” ou assimilação, legitimando uma configuração silábica, como vimos em 2.4. Isso é epêntese, entendida, hoje, como parte do mecanismo de silabação. Dispondo do padrão canônico CCVC, que sugere a árvore de constituintes já analisada, examinemos a palavra ritmo: (51) Primeira iteração:
σ
σ R
R
O Nu
O Nu C C r
C C
VC i
t'
VC
m o
729
Segunda iteração: σ R O Nu C C t
V C [] Resultado:
CV CV CV ri ti mo
Na primeira iteração, a obstruinte não é associada, porque não satisfaz a condição do ataque (*ri.tmo) nem a condição da coda (*rit.mo); na segunda iteração, ajusta-se ao padrão CV, graças ao mecanismo da epêntese, que consiste em mapear o elemento extraviado com um V vazio. Evidentemente a análise pressupõe na subjacência estruturas subespecificadas e concebe a epêntese como um recurso de salvar, no léxico, segmentos flutuantes. Então a consoante flutuante pode ser silabada como ataque de uma rima com V não associado a material fonético como (52) representa: (52) Silabação vazia
σ N C' à C [T]
V []
onde T indica os traços da consoante e os colchetes em branco uma posição vazia
Essa vogal epentética realiza-se o mais das vezes como [i], ocorrendo também [e], em alguns dialetos, mas somente em posição pretônica, como em futebol, peneu ou peneumonia, todas com a alternante de vogal alta: futibol, pineu, pineumonia. A regra geral de epêntese coloca uma consoante extraviada C’ junto a um V do padrão canônico, formando a sílaba CV, cujo núcleo, sem traços, será mais adiante preenchido por regra de redundância, também “default” denominada. 730
A epêntese também se faz notar no nível da flexão, quando do acréscimo de /S/ a palavras terminadas em /r, l/. (53) po.mar→po.mars→pomarVs→po.ma.res.
É curioso que a adjunção de /S/, no nível da primeira silabação, tenha a restrição da rima bem formada, como mostra perspectiva ou fausto, mas recorra na pluralização à epêntese, sem motivação aparente, como mares e males exemplificam. Parece que se trata do morfema de plural, que exige ser anexado a uma vogal. De toda forma, é uma restrição que se mostra, em se tratando da combinação rs, enfraquecida: (54) ...os mil dolars que eu tive de levantar... (D2-RJ 355: 135) ...a equipe de júniors ~junióres joga hoje
Observemos, todavia, que, nos dados do português brasileiro, muitas vezes aparece coda com obstruinte que dispensa o papel da epêntese. Ouvimos ao lado de opitar, optar, ao lado de capitar, captar e ao lado de tOrakis, tOraks. É possível que o uso quantitativo de tais variantes distinga dialetos, mas esse exame não foi por nós realizado. Essa obstruinte na coda parece reflexo de uma gramática antiga que não mostra indícios de generalização. Ao contrário, a epêntese é que vem se tornando uma característica do português brasileiro. Aos casos de incorporação da obstruinte na coda, referir-nos-emos por Afrouxamento da Condição de Coda (ACC), que não interpretamos como sinal de desaparecimento dessa Condição (32), mas como resquício de gramática antiga. Consoantes que podem ser apagadas como aspeto por aspecto ou respetivo por respectivo figuram como exceção à silabação vazia. E são atingidas pela regra AEE no fim do léxico, se não tiverem sido salvaguardadas por Afrouxamento da Condição de Coda8. Um argumento em favor desta análise são raízes acabadas em duas consoantes que podem deixar uma delas sem manifestação fonética: esculp → esculpir, escultura; disting → distinguir, distinto. Dessa forma palavras similares no espanhol foram analisadas por Harris (1983). Consoantes retidas que não satisfazem as CBFs são garantidas pela silabação vazia: 731
(55) advogado
afta
a.d’vo.ga.do.
a.f’ta.
1ª Iteração
a.dV.vo.ga.do
a.fV.ta
2ª Iteração
a.di.vo.ga.do.
a.fi.ta.
Default
Exemplos de incorporação de segmentos por epêntese ou por (ACC) encontram-se nos dados do projeto NURC: (56) a. Epêntese ...adiquiri(r) ingresso... (DID-SP 234: 584) ...bom, adiquiro o bilhete para entrar. (DID-SP 234: 556) ...sabe, ela não adimite uma falha nossa... (D2-SP 360: 213) ...ele está sendo subistituído lá... (D2-SP 360: 857) ...aqui é adiverso o clima para eles... (D2-SP 360: 961) ...o que é um abisurdo sem dúvida alguma. (D2-SP 360: 990) ...são as escolas tékinicas que tem uma série ai agora, ne? (DID-SA 231: 120) ...precisa de um determinado elemento, ipisilon por exemplo... (D2-SP 360: 1029) ...e continue adivogando por fora. (D2-SP 360: 213) ...capitar a simpatia. (D2-SP 360: 1039) ...o pessoal da dogimática jurídica também... (EF-RE 337: 150) b. Afrouxamento da Condição de Coda. ...tive que optar por uma companhia.. (D2-RJ 355: 163) ...acabei indo pela Luftansa, porque pela Luftansa eles me conseguiram isso rapidamente... (D2-RJ 355: 165) ...certo você teve que adaptar o horário deles... (D2-SP 360: 371)
Voltemos agora ao caso tOraks ~ tOrakis e outros similares como: óniks ~ónikis; láteks ~látekis. É evidente que a Condição de Coda não alcança estruturas duplamente ligadas, mas os fatos indicam que ks freqüentemente não é retido como um todo, no português brasileiro, pois uma vogal epentética costuma separá-los. E por vezes [k] se perde no processo derivacional. Por isso partimos da estrutura subjacente com coda extramétrica, i.é, ks extramétrico, que desenvolve a seguinte derivação para gerar ‘tOrakis, torásico ou ‘tOraks: 732
(57)
/t O r a
sil.
tO.ra.
Ac.
tÓ.ra.
Suf.
tÓ.ra.ks+iko (Perda do Ex)
Sil.
tÓ.ra. k’si.ko
RTJ
to.rá.k’si.ko (Restrição das Três Janelas)
AEE
to.rá.si.ko
saída
[torásiku]
Com respeito à palavra sem afixos (tórax), em que se estabelece o elo direto entre a estrutura subjacente e a estrutura derivada, o fato a observar é que o extraprosódico, que, no léxico, protege do apagamento os dois segmentos finais, é desativado no pós-léxico. Então os segmentos, sob a pressão do Princípio de Licenciamento Prosódico, são silabados, sem a intervenção do Princípio de Preservação de Estrutura e condições a ele relacionadas. E a rima licenciada emerge com dupla consoante. A epêntese, ainda disponível, é agora um processo de expansão da coronalidade de /S/ (EC). a. Léxico: tOraks → tO.ra
(58)
b. pós-léxico: Ress. EC
tO.raks tO.ra.k V s = tO.ra.kis
É /S/ na coda que espraia o traço coronal, preenchendo o núcleo silábico vazio. Por conseguinte, preservada até o nível pós-lexical pela extraprosodicidade, a seqüência em questão tem de ser, neste nível silabada, abrindo-se dois caminhos: a) incorporação direta, livre de controles; b) incorporação com expansão de coronalidade, que cria uma nova sílaba. Esse é o recurso preferido pelo português brasileiro, observado também em palavras novas com essa terminação: (59) ... apartamento duple[kis]... D2-RJ, 355:68
733
6.1 Epêntese Inicial Trata-se de /S/ seguido de outra consoante: a) s + obstruinte: stá ~istá; strela~istrela; spaço~ispaço (está, estrela, espaço). b) s + líquida: slide/islide. Raros são os casos, em contexto similar, com epêntese à direita, como em Sri Lanca que também poderia resultar /Is/ri Lanca, já que temos /is.ra.el/, mas como Siri Lanca se manifesta como indício de que /S/ flutuante é coda.
A sibilante nesta posição apresenta-se com duas variantes: a coronal anterior e a coronal palatalizada, distinguindo dialetos geográficos. A presença de vogal epentética nos casos de sC inicial se faz notar mais do que sua ausência, como se o mecanismo de silabação de sC inicial por epêntese estivesse em vias de tornar-se lexical. Isso mostra que o português tende a perder a extrametricidade marcada. Segundo Hayes (1992), a extrametricidade não-marcada é a da direita. (60) ...os projetores [diz]lides, o[zis]lides... (DID-SA 231: 248) ... porque o ganho é pouco e tem de manter um certo [is]tatus. (D2-SP 360: 641)
De modo geral, a seqüência inicial es, em grande parte já incorporada à palavra escrita, é formada por epêntese, como se depreende dos seguintes fatos: 1 – O português, como muitas línguas romanas, tende a proibir ataque inicial de s+obstruinte, oriundo do latim, e ainda no latim vulgar resolvido por vogal protética: scutum > escudo; studium >estudo; strictum > estreito; sperare > esperar; scriptum > escrito; smaragdum > esmeralda (Wiliams, 1975:76). 2 – A alternância zero/e está presente, com essas iniciais, no português de nossos dias: stoque ~estoque stranho ~estranho strela ~estrela
734
3 – empréstimos, oriundos de outras línguas, revelam o mesmo comportamento, estendendo-se à combinação de s+líquida. slavo ~eslavo slaque ~eslaque sloper ~esloper 4 – siglas criadas com essa seqüência têm também formas variantes: spá~ispá 5 – a seqüência s+obstruinte somente alterna com zero quando precedida de e; nos demais casos, mantém-se inalterável. ostentar aspargo asterisco
Do exposto se infere que a epêntese é ainda um processo vivo, que se estende do latim vulgar a nossos dias, embora os fatos fiquem embaraçados pela consagração desta vogal na escrita, como estrela e eslavo exemplificam. Estamos pressupondo, com base nas evidências, abaixo explicitadas, que se cria, nas seqüências sC inicial e Cs final (cf. 58), uma vogal epentética por expansão da coronalidade de /S/. Os fatos são os seguintes: 1. Oxítonas acabadas em /S/ manifestam variavelmente um glide epentético: rapaz ~ rapaiz, mês ~ meis, feroz ~feroiz. 2. Palavras acabadas em consoantes, quando pluralizadas, criam uma nova sílaba com uma vogal coronal: mal ~males, pomar ~pomares. 3. Nominais com terminação nasal desenvolvem uma variante com glide coronal, que caracteriza alguns dialetos: bõws ~ bõys, irmãs ~ irmãys . Isso permita afirmar que /S/ da coda tem a propriedade de desenvolver uma vogal epentética, idéia que discutimos em DELTA 94. Admitindo-se que a consoante inicial é preservada por extrametricidade até o nível em que essa sílaba estranha ao sistema possa vir a estabelecer-se, a silabação se completa no pós-léxico, quando o PPE deixa de ser atuante. É o extramétrico que tem o poder de preservar um segmento durante toda a strata lexical, como já tivemos oportunidade de mencionar. Geram-se: stado, slavo, stranho, sfera, etc., no léxico , e, no pós-léxico, ficam duas opções, a epêntese sempre disponível: estado, eslavo, estranho, ou a incorporação livre: stado, slavo, stranho9. 735
Vejamos uma derivação: (61) S inicial Léxico profundo
[stado]
[stado]
[slavo]
Extr.
[<s>tado] [<s>tado]
[<s>lavo]
Sil.
[<s>ta.do.] [<s>ta.do]
[<s>la.vo.]
Pós-lexical
[s ta.do]
[s tado]
[s lavo]
Ressilabação
[sta.do]
[sta.do]
[zla.vo]
Ou: Epêntese(EC)
[es.ta.do]
Saída
[is.tá.du]
– [stá.du]
[ez.la.vo] [iz.lá.vu]
Enquanto a Preservação de Estrutura opera somente no léxico e a Sonoridade Seqüencial se mostra enfraquecida no pós-léxico, nível da frase, o Licenciamento Prosódico é operativo também no pós-léxico, exigindo que os segmentos preservados por extraprosodicidade, agora também desativada, sejam silabados. Não atuando o Princípio de Preservação de Estrutura no pósléxico, as condições de língua particular também não necessitam ser aí respeitadas (Itô, 1989:52). Por conseguinte sílabas como /sli/de ou /stre/la, /sta/do ficam prosodicamente licenciadas e coocorrem com eslide, estrela e estado. Por outro lado, consoantes perdidas em posição final de palavra, que não satisfazem a Condição de Coda, são salvas por epêntese ainda no léxico, pois as palavras em que ocorrem não apresentam variantes, como clube exemplifica: clu.b’> clu.bV>clu.be, mas não *[klub]. Esta consoante não está, pois, protegida por extraprosodicidade.
7. Prefixação Quando da anexação de certos prefixos a palavras iniciadas por sC, tratadas no item precedente, S perde a extrametricidade, por deixar a posição de borda e, neste caso, a epêntese cumpre o seu papel lexical: licencia um segmento flutuante, como (62) exemplifica. (62) <s>timular → des+<s>timular → des.s’ti.mu.lar → des.Vs.ti.mu.lar → des.es.ti.mu.lar → de.zes.ti.mu.lar
736
O espraiamento da coronalidade de /S/, que preenche V, núcleo vazio, já referido, é uma regra fonológica que, como as demais, está disponível desde o início do processo gerativo até o pós-léxico. Uma observação interessante quanto à vogal epentética é que ela não é receptora de acentos primários, razão pela qual a inserção de seu material fonético, seja por “default” seja por assimilação, faz-se no fim do processo lexical, nível da palavra pronta, prosódica propriamente, ou no pós-léxico. Mas ao acento secundário, que é pós-lexical, fica disponível: (63) psicología > pìsicòlogía
Ao discutir a preservação de estruturas métricas, vimos que a entrada de um prefixo não altera a silabação da palavra, a que se incorpora, diferentemente do que acontece com os sufixos. É que o prefixo, tomemos trans, em transatlântico, por exemplo, respeita a silabação da palavra base, indicando que, por si só, é um constituinte prosódico. Somente na ressilabação, que é pós-lexical, ele transgride seu domínio. (64)
Léxico [traNS[atlaNtik+o]] Sil.
[a.tlaN.ti.ko.]
Pref.
[traNS a.tlaN.ti.ko.]
Sil.
[traNs.a.tlaN.ti.ko.]
Pós-léxico Ress
[tran.za.tlan.ti.ko.]
Consideremos agora um caso típico de prefixação, em que o Princípio de Integridade Prosódica tem um papel explícito. Apagar um acento, como vimos em (2.5), significa apagar os limites de constituintes métricos, atribuídos em etapas anteriores. Isso fica proibido, porque, estabelecidos os constituintes com os quais a palavra pronta se apresenta, eles são preservados. É isso que se entende por Princípio de Integridade Prosódica. Então qualquer entrada de novo morfema, no nível lexical, que lide com a palavra prosódica, isto é, com acento primário atribuído definitivamente, deve respeitar esses limites. Isso a prefixação faz. Comparemos a silabação de sublime com sublinha. 737
(65)
(sublinha)
(sublime)
[[sub[liña]
[sublime]
Sil.
[li.ña.]
[su.bli.me]
Pref.
[sub li.ña]
Sil.
[sub. li. ña] (Afroux. de CC)
A formação do ataque complexo que geraria *su.bli.nha fica, pois, vedada pelo Princípio da Integridade Prosódica (cf. Harris, 1983). E por afrouxamento da Condição de Coda, a consoante b é incorporada à rima precedente, gerando sub.li.nha. Por outro lado, sublime forma grupo complexo na primeira silabação. As formas subilinear, subilingual, preferidas, em se tratando do português brasileiro, mostram que a epêntese está sempre disponível10. E assim damos por findo este estudo, que examinou a sílaba do português à luz da teoria métrica.
Conclusão Dessa análise, ficam em relevo os seguintes pontos: – A estrutura interna da sílaba, que se desenvolve a partir de CV, emerge maximamente com o padrão canônico CCVC(C), em que o C parentético, unicamente S, manifesta-se em um pequeno conjunto de palavras. – A silabação, entendida como um processo de projeção de um pico silábico, formação de ataque e expansão de coda, como etapas sucessivas, pressupõe ser a sílaba uma entidade prosódica, composta de dois constituintes. – As condições de Ataque e de Coda controlam expressões de boa formação. – Elementos não licenciados pelo nó silábico ou por extraprosodicidade, nos processos lexicais, são apagados, no final do léxico, pela regra universal de Apagamento do Elemento Extraviado. – O extraprosódico tem a propriedade de preservar segmentos de borda até o nível pós-lexical, quando são silabificados. 738
– A epêntese lexical tem a função de salvar elementos flutuantes. A epêntese pós-lexical tem a função de simplificar sílabas com ataque ou coda complexas. – O ditongo é gerado por silabação de uma vogal alta na coda. – Ditongos crescentes são hiatos lexicais, que se manifestam com a forma variante de ditongo crescente no pós-léxico. Fica apenas a exceção da oclusiva velar diante de a/o, a que duas intrepretações são oferecidas: ter na base uma consoante complexa ou ser lexicalizado. – Por fim, o prefixo, que, de modo geral, respeita a estrutura prosódica da palavra com que combina, fica disponível para a ressilabação.
NOTAS 1
Ser a mora o elemento basilar da hierarquia prosódica, ficando a sílaba no segundo nível, é também uma das concepções vigentes.
2
Projetar não tem o sentido formalizado pela Teoria da Sintaxe, segundo o qual somente se projetam nós da mesma categoria; mas significa simplesmente implicar. Um pico de sonoridade implica uma rima; uma rima implica uma sílaba.
3
Estamos admitindo que a vibrante forte em português é uma geminada.
4
Estamos tomando os termos silabação e silabificação como sinônimos.
5
Ver uma visão diferente de direcionalidade em Itô.
6
Entendemos que o princípio de maximização do onset dispensa qualquer explicitação de direcionalidade.
7
Ver Cristófaro Silva, 1996 e Couto H.H., 1994.
8
Embora a Fonologia Lexical destine a variação para o pós-léxico, esse tipo de variante é lexical, porque está diretamente relacionada a uma restrição lexical (AEE).
9
Note-se que em iogoslavo e hemisfério, por exemplo, a silabação não precisa recorrer à epêntese. O molde acata o s de sferio e slavo na rima precedente.
10
A ocorrência de su.bli.nya (sublinea), que por vezes se ouve, faz pressupor reanálise, segundo a qual a palavra estaria sendo reinterpretada como não-prefixada, isto é, como um todo. Ou seja, o sentido da prefixação teria sido perdido. Outros exemplos poderiam ser lembrados.
739
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Ficha técnica Divulgação
Humanitas Livraria – FFLCH/USP e UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas
Mancha
10,5 x 18 cm
Formato
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Tipologia
Times New Roman 10
Papel
miolo: off-set 75 g/m2 capa: Supremo 250 g/m2
Impressão e acabamento Número de páginas Tiragem
Oficinas gráficas da Unicamp 744 1500 exemplares