Michel Foucault Em Defesa da Sociedade Curso no College de France (1975-1976) Edi9GO estabelecida, no ambito da Associa...
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Michel Foucault Em Defesa da Sociedade Curso no College de France (1975-1976) Edi9GO estabelecida, no ambito da Associa9iio para 0 Centro Michel Foucault, sob a dire9GO de Franfois Ewald e Alessandro Fontana, por Mauro Bertani e Alessandro Fontana
Tradw;ao MARIA ERMANTlNA GALVAo
Martins Fontes sao Paulo
200S
ESla obra [oi publicada originalm~nt~ I'm fi:onch c:m ~ Ift;lo lL FAUT Dt:FENDRE LA SOCIETE par Edlllon, " el
I'
SUMARIO
edi~o
1999
4' tiragem 2005 Tradu~o
MARIA ERMANTlNA GALVAO
Revisiio da tradu~o Eduardo Brandao Revisiio gnifica Marcia da em: N6boa Leme Andria Swhe! M. da Slim Produt;iio graficli Gaaldo A"'e.I' Paginat;iiolFotolitos Studio 3 Desenvolrimenlo EdilOrial
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• re du rogramme de panicipation iJ la publication. ben.ijici<' p . I'Ambassade de France au Bresil eI d, , fran ai,' des Affaire., Etrangeres. de .
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Dados Internacionais de Catalogal;lio na Pub~ (CIP) (camara Brasileira do Livro. SP, Brasil) Foucault, Michel. 1926-1984, C II' 'de France (1975Em dcfesa da 'ocicdade : eu,:o ~o 'a ~r~~~tina Galvao. _ Sao 1976) / Michel Foucauh ; lradut;ao Man Paulo: Martins Fonles. 1999. - (ColCt;ao t6pieos) Titulo original: II raUl dcfendre la sociclI:. . _ Centro "Edit;ao \"labclecida. no ambito da A,;s~_e~t;a~dPar~l:ssandro Michcl Foucault. sob a direl;ao de Frant;OIS w~. e .. Fontana. por M:luro Bcnani e Ale,sandro Fontana ISBN 85-336-1004-1 2 . Guerra (Filosofla) 3. Podcr (Fi, I. Cicncia po Illlca - F'lo,;ofia ,. losofia) I. Titulo. II. S
99-0084
indices para eatato~o sistemalico: l. Foucault Obras filos6fic:ls 194
- para o.Bra~il rodos os direilos desra ed irao . L resen'ados d
a
Livraria Martins Fontes Edl10ra t a_ .. ' , Rama lh o. 330 D1P5-000 Suo Paulo R (l Conse!helro 4' SP BlGsl! u Tel 11)3241.3677 Fax.(JlJ3J01.JO,~ .. .
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IX
Aula de 7 de janeiro de 1976 . Que e urn curso? - Os saberes sujeitados. _ 0 saber historico das lutas, as genealogias e 0 discurso cientifico. - 0 poder, 0 que esta em jogo nas genealogias. - Concep9ao juridica e economica do poder. - 0 poder como repressao e como guerra. - Inversao do aforismo de Clausewitz.
3
Curso, anos 1975-1976
Aula de 14 dejaneiro de 1976 . Guerra e poder. - A filosofia e os limites do poder. - Direito e poder regio. - Lei, domina9ao e suj ei 9ao. - Analitica do poder: questoes de metodo. - Teoria da soberania. - 0 poder disciplinar. _ A regra e a norma.
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Aula de 21 dejaneiro de 1976 ··· ·······.. A teoria da soberania e os operadores de dominaCao . - A guerra como analisador das re\acoes de poder. - Estrutura binaria da sociedade. - 0 discurso hist6rico-politico, 0 discurso da guerra perpetua. - A dialetica e suas codificacoes. - 0 discurso da luta das racas e suas transcricoes.
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Aula de 28 de janeiro de 1976 ···· ·········· o discurso hist6rico e seus partidarios. - A contra-hist6ria da luta das racas. - Hist6ria romana e hist6ria biblica. - 0 discurso revolucionirio. - Nascimento e transforrnacoes do racismo. - A pureza da raca e 0 racismo de Estado: transforrnacao nazista e transformacao sovietica.
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Aula de 18 defevereiro de 1976 167 Nacao e nacoes. - A conquista romana. - Grandeza e decadencia dos romanos. - Da liberdade dos germanos segundo Boulainvilliers. - 0 vaso de Soissons. - Origens do feudalismo. - A Igreja, o OOeito, a lingua do Estado. - As tres generalizacoes da guerra em Boulainvilliers: a lei da hist6ria e a lei da natureza; as instituicoes da guerra; 0 ca!culo das forcas. - Observacoes sobre a guerra.
Aula de 4 defevereiro de 1976 ·····..··········· Resposta sobre 0 anti-semitismo. - Guerra e soberania em Hobbes. - 0 discurso da conquista na Inglaterra, entre os monarquistas, os parlamentaristas e os Levellers. - 0 esquema binirio e 0 historicismo politico. - 0 que Hobbes queria eli-
99
Aula de 25 defevereiro de 1976 199 Boulainvilliers e a constituicao de urn continuo hist6rico-politico. - 0 historicismo. - Tragedia e direito publico. - A administracao central da hist6ria. - Problemitica das Luzes e genealogia dos saberes. - As quatro operacoes do saber disciplinar e seus efeitos. - A filosofia e a ciencia. - 0 disciplinamento dos saberes.
minar. Aula de 11 defevereiro de 1976 ··········· 135 A narrativa das origens. - 0 mito troiano. - A hereditariedade da Franca. - "Franco-Gallia." - A invasao, a hist6ria e 0 direito publico. - 0 dualismo nacional. - 0 saber do principe. - "Estado da Franca" de Boulainvilliers. - 0 cart6rio, a reparticao publica e 0 saber da nobreza. - Urn novo sujeito da hist6ria. - Hist6ria e constituic ao .
Aula de 3 de mar90 de 1976...................................... 225 Generalizacao titica do saber hist6rico. - Constitui,ao, Revolucao e hist6ria ciclica. - 0 selvagem e 0 barbaro. - Tres filtragens do barbaro: titicas do discurso hist6rico. - Questoes de metodo: 0 campo epistemico e 0 anti-historicismo da burguesia. Reativacao do discurso hist6rico na Revolucao. Feudalismo e romance g6tico. Aula de 10 de mar90 de 1976 257 Reelaboracao politica da ideia de nacao na Revolu,ao: Sieyes. - Conseqiiencias te6ricas e efeitos sobre 0 discurso hist6rico. - Os dois gabaritos de inteligibilidade da nova teoria: dominacao e totalizacao. - Montlosier e Augustin Thierry. - Nascimento da diaJetica.
Aula de 17 de marro de 1976 . 285 Do poder de soberania ao poder sobre a vida. - Fa-
PREFAcIO
zer viver e deixar morrer. - Do homem-corpo ao
homem-especie: nascimento do biopoder. - Campos de aplica,iio do biopoder. - A popula,iio. - Da morte e da morte de Franco em especIal. - ArtIcUla,5es da disciplina e da regulamenta,.iio: a cidade operitria, a sexualidade, a norma. - BlOpoder e racismo. - Fun,oes e areas de aplica,iio do raCISmo. - 0 nazismo. - 0 socialismo.
Resurno do curso Situariio do curso indice das noroes e dos conceitos lndice onomastico
. . .. .
317 327 353 379
Este volume inaugura a edi,iio dos cursos de Michel Foucault no College de France.
* Michel Foucault lecionou no College de France de janeiro de 1971 ate sua morte, emjunho de 1984 - com exce,iio do ano de 1977, em que pOde beneficiar-se de um ano sabatico. 0 titulo de sua citedra era; Historia dos sistemas de pensamento. Ela foi criada em 30 de novembro de 1969, proposta por Jules Vuillemin, pela assembleia geral dos professores do College de France em substitui,iio it citedra de Hist6ria do pensamento filos6fico, ocupada por Jean Hippolyte ate sua morte. A mesma assembleia elegeu Michel Foucault, em 12 de abril de 1970, titular da nova citedra I. Ele tinha 43 anos. 1. Michel Foucault havia concluido urn opusculo redigido para sua candidatura com esta frase: "Cumpriria empreender a historia dos sistemas de pensamento" ("Titres et travaux", in Dits et ecrits, 1954-1988, ed. por D. Defert & F. Ewald, col. J. Lagrange, Paris, Gallimard, 1944, vol. I, p. 846).
x
EM DEFESA DA SOClEDADE
Michel Foucault proferiu sua aula inaugural em 2 de dezembro de 19702 • o ensino no College de France obedece a regras especificas. Os professores tem a obriga,ao de cumprir 26 horas de ensino por ano (podendo a metade, no maximo, ser dada sob a forma de seminarios3). Devem expor todos os anos uma pesquisa original, 0 que os for,a a estar sempre renovando 0 conteudo de seu ensino. A assistencia aos cursos e aos semimirios e inteiramente livre; nao requer inscri~ao nem diploma. E 0 professor nao emite nenhum4 No voc~ bulitrio do College de France, diz-se que os professores nao tern alunos e sim ollvintes. Os cursos de Michel Foucault eram dados as quartasfeiras do inicio de janeiro ao fim de mar,o. A assistencia, muito' numerosa, composta de estudantes universitarios, de professores, de pesquisadores, de curiosos, muit?s dos qUaIS estrangeiros, mobilizava dois anfiteatros do College de :rance. Michel Foucault queixou-se muitas vezes da dlstancla que podia haver entre ele e seu "publico" e do pouco intercambio possibilitado pela forma do curso'. Sonhava com um seminario que fosse a ocasiao de urn verdadelro traba~ho coletivo. Fez diferentes tentativas. Nos ultimos anos, na salda das aulas, consagrava um bom momento para responder as perguntas dos ouvintes.
2. Sera publicada pelas Editions Gallimard em mar~o de 1971 com 0 titulo: L'ordre du discours. 3. 0 que Michel Foucault fez ate 0 inicio dos anos 1980. 4. No ambito do College de France. . 5. Em 1976, na esperan9a - va - de rarefazer a assistencia, Michel Foucault mudou a hora do curso, que passou de 17h45, no final da tar~e, p.ara as 9h da manha. cr., oeste volume, 0 inicio da primeira aula (7 de JaneIro de 1976).
PREFAcIO
XI
Eis como, em 1975, urnjornalista no Nouvel Observaleur, Gerard Petitjean, podia transcrever seu clima: "Quan-
do Foucault entra na arena, rapido, dinamico, como alguem que se lan,a na agua, passa por cima dos corpos para atingir sua catedra, repele os gravadores para colocar seus papeis, retira 0 paleto, acende uma lampada e come,a, a cem por hora. Voz forte, eficaz, retransmitida por alto-falantes, unica concessao ao modernismo de uma sala mal iluminada por uma luz que sobe de arandelas de estuque. Ha trezentos lugares e quinhentas pessoas apinhadas, tapando 0 menor espa,o livre [...] Nenhum efeito oratorio. E limpido e terrivelmente eficaz. Sem a menor concessao a improvisa,ao. Foucault tem doze horas por ano para explicar, em curso publico, a dire,ao de sua pesquisa durante 0 ano que acabou de findar. Entao, comprime ao maximo e preenche as margens como os correspondentes que ainda tem muito 0 que dizer quando chegaraIn ao fim de sua folha. 19h45. Foucault para. Os estudantes COrrem para a sua escrivaninha. Nao para falar-lhe, mas para desligar os gravadores. Sem perguntas. Na confusao, Foucault esta sozinho." E Foucault comenta: "Seria preciso poder discutir 0 que propus. Algumas vezes, quando 0 curso nao foi born, sena precise pouca coisa, uma pergunta, para reordenar tudo. Mas essa pergunta nunca vem. Na Fran,a, 0 efeito de grupo toma qualquer discussao real impossive!. E, como nao hit canal de retorno, 0 curso fica teatra!. Tenho uma rela,ao de ator ou de acrobata com as pessoas que estao presentes. E, quando acabei de falar, urna sensa,ao de solidao tota!..."6 Michel Foucault abordava seu ensino como urn pesquisador: explora,oes para um livre vindouro, taInbem desbrava6. Gerard Petitjean. "Les Grands Pretres de l'universite franl;aise", Le Nouvel Observateur, 7 de abril de 1975.
XII
EM DEFESA DA SOCIEDADE
mento de campos de problematiza9ao, que se formulavam antes como um convite lan9ado a eventuais pesquisadores. Assim e que os cursos no College de France nao aumentam os livros publicados. Nao sao 0 esb090 deles, mesmo que uns temas possam ser comuns a livros e cursos. Eles tern seu proprio estatuto. Relacionam-se com um regime discursivo especifico no conjunto dos "atos filosOficos" efetuados por Michel Foucault. Neles desenvolve em particular 0 programa de uma genealogia das rela90es saber/poder em fun9ao do qual, a partir do inicio dos anos 1970, ele refletira sobre seu trabalho - em oposi9ao ao de uma arqueologia das forma90es discursivas que ate entao 0 havia dominad0 7• Os cursos tinham tambem uma fun9ao na atualidade. 0 ouvinte que vinha segui-los nao ficava somente cativado pela narrativa que se construia semana apos semana; nao ficava somente seduzido pelo rigor da exposi9ao; nelas encontrava tambem um aclaramento da atualidade. A arle de Michel Foucault era de percorrer rapidamente a atualidade mediante a historia. Podia falar de Nietzsche ou de Aristoteles, da pericia psiquiatrica no seculo XIX ou da pastoral crism, 0 ouvinte sempre tirava dai uma luz sobre 0 presente e os acontecimentos de que era contemporaneo. A for9a propria de Michel Foucault em seus cursos se devia a esse sutil cruzamento entre uma erudi9ao cientifica, um engajamento pessoal e um trabalho baseado no acontecimento.
• Tendo os anos 1970 visto 0 desenvolvimento e 0 aperfei90amento dos gravadores cassetes, a escrivaninha de Michel 7. Cf., em especial, "Nietzsche, la genealogie, l'histoire", in Dits et ecrils, II, p. 137.
PREFAcIO
XIII
Foucault logo foi invadida por eles. Os cursos (e certos seminarios) foram assim conservados. Esta edi9ao toma como referencia a palavra pronunciada publicamente por Michel Foucault. Da-Ihe a transcri9ao mais literal possivel 8. Gostariamos de poder apresenta-la tal qual. Mas a passagem do oral para 0 escrito impoe uma interven9ao do editor: cumpre, no minima, introduzir uma pontua9ao e fazer os paragrafos. 0 principio sempre foi 0 de ficar 0 mais proximo possivel do curso efetivamente pronunciado. Quando parecia indispenstlvel, as reitera90es e as repeti90es foram suprimidas; as frases interrompidas foram restabelecidas e as constru90es incorretas retificadas. Os pontos de suspensao assinalam que a grava9ao e inaudive!' Quando a frase esta obscura, figura, entre coIchetes, uma integra9ao conjetural ou urn acrescimo. Urn asterisco no rodape indica as variantes significativas das notas utilizadas por Michel Foucault em rela9ao ao que foi pronunciado. As cita90es foram verificadas e as referencias dos textos utilizados indicadas. 0 aparelho critico se limita a elucidar os pontos obscuros, a explicitar certas alusoes e a precisar os pontos criticos. Para facilitar a leitura, cada aula foi precedida de urn breve sumario que indica suas articula90es principais.
o texto do curso e seguido do resumo publicado no Annuaire du College de France. Michel Foucault 0 redigia geralmente no mes de junho, portanto algum tempo depois do fim do curso. Era, para ele, uma ocasiao de deixar claros, 8. Foram utilizadas, em especial, as grava90es realizadas por Gilbert Bur[et e Jacques Lagrange, conservadas no College de France e na Biblioteca
do Saulchoir.
XIV
EM DEFESA DA SOCIEDADE
retrospectivamente, sua inten9ao e seus objetivos. Constitui a melhor apresent"9ao deles. Cada volwne acaba com wna "situa,ao" cuja responsabilidade e do editor do curso: trata-se de dar ao leitor elementos contextuais de ordem biognifica, ideologica e politica, que situam 0 curso na obra publicada e fomecem indica,6es referentes ao seu lugar no seio do corpus utilizado, a fim de facilitar seu entendimento e de evitar os contra-sensos que poderiam ser devidos ao esquecimento das circunstancias nas quais cada wn dos cursos foi elaborado e pronunciado.
* Com esta edi,ao dos cursos no College de France, uma nova face da "obra" de Michel Foucault e publicada. Nao se trata, no sentido proprio, de ineditos,ja que esta edi,ao reproduz a palavra proferida publicamente por Michel Foucault, com a exclusao do suporte escrito que ele utilizava e que podia ser muito elaborado. Daniel Defert, que possui as notas de Michel Foucault, permitiu aos editores consultalas. Agradecemo-lhe vivamente. Esta edi,ao dos cursos no College de France foi autorizada pelos herdeiros de Michel Foucault, que desejaram satisfazer a imensa demanda de que eram objeto, tanto na Fran9a como no exterior. E isto em incontestaveis condiyoes de seriedade. Os editores procuraram estar a altura da confian,a que lhes concederam. FRANCOIS EWALD
e
ALESSANDRO FONTANA
Curso Anos 1975-1976
AULA DE 7 DE JANEIRO DE 1976 Que e urn curso? - Os saberes sujeitados. _ 0 saber his/6rieo das lUfas, as genealogias e 0 discurso cien/ifieo. _ o pader, 0 que esta em jogo nas genealogias. _ Concepfiio juridica e economica do pader. - 0 pader como repressiio e como guerra. -lnversiio do aforismo de Clausewitz.
Eu gostaria que ficasse urn pouquinho claro 0 que se passa aqui, nestes cursos. Voces sabem que a institui9ao onde estao, e onde eu estou, nao e exatamente urna institui9ao de ensino. Enfim, seja qual tenha side 0 significado que quiseram dar-Ihe quando foi criado faz muito tempo, atualmente o College de France funciona essencialmente como urna especie de organismo de pesquisa: e-se pago para fazer pesquisa. E eu acho que a atividade de ensino, no limite, nao teria sentido se nao !he dessemos, ou se nao Ihe atribuissemos, em todo caso, 0 significado que aqui vai, ou pelo menos que sugiro: ja que se e pago para fazer pesquisa, 0 que pode controlar a pesquisa que se faz? De que maneira se pode manter a par aqueles que podem se interessar por ela e aqueles que tern alguns motivos de estar ligados a essa pesquisa? Como e que se pode fazer, senao finalmente pelo ensino, isto e, pela declara9ao publica, a presta9ao de contas publica, e relativamente regular, do trabalho que se esta fazendo? Portanto, nao considero estas reuniOes de quarta-feira como atividades de ensino, mas antes como especies de presta90es de contas publicas de urn traba!ho que, por outro lado,
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4
EM DEFESA DA SOClEDADE
deixam-me fazer quase como eu quero. Nesta medida, considero-me absolutamente obrigado, de fato, a dizer-lhes aproximadamente 0 que estou fazendo, em que ponto estou, em que dire9ao [...] vai este trabalho; e, nessa medida, igualmente, considero-os inteiramente livres para fazer, com 0 que eu digo, 0 que quiserem. Sao pistas de pesquisa, ideias, esquemas, pontilhados, instrumentos: fa9am com isso 0 que
quiserem. No limite, isso me interessa, e isso nao me diz respeito. Isso nao me diz respeito, na medida em que nao tenho de estabelecer leis para a utiliza9ao que voces lhes dao. E isso me interessa na medida em que, de uma maneira ou de outra, isso se relaciona, isso esta ligado ao que eu fa90. Dito isso, voces sabem 0 que aconteceu no decorrer dos anOS anteriores: por uma especie de infla9ao cujas razoes nao compreendemos bern, chegamos, acho eu, a algo que estava meio travado. Voces eram obrigados a chegar as quatro e meia [...] e eu me encontrava diante de urn auditorio composto de pessoas com as quais nao tinha, no sentido estrito, nenhum contato, ja que uma parte, se nao a metade do auditorio, tinha de ficar em outra sala, de escutar por microfone o que eu estava dizendo. Nao era mais nem sequer urn espetaculo _ ja que nao nos viamos. Mas estava travado por uma outra razao. E que, para mim - aqui entre nos - 0 fato de ter de armar todas as quartas-feiras a tarde essa especie de circa era urn verdadeiro, como dizer..., suplicio e urn exagero, aborrecimento e urn pouquinho fraco. Enfim, era urn pouco entre os dois. De modo que eu acabava efetivamente preparando estes cursos, com muito cuidado e ate n 9ao , e consagrava muito menos tempo, digamos, a pesquisa propriamente dita, as coisas ao meSilla tempo interessantes e urn pouco incoerentes que eu poderia ter dito, do que a colocarme a questao: como e que eu you poder, em urna hora, uma hora e meia, fazer este ou aquele negocio funcionar, de maneira que nao aborre9a demais as pessoas, e que, afinal de
AULA DE 7 DEJANEIRODE 1976 ~ontas,_a boa
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vontade que tiveram em vir tao cedo me olivir, por tao pouco tempo, seja urn pouco recompensada, etc. De rr:odo que eu passava meses nisso, e acho que 0 que faz a razao de ser ao mesmo t:mpo de minha presen9a aqui, e mesmo da presen9a de voces, ou seja, fazer pesquisa, escarafunc~ar, ventllar certo numero de coisas, ter ideias, tudo ISSO nao era efelIvamente a recompensa do trabalho [cumpndo]. As coisas ficavam muito no ar. Entao eu disse comigo mesmo: em todo caso, nao seria ruim se a gente pudesse so. encontrar entre trinta ou quarenta numa sala: eu podena dlzer aproxlmadamente 0 que fiz, e ao mesmo tempo ter cantatas com voces, fala~, responder as suas perguntas, etc., para recuperar urn pOUqUlnhO as possibilidades de intercamblO e de contato que sao ligadas a uma prMica normal de pesq~l1sa ou de ensino. Entao, como proceder? Legalmente eu nao posso estabelecer condi90es formais de acesso a est~ sala. Adotel, portanto, 0 metodo selvagem que consiste em marcar ~ .cursa para as nove e meia da manha, pensando, c~mo dlZla ontem meu correspondente, que os estudantes n~o sabe~ malS ac~r,d~r as nove e meia. Voces diriio que e, amda aSSlm, urn cnteno de sele9ao que nao e justo: os que acordam e os ~ue nilo acordam. E este ou outro. De qualquer forma, ha sempre uns microfonezinhos, uns gravadores, ~ aSSlrn as COlsas clfculam depois - em certos casas fica em flta, em ?~tros casos e encontrado datilografado, algumas vezes ate e encontrado nas livrarias - entao disse comigo mesmo: sempre vai circular. Vamos entilo tentar [...] Desculpem-me, entao, de te-Ios feito acordar cedo, e transmitam mmhas desculpas t . aos que nao podem vir" e de I.~at0, para razer urn pOUqUlnhO estas conversas e estes encontros de quarta-feIra d~ volta ao fio normal de uma pesquisa, de urn trabalho que 0. felto 0. que e de prestar contas de si mesmo em mtervalos mstltuclOnais e regulares.
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Entao, 0 que e que eu queria lhes dizer este ano? E que eu estou urn pouco cheio; quer dizer, eu gos~ana de tentar encerrar, de por, ate certo ponto, flm a urna sene de pesqmsas - enfim, pesquisa e urna palavra que se emprega de qualquer jeito, 0 que e que ela quer dizer, aO certo? - que vimos fazendo ha quatro ou cinco anos, pratIcamente desde que estou aqui, e que me dou conta que acurnularam inc.onvenientes, tanto para voces como para mlm. Eram pesqmsas muito proximas urnas das outras, sem chegar a formar urn conjunto coerente nem urna continuidade; eram pesqmsas fragmentarias, nenhurna das quais chegou finalmente a seu termo, e que nem sequer tinham seqiiencia; pesqmsas dlSpersas e, ao'mesma tempo, muito repetitivas, que caiam n.o meSilla ramerrao, nos mesmos temas, nos mesmos conceltos. Eram pequenas conversas sobre a historia do processo penal; alguns capitulos referentes 11 evolu,ao, 11 i~stituciona liza,ao da psiquiatria no seculo XIX; consldera,oes so~re a sofistica ou sobre a moeda grega, ou sobre a Inqmsl,ao na Idade Media' 0 esbo,o de uma historia da sexualidade ou, em todo caso: de urna historia do saber da sexualidade atraves das prillicas de conflssao no seculo XVII ou dos control~" da sexualidade infantil nos seculos XVIII-XIX; a locahza,ao da genese de urna teoria e de urn saber da anomalia, com todas as tecnicas que the sao vinculadas. Tudo ISS0 marca passo, nao avan,a; tudo isso se repete e nao esta amarrado. No fundo, tudo isso nao para de dizer a mesma COlsa e, contudo, talvez, nao diga nada; tudo isso se entrecruza nurna embrulhada pouco decifravel, que nao se organiza muito; em suma como se diz, nao da resultado. Eu poderia lhes dizer: afinal de contas, eram pistas para seguir, pouco importava para onde iam; importav: mesmo que nao levassem a parte algurna, em todo caso nao numa dire,ao determinada de antemiio; eram como que pontIlhados. Compete a voces continua-las ou mudar a dire,ao delas; a
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mim, eventualmente, prossegui-Ias ou dar-lhes uma outra configura,ao. Enfim, veremos bern, voces e eu, 0 que se pode fazer com esses fragmentos. Eu me sentia urn pouco como urn cachalote que salta por cima da superficie da agua, deixando nela urn pequeno rastro provis6rio de espuma, e que delxa acredItar, faz acreditar, ou quer acreditar, ou talvez ele acredite efetivamente, que embaixo, onde nao 0 vemos mais onde nao e mais percebido nem controlado por ninguem: ele segue uma trajet6ria profunda, coerente e refletida. Ai esta qual era mais ou menos a situa,ao, tal como a percebo; nao sei 0 que ela era do Iado de voces. AfinaI de contas, 0 fato de que 0 trabalho que Ihes apresentei tenha tido esse andamento fragmentario, repetitivo e descontinuo corresponderia bern a algo que se poderia chamar de "pregui,a febri]", a que afeta 0 cariller dos que adoram as bibliotecas
os documentos, as referencias, as escrituras empoeiradas, o~
textos que jamais sao lidos, os livros que, mal sao impressos, sao fechados de novo e dormem depois em prateleiras das quais s6 sao tirados alguns seculos mais tarde. Tudo isso conviria bern a inercia atarefada daqueles que professam
urn saber para nada, uma especie de saber suntwirio, uma riqueza de novo-rico cujos sinais exteriores, voces sabem muito bern, encontramos dispostos nos rodapes das paginas. Isso conviria a todos aqueles que se sentem solidarios de uma das sociedades secretas, por certo as mais antigas, as mais caracteristicas tambem, do Ocidente, uma dessas sociedades secretas estranhamente indestrutiveis, desconhecidas, parece-me, na Antiguidade, que se formaram cedo no cristianis-
mo, na epoca dos primeiros conventos sem duvida, nos confins das invas6es, dos incendios e das florestas. Quero falar da grande, terna e calorosa franco-ma,onaria da erudi,ao intiti!. S6 que nao foi simplesmente 0 gosto por essa francoma,onaria que me impeliu a fazer 0 que fiz. Parece-me que
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esse trabalho que foi feito, e que passou de urna maneira um pouquinho empirica e instavel de voces para mim e de mim para voces, poderiamos justifica-lo dizendo que ele convinha bastante bem para urn certo periodo, muito limitado, que e aquele que acabamos de viver, os dez ou quinze, no maximo vinte ultimos anos, quero dizer, um periodo no qual se podem notar dois fenomenos que foram, se nao realmente importantes, pelo menos, parece-me, bastante interessantes. De urn lado, foi urn periodo caracterizado por aquilo que poderiamos chamar de eficacia das ofensivas dispersas e descontinuas. Penso em varias coisas, na estranha eficacia, por exemplo, quando se trata de travar 0 funcionamento da institui,ao psiquiatrica, do discurso, dos discursos, muito localizados na verdade, da antipsiquiatria; discursos que, voces bem sabem, nao eram sustentados, e que ainda nao saO sustentados, por nenhurna sistematiza,ao de conjunto, quaisquer que possam ter sido, quaisquer que ainda possam ser suas referencias. Penso na referencia de origem, na analise existenciall, ou nas referencias atuais tiradas, grosso modo, do mar1. Aqui Michel Foucault remete ao movimento psiquiitrico (definido, sucessivamente, como "antropofenomenoI6gico" ou Daseinanalyse) que havia procurado na filosofia de Husser! e de Heidegger novos instrumentos conceituais. Michel Foucault se interessara por eles ji em seus primeiros escritos (Cf. "La maladie et l' existence", in Maladie mentale et personnalite, Paris, Presses Universitaires de France, 1954, cap. IV; "Introdul;ao" a 1. Binswanger, Le reve et l'existence, Paris, Desclee de Brouwer, 1954; "La psychologie de 1850.it 1950", in A. Weber & D. Huisman, Tableau de fa philosophie contemporaine, Paris, Fischbacher, 1957; "La recherche en psycho1ogie", in Des chercheurs s 'interrogent, estudos apresentados por J.-E. Morere, Paris, PUF, 1957; os tres ultimos textos estao publicados in Dits et ecrils, 1954-1988, ed. par D. Defert & F. Ewald, colab. 1. Lagrange, Paris, Gallimardf'Bibliotheque des sciences humaines", 1994,4 vol.; I: 1954-1969; II: 1970-1975; III: 1976-1979; IV: 19801988; cf. I, nos 1,2,3) e voltara a ele nos ultimos anos (cf. Colloqui con Foucault, Salerno, 1981; trad. fr.: in Dits et ecrits, IV, n? 281).
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xismo ou da teoria de Reich'. Penso igualmente na estranha eflcacia dos ataques que ocorreram contra - digamos - a moral ou a hierarquia sexual tradicional, ataques que, tambem eles, se referiam apenas de urna maneira vaga e bastante remota, bem nebulosa em todo caso, a Reich ou a Marcuse 3• Penso ainda na eficacia dos ataques contra 0 aparelho judiciario e penal, alguns dos quais eram muito remotamente relacionados com a no,ao geral, e alias bastante duvidosa, de ')ustiya de classe", enquanto outros eram vinculados, s6 urn pouco mais precisamente, no fundo, a urna temittica anarquista. Penso igualmente, e mais precisamente ainda, na eficacia de algurna coisa - nem sequer me atrevo a dizer de um livro - como 0 Anti-CEdipe4 [Anti-Edipo], que nao se referia, que praticamente nao se referiu a nada mais que a sua pr62. De W. Reich, vee Die Funktion des Orgasmus; zur Psychopatho[ogie und zur Sozi%gie des Geschlechtslebens, Viena, Internationaler tischr psychoanalytischer Verlag, 1927 (trad. fr.: Lafonction de l'orgasme, Paris, L'Arche, 2971); Der Einbruch der Sexualmoral, Berlim, Verlag flit Sexualpolitik, 1932 (tract. fr.: L 'irruption de fa morale sexuelle, Paris, Payot, 1972); Charakteranalyse, Viena, Selbstverlag des Verfassers, 1933 (trad. fr.: L 'ana· lyse caracterielle, Paris, Payot, 1971); Massenpsychologie des Faschismus; zur Sexualokonomie der politis chen Reaktion und zur proletarischen Sexualpolitik, Copenhague/PragaiZurique, Verlag ftir Sexualpolitik, 1933 (trad. fr.: La psychologie de masse du fascisme, Paris, Payot, 1974); Die Sexualitdt im Kulturkamp/, Copenhague, Sexpol Verlag, 1936. 3. Michel Foucault se refere aqui. claro, a H. Marcuse, autor de: Eros and Civilisation: A Philosophical Inquiry into Freud, Boston, Ma., Beacon Press, 1955 (trad. fr.: Eros et civilisation, Paris, Seuil, 1971), e de One-dimensional Man: Studies in the Ideology ofAdvanced Industrial Society, Boston, Ma., Beacon Press, 1964 (trad. fr.: L 'homme unidimensionnel, Paris, Seuil, 1970). 4. G. Deleuze & F. Guattari, L 'Anti-CEdipe. Capitalisme et schizophrenie, Paris, Ed. de Minuit, 1972. Vale 1embrar que Michel Foucault desenvol· veu essa interpretal;ao do Anti-CEdipe como "livro-acontecimento" no prefacio para a tradul;ao inglesa do texto (Anti-Oedipus, Nova York, Viking Press, 1977; cf. trad. fro desse prefacio in Dits et ecrits, III, n~ 189).
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pria e prodigiosa inventividade te6rica; livro, ou melhor, coisa, acontecimento, que conseguiu deixar rouco, ate na pratica mais cotidiana, esse murmUrio, por tanto tempo ininterrupto, que passou do diva para a poltrona. Portanto, eu diria isto: nos ultimos dez ou quinze anos, a imensa e prolifera criticabilidade das coisas, das institui~oes, das pn\ticas, dos discursos; urna especie de friabilidade geral dos solos, mesmo, talvez sobretudo, os mais familiares, os mais s6lidos e mais pr6ximos de n6s, de nosso corpo, de nossos gestos de todos os dias; e isso que aparece. Mas, ao mesmo tempo que essa friabilidade e essa espantosa eficacia das criticas descontinuas e particulares, locais, descobre-se, por isso mesmo, nos fatos, algo que talvez nao estivesse previsto no inicio: seria 0 que se poderia chamar de efeito inibidor pr6prio das teorias totalitirias, quero dizer, em todo caso, das teorias envolventes e globais. Nao que essas teorias envolventes e globais nao tenham fomecido e nao fome~am ainda, de urna maneira bastante constante, instrumentos localmente utilizaveis: 0 marxismo, a psicanalise estao precisamente ai para prova-Io. Mas elas s6 fomeceram, acho eu, esses instrumentos localmente utilizaveis com a condi~ao, justamente, de que a unidade te6rica do discurso fique como que suspensa, em todo caso recortada, cindida, picada, remexida, deslocada, caricaturada, representada, teatralizada, etc. Em todo caso, inteiramente retomada nos pr6prios termos da totalidade levou de fato a urn efeito de freada. Portanto, se quiserem, primeiro ponto, primeira caracteristica do que aconteceu durante estes quinze anos: cariter local da critica, 0 que nao quer dizer, creio eu, empirismo obtuso, ingenuo ou simpl6rio, 0 que tambem nao quer dizer ecletismo frouxo, oportunismo, permeabilidade a urn empreendimento te6rico qualquer, nem tampouco ascetismo urn pouco voluntirio, que se reduziria ele pr6prio it maior magreza te6rica possive!. Creio que esse cariter essencialmente local da
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c~tica indica, d~ fato, al~o que seria urna especie de produ~ao teonca autonoma, nao centralizada, OU seja, que, para estabelecer sua vahdade, nao necessita da chancela de urn reglme comurn. E e P?r ai que chegamos a urna segunda caracteristica do que esta acontecendo faz algum tempo: essa critica local se efetuou, parece-me, por aquilo, atraves daquilo que se podena chamar de "reviravoltas de saber". Por "reviravoltas de saber", quero dizer 0 seguinte: se everdade que, nesses anos que ac.abaram de. passar, era comum encontrar, pelo menos num mvel superflclal, toda uma temitica: "niiol chega de saber, 0 que mt,;ressa e a vida", "chega de conhecimentos, 0 que mteressa e 0 re~l", "nada de livros, e siro grana*", etc" parece-me que de?alXO de toda essa tematica, atraves dela, nessa .mesma temat~ca, 0 que se viu acontecer foi 0 que se pod:~la chamar. de ,~surrei~ao dos "saberes sujeitados". E, por saber sUjeltado , entendo duas coisas. De uma parte, quero deslgnar, em surna, conteudos hist6ricos que foram s~pultad?s, ~ascarados em coerencias funcionais au em sl~temahza~oes formais. Concretamente, se preferirem, nao f01 certamente uma semiologia da vida em hospicio, nao foi tampouco uma socl~logla da delinqiiencia, mas sim 0 apareClmento de, conteudos hist6ricos 0 que permitiu fazer, tanto do hOSP1ClO como da pnsao, a critica efetiva. E pura e slmplesmente porque apenas os conteudos hist6ricos podem permltlr descobrir a clivagem dos enfrentamentos e das lutas que as ordena~oes funcionais ou as organiza~oes sistemahcas t~:eram CO~O. objetivo, justamente, mascarar. Portanto, os saberes sUjeltados" sao blocos de saberes hist6ricos. que estavam presentes e disfar~ados no interior dos conjuntos funClOnalS e sistematicos, e que a critica pode fazer reaparecer pelos meios, e claro, da erudi~ao. 'Manuscnto, . no lugar de "grana": '·viagem".
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Em segundo lugar, por "saberes sujeitados", acho que se deve entender outra coisa e, em cecto sentido, urna coisa totalmente diferente. Por "saberes sujeitados", eu entendo igualmente toda uma serie de saberes que estavam desqualificados como saberes nao conceituais, como saberes insuficientemente elaborados: saberes ingenuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nivel do conhecimento ou da cientificidade requeridos. E foi pelo reaparecimento desses saberes de baixo, desses saberes nao qualificados, desses saberes desqualificados mesmo, foi pelo reaparecimento desses saberes: 0 do psiquiatrizado, 0 do doente, 0 do enfermeiro, 0 do medico, mas paralelo e marginal em compara9ao com 0 saber medico, 0 saber do delinqiiente, etc. - esse saber que denominarei, se quiserem, o "saber das pessoas" (e que nao e de modo algurn urn saber comum, urn born senso, mas, ao contnirio, urn saber particular, urn saber local, regional, urn saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua for9a apenas a contundencia que opoe a todos aqueles que 0 rodeiam) -, foi pelo reaparecimento desses saberes locais das pessoas, desses saberes desqualificados, que foi feita a critica. Voces me dido: M, ainda assim, ai como que urn estranho paradoxo em querer agrupar, acoplar na mesma categoria dos "saberes sujeitados", de urn lado, esses conteudos do conhecimento hist6rico meticuloso, erudito, exato, tt~cnico, e depois esses saberes locais, singulares, esses saberes das pessoas que sao saberes sem senso comum e que foram de cecto modo deixados em repouso, quando nao foram efetiva e explicitamente mantidos sob tutela. Pois bern, acho que foi nesse acoplamento entre os saberes sepultados da erudi9aO e os saberes desqualificados pela hierarquia dos conhecimentos e das ciencias que se decidiu efetivamente 0 que fomeceu acritica dos discursos destes ultimos quinze anos a sua for9a essencia!. Tanto nurn caso como no outro, de fato,
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nesse saber da erudi9ao como nesses saberes desqualificados, nessas duas fonnas de saberes, sujeitados ou sepultados, de que se lratava? Tratava-se do saber hist6rico das lutas. No dominio especializado da erudi9ao tanto como no saber desqualificado das pessoas jazia a mem6ria dos combates, aquela, precisamente, que ate entio tinha sido mantida sob tutela. E assim se delineou 0 que se poderia chamar urna genealogia, ou, antes, assim se delinearam pesquisas geneal6gicas multiplas, a urn s6 tempo redescoberta exata das lutas e mem6ria bruta dos combates; e essas genealogias, como acoplamento desse saber erudito e desse saber das pessoas, s6 foram possiveis, e inclusive s6 puderam ser tentadas, com uma condi9aO: que fosse revogada a tirania dos discursos englobadores, com sua hierarquia e com todos os privilegios das vanguardas te6ricas. Chamemos, se quiserem, de "genealogia" 0 acoplamento dos conhecimentos eruditos e das mem6rias locais, acoplamento que pennite a constitui9aO de urn saber hist6rico das lutas e a utiliza9aO desse saber nas tMicas atuais. Sera essa, portanto, a defini9aO provis6ria dessas genealogias que tentei fazer com voces no decoITer dos ultimos anos. Nessa atividade, que se pode, pois, dizer geneal6gica, voces veem que, na verdade, nao se trata de forma alguma de opor a unidade abstrata da teoria a multiplicidade concreta dos fatos; nao se trata de fonna alguma de desqualificar 0 especulativo para the opor, na fonna de urn cientificismo qualquer, 0 rigor dos conhecimentos bern estabelecidos. Portanto, nao e urn empirismo que perpassa 0 projeto geneal6gico; nao e tampouco urn positivismo, no sentido comum do tenno, que 0 segue. Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham saberes locais, descontinuos, desqualificados, nao legitimados, contra a instancia te6rica unitaria que pretenderia filtra-Ios, hierarquiza-Ios, ordena-Ios em nome de urn conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de urna ciencia que seria possuida par alguns. As genealogias nao
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saO, portanto, retornos positivistas a uma forma de ciencia
mais atenta ou mais exata. As genealogias sao, muito exatamente, anticiencias. Nao que elas reivindiquem 0 direito lirico a ignorilncia e ao nao-saber, nao que se tratasse da recusa de saber ou do por em jogo, do por em destaque os prestigios de uma experiencia imediata, ainda nao captada pelo saber. Nao e disso que se trata. Trata-se da insurrei9ao dos saberes. Nao tanto contra os conteudos, os metodos ou os conceitos de uma ciencia,mas de urna insurrei~ao sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores de poder que sao vinculados a institui9ao e ao funcionamento de urn discurso cientifico organizado no interior de uma sociedade como a nossa. E se essa institucionaliza9ao do discurso cientifico toma corpo numa universidade ou, de urn modo geral, num aparelho pedagogico, se essa institucionaliza9ao dos discursos cientificos toma corpo numa rede teoricocomercial como a psicanalise, ou num apareiho politico, com todas as suas aferencias, como no caso do marxismo, no fundo pouco importa. E exatamente contra os efeitos de poder proprios de um discurso considerado cientifico que a genealogia deve travar 0 combate. De uma forma mais precisa ou, em todo caso, que talvez lhes soe melhor, eu diria isto: desde M muitos anos, desde mais de um seculo por certo, voces sabem quaD numerosos tern side os que se perguntaram se
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marxismo era
ou nao uma ciencia. Poderiamos dizer que a mesma pergunta foi formulada, e nao para de ser, a proposito da psicanalise ou, pior ainda, da semiologia dos textos litenirios. Mas a esta pergunta: "E ou nao e ciencia?", as genealogias ou os genealogistas responderiam: "Pois bern, precisamente, 0 que criticamos em voces e fazer do marxismo, ou da psicanalise, ou desta ou daquela coisa, uma ciencia. E, se temos uma obje9ao a fazer ao marxismo, e que ele poderia efetivamente ser urna ciencia." Em termos urn poueo mais, se nao elabo-
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rados, [pelo menos] diluidos, eu diria 0 seguinte: antes mesmo de saber em que medida uma coisa como 0 marxismo ou a psicanalise e analoga a uma priltica cientifica em seu desenrolar cotidiano, em suas regras de constru9ao, nos conceitos utilizados, antes mesmo de se fazer essa pergunta da analogia formal ou estrutural de um discurso marxista ou psicanalitico com um discurso cientifico, nao e necessario primeiro levantar a questao, se interrogar sobre a ambi9ao de poder que a pretensao de ser uma ciencia traz consigo? A questao, as questiles que e preciso formular nao serao estas: "Quais tipos de saber voces querem desqualificar no momenta em que voces dizem ser esse saber uma ciencia? Qual sujeito falante, qual sujeito discorrente, qual sujeito de experiencia e de saber voces querem minimizar quando dizem: 'eu, que fa90 esse discurso, fa90 um discurso cientifico e sou cientista'? Qual vanguarda teorico-politica voces querem entronizar, para destaca-la de todas as formas maci9as, circulantes e descontinuas de saber?" E eu diria: "Quando eu vejo voces se esfor9arem para estabelecer que 0 marxisrna e uma ciencia, nao os vejo, para dizer a verdade, demonstrando de uma vez por todas que 0 marxismo tern uma estrutura racional e que suas proposi95es dependem, por conseguinte, de procedimentos de verifica9ao. Eu os vejo, sobretudo e acima de tudo, fazendo outra coisa. Eu os vejo vinculando ao discurso marxista, e eu os vejo atribuindo aos que fazem esse discurso, efeitos de poder que 0 Ocidente, desde a Idade Media, atribuiu a ciencia e reservou aos que fazem urn discurso cientifico." A genealogia seria, pois, relativamente ao projeto de uma inser9ao dos saberes na hierarquia do poder proprio da ciencia, uma especie de empreendimento para dessujeitar os saberes historicos e torna-Ios livres, isto e, capazes de oposi9ao e de luta contra a coer9ao de urn discurso teorico unitario, formal e cientifico. A reativa9ao dos saberes locais -
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"menores", talvez dissesse Deleuze s - contra a hierarquiza,ao cientifica do conhecimento e seus efeitos de poder intrinsecos, esse e 0 projeto dessas genealogias em desordem e picadinhas. Eu diria em duas palavras 0 seguinte: a arqueologia seria 0 metodo pr6prio da analise das discursividades locais, e a genealogia, a tatica que faz intervir, a partir dessas discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que dai se desprendem. Isso para reconstiluir 0 projeto de conjunto. Voces estao vendo que todos os fragmentos de pesquisa, todas essas considera,oes a urn s6 tempo entrecruzadas e pendentes que repeti com obstina,ao nos ultimos quatro ou cinco anos, poderiam ser consideradas elementos dessas genealogias, que eu nao fui, longe disso, 0 unico a fazer ao longo destes ultimos quinze anos. Questao: entao por que naG se continuaria com uma teoria tao bonita - e provavelmente tao pouco verificavel - da descontinuidade?' Por que
5. Os conceitos de "menor" e de "minoria" - antes acontecimentos singulares do que essencias individuais, antes individua<;oes por "ecceidade" do que substancialidade - foram elaborados por G. Deleuze, com F. Guattari, in Kafka. Pour une litterature mineure (Paris, Ed. de Minuit, 1975), retomados por Deleuze no artigo "Philosophie et minorite" (Critique, fevereira de 1978), e desenvolvidos ulteriormente, em especial em G. Deleuze & F. Guattari, MjlJe plateaux. Capitalisme et schizophrimie, Paris, Ed. De Minuit, 1980. A "minoria" remete tambem ao conceito de "molecular" elaborado por F. Guattari em Psychanalyse et transversalite. Essai d'analyse institutionnelle (Paris, Maspero, 1972), cuja 16gica e a do "devir" e das "intensidades". 6. Michel Foucault se refere aqui ao debate que se iniciara sobretudo depois da publica>;ao de Les mots et les choses. Une archeologie des sciences humaines (Paris, Gallimard, 1966), a prop6sito do conceito de episteme e do estatuto da descontinuidade. A todas as criticas, Foucault respondera com uma serie de precisC>es te6ricas e metodo16gicas (notadamente "Reponse aune question", Esprit, maio de 1968, pp. 850-74, e "Reponse au Cercle d'epistemologie", Cahiers pour I'analyse, 9, 1968, pp. 9-40; in Dits et ecrits, I, no~ 58 e 59), retamados mais tarde em L 'archeologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969.
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e que eu nao continuo, e por que e que nao pego tambem alguma coisa pequena, que estaria no campo da psiquiatria, no campo da teoria da sexualidade, etc.? Poderiamos continuar, e verdade, e ate certo ponto eu tentarei continuar, nao fosse talvez urn certo numero de mudan,as, e de mudan,as na conjuntura. Quero dizer que, em compara,ao com a silua,ao que conhecemos cinco, dez ou ate quinze anos atras, as coisas talvez tenham mudado; a batalha talvez nao tenha inteiramente a mesma cara. sera que estamos mesmo, em todo caso, neSsa mesma rela,ao de for,a que nos permitiria valorizar, de certo modo em estado vivo e fora de qualquer sujei,ao, esses saberes desencavados? Que for,a eles tern por si mesmos? E, afinal de contas, a partir do momento em que se resgatam assim fragmentos de genealogia, a partir do momenta em que se valorizam, em que se poem em circula,ao essas especies de elementos de saber que tentamos desencavar, nao correro eles 0 risco de ser recodificados, recolonizados por esses discursos unitarios que, depois de oS ter a principio desqualificado e, posteriormente, ignorado quando eles reapareceram, talvez estejam agora prontos para anexa-Ios e para retoma-Ios em seu pr6prio discurso e em seus pr6prios efeitos de saber e de poder? E se quisermos proteger esses fragmentos assim resgatados, nao nos exporemos a construir nos mesmos, com nossas proprias maos, esse discurso unitario a que nos convidam, talvez como para uma armadilha, os que nos dizem: "Tudo isso e muito simpatico, mas leva aonde? Em que dire,ao? A qual unidade?" A tenta,ao, ate certo ponto, e de dizer: pois bern, continuemos, acurnulemos. Afinal de contas, ainda nao chegou 0 momento em que corremos 0 risco de ser colonizados. Eu lhes dizia agora ha pouco que esses fragmentos geneal6gicos talvez corram 0 risco de ser recodificados; mas poderiamos, afinal de contas, lan,ar 0 desafio e dizer: "Tentem entao!" Poderiamos dizer, por exemplo:
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desde 0 tempo em que a antipsiquiatria ou a genealogia das institui,oes psiquiatricas foram empreendidas - faz bem
uns quinze anos agora - por acaso apareceu urn s6 marxista, urn so psicanalista, urn so psiquiatra para refazer isso em seus proprios termos, e para mostrar que essas genealogias eram falsas, mal elaboradas, mal articuladas, mal fundamentadas? De fato, as coisas sao tais que esses fragmentos de genealogia que foram feitos continuam ai, cercados de urn silencio prudente. 0 maximo que lhes opoem sao proposi,oes como as que acabamos de ouvir recentemente na boca, acho eu, do Sr. Juquin': "Tudo isso e muito simpatico. Mas ainda assim a psiquiatria sovietica e a primeira do mundo." Eu ditia: "Claro, a psiquiatria sovi6tica, 0 senhor tem razao, e a primeira do mundo, e e precisamente isso que the reprovam." 0 silencio, ou melhor, a prudencia com que as teorias unitanas evitam a genealogia dos saberes talvez fosse, pois, uma razao para continuar. Poderiamos, em todo caso, multiplicar assim os fragmentos genealogicos como outras tantas armadilhas, questOes, desafios, como voces quiserem. Mas, sem duvida, e otimista demais, a partir do momenta em que se trata, afinal de contas, de urna batalha - de urna batalha dos saberes contra os efeitos de poder do discurso cientifico -, tomar 0 silencio do adversario como prova de que the metemos medo. 0 silencio do adversario - [e] e este urn principio metodologico ou urn principio tatico que sempre se deve ter em mente - talvez seja, da mesma forma, 0 sinal de que nao the metemos medo algum. E devemos agir, acho eu, como se justamente nao the metessemos medo. E, portanto, 0 problema nao e dar um solo teorico continuo e solido a todas as genealogias dispersas - nao quero de modo algum Ihes dar, Ihes sobre7. Na epoca, deputado do Partido Comunista Frances.
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por um tipo de coroamento teorico que as unificaria -, mas tentar, nos cursos seguintes, e por certo ja este anD, precisar ou delinear 0 que esta em jogo nesse por em oposi,ao, nesse por em luta, nesse por em insurrei,ao os saberes contra a institui,ao e os efeitos de saber e de poder do discurso cientifico. o que esta em jogo em todas essas genealogias, voces sabem, mal tenho necessidade de precisar, e isto: 0 que e esse poder, cuja irrup,ao, cuja fOf9a, cuja contundencia, cujo absurdo apareceram concretamente no decorrer destes ultimos quarenta anos, ao mesmo tempo na linha de desmoronamento do nazismo e na linha de recuo do stalinismo? 0 que e 0 poder? Ou melhor - porque a pergunta: "0 que e 0 poder?" seria justamente uma questao teorica que coroaria o conjunto, 0 que eu nao quero -, 0 que esta em jogo e determinar quais sao, em seus mecanismos, em seliS efeitos, em suas rela,oes, esses diferentes dispositivos de poder que se exercem, em niveis diferentes da sociedade, em campos e com extensoes tao variadas. Grosso modo, acho que 0 que esta em jogo em tudo isso e 0 seguinte: a analise do poder, ou a analise dos poderes, pode, de urna maneira ou de outra, ser deduzida da economia? Eis por que formulo esta questao, e eis 0 que quero dizer com isso. Nao quero de modo algum suprimir diferen«as inumeniveis, gigantescas, mas, apesar e atraves dessas diferen,as, parece-me que Ita um certo ponto em comum entre a concep,ao juridica e, digamos, liberal do poder politico - a que encontramos nos filosofos do seculo XVIII - e tambem a concep,ao marxista ou, em todo caso, uma certa concep,ao corrente que vale como sendo a concep,ao do marxismo. Esse ponto comum seria aquilo que eu chamaria de "economismo" na teoria do poder. E, com isso, quero dizer 0 seguinte: no caso da teoria juridica classica do poder, o poder e considerado urn direito do qual se seria possuidor
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como de wn bern, e que se poderia, em conseqiiencia, transferir ou alienar, de urna forma total ou parcial, mediante urn ato juridico ou urn ato fundador de direito - pouco importa, por ora - que seria da ordem da cessao ou do contrato. 0 poder e aquele, concreto, que todo individuo detem e que viria a ceder, total ou parcialmente, para constituir urn poder, urna soberania pOlitica. A constitui,ao do poder politico se faz, portanto, nessa serie, nesse conjunto tearieD a que me refiro, com base no modelo de urna opera,ao juridica que seria da ordem da troca contratua!. Analogia, por conseguinte, manifesta, e que corre ao longo de todas essas teorias, entre 0 poder e os bens, 0 poder e a riqueza. No outro caso, claro, eu penso na concepyao marxista geral do poder: nada disso, e evidente. Mas voces tern nessa concepyao marxista algo diferente, que se poderia chamar de "funcionalidade economica" do poder. "Funcionalidade economica", na medida em que 0 pape! essencial do poder seria manter rela,6es de produyao e, ao mesmo tempo, reconduzir urna dominayao de classe que 0 desenvolvimento e as modalidades pr6prias da apropria,ao das foryas produtivas tornaram possive!. Neste caso, 0 poder politico encontraria na economia sua razao de ser hist6rica. Em linbas gerais, se preferirem, nurn caso, tem-se urn poder politico que encontraria, no procedimento da troca, na economia da circulayao dos bens, seu modelo formal; e, no outro caso, 0 poder politico teria na economia sua razao de ser hist6rica, e 0 principio de sua forma concreta e de seu funcionamento atua!' o problema que e 0 mobil das pesquisas de que estou falando pode, creio eu, ser decomposto da seguinte maneira. Primeiramente: 0 poder esUi sempre nurna posi,ao secundaria em relayao it economia? E sempre finalizado e como que funcionalizado pela economia? 0 poder tern essencialmente como razao de ser e como finalidade servir it econo-
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mia? Esta destinado a faze-Ia funcionar, a solidificar, a manter, a reconduzir relac;5es que sao caracteristicas dessa economia e essenciais ao seu funcionamento? Segunda questaa: o poder e modelado com base na mercadoria? 0 poder e algo que se possui, que se adquire, que se cede por contrato ou por for,a, que se aliena ou se recupera, que circula, que irriga esta regiao, que evita aquela? Ou entao, e preciso, ao contrario, para analisa-lo, tentar lan,ar mao de instrurnentos diferentes, mesmo que as relay6es de poder sejam profundamente intricadas nas e com as re!a,6es economicas, mesmo que efetivamente as relay6es de poder constituam sempre uma especie de feixe ou de anel com as relay6es economicas? E, nesse casa, a indissociabilidade entre a economia e 0 politico nao seria da ordem da subordinayao funcional, nem tampouco da ordem da isomorfia formal, mas de uma outra ordem que se trataria precisamente de revelar. Para fazer uma analise nao economica do poder, de que, atualmente, dispomos? Acho que se pode dizer que dispomos realmente de muito pouca coisa. Dispomos, primeiro, da afirma,ao de que 0 poder nao se da, nem se troca, nem se retorna, mas que ele se exerce e s6 existe em ata. Dispomos
igualmente desta outra afirma,ao, de que 0 poder nao e primeiramente manutenyao e reconduyao das relay6es economicas, mas, em si mesma, primariamente, uma rela~ao de
for,a. Algumas quest6es, ou melhor, duas quest6es: se 0 poder se exerce, 0 que e esse exercicio? Em que consiste? Qual e sua med.nica? Temos aqui algo que eu diria era uma resposta-ocasiao, enfim, urna resposta imediata, que me parece descartada finalmente pelo fato concreto de muitas analises atuais: 0 poder e essencialmente 0 que reprime. E 0 que reprime a natureza, os instintos, uma classe, individuos. E, quando, nO discurso contemporaneo, encontramos essa defini,ao repisada do poder como 0 que reprime, afinal de
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contas, 0 discurso contemporaneo nao faz uma invenl;ao. Hegel fora 0 primeiro a dizer, depois Freud, depois Reich'. Em todo caso, esse orgao de repressao e, no vocabulario de hoje, 0 qualificativo quase homerico do poder. Entao, a analise do poder nao deve ser antes de mais nada, e essencialmente, a analise dos mecanismos de repressao? Em segundo lugar - segunda resposta-ocasiao, se qui-
serem -, se 0 poder e mesmo, em si, emprego e manifestac;ao de uma rela,ao de for,a, em vez de analisa-lo em termos de cessao, contrato, alienac;ao, em vez mesma de analisa-Io em termos funcionais de recondu,ao das rela,oes de produ,ao, nao se deve analisa-lo antes e acima de tudo em termos de combate, de enfrentamento ou de guerra? Teriamos, pois, diante da primeira hipotese - que e: 0 mecanismo do poder e, fundamental e essencialmente, a repressao -, uma segunda hipotese que seria: 0 poder e a guerra, e a guerra continuada por Qutros meios. E, oeste momento, inverteriamos a proposi,ao de Clausewitz' e diriamos que a politica e a guerra continuada por outros meios. 0 que significaria tres coisas. Primeiro isto: que as rela,oes de poder, tais como funcionam numa sociedade como a nossa, tern essencialmente 8. Cf. G. w. F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, Berlim, 1821, §§ 182-340 (trad. fr.: Principes de fa philosophie du droit, Paris, Vrin, 1975); S. Freud, "Das Unbewussten", in Internationale Zeitschriftfiir iirtzliche Psychoanalyse, vol. 3 (4) e (5),1915, e Die ZukunJt einer Illusion, LeipziglViena/Zurique, Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1927 (trad. fr.: L 'Qvenir d'une illusion, Paris, Denoel, 1932; reed. Paris, PUF, 1995). 1\0 tocante a Reich, cf. supra, nota 2. 9. Michel Foucault alude a formular;ao bern conhecida do principio de Carl von Clausewitz (Vorn Kriege, !iv.I, cap. I, § XXIV, in Hinterlassene Werke, Bd. 1-2-3, Berlim, 1832; trad. fro De fa guerre, Paris, Ed. de Minuit, 1955), segundo a qual: "A guerra nao e mais que a continuar;ao da politica por outros meios"; ela "nao e somente urn ato politico, mas urn verdadeiro instrumento da politica, seu prosseguimento por outros meios" (ibid., p. 28). Ver tambem !iv. II, cap. III, § III e liv. VIII, cap. VI.
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como ponto de ancoragem uma certa rela,ao de for,a estabeleclda em dado momenta, historicamente precisavel, na guerra e pela guerra. E, se e verdade que 0 poder politico para a guerra, faz remar ou tenta fazer reinar uma paz na sociedade civil, nao e de modo algum para suspender os efeitos da guerra ou para neutralizar 0 desequilibrio que se manife,stou na batalha final da guerra. 0 poder pOlitico, nessa hipotese, tena como fun,ao reinserir perpetuamente essa rela,ao de for,a, mediante uma especie de guerra silenciosa e de reinseri-la nas institui,oes, nas desigualdades econ6: mIcas, na lmguagem, ate nos corpos de uns e de outros. Seria pois, 0 primeiro sentido a dar a esta inversao do aforismo d~ Clausewitz: a politica e a guerra continuada por outros meios' isto e, a politica e a san,ao e a recondu,ao do desequilibri~ das. for,as .manifestado na guerra. E a inversao dessa propoSl,ao slgmflcana outra cOlsa tambem, a saber: no interior d~ssa "paz civil", as lutas politicas, os enfrentamentos a propOSHo do poder, com 0 poder, pelo poder, as modifica,oes das rela,oes de for,a - acentua,oes de urn lado, reviravoltas, etc. -, tudo isso, num sistema pOlitico, deveria ser interpretado apenas com,o as continua,oes da guerra. E seria para declfrar como eplsodlOS, fragmenta,oes, deslocamentos da propria guerra. Sempre se escreveria a historia dessa mesrna guerra, mesmo quando se escrevesse a historia da paz e de suas institui,oes. A inversao do aforismo de Clausewitz significaria ainda uma terceira coisa: a decisao final so pode vir da guerra, ou seJa, de uma prova de for,a em que as armas, finalmente deverao ser juizes. 0 fim do politico seria a derradeira bata: lha, isto e, a derradeira batalha suspenderia afinal, e afinal somente, 0 exercicio do poder como guerra continuada. Voces estao venda, portanto, que, a partir do momenta em que tentamos libertar-nos dos esquemas econ6micos para anahsar 0 poder, encontramo-nos imediatamente em face de duas hipoteses maci,as: de uma parte, 0 mecanismo do poder
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seria a repressao - hipotese que, se voces concordarem, chamarei comodamente hipotese de Reich - e, em segundo lugar, 0 fundamento da rela,ao de poder e 0 enfrentamento belicoso das for,as - hipotese que chamarei, tambem aqui por comodidade, hipotese de Nietzsche. Essas duas hipote-
ses DaO sao inconciliaveis; ao contnirio, parecem ate se encadear com bastante verossimilhan,a: afinal de contas, a repressao nao e a conseqiiencia politica da guerra, um pouco como a opressao, na teoria cbissica do direito politico, era 0 abuso da soberania na ordem juridica? Poderiamos, pois, contrapor dois grandes sistemas de analise do poder. Um, que seria 0 velho sistema que voces encontram nos filosofos do seculo XVIII, se articularia em tome do poder como direito original que se cede, constitutivo da soberania, e tendo 0 contrato como matriz do poder politico. E haveria 0 risco de esse poder assim constituido, quando ultrapassa a si mesmo, ou seja, quando vai alem dos proprios termos do contrato, tomar-se opressao. Poder-contrato, tendo como limite, ou melhor, como ultrapassagem do limite, a opressao. E voces teriam 0 outro sistema que tentaria, pelo contrario, analisar 0 poder politico nao mais de acordo com 0 esquema contrato-opressao, mas de acordo com 0 esquema guerra-repressao. E, nesse momento, a repressao naD
e 0 que era a opressao em relayao ao contrato,
ou seja, urn abuso, mas, ao contnirio, 0 simples efeito e 0 simples prosseguimento de uma rela,ao de domina,ao. A repressao nada mais sena que
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emprego, no interior dessa
pseudopaz solapada por uma guerra continua, de uma rela,ao de for,a perpetua. Portanto, dois esquemas de analise do pader: 0 esquema contrato-opressao, que e, se voces preferirem, 0 esquema juridico, e 0 esquema guerra-repressao, ou domina,ao-repressao, no qual a oposi,ao pertinente nao e a do legitime e do ilegitimo, como no esquema precedente, mas a oposi,ao entre luta e submissao.
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Eevidente que tudo 0 que eu Ihes disse ao lange dos anos anteriores se insere do lado do esquema luta-repressao. Foi este esquema que, de fato, eu tentei aplicar. Ora, it medida que eu 0 aplicava, fui levado mesmo assim a reconsidera-Io; ao mesmo tempo, claro, porque numa por,ao de pontos ele ainda esta insuficientemente elaborado - eu diria mesmo que esta totalmente inelaborado - e tambem porque creio que as duas n090es, de "repressao" e de "guerra", devem ser consideravelmente modificadas, quando nao, talvez, no limite, abandonadas. Em todo caso, e precise olhar de perto essas duas no,iies, "repressao" e "guerra", OU, se preferirem, 0100 urn pOlleD mais de perto a hipotese de que os mecanismos de poder seriam essencialmente mecanismos de repressao, e a outra hipotese de que, sob 0 poder politico, 0 que paira e 0 que funciona e essencialmente e acima de tudo urna rela,ao belicosa. Acho, e nao digo isso para me gabar, que ja faz bastante tempo que desconfio dessa no,ao de "repressao", e tentei mostrar a voces, justamente a proposito das genealogias de que eu falava agora ha pouco, a proposito da historia do direito penal, do poder psiquiatrico, do controle da sexualidade infantil, etc., que os mecanismos empregados nessas forma,iies de poder eram algo muito diferente da repressao; em todo caso, eram bem mais que ela. Eu nao posso continuar sem retomar um pouquinho, justamente, essa analise da repressao, sem juntar um pouco tudo 0 que pude dizer de uma forma sem duvida um pouco desconexa. Por conseguinte, a proxima aula OU, eventualmente, as duas pr6ximas serao dedicadas it retomada critica da no,ao de "repressao", a tentar mostrar em que e como essa no,ao, de repressao,
tao corrente agora, para caracterizar os mecanismos e os efeitos do poder, e totalmente insuficiente para demarca-los1o. lO. Promessa nao cumprida. Existe, nao obstante, intercalado no manuscrito, urn curso sobre a "repressao" dado, pOT certo, nurna universidade estrangeira. A questiio sera retomada em La volonte de savoir, Paris, Gallimard, 1976.
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Mas 0 essencial do curso sem dedicado ao outro item, ou seja, ao problema da guerra. Eu gostaria de tentar ver em que medida 0 esquema binirrio da guerra, da luta, do enfrentamento das for,as, pode ser efetivamente identificado como 0 fundamento da sociedade civil, a urn s6 tempo 0 principio e 0 motor do exercicio do poder politico. Emesmo exatamente da guerra que se deve falar para analisar 0 funcionamento do poder? Sao validas as no,oes de "tittica", de "estrategia", de "rela,ao de for,a"? Em que medida 0 sao? 0 poder, pura e simplesmente, e urna guerra continuada por meios que nao as armas ou as batalhas? Sob 0 tema agora tornado corrente, tema alias relativamente recente, de que 0 poder tem a incurnbencia de defender a sociedade, deve-se ou nao entender que a sociedade em sua estrutura politica e organizada de maneira que alguns possam se defender contra os outros, ou defender sua domina,ao contra a revolta dos outros, ou simplesmente ainda, defender sua vit6ria e pereniza-Ia na sujei,ao? Portanto, 0 esquema do curso deste ano sera 0 seguinte: primeiro, urna ou duas aulas consagradas a retomada da no,ao de repressao; depois come,arei [a tratar] - eventualmente, prosseguirei nos anos seguintes, sei la - esse problema da guerra na sociedade civil. Come,arei por deixar de lado, justamente, aqueles que passam por te6ricos da guerra na sociedade civil e que nao 0 sao absolutamente em minha opiniao, isto e, Maquiavel e Hobbes. Depois tentarei retomar a teoria da guerra como principio hist6rico de funcionamento do poder, em torno do problema da ra,a, ja que e no binarismo das ra,as que foi percebida, pela primeira vez no Ocidente, a possibilidade de analisar 0 poder politico como guerra. E tentarei conduzir isso ate 0 momento em que luta de ra,as e luta de classes se tornam, no final do seculo XIX, os dois grandes esquemas segundo os quais se [tenta] situar o fenomeno da guerra e as rela,oes de for,a no interior da sociedade politica.
AULA DE 14 DE JANEIRO DE 1976 Guerra e poder. - A filosofia e os limites do poder. Diretto e poder regia. - Lei, dominaryQo e sujeiryQo. - Ana/ifica do poder: questoes de metodo. - Teoria da soberania. - 0 poder disciplinar. - A regra e a norma.
Este ano eu gostaria de come,ar, mas come,ar somente, uma serie de pesquisas sobre a guerra como principio eventual de analise das rela,oes de poder: sera no aspecto da rela,ao belicosa, do lado do modelo da guerra, do lado .do esquema da luta, das lutas, que se podera encontrar um principio de inteligibilidade e de analise do poder politico, do poder politico decifrado, pois, em termos de guerra, de lutas, de enfrentamentos? Eu gostaria de come,ar, for,osamente, como contraponto, com a anillise da institui,ao militar, das institui,oes militares, em seu funcionamento real, efetivo, hist6rico, em nossas sociedades, desde 0 seculo XVII ate os nossos dias. Ate agora, durante os cinco ultimos anos, em linhas gerais, as disciplinas; nos cinco anos seguintes, a guerra, a luta, o exercito. Gostaria ainda assim de fazer urn balan,o do que tentei dizer no decorrer dos anos anteriores, porque isso me fara ganhar tempo para as minhas pesquisas sobre a guerra, que nao estao muito avan,adas, e porque, eventualmente, pode servir de ponto de referencia para aqueles dentre voces que nao estavam aqui nos anos anteriores. Em todo caso, de-
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sejaria fazer 0 balan,o, para mim mesmo, do que tentei percorrer.
o que eu tentei percorrer, desde 1970-1971, era 0 "como" do poder. Estudar 0 "como do poder", isto e, tentar apreender seus mecanismos entre dois pontos de referencia ou dois limites: de urn lado, as regras de direito que delimitam formalmente 0 poder, de outro lado, a outra extremidade, 0 outro limite, seriam os efeitos de verdade que esse poder produz, que esse poder conduz e que, por sua vez, reconduzem esse poder. Portanto, triangulo: poder, direito, verdade. Digamos, esquematicamente, isto: existe urna questao tradicional que e aquela, acho eu, da filosofia politica e que se poderia formular assim: como 0 discurso da verdade ou, pura e simplesmente, como a filosofia, entendida como o discurso por excelencia da verdade, podem fixar os limites de direito do poder? Essa e a questao tradicional. Ora, a que eu queria formular e uma questao abaixo desta, urna questao muito factual em compara,ao a essa questao tradicional, nobre e filos6fica. Meu problema seria de certo modo este: quais sao as regras de direito de que lan,am mao as rela,5es de poder para produzir discursos de verdade? Ou ainda: qual e esse tipo de poder capaz de produzir discursos de verdade que sao, nurna sociedade como a nossa, dotados de efeitos tao potentes? Quero dizer 0 seguinte: numa sociedade como a nossa - mas, afinal de contas, em qualquer sociedade - multiplas rela,5es de poder perpassam, caracterizam, constituem 0 corpo social; elas nao podem dissociar-se, nem estabelecer-se, nem funcionar sem urna produ,ao, uma acurnula,ao, uma circula,ao, urn funcionamento do discurso verdadeiro. Nao hit exercicio do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcionam nesse poder, a partir e atrayeS dele. Somos submetidos pelo poder a produ,ao da ver-
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dade e so podemos exercer 0 poder mediante a produ,ao da verdade. Isso e verdadeiro em toda sociedade, mas acho que na nossa essa rela,ao entre poder, direito e verdade se orgamza de urn modo muito particular. Para assinalar simplesmente, nao 0 proprio mecanismo da rela,ao entre poder, direito e verdade, mas a intensidade da rela,ao e sua constancia, digamos isto: somos for,ados a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita dela para funcionar; temos de dizer a verdade, somos coagidos, somos condenados a confessar a verdade ou a encontra-Ia. 0 poder nao para de questionar, de nos questIonar; nao para de inquirir, de registrar; ele institucionaliza a busca da verdade, ele a profissionaliza, ele a recompensa. Temos de produzir a verdade como, afinal de contas, temos de produzir riquezas, e temos de produzir a verdade para poder produzir riquezas. E, de outro lado, somos igualmente submetidos a verdade, no sentido de que a verdade e a norma' e 0 discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; el~ veicula, ele proprio propulsa efeitos de poder. Afinal de contas, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em fun,ao de discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos especificos de poder. Portanto~ regras de direito, mecanismos de poder, efeitos de verdade. Ou ainda: regras de poder e poder dos discursos verdadeiros. Foi mais ou menos esse 0 dominio geral do percurso que eu qUls fazer, percurso que segui, sei bern, de urna maneira parclal e com muitos ziguezagues. Sobre esse percurso, eu agora gostaria de dizer algumas palavras. Que principio geral me guiou e quais foram as instru,5es imperativas ou as precau,5es de metodo que eu qUls tomar? Urn principio geral no que se refere as rela,5es entre 0 direito e 0 poder: parece-me que hit urn fato que
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nao se pode esquecer: nas sociedades ocidentais, e isto desde a Idade Media, a elabora,ao do pensamento juridico se fez essencialmente em tomo do poder regio. Foi a pedido do poder regio, foi igualmente em seu proveito, foi para servirlhe de instrumento ou de justifica,ao que se elaborou 0 edificio juridico de nossas sociedades. 0 direito no Ocidente e urn direito de encomenda regia. Todos conhecem, claro, 0 papel famoso, celebre, repetido, repisado, dos juristas na organiza,ao do poder regio. Nao convem esquecer que a reativa,ao do direito romano, em meados da Idade Media, que foi o grande fenameno ao redor e a partir do qual se reconstituiu 0 edificio juridico dissociado depois da queda do Imperio Romano, foi urn dos instrumentos tecnicos constitutivos do poder monarquico, autorit:irio, administrativo e, finalmente, absoluto. Forma,ao, pois, do edificio juridico ao redor da personagem regia, a pedido mesmo e em proveito do poder regio. Quando esse edificio juridico, nos seculos seguintes, escapar ao controle regio, quando se tiver voltado contra 0 poder regio, 0 que sera discutido serao sempre os limites desse poder, a questao referente as suas prerrogativas. Em outras palavras, creio que a personagem central, em todo 0 edificio juridico ocidental, e 0 rei. E do rei que se trata, e do rei, de seus direitos, de seu poder, dos eventuais limites de seu poder, e disso que se trata fundamentalmente no sistema geral, na organiza,ao geral, em todo caso, do sistema juridico ocidental. Que os juristas tenham sido os servidores do rei ou tenham sido seus adversarios, de qualquer modo sempre se trata do poder regio nesses grandes edificios do pensamento e do saber juridicos. E, do poder regio, trata-se de duas maneiras: seja para mostrar em que armadura juridica 0 poder real se investia, como 0 monarca era efetivamente 0 corpo vivo da soberania, como seu pader, mesma absoluto, era exatamente ade-
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quado a urn direito fundamental; seja, ao contrario, para mostrar como se devia limitar esse poder do soberano, a quais regras de direito ele devia submeter-se, segundo e no interior de que limites ele deveria exercer seu poder para que esse poder conservasse sua legitimidade. 0 papel essencial da teoria do direito, desde a Idade Media, e 0 de fixar a legitimidade do poder: 0 problema maior, central, em tomo do qual se organiza toda a teoria do direito e 0 problema da soberania. Dizer que 0 problema da soberania e 0 problema central do direito nas sociedades ocidentais significa que 0 discurso e a tecnica do direito tiveram essencialmente como fun,ao dissolver, no interior do poder, 0 fato da domina,ao, para fazer que aparecessem no lugar dessa domina,ao, que se queria reduzir ou mascarar, duas coisas: de urn lado, os direitos legitimos da soberania, do outro, a obriga,ao legal da obediencia. 0 sistema do direito e inteiramente centrado no rei, o que quer dizer que e, em ultima analise, a evic,ao do fato da domina,ao e de suas conseqiiencias. Nos anos precedentes, ao falar das diferentes pequenas coisas que evoquei, 0 projeto geral era, no fundo, inverter essa dire,ao geral da analise, que e aquela, creio eu, do discurso do direito por inteiro desde a Idade Media. Eu tentei fazer 0 inverso, ou seja, deixar, ao contnirio, valer como urn fato, tanto em seu segredo como em sua brutalidade, a dominar;3.o, e depois mostrar, a partir dai, naG s6 como 0 direito e, de uma maneira geral, 0 instrumento dessa domina,ao - isso e 6bvio - mas tambem como, ate onde e sob que forma, 0 direito (e quando digo 0 direito, nao penso somente na lei, mas no conjunto dos aparelhos, institui,5es, regulamentos, que aplicam 0 direito) veicula e aplica rela,5es que nao sao rela,5es de soberania, mas rela,5es de domina,ao. E, com domina,ao, nao quero dizer 0 fato maci,o de "uma" domina,ao global de urn sobre os outros, ou de urn grupo sobre o outro, mas as multiplas formas de domina,ao que podem
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se exercer no interior da sociedade: nao, portanto, 0 rei em sua posi,ao central, mas os suditos em suas rela,oes reciprocas; naD a soberania em seu edificio tinieD, mas as multiplas sujei,oes que ocorreram e funcionam no interior do corpo social. o sistema do direito e 0 campo judiciario sao 0 veiculo permanente de rela,oes de domina,ao, de tecnicas de sujei,ao polimorfas. 0 direito, e preciso examimi-Io, creio eu, nao sob o aspecto de uma legitimidade a ser fixada, mas sob 0 aspecto dos procedimentos de sujei,ao que ele poe em pdtica. Logo, a questa-o, para mim, e curto-circuitar ou evitar esse problema, central para 0 direito, da soberania e da obediencia dos individuos submetidos a essa soberania, e fazer que apare,a, no lugar da soberania e da obediencia, 0 problema da domina,ao e da sujei,ao. Assim sendo, era necessario certo numero de precau,oes de metodo para procurar seguir essa linha, que tentava curto-circuitar a linha geral da analise juridica ou se desviar dela. Precau,oes de metodo; esta primeiro: nao se trata de analisar as formas regulamentadas e legitimas do poder em seu centro, no que podem ser seus mecanismos gerais ou seus efeitos de conjunto. Trata-se de apreender, ao contrario, o poder em suas extremidades, em seus ultimos lineamentos, onde ele se toma capilar; ou seja: tomar 0 poder em suas formas e em suas institui,oes mais regionais, mais locais, sobretudo no ponto em que esse poder, indo alem das regras de direito que 0 organizam e 0 delimitam, se prolonga, em conseqiiencia, mais alem dessas regras, investe-se em institui,oes, consolida-se nas tecnicas e fomece instrumentos de interven~ao materiais, eventualmente ate violentos. Urn exemplo, se voces quiserem: em vez de procurar saber onde e como na soberania, tal como ela e apresentada pela filosofia, seja do direito monarquico, seja do direito democdtico, se ·fundamenta 0 poder de punir, tentei ver como, efetiva-
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mente, a puni,ao, 0 poder de punir consolidavam-se nurn certo nlimero de institui,oes locais, regionais, materiais, seja 0 suplicio ou seja 0 aprisionamento, e isto no mundo a urn s6 tempo institucional, fisico, regulamentar e violento dos aparelhos efetivos da puni,ao. Em outras palavras, apreender 0 poder sob 0 aspecto da extremidade cada vez menos juridica de seu exercicio: era a primeira instru,ao dada. Segunda instru,ao: tratava-se de nao analisar 0 poder no nivel da inten,ao ou da decisao, de nao procurar considera-Io do lado de dentro, de nao formular a questao (que acho labirintica e sem saida) que consiste em dizer: quem tern 0 poder afinal? 0 que tern na cabe,a e 0 que procura aquele que tern 0 poder? Mas sim de estudar 0 poder, ao contrario, do lado em que sua inten,ao - se inten,ao houver - esta inteiramente concentrada no interior de pdticas reais e efetivas; estudar 0 poder, de certo modo, do lado de sua face extema, no ponto em que ele esta em rela,ao direta e imediata com 0 que se pode denominar, muito provisoriamente, seu objeto, seu alvo, seu campo de aplica,ao, no ponto, em outras palavras, em que ele se implanta e produz seus efeitos reais. Portanto, nao: por que certas pessoas querem dominar? 0 que elas procuram? Qual e sua estrategia de conjooto? E siro: como as coisas acontecem no momento mesmo, no nivel, na altura do procedimento de sujei,ao, ou nesses processos continuos e ininterruptos que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos. Noutros termos, em vez de perguntar-se como 0 soberano aparece no alto, procurar saber como se constituiram pouco a pouco, progressivamente, realmente, materialmente, os suditos, 0 sudito, a partir da multiplicidade dos corpos, das for,as, das energias, das materias, dos desejos, dos pensamentos, etc. Apreender a instancia material da sujei,ao enquanto constitui9ao dos suditos seria, se voces quiserem, exatamente 0
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contrario do que Hobbes tinba pretendido fazer no Leviatii 1, e, acho eu, afinal de contas, todos os juristas, quando 0 problema deles e saber como, a partir da multiplicidade dos individuos e das vontades, pode se formar urna vontade ou ainda urn corpo Unicos, mas animados por urna alma que seria a soberania. Lembrem-se do esquema do Leviatii': nesse esquema, 0 Leviata, enquanto homem fabricado, nao e mais do que a coagula9ao de urn certo numero de individualidades separadas, que se encontram reunidas por certo numero de elementos constitutivos do Estado. Mas, no cora9ao, ou melhor, na cabe9a do Estado, existe alguma coisa que 0 constitui como tal, e essa alguma coisa e a soberania, da qual Hobbes diz que e precisamente a alma do Leviata. Pois bern, em vez de formular esse problema da alma central, eu acho que conviria tentar - 0 que eu tentei fazer - estudar os corpos perifericos e multiplos, esses corpos constituidos, pelos efeitos do poder, como suditos. Terceira precau9ao de metodo: nao tomar 0 poder como urn fenomeno de domina9ao maci90 e homogeneo - domina9ao de urn individuo sobre os outros, de urn grupo sobre os outros, de uma c1asse sabre as outras -; ter bern em mente que 0 poder, exceto ao considera-Io de muito alto e de mui1. Th. Hobbes, Leviathan, or the Matter, Forme and Power ofa CommonWealth, Ecclesiastical! and Civill, Londres, 1651 (trad. fr.: Leviathan. Traite de fa matiere, de fa forme et du pouvoir de fa republique ecclesiastique et civile, Paris, Sirey, 1971). A tradw,:ao latina do texto, que era, de fato, uma nova versao sua, foi publicada em Amsterdam em 1668. 2. Michel Foucault alude aqui ao celebre frontispicio da ediyao do Leviathan, chamada "head edition" (citarla na nota 1), publicada por Andrew Crooke, que representa 0 coepo do Estado constituido pelos suditos, ao passo que a cabe9a representa 0 soberano, que com uma mao segura a espada e com a outra 0 baculo. Embaixo, os atributos fundamentais dos dois poderes, civil e ec1esiastico.
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to longe, nao e algo que se partilhe entre aqueles que 0 tern e que 0 detem exclusivamente, e aqueles que nao 0 tern e que sao submetidos a ele. 0 poder, acho eu, deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor, como uma coisa que so funciona em cadeia. Jamais ele esta localizado aqui ou ali, jamais esui entre as maos de alguns, jamais e apossado como uma riqueza ou urn bern. 0 poder funciona. 0 poder se exerce em rede e, nessa rede, nao so os individuos circulam, mas esmo sempre em posi9ao de ser submetidos a esse poder e tambem de exerce-Io. Jamais eles sao 0 alvo inerte ou consentidor do poder, sao sempre seus intermediarios. Em outras palavras, 0 poder transita pelos individuos, nao se aplica a eles. Nao se deve, acho eu, conceber 0 individuo como urna especie de nuc1eo elementar, itomo primitivo, materia multipla e muda na qual viria aplicar-se, contra a qual viria bater 0 poder, que submeteria os individuos ou os quebrantaria. Na realidade, 0 que faz que urn corpo, gestos, discursos, desejos sejam identificados e constituidos como individuos, e precisamente isso urn dos efeitos primeiros do poder. Quer dizer, 0 individuo nao e 0 vis-a-vis do poder; e, acho eu, urn de seus efeitos primeiros. 0 individuo e urn efeito do poder e e, ao mesmo tempo, na mesma medida em que e urn efeito seu, seu intermediario: 0 poder transita pelo individuo que ele constituiu. Quarta conseqiiencia no plano das precau90es de metodo: quando eu digo: "0 poder e algo que se exerce, que circula, que forma rede", talvez seja verdade ate certo ponto. Pode-se igualmente dizer: "Todos nos temos fascismo na cabe9a"; e, mais fundamentalmente ainda: "todos nos temos poder no corpo". E 0 poder - pelo menos em certa medida - transita ou transuma por nosso corpo. Tudo isso, de fato, pode ser dito; mas nao creio que seja precise concluir, a partir dai, que 0 poder seria, se voces quiserem, a coisa mais
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bern distribuida do mundo, a mais distribuida, se bern que, ate certo ponto, ele 0 seja. Nao e uma especie de distribui~ao democnitica ou amirquica do poder atraves do corpo. Quero dizer 0 seguinte: parece-me que - essa seria entao a quarta precau~ao de metodo - 0 importante e que nao se deve fazer uma especie de dedu~ao do poder que partiria do centro e que tentaria ver ate onde ele se prolonga por baixo, em que medida ele se reproduz, ele se reconduz ate os elementos mais atomisticos da sociedade. Creio que e preciso, ao contrario, que seria preciso - e uma precau~ao de metodo a seguir - fazer uma am\lise ascendente do poder, ou seja, partir dos mecanismos infinitesimais, os quais tern sua propria historia, seu proprio trajeto, sua propria tecnica e tMica, e depois ver como esses mecanismos de poder, que tern, pois, sua solidez e, de certo modo, sua tecnologia propria, foram e ainda sao investidos, colonizados, utilizados, inflectidos, transformados, deslocados, estendidos, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de domina~ao global. Nao e a domina~ao global que se pluraliza e repercute ate em baixo. Creio que e preciso examinar 0 modo como, nos niveis mais baixos, os fen6menos, as tecnicas, as procedimentos de poder atuam; mostrar como esses procedimentos, e claro, se deslocam, se estendem, se modificam, mas, sobretudo, como eles sao investidos, anexados por fen6menos globais, e como poderes mais gerais ou lucros de economia podem introduzir-se no jogo dessas tecnologias, ao mesmo tempo relativamente aut6nomas e infinitesimais, de poder. Urn exemplo, para que isso fique mais claro, a respeito da loucura. Poderiam dizer 0 seguinte, e seria essa a analise descendente da qual, acho eu, devemos desconfiar: a burguesia tomou-se, a partir do fim do seculo XVI e no seculo XVII, a classe dominante. Dito isso, como se pode deduzir dai 0 intemamento dos loucos? A dedu~ao, voces a farao
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sempre; ela e sempre facil, e e precisamente isso que eu Ihe reprovarei. E, de fato, facil mostrar como 0 louco, sendo precisamente aquele que e imitil na produ~ao industrial, como se e ate mesmo obrigado a descartar-se deles. Poderiamos fazer a mesma caisa, se voces quiserem, nao mais a respeito do louco, mas a respeito da sexualidade infantil - foi 0 que fez certo nillnero de pessoas, ate certo ponto Wilhelm Reichl, Reimut Reiche 4 certamente - e dizer: a partir da domina~ao da classe burguesa, como se pode compreender a repressao da sexualidade infantil? Pois bern, simplesmente, como 0 corpo humano se tomou essencialmente for~a produtiva a partir dos seculos XVII, XVIII, todas as formas de dispendio irredutiveis a essas rela~6es, it constitui~ao das for~as produtivas, todas as formas de dispendio assim manifestadas em sua inutilidade, foram banidas, excluidas, reprimidas. Estas dedu~6es sempre sao possiveis; sao ao mesmo tempo verdadeiras e falsas. Sao essencialmente faceis demais, porque se poderia fazer exatamente 0 contrario, e, precisamente, a partir do principio de que a burguesia se tomou uma classe dominante, deduzir que os controles da sexualidade, e da sexualidade infantil, nao sao absolutamente desejaveis; ora, ao contnirio, 0 que se necessitaria seria uma aprendizagem sexual, um treinamento sexual, uma precocidade sexual, na medida em que se trata, afinal de contas, de reconstituir pela sexualidade uma for~a de trabalho a qual, como se sabe, considerava-se, no inicio do seculo XIX pelo menos, que seu estatuto otimo seria ser infinita: quanto mais for~as de trabalho houvesse, mais plena e corretamente 0 sistema da produ~ao capitalista poderia funcionar. 3. W. Reich, Der Einbruch der Sexualmoral, op. cit. 4. R. Reiche, Sexualitiit und Klassenkampf; zur Abwehr repressiver Entsublimierung, Frankfurt, Verlag Neue Kritik, 1968 (trad fr.: Sexualitd et lutte de classes, Paris, Maspero, 1969).
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Creio que se pode deduzir qualquer coisa do fenomeno geral da domina9iio da classe burguesa. Parece-me que 0 que
se deve fazer e 0 inverso, au seja, ver como, historicamente,
partindo de baixo, os mecanismos de controle puderam intervir no tocante a exclusiio da loucura, a repressiio, a proibi9iio da sexualidade; como, no nivel efetivo da familia, do circulo imediato, das celulas, ou nos niveis mais baixos da sociedade, estes fenomenos, de repressiio ou de exclusiio, tiveram seus instrurnentos, sua logica, corresponderam a urn certo nUmero de necessidades; mostrar quais foram os seus agentes, e procurar esses agentes niio, de modo algum, no ambito da burguesia em geral, mas dos agentes reais, que podem ter sido 0 circulo imediato, a familia, os pais, os medicos, 0 escaHio mais baixo da policia, etc.; e como esses mecanismos de poder, em dado momento, numa conjuntura
precisa, e mediante certo numero de transforma90es, come9aram a tomar-se economicamente lucrativos e politicamen-
te uteis. E conseguiriamos, acho eu, mostrar facilmente enfim, foi 0 que eu quis fazer antigamente, vanas vezes em todo caso - que, no fundo, aquilo de que a burguesia necessitou, aquilo em que finalmente 0 sistema encontrou seu interesse, niio foi que os loucos fossem excluidos, ou que a masturba9iio das cnan9as fosse vigiada e proibida - mais uma vez, 0 sistema burgues pode suportar perfeitamente 0 contnirio -; 0 ponto em que ele encontrou seu interesse e pelo qual ele se mobilizou niio foi no fato de eles serem excluidos, mas na tecnica e no proprio procedimento da exclusiio. Foram os mecanismos de exclusiio, foi a aparelhagem de vigiliincia, foi a medicaliza9iio da sexualidade, da loucura, da delinqiiencia, foi tudo isso, isto e, a micromecanica do poder, que representou, constituido pela burguesia, a partir de certo momento, urn interesse, e foi por isso que a burguesia se interessou. Digamos ainda: na medida em que as n090es de "bur-
guesia" e de "interesse da burguesia" nao tern verossimil-
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mente conteudo real, ao menos para os problemas que acabamos de levantar agora, 0 que se deve ver e justamente que niio houve a burguesia que pensou que a loucura deveria ser excluida ou que a sexualidade infantil devena ser repnmida, mas os mecanismos de exclusiio da loucura, os mecanismos de vigiliincia da sexualidade infantil, a partir de urn certo momento, e por razoes que e preciso estudar, produziram certo lucro economico, certa utilidade politica e, por essa raziio, se viram naturalmente colonizados e sustentados por mecanismos globais e, finalmente, pelo sistema do Estado inteiro. E e fixando-se nessas tecnicas de poder, partindo delas, e mostrando 0 lucro economico ou as utilidades politicas que delas denvam, em certo contexto e por certas razoes, que se pode compreender como, efetivamente, esses mecanismos acabam por fazer parte do conjunto. Em outras palavras: a burguesia niio da a menor importiincia aos loucos, mas os procedimentos de exclusiio dos loucos produziram, liberaram, a partir do seculo XIX e mais uma vez segundo certas transforma90es, urn lucro politico, eventualmente ate certa utilidade economica, que solidificaram 0 sistema e 0 fizeram funcionar no conjunto. A burguesia niio se interessa pelos loucos, mas pelo poder que incide sobre os loucos; a burguesia niio se interessa pela sexualidade da cnan9a, mas pelo sistema de poder que controla a sexualidade da cnan9a. A burguesia niio da a menor importancia aos delinqiientes, a Puni9iio ou a reinser9iio deles, que niio
tern economicamente muita interesse. Em compensa9ao, do conjunto dos mecanismos pelos quais 0 delinqiiente e controlado, seguido, punido, reformado, resulta, para a burguesia, urn interesse que funciona no interior do sistema economico-politico gera!. Eis a quarta precau9iio, a quarta linha de metodo que eu quena seguir. Quinta precau9iio: e bern possivel que as grandes maquinas do poder sejam acompanhadas de produ90es ideolo-
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gicas. Houve sem duvida, por exemplo, urna ideologia da educa,ao, uma ideologia do poder monarquico, urna ideologia da democracia parlamentar, etc. Mas, na base, no ponto em que terminam as redes de poder, 0 que se forma, nao acho que sejam ideologias. E muito menOS e, acho eu, muito mais. Sao instrumentos efetivos de forma,ao e de aCUmulo de saber, sao metodos de observa,ao, tecnicas de registro, procedimentos de investiga,ao e de pesquisa, sao aparelhos de verifica,ao. Isto quer dizer que 0 poder, quando se exerce em seus mecanismos finos, nao pode faze-lo sem a forma,ao, a organiza,ao e sem por em circuIa,ao urn saber, ou melhor, aparelhos de saber que nao sao acompanhamentos ou edificios ideol6gicos. Para resurnir essas cinco precau,oes de metodo, eu diria isto: em vez de orientar a pesquisa sobre 0 poder para 0 ambito do edificio juridico da soberania, para 0 ambito dos aparelhos de Estado, para 0 ambito das ideologias que 0 acompanham, creio que se deve orientar a analise do poder para 0 ambito da domina,ao (e nao da soberania), para 0 ambito dos operadores materiais, para 0 ambito das formas de sujei,ao, para 0 ambito das conexoes e utiliza,oes dos sistemas locais dessa sujei,ao e para 0 ambito, enfim, dos dispositivos de saber. Em suma, e preciso desvencilhar-se do modelo do Leviata, desse modelo de urn homem artificial, a urn s6 tempo automato, fabricado e unitario igualmente, que envolveria todos os individuos reais, e cujo corpo seriam os cidadaos, mas cuja alma seria a soberania. E preciso estudar 0 poder fora do modelo do Leviata, fora do campo delimitado pela soberania juridica e pela institui,ao do Estado; trata-se de analisa-lo a partir das tecnicas e tMicas de domina,ao. Eis a linha met6dica que, acho eu, se deve seguir, e que tentei seguir nessas diferentes pesquisas que [realizamos] nos anos anteriores a prop6sito do poder psiquiMrico, da sexualidade das crian,as, do sistema punitivo, etc.
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Ora, percorrendo esse dominio tomando essas precau,oes de metodo, eu acho que aparece um fato hist6rico maci,o, que vai afinal nos introduzir um pouco ao problema de que eu queria falar a partir de hoje. Esse fato hist6rico maci,o e 0 seguinte: a teoria juridico-politica da soberania - teoria de que devemos nos desligar se quisermos analisar o poder - data da Idade Media; ela data da reativa,ao do direito romano; ela constituiu-se em torno do problema da monarquia e do monarca. E acho que, historicamente, essa teoria da soberania - que e a grande esparrela em que corremos 0 risco de cair, quando queremos analisar 0 poder desempenhou quatro papeis. Primeiro, ela se referiu a urn mecanismo de poder efetivo, que era 0 da monarquia feudal. Segundo, ela serviu de instrumento, e tambem de justifica,ao, para a constitui,ao das grandes monarquias administrativas. Depois, a partir do seculo XVI, sobretudo do seculo XVII, ja no momento das guerras de Religiao, a teoria da soberania foi uma arma que circulou num campo e no outro, que foi utilizada num sentido ou no outro, seja para limitar, seja, ao contrario, para fortalecer 0 poder regio. Voces a encontram do lado dos cat6licos monarquistas ou dos protestantes antimonarquistas; voces a encontram do lado dos protestantes monarquistas e mais ou menos liberais; voces a encontram tambem do lado dos cat6licos partidarios do regicidio ou da mudan,a de dinastia. Voces encontram essa teoria da soberania que atua entre as maos dos aristocratas ou entre as maos dos parlamentares, do lado dos representantes do poder regio ou do lado dos ultimos senhores feudais. Em resumo, ela foi 0 grande instrumento da luta politica e te6rica em torno dos sistemas de poder dos seculos XVI e XVII. Enfim, no seculo XVIII, e sempre essa mesma teoria da soberania, reativada do direito romano, que voces vao encontrar em Rousseau e em seus contemporaneos, com urn outro papel, urn quarto papel:
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trata-se naquele momento de construir, contra as monarquias administrativas, autoritanas ou absolutas, urn modelo alternativo, 0 das democracias parlamentares. E e este papel que e!a ainda representa no momento da Revolu9aO. Parece-me que, se seguimos esses quatro papeis, percebemos que, enquanto durou a sociedade de tipo feudal, os problemas de que tratava a teoria da soberania, aqueles aos quais ela se referia, cobriam efetivamente a meciinica geral do poder, 0 modo como ele se exercia, desde os niveis mais elevados ate os niveis mais baixos. Em outras palavras, a rela9aO de soberania, seja ela entendida de forma lata ou estrita, cobria em suma a totalidade do corpo social. E, efetivamente, 0 modo como 0 poder se exercia podia bern ser transcrito, quanta ao essencial em todo caso, em termos de rela9aO soberano/sudito. Ora, nos seculos XVII e XVlII ocorreu urn fen6meno importante: 0 aparecimento - deveriamos dizer a inven9aO - de urna nova mecanica do poder, que tern procedimentos bern particulares, instrumentos totalmente novos, uma aparelhagem muito diferente e que, acho eu, e absolutamente incompativel com as rela90es de soberania. Essa nova meciinica de poder incide primeiro sobre os corpos e sobre 0 que e!es fazem, mais do que sobre a terra e sobre 0 seu produto. E urn mecanismo de poder que permite extrair dos corpos tempo e trabalho, mais do que bens e riqueza. E urn tipo de poder que se exerce continuamente por vigilancia e nao de forma descontinua por sistemas de tributos e de obriga90es cr6nicas. E urn tipo de poder que pressupoe muito mais uma trama cerrada de coer90es materiais do que a existencia fisica de urn soberano, e define urna nova economia de poder cujo principio e 0 de que se deve ao mesmo tempo fazer que cres9am as for9as sujeitadas e a for9a e a eficacia daquilo que as sujeita.
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Parece-me que este tipo de poder se opoe exatamente, termo a termo, a mecanica de poder que a teoria da soberania descrevia ou procurava transcrever. A teoria da soberania e vinculada a uma forma de poder que se exerce sobre a terra e os produtos da terra, muito mais do que sobre os corpos e sobre 0 que e!es fazem. [Essa teoria] diz respeito ao deslocamento e a apropria9aO, pelo poder, nao do tempo e do trabalho, mas dos bens e da riqueza. [E ela] que permite transcrever em termos juridicos obriga90es descontinuas e cr6nicas de tributos, e nao codificar uma vigilancia continua; e uma teoria que permite fundamentar 0 poder em torno e a partir da existencia fisica do soberano, e nao dos sistemas continuos e permanentes de vigiliincia. A teoria da soberania e, se voces quiserem, 0 que permite fundamentar o poder absoluto no dispendio absoluto do poder, e nao calcular 0 poder com 0 minimo de dispendio e 0 maximo de eficacia. Esse novo tipo de poder, que ja nao e, pois, de modo algurn transcritivel nos termos de soberania, e, acho eu, uma das grandes inven90es da sociedade burguesa. Ele foi urn dos instrumentos fundamentais da impianta9aO do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que the e correlativo. Esse poder nao soberano, alheio portanto a forma da soberania, e 0 poder "disciplinar". Poder indescritivel, injustificave!, nos termos da teoria da soberania, radicalmente heterogeneo, e que deveria ter levado normalmente ao proprio desaparecimento desse grande edificio juridico da teoria da soberania. Ora, de fato, a teoria da soberania nao s6 continuou a existir, se voces quiserem, como ideologia do direito, mas tambem continuou a organizar os codigos juridicos que a Europa do seculo XIX elaborou para si a partir dos codigos napole6nicos 5 Por que a teoria da soberania persistiu 5. Trata-se dos c6digos "napole6nicos": 0 Codigo civil (1804), digo de instnt~aO criminal (1808), e 0 C6digo penal (1810).
0
CO-
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assim como ideologia e como principio organizador dos grandes codigos juridicos? Eu creio que ha para isso duas raz5es. De urn lado, a teoria da soberania foi, no seculo XVIII e ainda no seculo XIX, urn instrumento critico permanente contra a monarquia e contra todos os obstaculos que podiam opor-se ao desenvolvimento da sociedade disciplinar. Mas, de outro, essa teoria e a organiza,ao de urn cOdigo juridico, centrado nela, permitiram sobrepor aos mecanismos da disciplina urn sistema de direito que mascarava os procedimentos dela, que apagava 0 que podia haver de domina,ao e de tecnicas de domina,ao na disciplina e, enfim, que garantia a cada qual que ele exercia, atraves da soberania do Estado, seus proprios direitos soberanos. Em outras palavras, os sistemas juridicos, sejam as teorias, sejam os c6digos, permitiram uma democratiza,ao da soberania, a implanta,ao de urn direito publico articulado a partir da soberania coletiva, no mesmo momento, na medida em que e porque essa democratiza,ao da soberania se encontrava lastrada em profundidade pelos mecanismos da coer,ao disciplinar. De urna forma mais densa, poderiamos dizer 0 seguinte: urna vez que as coer,5es disciplinares deviam ao mesmo tempo exercer-se como mecanismos de domina,ao e ser escondidas como exercicio efetivo do poder, era preciso que fosse apresentada no aparelho juridico e reativada, concluida, pelos codigos judiciarios, a teoria da soberania. Ternos, pais, nas sociedades modernas, a partir do seculo XIX ate os nossos dias, de urn lado urna legisla,ao, urn discurso, urna organiza,ao do direito publico articulados em tomo do principio da soberania do corpo social e da delega,ao, por cada qual, de sua soberania ao Estado; e depois temos, ao mesmo tempo, urna trama cerrada de coer,5es disciplinares que garante, de fato, a coesao desse mesmo corpo social. Ora, essa trama nao pode de modo algurn ser trans-
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crita nesse direito, que e, porem, seu acompanhamento necessaria. Urn direito da soberania e uma mecanica da disciplina: e entre esses dois limites, creio eu, que se pratica 0 exercicio do poder. Mas esses dois limites sao de tal forma, e sao ilio heterogeneos, que nunca se pode fazer que urn coincida com 0 outro. 0 poder se exerce, nas sociedades modernas, atraves, a partir do e no proprio jogo dessa heterogeneidade entre urn direito publico da soberania e urna meciinica polimorfa da disciplina. Isto nao quer dizer que voces tern, de urn lado, urn sistema de direito tagarela e explicito, que seria 0 da soberania, e depois disciplinas obscuras e mudas que trabalhariam em profundidade, na sombra, e que constituiriam 0 subsolo silencioso da grande meciinica do poder. De fato, as disciplinas tern seu discurso proprio. Elas mesmas sao, pelas raz5es que eu Ihes dizia agora ha pouco, criadoras de aparelhos de saber, de saberes e de campos multiplos de conhecimento. Elas sao extraordinariamente inventivas na ordem desses aparelhos de formar saber e conhecimentos, e sao portadoras de urn discurso, mas de urn discurso que nao pode ser 0 discurso do direito, 0 discurso juridico. o discurso da disciplina e alheio ao da lei; e alheio ao da regra como efeito da vontade soberana. Portanto, as disciplinas vao trazer urn discurso que sera 0 da regra; nao 0 da regra juridica derivada da soberania, mas 0 da regra natural, isto e, da norma. Elas definirao urn codigo que sera aquele, nao da lei, mas da normaliza,ao, e elas se referirao necessariamente a urn horizonte teorico que nao sera 0 edificio do direito, mas 0 campo das ciencias humanas. E sua jurisprudencia, para essas disciplinas, sera a de urn saber clinico. Em suma, 0 que quis mostrar no decorrer destes ultimos anos nao foi de modo algum como, na frente avan,ada das ciencias exatas, pouco a pouco, a area incerta, dificil, confusa da conduta humana foi anexada it ciencia: nao foi atraves de urn progresso da racionalidade das ciencias exa-
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tas que se foram constituindo aos poucos as ciencias hurnanas. Eu creio que 0 processo que tomou fundamentalmente possivel 0 discurso das ciencias humanas foi a justaposi,ao, o enfrentamento de dois mecanismos e de dois tipos de discursos absolutamente heterogeneos: de urn lado, a organiza,ao do direito em tomo da soberania, do outro, a mecanica das coer,oes exercidas pelas disciplinas. Que, atualmente, 0 poder se exer,a ao mesmo tempo atraves desse direito e dessas tecnicas, que essas tecnicas da disciplina, que esses discursos nascidos da disciplina invadam 0 direito, que os procedimentos da normaliza,ao colonizem cada vez mais os procedimentos da lei, e isso, acho eu, que pode explicar o funcionamento global daquilo que eu chamaria uma "sociedade de normaliza,ao". Quero dizer, mais precisamente, ista: eu creio que a as normalizayoes disciplinares, vern cada vez
normaliza~ao,
mais esbarrar contra 0 sistema juridico da soberania; cada vez mais nitidamente aparece a incompatibilidade de umas com 0 outro; carla vez mais e necessaria uma especie de discurso arbitro, uma especie de poder e de saber que sua sacraliza,ao cientifica tomaria neutros. E e precisamente do lado da extensao da medicina que se ve de certo modo, nao quero dizer cambinar-se, mas reduzir-se, au intercambiarse, ou enfrentar-se perpetuamente a mecanica da disciplina e 0 principio do direito. 0 desenvolvimento da medicina, a medicaliza,ao geral do comportamento, das condutas, dos discursos, dos desejos, etc., se dao na frente onde vern encontrar-se os dois len,ois heterogeneos da disciplina e da soberania. E por isso que, contra as usurpa,oes da mecanica disciplinar, contra essa ascensao de urn poder que e vinculado ao saber cientifico, nos nos encontramos atualmente numa situa9ao tal que
0
solido, que temos
Unico recurso existente, aparentemente
e precisamente 0 recurso OU a volta a urn
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direito organizado em tomo da soberania, articulado sobre esse velho principio. [sso faz com que, concretamente, quando se quer objetar alguma coisa contra as disciplinas e contra todos os efeitos de saber e de poder que lhes sao vinculados, que se faz concretamente? Que se faz na vida? Que fazem 0 sindicato da magistratura ou outras institui,oes como esta? Que se faz, senao precisamente invocar esse direito, esse famoso direito formal e burgues, que na realidade e o direito da soberania? E eu creio que nos encontramos aqui numa especie de ponto de estrangulamento, que nao podemos continuar a fazer que funcione indefinidamente dessa maneira: nao e recorrendo a soberania contra a disciplina que poderemos limitar os proprios efeitos do poder disciplinar. De fato, soberania e disciplina, legisla,ao, direito da soberania e mecanicas disciplinares sao duas pe,as absolutamente constitutivas dos mecanismos gerais de poder em nossa sociedade. Para dizer a verdade, para lutar contra as disciplinas, ou melhor, contra 0 poder disciplinar, na busca de urn poder nao disciplinar, nao e na dire,ao do antigo direito da soberania que se deveria ir; seria antes na dire9ao de urn direito novo, que sena antidisciplinar, mas que estaria ao
mesmo tempo liberto do principio da soberania. E e ai entao que nos aproximamos da no,ao de "repressao" de que talvez lhes fale na proxima vez, a nao ser que eu esteja urn tanto farlo de repisar coisas ja ditas e que passe de imediato para outras coisas referentes a guerra. Se eu tiver desejo e coragem, eu lhes falarei da no,ao de "repressao" que, creio eu, justamente, tern 0 duplo inconveniente, no uso que dela se faz, de se referir obscuramente a uma certa teoria da soberania, que seria a teoria dos direitos soberanos do individuo, e de par em jogo, quando e utilizada, toda uma referencia psicologica tirada das ciencias humanas, ou seja, dos discursos e das praticas que dependem do dominio
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disciplinar. Eu creio que a n09ao de "repressao" e tambem urna n09ao juridico-disciplinar, seja qual for 0 uso critico que dela se pretende fazer; e, nessa medida, 0 uso critico da no((ao de "repressao" se acha viciado, estragado, corrompido de inicio pela dupla referencia, juridica e disciplinar, a soberania e a normaliza9ao que ela implica. Eu lhes falarei da repressao na pr6xima vez, senao passarei para 0 problema da guerra.
AULA DE 21 DE JANEIRO DE 1976 A teoria da soberania e as operadores de domina9iio. -
A guerra como analisador das relafoes de pader. - Estrntura binaria da sociedade. - a discurso historico-politico, 0 discurso da guerra perpefua. - A dialetica e suas codificafoes. discurso da luta das ra9as e SUGS transcri90es.
o
Da ultima vez, foi uma especie de adeus a teoria da soberania na medida em que ela pode, na medida em que pOde se apresentar como metodo de analise das rela90es de poder. Eu queria lhes mostrar que 0 modelo juridico da soberania nao era, ereio eu, adaptado a uma amilise concreta da multiplicidade das rela90es de poder. Parece-me, de fato - resurnindo tudo isso em algumas palavras, tres palavras exatamente -, que a teoria da soberania tenta necessariamente constituir 0 que eu chamaria de urn cicIo, 0 cicio do sujeito ao sujeito, mostrar como urn sujeito - entendido como individuo dotado, naturalmente (ou por natureza), de direitos, de capacidades, etc. - pode e deve se tornar sujeito, mas entendido desta vez como elemento sujeitado nurna rela9ao de poder. A soberania e a teoria que vai do sujeito para 0 sujeito, que estabelece a rela9ao politica do sujeito com 0 sujeito. Em segundo lugar, parece-me que a teoria da soberania se confere, no inicio, urna multiplicidade de poderes que nao sao poderes no sentido politico do termo, mas sao capacidades, possibilidades, potencias, e que ela s6 pode constitui-los como poderes, no sentido politico do termo,
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com a condi9ao de ter, entrementes, estabelecido, entre as possibilidades e os poderes, urn momenta de unidade fundamental e fundadora, que e a unidade do poder. Que essa unidade do poder assurna a fisionomia do monarca ou a forma do Estado pouco importa; e dessa unidade do poder que vao derivar as diferentes formas, os aspectos, mecanismos e institui90es de poder. A multiplicidade dos poderes, entendidos como poderes politicos, so pode ser estabelecida e so pode funcionar a partir dessa unidade do poder, fundamentada pela teoria da soberania. Enfim, em terceiro lugar, parece-me que a teoria da soberania mostra, tenta mostrar, como urn poder pode constituir-se nao exatamente segundo a lei, mas segundo uma certa legitimidade fundamental, mais fundamental do que todas as leis, que .0 urn tipo de lei geral de todas as leis e pode permitir as diferentes leis funcionarem como leis. Em outras palavras, a teoria da soberania .0 0 ciclo do sujeito ao sujeito, 0 cicIo do poder e dos poderes, 0 cicio da legitimidade e da lei. Digamos que, de uma maneira au de autra - e conforme, evidentemente, as diferentes esquemas teoricos nos quais ela se desenvolve -, a teoria da soberania pressupoe 0 sujeito: ela visa fundamentar a unidade essencial do poder e se desenvolve sempre no elemento preliminar da lei. Triplice "primitivismo", pois: 0 do sujeito que deve ser sujeitado, 0 da unidade do poder que deve ser fundamentada e 0 da legitimidade que deve ser respeitada. Sujeito, unidade do poder e lei: ai estao, creio eu, os elementos entre os quais atua a teoria da soberania que, a urn so tempo, os confere a si e procura fundamenta-los. Meu projeto - mas eu 0 abandono logo em seguida - era mostrar a voces como esse instrumento que a anitlise politico-psicologica se proporcionou ha tres ou quatro s.oculos, ja, ou seja, a n09ao de repressao - que mais parece copiada do freudismo ou do freudo-marxismo - se inseria de fato numa decifra9ao do poder que se fazia em termos
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de soberania. Mas isto nos teria levado a retomar a coisas ja ditas; entao sigo em frente, admitindo a possibilidade de, no fmal do ano, voltar a esse ponto, se sobrar tempo. o projeto geral, 0 dos anos anteriores e 0 deste ano, .0 tentar desamarrar ou livrar essa analise do poder dessa triplice preliminar - do sujeito, da unidade e da lei - e ressaltar, em vez desse elemento fundamental da soberania, aquilo que eu denominaria as rela90es e os operadores de domina9ao. Em vez de fazer os poderes derivarem da soberania, se trataria fiuito mais de extrair, hist6rica e empiricamente, das rela90es de poder, os operadores de domina9ao. Teoria da domina9ao, das domina90es, muito mais do que teoria da soberania, 0 que quer dizer: em vez de partir do sujeito (ou mesmo dos sujeitos) e desses elementos que seriam preliminares a rela9ao e que poderiamos localizar, se trataria de partir da propria rela9ao de poder, da rela9ao de domina9ao no que ela tern de factual, de efetivo, e de ver como e essa propria rela9ao que determina os elementos sobre os quais ela incide. Portanto, nao perguntar aos sujeitos como, por que, em nome de que direito eles podem aceitar deixar-se sujeitar, mas mostrar como sao as rela90es de sujei9ao efetivas que fabricam sujeitos. Em segundo lugar, tratar-se-ia de ressaltar as rela90es de domina9ao e de deixa-las valer em sua multiplicidade, em sua diferen9a, em sua especificidade ou em sua reversibilidade: nao procurar, por conseguinte, uma especie de soberania fonte dos poderes; ao contrario, mostrar como os diferentes operadores de domina9ao
se ap6iam uns nos outros, remetem uns aos outros, em certo nlimero de casas se fortalecem e convergem, noutros casas se negam ou tendem a anular-se. En nao quero dizer, e claro, que nao ha, ou que nao se pode atingir nem descrever os grandes aparelhos do poder. Mas en creio que estes funcionam sempre sobre a base desses dispositivos de domina9ao. Concretamente, podemos, eclaro, descrever 0 aparelho esco-
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lar ou 0 conjunto dos aparelhos de aprendizagem em dada sociedade, mas eu creio que s6 podemos analisa-Ios eficazmente se niio os tomarmos como urna unidade global, se niio tentarmos deriva-los diretamente de algurna coisa que seria a unidade estatal de soberania, mas se tentarmos ver como atuam, como se ap6iam, como esse aparelho define certo n1\mero de estrategias globais, a partir de urna multiplicidade de sujei,oes (a da crian,a ao adulto, da prole aos pais, do ignorante ao erudito, do aprendiz ao mestre, da familia Ii administra,ao publica, etc.). Sao todos esses mecanismos e todos esses aparelhos de domina,ao que constituem 0 pedestal efetivo do aparelho global constituido pelo aparelho escolar. Portanto, se voces quiserem, encarar as estruturas de poder como estrategias globais que perpassam e utilizam tMicas locais de domina,iio. Enfim, em terceiro lugar, ressaltar as rela,oes de domina,iio muito mais do que a fonte de soberania, quer dizer isto: niio tentar segui-Ias naquilo que constitui sua legitimidade fundamental, mas tentar, ao contmno, procurar os instrumentos tecnicos que permitem garanti-las. Portanto, para resurnir e para que a coisa fique, pelo menos provisoriamente, nao encerrada mas relativamente clara: em vez da triplice preliminar da lei, da unidade e do sujeito - que faz da soberania a fonte do poder e 0 fundamento das institui,oes -, eu acho que temos de adotar 0 ponto de vista triplice das tecnicas, da heterogeneidade das tecnicas e de seus efeitos de sujei,iio, que fazem dos procedimentos de domina,ao a trama efetiva das rela,oes de poder e dos grandes aparelhos de poder. A fabrica,ao dos sujeitos muito mais do que a genese do soberano: ai esta 0 tema gera!. Mas, se esta bern claro que as rela,oes de domina,iio e que devem ser 0 caminho de acesso Ii analise do poder, como se pode realizar essa analise das rela,oes de domina,iio? Se e verdade que e a domina,iio, e niio a soberania, ou melhor, as domina,oes, os
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operadores de domina,iio, que devemos estudar, pois bern, como se pode avan,ar nesse caminho das rela,oes de domina,iio? Em que urna rela,iio de domina,iio pode se resumir it no,iio de rela,iio de for,a ou coincidir com ela? Em que e como a rela,ao de for,a pode se resurnir a uma rela,ao de guerra? Eis a especie de questiio preliminar que eu gostaria de focalizar urn pouquinho este ano: a guerra pode valer efetivamente como analise das rela,oes de poder e como matriz das tecnicas de domina,ao? Voces me diriio que niio se pode, logo de saida, confundir rela,oes de for,a e rela,oes de guerra. E claro. Mas tomarei isso simplesmente como urn [caso] extremo, na medida em que a guerra pode passar por ponto de tensao maxima, pela nudez mesma das rela,oes de for,a. A rela,iio de poder sera em seu fundo urna rela,iio de enfrentamento, de luta de morte, de guerra? Sob a paz, a ordem, a riqueza, a autoridade, sob a ordem calma das subordina,oes, sob 0 Estado, sob os aparelhos do Estado, sob as leis, etc., devemos entender e redescobrir urna especie de guerra primitiva e permanente? E esta questao que eu gostaria de formular logo de saida, sem ignorar toda a serie das outras questiies que sera necessario [formular] e que eu tentarei abordar nos anos seguintes, e dentre as quais podemos simplesmente citar, a titulo de primeira referencia, as seguintes: o fato da guerra pode e deve ser efetivamente considerado primeiro em compara,ao a outras rela,oes (as rela,oes de desigualdade, as dissimetrias, as divisoes de trabalho, as rela,oes de explora,iio, etc.)? as fen6menos de antagonismo, de rivalidade, de enfrentamento, de luta entre individuos, ou entre grupos, ou entre classes, podem e devem ser agrupados nesse mecanismo geral, nessa forma geral que e a guerra? E ainda: as no,oes que sao derivadas daquilo que se denominava no seculo XVIII, e ainda no seculo XIX, a arte da guerra (a estrategia, a tMica, etc.) podem constituir em si
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mesmas um instrurnento valida e suficiente para analisar as rela,oes de poder? Poderiamos perguntar-nos, sera preciso perguntar-nos tambem: as institui,oes militares e as praticas que as cercam - e, de um modo geral, todos os procedimentos que foram empregados para travar a guerra - sao, de perto ou de longe, direta ou indiretamente, 0 nucleo das institui,oes politicas? Enfim, a questao principal que eu gostaria de estudar este ana seria esta: como, desde quando e por que se come,ou a perceber ou a imaginar que e a guerra que funciona sob e nas rela,oes de poder? Desde quando, como, por que se imaginou que urna especie de combate ininterrupto perturba a paz e que, finalmente, a ordem civil - em seu fundo, em sua essencia, em seus mecanismos essenciais - e uma ordem de batalha? Quem imaginou que a ordem civil era urna ordem de batalha? [...] Quem enxergou a guerra como filigrana da paz; quem procurou, no barulho da confusao da guerra, quem procurou na lama das batalhas, 0 principio de inteligibilidade da ordem, do Estado, de suas institui,oes e de sua historia? 13, portanto, esta questao que eu you tentar seguir um pouco nas proximas aulas, e talvez ate 0 fim deste ano. No fundo, poderiamos formular a questao de modo muito simples, e de inicio foi assim que eu a formulei para mim mes-
por outros meios era urn principio bem anterior a Clausewitz, que simplesmente inverteu uma especie de tese a urn so tempo difusa e precisa que circulava desde os seculos XVII e XVIII. Portanto: a politica e a guerra continuada por outros meios. H:i nessa tese - na propria existencia dessa tese, preliminar a Clausewitz - urn tipo de paradoxo historico. Com efeito, pode-se dizer, de modo esquemMico e urn pouco grosseiro, que, com 0 crescimento, com 0 desenvolvimento dos Estados, ao.longo de toda a [dade Media e no limiar da epoca moderna, viram-se as praticas e as institui,oes de guerra passarem por urna evolu,ao muito acentuada, muito visivel, que se pode caracterizar assim: as praticas e as institui,Des
rna: "Quem, no fundo, teve a ideia de inverter 0 principia de Clausewitz, quem teve a ideia de dizer: e bem possivel que a guerra seja a politica praticada por outros meios, mas a propria politica nao sera a guerra travada por outros meios?" Ora, eu creio que 0 problema nao e tanto saber quem inverteu 0 principio de Clausewitz, mas antes saber qual era 0 principio que Clausewitz inverteu, ou melhor, quem formulou esse principio que Clausewitz inverteu quando disse: "Mas, afinal de contas, a guerra nao passa da politica continuada." Eu creio, de fato - e tentarei demonstra-Io -, que o principio segundo 0 qual a politica e a guerra continuada
rnais existir, de certo modo, senao nas fronteiras, nos limi-
de guerra de inicio se concentraram cada vez mais nas IDaOS de urn poder central; pouco a pouco, sucedeu que, de fato e de direito, apenas os poderes estatais podiam iniciar as guerras e manipular os instrumentos da guerra: estatiza,ao, em consequencia, da guerra. Com isso, pelo fato dessa estatiza,ao, encontrou-se apagado do corpo social, da rela,ao de homem com homem, de grupo com grupo, aquilo que se poderia chamar de guerra cotidiana, aquela que chamavam efetivamente de "guerra privada". Cada vez mais as guerras, as praticas de guerra, as institui,Des de guerra tendem a nao tes exteriores das grandes unidades estatais, como uma rela,ao de violencia efetiva ou amea,adora entre Estados. Mas, pouco a pouco, 0 corpo social inteiro ficou limpo dessas rela,Des belicosas que 0 perpassavam integralmente durante 0 periodo medieval. Enfim, com essa estatiza,ao, pelo fato de que a guerra foi, de certo modo, urna prMica que ja nao funcionava senao nos limites exteriores do Estado, ela tendeu a se tornar urna atribui,ao profissional e tecnica de um aparelho militar ciosamente definido e controlado. Foi, em linhas gerais, 0 apa-
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recimento do exercito como institui9ao, que, no funda, naD
existia como tal na Idade Media. E somente na saida da Idade Media que se vii emergir urn Estado dotado de instituiy6es militares que vieram Se substituir a prMica cotidiana, global da guerra, e a uma sociedade eterna perpassada per rela y6es guerreiras. A essa evoluyao, teremos de voltar; mas eu acho que podemos admiti-la ao menos a titulo de primeira hip6tese hist6rica. Ora, onde esta 0 paradoxo? 0 paradoxo surge no momento mesmo dessa transformayao (ou talvez logo depois). Quando a guerra se viu expulsa para os limites do Estado, ao mesmo tempo centralizada em sua pratica e recuada para a sua fronteira, eis que apareceu urn certo discurso: urn discurso estranho, urn discurso novo. Novo, sobretudo, porque creio que e 0 primeiro discurso hist6rico-politico sobre a sociedade, e que foi muito diferente do discurso filos6ficojuridico que se costumava fazer ate entao. E esse discurso hist6rico-politico que aparece nesse momento e, ao mesmo tempo, urn discurso sobre a guerra entendida como relayao social permanente, como fundamento indelevel de todas as rela y6es e de todas as instituiy6es de poder. Equal e a data de nascimento desse discurso historico-politico sobre a guerra como fundamento das relay6es sociais? De uma forma sintomMica ele aparece, creio eu - you tentar mostrar-lhes issodepois do fim das guerras civis e religiosas do seculo XVI: Nao e, portanto, de modo algum, como registro OU analise das guerras civis do seculo XVI que aparece esse discurso. Em compensayao, ele ji esti, se nao constituido, pelo menos claramente formulado no inicio das grandes lutas politicas inglesas do seculo XVII, no momento da revoluyao burguesa inglesa. E n6s 0 veremos aparecer em seguida na Franya, no fim do seculo XVII, no fim do reinado de Luis XlV, noutras lutas politicas - digamos, as lutas de retaguarda da aristocracia francesa contra 0 estabelecimento da grande monar-
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quia absoluta e administrativa. Discurso, pais, voces estao
vendo, imediatamente ambiguo, ji que de urn lado, na Inglaterra, ele foi urn dos instrumentos de luta, de poliimica e de organizayao politica dos grupos politicos burgueses, pequeno-burgueses e eventualmente mesmo populares, contra a monarquia absoluta. Ele foi tambem urn discurso aristocritico contra essa mesma monarquia. Discurso cujos titulares tiveram nomes em geral obscuros e, ao mesmo tempo, heterogeneos, ji que encontramos na Inglaterra homens como Edward Coke' ou John Lilburne', representantes dos movimentos populares; na Franya, encontramos igualmente nomes como 0 de Boulainvilliers3, de Frere!" ou daquele fidalgo do Maciyo Central que se chamava conde d'Estaing s. Ele foi retomado depois por Sieyes6 , mas igualmente por Buonar1. As obras fundamentais de E. Coke sao: A Book ofEntries, Londres, 1614; Commentaries on Littleton, Londres, 1628; A treatise of Bail and Mainprize, Londres, 1635; Institutes ofthe Laws ofEngland, Londres, I, 1628; II, 1642; III-IV, 1644; Reports, Londres, I-XI, 1600-1615; XII, 1656; XIII, 1659. Sabre Coke, cf. infra, aula de 4 de fevereiro. 2. Sabre 1. Lilbume, cf. ibid. 3. Sabre H. de Boulainvilliers, cf. infra, aula de II, 18 e 25 de fevereiro. 4. A maioria das obras de N. Freret sao inicialmente publicadas nas Memoires de / 'Academie des Sciences. Serna depois reunidas em suas tEuvres completes, Paris, 1796-1799,20 vol. Ver, entre outras: De l'origine des Franfais et de leur etablissement dans la Gaule (t. V); Recherches historiques sur les
mceurs et le gouvernement des Franfais, dans les divers temps de la monarchie (t. VI); Reflexions sur ['etude des anciennes histoires et sur Ie degre de certitude de leurs preuves (t. VI); Vues generales sur I'origine et sur Ie melange des anciennes nations et sur la maniere d'en etudier /'histoire (t. XVIII); Observations sur les Merovingiens (t. XX). Sobre Freret, cf. infra, aula de 18 de fevereiro. 5. Joachim, conde d'Estaing, Dissertation sur la noblesse d'extraction et sur /es origines des fiefs, des surnoms et des armoiries, Paris, 1690. 6. Michel Foucault se ap6ia essencialmente, em sua aula de 10 de marl;O (infra), na obra de E.-J. Sieyes, Qu 'est-ce que Ie Tiers-Etat?, s.l., 1789 (ver as reedil;oes desse texto: Paris, PDF, 1982, e Flammarion, 1988).
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roti', Augustin ThierryS ou Courtet9 . E, por fim, voces vao encontni-lo entre os biologos racistas e eugenistas, etc., do fim do seculo XIX. Discurso sofisticado, discurso cientifico, discurso erudito, feito por pessoas com olhos e com dedos empoeirados, mas, igualmente, discurso - voces verao - que teve certamente urn numero imenso de locutores populares e anonimos. Esse discurso, 0 que e que ele diz? Pois bern, eu creio que diz isto: contrariamente ao que diz a teoria fi10sOfico-juridica, 0 poder politico nao come9a quando cessa a guerra. A organiza9ao, a estrutura juridica do poder, dos Estados, das monarquias, das sociedades, nao tern seu principio no ponto em que cessa 0 ruido das armas. A guerra nao e conjurada. No inicio, claro, a guerra presidiu ao nascimento dos Estados: 0 direito, a paz, as leis nasceram no sangue e na lama das batalhas. Mas com isso nao se deve entender batalhas ideais, rivalidades tais como as imaginam os filosofos ou os juristas: nao se trata de uma especie de selvageria teorica. A lei nao nasce da natureza, junto das fontes freqiientadas pelos primeiros pastores; a lei nasce das batalhas reais, das vitorias, dos massacres, das conquistas que tern sua data e seu herois de horror; a lei nasce das cidades incendiadas, das terras devastadas; ela nasce com 7. Cf. F. Buonarroti, Conspiration pour I'egalite. dUe de Babeuf, suivie du praces auquel elie donna lieu et des piecesjustificatives, Bruxelas, 1828,2 vol. 8. As obras hist6ricas de A. Thierry a que M. Foucault se refere, sobretudo na aula de 10 de mania (infra), sao as seguintes: Vues des revolutions d'Angleterre, Paris, 1817; Histoire de fa conqU/?te de !'Angleterre par les Normands, de ses causes et de ses suitesjusqu 'd nosjours, Paris, 1825; Lettres sur l'histoire de France pour servir d'introduction l'i?tude de cette histoire Paris, 1827; Dix ans d'etudes historiques, Paris, 1834; Recits des temps mero~ vingiens, prticedes de Considerations sur ['histoire de France, Paris, 1840; Essai sur l'histoire de la/ormation et des progres du Tiers.Etat, Paris, 1853. 9. De A. V. Courtet de l'Is1e, cf. sobretudo La science politiquefondee sur fa science de l'homme, Paris, 1837.
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os famosos inocentes que agonizam no dia que esta amanhecendo. Mas isto nao quer dizer que a sociedade, a lei e 0 Estado sejam como que 0 armisticio nessas guerras, ou a san9ao definitiva das vitorias. A lei nao e pacifica9ao, pois, sob a lei, a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regulares. A guerra e que e 0 motor das institui90es e da ordem: a paz, na menor de suas engrenagens, faz surdamente a guerra. Em outras palavras, cumpre decifrar a guerra sob a paz: a guerra e a cifra mesma da paz. Portanto, estamos em guerra uns contra os outros; uma frente de batalha perpassa a sociedade inteira, continua e permanentemente, e e essa frente de batalha que coloca cada urn de nos num campo ou no outro. Nao hi sujeito neutro. Somos for90samente adversanos de alguem. Uma estrutura binana perpassa a sociedade. E voces veem aparecer ai algo a que eu tentarei voltar e que e muito importante. A grande descri9ao piramidal que a Idade Media ou as teorias filosOfico-politicas faziam do corpo social, a grande imagem do organismo ou do corpo hurnano que Hobbes apresentara, ou ainda il organiza9ao ternaria (em tres ordens) que vale para a Fran9a (e ate certo ponto para certo numero de paises da Europa) e que continuara a articular certo nfunero de discursos e, em todo caso, a maioria das institui90es, opoe-se - MO, exatamente, pela primeira vez, mas pela primeira vez com urna articula91io historica precisa - urna concep9ao binaria da sociedade. Ha dois grupos, duas categorias de individuos, dois exercitos em confronto. E, sob os esquecimentos, as ilusoes, as mentiras que tentayam fazer-nos acreditar, justamente, que hi urna ordem ternaria, urna piriimide de subordina90es ou urn organismo, sob essas mentiras que tentavam fazer-nos acreditar que 0 corpo social e comandado seja por necessidades de natureza, seja
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por exigencias funcionais, temos de redescobrir a guerra que continua, a guerra com seus acasos e suas peripecias. Ternos de redescobrir a guerra, por que? Pois bern, porque essa guerra antiga e uma guerra [...] permanente. Temos, de fato, de ser os eruditos das batalhas, porque a guerra nao terminou, as batalhas decisivas ainda estao se preparando, a propria batalha decisiva, temos de vence-Ia. Isto quer dizer que os inimigos que estao I! nossa frente continuam a amea<;arnos, e nao poderemos chegar ao termo da guerra por algo como uma reconciliac;ao au uma pacifica9ao, mas somente na medida em que formos efetivamente vencedores. Ai estl! uma primeira caracteriza<;ao, muito nebulosa e certo, dessa especie de discurso. Eu creio que, mesmo a partir dai, pode-se compreender por que ele e importante: porque e, parece-me, 0 primeiro discurso na sociedade ocidental desde a Idade Media que se pode dizer rigorosamente historico-politico. Primeiro par causa disto: 0 sujeito que fala nesse discurso, que diz "eu" au que diz "nos", nao pode, e alias nao procura, ocupar a posi<;ao do jurista ou do filosofo, isto e, a posi<;ao do sujeito universal, totalizador ou neutro. Nessa luta geral de que ele fala, aquele que fala, aquele que diz a verdade, aquele que narra a historia, aquele que recobra a memoria e conjura os esquecimentos, pais bern, este esta for<;osamente de urn lado ou do outro: ele esta na batalha, ele tern adversarios, ele trabalha para urna vitoria particular. Claro, sem duvida, ele faz 0 discurso do direito, e faz valer 0 direito, reclama-o. Mas 0 que ele reclama e 0 que faz valer sao os "seus" direitos - "sao os nossos direitos", diz ele: direitos singulares, fortemente marcados por uma rela<;ao de propriedade, de conquista, de vitoria, de natureza. Sera 0 direito de sua familia ou de sua ra<;a, 0 direito de sua superioridade ou 0 direito da anterioridade, 0 direito das invasoes triunfantes ou 0 direito das ocupa<;oes recentes ou milenares. De todo modo, e urn direito a urn so tempo arrai-
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gada numa historia e descentralizado em rela<;ao a uma universalidade juridica. E, se esse sujeito que fala do direito (ou melhor, de seus direitos) fala da verdade, essa verdade nao e, tampouco, a verdade universal do filosofo. Everdade que esse discurso sobre a guerra geral, esse discurso que tenta decifrar a guerra sob a paz, esse discurso bern que tenta expressar, tal como ele e, 0 conjunto da batalha e restituir 0 percurso global da guerra. Mas nem por isso ele e urn discurso da totalidade ou da neutralidade; e sempre urn discurso de perspectiva. Ele so visa I! totalidade entrevendo-a, atravessando-a, traspassando-a de seu ponto de vista proprio. Isto quer dizer que a verdade e uma verdade que so pode se manifestar a partir de sua posi<;ao de combate, a partir da vitoria buscada, de certo modo no limite da propria sobrevivencia do sujeito que esta falando. Entre rela<;oes de for<;a e rela<;oes de verdade, esse discurso estabelece urn vinculo fundamental. Isto quer dizer ainda que 0 pertencer da verdade I! paz, I! neutralidade, I!quela posi<;ao mediana que Jean-Pierre Vernant lO mostrou a que ponto era constitutiva da filosofia grega, ao menos a partir de certo momento, se desfaz. Num discurso como aquele, de uma parte se dira tanto melhor a verdade porque se esta num campo. E 0 fato de pertencer a urn campo - a posi<;ao descentralizada - que vai permitir decifrar a verdade, denunciar as ilusoes e os erros pelos quais fazem que voce acredite - os adversarios fazem voce acreditar - que estamos nurn mundo ordenado e pacificado. "Quanto mais eu me
10. Cf. J.-P. Vemant, Les origines de fa pensee grecque, Paris, PDF, 1965 (em especial caps. VII e VIII); Mythe et pensee chez les Grecs. Etudes de psychologie historique, Paris, La Decouverte, 1965 (em especial caps. III, IV, VII); My the et societe en Grece ancienne, Paris, Seuil, 1974; J.-P. Vemant & P. Vidal-Naquet, Mythe et tragMie en Grece ancienne, Paris, La Decouverte, 1972 (em especial cap. III).
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descentro, mais vejo a verdade; quanta mais eu acentuo a rela9ao de for9a, quanta mais eu me bato, mais efetivamente a verdade vai se manifestar it minba frente, e nessa perspectiva do combate, da sobrevivencia ou da vitoria." E, inversamente, se a rela9ao de for9a libera a verdade, a verdade, por sua vez, vai atuar, e em ultima analise s6 e procurada, na medida em que puder efetivamente se tomar uma arma na rela9ao de for9a. Ou a verdade fomece a for9a, ou a verdade desequilibra, acentua as dissimetrias e finalmente faz a vitoria pender mais para urn lado do que para 0 outro: a verdade e urn mais de for9a, assim como ela so se manifesta a partir de urna rela9ao de for9a. 0 pertencer essencial da verdade it rela9ao de for9a, it dissimetria, it descentraliza9ao, ao combate, it guerra, estit inserido neste tipo de discurso. Essa universalidade pacificada pode supor sempre, desde a filosofia grega, 0 discurso filosMico-juridico, mas ela e profundamente, ou questionada, ou, simplesmente, cinicamente ignorada. Temos urn discurso historico e politico - e e nisso que ele e historicamente arraigado e politicamente descentralizado - que tern pretensao it verdade e ao justo direito, a partir de urna rela9ao de for9a, para 0 proprio desenvolvimento dessa rela9ao de for9a, excluindo, por conseguinte, 0 sujeito que esti falando - 0 sujeito que esti falando do direito e esti procurando a verdade - da universalidade juridico-filosMica. 0 papel de quem esti falando nao e, pois, 0 papel do legislador ou do filosofo, entre os campos, personagem da paz e do armisticio, na posi9ao que ji Solon e ainda Kant haviam sonhado". Estabelecer-se entre os adversirios, no 11. No que se refere a Solon (ver em especial 0 fragmento 16, ed. Diehl), remetemos aamUise da "medida" que M. Foucault havia desenvolvido em seu curso no College de France, anos de 1970-1971, sabre A vontade de saber. Quanta a Kant, limitamo-nos a remeter a "\Vhat Is Enlightenment", a
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centro e acima, impor urna lei geral a cada urn e fundar urna ordem que reconcilie: nao e disso, de modo algurn, que se trata. Trata-se, antes, de impor urn direito marcado pela dissimetria, de fundar urna verdade vinculada a uma rela9ao de for9a, urna verdade-arma e urn direito singular. 0 sujeito que esti falando e urn sujeito - eu nao diria polemico - guerreador. Esse e urn dos primeiros pontos pelos quais este tipo de discurso e importante e introduz, decerto, uma fissura no discurso da verdade e da lei tal como ele era feito faz milenios, faz mais de urn milenio. Segundo, eurn discurso que inverte os valores, os equilibrios, as polaridades tradicionais da inteligibilidade, e que postula, chama a explica9ao por baixo. Mas a parte de baiXO, nessa explicac;ao, naG e forc;osamente, nem por isso, a mais clara e a mais simples. A explica9ao por baixo e tambern uma explica9ao pelo mais confuso, pelo mais obscuro, pelo mais desordenado, 0 mais condenado ao acaso; pois 0 que deve valer como principio de decifra9ao da sociedade e de sua ordem visivel e a confusao da violencia, das paixoes, dos Odios, das coleras, dos rancores, dos amargores; e tambern a obscuridade dos acasos, das contingencias, de todas "Qu'est-ce que les Lumieres?" (in Dits et ecrits, IV, nO,' 339 e 351) e a sua conferencia de 27 de maio de 1978 na Societe Franl;aise de Philosophie, publicada com 0 titulo "Qu'est-ce que la critique?" (Bulletin de la Sociite franraise de Philosophie, abril-jun. de 1990, pp. 35-63). De Kant, cf. Zum ewigen Frieden; ein philosophischer Enwurf(Konigsberg, J 795; ver em espe~ cial a segunda edir;ao de 1796) in Werke in zwolf Siinden, Frankfurt, Insel Verlag, 1968, voL XI, pp. 191-251; Der Streit der Fakultiiten in drei Abschnitten (Konigsberg, 1798), ibid. pp. 261-393 (trad. fr.: Projet de paix perpetuelle e Le conjlit des facultes, in E. Kant, CEuvres philosophiques, Paris, Gallimard, "Bibliotheque de la Pleiade", voL Ill, 1986), Foucault possuia as obras completas de Kant na edir;ao de Ernst Cassirer (Berlim, Bruno Cassirer, 1912-1922), e 0 volume de Ernst Cassirer, Kants Leben und Lehre (Berlim, 1921).
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as circunstancias miudas que produzem as derrotas e garantern as vit6rias. 0 que esse discurso pede no fundo ao deus eliptico das batalhas e esclarecer os longos dias da ordem, do trabalho, da paz, da justi,a. Cabe ao furor justificar a calma e a ordem. Que e que isso introduz entao no principio da hist6ria?' Primeiro, uma serie de fatos brutos, fatos que poderiamos dizer ja fisico-bioI6gicos: vigor fisico, for,a, energia, prolifera,ao de uma ra,a, fraqueza da outra, etc.; uma serie
de acasos, de contingencias, em todo caso: derrotas, vitorias, fracassos ou exitos das revoltas, sucessos ou insucessos das conjura,oes ou das alian,as; enfim, urn feixe de elementos psicol6gicos e morais (coragem, medo, desprezo, 6dio, esquecimento, etc.). Urn entrecruzamento de corpos, de paixoes e de acasos: e isso que, nesse discurso, vai constituir a trama permanente da hist6ria e das sociedades. E e simplesmente acima dessa trama de corpos, de acasos e de paixoes, dessa massa e desse burburinho sombrio e as vezes sangrento, que se vai construir algo de fragil e de superficial, uma racionalidade crescente, ados calculos, das estrategias, das asrucias; ados procedimentos tecnicos para manter a vit6ria, para fazer calar, aparentemente, a guerra, para conservar ou inverter as rela,oes de for,a. Portanto, e urna racionalidade que, a medida que se vai subindo e que ela se vai desenvolvendo, vai ser no fundo cada vez mais abstrata, cada vez mais vinculada a fragilidade e a ilusao, cada vez mais vinculada tambem a asrucia e a maldade daqueles que, tendo por ora a vit6ria,e estando favorecidos na rela,ao de domina,ao, tern todo 0 mteresse de nao as por de novo em jogo. Temos, pois, nesse esquema de explica,ao, urn eixo ascendente que e, acho eu, muito diferente, nos valores que
'" Manuscrito, depois "da hist6ria": "e do ctireito".
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ele distribui, daquele que temos tradicionalmente. Temos urn eixo que possui, na base, uma irracionalidade fundamental e permanente, uma irracionalidade bruta e nua, mas na qual irrompe a verdade; e depois, na dire,ao das partes altas, temos urna racionalidade fragil, transit6ria, sempre comprometida com a ilusao e a maldade e vinculada a elas. A razao esta do lado da quimera, da asrucia, dos maldosos; do outro lado, na outra extremidade do eixo, voces tern uma brutalidade elementar: 0 conjunto dos gestos, dos atos, das paixoes, das raivas cinicas e nuas; voces tern a brutalidade, mas a brutalidade que esta tambem do lado da verdade. Portanto, a verdade vai estar do lado da desrazao e da brutalidade; a razao, em compensa,ao, do lado da quimera e da maldade; totalmente 0 contrario, por conseguinte, do discurso explicativo do direito e da hist6ria ate entao. 0 esfor,o explicativo desse discurso consistia em destacar uma racionalidade fundamental e permanente, que seria por essencia vinculada ao justo e ao bern, de todos os acasos superficiais e violentos, que sao vinculados ao erro. Inversao, pais, acho eu, do eixo explicativo da lei e da hist6ria. Terceira importancia desse tipo de discurso, que eu gostaria de analisar urn pouquinho este ano, e que, voces estao vendo, e urn discurso que se desenvolve por inteiro na dimensao hist6rica. Ele se manifesta nurna hist6ria que nao tern bordas, que nao tern fins, nem limites. Nurn discurso como esse, nao se trata de tomar a monotonia da hist6ria como urn dado superficial que se deveria reordenar em alguns principios estaveis e fundamentais; nao se trata de julgar os governos injustos, os abusos e as violencias, reportando-os
a certo esquema ideal (que seria a lei natural, a vontade de Deus, os principios fundamentais, etc.). Trata-se, ao contrario, de definir e de descobrir sob as formas do justo tal como ele e instituido, de ordena-Io tal como ele e imposto, do institucional tal como ele e admitido, 0 passado esquecido das
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lutas reais, das vitorias efetivas, das derrotas que talvez tenham sido disfar9adas, mas que continuam profundamente inseridas. Trata-se de redescobrir 0 sangue que secou nos codigos, e, por conseguinte, nao, sob a fugacidade da historia, o absoluto do direito: nao reportar a relatividade da historia ao absoluto da lei ou da verdade, mas, sob a estabilidade do direito, redescobrir 0 infinito da historia, sob a formula da lei, os gritos de guerra, sob 0 equilibrio da justi9a, a dissimetria das for9as. Nurn campo historico, que nem sequer se pode dizer urn campo relativo, pois ele nao se relaciona com nenhurn absoluto, e urn infinito da historia que e de certo modo "irrelativizado", 0 da etema dissolu9ao em mecanismos e acontecimentos que sao os da for9a, do poder e da guerra.
Voces me dirao - e essa
e,
acho eu, mais uma razao
pela qual esse discurso e importante -, voces me dirao que esse e, sem duvida, urn discurso triste e negro, urn discurso talvez para aristocratas nostalgicos ou para eruditos de biblioteca. De fato, ja em sua origem, e ate mais tarde no seculo XIX e ainda no seculo XX, e urn discurso que se apoia, e que em geral se envolve, em formas miticas muito tradicionais. Nesse discurso se encontram associados ao mesma
tempo saberes sutis e mitos, eu nao diria grosseiros, mas fundamentais, pesados e sobrecarregados. Pois, afinal de contas, vemos bern como urn discurso como esse pode se articular
(e voces veriio como de fato ele se articulou) com base em toda urna grande mitologia: [a era perdida dos grandes ancestrais, a iminencia dos tempos novos e das desforras milenares, a vinda do novo reino que apagara as antigas derrotas]1'. Nessa mitologia, conta-se que as grandes vitorias dos gi-
12. Segundo 0 Resumo do Curso no College de France desses anas 19751976 (in Dits etecrits, III, n~ 187, e infra).
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gantes foram sendo aos pOUCOS esquecidas e encobertas; que houve 0 crepusculo dos deuses; que herois foram feridos ou morreram e que reis adormeceram dentro de cavernas inacessiveis. E tambem 0 tema dos direitos e dos bens da primeira ra9a que foram achincalhados por invasores astutos; 0 tema da guerra secreta que continua; 0 tema do complo que e preciso restabelecer para reanimar essa guerra e escorra~ar os invasores ou os inimigos; 0 tema da famasa
batalha da manha do dia seguinte que vai afinal inverter as for9as e que, dos vencidos seculares, vai fazer enfim vencedores, mas vencedores que nao conheceriio e nao praticarao o perdao. E e assim que, durante toda a Idade Media, porem mais tarde ainda, vai-se revigorar incessantemente, vinculada a esse tema da guerra perpetua, a grande esperan9a do dia da desforra, a espera do imperador dos ultimos dias, do dux novus, do novo chefe, do novo guia, do novo Fuhrer; a ideia da quinta monarquia, ou do terceiro imperio, ou do terceiro Reich, aquele que sera ao mesmo tempo a besta do Apocalipse ou 0 salvador dos pobres. E a volta de Alexandre perdido nas indias; e a volta, por tanto tempo esperada na Inglaterra, de Eduardo, 0 Confessor; e Carlos Magno, adormecido em seu tUmulo, que despertara para reanimar a guerra justa; sao os dois Frederico, Barba-Roxa e Frederico II, que esperam, em sua caverna,
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despertar de seu povo e de seu
imperio; e 0 rei de Portugal, perdido nos areais da Africa, que retomara para urna nova batalha, para urna nova guerra, e para uma vitoria que sera, dessa vez, definitiva. Esse discurso da guerra perpetua nao e, pois, somente a inven9ao triste de alguns intelectuais que foram por muito tempo mantidos sob tutela. Parece-me que, para alem dos grandes sistemas filosofico-juridicos que ele curto-circuita de lado, esse discurso junta de fato, a urn saber que por vezes e 0 dos aristocratas desarvorados, as grandes pulsaes miticas e tambem 0 ardor das desforras populares. Em suma,
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esse discurso talvez seja 0 primeiro discurso exclusivamente hist6rico-juridico do Ocidente em contraste com 0 discurso filos6fico-juridico, e urn discurso em que a verdade funciona explicitamente como arma para uma vit6ria exclusivamente partidaria. E urn discurso sombriamente critico, mas e tambem urn discurso intensamente mitico; e 0 dos amargores [...], mas e tambem 0 das mais loucas esperan,as. Portanto, ele e alheio, por seus elementos fundamentais, a grande tradi,ao dos discursos filosOfico-juridicos. Para os fil6sofos e os juristas, ele e for,osamente 0 discurso exterior, estrangeiro. Nao e sequer 0 discurso do adversario, pois eles nao discutem com ele. E 0 discurso, for,osamente desqualificado, que se pode e que se deve manter a margem, precisamente porque e preciso, como uma preliminar, anula-lo, para que possa enfim come,ar - no meio, entre os adversarios, acima deles -, como lei, 0 discurso justa e verdadeiro. Em conseqiiencia, esse discurso de que estou falando, esse discurso partidario, esse discurso da guerra e da hist6ria, talvez va figurar, na epoca grega, sob a forma do sofista astuto. Em todo caso, ele sera denunciado como 0 do historiador partidario e ingenuo, comO 0 do politico ferfenho, como
0
do aristocrata decaido, ou como
0
discurso
tacanho que contem reivindica,oes nao elaboradas. Ora, esse discurso, mantido, fundamental e estruturalmente, sob tutela por aquele dos fil6sofos e dos juristas, comec;ou, creio eu, sua carreira, ou talvez uma nova carreira, no Ocidente, em condi,oes muito precisas, entre 0 fim do seculo XVI e meados do seculo XVII, a prop6sito da dupla contesta,ao - popular e aristocratica - do poder regio. A partir dai, eu creio que ele proliferou consideravelmente e que sua superficie de alargamento, ate 0 final do seculo XIX e no seculo XX, foi consideravel e rapida. Mas nao se deveria acreditar que a dialetica pudesse funcionar como a grande reciclagem, enfim filosOfica, desse discurso. A dialetica
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bern pode parecer, it primeira vista, ser 0 discurso do movimento universal e hist6rico da contradi,ao e da guerra, mas creio que na verdade ela nao e de modo algum sua valida,ao filosOfica. Ao contrario, parece-me que ela atuou mais como sua retomada e sua muta,ao na velha forma do discurso filosOfico-juridico. No fundo, a dialetica codifica a luta, a guerra e os enfrentamentos dentro de uma 16gica, ou pretensa l6gica, da contradi,ao; ela os retoma no duplo processo da totaliza,ao e da atualiza,ao de uma racionalidade que e a urn s6 tempo final, mas fundamental, e em todo caso irreversivel. Enfim, a dialetica assegura a constitui9ao, atrayes da hist6ria, de urn sujeito universal, de urna verdade reconciliada, de urn direito em que todas as particularidades teriam enfim seu lugar ordenado. A dialetica hegeliana e todas aquelas, penso eu, que a seguiram devem ser compreendidas - 0 que tentarei lhes mostrar - como a coloniza,ao e a pacifica,ao autoritaria, pela filosofia e pelo direito, de urn discurso hist6rico-politico que foi ao mesmo tempo uma constata,ao, uma proclama,ao e uma pritica da guerra social. A dialetica colonizou esse discurso hist6rico-politico que fazia, as vezes com estardalha,o, em geral na penumbra, as vezes na erudic;ao e as vezes no sangue, seu caminho durante seculos na Europa. A dialetica e a pacifica,ao, pela ordem filosOfica e talvez pela ordem politica, desse discurso amargo e partidario da guerra fundamental. Eis, pois, uma especie de quadro de referencia geral nO qual eu gostaria de situar-me este ano, para refazer urn pouco a hist6ria desse discurso. Eu gostaria agora de Ihes dizer como realizar esse estudo e de que ponto partir. Primeiramente, descartar certo nilmero de falsas paternidades que se tern 0 habito de atribuir a esse discurso hist6rico-politico. Pois, assim que se pensa na rela,ao poder/guerra, poder/rela,oes de for~, imediatamente dois nomes vern a mente: pensa-se em Maquiavel,
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pensa-se em Hobbes. Eu gostaria de lhes mostrar que nao e nada disso, e que, de fato, esse discurso historico-politico nao e, e nao pode ser, 0 da politica do Principe" ou aquele, claro, da soberania absoluta; que, de fato, e urn discurso que so pode considerar 0 Principe urna ilusao, urn instrumento ou, melhor, urn inimigo. E urn discurso que, no fundo, corta a cabe~a do rei, que dispensa em todo caso 0 soberano e 0 denuncia. Em seguida, depois de ter descartado essas falsas patemidades, eu gostaria de lhes mostrar qual foi 0 ponto de emergencia desse discurso. E parece-me que temos de tentar sitmi-Io no seculo XVII, com suas caracteristicas importantes. Primeiro, duplo nascimento desse discurso: de urna parte, vamos ve-Io emergir, por volta dos anos 1630 aproximadarnente, nas reivindica~oes populares ou pequeno-burguesas na Inglaterra pre-revolucionaria e revolucio-
miria; sera 0 discurso dos puritanos, sera 0 discurso dos Levellers [Niveladores]. E depois voces vao reencontra-Io, cinqiienta anos depois, do lado inverso, mas sempre como discurso de luta contra 0 rei, do lado do amargor aristocratico, na Fran~a, no fim do reinado de Luis XIV E depois, e este e urn ponto importante, ja naquela epoca, ou seja, ja no seculo XVII, ve-se que a ideia segundo a qual a guerra constitui a trama ininterrupta da historia aparece sob uma forma precisa: a guerra que se desenrola assim sob a ordem e sob a paz, a guerra que solapa a nossa sociedade e a divide de urn modo binario e, no fundo, a guerra das ra~as. Muito cedo , encontrarnos os elementos fundamentais que constituem a possibilidade da guerra e que Ihe garantem a manu13. Sabre Maquiavel, ver: no Curso no College de France, anas 19771978: Securite, Territoire et Population, 0 de I? de fevereiro de 1978 ("La 'gouvemementalite"'); cf. tambem "'Omnes et singu!atim': Toward a Criticism of Political Reason" (1981) e "The Political Technology of Individuals" (1982) (in Dits et Jails, III, n~ 239; IV, n°." 291 e 364).
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ten~ao, 0 prosseguimento e 0 desenvo1vimento: diferen~as etnicas, diferen~as das linguas; diferen~as de for~a, de vigor, de energia e de violencia; diferen~as de selvageria e de barMries; conquista e servimo de urna ra~a por urna outra. 0 corpo social e no fundo articulado a partir de duas ra~as. E a ideia segundo a qual a sociedade e, de urn extremo a outro, percorrida por esse enfrentarnento das ra~as, que encontramos formulado ja no seculo XVII e como que matriz de todas as formas sob as quais, em seguida, investigaremos a fisionomia e os mecanismos da guerra social. A partir dessa teoria das ra~as, ou melhor, dessa teoria da guerra das ra~as, eu gostaria de seguir a sua historia sob a Revolu~ao Francesa e, sobretudo, no inicio do seculo XIX, com Augustin e Amedee Thierry!" ever como ela passou por duas transcri~oes. De urn lado, uma transcri~ao francamente biologica, aquela que se opera, aMs, bern antes de Darwin, e que copia seu discurso, com todos os seus elementos, seus conceitos, seu vocabulario, de uma amitomofisiologia materialista. Ela vai se apoiar igualmente numa filologia, e sera 0 nascimento da teoria das ra~as no sentido historico-biologico do termo. E urna teoria mais uma vez muito arnbigua, urn pouco como no seculo XVII, que vai se articular, de urn lado, com base nos movimentos das nacionalidades na Europa e na luta das nacionalidades contra os grandes aparelhos de Estado (essencialmente austriaco e russo); e voces a verao tarnbem articular-se a partir da politica da coloniza~ao europeia. Ai esta a primeira transcri~ao - biologica - dessa teoria da luta permanente e da luta das ra~as. E depois voces encontrarao uma segunda transcri~ao,
14. Sabre Augustin Thierry, cf. supra, nota 8. No tocante a Amedee Thierry, cf Histoire des Gaulois, depuis les temps les plus recules jusqu 'd l'entiere soumission de la Gaule d la domination romaine, Paris, 1828; Histoire de la Gaule sous l'administration romaine, Paris, 1840-1847.
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aquela que vai se operar a partir do grande tema e da teoria da guerra social, que se desenvolve ja nos primeiros arros do seculo XIX e que vai tender a apagar todos os vestigios do conllito de ra,a para definir-se como uma luta de classe. Portanto, temos ai uma especie de entroncamento essenclal, que tentarei tornar a situar e que vai corresponder a uma retomada da analise dessas lutas na forma da dialetica e a uma retomada do tema dos enfrentamentos das ra,as na teoria do evolucionismo e da luta pela vida. A partir dai, seguindo de uma forma privilegiada esse segundo ramo - a transcri,ao na biologia - eu tentarei mostrar todo 0 desenvolvimento de um racismo biologico-social, com a ideia que e absolutamente nova e que vai fazer 0 discurso funcionar de modo muito diferente - de que a outra ra,a, no fundo, nao e aquela que veio de outro lugar, nao e aquela que, par uns tempos, triunfou e dominou, mas e aquela que, permanente e continuamente, se infiltra no corpo social, ou melhor, se recria permanentemente no tecido social e a partir dele. Em outras palavras: 0 que vemos como polandade, como fratura binaria na sociedade, nao e 0 enfrentamento de duas ra,as exteriores uma a outra; e 0 desdobramento de uma Unica e mesma rac;a em urna super-rac;a e uma sub-rac;a. Ou ainda: 0 reaparecimento, a partir de uma ra,a, de seu proprio passado. Em resumo, 0 avesso e a parte de baixo da ra,a que aparece nela. Desse modo, vamos ver essa conseqiiencia fundamental: esse discurso da luta das ra,as - que, no momento em que apareceu e come,ou a funcionar no seculo XVII, era essencialmente um instrumento de luta para campos descentralizados - vai ser recentralizado e tomar-se justamente 0 discurso do poder, de um poder centrado, centralizado e centralizador; 0 discurso de um combate que deve ser travado nao entre duas ra,as, mas a partir de uma ra,a conslderada como sendo a verdadeira e a unica, aquela que detem
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o poder e aquela que e titular da norma, contra aqueles que estao fora dessa norma, contra aqueles que constituem outros lantos perigos para 0 patrim6nio biologico. E vamos ver, nesse momenta, todos os discursos biologico-racistas sobre a degenerescencia, mas tambem todas as institui,oes que, no interior do corpo social, vao fazer 0 discurso da luta das ra,as funcionar como principio de elimina,ao, de segrega,ao e, finalmente, de normaliza,ao da sociedade. Em conseqiiencia, 0 discurso cuja hist6ria eu gostaria de fazer abandonara a formula,ao fundamental do inicio que era esta: "Temos de nos defender contra os nossos inimigos porque de fato os aparelhos do Estado, a lei, as estruturas do poder, nao s6 nao nos defendem contra os nossos inimigos, mas sao tambem instrumentos com os quais os nossos inimigos nos perseguem enos sujeitam." Esse discurso agora vai desaparecer. Nao sera: "Temos de nos defender contra a sociedade", mas, "Temos de defender a sociedade contra todos os perigos biol6gicos dessa outra ra,a, dessa sub-ra,a, dessa contrara,a que estamos, sem querer, constituindo." Nesse momento, a temMica racista nao vai mais parecer ser 0 instrumento de luta de um grupo social contra um outro, mas vai servir il estrategia global dos conservadorismos sociais. Aparece nesse momenta - 0 que e um paradoxo em compara,ao aos proprios fins e il forma primeira desse discurso de que eu Ihes falava - um racismo de Estado: um racismo que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre os seus pr6prios elementos, sobre os seus proprios produtos; um racismo interno, 0 da purifica,ao permanente, que sera uma das dimensoes fundamentais da normaliza,ao social. Este ano, eu gostaria entao de percorrer um pouquinho a hist6ria do discurso da luta e da guerra das ra~s, a partir do seculo XVII, levando-a ate 0 aparecimento do racismo de Estado no inicio do seculo XX.
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discurso his/Drieo e seus partidtirios. - A contra-hisloria da luta das ra9Qs. - Historia romana e historia biblica. - 0 discurso revolucionario. - Nascimento e transfonnafoes do racismo. - A pureza da rar;Q e 0 racismo de Estado: transformar;iio nazista e transformar;iio sovietica.
Voces podem ter achado que eu empreendi, da ultima vez, fazer-lhes a historia e 0 elogio do discurso racista. Voces nao estavam totalmente errados, todavia com este senao: nao foi em absoluto do discurso racista que eu quis fazer 0 elogio e a historia, mas, antes, do discurso da guerra ou da luta das rac;as. Eu creio que convem reservar a expressao "racismo" ou "discurso racista" a algo que no fundo nao passou de urn episOdio, particular e localizado, desse grande discurso da guerra ou da luta das ra,as. Para dizer a verdade, 0 discurso racista foi apenas urn episodio, uma fase, a varia,ao, a retomada em todo caso, no final do soculo XIX, do discurso da guerra das ra,as, uma retomada desse velho discurso, ji secular naquele momento, em termos socio-biologicos, com finalidades essencialmente de conservadorismo social e, pelo menos em certo ntimero de casos, de domina,ao colonial. Tendo dito isto para situar, a urn so tempo, 0 vinculo e a diferen,a entre discurso racista e discurso da guerra das ra,as, era mesmo 0 elogio desse discurso da guerra das ra,as que eu queria fazer. 0 elogio, no sentido de que eu queria ter-Ihes mostrado como, durante urn tempo pela
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menos - isto e, ate 0 fim do seculo XIX, ate 0 momenta em que se converte num discurso racista -, esse discurso da guerra das ra~as funcionou como uma contra-hist6ria. E e dessa fun~ao de contra-hist6ria que eu gostaria de lhes falar urn pouquinho hoje. . Parece-me que se pode dizer - de uma maneira talvez urn tanto apressada ou esquemitica, mas em suma bastante justa quanta ao essencial - que 0 discurso hist6rico, 0 discurso dos historiadores, essa pritica que consiste em narrar a hist6ria permaneceu por muito tempo 0 que ela era decerto na Antiguidade e 0 que era ainda na Idade Media: ela permaneceu por muito tempo aparentada com os rituais de poder. Parece-me que se pode compreender 0 discurso do historiador como urna especie de cerimonia, falada ou escrita, que deve produzir na realidade urna justifica~ao do poder e, ao mesmo tempo, urn fortalecimento desse poder. Pareceme tamhem que a fun~ao tradicional da hist6ria, desde os primeiros analistas romanos l ate tarde na Idade Media, e talvez no seculo XVII e mais tardiamente ainda, foi a de expressar 0 direito do poder e de intensificar seu brilho. Duplo papel: de uma parte, ao narrar a hist6ria, a hist6ria dos reis, dos poderosos, dos soberanos e de suas vit6rias (ou, eventualmente, de suas derrotas provis6rias), trata-se de vincular juridicamente os homens ao poder mediante a continuidade da lei, que se faz aparecer no interior desse poder e em seu funcionamento; de vincular, pois, juridicamente os homens il continuidade do poder e mediante a continuidade do poder. De outra parte, trata-se tamhem de fascimi-los pela in1. A palavra anais designava, para as escritores romanos antes de Tito Livia, as antigas hist6rias que eles consultavam. Os anais sao a forma primitiva da hist6ria, oeles as acontecimentos sao relatados ana a ana. Os Annales maximi, redigidos pelo Grande Pontifice, foram editados em 80 livros no in!cia do seculo II antes de nossa era.
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tensidade, apenas suportivel, da gl6ria, de seus exemplos e de suas fa~anhas. 0 jugo da lei e 0 brilho da gl6ria, essas me parecem ser as duas faces pelas quais 0 discurso hist6rico visa a certo efeito de fortalecimento do poder. A hist6ria,
como os rituais, como as sagra90es, como os funerais, como as cerimonias, como os relatos legendirios, e urn operador, urn intensificador de poder. Parece-me que podemos reencontrar essa dupla fun~ao do discurso hist6rico em seus tres eixos tradicionais na Idade Media. 0 eixo geneal6gico narrava a antiguidade dos reinos, ressuscitava os grandes ancestrais, reconhecia as fa~anhas dos her6is fundadores dos imperios ou das dinastias. Nesse tipo de tarefa genea16gica, trata-se de fazer com que a grandeza dos acontecimentos ou dos homens passados possa caucionar 0 valor do presente, transformar sua pequenez e sua cotidianidade em algo igualmente her6ico e justo. Esse eixo geneal6gico da hist6ria - que encontramos essencialmente nas formas de narrativa hist6rica sobre os antigos reinos, sobre os grandes ancestrais - deve expressar a ancianidade do direito; deve mostrar 0 carater ininterrupto do direito do
soberano e, por conseguinte, mostrar com isso a fon;a inextirpivel que ele ainda possui no presente; e, enfim, a genealogia deve elevar 0 valor do nome dos reis e dos principes com todos os renomes que os precederam. Os grandes reis fundamentam, pois, 0 direito dos soberanos que lhes sucedem e transmitem, assim, seu brilho para a pequenez de seus sucessores. Ai esti 0 que se poderia chamar a fun~ao genea16gica da narrativa hist6rica. Hi tamhem a fun~ao de memoriza~ao, que vamos encontrar, pelo contririo, nao nas narrativas de antiguidade e
na ressurreil;ao dos antigos reis e her6is, mas, pelo contnirio, nos anais e nas cronicas realizadas dia a dia, de ano em ano, no curso mesmo da hist6ria. Esse registro permanente da hist6ria praticado pelos analistas serve, tamhem ele, para
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fortalecer 0 poder. Ele e tambem uma especie de ritual do poder: mostra que 0 que os soberanos e os reis fazem jamais e vao, jamais inutil ou pequeno, jamais abaixo da dignidade da narrativa. Tudo quanta eles fazem pode e merece ser dito e e preciso guardar perpetuamente sua lembran9a, 0 que significa que do menor feito e gesto de urn rei se pode, e se deve, fazer uma a9ao brilhante e uma fa9anha; e, ao mesmo tempo, inscreve-se carla uma de suas decisoes como uma especie de lei para seus suditos e de obriga9ao para seus sucessores. A hist6ria, portanto, toma memonivel e, ao tornar memoravel, insere os gestos num discurso que coage e imobiliza os menores feitos em monumentos que vao petrifica-los e deixa-Ios de certo modo eternamente presentes. Enfim, a terceira fun9ao dessa historia, como intensifica9ao do poder, e por em circula9ao exemplos. 0 exemplo e a lei viva ou ressuscitada; ele pennite julgar 0 presente, submete-Io a uma lei mais forte do que ele. 0 exemplo e, de certo modo, a gloria feita lei, e a lei funcionando no brilho de urn nome. E no ajustamento da lei e do brilho a urn nome que 0 exemplo tern for9a de - e funciona como - urna especie de ponto, de elemento pelos quais 0 poder vai ficar fortalecido. Vincular e deslumbrar, subjugar valorizando obriga90es e intensificando 0 brilho da sua for9a: parece-me, esquematicamente, que sao essas as duas fun90es que encontramos sob as diferentes formas da historia, tal como era praticada tanto na civiliza900 romana quanta nas sociedades da Idade Media. Ora, essas duas fun90es correspondem com muita exatidao aos dois aspectos do poder tal como era representado nas religi5es, nos rituais, nos mitos, nas lendas romanas e, de urn modo geral, indo-europeias. No sistema indo-europeu de representa9ao do poder', h:i sempre esses 2. Michel Foucault aqui se refere naturalmente aos trabalhos de G. Dumezil, em especial a: Mitra-Varuna. Essai sur deux representations indo-
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dois aspectos, essas dnas faces, que estao perpetuamente conjugadas. De urn lado 0 aspecto juridico: 0 poder vincula pela obriga9ao, pelo juramento, pelo compromisso, pela lei e, do outro, 0 poder tern urna fun9ao, urn papel, urna eficacia magicos: 0 poder deslurnbra, 0 poder petrifica. Jupiter, deus altamente representativo do poder, deus por excelencia da primeira fun9ao e da primeira ordem na triparti9ao indoeuropeia, e a urn s6 tempo 0 deus com vinculos e 0 deus com raios. Pois bern, eu creio que a historia, tal como funciona ainda na Idade Media, com suas pesquisas de antiguidade, suas cronicas do dia-a-dia, suas coletaneas de exemplos postas em circula9ao e ainda e sempre essa representa900 do poder, de que nao e simplesmente a imagem, mas tambem 0 processo de revigoramento. A historia e 0 discurso do poder, 0 discurso das obriga90es pelas quais 0 poder submete; e tambem 0 discurso do brilho pelo qual 0 poder fascina, aterroriza, imobiliza. Em resumo, vinculando e imobilizando, 0 poder e fundador e fiador da ordem; e a historia e precisamente 0 discurso pelo qual essas duas fun90e S que asseguram a ordem vao ser intensificadas e tornadas mais eficazes. De urn modo geral, pode-se portanto dizer que a historia, ate tarde ainda em nossa sociedade, foi uma historia da soberania, urna historia que se desenvolve na dimensao e na fun9ao da soberania. E uma historia "jupiteriana". Nesse sentido, a hist6ria, tal como a praticavam na Idade Media, estava ainda em continuidade direta com a historia dos romanos, a historia tal como a narravam os
remanos, a de Tito Livio 3 ou ados primeiros analistas. E europeennes de fa souverainete, Paris, Gallimard, 1940; Mythe et epopee, Paris, Gallimard, I: L 'ideologie des trois jonctions dans les epopees des peupies indo-europeens, 1968; II: Types epiques indo-europeens: un heros, un sorcier, un roi, 1971; III: Histoires romaines, 1973. 3. Tito Livio, Ab Urbe condita libri (dos quais nos restam os 1ivros I.X, XXI·XLV e a mctade da quinta decada).
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isto nao s6 na pr6pria forma da narrativa, nao s6 pelo fato de que os historiadores da Idade Media jamais viram diferen.;:as, descontinuidades, rupturas entre a hist6ria ramana e a deles, aquela que narravam. A continuidade entre a hist6ria tal como a praticavam na Idade Media e a hist6ria tal como a praticavam na sociedade romana era mais profunda ainda, na medida em que a narrativa hist6rica dos rornanos, comO aquela da Idade Media, tinha certa fun9ao politica, que era precisamente a de ser um ritual de fortalecimento da soberania. Se bem que esb09ado grosseiramente, e este, creio eu, o pano de fundo a partir do qual se pode tentar situar e caracterizar, no que ela pode ter de especifico, essa nova forma de discurso que aparece justamente no extremo [1m da Idade Media, para dizer a verdade, mesmo no seculo XVI e no inicio do seculo XVII. a discurso hist6rico nao vai ser mais 0 discurso da soberania, nem sequer da ra9a, mas [sen,] o discurso das ra9as, do enfrentamento das ra9as, da luta das ra9as atraves das na90es e das leis. Nesta medida, eu creio que e uma hist6ria absolutamente antitetica da hist6ria da soberania tal como era constituida ate entao. E a primeira hist6ria nao romana, anti-romana que 0 acidente tenha conhecido. Por que anti-romana, e por que contra-hist6ria, em rela9ao a esse ritual de soberania de que eu lhes falava agora hit pouco? Por certo numero de razoes que aparecem, acho eu, facilmente. Primeiro, porque nessa hist6ria das ra9as e do enfrentamento permanente das ra9as sob as leis e atraves delas, aparece, ou melhor, desaparece, a identifica9ao implicita entre 0 povo e seu monarca, entre a na9ao e seu soberano, que a hist6ria da soberania, das soberanias, fazia aparecer. Doravante, nesse novo tipo de discurso e de priltica hist6rica, a soberania jil nao vai unir 0 conjunto em uma unidade que seril precisamente a unidade da cidade, da na9ao, do Estado. A soberania tem uma fun9ao particular:
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ela nao une; ela subjuga. E 0 postulado de que a hist6ria dos grandes contem a fortiori a hist6ria dos pequenos, 0 postulado de que a hist6ria dos fortes traz consigo a hist6ria dos fracos, vai ser substituido por um principio de heterogeneidade: a hist6ria de uns nao e a hist6ria dos outros. Vai se descobrir, ou em todo caso afirmar, que a hist6ria dos saxoes vencidos depois da batalha de Hastings nao e ados normandos que foram vencedores nessa mesma batalha. Vai se aprender que 0 que e vit6ria para uns e derrota para outros. que foi a vit6ria dos francos e de Cl6vis, cumpre ler tambem, inversamente, como a derrota, 0 inicio da subjuga9ao e da escravidao dos galo-romanos. a que e direito, lei ou obriga9ao, se olhamos a coisa do lado do poder, 0 novo discurso mostrani como abuso, como violencia, como extorsao, se nos colocamos do outro lado. Afinal de contas, a posse da terra pelos grandes senhores feudais e 0 conjunto dos tributos que eles reclamam vao ser vistos, e vao ser denunciados, como atos de violencia, confiscos, pilhagens, tributos de guerra coletados violentamente de popula90es submissas. Em conseqiiencia, a grande forma da obriga9ao geral, cuja for9a a hist6ria intensificava ao cantar a gl6ria do soberano, se desfaz, e vemos, ao contri!rio, a lei aparecer como uma realidade de dupla face: triunfo de uns, submissao de outros. Nisso a hist6ria que aparece enta~, a hist6ria da luta das ra9as, e uma contra-hist6ria. Mas eu creio que ela 0 e igualmente de uma outra forma, mais importante ainda. Nao somente, de fato, essa contra-hist6ria dissocia a unidade da lei soberana que obriga, mas, ainda por cima, quebra a continuidade da gl6ria. Ela deixa patente que a luz - 0 famoso deslumbramento do poder - nao e algo que petrifica, solidifica, imobiliza 0 corpo social por inteiro, e, por conseguinte, 0 mantem na ordem, mas e, de fato, uma luz que divide, que adara de um lado, mas deixa na sombra, ou lan9a para
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a noite, urna outra parte do corpo social. E precisamente a historia, a contra-historia que nasce com a narrativa da luta das ra,as, vai falar do lado da sombra, a partir dessa sombra. Ela vai ser 0 discurso daqueles que nao tern a gloria, ou daqueles que a perderam e se encontram agora, por uns tempos talvez, mas por muito tempo decerto, na obscuridade e no silencio. Isso faz com que esse discurso - diferentemente do canto ininterrupto pelo qual 0 poder se perpetuava, se fortalecia, ao mostrar sua antiguidade e sua genealogia va ser uma tomada de palavra irruptiva, urn apelo: "Nao temos, atras de nos, continuidade; nao temos, atds de nos, a grande e gloriosa genealogia em que a lei e 0 poder se mostram em sua for,a e em seu brilho. Saimos da sombra, nao tinhamos direitos e nao tinhamos gloria, e e precisamente por isso que tomamos a palavra e come,amos a contar nossa historia." Essa tomada de palavra aparenta esse tipo de discurso nao tanto com a pesquisa da grande jurisprudencia ininterrupta de urn poder fundado de hi muito, mas com urna especie de ruptura profetica. 0 que faz igualmente com que esse novo discurso va se aproximar de certo nfunero de fomlas epicas, ou miticas, ou religiosas que, em vez de nar-
rar a gloria sem macula e sem interrup,5es do soberano, se
empenham, ao contra.rio, em contar, em formular a infelicidade dos ancestrais, os exilios e as servid5es. Ele vai enumerar menos as vit6rias do que as derrotas sob as quais se
curvaram durante todo 0 tempo em que ainda e necessario esperar a terra prometida e 0 curnprimento das velhas promessas que restabeleceriio, justamente, tanto os antigos direitos quando a gloria perdida. Com esse novo discurso da guerra das ra,as, vemos delinear-se algo que, no fundo, se aproxima bern mais da historia mitico-religiosa dos judeus do que da historia politico-Iegendaria dos romanos. Estamos muito mais do lado da Biblia do que do lado de Tito Livio, muito mais numa
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forma hebraico-biblica do que nurna forma do analista que nana, no dia-a-dia, a historia e a gloria ininterrupta do poder. Eu creio que, de urn modo geral, jamais se deve esquecer de que a Biblia foi, a partir da segunda metade da Idade Media pelo menos, a grande forma na qual se articularam as obje,5es religiosas, morais, politicas, ao poder dos reis e ao despotismo da Igreja. Essa forma - assim como, alias, muito amiUde a propria referencia aos textos biblicos - funcionou, na maior parte dos casos, como obje,ao, critica, discurso de oposi,ao. Jerusalem, na Idade Media, sempre foi objetada a todas as Babilonias ressuscitadas; sempre foi objetada it Roma etema, it Roma dos Cesares, aquela que derramava 0 sangue dos justos nos circos. Jerusalem e a obje,ao religiosa e politica it Idade Media. A Biblia foi a arma da miseria e da insurrei<;ao, foi a palavra que subleva contra a lei e contra a gloria: contra a lei injusta dos reis e contra a bela gloria da Igreja. Nessa medida, eu creio que nao e, pois, surpreendente ver surgir, no final da Idade Media, nO seculo XVI, na epoca da Reforma e tambem na epoca da Revolu,ao Inglesa, uma forma de historia que e estritamente oposta it historia da soberania e dos reis - it historia romana - ever essa nova historia articulada a partir da grande reforma biblica da profecia e da promessa. o discurso historico que aparece nesse momento pode, pois, ser considerado urna contra-historia, oposta it historia
romana, por esta razao: nesse novo discurso historico, a fun<;ao da memoria vai mudar totalmente de sentido. Na
hist6ria de tipo romano, a memoria tinha, essencialmente, de garantir 0 nao-esquecimento - ou seja, a manuten<;ao da lei e 0 aumento perpetuo do brilho do poder it medida que ele dura. Pelo contrario, a nova historia que aparece vai ter de desenterrar alguma coisa que foi escondida, e que foi escondida nao somente porque menosprezada, mas tambem porque, ciosa, deliberada, maldosamente, deturpada e dis-
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far9ada. No fundo, 0 que a nova historia quer mostrar e que o poder, os poderosos, os reis, as leis esconderam que nasceram no acaso e na injusti9a das batalhas. Afinal de con-
tas, Guilherme,
0
Conquistador,
DaD
queria, com razao, ser
chamado 0 Conquistador, pois queria disfar9ar que os direitos que ele exercia, ou as violencias que ele exercia sobre a Inglaterra, eram direitos conquistados. Ele queria mostrar-se como 0 sucessor dinastico legitimo, disfar9ar, pois, 0 nome de conquistador, assim como, afinal de contas, Clovis passeava com urn pergaminho para fazer que acreditassem que ele devia sua realeza ao reconhecimento de urn Cesar romano e incerto. Eles tentavam, esses reis injustos e parciais, valorizar-se para todos e em nome de todos; eles aceitam que falem de suas vitorias, mas nao querem que saibam que suas vit6rias eram a derrota dos Qutros, era a "nossa derrota". Portanto, 0 papel da historia sera 0 de mostrar que as leis enganam, que os reis se mascaram, que 0 poder ilude e que os historiadores mentem. Nao sera, portanto, urna historia da continuidade, mas urna historia da decifra9ao, da detec9ao do segredo, da devolu9ao da astucia, da reapropria9ao de urn saber afastado ou enterrado. Seri a decifra9ao de uma verdade selada. Enfim, eu creio que essa historia da luta das ra9as que aparece nos seculos XVI-XVII e urna contra-hist6ria noutro sentido, ao mesma tempo mais simples e mais elementar, porem mais forte tamhem. E que, longe de ser urn ritual inerente ao exercicio, a exibi9ao, ao fortalecimento do poder, ela e nao somente a critica, mas ataque a ele e a reivindica9ao dele. 0 poder e injusto nao porque decaiu de seus mais elevados exemplos, mas pura e simplesmente porque nao nos pertence. Em certo sentido, pode-se dizer que essa nova hist6ria, como a antiga, busca expressar 0 direito atraves das peripecias do tempo. Mas nao se trata de estabelecer a grande, a longa jurisprudencia de urn poder que sempre conser-
you seus direitos, nem de mostrar que 0 poder esta onde ele esta e que sempre esteve onde esta ainda. Trata-se de reivindicar direitos ignorados, ou seja, declarar guerra declarando direitos. 0 discurso historico de tipo romano pacifica a sociedade, justifica 0 poder, fundamenta a ordem - ou a ordem das tres ordens - que constitui 0 corpo social. Ao contririo, o discurso de que eu Ihes estou falando, aquele que se manifesta no final do seculo XVI e que se pode dizer urn discurso historico de tipo biblico, dilacera a sociedade e so fala de direito justo para declarar guerra as leis. Eu gostaria entao de resumir tudo isso fazendo a seguinte especie de proposi9aO. Nao se poderia dizer que ate o final da Idade Media, e talvez mais alem ainda, houve uma historia - urn discurso e uma pritica historicos - que era urn dos grandes rituais discursivos da soberania, de uma soberania que se mostrava e se constituia, atraves dele, como uma soberania unitaria, legitima, ininterrupta e brilhante? A essa historia, come90u a se opor uma outra: urna contra-hisloria, que e aquela da servidao sombria, da degrada9ao, aquela da profecia e da promessa, aquela tamhem do saber secreto que deve ser reencontrado e decifrado, aquela, enfim, da declara9ao conjunta e simultanea dos direitos e da guerra. A historia de tipo romano era, no fundo, uma hist6ria profundamente inserida no sistema indo-europeu de representa9ao e de funcionamento do poder; ela era vinculada, com toda a certeza, a organiza9ao das Ires ordens no topo das quais se encontrava a ordem da soberania e, por conseguinte, ela ficou for90samente vinculada a certo dominio de objetos e a cerlo tipo de personagens - a lenda dos herois e dos reis -, porque era 0 discurso do duplo aspecto, magico e juridico, da soberania. Essa historia, de modelo romano e com fun90es indo-europeias, se viu constrangida por uma historia de tipo biblico, quase hebraico, que foi, desde o fim da Idade Media, 0 discurso da revolta e da profecia,
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do saber e do apelo il subversao violenta da ordem das coisas. Esse novo discurso e vinculado, nao mais a uma organizacao temilria, como 0 discurso hist6rico das sociedades indo-europeias, mas a uma percepcao e a uma reparticao binilria da sociedade e dos homens: de urn lado uns, do outro os outros, os injustos e os justos, os senhores e aqueles que Ihes sao submissos, os ricos e os pobres, os poderosos e aqueles que s6 tern seus bracos, os invasores das terras e aqueles que tremem diante deles, os despotas e 0 povo ameac ador, os homens da lei presente e aqueles da piltria futura. Foi em meados da ldade Media que Petrarca formulou esta questao que acho bastante surpreendente e, em todo caso, fundamental. Ele dizia 0 seguinte: "Que hil, entao, na hist6ria, que nao seja a louvacao de Roma?'" Eu creio que com essa unica pergunta ele caracterizava com uma palavra a hist6ria tal como efetivamente ela sempre fora praticada, nao somente na sociedade ramana, mas nessa sociedade medieval il qual ele pr6prio, Petrarca, pertencia. Alguns seculos depois de Petrarca, aparecia, nascia no Ocidente uma hist6ria que, precisamente, compreendia coisa muito diferente que a louvacao de Roma, uma hist6ria em que se tratava, muito pelo contnirio, de desmascarar Roma como uma nova Babi16nia, e em que se tratava de reivindicar, contra Roma, os direitos perdidos de Jerusalem. Nasciarn uma forma totalmente diferente de hist6ria, urna funcao totalmente diferente do discurso hist6rico. Poderiamos dizer que essa hist6ria e 0 comeco do fun da historicidade indo-europeia, quero
4. "Quid est enim aliud omnis historia quam ramana Jaus?" (Petrarca, lnvectiva contra eum qui maledixit Italiae, 1373). Assinalamos que essa Frase de Petrarca e citada pOT E. Panofsky in Renaissance and Renascenses in Western An, Estocolmo, Almqvist & Wiksell, 1960 (trad. fr.: La Renaissance et ses avant-courriers dans ['art d'Occident, Paris, Flammarion, 1976, p. 26).
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dizer, de urn certo modo indo-europeu de contar e de perceber a hist6ria. No limite, poderiarnos dizer que, quando nasce 0 grande discurso sobre a hist6ria da luta das racas, acaba a Antiguidade - e, com Antiguidade, quero dizer essa consciencia de continuidade que se tinha, ainda tarde na Idade Media, em relacao it Antiguidade. A ldade Media ignorava, claro, que era a ldade Media. Mas ignorava lambem, se assim podemos dizer, que nao era, que nao era mais, a Antiguidade. Roma ainda estava presente, funcionava como uma especie de presenca hist6rica permanente e atual no interior da Idade Media. Roma era percebida como dividida em mil canais que atravessavarn a Europa, mas supunha-se que todos esses canais remontavam aRoma. Nao convem esquecer que todas as hist6rias politicas, nacionais (ou pre-nacionais) que se escreviam naquele momento, sempre se conferiam, como ponto inicial, urn certo mito troiano. Todas as nac5es da Europa reivindicavarn ter nascido da queda de Tr6ia. Ter nascido da queda de Tr6ia queria dizer que todas as nac5es, todos os Estados, todas as monarquias da Europa reivindicavam ser irmas de Roma. Assim e que a monarquia francesa derivava pretensamente de Franco, a monarquia inglesa de urn certo Bruto. Cada uma das grandes dinastias se conferia, nos fllhos de Priamo, ancestrais que asseguravam urn laco de parentesco geneal6gico com Roma antiga. E, ainda no seculo Xv, urn sultilo de Constantinopla escrevia ao doge de Veneza: "Mas por que fariamos a guerra, se somos irmaos? Os turcos, todos sabem, nascerarn, sairam do incendio de Tr6ia e tambem sao descendentes de Priamo. Os turcos", dizia ele, "todos sabem que sao descendentes de Turco, filho de Priamo, como Eneias e como Franco." Roma estil, pois, presente no interior mesmo dessa consciencia hist6rica da Idade Media, e nao hil ruptura entre Roma e esses inurneraveis reinos que vemos aparecer a partir dos seculos V-VI.
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Ora, 0 que 0 discurso da luta das rayas vai fazer aparecer e, precisamente, essa especie de ruptura que vai mandar para urn outro mundo algo que vai aparecer desde entao como uma antiguidade: aparecimento de urna consciencia de ruptura que nao havia sido reconhecida ate entao. Surgem, na consciencia da Europa, acontecimentos que ate entao eram apenas vagas peripecias que nao tinham, no fundo, arranhado a grande unidade, a grande legitimidade, a grande forya fulgurante de Roma. Aparecem acontecimentos que vao [enta~] constituir os verdadeiros primordios da Europa - primordlOs de sangue, primordios de conquista: sao as invasoes dos francos, as invasoes dos normandos. Aparece algo que Val, preclsamente, individualizar-se como "a Idade Media" (e sera preciso esperar 0 inicio do seculo XVIII para que, na consciencia historica, seja isolado 0 fenomeno a que se chamara feudalismo). Aparecem novas personagens, os francos, os gauleses, os celtas; aparecem tambem outras personagens mais genericas, que Sao a gente do Norte e a gente do SuI; aparecem os dominadores e as submissos, os vence-
dores e os vencidos. Sao estes agora que entram no teatro do discurso historico e que dai em diante constituem seu princIpal referenclal. A Europa se povoa de recordayoes e de ancestrais cuja genealogia ela ate entao nunca fizera. Ela se fissura sobretudo numa divisao binaria que ate entao ignorava. Uma consciencia historica totalmente diferente se constitui e se formula ao mesmo tempo atraves desse discurso sobre a guerra das rayas e desse apelo a sua ressurreiyao. Nessa medida, pode-se identificar 0 aparecimento dos discursos sobre a guerra das rayas com uma organizayao do tempo totalmente diferente na consciencia, na pratica e na propria politica da Europa. A partir dai, eu gostaria de fazer certo numero de observayoes. Primeiramente, eu gostaria de insistir no fato de que esse dlscurso da luta das rayas, seria erroneo considerar que
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pertence, de pleno direito e totalmente, aos oprimidos; que
ele fai, ao menos em sua origem, essencialmente 0 discurso dos subjugados, 0 discurso do povo, uma historia reivindicada e falada pelo povo. De fato, curnpre ver imediatamente que e urn discurso que foi dotado de urn grande poder de circulayao, de urna grande aptidao para a metamorfose, de uma especie de polivalencia estrategica. E verdade que 0 vemos, primeiro talvez, esboyar-se em temas escatologicos ou em mitos que acompanharam movimentos populares na segunda metade da Idade Media. Mas e preciso assinalar que 0 reencontramos muito depressa - logo em seguida - na forma da erudiyao historica, do romance popular ou das especulayoes cosmo-biologicas. Ele foi por muito tempo urn discurso das oposiyoes, dos diferentes grupos de oposiyao; foi, circulando muito depressa de urn a outro, urn instrumento de cntica e de luta contra urna forma de poder, dividido todavia entre os diferentes inimigos ou as diferentes formas de oposiyao a esse poder. Vemo-Io, de fato, servir, sob suas diferentes formas, ao pensamento radical ingles no momenta da revoluyao do seculo XVII, mas, alguns anos depois, apenas transformado, vemo-Io servir a reayao aristocratica francesa contra 0 poder de Luis XlV. No inicio do seculo XIX, ele foi vinculado, com toda a certeza, ao projeto pos-revolucionario de escrever, por fim, uma historia cujo verdadeiro sujeito seria 0 povol . Mas, alguns anos depois, voces 0 veem servir a desqualificayao das sub-rayas colonizadas. Portanto, mobilidade, polivalencia desse discurso: sua origem, no final da Idade Media, nao 0 marcou suficientemente para que so funcione politicamente nurn sentido. Segunda observayao: nesse discurso em que se trata da guerra das rayas e em que 0 termo "raya" aparece bastante 5. De Mignet a Michelet, passando pelos autores que M. Foucault examinara nos cursos seguintes.
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cedo, fica bern claro que essa palavra mesma - "ra9a" - nao e pregada a urn sentido biol6gico estave!. No entanto, essa palavra niio e absolutarnente variave!. Ela designa, finalmente, urna certa clivagem hist6rico-politica, arnpla sem duvida, mas relativarnente fixa. Diriio, e nesse discurso dizem, que ha duas ra9as quando se faz a hist6ria de dois grupos que niio tern a mesma origem local; dois grupos que niio tern, pelo menos na origem, a mesma lingua e em geral a mesma religiiio; dois grupos que s6 formararn urna unidade e urn todo politico a custa de guerras, de invasoes, de conquistas, de batalhas, de vit6rias e de derrotas, em surna, de vioJencias; urn vinculo que s6 se estabeleceu atraves da violencia da guerra. Enfim, diriio que ha duas ra9as quando ha dois grupos que, apesar de sua coabita9iio, niio se misturararn por causa de diferen9as, de dissimetrias, de barragens devidas aos privilegios, aos costumes e aos direitos, adistribui9iio das fortunas e ao modo de exercicio do poder. Terceira observa9iio: podemos, pois, reconhecer duas grandes morfologias, dois grandes focos principais, duas fun90eS politicas do discurso hist6rico. De urn lado, a hist6ria romana da soberania, do outro, a hist6ria biblica da servidiio e dos exilios. Eu niio creio que a diferen9a entre essas duas hist6rias seja exatarnente a diferen9a entre urn discurso oficial e, digamos, urn discurso rUstico*, urn discurso tao condicionado pelos imperativos politicos que niio era capaz de produzir urn saber. De fato, essa hist6ria, que se conferia como tarefa a decifra9iio dos segredos e a desmistifica9iio do poder, produziu ao menos tanto saber quanto aquela que tentava reconstituir a grande jurisprudencia ininterrupta do poder. Eu acho mesmo que se poderia dizer que os grandes desbloqueios, os momentos fecundos na constitui9iio do saber * Manuscrito, no Jugar de "oficial" e "rustico": "cientifico" e "ingenuo".
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hist6rico na Europa, podemos situa-los, aproximadamente, no momento de urna especie de interferencia, de choque, entre a hist6ria da soberania e a hist6ria da guerra das ra9as: por exemplo, no inicio do seculo XVII na Inglaterra, quando o discurso que narrava as invasoes e a grande injusti9a dos normandos contra os saxoes veio interferir em todo urn trabalho hist6rico que os juristas monarquistas estavam empreendendo para narrar a hist6ria ininterrupta do poder dos reis da Inglaterra. Foi 0 cruzamento dessas duas prliticas hist6ricas que trouxe a explosiio de todo urn campo de saber. Da mesma forma, quando, no fim do seculo XVII e no inicio do seculo XVIII, a nobreza francesa come90u a fazer sua genealogia niio na forma da continuidade mas, ao contrario, na forma de privilegios que ela teria tido outrora, e que depois teria perdido e que se trataria de recuperar, todas as pesquisas hist6ricas que se fizerarn a partir desse eixo vieram interferir na historiografia da monarquia francesa tal .como Luis XIV a havia constituido, a havia feito constituir-se; dai ainda urna formidavel extensiio do saber hist6rico. Assim tambem, no inicio do seculo XIX, outro momento fecundo: quando 0 discurso sobre a hist6ria do povo, de sua servidiio e de suas sujei90es, a hist6ria dos gauleses e dos francos, dos camponeses do terceiro estado, veio interferir na hist6ria juridica dos regimes. Portanto, interferencias perpetuas e produ9iio de campos e de conteudos de saber, a partir desse choque entre a hist6ria da soberania e a hist6ria da luta das ra9as. Ultima observa9iio: atraves ou apesar de todas essas interferencias, foi evidentemente do lado da hist6ria, eu ia dizer biblica, em todo caso do lado da hist6ria-reivindica9iiO, da hist6ria-insurrei9iio, que se colocou 0 discurso revolucionlirio - 0 da Inglaterra do seculo XVII e 0 da Fran9a, e da Europa, no seculo XIX. Essa ideia da revolu9iio, que per-
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passa todo 0 funcionamento politico e toda a hist6ria do Ocidente faz mais de dois seculos e que e, alias, em sua origem e em seu conteudo, finalmente muito enigmatica, eu creio que nao se pode dissocia-Ia do aparecimento e da existencia dessa pratica de uma contra-hist6ria. Afinal de contas, que significariam, que poderiam ser, a ideia e 0 projeto
revoluciommos sem, primeiro, essa decifrayao das dissimetrias, dos desequilibrios, das injusti,as e das violencias que funcionam apesar da ordem das leis, sob a ordem das leis, atraves da ordem das leis e gra,as a ela? Que seriam a ideia, a pn\tica, 0 projeto revoluciomirios, sem a vontade de tornar Dutra vez visivel uma guerra real, que se desenvolveu e continua a se desenvolver, mas que, precisamente, a ordem silenciosa do poder tern por fun,ao e por interesse sufocar e mascarar? Que seriam a pratica, 0 projeto e 0 discurso revolucionitrios, sem a vontade de reativar essa guerra atraves de urn saber hist6rico preciso, e sem a utiliza,ao desse saber como instrumento nessa guerra e como elemento tatico no interior da guerra real que se trava? Que quereriam dizer 0 projeto e 0 discurso revolucionitrios, sem 0 objetivo de uma certa inversao final da rela,ao das for,as e 0 deslocamento definitivo no exercicio do poder? Decifra,ao das dissimetrias, tomar outra vez visivel a guerra, reativa,ao da guerra: nao foi 0 todo do discurso revolucionitrio que nao parou de agitar a Europa desde pelo menos o fim do seculo XVIII, mas foi mesmo assim uma trama importante sua, precisamente aquela que havia sido formada, definida, instituida e organizada nessa grande contrahist6ria que narrava, desde 0 fim da Idade Media, a luta das ra,as. Nao convem esquecer, afinal de contas, que Marx, no fim de sua vida, em 1882, escrevia a Engels dizendo-Ihe: "Mas, nossa luta de classes, tu sabes muito bern onde a encontramos: nos a encontramos nos historiadores franceses
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quando eles narravam a luta das ra,as."6 A hist6ria do projeto e da pnitica revoluciomirios nao e, ereio eu, dissociavel dessa contra-hist6ria que rompeu com a forma indo-europeia de praticas hist6ricas vinculadas ao exercicio da soberania; ela nao e dissociavel do aparecimento dessa contrahist6ria que e a hist6ria das ra,as e da importancia que seus enfrentamentos tiveram no Ocidente. Poderiamos dizer, com uma palavra, que se abandonou, que se come,ou a abandonar, no fim da Idade Media, nos seculos XVI e XVII, uma sociedade cuja consciencia hist6rica ainda era de tipo romano, au seja, ainda centrada em rituais da soberania enos seus mitos, e que depois se entrou numa sociedade de tipo, digamos, modemo (urna vez que nao temos outras palavras, e a palavra modemo e evidentemente vazia de sentido) _ sociedade cuja consciencia hist6rica nao e centrada na soberania e no problema de sua funda,ao, mas na revolu,ao, em suas promessas e em suas profecias de liberta,6es futuras.
6. Deveria se tratar, na realidade, da carta de K. Marx a J. Weydemeyer de 5 de marl;o de 1852, na qual Marx escreve notadamente: "Enfim, se eu Fosse tu, Faria os senhores democratas em geral notarem que melhor fariam se eles pr6prios se familiarizassem com a literatura burguesa antes de se perrnitirem ladrar contra 0 que e 0 seu contrmo. Esses senhores deveriam, por exemplo, estudar as obras hist6ricas de Thierry, Guizot, John Wade, etc., e adquirir algumas luzes sobre 'a hist6ria das classes no passado'" (Karl MarxFriedrich Engels Gesamtausgabe, Dritte Abteilung, Briefwechsel, Bedim, ,?iez, t 5,1987, p. 75; trad. fr.: K. Marx & F. Engels, Correspondance, Paris, Editions Sociales, 1959, t III, p, 79). Cf. tambem a carta de Marx a Engels de 27 de julho de 1854, na qual Thierry e definido como "'0 pai da luta das classes' na historiografia francesa" (Gesamtausgabe, t 7, 1989, pp, 129-32, cita9ao p. 130; trad. fr.: in Correspondance, t. IV, 1975, pp. 148-52. No manuscrito M. Foucault escreve: "Em 1882 ainda, Marx dizia a Engels: a hist6ria do projeto e da pnitica revolucionarios nao e dissociave1 dessa contrahist6ria das raGas e da importancia que ela teve no Ocidente nas lutas politicas" (citado manifestamente de memoria).
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Compreende-se entao, a partir dai, creio eu, como e por que 0 discurso p6de se tomar, em meados do seculo XIX, um novo objeto de disputa. Com efeito, no momento em que esse discurso [... J estava se deslocando, ou se traduzindo, ou se convertendo num discurso revoluciomirio, em que a no,ao de luta das ra,as ia ser substituida por aquela de luta de classes - e ainda, quando digo "meados do seculo XIX", e tarde demais, era a primeira metade do seculo XIX, uma vez que essa transforma,ao da luta das ra,as em luta das classes foi operada por [ThiersF- portanto, no momento em que se faz essa conversao, era normal que, de outro lado, tentassem recodificar em termos nao de luta das classes, mas de luta das ra,as - das ra,as no sentido biol6gico e medico do termo - essa velha contra-hist6ria. E e assim que, no momento em que se forma uma contra-hist6ria de tipo revoluciommo, vai-se formar uma Dutra contra-hist6ria, mas que sera contra-hist6ria na medida em que esmagara, numa perspectiva bioI6gico-medica, a dimensao hist6rica que estava presente nesse discurso. Eassim que voces veem aparecer algo que vai ser justamente 0 racismo. Retomando, reciclando a forma, 0 alvo e a pr6pria fun,ao do discurso sobre a luta das ra,as, mas deturpando-os, esse racismo se caracterizara pelo fato de que 0 tema da guerra hist6rica - com suas batalhas, suas invas6es, suas pilhagens, suas vit6rias e suas derrotas - sera substituido pelo tema biol6gico, p6sevolucionista, da luta pela vida. Nao mais batalha no sentido guerreiro, mas luta no sentido bio16gico: diferencia,ao das especies, sele,ao do mais forte, manuten,ao das ra,as mais bern adaptadas, etc. Assim tambem, 0 tema da sociedade binana, dividida entre dnas ra,as, dois grupos estrangeiros, pela 7. Cf. sobretudo A. Thiers, Histoire de la Revolutionfranfaise, Paris, 1823-1827,10 yol., e Histoire du Cansu/at et de [,Empire, Paris, 1845-1862,
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lingua, pelo direito, etc., vai ser substituido pelo de uma sociedade que sera, ao contrano, biologicamente monistica. Ela sera evidentemente amea,ada por certo numero de elementos heterogeneos, mas que nao the sao essenciais, que nao dividem 0 corpo social, 0 corpo vivo da sociedade, em duas partes, mas que sao de certo modo acidentais. sera a icteia de estrangeiros que se infiltraram, sera 0 tema dos transviados que sao os subprodutos dessa sociedade. Enfim, 0 tema do Estado, que era necessariamente injusto na contra-hist6ria das ra9as, vai se transfonnar em tema inverso: 0 Estado nao e0 instrumento de uma ra9a contra uma autra, mas e, e deve ser, 0 protetor da integridade, da superioridade e da pureza da ra,a. A icteia da pureza da ra,a, com tudo 0 que comporta a urn s6 tempo de monistico, de estatal e de biol6gico, sera aquela que vai substituir a icteia da luta das ra,as. Quando 0 tema da pureza da ra,a toma 0 lugar do da luta das ra,as, eu acho que nasce 0 racismo, ou que esta se operando a conversao da contra-hist6ria em urn racismo biol6gico. 0 racismo nao e, pois, vinculado por acidente ao discurso e il politica anti-revolucionana do Ocidente; nao e simplesmente urn edificio ideol6gico adicional que teria aparecido em dado momento, numa especie de grande projeto antirevolucionario. No momenta em que 0 discurso da luta das rac;as se transformou em discurso revoluciomirio, 0 racismo foi 0 pensamento, 0 projeto, 0 profetismo revolucionarios virados noutro sentido, a partir da mesma raiz que era 0 discurso da luta das ra,as. 0 racismo e, literalmente, 0 discurso revoluciomu-io, mas pelo avesso. Ou, ainda, poderiamos dizer isto: se 0 discurso das ra,as, das ra,as em luta, foi mesrno a arma utilizada contra 0 discurso hist6rico-politico da soberania romana, 0 discurso da ra,a (a ra,a no singular) foi uma maneira de inverter essa arma, de utilizar seu gume em proveito da soberania conservada do Estado, de uma soberania cujo brilho e cujo vigor nao sao agora assegura-
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dos por rituais magico-juridicos, mas por tecnicas mediconormalizadoras. A custa de urna transferencia que foi a da lei para a norma, do juridico para 0 biol6gico; it custa de urna passagem que foi a do plural das ra9as para 0 singular da ra9a; it custa de uma transforma9ao que fez do projeto de liberta9ao a preocupa9ao da pureza, a soberania do Estado assumiu, tornau a levar em considera9ao, reutilizou em sua estrategia pr6pria 0 discurso da luta das ra9as. A soberania do Estado transformou-o assim no imperativo da prote9ao da ra9a, como urna alternativa e uma barragem para 0 apelo revolucionario, que derivava, ele pr6prio, desse velho discurso das lutas, das decifra90es, das reivindica90es e das pro-
messas. Enfim, eu gostaria de acrescentar a isso mais urna coisa. Esse racismo, assim constituido como a transforma9ao, alternativa ao discurso revolucionario, do velho discurso da luta das ra9as, passou ainda no seculo xx por duas transforma90es. Aparecimento portanto, no fim do seculo XIX, daquilo que poderiamos chamar de racismo de Estado: racismo biol6gico e centralizado. E esse tema e que foi, se nao profundamente modificado, pelo menos transformado e utilizado nas estrategias especificas do seculo XX. Podemos assinalar essencialmente dois deles. De uma parte, a transforma9ao nazista, que retoma 0 tema, instituido no final do seculo XIX, de urn racismo de Estado encarregado de proteger biologicamente a ra9a. Mas esse tema e retomado, convertido, de certa forma em modo regressivo, de maneira que seja reimplantado, e que funcione, no interior de urn discurso profetico, que era justamente aquele em que aparecera, antigamente, 0 tema da luta das ra9as. E assim que 0 nazismo vai reutilizar toda uma mitologia popular, e quase medieval, para fazer 0 racismo de Estado funcionar numa paisagem ideol6gico-mitica que se aproxima daquela das lutas populares que puderam, em dado momento, sustentar e permitir
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a formula9ao do tema da luta das ra9as. E e assim que 0 racismo de Estado, na epoca nazista, vai ser acompanhado de uma por9ao de elementos e de conota90es, como, por exemplo, os da luta da ra9a germiinica subjugada, durante urn tempo, pelos vencedores provis6rios que sempre foram, para a Alemanha, as potencias europeias, os eslavos, 0 Tratado de Versalhes, etc. Ele tambem foi acompanhado pelo tema da volta do her6i, dos her6is (0 despertar de Frederico, e de todos os que foram os guias e os Fuhrer da na9ao); do tema da retomada de urna guerra ancestral; do tema do advento de urn novo Reich que e 0 imperio dos ultimos dias, que deve garantir 0 triunfo milenar da ra9a, mas que e tambem, de urna forma necessaria, a iminencia do apocalipse e do ultimo dia. Reciclagem, pois, ou reimplanta9ao, reinser9ao nazista do racismo de Estado na lenda das ra9as em guerra. Em face dessa transforma9ao nazista, voces tern a transforma9ao de tipo sovietico, que consiste em fazer, de certo modo, 0 inverso: nao uma transforma9ao dramlitica e teatral, mas uma transforma9ao sub-repticia, sem dramaturgia legendaria, mas difusamente "cientista". Ela consiste em retomar 0 discurso revolucionario das lutas sociais - justamente aquele que era oriundo, por muitos de seus elementos, do velho discurso da luta das ra9as - e em faze-Io coincidir com a gestao de uma policia que assegura a higiene silenciosa de uma sociedade ordenada. 0 que 0 discurso revolucionario designava como inimigo de classe vai se tomar, no racismo de Estado sovietico, urna especie de perigo biol6gico. 0 inimigo de classe, que e agora? Pois bern, e 0 doente, e o transviado, e 0 IOlleo. Em conseqiiencia, a arma que Qlltrora devia lutar contra 0 inimigo de classe (arma que era a da guerra ou, eventualmente, a da dialetica e da convic9ao) agora nao pode ser mais do que uma policia medica que elimina, como urn inimigo de ra9a, 0 inimigo de classe. Portanto, temos, de urn lado, a reinser9ao nazista do racismo de
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Estado na velha lenda das ra,as em guerra e, do outro, a reinser,ao sovietica da luta das classes nos mecanismos mudos de urn racismo de Estado. E e assim que 0 canto rouco das ra,as que se enfrentam atraves das mentiras das leis e dos reis, esse canto que, afinal de contas, produziu a primeira forma do discurso revolucionario, tomou-se a prosa administrativa de urn Estado que se protege em nome de urn patrimonio social que deve ser guardado puro. Portanto, gloria e infilmia do discurso das ra,as em luta. o que eu quis lhes mostrar foi esse discurso que nos apartou, com toda a certeza, de urna consciencia historico-juridica centrada na soberania e que nos fez entrar numa forma de historia, nurna forma de tempo ao mesmo tempo sonhado e sabido, sonhado e conhecido, em que a questao do poder ja nao pode ser dissociada da questao das servidoes, das liberta,oes e das alforrias. Petrarca se perguntava: "Que ha na historia que nao seja louva,ao de Roma?" Pois bern, nos e e isso que decerto caracteriza a nossa consciencia historica e que esta vinculado ao aparecimento dessa contra-historia -, nos nos perguntamos: "Que ha na historia que nao seja 0 apelo arevolu,ao ou 0 medo dela?" E acrescentamos simplesmente esta pergunta: "E se Roma, de novo, conquis-
tasse a revolw;ao?" Entiio, depois dessas tropelias, eu tentarei, a partir da
proxima vez, retomar urn pOlleD essa hist6ria do discurso das ra,as em alguns de seus pontos, no seculo XVII, no inicio do seculo XIX e no seculo XX.
AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 Resposta sabre 0 anti-semitismo. - Guerra e soberania em Hobbes. ,- 0 discurso da conquista na lnglaterra. entre as monarqulstas, as parlamentaristas e as Levellers. - 0 esquema bimirio e 0 historicismo paNtica. - 0 que Hobbes queria eliminar.
, Vma ou duas semanas atras, [comunicaram]-me certo numero de perguntas e de obje,oes, orais e escritas. Gostana mUlto de discutir com voces, mas e diftcil neste espa,o e neste chma. De qualquer forma, depois da aula, voces podem VIr me ver em meu escritorio se tiverem perguntas para me fazer. Mas ha urna qual eu gostaria ainda assim d~ responder urn pouquinho, primeiro porque me foi feita v::nas vezes, depois porque eu havia achado poder responde-la de antemao e devo acreditar que as explica,oes nao estavam sufIclentemente claras. Disseram-me: "0 que sigmfIca fazer 0 raClsmo ter inicio no seculo XVI ou no XVII reportar 0 racismo apenas aos problemas da soberania e d~ Estado, quando se sabe bern, afinal de contas, que 0 racismo rehglOso (0 racismo anti-semita em especial) e,ostia desde a Idade Media?" Eu gostaria entao de voltar ao que nao exphqueI, portanto, suficiente e claramente. , . Para mim nao se trata, aqui, de fazer por ora uma histona do raClsmo no sentido geral e tradicional do termo. Nao quero fazer a historia daquilo que pode ser no Ocidente a
a
consciencia de pertencer a uma ra~a, nem ~ hist6ria dos
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tos e mecanismos pelos quais se tentou excluir, desqualificar, destruir fisicamente urna raya. 0 problema que eu quis calocar
eDutro, e DaD diz respeito ao racismo nem, em pri-
meira instiincia, ao problema das rayas. Tratava-se - e continua sempre se tratando para mim - de tentar ver como apareceu, no Ocidente, uma certa analise (critica, hist6rica e political do Estado, de suas instituiyoes e de seus mecanismos de poder. Essa analise e feita em termos binaTIos: 0 corpo social nao e composto por uma piramide de ordens ou por uma hierarquia, naD constitui urn organismo coerente e unitario, mas e composto por dois conjuntos, nao s6 perfeitamente distintos, mas tambem opostos. E essa relayao de oposiyao existente entre esses dois conjuntos que constituem o corpo social e que trabalham 0 Estado e, de fato, urna relayao de guerra, de guerra permanente, pois 0 Estado nada mais e que a maneira mesma pela qual continua a travar-se essa guerra, sob formas aparentemente pacificas, entre os dois conjuntos em questao. A partir dai, eu gostaria de mostrar como se articula urna analise desse tipo, evidentemente, com base a urn s6 tempo numa esperanf;a, n:un imperativo
e numa politica de revolta ou de revoluyao. E esse 0 fundo de meu problema, nao e 0 racismo. o que me parece historicamente bern justificado e que essa forma de analise politica das relayoes de poder (como relayoes de guerra entre duas rayas no interior de urna sociedade) nao interfere, pelo menos em primeira instiincia, no problema religioso. Essa analise, voces a encontram efetivamente formulada, formulando-se, no final do seculo XVI e no principio do seculo XVII. Em outras palavras, a divisao, a percepyao da guerra das rayas se antecipa as nOyoes de luta social ou de luta de classe, mas nao se identifica de modo algum com urn racismo do tipo, se voces quiserem, religioso. Nao falei do anti-semitismo, e verdade. Eu queria fazer urn pouco isso da ultima vez, quando fiz uma especie de exame
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superficial do tema da luta das rayas, mas nao tive tempo. Creio que 0 que se pode dizer - mas voltarei a isso mais tarde - e 0 seguinte: 0 anti-semitismo, com efeito, como atitude religiosa e racial, nao interveio de urna forma suficientemente direta, para que se possa leva-lo em conta na hist6ria que lhes you fazer, antes do seculo XIX. 0 velho antisemitismo do tipo religioso foi reutilizado num racismo de Estado somente no seculo XIX, a partir do momenta em que se constituiu urn racismo de Estado, no momenta em que o Estado teve de aparecer, de funcionar e de se mostrar como o que assegura a integridade e a pureza da raya, contra a raya ou as rayas que 0 infiltram, que introduzem em seu corpo elementos nocivos e que
e preciso, conseqiientemente, ex-
pulsar por razoes que sao de ordem politica e biol6gica ao mesmo tempo. Foi nesse momenta que 0 anti-semitismo se desenvolveu, retomando, utilizando, extraindo da velha forya do anti-semitismo, toda uma energia e toda uma mitologia que nao haviam sido, ate entao, utilizadas na analise politica da guerra intema, da guerra social. Naquele momento, os judeus pareceram ser - e foram descritos como -, a urn s6 tempo, a raya presente no meio de todas as rayas e aquela cujo carater biologicamente perigoso reclama, da parte do Estado, certo numero de mecanismos de recusa e de exclusao. Foi P0rlanto a reutilizayao, no racismo de Estado, de urn anti-semitismo que tinha, ereio eu, outras razoes, que provocou os fen6menos do seculo XIX, que acabam por fazer os velhos mecanismos do anti-semitismo sobrepor-se a essa analise critica e politica da luta das rayas no interior de uma sociedade. Foi por isso que nao apresentei nem 0 problema do racismo religioso nem 0 problema do anti-semitismo na Idade Media. Tentarei falar dele, em compensayao, quando abordar 0 seculo XIX. Mais urna vez, estou as ordens para responder a perguntas mais precisas.
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Hoje, eu gostaria de tentar ver como a guerra come90u a aparecer como analisador das rela90es de poder, no f,m do seculo XVI e no inicio do seculo XVII. Ha, claro, urn nome que a gente logo encontra: 0 de Hobbes, que aparece como, a primeira vista, quem pos a rela9ao de guerra no fundamento e no principio das rela90es de pode r. No fundo da ordem, por tras da paz, abaixo da lei, no nascimento do grande automato que constitui 0 Estado, 0 soberano, 0 Leviata, nao ha somente, para Hobbes, a guerra, mas a malS geral de todas as guerras, aquela que se manifesta em todos os instantes e em todas as dimensoes: "a guerra de todos contra todos"'. E essa guerra de todos contra todos, Hobbes nao a situa simplesmente no nascimento do Estado - na manba real e ficticia do Leviata -, ele a segue, ele a ve amea9ar e manar, depois mesmo da constitui9ao do Estado, em seus intersticios, nOS limites e nas fronteiras do Estado. Voces se lembram dos tres exemplos de guerra permanente que ele cita. Primeiramente, ele diz isto: mesmo quando, nurn Estado civilizado, urn viajante deixa seu domicilio, nunca se esquece de fechar com cuidado a fechadura da porta, pois bern sabe que h:\ urna guerra permanente que e travada entre os ladroes e os roubados 2 . Dutro exemplo que ele clta: nas florestas da America, encontram-se ainda tribos cujo regime e 0 da guerra de todos contra todos'. E, de qualquer 1. "Fora dos Estados civis, ha sempre uma guerra de carla qual contra cada quaL" "Com isso fica claro que, enquanto os homens vivem sem urn parler em comUIU que rnantenha a todos respeitosos, eles estao na condil;ao que se denomina guerra, e essa guerra e guerra de cada qual contra cada qual" (Th. Hobbes, Leviathan, op. cit., primeira parte, cap. XIII, p. 62; trad. fro citada, p. 124). Sabre 0 "bellum omnium contra omnes", cf. tamMm Elementorum philosophiae seelio tertia de Give, Paris, 1642, I, 1, XIII (trad. fr.: Le citoyen, QU les fondements de la politique, Paris, Flammanon, 1982). 2. Th. Hobbes, Leviathan, loco cit. 3. Ibid., p. 63 (trad. fr. citada, p. 124).
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forma, nos Estados da Europa, quais sao as rela90es entre urn Estado e outro, senao as de dois homens que estao de pe urn na frente do outro, a espada na mao e os olhos fixos urn no outrO?4 De qualquer forma, portanto, mesmo depois da constitui9ao do Estado, a guerra amea9a, a guerra esta presente. Dai esse problema: em primeiro lugar, 0 que e essa guerra, preliminar ao Estado e que 0 Estado esta destinado, em principio, a fazer cessar, essa guerra que 0 Estado repele, em sua pre-hist6ria, na selvageria, para suas fronteiras misteriosas, e que no entanto esta presente? Em segundo lugar, como essa guerra engendra 0 Estado? Qual e 0 efeito, na constitui9ao do Estado, do fato de que foi a guerra que 0 engendrou? Qual e 0 estigma da guerra no corpo do Estado, uma vez constituido? Ai estao as duas questoes que eu gostaria de [considerar] urn pouquinbo. Qual e entiio essa guerra, a guerra que Hobbes descreve antes mesmo e no principio da constitui9ao do Estado? Sera a guerra dos fortes contra os fracos, dos violentos contra os timidos, dos corajosos contra os covardes, dos grandes contra os pequenos, dos selvagens arrogantes contra os pastores timidos? sera urna guerra que articulada com Iiase em diferen9as naturais imediatas? Voces sabem que de modo algum e esse 0 caso em Hobbes. A guerra primitiva, a guerra de todos contra todos e urna guerra de igualdade, nascida da igualdade e que se desenrola no elemento dessa igualdade. A guerra e 0 efeito imediato de urna nao-diferen9a ou, em tado caso, de diferen9as insuficientes. De fato, diz Hobbes, se tivesse havido grandes diferen9as, se houvesse efetivamente entre os homens desigualdades que se veem e se manifestam, que sao muito claramente irreversiveis, e evidente que a guerra seria por isso mesmo imediatamente brecada. Se
e
4. Ibid., loco cit.
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houvesse diferenc;as naturais marcantes, visiveis, macic;as, das duas urna: ou haveria efetivamente enfrentamento entre 0 forte e 0 fraco - mas esse enfrentamento e essa guerra real se resolveria imediatamente com a vitoria do forte sobre 0 fraco, vitoria que seria definitiva por causa da propria for,a do forte; ou entao nao haveria enfrentamento real, 0 que quer dizer, pura e simplesmente, que 0 fraco, sabendo, percebendo, constatando sua propria fraqueza, renunciaria antes mesmo do enfrentamento. De sorte que - diz Hobbes -, se houvesse diferenc;as naturais marcantes, nao haveria guerra; pois, ou a rela,ao de for,a seria fixada logo de saida por urna guerra inicial que excluiria que ela continuasse, au entao, ao contrano, essa rela,ao de for,a perrnaneceria virtual dada a propria timidez dos fracos. Portanto, se houvesse diferen,a, nao haveria guerra. A diferen,a pacifica5 Em compensa,ao, no estado de nao-diferen,a, de diferen,a insuficiente no estado em que se pode dizer que ha diferen,as, mas mediocres, fugidias, minusculas, instaveis, sem ardem e sem distin,ao; nessa anarquia das pequenas diferen,as que caracteriza 0 estado de natureza, 0 que acontece? Mesmo quem e um pouquinho mais fraco do que os outros, do que urn outro, meSilla esse ainda assim esta suficientemente proximo do mais forte para perceber-se forte 0 bastante para nao ter de ceder. Portanto, 0 fraco jamais renuncia. Quanto ao forte, quem e simplesmente um pouquinho mais forte do que os outros nunca e forte 0 bastante para nao ficar inquieto e, por conseguinte, para nao ter de tomar cautela. Portanto, a nao-diferenciac;ao natural cria incertezas, riscos, acasos e, por conseguinte, a vontade, de ambas as partes, de enfrentar-se; e 0 aleatorio na rela,ao primitiva das for,as que cria esse estado de guerra.
5. Ibid., pp. 60-2 (tract. fro citada, pp. 123·4).
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Mas, esse estado de guerra, 0 que ele e exatamente? Mesmo 0 fraco sabe - ou acredita em todo caso - que nao esta longe de ser tao forte quanta 0 seu vizinho. Portanto, ele nao vai renunciar aguerra. Entretanto, 0 mais forte - enfim, aquele que e urn pouquinho mais forte do que os outros - sabe que, apesar de tudo, ele pode ser mais fraco do que 0 outro, sobretudo se 0 outro utiliza a asmcia, a surpresa , a alianc;a, etc. Portanto, urn nao vai renunciar it guerra, mas o outro - 0 mais forte - vai procurar, apesar de tudo, evim-la. Ora, aquele que quer evitar a guerra so podera evim-Ia Com uma condi,ao: que mostre que esta pronto para fazer a guerra e que nao esta pronto para renunciar a ela. E ele mostrara que nao esta pronto para renunciar a guerra, fazendo 0 que? Pois bem [agindo] de tal maneira que 0 outro, que esm a ponto de fazer a guerra, vai ficar com davidas sobre a sua propria fon;a e, por conseguinte, renunciani a ela, e renunciara, esse outro, simplesmente na medida em que sabe que o primeiro, por sua vez, nao esta pronto para renunciar a ela. Em resumo, no tipo de rela,oes que se encadeiam a partir dessas diferen,as mediocres e desses enfrentamentos aleat6rios cujo resultado nao e conhecido, essa rela,ao de for,a efeita do que? E feita do jogo entre tres series de elementos. Primeiro, das representa,oes calculadas: eu me represento a for,a do outro, represento-me que 0 outro se representa minha for,a, etc. Segundo, das manifesta,oes enfMicas e acentuadas de vontade: demonstra-se que se quer a guerra, mostra-se que nao se renuncia a guerra. Terceiro, enfim, utilizam-se taticas de intimida,ao entrecruzadas: receio tanto fazer a guerra que so ficarei tranqiiilo se voce recear a guerra pelo menos tanto quanta eu - e mesmo, na medida do possivel, um pouco mais. Isto quer dizer, em suma, que esse estado que Hobbes descreve nao e em absoluto um estado natural e brutal, no qual as for,as viriam se enfrentar diretamente: nao se esta na ordem das rela,oes diretas das for-
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9aS reais. 0 que se encontra,
0
que se enfrenta,
0
que se en-
trecruza, no estado de guerra primitiva de Hobbes, nao sao armas, nao sao punhos, nao sao for,as selvagens e desenfreadas. Nao M batalhas na guerra primitiva de Hobbes, nao M sangue, nao M cadaveres. Ha representa,oes, manifesta-
90es, sinais, express5es enfaticas, astuciosas, mentirosas; M engodos, vontades que sao disfar,adas em seu contrario, inquietudes que sao camufladas em certezas. Esta-se no teatro das representa,oes trocadas, esta-se nurna rela,ao de medo que e uma rela,ao temporalmente indefinida; nao se esta realmente na guerra. Isto quer dizer, finalmente, que 0 estado de selvageria bestial, em que os individuos vivos se devorariam uns aos outros, nao pode de forma alguma aparecer como a caracteriza,ao primeira do estado de guerra segundo Hobbes. 0 que caracteriza 0 estado de guerra e uma especie de diplomacia infinita de rivalidades que sao naturalmente igualitarias. Nao se esta na "guerra"; esta-se no que Hobbes denomina, precisamente, "0 estado de guerra". Ha urn texto em que ele diz: "A guerra nao consiste somente na batalba enos combates efetivos; mas nurn espa,0 de tempo - e 0 estado de guerra - em que a vontade de se enfrentar em batalhas e suficientemente demonstrada."6 0 espa,o de tempo designa, pois, 0 estado e nao a batalha, em que 0 que esta em jogo nao sao as proprias for,as mas a vontade, urna vontade que e suficientemente demonstrada, ou seja, [dotada] de urn sistema de representa,oes e de manifesta,oes que e operante nesse campo da diplomacia primana. Portanto, ve-se bern por que e como esse estado - que nao e a batalha, 0 enfrentamento direto das for,as, mas certo estado dos jogos das representa,oes urnas contra as outrasnao e urna fase que 0 homem abandonaria definitivamente 6. Ibid., p. 62 (trad. fro citada, p. 124).
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no dia em que nascesse 0 Estado; trata-se, de fato, de urna especie de pano de fundo permanente que M de funcionar, com suas asmcias elaboradas, com seus calculos mesclados, assim que algo nao de a seguran,a, nao fixe a diferen,a e nao coloque a for,a, enfim, de urn certo lado. Portanto, nao M guerra no inicio, em Hobbes.
Mas como esse estado, que nao
e a guerra, mas sim os
jogos das representa,oes pelos quais, justamente, nao se faz a guerra, vai engendrar 0 Estado - com uma maiuscula - 0 Leviata, a soberania? A esta segunda pergunta, Hobbes r~s ponde distinguindo duas categorias de soberania: a soberania de institui,ao e a soberania de aquisi,a0 7. Fala-se muito da soberania de institui,ao, e, em gera!, e a esta que se reduz, que se resume a anaIise de Hobbes. Na verdade, as coisas sao mais complicadas. Voces tern urna republica de institui,ao e urna republica de aquisi,ao e, no proprio interior desta, duas formas de soberania, de sorte que, no total: os Estados de institui,ao, os Estados de aquisi,ao, e tres tipos, tres formas de soberania vern, de certo modo, trabalhar essas formas de poder. Tomemos, primeiramente, as republicas de institui,ao, as que sao mais conhecidas; nao me demoro nelas. Que e que [ocorre] no estado de guerra, para fazer cessar esse estado de guerra em que, mais urna vez, nao e a guerra mas a representa,ao e a amea,a da guerra que intervem? Pois bern, alguns homens vao decidir. Mas 0 que? Nao tanto transferir a alguem - ou a varios - uma parte de seus direitos e de seus poderes. Eles nem sequer decidem, no fundo, transmitir todos os seus direitos. Decidem, ao contrario, conceder a alguem - que tambem podem ser vanos ou urna assembleia - 0 direito de representa-los, total e integralmente. Nao se
7. Em toda a discussao que se segue, M. Foucault se refere ao Leviathan, segunda parte (trad. fr,; "De la repubIique"), caps. XVII, XVIII, XIX, XX.
r I i
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trata de uma rela,ao de cessao ou de delega,ao de algo pertencente aos individuos, mas de uma representa,ao dos pr6prios individuos. Isto quer dizer que 0 soberano assim constituido valera integralmente para os individuos. Ele nao teni, pura e simplesmente, uma parte do direito deles; estari verdadeiramente no lugar deles, com a totalidade do poder deles. Como diz Hobbes, "a soberania assim constituida assume a personalidade de todoS"8. E, com a condi,ao desse deslocamento, os individuos assim representados estarao presentes em seu representante; e 0 que 0 representante - ou seja, 0 soberano - fizer, cada um deles, por isso mesmo, estari fazendo. Enquanto representante dos individuos, 0 soberano e modelado exatamente com base nos individuos mesmos. E, pois, uma individualidade fabricada, mas e uma individualidade real. Quando 0 soberano e um monarca naturalmente individual, isso nao 0 impede de ser fabricado como soberano; e, quando se trata de uma assembleia - embora se trate de um grupo de individuos -, nao deixa de se tratar de uma individualidade. E isso, portanto, no que concerne as republicas de institui,ao. Voces veem que, nesse mecanismo, bi somente 0 jogo da vontade, do pacto, da representa,ao. Olhemos agora a outra forma de constitui,ao das republicas, a outra coisa que pode acontecer a uma republica ou a outra: 0 mecanismo da aquisi,a0 9 . Aparentemente, e totalmente diferente, e mesmo justamente 0 contririo. No caso das republicas de aquisi,ao, parece que lidamos com uma soberania que seria fundamentada nas rela,oes de for,a a um s6 tempo reais, hist6ricas e imediatas. Para compreender esse mecanismo, cumpre supor nao um estado primitivo de guerra, mas realmente uma batalha. Vejamos um Estado ji 8. Cf. ibid., p. 88; cap. XVIII (trad. fro citada, p. 180). 9. Ibid., cap. XX.
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constituido a partir do modelo de que acabei de falar, 0 modeJa da institui,ao. Suponbamos agora que esse Estado seja atacado por outro numa guerra, com batalhas reais e decisaes armadas. Suponbamos que um dos dois Estados assim constituidos seja vencido pelo outro: seu exercito e vencido, dispersado, sua soberania destruida; 0 inimigo ocupa a terra. Estamos portanto, enfim, naquilo que procurivamos desde o come~o, isto e, numa verdadeira guerra, com uma verdadeira batalha, uma verdadeira rela,ao de for,a. Hi vencedores e vencidos, e os vencidos estao amerce dos vencedores a sua disposi,ao. Olhemos agora 0 que vai acontecer: os ven~ cidos estao a disposi,ao dos vencedores, isto e, estes podem matar os vencidos. Se eles os matam, ji nao bi, e evidente, problema: a soberania do Estado desaparece pura e simplesmente porque os individuos desse Estado desapareceram. Mas se os vencedores deixam a vida aDS vencidos, 0 que e que vai acontecer? Deixando a vida aDS vencidos, OU melhor, tendo os vencidos 0 beneficia provis6rio da vida, das duas uma: ou eles VaG revoltar-se contra os vencedores ou seja recome,ar efetivamente a guerra, tentar inverter ~ rela,a~ de for,a, e estamos de novo naquela guerra real que a derrota acabava, pelo menos provisoriamente, de suspender; ou eles correro efetivamente 0 risco de morrer, ou naG recome,am a guerra, aceitam obedecer, trabalhar para os outros, ceder a terra aos vencedores, pagar-Ihes tributos; estamos aqui, e evidente, numa rela,ao de domina,ao, totalmente fundamentada na guerra e no prolongamento, na paz, dos efeitos da guerra. Domina,ao, dirao voces, e nao soberania. Pois bern, nao, diz Hobbes; estamos ainda e sempre na rela,ao de soberania. Por que? Porque, uma vez que os vencidos preferiram a vida e a obediencia, por isso mesmo reconstituiram uma soberania, fizeram de seus vencedores os seus representantes, restauraram urn soberano no lugar daquele que a guerra havia derrubado. Nao e, pois, a derrota que fun-
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damenta urna sociedade de domina,ao, de escravidao, de servidao, de urna maneira brutal e fora do direito, mas 0 que se passou nessa derrota, depois mesmo da batalha, depois mesmo da derrota, e de certa maneira independentemente dela: e algo que e 0 medo, a renUncia ao medo, a renUncia aos riscos da vida. E isso que faz entrar na ordem da soberania e nurn regime juridico que e 0 do poder absoluto. A vontade de preferir a vida it morte: e isso que vai fundamentar a soberania, urna soberania que e tao juridica e legitima quanta aquela que foi constituida a partir do modo da institui,ao e do acordo mutuo. De urna forma bern estrarrha, Hobbes acrescenta a essas duas formas de soberania - a da aquisi,ao e a da institui,ao - uma terceira, da qual diz que e muito proxima daquela da aquisi,ao, daquela que aparece no crepusculo da guerra e apos a derrota. Esse outro tipo de soberania e aquela, diz ele, que liga uma crian9a aos pais - au, mais exatamente, a mae lO . Suponbamos, diz ele, urna crian,a que nasce. Seus pais (0 pai, numa sociedade civil, a mae, no estado de natureza) podem perfeitamente deixi-Ia morrer, ou mesmo faze-la, pura e simplesmente, morrer. Ela nao pode, em nenburn caso, viver sem os pais, sem a mae. E, durante aIlOS, espontaneamente, sem que tenba de formular sua vontade de outra maneira senao pela manifesta,ao de suas necessidades, de seus berros, de seu medo, etc., a crian,a vai obedecer aos pais, it mae, vai fazer exatamente 0 que ela Ihe mandar fazer, porque e dela, e dela somente, que depende sua vida. Portanto, a mae vai exercer sobre ela sua soberania. Ora, diz Hobbes, entre esse consentimento da crian,a (consentimento que nem sequer passa por urna vontade expressa ou por urn contrato) it soberania da mae para conservar sua propria vida e 0 dos
to. Ibid. Cf. tambem De Cive, II, IX.
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III
vencido~, no crepusculo da derrota, nao hi diferen,a de natureza. E que, de fato, Hobbes quer mostrar que 0 que e decisivo na constitui,ao da soberania nao e a qualidade da vontade, nem mesmo sua forma de expressao ou seu nivel. No fundo, pouco importa que se esteja com a faca na garganta, pouco imporya que se possa ou nao formular explicitamente a vontade. E preciso e basta, para que haja soberania, que esteja efetivamente presente urna certa vontade radical que faz que se queira viver mesmo quando nao se pode viver sem a vontade de urn outro. Portanto, a soberania se constitui a partir de uma forma radical de vontade, forma que importa poucO. Esta vontade e vinculada ao medo e a soberania nunca se forma por cima, ou seja, por uma decisao do mais forte, do vencedor, ou dos pais. A soberania se forma sempre por baixo, pela vontade daqueles que tern medo. De sorte que, apesar do corte que pode aparecer entre as duas grandes formas de republica (a da institui,ao nascida atraves de rela,ao mutua e a de aquisi,ao nascida da batalha), aparece entre ambas uma identidade profunda de mecanismos. Nao importa se se trata de urn acordo, de uma batalha, de uma rela,ao pais/filhos; de qualquer forma encontramos a mesma serie: vontade, medo e soberania. E pouco importa que essa serie seja desencadeada por urn cilculo implicito, por uma rela,ao de violencia, por urn fato natural; pouco importa que seja 0 medo que engendre uma diplomacia infinita, que seja 0 medo de urna faca na garganta ou 0 choro de uma crian,a. De qualquer forma, a soberania esti fundada. No fundo, tudo se passa como se Hobbes, longe de ser 0 teorico das rela,oes entre a guerra e 0 poder politico, tivesse desejado eliminar a guerra como realidade historica, como se ele tivesse desejado eliminar a genese da soberania. Hi no Leviatii todo urn inicio do discurso que consiste em dizer: pouco importa que nos tenbamos combatido ou nao, pouco importa que voces tenham
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sido vencidos au oao; de qualquer forma, e 0 meSilla mecanismo que intervem para voces, os vencidos, 0 meSilla que encontramos no estado natural, na constitui,ao do Estado, ou que encontramos ainda, com toda a naturalidade, na rela,ao mais terna e mais natural que ha, ou seja, aquela entre os pais e os filhos. Hobbes torna a guerra, 0 fato da guerra, a rela,ao de for,a efetivamente manifestada na batalha, indiferentes a constitui,ao da soberania. A constitui,ao da soberania ignora a guerra. E haja ou nao guerra, essa constitui,ao se faz da mesma forroa. No fundo, 0 discurso de Hobbes .0 urn certo "nao" a guerra: nao .0 ela realmente que engendra os Estados, nao .0 ela que se ve transcrita nas rela,5es de soberania ou que reconduz ao poder civil - e as suas desigualdades dissimetrias anteriores de uma rela,ao de for,a que teriam side manifestadas no proprio fato da batalha. Dai 0 problema: a quem, ao que se dirige essa elimina,ao da guerra, ficando entendido que nunca, nas teorias juridicas do poder anteriormente formuladas, nunca a guerra havia desempenhado esse papel que Hobbes Ihe recusa com teimosia? A que adversano, no fundo, Hobbes se dirige quando, em todo urn estrato, em toda uma linha, em toda urna frente de seu discurso, ele repete obstinadamente: mas, de qualquer forma, nao tern importiincia que haja ou nao uma guerra; nao .0 de guerra que se trata na constitui,ao das soberanias. Eu acho que aquilo a que se dirige 0 discurso de Hobbes nao .0, se voces quiserem, urna teoria precisa e determinada, algo que seria como que seu adversario, seu parceiro polemico; nao .0, tampouco, algo que seria como que 0 nao-dito, 0 incontornavel do discurso de Hobbes e que Hobbes tentaria, apesar de tudo, contornar. De fato, na epoca em que Hobbes escrevia, havia algo que se poderia chamar nao de seu adversario polemica, mas de seu vis-a-vis estrategico. Ou seja, menos certo contelido do discurso que se deveria refutar, do que certo jogo discursivo, certa estra-
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tegia teorica e politica que Hobbes queria, precisamente, eliminar e tornar impossive!. 0 que Hobbes queria, pois, nao refutar mas tamar impossivel, esse vis-a-vis estrategico, era uma certa maneira de fazer 0 saber historico funcionar na luta politica. Mais precisamente, 0 vis-a-vis estrategico do Leviata .0, acho eu, a utiliza,ao politica, nas lutas contemporiioeas, de certo saber historico referente as guerras, as in-
vas5es, as pilhagens, as espoliac;oes, aos confiscos, as rapinas, as extors5es, e os efeitos de tudo isso, os efeitos de todos esses comportamentos de guerra, de todos os feitos de batalhas e das lutas reais nas leis e nas institui,5es que aparentemente regulamentam 0 poder. Nurna palavra, 0 que Hobbes quer eliminar .0 a conquista, ou ainda a utiliza,ao, no discurso historico e na pritica politica, desse problema que .0 0 da conquista. 0 adversano invisivel do Leviata .0 a conquista. Esse enorroe homem artificial que tanto fez estremecer todos os partidarios da ordem estabelecida do direito e da filosofia, 0 ogro estatal, a enorroe silhueta que se destaca na vinheta que abre 0 Leviatii e que representa 0 rei com a espada erguida e 0 baculo na mao, no fundo ele pensava bern. E .0 por isso que, finalmente, mesmo os filosofos que tanto 0 censuraram, no fundo, o amaro, e por isso que seu cinismo encantou meSilla os mais timoratos. Parecendo proclamar a guerra em toda parte, do inicio ate 0 fim, 0 discurso de Hobbes dizia, na realidade, justo 0 contrario. Dizia que, guerra ou nao guerra, derrota ou nao, conquista ou acordo, .0 tudo a mesma coisa: "V6s a quisestes, sois vos, os suditos, que constituistes a 80berania que vos representa. Nao nos aborreceis mais, portanto, com vossos repisamentos historicos: ao cabo da conquista (se quiserdes realmente que tenha havido urna conquistal, encontrareis ainda 0 contrato, a vontade amedrontada dos sliditos." 0 problema da conquista esta, portanto, assim resolvido, no inicio por essa no,ao de guerra de todos con-
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tra todos e no final pela vontade, juridicamente ate valida, desses vencidos amedrontados, no crepusculo da batalha. Logo, creio que Hobbes pode mesmo parecer escandalizar. Na verdade, ele tranqiiiliza: enuncia sempre 0 discurso do contrato e da soberania, ou seja, 0 discurso do Estado. Eo claro, censuraram-Ihe, e VaG censurar-lhe ruidosamente, dar demais a esse Estado. Mas, afinal de conlas, e preferivel, para a filosofia e para 0 direito, para 0 discurso filosoficojuridico, dar demais ao Estado a nao the dar 0 suficiente. E, mesmo criticando-o por ter dado demais ao Estado, em surdina sao-lhe reconhecidos por ter conjurado certo inimigo insidioso e barbaro. o inimigo - ou melhor, 0 discurso inimigo ao qual se dirige Hobbes - e aquele que se ouvia nas lutas civis que fissuravam 0 Estado, naquele momento, na Inglaterra. Eo urn discurso com duas vozes. Vma dizia: "Somos os conquistadores e sois os vencidos. Talvez sejamos estrangeiros, mas vos sois domesticos." Ao que a outra voz respondia: "Talvez tenhamos sido conquistados, mas nao 0 permaneceremos. Estamos em nosso pais e vos saireis dele." Foi esse discurso da luta e da guerra civil permanente que Hobbes conjurou ao repor 0 contrato atras de toda guerra e de toda conquista e salvando assim a teoria do Estado. Oai 0 fato, e claro, de a filosofia do direito ter dado depois, como recompensa, a Hobbes 0 titulo senatorial de pai da filosofia politica. Quando 0 capitolio do ESlado foi amea,ado, urn ganso despertou os filosofos que dormiam. Foi Hobbes. Esse discurso (ou melhor, eSsa prlitica) contra 0 qual Hobbes erguia todo urn muro do Leviatii, parece-me que surgiu - se nao pela primeira vez, pelo menos com suas dimensoes essenciais e sua virulencia politica - na Inglaterra, e sem duvida pelo efeito da conjun,ao de dois fenomenos: primeiro, claro, a precocidade da luta politica da burguesia contra a monarquia absoluta, de urn lado, e a aristocracia,
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do outro; e depois, 0 outro fenomeno que veio juntar-se a este, a consciencia, que era muito viva fazia seculos e ate nas camadas populares mais amplas, do fato historico da velha clivagem da conquista. Essa presen,a da conquista normanda de Guilherme, a de 1066, em Hastings, manifestara-se, manifeslava-se de muitas formas ao mesmo tempo, nas institui,oes e na experiencia historica dos suditos politicos na Inglaterra. Ela se manifestava sobretudo, muito explicitamente, nos rituais de poder, urna vez que ate Henrique VII, ou seja, no inicio do seculo XVI, os atos reais precisavam bern que 0 rei da Inglaterra exercia sua soberania em virtude do direito de conquista. Ele se apresentava como sucessor do direito de conquiSla dos normandos. Portanto, a formula desapareceu com Henrique VII. Essa presen,a da conquista tambem se manifestava na pratica do direito, cujos atos e processos se faziam em lingua francesa, e na qual tambem os conflitos entre jurisdi,oes inferiores e tribunais regios eram absolutamente conslantes. Formulado de cima e em idioma estrangeiro, 0 direito era na Inglaterra urn estigma da presen,a estrangeira, era a marca de outra na,ao. Nessa prlitica do direito, nesse direito formulado noutra lingua, vinham juntar-se, de urna parte, aquilo a que eu chamaria 0 "sofrimento lingiiistico" daqueles que nao podem se defender juridicamente em seu proprio idioma, e, da outra, uma certa figura estrangeira da lei. Nessa dupla medida, a pratica do direito era inacessivel. Oai a reivindica,ao que se encontra muito cedo na Idade Media inglesa: "Queremos urn direito que seja nosso, urn direito que se formule em nossa lingua, que seja unificado por baixo, a partir da lei comum que se opoe aos estatutos regios." A
conquista - eu tome as coisas urn pOlleD ao acaso - manifestava-se tambem na presen,a, na sobreposi,ao e no enfrentamento de dois conjuntos legendarios heterogeneos: de urn lado, 0 conjunto das narrativas saxas, que no fundo
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eram narrativas populares, cren9as miticas (a ~olta dOdrei Haroldo) cultos dos reis santos (como 0 do r~l Eduar 0), narrativa~ populares do tipo Robin Hood (e sera dedssa mlto- sab em, que Walter Scott -" urn os granlogia como voces .' . d esdeMarxll-extrainilvanhoeecertonurnedes msplra or 't . aa ro de romances l2 que foram historicamente capl als par _ consciencia hist6rica do seculo XIX). Olante desse conJun os ao contrano to mitol6gico e popuIar encont ram, " ' urn canjunto de lendas aristocniticas e quase monarq~lcas que~e desenvolvem na corte dos reis normandos e que sao reatlVa s , I XVI no momenta do desenvolvlmento do absono secu 0 , . Imente da . 'ico dos Tudor" Trata-se essenClat lutlsmo monarqu a len lenda do ciclo arturiano l3 . Claro, nao e exa:amen e. um_ da normanda mas uma lenda nao-saxa. E a reatlva9ao de Ih lenda; celticas que foram redescobertas pelos n~r vean~~s sob a camada saxa das popula90es.. Essas lendas celm tlcas ~loram com toda a naturalidade reatlvadas pelos nor, S f ' E Marx-Aveling, "Karl Marx 11. Sabre K. Marx lettor de W. co~, c... ur das Jakr 1895, pp. - Lose Blatter", in Osterreichischer Arbelter-~alender fi L' . Leipziger Karl Marx; Geschichte semes Lebens, etpzlg, . . 4· F M hri 51-, . eng,. XV I (trad. fr.: Karl Marx, HLStOlre Buchdruckerei Actlengesellschaft, 1918, '. M. L dres T. . Pan's , Editions Sociales, 1983); I. Berhn, Karl arx, on , de sa VIe, Butterworth, 1939, cap. XI... In 1 t rra de Ricardo Corayao de Leaa; 12 A ayao de Ivanhoe se situa na g a e d L . XI Co. do plano a Franl;a e UlS . Quentin Durward (~823) temhco~o ~e~ Thierry e sabre a teoria dos connhece~se a influencla de Ivan oe so re . quistadores e dos eonquista~~s. 1 dan e das narrativas centradas em tomo n 13. E 0 eiclo das tradu;oes t: ~ chefe cia resistencia a invasao dos da figura mitiea do so~er~o ~~taa:~ do se~ulo V. Essas trad i90es e essas narsaxoes por volta cia pnmerra . . ' I XII por Geoffrey of .das la pnmerra vez no seeu 0 rativas serao reum . ~e [' gum Britanniae libri XII (Heidelberg, Monmouth em De orzgme et ges IS re d B t (1155) e Roman de Rou 1687), e depois por Robert Wa~e e~,R0m.a~ ~etii~ remanejacia por Chretien d . ul XII ( 1160-1174)·eoquesedenommaa matenab, de Troyes em' Lancelot e em PercevaI , no curso cia segunda metade 0 sec 0 .
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mandos, em proveito da aristocracia e da monarquia normandas, por causa das multiplas rela90es que havia entre os normandos, em seu pais de origem, e a Bretanha e os bretoes: logo, dois conjuntos mitol6gicos fortes, em tomo dos quais a Inglaterra sonhava, em modos absolutamente diferentes, seu passado e sua hist6ria. Bem mais importante do que tudo isso, 0 que marcava a presen9a e os efeitos da conquista na Inglaterra, era toda urna mem6ria hist6rica das revo!tas, que tinham, cada urna delas, efeitos politicos bem precisos. Algumas dessas revoltas tinham, alias, um carater racial sem duvida muito acentuado, como a primeira delas, as de Monmouth, por exemplol4 Outras (como aquela ao fim da qual fora concedida a Magna Carta) haviam ocasionado a limita9ao do poder regio e medidas precisas de expulsao dos estrangeiros (no caso, menos normandos do que poitevinos, angevinos, etc.). Mas tratava-se de urn direito do povo ingles que estava vinculado a necessidade de expulsar estrangeiros. Havia, portanto, toda uma serie de elementos que permitiam codificar as grandes oposi90es sociais nas formas hist6ricas da conquista e da domina9ao de wna ra,a sobre a outra. Tal codifica9ao, ou, em todo caso, os elementos que permitiam tal codifica9ao eram antigos. Encontramos, ja na Idade Media, nas cronicas, frases como estas: "Dos normandos descendem as a!tas personalidades deste pais; os homens de baixa condi,ao sao filhos dos saxoes."15 Isto quer dizer que os confIitos - politicos, economicos, juridicos - eram, por causa destes
14. Geoffrey of Monmouth conta a historia da na9ao breta a partir do primeiro conquistador, 0 troiano Bruto; historia que, depois das conquistas romanas, redundou na resistencia dos bretoes contra os invasores saxiSes e na decadencia do reino bretao. Trata-se de uma das obras mais populares da Idade Media, que introduziu a lenda arturiana nas literaturas europeias. 15. M. Foucault, no manuscrito, menciona a "Cronica de Gloucester".
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elementos que acabo de enumerar, com muita facilidade articulados, codificados e transformados nurn discurso, em discursos que eram os da oposi,ao das ra,as. E, de urna maneira bern logica, no final do seculo XVI e no inicio do seculo XVII, quando apareceram novas formas politicas de luta, entre a burguesia, de urn lado, e a aristocracia e a monarquia, do outro, foi ainda nesse vocabulario da luta racial [que esses conflitos] se expressaram. Essa especie de codifica,ao ou, pelo menos, os elementos que estavam prontos para a codifica,ao intervieram muito naturalmente. E, se eu digo codifica,ao, e porque a teoria das ra,as nao funcionou como urna tese particular de urn gropo contra 0 outro. De fato, nessa clivagem das ra,as e em seus sistemas de oposi,ao, tratou-se de urna especie de instrumento, a urn so tempo discursivo e politico, que permitia a ambos os lados formularem suas proprias teses. A discussao juridico-politica dos direitos do soberano e dos direitos do povo deu-se na Inglaterra, no seculo XVII, a partir dessa especie de vocabulario [engendrado pelo] fato da conquista, pela rela,ao de domina,ao de uma ra,a sobre a outra e pela revolta - ou pela amea,a permanente da revolta - dos vencidos contra os vencedores. E, entao, voces vao encontrar a teoria das ra,as, ou 0 tema das ra,as, tanto nas posi,oes do absolutismo monirrquico quanto nas dos parlamentares ou parlamentaristas, quanto nas posi,oes mais extremas dos Levellers ou dos Diggers. A primazia da conquista e da domina,ao, voces a encontram efetivamente formulada naquilo a que chamarei, com uma palavra, "0 discurso do rei". Quando Jaime I declarava a Camara Estrelada que os reis sentam-se no trono de Deus 16 , ele se referia, claro, a teoria teologico-politica do direito divino. Mas, para ele, essa elei,ao divina - que fazia
16. "Monarchae proprie sunt judices, quibus juris dicendi potestatem proprie commisit Deus. Nam in throno Dei sedent, unde omnis ea facultas
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que ele fosse efetivamente 0 proprietario da Inglaterra - tinha urn sinal e urna cau,ao historicos na vitoria normanda. E, quando ainda era apenas rei da Escocia, Jaime I dizia que, como os normandos tomaram posse da Inglaterra, as leis do reino sao estabelecidas por eles 17 - 0 que tinba duas conseqiiencias. Primeiro, que a Inglaterra fora tomada e, portanto, que todas as terras inglesas pertenciam aos normandos e ao chefe dos normandos, ou seja, ao rei. E enquanto chefe dos normandos que 0 rei tern efetivamente a posse da terra inglesa, e seu proprietario. Segundo, 0 direito nao tern de ser 0 direito comurn as diferentes popula,oes sobre as quais se exerce a soberania; 0 direito e a propria marca da soberania normanda, foi estabelecido pelos normandos e, e evidente, para eles. E, com uma habilidade que devia inco-
derivata est" (Jaime I, Oratio habita in camera stellata [1616J, in Opera edita a Jacobo Montacuto ... , Francofurti ad Moenum et Lipsiae, 1689, p. 253). "Nihil est in terris quod non sit infra Monarchiae fastigium. Nee eoim solum Dei Vicarii sunt Reges, deique throno insident: sed ab ipso Dea Deorum nomine honorantur" (Oratio habita in comitis regni ad omnes ordines in pa/atio albaulae [1609], in Opera edita..., p. 245; sabre 0 "Divine Right of Kings" ver tambem 0 Basilikon doron, sive De Institutione principis. in Opera edita... , pp. 63·85). 17. "Et quamquam in aliis regionibus ingentes regii sanguinis factae sint mutationes, sceptri jure ad novos Dominos jure belli translato; eadem tamen illic cernitur in terram et subditos potestatis regiae vis, quae apud nos, qui Dominos numquam mutavimus. Quum spurius iIle Nonnandicus validissimo cum exercitu in Angliam transiisset, quo, obsecro nisi annorum et belli jure Rex factus est? At ille leges dedit, non accepit, et vetus jus, et consuetudinem regni antiquavit, et avitis possessionibus eversis homines novas et peregrinos imposuit, suae militiae comites; quemad.modum hodie pleraque Angliae nobilitas Nonnannicam prae se fert originem; et leges Nonnannico scriptae idiomatem facilem testantur auctorem. Nihilominus posteri ejus sceptrum illud hactenus faciliter tenuerunt. Nee hoc soli Nonnanno licuit: idem jus omnibus fuit, qui ante illum vietae Angliae leges dederunt" (Jaime I, Jus liberae Monarchiae, sive De mutuis Regis liberi et populi nascendi conditione illi subditi officiis [1598], in Opera edita... , op. cit., p. 91).
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madar razoavelmente os adversfui.os, 0 rei, au pelo menos os partidarios do discurso do rei, faziam valer uma estranhissima, mas importantissima, analogia. Eu creio que foi Blackwood que a formulou pela primeira vez em 1581, num texto que se chama Apologia pro regibus, onde se diz isto que e muito curioso. Ele diz: "De fato, deve-se compreender a situa9aO da Inglaterra na epoca da invasao normanda como se compreende agora a situa9ao da America perante as potencias que ainda nao se denominavam coloniais. Os normandos foram na lnglaterra 0 que a gente da Europa e atualmente na America." Blackwood fazia urn paralelo entre Guilherme, 0 Conquistador, e Carlos V. Dizia, a proposito de Carlos V: "Ele submeteu pela for9a uma parte das jndias Oddentais, deixou aos vencidos seus bens, nao em propriedade nua, mas simplesmente em usufruto, e mediante uma presta9aO. Pois bern, 0 que Carlos V fez na America, e que achamos perfeitamente legitimo, ja que fazemos a mesma coisa, nao nos enganemos, os normandos fizeram na 10glaterra. Os normandos estao na lnglaterra com 0 mesmo direito que nos na America, ou seja, com 0 direito que e 0 da coloniza9aO."18 E temos, nesse final no seculo XVI, se nao pela primeira vez, pelo menos uma primeira vez, acho eu, uma especie de repercussao, sobre as estruturas juridico-politicas do Ocidente, da pratica colonial. Nunca se deve esquecer que a coloniza.;:ao, com suas tecnicas e suas armas politicas e juridicas,
18. "Carolus quintus imperator nostra memoria partem quandam occidentalium insularum, veteribus ignotam, nobis Americae, vocabulo non ita
pridem auditam, vi subegit, victis sua reliquit, non mancipio, sed U511, nee eo quidem perpetua, nee gratuito, ac immuni (quod Anglis obtgit Vilielmi Dothi beneficia) sed in vitae tempus annuae prestationi certa lege locationis obligatal' (A. Blackwood, Adversus Georgii Buchanani dialogum, de jure regni apud ScoloS, pro regibus apologia, Pictavis, apud Pagaeum, 1581, p. 69).
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transportou, claro, modelos europeus para outros continentes mas que ela tambem teve numerosas repercussoes sobre o~ mec~sm?s de poder no Ocidente, sobre os aparelhos, institw90es e tecmcas de pader. Houve toda urna serie de modelos colomms que foram trazidos para 0 Ocidente e que fez com que 0 OCldente pudesse praticar tambem em si mesmo a!go como uma coloniza9iio, um colonialismo intemo. Ai esta como 0 tema da oposi9ao das ra9as funcionava no dlscurso d~ rei. Foi esse mesmo tema da conquista normanda que artlculou a propria replica que os parlamentares opunham a esse dlSCurSO do rei. 0 modo como os parlamentares refutavam as pretensoes do absolutismo monarquico se artlculava, tambem ele, com base nesse dualismo das ra9as e no fato da conquista. A analise dos parlamentares e dos parlamentanstas come9ava, de maneira paradoxa! com urn tIpo de nega9ao da conquista, ou melhor, de envolvimento da conqulsta num elogio de Guilherme, 0 Conquistador, e de sua IegltImldade. Ai esta como eles realizavam sua analise. DlZl~: ~inguem deve se enganar a esse respeito _ e, msto, voces veem quanta estamos proximos de Hobbes _ HastIngs, a batalha, a propria guerra, nao e isso 0 importante: No fundo, G~I!herme era mesmo 0 rei legitimo. E era mesmo 0 rei legltIm~, pura e simplesmente porque (e entao se exumava certo numero de fatos historicos, verdadeiros ou falsos) Haroldo - antes mesmo da morte de Eduardo, 0 Confessor, que havla realmente designado Guilherme como seu sucessor - prestara 0 juramento de que nao se tomaria rei da lnglaterra mas cederia 0 trono ou aceitaria que Guilherme sublsseao trono da lnglaterra. De qualquer forma, isso nao o~orrena: tendo Harol?o morrido na batalha de Hastings, ja nao havla sucessor legrtImo - se se admitisse a legitimidade de Haroldo - e, por conseguinte, a coroa devia pura e simpl~smente caber a GUilherme. De sorte que Guilherme nao vew a ser oconquistador da lnglaterra, mas veio a ser herdeiro dos dlreltos, dos direitos nao de uma conquista, mas do
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reino da Inglaterra tal como ele existia. Veio a ser herdeiro de um reino que era vinculado por certo nillnero de leis - e herdeiro de uma soberania que era limitada pelas leis mesmas do regime saxao. Isso faz que 0 que legitima, nessa analise, a monarquia de Guilherme, seja igualmente 0 que lhe limita 0 poder. Alias, acrescentam os parlamentaristas, se se tivesse tratado de uma conquista, se realmente a batalha de Hastings tivesse acarretado uma rela9ao de pura domina9ao dos normandos sobre os saxoes, a conquista nao poderia ter-se mantido. Como voces quereriam - dizem eles - que algumas dezenas de milhares de infelizes normandos, perdidos nas terras da Inglaterra, possam ter-se mantido nelas e assegurado efetivamente um poder permanente? Teriam sido de qualquer forma assassinados em suas camas no crepuscuIo da batalha. Ora, ao menos num primeiro tempo, nao houve grandes revoltas, 0 que prova bem que, no fundo, os vencidos nao se consideravam tanto como vencidos e ocupados por vencedores, mas reconheciam efetivamente nos normandos homens que podiam exercer 0 poder. Assim, com essa aceital;ao, com esse nao-massacre dos normandos e com essa nao-revolta, eles validavam a monarquia de GuiIherme. E Guilherme, alias, prestara juramento, fora coroado pelo arcebispo de York; haviam-Ihe dado a coroa e ele se comprometera, no decorrer dessa cerimonia, a respeitar as leis das quais os cronistas diziam que eram leis boas, antigas, aceitas e aprovadas. Logo, ele estava vinculado ao sistema da monarquia saxa que 0 havia precedido. Num texto que se chama Argumentum Anti-Normannicum 19 e que e representativo dessa tese, ve-se uma especie
19. Argumentum Anti-Normannicum. or an Argument proving, from ancient histories and records, that William, Duke of Normandy, made no absolute conquest of England by the word, in the sense of our modern writers, Londres, 1682. Esta obra foi erroneamente atribuida a E. Coke.
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de vinheta, que se pode por em paralelo com a do Leviatii, disposta assim: numa faiJm, urna bataIha, duas tropas armadas (trata-se evidentemente dos normandos e dos saxoes em Hastings) e, no meio das duas tropas, 0 cadaver do rei Haroldo; logo, a monarquia Iegitima dos saxoes desapareceu efetivamente. Embaixo uma cena, em formato maior, representa Guilherme sendo coroado. Mas esse coroamento e encenado da seguinte maneira: uma estalua chamada Britiinia estende a Guilherme um papel no qual se Ie: "Leis da Inglaterra"20. 0 rei Guilherme recebe sua coroa de um arcebispo de York, enquanto outro eclesiastico estende-Ihe um papel no qual hi: "Juramento do rei"21. De sorte que, com isso, representa-se que Guilherme nao e efetivamente 0 conquistador que pretendia ser, mas e 0 herdeiro legitimo, um herdeiro cuja soberania esta limitada pelas leis da Inglaterra, pelo reconhecimento da Igreja e pelo juramento que ele prestou. Winston Churchill, 0 do seculo XVII, escrevia em 1675: "No fundo, Guilherme nao conquistou a Inglaterra; foram os ingleses que conquistaram Guilherme."22 E foi simplesmente depois dessa transferencia ~ perfeitamente legitima ~ do poder saxao para 0 rei normando, dizem os parlamentaristas, que come90u realmente a conquista, isto e, todo um jogo de espolia90es, de desmandos, de abuso de direito. A conquista foi essa longa deturpa9ao que seguiu a instala9ao dos normandos e que organizou na Inglaterra aquilo que se chama com razao naquele momento 0 "normandismo", au 0 "juga 20. "The excellent and most famous Laws of St. Edward." 21. "Coronation Oath." Para a ilustra9ao dessa vinheta, ver, "An Explanation of the Frontispiece", in Argumentum Anti-Nomannicum... , op. cit., 4 p. s. fo!. 22. W. S. Churchill, Divi Britannici, being a remark upon the lives ofall the Kings of this Isle, from the year of the world 2855 unto the year ofgrace 1660, Londres, 1675, fols. 189-90.
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nonnando"23, isto e, urn regime politico sistematicamente dissimetrico e sistematicamente favoravel it aristocracia e it monarquia normandas. E foi contra esse "nonnandismo" - e nilo contra Guilherme - que ocorreram todas as revoltas da Idade Media; foi contra esses abusos, atrelados it monarquia normanda, que foram impostos os direitos do Parlamento, verdadeiro herdeiro da tradi9ilo saxil; foi contra esse "normandismo", posterior a Hastings e ao advento de Guilherme, que lutaram os tribunais inferiores quando queriam absolutamente impor a "lei comurn"* contra os estatutos regios. Econtra ele tambem que a luta atual, a do seculo XVII, esta desenrolando-se. Ora, 0 que e esse velho direito saxilo que vemos foi aceito, de fato e de direito, por Guilherme, que vemos tambern que os normandos quiseram sufocar ou deturpar nos anos que se seguiram it conquista e que, com a Magna Carta, com a institui9ilO do Parlamento e com a revolu9ilo do seculo XVII, tentou-se restabelecer? Pois bern, trata-se de urna
certa lei saxa. E, nesse ponto, interveio de uma forma importante a influencia de urn jurista que se chamava Coke e que pretendia ter descoberto, que efetivamente havia descoberto, urn manuscrito do seculo XIII que ele pretendia que era a formula9ilo das velhas leis saxils'4, quando, na realida23. A teoria do "Norman yoke" (Oil do "Norman bondage") fora difundicta, ao longo dos seculos XVI e XVII, por escritores politicos (Blackwood, etc.), pelos "Elizabethan Chroniclers" (Holinshed, Speed, Daniel, etc.), pela "Society of Antiquarians" (Detden, Harrison, Nowell), pelos juristas (Coke, etc.), com 0 objetivo de "glorify the pre-Norman past", antes da invasao e da conquista. * Manuscrito: "Common Law". 24. "I have a very auntient and learned treatise of the Lawes of this kingdome whereby this Realme was governed about 1100 years past, of the title and subject of which booke the Author shaltel you himself in these words. Which Summary I have intituled 'The Mirrors oflustice', according to the ver-
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de, sob 0 titulo de Miroirs de justice", se lratava de urna exposi9ao de certo nfunero de pr:iticas de jurisprudencia, de direito privado e publico, da Idade Media. Coke 0 fez funcionar como a exposi9ao do direito saxilo. Representavam esse direito saxilo como a lei original e, ao mesmo tempo, historicamente aut1mtica - dai a importilocia desse manuscrito do povo saxilo, que elegia seus chefes, que tinha seus pr6prios juizes* e s6 reconhecia 0 poder do rei em tempos de guerra, como chefe de guerra e nilo, em absoluto, como exercendo uma soberania absoluta e incontrolada sobre 0 corpo social. Tratava-se, pois, de urna figura hist6rica que tentavam - mediante as pesquisas sobre a antiguidade do direito - fixar sob uma forma historicamente precisa. Mas, ao mesmo tempo, esse direito saxao se mostrava e era caracterizado como a expressilo mesma da razilo humana no estado natural. Juristas tues and substances embellies which I have observed, and which have been used by holy customs since the time of King Arthur and C. [ ... ] In this booke in effect appeareth the whole frame of the auntient common Lawes of this Realme" (E. Coke, La Neufme Part des Reports de S. Edv. Coke, Londres, 1613, Prefacio "Lectori/To the Reader", fols. 1-32 pp. ss. Cf. tambem La Tierce Part des Reports de S. Edv. Coke, Londres, 1602, Prefacio, fols. 9·17; La Huictfeme Part des Reports de S. Edv. Coke, Londres, 1611, Prefacio; La Dix.me Part des Reports de S. Edv. Coke, Londres, 1614, Prefacio, fols. 1-48, quanto aexposi9ao da historia "of the nationall Lawes of their native country". Hi que assinalar que Coke se referira a Mirrors ofiustice igualmente em seus institutes. Ver em especial The Fourth Part of the Institutes of the Laws of England, Londres, 1644, caps. VIII, XI, XIII, XXXV; mas sobretudo The Second Part ofthe institutes ofthe Laws ofEngland, Londres, 1642, pp. 5-78). 25. The Mirror ofJustice e urn texto escrito originariamente em frances no tim do seculo XIV,provavelmente por Andrew Hom. Vma tradu9ao inglesa de 1646 fani desse texto uma das referencias fundamentais para todos os partidirios, tanto parlamentaristas quanto radicais revolucionanos, do "Common
Law". '" Manuscrito, no lugar de "que tinha seus pr6prios juizes": "que eram seus pr6prios juizes".
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como Selden26 , por exemplo, ressaltavam que era um direito maravilhoso e bem proximo da razao hurnana, urna vez que era na ordem civil quase igual ao de Atenas e, na ordem militar, quase igual ao de Esparta. Quanto ao conteudo das leis religiosas e morais, 0 Estado saxao teria sido muito proximo das leis de Moises. Atenas, Esparta, Moises: 0 saxao era, e claro, 0 Estado perfeito. Os "saxoes se tomaram" (e nurn texto de 1647 que se diz isto) "urn pouco como os judeus, distintos de qualquer outro povo: suas leis eram dignas enquanto leis e seu govemo era como 0 reino de Deus, cujo jugo e comodo e cujo fardo e leve"". De sorte que, como voces veem, 0 historicismo que opunbam ao absolutismo dos Stuart tendia para urna utopia fundadora, em que se mesclavam a urn so tempo a teoria dos direitos naturais, um modelo historico valorizado e 0 sonbo de uma especie de reino de Deus. E foi essa utopia do direito saxao, supostamente reconbecido pela monarquia normanda, que deveria tomar-se a base juridica da republica nova que os parlamentares queriam estabelecer. 26. M. Foucault se refere provavelmente a An Historical Discourse of the uniformity of Government of England. The First Part, Londres, 1647, 2
tomas, redigido por Nathaniel Bacon com base nos manuscritos de John Selden (ver An Historical and Political Discourse of the Laws and Government of England... collectedfrom some manuscript notes ofJohn Selden... by Nathaniel Bacon, Landres, 1689). A prop6sito dos saxoes, Selden diz que "their judicial were very suitable to the Athenian, but their military more like the Lacedemonian" (p. 15; ver caps. IV-XLIII). De J. Selden cf. tambem Analecton Anglobritannicon libri duo, Francofurti, 1615; Jani Anglornm, in Opera omnia latina et anglica, Landini, 1726, vol. II. 27. "Thus the Saxons become somewhat like the Jewes, divers from all other people; their lawes honourable for the King, easie for the subject; and their government above all other likest unto that of Christs Kingdome, whose yoke is easie, and burthen light: but their motion proved so irregular as God was pleased to reduce them by another way" (An Historical Discourse..., op. cit.. pp. 112-3).
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Esse mesmo fato da conquista, voces vaG encontra-lo uma terceira vez, mas desta vez na posi9ao radical daqueles que foram os mais contranos nao somente amonarquia, mas ate aos parlamentaristas, ou seja, nos discursos mais pequeno-burgueses ou, se voces preferirem, mais populares, dos Levellers, dos Diggers, etc. Mas dessa vez 0 historicismo so no limite extremo vai cair nessa especie de utopia dos direitos naturais de que eu falava M pouco. No fundo, entre os Levellers vamos encontrar, de certo modo ao pe da letra, a propria tese do absolutismo monarquico. Os Levellers vaG dizer isto: "Efetivamente, a monarquia tem razao quando diz que houve invasao, derrota e conquista. E verdade, houve urna conquista, e e disso que se deve partir. Mas a monarquia absoluta se serve do fato da conquista para nele ver 0 fundamento legitimo de seus direitos. Para nos, ao contnirio, ja que vemos [que M] conquista, ja que houve efetivamente derrota dos sax5es perante os normandos, cumpre considerar que essa derrota e essa conquista nao sao de modo algum 0 ponto inicial do direito ~ do direito absoluto ~ mas sim de um estado de nao-direito que invalida todas as leis e todas as diferen9as sociais que marcam a aristocracia, 0 regime da propriedade, etc." Todas as leis, tais como funcionam na Inglaterra - e um texto de John Warr, A corrup<;iio e a deficiencia das leis inglesas, que diz isto -, devem ser consideradas "como tricks, armadilhas, maldades"28. As leis 28. "The laws of England are full of tricks, doubts and contrary to themselves; for they were invented and established by the Nonnans, which were of all nations the most quarrelsome and most fallacious in contriving of controversies and suits" (J. WaIT, The Corrnption and Deficiency of the Laws of England, Londres, 1649, p. 1; cf. em especial caps. II e III. Ver tambem Administration Civil and Spiritual in Two Treatises, Londres, 1648, I, § XXXVII). Assina1arnos que a frase de Warr e citada em parte par Ch. Hill, in Puritanism and Revolution, Londres, Seeker and Warburg, 1958, p. 78.
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sao armadilhas: nao sao de modo algum limites de poder, mas instrumentos de poder; nao sao meios de fazer reinar a justi9a, mas meios de fazer servir aos interesses. Em conseqiiencia, 0 objeto principal da revolu9ao deve ser a supressao de todas as leis p6s-normandas, na medida em que, de maneira direta ou indireta, elas asseguram 0 Norman yoke, o jugo normando. As leis, dizia Lilburne, sao feitas pelos conquistadores29 . Supressao, por conseguinte, do aparelho legal
inteiro. Em segundo lugar, supressao tamhem de todas as diferen9as que opoem a aristocracia - e nao s6 a aristocracia, mas a aristocracia e 0 rei, 0 rei como senda urn dos aristocratas - ao resto do povo, pois os nobres e 0 rei nao tern com 0 povo uma rela9ao de prote9ao, mas uma simples e constante rela9ao de rapina e de roubo. Nao e a prote9ao regia que se estende sobre 0 povo; e a extorsao nobiliaria, de que 0 rei se beneficia e que 0 rei garante. Guilherme e seus sucessores, dizia Lilburne, fizeram de seus companheiros de banditismo, de pilhagem e de roubo, duques, baroes e 10rdes JO . Em conseqiiencia, 0 regime da propriedade ainda e atualmente 0 regime guerreiro da ocupa9ao, do confisco e da pilhagem. Todas as rela90es de propriedade - bern como todo 29. Ver em especial J. Lilbume, The Just Mans Justification, Londres, 11~3; ver tambem A Discourse betwixt John Li/burne, close prisoner in the Tower of London, and Mr. Hugh Peters, Landres, 1649; Englands Birth-right Justified against all arbitrary usurpation, Landres, 1645; Regal! Tyrannie Discovered, Londres, 1647; Englands New Chains Discovered, Londres, 1648. A maioria dos panfletos dos Levellers foram reunidos in W. Haller & G. Davies, eds., The Levellers Tracts 1647-1653, Nova York, Columbia University Press, 1944. 30. Guilhenne, 0 Conquistador, e seus sucessores "made Dukes, Earles, Barrons and Lords of their fellow Robbers, Rogues and Thieves" (Regall Tyrannie... , op. cit., p. 86). A atribuiyao desse panfleto a 1. Lilbume nao e segura; R. Overton provavelmente colaborou em sua redayao. 1646, pp.
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o conjunto do sistema legal - devem ser reconsideradas, retomadas na base. As rela90es de propriedade sao inteiramente invalidadas pelo fato da conquista. Em terceiro lugar, tem-se - dizem os Diggers - a prova de que 0 governo, as leis, 0 estatuto da propriedade sao, no fundo, apenas a continua9ao da guerra, da invasao e da derrota, no fato de que 0 povo sempre compreendeu como efeitos da conquista seus govemos, suas leis e suas rela90es de propriedade. 0 povo, de certo modo, denunciou sem cessar o caritter de pilhagem da propriedade, de extorsao das leis e de domina9ao do governo. E ele 0 mostrou pura e simplesmente porque nao parou de se revoltar - e a revolta nada mais e, para os Diggers, que essa outra face da guerra, cuja face permanente e a lei, 0 poder e 0 governo. Lei, poder e governo significam a guerra, a guerra de uns contra os outros. Portanto a revolta nao vai ser a ruptura de urn sistema pacifico de leis por urna causa qualquer. A revolta vai ser 0 reverso de urna guerra que 0 govemo nao para de travar. 0 governo e a guerra de uns contra os outros; a revolta vai significar a guerra dos outros contra uns. E claro, as revoltas ate agora nao obtiveram resultado - nao s6 porque os normandos ganharam, mas tamhem porque as pessoas ricas se beneficiaram, por conseguinte, do sistema normando, e deram, por trai9ao, sua ajuda ao "normandismo". Houve trai9aO dos ricos, houve trai9ao da Igreja. E mesmo aqueles elementos que os parlamentares valorizavam como sendo uma limita9ao ao direito romano - mesmo a Magna Carta, 0 Parlamento, a pnitica dos tribunais -, tudo isso, no fundo, e ainda e sempre o sistema normando e suas extorsoes que intervem; simplesmente com a ajuda de uma parte da popula9ao, a mais favorecida e a mais rica, que traiu a causa saxa e passou para 0 lado normando. De fato, tudo que e aparente concessao nao passa de trai9ao e astucia de guerra. Por conseguinte, longe de dizer com os parlamentares que e preciso con-
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tinuar as leis e impedir que 0 absolutismo monirrquico prevale9a contra elas, os Levellers e os Diggers vao dizer que e preciso se livrar das leis atraves de uma guerra que responded a guerra. Curnpre travar a guerra civil ate 0 fim contra 0 poder normando. E a partir dai que 0 discurso dos Levellers vai desagregar-se em virrias dire90es que flcaram, em sua maioria, pouco elaboradas. Uma foi urna dire9ao propriarnente teo16gico-racial, isto e, urn pouco a maneira dos parlarnentaristas: "Volta leis saxas, que sao as nossas e sao justas porque sao tambem leis naturais." E depois, ve-se aparecer uma outra forma de discurso, que fica urn pouquinbo em suspenso e que diz isto: 0 regime normando e urn regime de pilbagem e de extorsao, e a san9ao de uma guerra; e, sob esse regime,
as
que encontramos? Encontramos, historicamente, as leis saxas. Entao, nao se poderia fazer a mesma analise a respeito das leis saxas? As leis saxas nao erarn, tambem elas, a san9ao de urna guerra, urna forma de pilhagem e de extorsao? 0 regime saxao nao era, em ultima analise, urn regime de domina9iio, da mesma forma que 0 normando? Nao se deve, por conseguinte, remontar a mais longe ainda e dizer - e isso que encontramos em certos textos dos Diggers3l - que no fundo a domina9ao come9a com toda forma de poder, isto e, que nao hil formas hist6ricas de poder, sejam elas quais 31. Os textos mais conhecidos dos Diggers aos quais M. Foucault po~ dena estar se referindo aqui sao aS dais manifestos anonimos: Light Shining in Buckinghamshire, s.l, 1648; More Light Shining in Buckinghamshire, s.l, 1649. cr. tambem G. Winstanley et aZ., To his Excellency the Lord Fairfax and the Counsell of Warre the brotherly request of those that are called Diggers sheweth, Londres, 1650; G. Winstanley, Fire in the Bush, Landres, 1650; The Law ofFreedom in a Platform, or True Magistracy Restored, Landres, 1652 (cf. G.H. Sabine, ed., The Works of Gerrard Winstanley, with an appendix ofdocuments relating to the Digger Movement, Ithaca, N. Y. Cornell University Press, 1941).
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forem, que nao se possarn .analisar em termos de domina9ao de uns sobre os outros? E claro, essa formula9ao fica em suspenso. Encontrarno-la a titulo de frases conc1usivas; elas nunca ocasionararn efetivamente urna analise historica nem uma priltica politica coerente. Ainda assim voces veem formular-se ai, pela primeira vez, a ideia de que toda lei, seja ela qual for, toda forma de soberania, seja ela qual for, todo tipo de poder, seja ele qual for, devem ser analisados nao nos termos do direito natural e da constitui9ao da soberania, mas como 0 movimento indefinido - e indefinidamente historico - das rela90es de domina9ao de uns sobre os outros. Se eu insisti muito sobre esse discurso Ingles em torno da guerra das ra9as foi porque creio que nele se ve funcionar, pela primeira vez no modo politico e no modo hist6rico, ao mesmo tempo como prograrna de a9ao politica e como busca de saber historico, 0 esquema bim\rio, urn certo esquema binirrio. Esse esquema da oposi9ao entre os ricos e os pobres decerto ja existia e havia pontuado a percep9ao da sociedade tanto na Idade Media como nas cidades gregas. Mas era a primeira vez que urn esquema binario nao era simplesmente uma maneira de articular urna queixa, urna reivindica9ao, de constatar urn perigo. Era a primeira vez que esse esquema binilrio que pontuava a sociedade podia articular-se sobretudo a partir dos fatos de nacionalidade: lingua, pais de origem, hibitos ancestrais, espessura de urn passado comum, existencia de urn direito arcaico, redescoberta das velhas leis. Urn esquema binilrio que permitia, de outra parte, decifrar, em toda a sua extensao hist6rica, todo urn conjunto de institui90es com a sua evolu9ao. Permitia tarnbem analisar as institui90es atuais em termos de enfrentamento e de guerra, a urn so tempo cientificarnente, hipocritamente, mas violentamente travada entre as ra9as. Enfim, urn esquema binario que fundamentava a revolta nao apenas no fato de que a situa9ao dos mais infelizes se havia tornado intole-
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ravel e que curnpria mesmo que eles se revoltassem, ja que niio podiam fazer-se ouvir (era, se voces quiserem, 0 discurso das revoltas da Idade Media). Ai, agora, temos urna revolta que vai se formular como urn tipo de direito absoluto: temse 0 direito Ii revolta niio porque niio foi possivel fazer-se ouvir e porque e necessario romper a ordem se se quiser restabelecer urna justi9a mais justa. A revolta, agora, se justifica como urna especie de necessidade da hist6ria: corresponde a certa ordem social que e a da guerra, Ii qual ela dara fim como uma derradeira peripecia. Em conseqiiencia, a necessidade 16gica e hist6rica da revolta vern inserir-se no interior de toda urna analise hist6rica que poe a nu a guerra como tra90 permanente das rela90es sociais, como trama e segredo das institui90es e dos sistemas de poder. E eu creio que esse era 0 grande adversario de Hobbes. Foi contra isso que e 0 adversario de todo discurso filos6fico-juridico que fundamenta a soberania do Estado, que ele disp6s toda urna frente de batalha do Leviatii. Era contra isso que Hobbes dirigia, portanto, sua analise do nascimento da soberania. E, se ele quis tanto eliminar a guerra, era porque queria, de urna forma precisa e pontual, eliminar esse temvel problema da conquista inglesa, categoria hist6rica dolorosa, categoria juridica dificil. Era preciso evitar esse problema da conquista em tomo do qual, em ultima analise, se haviam dispersado todos os discursos e todos os programas politicos da primeira metade do seculo XVII. Era isso que se devia eliminar; e, de urn modo mais geral, e a mais longo prazo, 0 que se devia eliminar era 0 que eu
denominaria 0 "historicismo politico", au seja, essa especie de discurso que se ve delinear-se atraves das discussoes de que eu Ihes faiei, que se formula em algumas das fases mais radicais e que consiste em dizer: assim que se lida com rela90es de poder, niio se esta no direito e niio se eslit na sobe-
rania; esta-se na dominay8.o, esta-se nessa re1ayao historica-
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mente indefinida, indefinidamente espessa e multipla de domina9iio. Niio se sai da domina9iio, portanto niio se sai da hist6ria. 0 discurso filos6fico-juridico de Hobbes foi urna maneira de brecar esse historicismo politico que era, pois, 0 d~scurso e 0 saber efetivamente ativos nas lutas politicas do seculo XVII. Tratava-se de breca-Io, exatamente como no seculo XIX 0 materialismo dialetico brecara tambem ele 0 discurso do historicismo politico. 0 historicismo politico encontrou dois obstaculos: no seculo XVII, 0 obstaculo do d~scurso filos6fico-juridico que tentou desqualificit-Io; no seculo XIX, sera 0 materialismo dialetico. A opera9iio de Hobbes consistiu em explorar todas as possibilidades mesmo as mais extremas, do discurso filos6fico-juridic;, para fazer calar 0 dlSCurSO do historicismo politico. Pois bern, e desse discurso do historicismo politico que eu gostaria de fazer tanto a hist6ria quanta 0 elogio.
AULA DE 11 DE FEVEREIRO DE 1976 A narrativa das origem. - 0 milo troiano. - A heredita-
riedade da Franra. - "Franco-Gal/ta. "- A invasiio, a historia e 0 direito publico. - 0 dualismo nacional. - 0 saber do principe. - "Estado da Franra" de Boulainvi/liers. - 0 cartorio, a repartiriio publica e 0 saber da nobreza. - Urn novo sujeito da historia. - His/aria e constituiriio.
Eu you come9ar com uma narrativa que circulou na Fran9a desde 0 inicio da Idade Media, ou quase, ate 0 Renascimento ainda, ou seja, a historia dos franceses que descendiam dos francos, e dos francos que eram, por sua vez, troianos que, conduzidos pelo rei Franco, filho de Priamo, haviam deixado Troia no momenta do incendio da cidade, se refugiado inicialmente nas margens do Danubio, depois na Germ:inia nas margens do Reno, e finalmente encontrado, ou melhor, fundado na Fran9a a sua pitria. Essa narrativa, niio quero tentar saber 0 que ela podia significar na Idade Media, ou 0 papel que podia ter essa lenda, tanto do periplo quanta da funda9iiO da pitria. Quero simplesmente interrogar-me sobre este ponto: e surpreendente, afinal, que essa narrativa possa ter sido retomada, possa ter continuado a circular numa epoca como 0 Renascimento 1. Niio, em absolu-
1. Conhecem-se, desde a His/aria Francorum do pseudo Fredegario (727) ate a Franciade de Ronsard (1572), pelo menos uns cinqiienta testemunhas sabre a lenda da origem troiana dos francos. Ou M. Foucault se refere a essa tradil;ao, ou se apoia num texto precise que poderia ser aquele de que A.
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to, por causa do carater fantastico das dinastias ou dos fatos hist6ricos aos quais ela se refena, mas, antes, porque n~s.sa lenda no fundo, ha urna elisao completa de Roma e da Gaha, da G,\lia a principio inimiga de Roma, da Galia invasora da Iralia e sitiadora de Roma; elisao tambem da Galia enquanto colonia romana, elisao de Cesar e da Roma imperial. E elisao, por conseguinte, de toda urna lite;atura romana que era, porem, perfeitamente conheclda na epoca. _ Eu creio que se pode compreender a ehsao de Roma dessa narrativa troiana somente se se renuncla a conslderar essa narrativa das origens como urna especie de tentativa de historia que ainda estatia envolvida com velhas cren~as. Parece-me, ao contrario, que e urn discurso que tem urna fun~ao precisa, que nao e tanto de narrar 0 passado ou contar as origens quanto de dizer 0 direito, dizer 0 d,re,to do poder; e no fundo urna li~ao de direito publico. Foi enquanto h~~o de direito publico, creio eu, que essa narr~tiva circulou. E e porque se trata de urna li~ao de d,re,to pubhco que no fundo Roma esra ausente dela. Mas esra igualmente presente sob urna forma de certo modo desdobrada, deslocada, gemea: Roma esta la, mas em espelho e em imagem. Dizer, com efeito, que os francos tambem sao, como os romanos, fugltivos de Troia, dizer que a Fran~a e, de certo modo, em rela9[0 ao troneD troiano, 0 Dutro ramo, em face de ~m r~o que seria 0 ramo romano, significa dizer duas ou tres COlsas que sao politica e juridicamente, acho eu, unportantes. Dizer que os francos tambem sao, como as ro~anos, fugitivos de Troia, significa primeiramente que, no d,a em
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que 0 Estado Romano (que era apenas, afinal de contas um irrnao, quando muito urn irmao mais velho) desaparece~, os Qutros Innaos - os irmaos mais m090S -, naturalmente, por causa do direito mesmo das gentes, 0 herdaram. A Fran~a, por urna especie de direito natural e reconhecido por todos sucede ao Imperio. E isto quer dizer duas coisas. Primeiro: que 0 reI da Fran~a herda, sobre seus suditos, direitos e poderes que eram os do imperador romano sobre os seus: a soberania do rei da Fran~a acaba sendo do mesmo tipo da soberanla do lmperador romano. 0 direito do rei e 0 direito romano. E a lenda de Troia e urna maneira de narrar com imagens, ou de por em imagens, 0 principio que fora formulado na Idade Media, em especial por Boutillier, quando dlZla que 0 rei da Fran~a e imperador em seu reino'. Tese importante, voces compreendem, ja que se trata, em suma, do acompanhamento historico-mitico, ao longo de toda a Idade Media, do desenvolvimento do poder monarquico que se formou baseado no modo do imperium romano e reativando os direitos imperiais que haviam sido codificados na epoca de Justiniano. Mas dizer que a Fran~a herda 0 Imperio e dizer tambem que a Fra~~a, irma ou .prima de Roma, tem direitos iguais aos da propna Roma. E d,zer que a Fran~a nao depende de urna monarquia universal que quisesse, depois do Imperio, ressuscitar 0 Imperio Romano. A Fran~a e tao imperial quanto todos os outros descendentes do Imperio Romano' e tao imperial quanto 0 Imperio Alemao; nao e em nada sUbordinada aos Cesares germanicos. Nenhurn la~o de vassalismo pode vincula-la legitimamente it monarquia dos Habsburgo
Thierry fala em Recits des temps merovingiens, precedes de Consi~erations sur l'histoire de France, Paris, 1840, au seja: Les grandes chromques de Saint-Denis (redigidas na segunda metade do seculo XII e publicadas por Paulin Paris em 1836; reed. J. Viard em 1920). Pode-se ler grande parte dessas narrativas em Dam M. Bouquet, Recueil des historiens des Gaules et de
2. "Sabei que eIe e imperador em seu reino e que pode fazer tudo e tanto quanto ao direito imperial pertence" (1. Boutillier, Somme rorale, ou Ie Grand coutumier general de pratiques civiles [seculo XIV], Bruges, 1479). Esse texto, na edi9ao de 1611, e citado por A. Thierry em Considerations sur
fa France, Paris, 1739-1752, t.Il e Ill.
l'histoire de France, op. cit.
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e subordimi-Ia, por conseguinte, aos grandes sonbos de monarquia universal que eram acalentados, naquele momento, por ela. Ai esm, portanto, por que, nessas condi90es, era preciso que Roma fosse elidida. Mas era preciso que fosse elidida tambem a Galia romana, a de Cesar e ada coloniza9ao, para que de maneira alguma a Galia e os sucessores dos gauleses pudessem parecer estar, ainda e sempre, sob a subordina9ao de urn imperio. E curnpria iguaJrnente que as invasoes francas, que rompiam no interior a continuidade com 0 Imperio Romano, fossem elididas. A continuidade interior do imperium romano ate a monarquia francesa excluia a ruptura das invasoes. Mas a nao-subordina9ao da Fran9a ao Imperio, aos herdeiros do Imperio (e, em especial, a monarquia universal dos Habsburgo) implicava que nao aparecesse a subordina9ao da Fran9a a antiga Roma; portanto, que a Galia romana desaparecesse; noutras palavras, que a Fran9a fosse urna especie de outra Roma - outra querendo dizer independente de Roma, mas ainda assim Roma. 0 absolutismo do rei valia, pois, como em Roma mesma. Ai esm, em linbas gerais, a fun9ao das aulas de direito publico que se podem encontrar na reativa9aO, ou no prosseguimento, dessa mitologia troiana ate tarde no Renascimento, e isso nurna epoca em que os textos romanos sobre a GaIia, a GaIia romana, eram bern conbecidos. Dizem as vezes que foram as Guerras de Religiao que permitiram derrubar essas velhas mitologias (que, acho eu, eram urna li9ao de direito publico) e que introduziram, pela primeira vez, 0 tema daquilo que Augustin Thierry denominanl mais tarde a "dualidade nacional"3, 0 tema, se voces quiserem, de dois grupos hostis que constituem a estrutura permanente do Estado; mas eu nao creio, contudo, que isso
3. A. Thierry, ibid., p. 41 (ed. de 1868).
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seja absolutamente exato. A referencia, quando se diz que foram as Guerras de Religiao que permitiram pensar a dualidade nacional, e urn texto de Fran90is Hotman, FrancoGallia4 , datado de 1573, cujo proprio titulo parece indicar que era nurna especie de dualidade que 0 autor pensava. Com efeito, nesse texto, Hotman retoma a tese germanica que circulava naquele momento no Imperio dos Habsburgo e que era, no fundo, 0 equivalente, 0 frente a frente, 0 vis-ii-vis da tese troiana que circulava na Fran9a. Essa tese germanica, que fora formulada certo ntimero de vezes, em especial por alguem que se chamava Beatus Rhenanus, diz isto: "Nos
nao somos romanos, nos, alemaes, somos germanos. Mas, par causa da forma imperial que herdamos, somos os sucessores naturais e juridicos de Roma. Ora, os francos que invadiram a GaIia sao germanos, como nos. Quando eles invadiram a Galia, por certo deixaram sua Germania natal; mas, de urn lado, na medida em que eram germanos, continuaram germanos. Permanecem, em conseqiiencia, no interior de nosso imperium; e como, de Dutro lado, e1es invadiram e ocuparam a Galia, venceram os gauleses, eles proprios exercern, necessariamente, sobre essa terra de conquista e de coloniza9ao, 0 imperium, 0 poder imperial de que sao, enquanto germanos, eminentemente revestidos. Por conseguinte a Galia, a terra gaulesa, a Fran9a agora, devem por uma dupla razao, tanto por urn direito de conquista e de vitoria quanto pela origem germanica dos francos, subordina9ao a monarquia universal dos Habsburgo."5
4. F. Hotman, Franco-Gallia, Genebra, 1573 (trad. fr.: La GauZefran90ise, Colonia, 1574; reed.: La Gaulefranraise, Paris, Fayard, 1981). 5. Cf. Reali Rhenani Rerum Germanicarum /ibri !res, Basileia, 1531. Cumpre, todavia, referir-se a edil;ao de Dim de 1693 para encontrar, no comentario e nas notas redigidas pelos membros do Colegio Hist6rico Imperial, a genealogia e 0 elogio da "Europae Corona" dos Habsburgo (cf. Beati Rhena-
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E essa tese que, curiosamente, ate certo ponto naturalmente, Fran90is Hotman vai retomar, reintroduzir na Fran9a em 1573. A partir daquele momento, e pelo menos ate 0 inicio do seculo XVII, ela vai ter urn sucesso considenivel. Hotman retoma a tese alema e diz: "Com efeito, os francos, que em dado momento invadiram a Galia e constituiram uma nova monarquia, nao sao troianos; sao germanos. Eles venceram os romanas e as expulsaram." Reprodu~ao quase
literal da tese germilnica de Rhenanus. Eu disse "quase", pois ha, todavia, urna diferen9a, que e fundamental: Hotman nao diz que os francos venceram os gauleses; diz que ven-
ceram os romanos 6 . A tese de Hotman e, com toda a certeza, importante porque introduz, quase na mesma epoca em que 0 vemos aparecer na Inglaterra, 0 tema fundamenli'l da invasao (que e ao mesmo tempo a cruz dos juristas e a noite dos reis) no curso da qual desaparecem uns Estados e nascem outros. E, de fato, em tome disso que vao entabular-se todos os debates juridico-politicos. Dai em diante, a partir dessa descontinuidade fundamental, e evidente que ja nao se podera expor urna aula de direito publico que teria como fun9ao garantir 0 carater ininterrupto da genealogia dos reis e de seu poder. Dai em diante, 0 grande problema do direito publico vai ser 0 problema daquilo a que urn sucessor de Hotman, Etienne Pasquier, chama a "outra continua/tao"7, ou seja: ni libri Ires Institutionum Rerum Germanicarum nov-antiquarum, historicogeographicarum, juxta primarium Collegi Historici Imperia/is scopum illus-
Vim, 1693, em especial pp. 569-600. Ver tambem os comentarios em anexo aedi<;:8.o de Estrasburgo: Argentoratii, 1610).
tralarum,
6. Cf. F. Hatman, Franco-Gallia, op. cit. cap. N: "De ortu Francorum, qui Gallia occupata, eius nomen in Franciam vel FrancogaUiam mutarunt"
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o que acontece quando urn Estado sucede a outro Estado? 0 que acontece - e como fica 0 direito publico e 0 poder dos reis - quando os Estados nao se sucedem pelo [efeito de] uma especie de continuidade que nada interrompe, mas nascem, tern sua fase de poderio, depois sua decadencia e, por fim, desaparecem inteiramente? Hotman formulou, de fato, esse problema - mas eu nao penso que tenha formulado urn problema diferente, muito diferente, daquele, se voces quiserem, da natureza ciclica e da vida precaria dos Estados -, 0 problema das duas na90es estrangeiras* no interior do Estado. De urn modo geral, alias, nenhum dos autores contemporiineos das Guerras de Religiao admitiu a ideia de que urna dualidade - de ra9a, de origem, de na9ao - viria perpassar a monarquia. Era impossivel porque, de urna parte, os partidanos de urna religiao unica - que evidentemente expunham a principia "uma fe, urna lei, urn rei" - naa padiam reivindicar a unidade de religiao admitindo uma dualidade intema na na9ao; de outra parte, aqueles que, ao contrario, reclamayam a possibilidade de 0P9aO religiosa, a liberdade de consciencia, so podiam fazer que admitissem sua tese com a condi9ao de dizer: "Nem a liberdade de consciencia, nem a possibilidade de 0P9ao religiosa, nem a propria existencia de duas religioes num corpo de na9ao, podem de forma algurna comprometer a unidade do Estado. A unidade do Estado nao e ferida pela liberdade de consciencia." Logo, que se adote a tese da unidade religiosa ou, ao contrano, que se sustente a possibilidade de uma liberdade de consciel1cia, a tese da unidade do Estado foi fortalecida ao longo de todas as Guerras de Religiao. Quando Hotman contou sua historia, 0 que quis dizer foi coisa muito diferente. Foi uma maneira de propor urn
(pp. 40-52, ed. de 1576). 7. E. Pasquier, Recherches de la France, Paris, 1560-1567,3 vol. Pas-
quier foi aluno de Hotman.
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"0
* Manuscrito, no 1ugar de "0 problema das duas na«oes estrangciras": problema de que houve na Fran<;a duas na<;6es estrangeiras".
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modelo juridico de governo oposto ao absolutismo romano que a monarquia francesa queria reconstituir. A historia da origem germiinica da invasao e urna forma de dizer: "Nao, nao e verdade, 0 rei da Fran9a nao tern 0 direito de exercer sobre seus suditos urn imperium de tipo romano." 0 problema de Hotman nilo e, pois, a disjun9ao de dois elementos heterogeneos no povo; e a delimita9ao interna do poder monarquic0 8. Dai 0 modo como ele conta a fabula, quando diz: "Os gauleses e os germanos eram, de fato, originalmente, povos irmaos. Estabeleceram-se em dnas regioes vizinhas, deste lado e do lado de la do Reno. Portanto, nao havera nenhurna caracteristica de invasao estrangeira quando os germanos forem it Galia. Na realidade, irao quase it casa deles, em todo caso it casa de seus irmaos9 . Mas, entao, quem era estrangeiro para os gauleses? Os estrangeiros sao os romanos, que impuseram, com a invasao e com a guerra (a guerra narrada por CesarIO), urn regime politico que e 0 do absolutismo; eles estabeleceram - eles, os estrangeiros - algo estranho it Galia: 0 imperium romano. Os gauleses resistiram durante seculos, mas de urna forma que nao teve muito sucesso. Foram, por fim, seus irmaos germiinicos que, la pelos seculos IV e V, come9aram a empreender, em favor dos irmaos gauleses, uma guerra que foi urna guerra de liberta9ao. E os germanos vieram, pais, naD como invasores, mas como urn povo irmao que ajuda urn povo irmao a libertar-se dos inva-
sores, e dos invasores romanos."11 Eis, portanto, expulsos
8. "Semper reges Franci habuerunt [... j non tyrannos, aut camefices: sed libertatis suae custodes, praefectos, tutores sibi constituerunt" (F. Hotman, Franco-Gallia, ed. citada, p. 54). 9. Cr., ibid., p. 62. lO. Julio Cesar, Commentarii de bello gallica, cf. em especiallivros VI,
VII. VIII. 11. F. Hotman, Franco-Gallia, ed. citada, pp. 55 62. M
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os romanos: os gauleses, ei-Ios libertados; e, com os irmaos germiinicos, eies nao formam mais do que urna linica e mesrna na9ao, cujas constitui90es e leis fundamentais - como come9am a dizer os juristas da epoca - sao as leis fundamentais da sociedade germiinica. Isto e: soberania do povo que se reline regularmente no Campo de Marte ou nas assembleias de maio; soberania do povo que elege seu rei como quer e que 0 depoe quando e necessario; soberania de urn povo que so e regido por magistrados cujas fun90eS sao temporarias e sempre it disposi9ao do conselho. E foi essa constitui9ao germamca que os reis depois violaram, para conseguir construir 0 absolutismo de que a monarquia francesa do seculo XV[12 e urn testemunho. E verdade que na historia contada por Hotman nao se trata absolutamente de estabelecer urna dualidade. Mas, ao contrario, de atar firmemente uma unidade de certo modo germano-francesa, francogaulesa, franco-galiana, como ele diz. Trata-se de estabelecer urna unidade profunda e, ao mesmo tempo, de contar, de certo modo sob a forma de historia, 0 desdobramento do presente. E claro que aqueles romanos invasores de que fala Hotman sao 0 equivalente, transposto para 0 passado, da Roma do papa e de seu clero. Os germanos fraternais e libertadores sao, evidentemente, a religiao reformada vinda de aJem-Reno; a unidade do reino com a soberania do povo e 0 projeto politico de urna monarquia constitucional, sustentado por nurnerosos circulos protestantes da epoca. Esse discurso de Hotman e importante porque organiza, de urna forma que decerto vai ser definitiva, 0 projeto de limitar 0 absolutismo monarquico it redescoberta, no passado, de certo modelo historico preciso que, em dado momento, 12. Ibid" pp. 65 e 55., oode Hotman descreve em particular a "continuidade dos poderes do conselho publico" atraves das diferentes dinastias.
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teria fixado os direitos reciprocos do rei e de seu povo e que teria sido, mais tarde, esquecido e violado. 0 vinculo que vai existir, desde 0 seculo XVI, entre a delirnita9ao do direito da monarquia, a reconstitui9ao de urn modelo passado e, de certo modo, a revolu9ao enquanto exuma9ao de uma constitui9ao fundamental e esquecida, e isso que e organizado, acho eu, no discurso de Hotman, e de forma algurna urn dualismo. Essa tese germanica, no inicio, tinha origem protestante. Na verdade, ela circulou muito depressa nao somente nos meios protestantes mas tambem nos meios cat6licos, a partir do momenta em que (sob 0 reinado de Henrique III e sobretudo no momento da conquista do poder por Hennque IV) os cat6licos, ao contrario, tiveram interesse em procurar urna limita9ao do poder monarquico e, bruscamente, voltaram-se contra 0 absolutismo monarquico. De sorte que essa tese protestante da origem germiinica, voces a encontram nos historiadores cat6licos, como Jean du Tillet, Jean de Serres l 3, etc. A partir do final do primeiro ter90 do seculo XVII, essa tese vai ser objeto de urn empreendirnento que visa, se nao exatamente desqualifica-la, pelo menos contamar essa origem germanica, 0 elemento genna-nieD, com o que ele comportava de duplamente inaceitavel para 0 poder monarquico: inaceitavel quanta ao exercicio do poder e aos principios do direito publico; inaceitavel igualmente com rela9ao a politica europeia de Richelieu e de Luis XIV Para contomar essa ideia da funda9ao germanica da Fran9a, foram empregados vanos meios, sobretudo dois: urn,
urna especie de volta ao mito troiano que, de fato, se reativa em meados do seculo XVII; mas, sobretudo, a funda9ao e a introdu9ao de urn tema absolutamente novo e que vai ser fundamental. Trata-se do tema daquilo a que eu chamaria urn "galo-centrismo" radical. Os gauleses, que Hotman mostrara como parceiros importantes na pre-hist6ria da monarquia francesa, eram de certa forma urna materia inerte, urn substrato: gente que fora vencida, ocupada, e que precisou ser libertada do exterior. Mas, a partir do seculo XVII, esses gauleses vao se tomar 0 principio capital, motor de certo modo, da hist6ria. E, por urna especie de inversao das polaridades e dos valores, os gauleses e que serao 0 elemento primeiro, fundamental, e os germanos, ao contnirio, vao ser apresentados apenas como urna especie de prolongamento dos gauleses. Os germanos sao somente urn epis6dio na hist6ria dos gauleses. Essa e a tese que voces encontram em gente como Audigier l4 ou TarauJt15, etc. Audigier conta, por exempl0, que os gauleses foram os pais de todos os povos da Europa. Certo rei da Galia, que se chamava Ambigato, viu-se diante de urna na9ao tao rica, tao plena, tao plet6rica, com urna popula9ao tao exuberante, que precisou liquidar uma parte dela. Ele enviou, assim, urn de seus sobrinhos a Italia e outro, urn certo Sigovegio, a Germania. E foi a partir dai, dessa especie de expansao e de coloniza9ao, que os gauleses e a na9ao francesa teriam sido de certo modo a matriz de todos os outros povos da Europa (e mesmo mais alem da Europa). Foi assim, diz Audigier, que a na9ao francesa teve
13. Jean du Tillet, Les memoires et recherches, Rauen, 1578; Recueil des Rays de France, Paris, 1580; Remonstrance ou Advertissement d fa noblesse tant du parti du Roy que des rebelles, Paris, 1585. Jean de Serres, Memoires de fa troisierne guerre civile. et des demiers troubles de fa France ' Paris, 1570; Inventaire general de l'histoire de France, Paris, 1597.
14. P. Audigier, De l'origine des Fran~ois et de leur empire, Paris, 1676. 15. J.-E. Tarault, Annales de France, avec les alliances, genealogies, conquetes, fondations ecclisiastiques et civiles en ['un et l'autre empire et dans [es royaumes etrangers, depuis Pharamond jusqu'au roi Louis treizieme, Paris, 1635.
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"uma mesma origem com tudo 0 que 0 mundo jamais teve de mais terrivel, de mais bravo e de mais glorioso, ou seja, os viindalos, os godos, os borguinhoes, os ingleses, os hernlos, os silingos, os hunos, os gepidas, os alanos, os quados,
os ur6es, os rufienos, os turingios, os lombardos, as turcos, os tartaros, os persas e mesma os normandos"16, Logo, os francos que, nos seculos IV e V', vao invadir a Galia nao passavam de descendentes dessa especie de Galia primitiva; eram simplesmente gauleses avidos de rever seu pais. Nao se tratava em absoluto, para eles, de libertar urna Galia escravizada, de libertar irmaos vencidos. Tratavase meramente de urna saudade profunda e tambem do desejo de beneficiar-se de urna civiliza9ao galo-romana prospera. Os primos, os filhos prodigos, retornavam. Mas, ao retornar, nao derrubaram de modo algum 0 direito romano implantado na GaJia, mas, ao contnmo, 0 reabsorveram. Reabsorveram a Galia romana - ou deixaram-se reabsorver nessa GaJia. A conversao de Clovis e a manifesta9ao do fato de que os antigos gauleses, tornados germanos e francos, readotavam os valores e 0 sistema politico e religioso do Imperio Romano. Ese, no momenta do retorno, os francos tiveram de lutar, nao foi contra os gauleses nem sequer contra os romanos (cujos valores eles absorviam); foi contra os burglindios e os godos (que eram hereges enquanto arianos), ou contra os sarracenos increus. Foi contra estes que travaram a guerra. E, para recompensar os guerreiros que haviam lutado assim contra godos, burglindios e sarracenos, os reis Ihes deram os feudos. A origem daquilo que ainda nao se chama, naquela epoca, feudalismo foi assim estabelecida numa guerra. 16. P. Audigier, De l'origine des Fran~ojs... , op. cit., p. 3
* Manuscrito, no lugar de "seculos IV e V", "seculos V e VI" (0 que corresponde aepoca da conquista).
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Essa fabula permitia afirmar 0 carMer autoctone da popula9ao gaulesa. Permitia tambem afirmar a existencia de fronteiras naturais da G,Uia: as descritas por Cesar!? - e que eram igualmente 0 objetivo politico de Richelieu e de Luis XIV em sua politica exterior. Tratava-se igualmente, nessa narrativa, nao so de apagar qualquer diferen9a racial, mas sobretudo de apagar qualquer heterogeneidade entre urn direito germanico e urn direito romano. Era necessario mostrar que os germanos haviam renunciado ao seu proprio direito para adotar 0 sistema juridico-politico dos romanos. E, enfim, era necessario fazer os feudos e as prerrogativas da nobreza derivarem nao dos direitos fundamentais e arcaicos dessa mesma nobreza, mas simplesmente de urna vontade do rei, cujos poder e absolutismo seriam anteriores a propria organiza9a o do feudalismo. Tratava-se, Ultimo ponto, de fazer a pretensao a monarquia universal passar para 0 lado frances. Desde que a Galia era 0 que Tacito denominava (a prop6sito, alias, sobretudo da Germiinia) a vagina nationum 18, e desde que a Galia era mesmo, com efeito, a matriz de todas as na90eS, a quem deveria caber a monarquia universal senao aqueIe, ao monarca, que herdava essa terra da Galia? Claro, em torno desse esquema houve muitas varia90es, nas quais nao me detenho. Se fiz essa narrativa um tanto 17. Cf. Cesar, De bello galUco, liv. I, 1. 18. Na realidade, e 0 bispo Ragvaldsson que, no concilio de Basih~ia em 1434, a proposito da questiio sabre a "fibrica do genera humano", indica a Escandimivia como be~o original da humanidade, fundamentando-se numa crOnica de Jordanis do seculo VI: "Hac igitur Scandza insula quasi officina gentium aut certe velut vagina natianum [...] Gothi quondam memorantur egressi" (De arigine actibusque Getarum, in Manumenta Germaniae Histarica, Auctarum antiquissimorum tami V, pars I, Berolini, 1882, pp. 53-138, cital;iia p. 60). Em tomo dessa questiio vai abrir-se um amplo debate, depois da redescoberta do texto de Tacita, De origine et situ Germaniae, editado em 1472.
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longa, foi porque eu queria reporta-la ao que se passava na Inglaterra na mesma epoca. Entre 0 que se dizia na Inglaterra sobre a origem e a funda,ao da monarquia inglesa e 0 que se diz em meados do seculo XVII sobre a funda,ao da monarquia francesa, M pelo menos urn ponto em comum e uma diferen,a fundamental. 0 ponto em comum - e eu acho que ele e importante - e 0 fato de que a invasao, com suas formas, seus motivos, suas conseqiiencias, tornou-se um problema historico, na medida em que esta em jogo um fato juridico-politico importante: compete it invasao dizer 0 que sao a natureza, os direitos, os limites do poder monitrquico; compete, de fato, it historia da invasao dizer 0 que sao os conselhos do rei, as assembleias, as cortes soberanas; compete it invasao dizer 0 que e a nobreza, quais sao os direitos da nobreza perante 0 rei, os conselhos do rei e 0 povo. Em resumo, e it invasao que se pede que formule os proprios principios do direito publico. Na epoca em que Grotius, Pufendorf, Hobbes procurayam no direito natural as regras de constitui,ao de um Estado justo, come,ava, em contraponto e em oposi,ao, uma enorme investiga,ao historica sobre a origem e a validade dos direitos efetivamente exercidos - e isto no ambito de urn fato historico ou, se voces preferirem, de uma certa fatia de historia "que vai ser a regiao juridica ~ politicamente mais sensivel de toda a historia da Fran,a. E 0 periodo que val, grosso modo, de Meroveu a Carlos Magno, do seculo V ao seculo IX, do qual se disse sem parar (repetiam isso desde o seculo XVII) que era 0 periodo mais desconhecido. Desconhecido? Talvez. Mas certamente 0 mais percorrido. Em todo caso, entram agora - pela primeira vez, acho eu - no horizonte de uma historia da Fran,a que fora destinada, ate entao, a estabelecer a continuidade do poder do imperium regio e so relatava historias de troianos e de francos, novas personagens, novos textos, novos problemas: as personagens
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sao Meroveu, Clovis, Carlos Martelo, Carlos Magno, Pepino; os textos sao 0 de Gregoire de Tours l9, os cartulitrios de Carlos Magno. Aparecem os costumes, como 0 Campo de Marte, as assembleias de maio, 0 ritual dos reis elevados ao poder, etc. Aparecem acontecimentos como 0 batismo de Clovis a batalha de Poitiers, a coroa,ao de Carlos Magno; ou aned'otas simbolicas, como a do vaso de Soissons, em que se ve 0 rei Clovis renunciar a uma pretensao diante do direito de seus guerreiros e vingar-se disso em seguida. Tudo isso nos fornece uma nova paisagem historica, urn referencial novo, que so se compreende na medida em que existe uma correla,ao muito forte entre esse material novo e as discussoes politicas sobre 0 direito publico. De fato, a historia e 0 direito publico vao de par. Os problemas levantados pelo direito publico e a delimita,ao do campo historico tern uma correla,ao fundamental - e, alias, "historia e direito publico" sen! uma expressao consagrada ate 0 final do seculo XVIII. Se voces olharem como de fato, e bern depois do final do seculo XVIII, e no seculo XX, ensina-se a historia, a pedagogia da historia, voces verao, e 0 direito publico que lhes contam. Ja nao sei 0 que se tornaram os livros escolares atualmente, mas nao faz tanto tempo ainda, a historia da Fran,a come,ava com a historia dos gauleses. E a frase "nossos ancestrais, os gauleses" (que faz rir porque a ensinavam aos argelinos, aos africanos) tern urn sentido muito preciso. Dizer "nossos ancestrais, os gauleses" e, no fundo, formular uma proposi,ao que tern urn sentido na teoria do direito constitucional e nos problemas levantados pelo direito publico. Quando se conta com detalhes a batalha de Poitiers, isto igualmente tern um sentido muito preciso, na medida em que e efetivamente essa guerra, nao entre
19. Gregoire de Tours. Histaria Francornm (575-592), Paris, 1512.
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os francos e os gauleses, mas entre os francos, os gauleses e invasores de outra ra9a e de outra religiao, que permite fixar a origem do feudalismo em algo diferente de urn conflito interno entre francos e gauleses. E a histeria do vaso de Soissons - que, acho eu, povoou todos os livros de histeria e que talvez se ensine ainda hoje - foi certamente urna das mais seriamente estudadas durante todo 0 seculo XVIII. A histeria do vasa de Soissons e a histeria de urn problema de direito constitucional: na origem, quando se partilhavam as riquezas, quais eram efetivamente os direitos do rei perante os direitos de seus guerreiros e, eventualmente, da nobreza (na medida em que tais guerreiros estao na origem da nobreza)? Acreditou-se que se ensinava a histeria; mas, no seculo XIX e ainda no seculo XX, os manuais de histeria eram de fato manuais de direito publico. Ensinava-se 0 direito publico e 0 direito constitucional sob as especies cheias de imagens da histeria. Primeiro ponto, pois: 0 aparecimento na Fran9a desse novo campo histerico que e, alias, totalmente semelhante (quanto ao seu material) ao que se passa na Inglaterra no momenta em que, em torno do problema da monarquia, se reativa 0 tema da invasao. No entanto, hi urna diferen9a fundamental em compara9ao a Inglaterra. Se, na Inglaterra, a conquista e a dualidade racial normandos/saxoes eram 0 ponto de articula9ao essencial da histeria, na Fran9a, em compensa9ao, ate 0 fim do seculo XVII, nao hi nenhuma heterogeneidade no corpo da na9ao, e todo 0 sistema de parentesco fabuloso entre gauleses e troianos, depois entre gauleses e germanos, depois entre gauleses e ramanas, etc., permite assegurar uma continuidade na transmissao do poder e uma homogeneidade sem problemas no corpo da na9ao. Ora, e justamente essa homogeneidade que vai ser quebrada no final do seculo XVII, e nao por urn edificio teerico, ou teerico-mitolegico, suplementar ou diferente, do qual acabo de
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lhes falar, mas por urn discurso que e, creio eu, de tipo absolutamente novo por suas fun90es, por seus objetos, por suas conseqih~ncias.
Nao foram as guerras civis ou sociais, nem as lutas religiosas do Renascimento, nem os conflitos da Fronda, que introduziram 0 tema do dualismo nacional como 0 reflexo ou a expressao deles; foi urn conflito, foi urn problema aparentemente lateral, algo que 50 quaiifica, em geral, como combate de retaguarda, e que nao 0 e, acho eu - voces verao _, que permitiu pensar duas coisas capitais ainda nao inscritas na histeria nem no direito publico. E, de urna parte, 0 problema de saber se, efetivamente, a guerra de grupos hostis constitui a subestrutura do Estado; e, de outra, 0 problema de saber se 0 poder politico pode ser considerado ao mesmo tempo 0 produto, 0 arbitro ate certo ponto, porem 0 mais das vezes 0 instrurnento, 0 aproveitador, 0 elemento desequilibrante e partidarista nessa guerra. E urn problema preciso e limitado, mas essencial todavia, creio eu, a partir do qual a tese implicita da homogeneidade do corpo social (que nem sequer necessita ser formulada de tanto que e aceita) vai ser quebrada. Mas como? Pois bern, a partir de urn problema que eu diria de pedagogia politica: que deve saber 0 principe, de onde e de quem ele deve receber seu saber; 0 que esta habilitado para constituir 0 saber do principe? De uma forma precisa, tratava-se, pura e simplesmente, da famosa educa9ao do duque de Borgonha, que voces sabem como criou problemas, por urna por9ao de razoes (nao penso aqui somente em seu aprendizado elementar, pois, na epoca em que se passam os acontecimentos de que vou falar, ele ja era adulto). Trata-se do conjunto dos conhecimentos sobre 0 Estado, 0 governo, 0 pais, necessarios a quem vai ser chamado, dentro de alguns anos, quando Luis XIV tiver morrido, a dirigir esse Estado, esse governo e esse pais. Portanto,
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naO e do Telemaque 20 que se trata, mas desse enorme relatorio sobre 0 estado da Fran,a que Luis XIV encomendou it sua administra,ao e a seus intendentes, destinado ao neto, 0 duque de Borgonba, que ia ser seu herdeiro. Balan,o da Fran,a (estudo geral da situa,ao, da economia, das institui,5es, dos costumes da Fran,a) na medida em que ele deve constituir 0 saber do rei, saber com 0 qual ele vai poder reinar. Luis XIV pede, pois, esses relatorios aos seus intendentes. Depois de varios meses, eles sao juntados e reunidos. o circulo do duque de Borgonba - circulo que era constituido de todo urn nucleo da oposi,ao nobiliaria, de uma nobreza que reprovava ao regime de Luis XIV ter ferido seu poderio econ6mico e seu poder politico - recebe esse re!atorio, e encarrega alguem que se chama Boulainvilliers de apresenta-Io ao duque de Borgonba, de toma-Io mais leve, pois era enorme, e depois de explid.-lo, de interpreta-Io: de recodifica-Io - se voces preferirem. Boulainvilliers, de fato, faz a triagem, faz a depura,ao daqueles enormes relatorios, resume-os em dois grossos volumes. Enfim, redige a apresenta,ao, que ele acompanba com certo nUmero de reflex5es criticas e com urn discurso: 0 acompanhamento necessaria, pois, daquele enorme trabalho administrativo de descri,ao e de analise do Estado. Esse discurso e assaz curioso, uma vez que se trata, para esclarecer 0 estado atual da Fran,a", 20. Fenelon, Les aventures de Tefemaque, Paris, 1695.
21. Trata-se de Eta! de fa France dans lequel on voit tout ce qui regarde le gouvernement eccIesiastique, Ie militaire, fa justice, Ies finances. Ie commerce, les manufactures, Ie nombre des habitants, et en general tout ce qui peut Jaire cannairre fond cette monarchie; extrait des memoires dresses par les inten-
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dants du royaume, par ordre du roy Louis XIV fa sollieitation de Monseigneur Ie due de Bourgogne, pere de Louis XV present regnant. Avec des Memoires historiques sur l'ancien gouvernement de cette monarchie jusqu'a Hugues Capet, par Ie comte de Boulainvilliers, Londres, 1727, 2 vol. in-folio, No ano seguinte sai urn terceiro volume com 0 titulo Etat de la France, contenant XIV let-
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de urn ensaio sobre 0 antigo governo da Fran,a, ate Hugo Capeto. Nesse texto de Boulainvilliers - mas aqueles que se seguiram tambem vao retomar 0 problema" -, trata-se de valorizar as teses favoritveis it nobreza. Critica-se, pois, a venalidade dos cargos, que sao desfavoriveis it nobreza empobrecida; protesta-se contra 0 fato de que a nobreza foi espoliada de seu direito de jurisdi,ao e dos lucros que eram vinculados a este; reclama-se urn lugar de direito no Conselho do rei para a nobreza; critica-se 0 papel desempenbado pelos intendentes na administra,ao das provincias. Mas, sobretudo, no texto de Boulainvilliers e nesse empreendimento de recodifica,ao dos relatorios [apresentados] ao rei, trata-se de protestar contra 0 fato de que 0 saber dado ao rei, e de-
tres sur les anciens Parlemens de France, avec l'histoire de ce royaume depuis Ie commencement de la monarchie jusqu 'a Charles VIII. On y a joint des Memoires presentes M Ie due d'Or!eans, Londres, 1728. 22, M. Foucault faz alusao as obras historicas de Boulainvilliers relacionadas com as institui90es politicas francesas. Trata-se sobretudo de: Memoire sur la noblesse du roiaume de France fait par M Ie comte de Boulainvilliers (1719) (trechos publicados in A. Devyver, Le sang epure. Les prejuges de race chez les gentilhommes franrais de I 'Ancien Regime, Bruxelas, Editions de l'Universite, 1973, pp. 500-48); Memoire pour la noblesse de France contre les Dues et Pairs, s.1., 1717; Memoires presentes aMgr. Ie duc d'Or!eans, Regent de France, Haia/Amsterdam, 1727; Histoire de I 'ancien gouvernement de la France avec quatorze lettres historiques sur les Parlements ou Etats Generaux, Haia/Amsterdam, 1727, 3 vol. (versao reduzida e modificada das Memoires); Traite sur l'origine et les droits de la noblesse (1700), in Conti~ nuation des memoires de litterature et d 'histoire, Paris, 1730, t. IX, pp. 3-106 (republicado, com numerosas modifica90es, com 0 titulo: Essais sur la noblesse contenant une dissertation sur son origine et ahaissement, par Ie feu M, Ie comte de Boulainvilliers, avec des notes historiques, critiques et politiques, Amsterdam, 1732); Abrege chronologique de I 'histoire de France, Paris, 1733, 3 vol.; HL~toire des anciens Parlements de France ou Etats Generaux du royaume, Londres, 1737.
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pois ao principe, seja urn saber fabricado pela propria maquina administrativa. Trata-se de protestar contra 0 fato de que 0 saber do rei acerca dos seus suditos seja inteiramente colonizado, ocupado, prescrito, definido, pelo saber do Estado acerca do Estado. 0 problema e este: 0 saber do rei acerca de seu reino e acerca de seus suditos devera ser isomorfo ao saber do Estado acerca do Estado? Os conhecimentos bu-
rocniticos, fiscais, economicos, juridicos, que sao necessarios ao funcionarnento da monarquia administrativa, deverno ser reinjetados no principe pelo conjunto das informa90es que the sao dadas e que the permitirao governar? Em surna, 0 problema e este: a administra9ao, 0 grande aparelho administrativo que 0 rei deu amonarquia, e de certa forma grudada ao proprio principe, forma urn so todo com 0 principe pela vontade arbitraria e ilimitada que este exerce sobre urna administra9ao publica que esta, com efeito, inteiramente em suas maos e it sua disposiCao; e e por isso que niio se pode resistir a ela. Mas 0 principe (e a administra9ao forma urn so todo com ele pelo poder do proprio principe), por bern ou por mal, vai ser levado a formar urn so todo com sua administra9ao publica, a ser grudado a ela, pelo saber que essa administra9ao publica the retransmite, dessa feita de baixo para cima. A administra9ao publica permite ao rei fazer que reine sobre 0 pais uma vontade sem limites. Mas, inversamente, a administra9ao publica reina sobre 0 rei pela qualidade e pela natureza do saber que ela the impoe. Eu creio que 0 alvo de Boulainvilliers e daqueles que 0 rodeavarn na epoca - 0 alvo, igualmente, de seus sucessores em meados do seculo XVllI (como 0 conde du Buat-N an9ay23) 23. Dentre as obras de carater hist6rico de L. G. conde de Buat-Nanl;ay,
cf.: Les origines au ['Ancien gouvernement de la France. de ['ltatie, de l'Al/emagne. Paris, 1757; Histoire ancienne des peuples de ['Europe, Paris, 1772, 12 vol.; Elements de fa politique, au Recherche sur les vrais principes
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ou de Montlosier24 (cujo problema sera bern mais complica-
do, uma vez que escreveni, no inicio d.a Restauracao, contra a administra9ao publica imperial), 0 verdadeiro alvo de todos esses historiadores ligados a rea9ao nobili:iria sera 0 mecanismo de saber-poder que, desde 0 seculo XVII, vincula 0 aparelho administrativo ao absolutismo do Estado. Eu creio que as coisas se passaram urn pouco como se a nobreza, empobrecida, repelida em parte do exercicio do poder, tivesse adotado como objetivo principal de sua ofensiva e de sua contra-ofensiva nao tanto a reconquista direta e imediata de seus poderes nem, tampouco, a recupera9ao de suas riquezas (que por certo se haviarn tornado definitivarnente inacesslveis), mas urn elo importante no sistema do poder, que a nobreza havia menosprezado desde sempre, mesmo na epoca em que estava, contudo, no auge de seu poderio: essa pe9a estrategica, menosprezada pela nobreza, fora, em seu lugar, ocupada pela 19reja, pelos c1erigos, pelos magistrados, depois pela burguesia, pelos administradores publicos, pelos proprios financistas. A posi9ao que deveria ser reocupada em primeirissimo lugar, 0 objetivo estrategico que Boulainvilliers vai fixar dal em diante para a nobreza, a condi9aO de todas as desforras, nao e, como se dizia no vocabulario da corte, "0 favor do principe". 0 que se tern de reconquistar e 0 que se tern de ocupar agora e 0 saber do rei; 0
de l'economie socia/e, Londres, 1773; Les maximes du gouvernement monar-
chique pour servir de suite ala elements de la politique, Londres, 1778. 24. As obras de carater hist6rico de F. de Reynaud, conde de Montlosier, sao muito numerosas. Limitamo-nos a assinalar aquelas que estao relacionadas com os problemas levantados por M. Foucault nos cursos: De la monarchie fran9aise depuis son etablissement jusqu 'il nos jours, Paris, 1814, 3 vol.; Memoires sur la Revolutionfran9aise, Ie Consulat, I'Empire, la Restauration et Ies principaux evenements qui l'ont suivie, Paris, 1830. Sobre Montlosier, cf., infra, aula de lOde maryo.
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saber do rei ou urn certo saber comum aos reis e aos nobres: lei implicita, compromisso reciproco do rei para com sua aristocracia. Trata-se de despertar a memoria, que foi aturdidamente distraida, dos nobres, e as recorda,oes, ciosa e talvez maldosamente sepultadas, do monarca, para reconstituir 0 justo saber do rei, que sera 0 justo fundamento de urn govemo justo. Trata-se, por conseguinte, de urn contrasaber, de todo urn trabalho que vai assumir a forma de pesquisas historicas absolutamente novas. Eu digo contra-saber porque esse saber novo e esses metodos novos para investir o saber do rei se definem primeiro, para Boulainvilliers e seus sucessores, de uma maneira negativa em comparac;ao a dois saberes eruditos, dois saberes que sao as duas faces (e talvez as duas fases tambem) do saber adrninistrativo. Nesse momento, 0 grande inimigo desse saber novo pelo qual a nobreza quer voltar a tomar pe no saber do rei, 0 saber que e preciso descartar, e 0 saber juridico: aquele do tribunal, do procurador, do jurisconsulto e do escrivao. Saber, claro, odiavel para os nobres, urna vez que foi esse saber que os pos na arapuca, que os espoliou mediante argilcias que eles nao compreendiam, que os despojou, sem que eles sequer pudessem dar-se bern conta disso, de seus direitos de jurisdi,ao e, depois, ate de seus bens. Mas e urn saber que e odiavel tambern porque e urn saber de certo modo circular, que remete do saber ao saber. Quando 0 rei, para conbecer seus direitos, interroga os escrivaes e os jurisconsultos, qual resposta podera obter senao urn saber estabelecido do ponto de vista do juiz e do procurador, que ele, 0 proprio rei, criou, e em
que, por conseguinte, nao e surpreendente que 0 rei encontre, naturalmente, os louvores de seu proprio poder (louvores que, alias, talvez mascarem os sutis desvios de poder operados pelos procuradores, pelos escrivaes, etc.)? Saber circular, em todo caso. Saber em que 0 rei so pode encontrar a imagem mesma de seu proprio absolutismo, que Ihe remete, sob a
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forma do direito, 0 conjunto das usurpa,oes que ele, 0 rei, cometeu [para com] sua nobreza. E contra esse saber dos escrivaes que a nobreza quer valorizar urna outra forma de saber que sera a historia. Uma historia que tera como caracteristica passar para 0 exterior do direito, para tras do direito, para dentro dos intersticios desse direito; urna historia que nao sera simplesmente como havia sido ate entao, 0 desenrolar cheio de imagens, dramatizado, do direito publico. Ao contrario, ela vai tentar retomar o direito publico em sua raiz, recolocar as institui,oes do direito publico nurna rede, mais antiga, de outros compromis-
sos mais profundos, mais solenes, mais essenciais. Contra 0 saber do escrivao, em que 0 rei so pode encontrar 0 louvor de seu absolutismo (isto e, ainda e sempre, 0 louvor de Roma), trata-se de valorizar urn fundo de eqiiidade historica. Por tras da historia do direito, trata-se de despertar compromissos nao escritos, fidelidades que nao tiveram cartas, nem textos, sem duvida. Trata-se de reativar teses esquecidas e 0 sangue derramado pela nobreza pelo rei. Trata-se tambem de fazer que 0 proprio edificio do direito se mostre - inclusive em suas institui,oes mais validas, inclusive naquelas ordena,oes mais explicitas e mais reconhecidas - como 0 resultado de toda uma serie de iniqiiidades, de injusti,as, de abusos, de espolia,oes, de trai,oes, de infidelidades, cometidos pelo poder monarquico, que renegou seus compromissos para com a nobreza, e igualmente pelos homens de lei, que usurparam ao mesmo tempo 0 poder da nobreza e, talvez sem se darem conta disso tambem, 0 poder monarquico. A historia do direito sera, pois, a denuncia das trai,oes, e de todas as trai,oes que estavam relacionadas com as trai,oes. Trata-se, nessa historia que vai se opor, em sua propria forma, ao saber do escrivao e do juiz, de abrir os olhos do principe para as usurpa,oes de que ele nao teve consciencia e de the restituir as for,as, a lembran,a dos vinculos
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que decerto ele pr6prio teve interesse de esquecer, e de fazer que esquecessem. Contra
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saber dos escrivaes, que re-
mete sempre de urna atualidade para outra, do poder para 0 poder, do texto da lei para a vontade do rei, e inversarnente, a hist6ria sera a arma da nobreza traida e hurnilhada; urna hist6ria cuja forma profundamente antijuridica sera, por tras da escrita, a decifra~iio, a rememora~iio para alem de todos os desusos e a denilncia daquilo que 0 saber ocultava de hostilidade aparente. Ai esta 0 primeiro grande adversario desse saber hist6rico que a nobreza quer lan~ar para reocupar o saber do rei. a outro grande adversano e 0 saber, niio mais do juiz
ou do escrivao, mas do intendente; nao mais 0 cartorie, mas a reparti~iio publica. Saber, tambem ele, odiavel. E por razoes simetricas, ja que foi 0 saber dos intendentes que permitiu restringir as riquezas e 0 poder dos nobres. Eurn saber que, tambem ele, pode fascinar 0 rei e iludi-Io, urna vez que e gra~as a ele que 0 rei pode fazer que aceitem seu poderio, obter a obediencia, assegurar 0 fisco, etc. E urn saber administrativo, sobretudo economico, quantitativo: saber das riquezas atuais ou virtuais, saber dos impostos suportaveis, das taxas uteis. Contra esse saber dos intendentes e da reparti~iio publica, a nobreza quer valorizar urna outra forma de conhecimento: urna hist6ria, dessa feita, das riquezas e niio
mais uma hist6ria econ6mica, ou sej a, uma histeria dos deslocarnentos das riquezas, das extorsoes, dos roubos, dos passes de magica, dos desvios, dos empobrecimentos, das minas. Vma hist6ria, por conseguinte, que passa por tras do problema da produ~iio das riquezas, para mostrar atraves de que minas' dividas, acumula~oes abusivas, se constituiu, de fato, certo estado das riquezas que niio passa, afinal de contas, de urna mescia de desonestidades realizadas pelo rei com a burguesia. Sera, pois, contra a analise das riquezas, urna hist6ria da maneira pela qual os nobres se arruinaram nas guerras
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infindaveis; urna hist6ria da maneira pela qual a Igreja, com asmcia, fez que Ihe dessem terras e rendas; urna hist6ria da maneira pela qual a burguesia endividou a nobreza; uma hist6ria da maneira pela quai 0 fisco regio corroeu as rendas dos nobres, etc. Esses dois grandes discursos - 0 do escriviio e 0 do intendente, 0 do tribunal e 0 da reparti~iio publica - aos quais quer se opor a hist6ria da nobreza, niio tiveram a mesma cronologia: a luta contra 0 saber juridico e decerto mais forte, mais ativa e mais intensa na epoca de Boulainvilliers, isto e, entre 0 fim do seculo XVII e 0 inicio do seculo XVIII; a luta contra 0 saber economico decerto tomou-se muito mais violenta em meados do seculo XVIII, na epoca dos fisiocratas (0 grande adversano de du Buat-Nan~ay sera a fisiocracia25 ). De qualquer forma, trate-se do saber dos intendentes, das reparti~oes publicas, do saber economico, trate-se do saber do escriviio e do tribunal, 0 que esrn em questiio e 0 saber que se constitui do Estado ao Estado, 0 qual foi substituido por outra forma de saber, cujo perfil geral e a hist6ria. Mas a hist6ria de que? Ate entiio, a hist6ria sempre fora apenas a hist6ria que o poder contava sobre si mesmo, a historia que 0 poder mandava que contassem sobre ele: era a hist6ria do poder pe10 poder. Agora, a hist6ria que a nobreza come~a a contar contra 0 discurso do Estado sobre 0 Estado, do poder sobre o poder, e urn discurso que vai fazer, creio eu, explodir 0 proprio funcionamento do saber hist6rico. E ai que se desfaz, creio eu - e isso e importante - a dependencia entre, de urn lado, a narrativa da hist6ria e, do outro, 0 exercicio do poder, seu fortalecimento ritual, a formula~iio cheia de ima-
25. Cf. L. G. conde de Buat-Nan9ay, Remarques d'un Fran9ais, ou Examen impartial du livre de M. Necker sur lesfinances, Genebra, 1785.
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gens do direito publico. Com Boulainvilliers, com esse discurso da nobreza reaciomiria do final do seculo XVII, aparece urn novo sujeito da hist6ria. Isso quer dizer duas coisas. De uma parte, urn novo sujeito que fala: 10 alguem diferente que vai tomar a palavra na hist6ria, que vai contar a hist6ria; alguem diferente vai dizer "eu" e "nos" quando narrar a hist6ria; alguem diferente vai fazer 0 relato de sua pr6pria hist6ria; alguem diferente vai reorientar 0 passado, os acontecimentos, as direitos, as injusti<;as, as derrotas e as vitorias, em torno de si mesmo e de seu pr6prio destino. Deslocamento, em conseqiiencia, do sujeito que fala na hist6ria, mas deslocamento do sujeito da hist6ria no sentido de que houve uma modifica,ao no objeto mesmo da narrativa, em seu sujeito entendido como tema, objeto, se voces preferirem: ou seja, modifica,ao do elemento primeiro, anterior, mais profundo, que vai permitir definir em compara,ao a ele os direitos, as institui<;5es, a monarquia e a propria terra. Em resumo, do que se falara sera das peripecias de alguma coisa que passa sob 0 Estado, que perpassa 0 direito, que 10 a urn s6 tempo mais antigo e mais profunda do que as institui,oes. Esse novo sujeito da hist6ria, que 10 ao mesmo tempo quem fala na narrativa hist6rica e aquilo de que fala essa narrativa hist6rica, esse novo sujeito que aparece quando se descarta 0 discurso administrativo OU juridico do Estado sobre 0 Estado, 0 que e? E 0 que urn historiador daquela
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A na,ao, nessa epoca, nao 10 em absoluto algo que se definiria pela unidade dos territ6rios, por uma morfologia politica definida ou por um sistema de sujei,oes a urn imperium qualquer. A na,ao nao tern fronteiras, nao tern sistema de poder definido, nao tern Estado. A na,ao circula por tras das fronteiras e das institui,oes. A na,ao, ou melhor, "as" na,oes, ou seja, os conjuntos, as sociedades, os agrupamentos de pessoas, de individuos que tern em COmum urn estatuto, costumes, usos, uma certa lei particular - mas lei entendida muito mais como regularidade estatutaria do que como lei estatal. Edisto, destes elementos, que se trata na hist6ria. E sao estes elementos, 10 a na,ao, que vai tomar a palavra. A nobreza 10 uma na,ao em face de muitas outras na,oes que circulam no Estado e se opoem umas as outras. E dessa no,ao, desse conceito de na,ao que vai sair 0 famoso problema revolucionirio da na<;ao; e dai que VaG sair, e claro, os conceitos fundamentais do nacionalismo do seculo XIX; 10 dai tambem que vai sair a no,ao de ra,a; 10 dai, por fim, que vai sair a no,ao de classe. Com esse novo sujeito da hist6ria - sujeito que fala na hist6ria e sujeito falado na hist6ria - aparece tambem, 10 claro, toda uma nova morfologia do saber hist6rico, que dai em diante vai ter urn novo dominio de objetos, um referencial novo, todo urn campo de processos ate entao nao somente obscuros, mas tambem totalmente menosprezados. Remontam a superficie, como temMica capital da hist6ria, todos esses processos sombrios que se passam no nivel dos grupos que se enfrentam sob 0 Estado e atraves das leis. E a hist6ria sombria das alian,as, das rivalidades dos grupos, dos interesses disfar,ados ou traidos; a hist6ria das reversoes dos direitos, das transferencias das fortunas; a hist6ria das fidelidades e das trai,oes; a hist6ria das despesas, das extorsoes, das dividas, ,das velhacarias, dos esquecimentos, das inconsciencias, etc. E, de Dutro lado, urn saber que ted. como
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metodo niio a reativa,iio ritual dos atos fundamentais do po-
der, mas, ao contnmo, uma
decifra~ao
sistematica de suas
inten,Des maldosas e a rememora<;iio de tudo quanto ele tiver sistematicamente esquecido. E urn metodo de denuncia perpetua daquele que foi 0 mal na hist6ria. III niio se trata da hist6ria gloriosa do poder; e a hist6ria de seus submundos, de suas maldades, de suas trai,Des. Por isso mesmo, esse discurso novo (que tern, pois, urn sujeito novo e urn referencial novo) e acompanbado tambern por aquilo a que se poderia chamar urn pathos novo, inteiramente diferente do grande ritual cerimonial que acompanbava ainda obscuramente 0 discurso da hist6ria, quando se narravam as hist6rias de troianos, de germanos, etc. Ja niio e 0 carater cerimonial do fortalecimento do poder, mas urn pathos novo, que vai marcar com seu esplendor urn pensamento que sera, em grande parte, 0 pensamento de direita na Fran,a, ou seja: a paixiio quase er6tica pelo saber hist6rico; segundo, a perversiio sistematica de uma inteligencia interpretativa; terceiro, a obstina,iio da denUncia; quarto, por fim, a articula,iio da hist6ria baseada em algo que sera urn conluio, urn ataque contra 0 Estado, urn golpe de Estado ou urn golpe no Estado ou contra 0 Estado. o que eu quis Ihes mostrar niio foi deveras 0 que denominam a "hist6ria das ideias". Niio quis tanto Ihes mostrar como a nobreza havia representado quer suas reivindica,Des, quer seus inforttinios, atraves do discurso hist6rico, mas, realmente, como, em torno dos funcionamentos do poder, se produzira, se formara certo instrumento de luta - no poder e contra 0 poder; e esse instrumento e urn saber, urn saber novo (ou, em todo caso, parcialmente novo), que e essa nova forma da hist6ria. A evoca,iio da hist6ria sob essa forma vai ser, no fundo, creio eu, a cunha que a nobreza tentou cravar entre 0 saber do soberano e os conbecimentos da administra,iio; e isto a fim de poder desconectar a vontade
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absoluta do soberano da absoluta docilidade de sua administra,iio. Niio e, portanto, tanto como can,iio das velhas Iiberdades quanto como desconectador do saber-poder administrativo, que 0 discurso da hist6ria, que essa velha hist6ria dos gauleses e dos germanos, que a longa narrativa de C16vis e de Carlos Magno, viio ser instrumentos de luta contra o absolutismo. E por isso que esse tipo de discurso - que e portanto de origem nobiliaria e reacionaria - vai circular sobretudo, com muitas modifica,Des e conflitos de forma, justamente cada vez que urn grupo politico quiser, por uma ou outra raziio, atacar esse ponto de articula,iio entre 0 poder e 0 saber no funcionamento do Estado absoluto da monarquia administrativa. E e por isso que, naturalmente, esse mesmo tipo de discurso (ate em snas formula,Des), voces viio encontra-Io tanto no que se poderia chamar a direita quanto na esquerda, na rea,iio nobiliaria ou nos textos dos revolucionarios de antes ou depois de 1789. Eu Ihes cito simplesmente urn texto a prop6sito do rei injusto, do rei das maldades e das trai,Des: "Qual castigo", diz 0 autor que se dirige naquele momento a Luis XVI, "cres que merece urn homem tiio barbaro, infeliz herdeiro de urn magote de rapinas? Cres que a lei de Deus niio foi feita para ti? Ou es mais que urn homem para que tudo deva ser relacionado com tua gl6ria e subordinado it tua satisfa,iio? Quem es entiio? Pois, se niio es urn deus, es urn monstro!" Esta frase niio e de Marat, e do conde de Buat-Nan,ay, que a escrevia em 1778 a Luis XVF6. E ela sera repetida, textualmente, pelos revolucionarios dez anos depois. Voces compreendem por que, se efetivamente este novo tipo de saber hist6rico, esse novo tipo de discurso, desem-
26. L. G. conde de Buat-Nam;ay, Les maximes du gouvernement monarchique... ,op. cit., t. II, pp. 286-7.
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penha esse papel politico maior nO ponto de articula,ao entre 0 poder e 0 saber da monarquia administrativa, 0 poder regio nao pode deixar de tentar retomar, por sua vez, 0 controle dele. Da mesma forma que esse discurso circulava assim da direita para a esquerda, da rea,ao nobiliaria para urn projeta revoluciomirio burgues, do mesmo modo 0 poder regio tentau apropriar-se dele ou controla-Io. E e assim que, a partir de 1760, vemos 0 poder regio - 0 que prova 0 valor politico, a parada politica capital que havia nesse saber historico - tentar organizar esse saber historico, de certo modo recoloca-Io em seu jogo de saber e de poder, entre 0 poder administrativo e os conhecimentos que se formavam a partir dele. E assim que, a partir de 1760, vemos esbo,ar-se institui,oes que seriam, grosso modo, uma especie de Ministerio da Historia. Primeiro, por volta de 1760, cria,ao de uma Biblioteca das Finan,as que deve fornecer a todos os ministros de Sua Majestade os memoriais, informa,oes e esclarecimentos necessarios; em 1763, cria,ao de urn Arquivo de Documentos para aqueles que quisessem estudar a historia e 0 direito publico na Fran,a. Enfim, essas duas institui,oes sao reunidas, em 1781, numa Biblioteca de Legisla,iio _ notem bern os termos -, de Administra,iio, Histaria e Direito Publico. E urn texto urn pouco posterior diz que essa biblioteca e destinada aos ministros de Sua Majestade, itqueles que sao encarregados de alguma parte da administra,ao publica geral, e a eruditos e jurisconsultos que, encarregados pelo Chanceler ou pelo Ministro da Justi,a de trabalhos e de obras uteis a legisla,ao, it historia e ao publico, serao pagos it custa de Sua Majestade27 •
Esse Ministerio da Historia tinha urn titular, Jacob-Nicolas Moreau, e foi ele quem, junto com muitos outros, reuniu a imensa cole,ao" de documentos medievais e pre-medievais a partir dos quais, no inicio do seculo XIX, historiadores como Augustin Thierry e Guizot poderao trabalhar. Em todo caso, na epoca em que se ve aparecer essa institui,ao - esse verdadeiro Ministerio da Historia - seu sentido e bern claro: portanto, no momento em que os enfrentamentos politicos do secuIo XVIII passavam por urn discurso historico, na epoca em que, mais precisamente, mais profundamente, o saber historico era mesmo urna arma politica contra 0 saber do tipo administrativo da monarquia absoluta, a monarquia quis recolonizar de certo modo esse saber. Se voces preferirem, a criac;ao do Ministerio da Hist6ria parece ser uma concessao, a primeira aceita,ao implicita, pelo rei, de que existe mesmo urna materia historica que pode deixar claras, talvez, as leis fundamentais do reino. Ja e, dez anos antes dos Estados-Gerais, a primeira aceita,ao implicita de uma especie de constitui,ao. E, alias, e a partir desses materiais reunidos que os Estados-Gerais vao ser projetados e organizados em 1789: logo, primeira concessao do poder monarquico, primeira aceita,ao implicita de que algo pode imiscuir-se entre seu poder e sua administra,ao, e que sem a constitui,ao, as leis fundamentais, a representa,ao do povo, etc.; mas tambern reimplanta,ao desse saber historico, sob uma forma autoritaria, no proprio lugar em que quiseram utiliza-lo contra 0 absolutismo, ja que esse saber era urna arma para reocupar 0 saber do principe: entre seu poder, os conhecimentos e 0 exercicio da administra,1io publica. Foi ai, entre
27. Sabre essa questac, cf. J.-N. Moreau, Plan des travaux litteraires recherche, fa collection et Z'emploi des monuments de l'histoire et du droit public de fa monarchiefrant;aise, Paris, 1782.
28. Cf. l.·N. Moreau, Principes de morale, de politique et de droit publique pUlses dans "his/oire de notre monarch ie, au Discours sur I'histoire deFrance, Paris, 1777-1789,21 voL
ordonnes par sa Majeste pour fa
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o principe e a administra9ao publica, que se pos urn Ministerio da Historia para restabelecer de certo modo 0 vinculo, para fazer a historia funcionar no jogo do poder monarquico e de sua administra9iio. Entre 0 saber do principe e os conhecimentos de sua administra9ao publica, criou-se urn Ministerio da Historia que deveria, entre 0 rei e sua administra9ao, estabelecer, de urna forma controlada, a tradi9ao ininterrupta da monarquia. Eis urn pouco 0 que eu queria lhes dizer sobre a introdU9ao desse novo tipo de saber histOrico. Tentarei em seguida ver como, a partir dele e nesse elemento, aparece a luta entre as na90es, isto e, algo que vai tomar-se luta das ra9as e luta das classes.
AULA DE 18 DE FEVEREIRO DE 1976 Nariio e nafOes. - A conquista romana. - Grandeza e
decadencia dos romanos. - Da liberdade dos germanos segundo Boulainvilliers. - 0 vasa de Soissons. - Origens do feudalismo. - A Igreja, 0 direito, a lingua do Estado. - As Ires generalizQroes da guerra em Boulainvilliers: a lei da hist6ria e a lei da natureza; as instituiroes da guerra; 0 calculo das
larras.
~bservafoes sabre
a guerra.
Da ultima vez, tentei mostrar-lbes como, em tome da rea9ao nobiliana, houvera nao exatamente inven9ao do discurso historico, mas, antes, desagrega9ao de urn discurso historico preliminar que ate entao tivera COmo fun9ao - como dizia Petrarca 1 - cantar a louva9ao de Roma; que ate entiio fora interior ao discurso do Estado sobre si mesmo; que tivera como fun9aO manifestar 0 direito do Estado, fundamentar sua soberania, contar sua genealogia ininterrupta e ilustrar, com herois, fa9anhas, dinastias, a legitimidade do direito publico. Essa desagrega9ao da louva9ao de Roma, no final do seculo XVII e no inicio do seculo XVIII, deu-se de duas maneiras. De urna parte, pela evoca9ao, pela reativa9ao do fato da invasao - que ja, voces se lembram, a historiografia do seculo XVI havia objetado ao absolutismo monarquico. Recorda-se entao a invasao; introduz-se essa grande ruptura no tempo: a invasao dos germanos nos seculos V-VI, e a preteri9ao, e 0 momenta da ruptura do direito publico, 0
1. Cf. supra, aula de 28 de janeiro; cf. tambem aula de 11 de fevereiro.
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momenta em que as hordas que afluem da Germania poem termo ao absolutismo romano. De outra parte, a outra ruptura, 0 outro principio de desagrega9ao - que e, acho eu, mais importante - e a introdu9ao de urn novo sujeito da histaria, no duplo sentido de que se trata de uma nova area de objetos para a narrativa histarica e, ao mesmo tempo, de urn novo sujeito que fala na histaria. 18. nao e 0 Estado falando de si mesmo, e algo diferente falando de si, e esse algo diferente que fala na histaria e que se toma por objeto de sua narrativa histarica e essa especie de entidade nova que e a na9ao. A na9ao entendida, claro, no sentido lato da palavra. Eu tratarei de voltar a isso, pois e dessa n09ao de na9ao que vaG irradiar-se ou derivar n090es como as de nacionalidade, de ra9a, de classe. No seculo XVIII, essa n09ao deve ser entendida ainda nurn sentido muito ample. Everdade que, na EncyclopMie, voces encontrarn uma defini9ao que eu diria estatal da na9ao, porque os enciclopedistas dao quatro criterios a existencia da na,a0 2 Primeiro, deve ser urna grande multidao de homens; segundo, deve ser urna multidao de homens que habitam urn pais definido; terceiro, esse pais definido deve ser circunscrito por fronteiras; e, quarto, essa multidao de homens, assim estabelecida no interior de fronteiras, deve obedecer a leis e a urn governo (micos. Portanto, voces tern ai uma defini9ao, de certo modo urna fixa9ao da na,ao: de uma parte, nas fronteiras do Estado, de outra, na prapria forma do Estado. Eu creio que essa e uma defini9ao polemica que visava, se nao refutar, pelo menos excluir a defini9ao arnpla que reinava naquele momento, que encontramos tanto nos textos oriundos da nobre-
za quanta naqueles oriundos da burguesia, e que fazia dizer que a nobreza era uma na9ao, que a burguesia tarnbem era urna na9ao. Tudo isto teni urna importancia capital sob a RevolU9 aO, em especial no texto de Sieyes sobre 0 terceiro estado3, que tentarei comentar para voces. Mas essa no~ao vaga, imprecisa, mavel de na9ao, essa ideia de urna na9ao que nao e detida no interior das fronteiras mas e, ao contrario, uma especie de massa de individuos maveis de urna fronteira it outra, atraves dos Estados, sob os Estados, num nivel infraestatal, voces a encontrariio ainda par muito tempo no seculo XIX, em Augustin Thierry4, em Guizot5, etc. Portanto, temos urn novo sujeito da histaria, e eu vou tentar mostrar-lhes como e por que era a nobreza que havia introduzido assim, na grande organiza9ao estatal do discurso histarico, esse principio de desagrega,ao que era a na9ao como sujeito-objeto da nova histaria. Mas que e essa nova historia, em que ela consistia, como a vemos instaurar-se no inicio do seculo XVIII? Eu creio que a razao pela qual e nesse discurso da nobreza francesa que vemos desenvolverse esse novo tipo de histaria aparece clararnente quando 0 comparamos com 0 que era - no seculo XVII, urn seculo antes ou quase - 0 problema Ingles. A oposi9ao parlamentar e a OPOSi9ao popular inglesa, entre 0 fim do seculo XVI e 0 inicio do seculo XVII, tinham, no fundo, de resolver urn problema relativarnente simples. Tratava-se, para elas, de mostrar que havia, na monarquia inglesa, dois sistemas de direito opostos e ao mesmo tempo duas na,oes. De urn lado, 0 sistema de direito cor-
2. "Palavra coletiva que se usa para exprimir uma quantidade considefavel de pove, que habita certa area de pais, encerrada em certos limites e que obedece ao mesmo govemo" (art. "Nai;iio", in Encyclopedie, au Dictionnaire raisonne des sciences, des arts et des metiers, Lucca, 1758,1. XI, pp. 29-30).
3. E.-J. Sieyes, Qu'est-ce que Ie Tiers-Etat?, ed. cit. Sabre Sieyes, ef. infra, aula de 10 de mania. 4. Sabre Augustin Thierry, ver a mesma aula. 5. Sabre Fram;ois Guizot, ver a mesma aula.
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respondente a na,ao normanda: nesse sistema de direito encontramos bloqueadas, de certo modo urna com a outra, a aristocracia e a monarquia. Essa na,ao traz em si urn sistema de direito que e 0 do absolutismo, e ela 0 imp6s pela violencia da invasao. Logo, monarquia e aristocracia (Qireito de tipo absolutista e invasao). E tratava-se de valorizar, contra esse conjunto, urn outro, 0 do direito saxao: 0 direito das liberdades fundamentais e que acabava sendo a urn so tempo 0 direito dos habitantes mais antigos, de urn lado, e ao mesmo tempo 0 direito reivindicado pelos mais pobres, em todo caso por aqueles que nao pertenciam nem a familia real nem as familias aristocraticas. Portanto, dois grandes conjuntos, e tratava-se de valorizar 0 mais antigo e mais liberal, em detrimento do mais novo que trouxera - com a invasao - 0 absolutismo. Era urn problema simples. o problema da nobreza francesa urn seculo depois, no final do seculo XVII e no inicio do seculo XVIII, era evidentemente muito mais complicado, ja que se tratava, para ela, de lutar em duas frentes. De urna parte, contra a monarquia e suas usurpa,oes do poder, de outra, contra 0 terceiro estado, que se aproveita justamente da monarquia absoluta para invadir, por sua vez e em seu proveito, os direitos da nobreza. Logo, luta em duas frentes, que nao pode ser travada da mesma forma nurna e na outra. Contra 0 absolutismo da monarquia, a nobreza vai valorizar as liberdades fundamentais que se pretende sejam as do povo germano ou franco que invadiu a Galia em dado momento. Logo, contra a monarquia, valorizar as liberdades. Mas, contra 0 terceiro estado vao valorizar ao contrario, os direitos ilimitados devidos Ainvasao. Isto' quer dizer que, de urn lado - contra 0 terceiro estado -, sera preciso ser de certo modo os vencedores absolutos cujos direitos nao sao limitados; mas, do outro lado - contra a monarquia -, sera preciso valorizar urn direito quase constitucional que e 0 das liberdades fundamentais.
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Dai a complexidade do problema e dai, acho eu, 0 carater infinitamente mais elaborado da analise que voces encontram em Boulainvilliers, se comparada com aquela que encontravamos varias decadas antes. Mas eu yOU considerar Boulainvilliers simplesmente a titulo de exemplo, ja que, de fato, se trata de todo urn nueleo, de toda urna constela,ao de historiadores da nobreza que come,am a formular suas teorias na segunda metade do seculo XVII (0 conde d'Estaing em cerca de 1660-1670, por exempl06), e isso ira ate 0 conde du Buat-Nan,ay7, no limite ate 0 conde de Montlosier8 no momento da Revolu,ao, do Imperio e da Restaura,ao. 0 papel de Boulainvilliers e importante, ja que foi ele quem tentou retranscrever os relatorios dos intendentes feitos para 0 duque de Borgonba, e ele pode, assim, servir-nos de ponto de referencia e de perfil geral valido provisoriamente para todo 0 mund09 . Como Boulainvilliers faz sua analise? Primeira questao: quando os francos penetram na Galia, que encontram a sua frente? Nao encontram, evidentemente, aquela patria perdida para onde queriam ter voltado por causa de sua riqueza e de sua civiliza,ao (como queria a velha narrativa hist6rico-Iendaria do seculo XVII, segundo a qual os francos, gauleses que haviam 6. Conde Joachim d'Estaing, Dissertation sur fa noblesse d'extraction op. cit.
7. Sabre du Buat~Nan~ay, cf. supra, aula de 10 de mar90. 8. Sabre Montlosier, ver a mesma aula. 9. A analise do trabalho hist6rico de Boulainvilliers que M. Foucault desenvolve nesta aula (e na seguinte) Ii: fundamentada nos textos ja assinalados nas notas 21-22 da aula de 11 de fevereiro, em especial: Memoires sur l'histoire du gouvernement de fa France, in Etat de fa France... , op. cit.; Histoire de l'ancien gouvernement de fa France... , op. cit.; Dissertation sur fa nobfessefranfoise servant de Preface aux Memoires de fa maison de eroi et de Boufainvilliers, in A. Devyver, Le sang epure... , op. cit.; Memoires presentes a Mgr. Ie due d'Orfeans ... , op. cit.
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deixado a patria, teriam almejado em dado momento voltar para ela). A Galia que Boulainvilliers descreve nao e em absoluto uma Galia feliz, urn tanto arcadica, que teria esquecido as violencias de Cesar na fusao feliz de urna unidade novamente constituida. 0 que os francos encontrarn, quando entram na Galia, e urna terra de conquista. E terra de conquista quer dizer que 0 absolutismo romano, 0 direito regio ou imperial instaurado pelos romanos, nao era de modo algum, nessa Galia, urn direito aclimatado, aceito, acatado, que formaya urn so corpo com a terra e 0 povo. Esse direito era urn fato de conquista, a Galia esta sujeitada. 0 direito que nela reina nao e em absoluto urna soberania consentida, e um fato de domina9ao. E e 0 proprio mecanismo dessa domina9ao, que durou ao longo de toda a ocupa9ao romana, que Boulainvilliers tenta situar, valorizando certo numero de fases. De inicio os romanos, entrando na Galia, teriam tido como primeiro cuidado desannar, e claro, aquela aristocracia guerreira que fora a unica for9a militar a se opor realmente a eles; desarmar a nobreza, rebaixa-la tambem politica e economicamente, e isto mediante (ou, em todo caso, em correla9ao com) uma eleva9ao artificial da rale, a quem lisonjeiarn, diz Boulainvilliers, com a ideia de igualdade. Isto quer dizer que, mediante um procedimento proprio de todos os despotismos (e que se vira, alias, desenvolver-se na republica romana desde Mario ate Cesar), faz-se os inferiores acreditarem que um pouco mais de igualdade em seu proveito dara muito mais liberdade a todos. E, de fato, gra9as a essa "igualitariza9ao", chega-se a um governo despotico. Da mesma forma, os romanos tomararn a sociedade gaulesa igualitaria ao rebaixar a nobreza, ao elevar a rale, e puderam assim estabelecer seu proprio cesarismo. Essa e a primeira fase, que se conclui, sob Caligula, com 0 massacre sistematico dos antigos nobres gauleses que resistiarn tanto aos romanos quanto a esse rebaixarnento que caracterizava a politica
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deles. A partir dai vemos os romanos constituirem para si uma certa nobreza de que necessitavam uma nobreza nao militar - que poderia ter-se oposto a eles '-, mas uma nobreza ailininistrativa, destinada a ajuda-Ios em sua organiza9ao da Gaha romana e, sobretudo, em todos os procedimentos pelos quais vao servir-se da riqueza da Galia e garantir um sistema fiscal proveitoso para eles. Cria-se assim uma nova nobreza, urna nobreza civil, juridica, administrativa, que tem como caracteristica, em primeiro lugar, urna pratica agu9ada fina e habil do direito romano ~, em segundo lugar, 0 co: nheclmento da lingua romana. E em torno desse conhecimento da lingua e da pralica do direito que aparece uma nova nobreza. Essa descri9ao permite dissipar 0 velho milo do seculo XVII,. da Galia romana feliz e arcadica. A refuta9ao desse mlto e, eVldentemente, uma maneira de dizer ao rei da Franc;a: se reivindicais 0 ahsolutismo romano, na verdade nao reivindicais um direito fundamental e essencial na terra da Galia, mas uma historia precisa e particular, cujos procedimentos nao sao particularmente honrosos. Em todo caso e no interior de urn mecanismo de sujeic;ao que vas vas in~e ris. E, alias, esse absolutismo romano, que foi implantado por certo numero de mecanismos de domina9ao, foi finalmente derrubado, varrido, vencido, pelos germanos - menos, alias, pelos acasos de uma derrota militar do que pela nec."ssldade de urna degrada9ao interna. E af que comep entao a segunda parte da analise de Boulainvilliers - 0 momento em que ele analisa os efeitos reais da domina9ao romana sobre a Galia. Ao entrar na Galia, os germanos (ou os francos) encontraram uma terra de conquista que era a estrutura militar da Galia*' Dai em diante, os romanos nao ti* "que era a estrutura militar da Galia" nao figura no manuscrito; em seu lugar: "e urn pais arruinado pelo absolutismo".
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nham mais nada para poder defender a Galia contra as invasoes que vinham do outro lado do Reno. E - urna vez que ja nao tinham urna nobreza - para defender a terra gaulesa que ocupavam, foram obrigados a recorrer a mercenarios, ou seja, a homens que nao combatiam por si mesmos ou para defender sua terra, mas por urn soldo. A existencia de urn exercito mercenano, de urn exercito paga, implica, claro, urn fisco enorrne. Portanto, vai ser preciso extrair da Galia nao s6 os mercenarios, mas tambem com que paga-los. Dai duas coisas. Primeiro: aurnento consideravel dos impostos em moeda. Segundo: eleva9ao exagerada dessas moedas ou ainda, como diriamos hoje, desvaloriza9ao. Dai urn fenomeno duplo: de urn lado, a moeda perde 0 valor por causa dessa desvaloriza9ao e, mais curiosamente ainda, depois disso ela fica cada vez mais rara. Essa ausencia de moeda vai acarretar urn arrefecimento dos neg6cios e urn empobrecimento geral. E nesse estado de desola9ao global que a conquista franca vai ocorrer, ou melhor, vai ser possivel. A permeabilidade da Galia a invasao franca esta ligada a essa ruina do pais, cujo principia era, pois, a existencia de trapas mercemirias. Voltarei mais tarde a esse tipo de analise. Mas 0 que e interessante e se pode assinalar de imediato e que a analise de Boulainvilliers ja nao e em absoluto do mesmo tipo daquela que ainda se podia encontrar algurnas decadas antes, quando a questao forrnulada era essencialmente a do direito publico, ou seja, esta: 0 absolutismo romano, com seu sistema de direito, subsiste de direito mesmo depois da invasao franca? Os francos aboliram, legitimamente ou nao, 0 tipo de soberania romana? Tal era 0 prpblema hist6rico que se forrnulava, em linhas gerais, no seculo XVII. Agora, 0 problema, para Boulainvilliers, ja nao e em absoluto saber se 0 direito permanece ou nao permanece, se pertence ao direito
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de urn direito substituir-se a outro direito. Ja nao sao em absoluto estes os problemas forrnulados. 0 problema nao e o de saber se, no fundo, 0 regime romano ou 0 regime franco eram legitimos ou nao. 0 problema e saber quais foram as causas intemas da derrota, ou seja, em que 0 governo romano (legitimo ou nao, afinal de contas nao e esse 0 problema) era logicamente absurdo ou politicamente contradit6rio. Esse famoso problema das causas da grandeza e da decadencia dos romanos, que vai ser urn dos grandes lugarescomuns da literatura hist6rica ou politica do seculo XVIIIIO, e que Montesquieu ll retomara depois de Boulainvilliers, tern urn sentido muito preciso. E que se lan9a ai, pela primeira vez, urna analise de tipo economico-politico, quando s6 houvera, ate entao, 0 problema da preteri9ao, da mudan9a do direito, da mudan9a de urn direito absolutista para urn direito de tipo gerrnanico, isto e, de urn modelo totalmente diferente. E ai que 0 problema das causas da decadencia dos romanos se torna 0 modelo mesmo de urn novo tipo de analise hist6rica. Isso e tudo quanto a urn primeiro conjunto de analises que podemos encontrar em Boulainvilliers. Eu sistematizo urn pOlleD tudo i880, mas e para tentar ir urn pOlleD mais depressa. Depois do problema da Galia e dos romanos, 0 segundo problema, ou grupo de problemas, que tomarei como exem-
10. Essa literatura comeo:;a com Maquiavel CDiscorsi sopra fa prima deca di Tita Livia [1513-1517], Floren<;a, 1531), prossegue com Bossuet (Discours sur ['Histoire universelle, Paris, 1681), com E. W. Montagu (Reflections on the Rise and Fall of the Ancient Republics, Londres, 1759), com A. Ferguson (The History ofthe Progress and Termination of the Roman Republic, Londres, 1783) e termina com a obra de Edward Gibbon, History of the Decline and Fall ofthe Roman Empire, Londres, 1776~ 1788,6 vol. 11. Charles~Louis de Montesquieu, Considerations sur fes causes de fa grandeur des Romain.~ et de leur decadence, Amsterdam, 1734.
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plo das amilises de Boulainvilliers, e 0 que ele propoe a respeito dos francos: quem sao esses francos que entram na Galia? Esse e 0 problema redproco daquele de que acabo de Ihes falar: 0 que faz a for,a desses homens ao mesmo tempo incultos, barbaros, relativamente poueo numerosos, e que puderam assim, efetivamente, entrar na Galia e destruir 0 mais formidavel dos imperios que a historia conhecera ate entao? Portanto, trata-se de mostrar a for,a dos francos, em face da fraqueza dos romanos. A for,a dos francos primeiro: e que eles se beneficiam daquilo que os romanos haviam acreditado dever dispensar, isto e, da existencia de urna aristocracia guerreira. A sodedade franca e inteiramente organizada em torno de seus guerreiros que, embora tenham atras de si toda uma serie de homens que sao servos (ou, em todo caso, servidores que dependem dos clientes), sao no fundo 0 linico povo franco, uma vez que 0 povo germano e composto essencialmente de Leu/e, de leudes, de homens que sao todos eles homens de armas; 0 contrario, pois, dos mercemirios. De Dutro lado, esses homens de armas, essas aristocracias guerreiras, atribuem-se urn rei, mas que s6 tern como fun,ao solucionar contendas ou problemas de justi,a em tempo de paz. Os reis nao passam de magistrados civis, nada mais. Alem disso, os reis sao escolhidos mediante urn consentimento comum pelos grupos dos leudes, pelos grupos dos homens de armas. So no momenta das guerras quando se necessita de urna organiza,ao forte e de urn poder unico - e que se atribuem urn chefe, cuja chefia obedece a prindpios totalmente diferentes e e absoluta. 0 chefe e urn chefe de guerra, que nao e for,osamente 0 rei da sociedade civil mas que, em certos casos, pode se-lo. Alguem como Clovis - de uma [...] importfmcia historica - era a urn so tempo 0 irbitro civil, 0 magistrado civil escolhido para solucionar as contendas, e depois tambem 0 chefe de guerra.
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Em todo caso, temos, portanto, uma sociedade em que 0 porler e minima, ao menos em tempo de paz, e por conseguinte, a liberdade maxima. Ora, 0 que e essa liberdade de que se beneficiam as pessoas dessa aristocracia guerreira? Essa liberdade nao e em absoluto uma liberdade de independencia, nao e em absoluto essa liberdade pela qual, fundamentalmente, urn respeita os outros. A liberdade de que se beneficiam os guerreiros germanos era essencialmente a liberdade do egoismo, da avidez, do gosto pela batalha, do gosto pela conquista e pela rapina. A liberdade desses guerreiros nao e a da tolerauda e da igualdade para todos; e uma liberdade que so pode se exercer mediante a domina,ao. Isto quer dizer que, longe de ser uma liberdade do respeito, e uma liberdade da ferocidade. E urn dos sucessores de Boulainvilliers, Freret, fazendo a etimologia da palavra "franco", dira que ela nao quer absolutamente dizer "livre", no sentido em que a entendemos agora, mas essencialmente "feroz",jerox. A palavra "franco" tern exatamente as mesmas conota<;oes que a palavra latina ferox, tern todos os sentidos dela, diz Freret, favoraveis e desfavoraveis. Ela quer dizer "altivo, intrepido, orgulhoso, cruel"12. E e assim que come,a 0 famoso grande retrato do "barbaro" que vamos encontrar ate 0 fim do secu10 XIX e, claro, em Nietzsche, [em quem] a liberdade sera equivalente a urna ferocidade que e gosto pelo poder e avidez determinada, incapacidade de servir mas desejo sempre pronto a sujeitar, "costumes impolidos e grosseiros, odio pelos nomes, pela lingua, pelos costumes romanos. Amador da liberdade, valente, ligeiro, infiel, avido de ganhos, impa-
12. Cf. N. Freret, De l'origine des Franr;ais et de leur etablissement dans fa Gaule, in (Euvres completes, Paris, 1796-1799, t. V, Paris, ano VII, p. 202.
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ciente, inquieto"13*, etc.: sao esses os epitetos que Boulainvilliers e seus sucessores utilizam para descrever esse novo
grande barbaro louro, que faz assim, atraves de seus textos, sua entrada solene na histaria europeia, quero dizer na historiografia europeia. Esse retrato da grande ferocidade loura dos germanos permite explicar, primeiramente, como os guerreiros francos, que entraram na G:ilia, puderam e deveram necessariamente recusar qualquer assimila,ao com os galo-romanos, em especial, qualquer sujei,ao a esse direito imperial. Eles eram livres demais, quero dizer altivos demais, arrogantes demais, etc., para nao impedir 0 chefe de guerra de tornar-se soberano no sentido romano da palavra. Erarn avidos demais de conquista e de domina,ao, em sua liberdade, para nao se apoderarem, eles proprios, a titulo individual, da terra gaulesa. De sorte que 0 rei, que era [...] seu chefe de guerra, nao se tornou, com a vitoria dos francos, proprietario das terras da Gilia, mas cada um dos guerreiros se beneficiou, ele praprio e diretamente, da vitoria e da conquista; reseryou para si uma parte das terras da Galia. Remotamente e esse - nao me detenho nos detalhes, que sao complicados, na analise de Boulainvilliers - 0 inicio do feudalismo. Cada urn tomou efetivamente um peda,o de terra; 0 rei sa tinha 13. Cf. F. Nietzsche, Zur Genealogie der Moral; eine Streitschrifi, Leipzig, 1887, Erste Abhandlung: "Gut und Bose", "Gut und Schlecht", § 11; Zweite Abhandlung: "Schuld", "Schlechtes Gewissen und Verwandtes" §§ 16, 17 e 18 (tract. fr.: La genealogie de fa morale. Un ecrU polemique, Paris, Gallimard, 1971); vet tambem Morgenrote: Gedanken iiber die moralischen Vorurtheile, Chemnitz, 1881, Zweitw Buch, § 112 (tract. fr.: Aurore. Pensees sur les pn?juges moraux, Paris, Gallimard, 1970). Cf. a ciw;ao de Boulainvilliers in A. De'Y)"Ver, Le sang epure..., op. cit., p. 508: "Eles eram, alias, muito amantes da liberdade, valentes, ligeiros, infieis, avidos do ganho, inquietos, impacientes: e assim que os antigos autores os descrevem." * Passagem entre aspas no manuscrito.
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as terras dele, nenhum direito, por conseguinte, do tipo da soberania romana, sobre 0 conjunto das terras da Gilia. E, tornando-se assim proprietirios independentes e individuais, e claro que nao havia razao nenhuma para que eles aceitassem, acima deles, urn rei que teria sido, de certo modo, ° herdeiro dos imperadores romanos. E e aqui que come,a a histaria do vaso de Soissons, ou melhor, ai ainda, a historiografia do vaso de Soissons. Qual e essa histaria? Voces sem duvida a aprenderarn em seus livros escolares. E uma inven,ao de Boulainvilliers, de seus predecessores e de seus sucessores. Pin,ararn em Gregoire de Tours essa historia que depois vai ser um dos lugares-comuns de discussoes histaricas infinitas. Quando, depois de nao me lembro qual batalha 14 , Clovis reparte 0 saque, ou melhor, preside enquanto magistrado civil it distribui,ao do saque, voces sabem que diante de certo vaso ele diz: "Este, eu ° queria!"; mas urn guerreiro levanta-se e diz: "Nilo tens direito a esse vaso, pois, mesmo sendo rei, tu partilharas 0 saque com os outros. Nao tens nenhurn direito de apreensao, nao tens nenhum direito de posse primeira e absoluta sobre 0 que foi ganho na guerra. 0 que foi ganho na guerra deve ser dividido em propriedades absolutas entre os diferentes vencedores, e 0 rei nao tern nenhurna preeminencia." Ai esta a primeira fase da histaria do vaso de Soissons. Voltaremos it segunda depois. Essa descri,ao de uma comunidade germanica feita por Boulainvilliers permite, portanto, explicar como os germanos foram absolutamente recalcitrantes it organiza,ao romana do poder. Mas tarnbem permite explicar como e por que essa conquista da Galia, povoada erica, por esse povo pobre e pouco numeroso, p6de, apesar de tudo, perdurar. Ai tam-
14. Trata-se da tomada de Soissons contra 0 romano Siagrio em 486.
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bem a compara9ao com a lnglaterra e interessante. Voces se lembram de que os ingleses estavam igualmente diante deste problema: como e possivel que sessenta mil guerreiros normandos tenham conseguido instalar-se na lnglaterra e resistir? Boulainvilliers tem 0 mesmo problema. Mas eis como ele 0 resolve, por sua vez. Ele diz isto: se os francos puderam, com efeito, resistir nessa terra conquistada, e porque tomaram como primeira precau9ao nao s6 nao dar, mas confiscar as armas dos gauleses, de maneira que permanecesse, bem isolada no meio do pais, urna certa casta militar nitidamente diferenciada das outras, casta militar que e urna casta inteiramente germauica. Os gauleses ja nao tem armas, mas, em compensa9ao, vao deixar-Ihes a ocupa9ao real de
suas terras, ja que, precisamente, os germanos ou os francos nao vao ter outra ocupa9ao alem de guerrear. Uns, portanto, guerreiam, os outros ficam em suas terras e as cultivam. Pedem-lhes simplesmente certo tributo que deve permitir aos germanos assegurar sua fun9ao militar. Tributos que, por certo, nao sao leves, mas sao IDuito menos pesados do que os impostos que os romanos tentavam coletar. Muito menos pesados porque quantitativamente menos importantes e, sobretudo, porque, quando os romanos exigiam para seus mercenarios urn imposto em moeda dos camponeses, os camponeses nao podiam da-Io. Agora s6 pedem tributos em especie que sempre podem fomecer. Nesta medida, entre os camponeses gauleses, aos quais s6 se pedem tributos em especie, e essa casta guerreira, ja nao M hostilidade. Portanto, temos assim urna sorte de Galia franca feliz, estivel, muito menos pobre do que era a Galia romana no fim da ocupa9ao romana. Uns diante dos outros, gauleses e francos estavam - diz Boulainvilliers - felizes com a posse tranqiiila do que tinham: 0 franco com 0 engenho do gaules e este com a seguran9a que 0 primeiro Ihe proporcionava. Temos ai 0 nucleo daquilo que Boulainvilliers, como voces sabem,
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isto e, 0 feudalismo como sistema historico-jurique caracteriza a sociedade, as sociedades europeias, desde os seculos VI, VII, VIII ate 0 seculo XV aproximadamente. Esse sistema do feudalismo nao havia sido isolado nem pelos historiadores nem pelos juristas, antes das analises de Boulainvilliers. E essa felicidade de uma casta militar sustentada e mantida por urna popula9ao camponesa que lhe paga tributos em produtos agricolas que e, de certo modo, o clIma dessa unidade juridico-politica do feudalismo. Terceiro conjonto de fatos que Boulainvilliers analisa e que eu gostaria igualmente de isolar, pois sao importantes: e a serie dos fatos pelos quais essa nobreza, ou melhor, essa aristocracia guerreira, assim instalada na Galia, pOde finalmente perder 0 essencial de seu poder e de sua riqueza e ver-se, afinal de contas, refreada pelo poder monarquico. A analise que Boulainvilliers faz e aproximadamente a seguinte: 0 rei dos francos era portanto, no inicio, urn rei de dupla conjuntura, no sentido de que, enquanto chefe de guerra, s6 fora designado durante 0 tempo da guerra. 0 carater absoluto de seu poder, por conseguinte, so valia enquanto durava a propria guerra. De outra parte, enquanto magistrado civil, ele DaD pertencia necessariamente a uma (mica e mesma dinastia: nenhum direito de sucessao; tinha de ser eleito. Ora, esse soberano, esse chefe de dupla conjuntura i~ventou:
dICD
v~i, s~
tornar, pOlleD a pOlleD, 0 monarca permanente, here-
dllarlO e absoluto, que a maior parte das monarquias europeias - em especial a monarquia francesa - conheceu. Como se deu essa transforma9ao? Primeiro, pelo proprio fato da conquista, pelo proprio sucesso militar, pelo fato de que um exercito pouco numeroso se implantara num pais imenso que, era de se supor, seria recalcitrante, pelo menos inicialmente. Logo, e normal que 0 exercito franco tenha ficado de certo modo, em pe de guerra nessa GaIia que acabava d~ ocupar. E, por essa razao, aquele que so era chefe durante a
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dura9ao da guerra ficou, por causa da ocupa9ao, ao mesmo tempo chefe de guerra e chefe civil. Portanto, a organiza9ao militar se mantem pelo fato mesmo da ocupa9ao. Ela se mantern, mas nao sem problemas, nao sem dificuldades, nao sem revoltas de parte justamente dos francos, dos guerreiros francos, que nao aceitam que a ditadura militar se prolongue de certo modo ate na paz. De sorte que 0 rei, para manter seu poder, tambem foi obrigado a recorrer de novo a mercenanos, que ele vai arrebanhar precisamente nesse povo gaules que deveria ter deixado desarmado, ou ainda no exterior. Em todo caso, eis que a aristocracia guerreira vai come9ar a ver-se imprensada entre urn poder mom\rquico que tenta manter seu carater absoluto e urn povo gaules que e chamado pouco a pouco pelo proprio monarca para sustentar seu poder absoluto. E ai gue encontramos 0 segundo episodio do vaso de Soissons. Eo momenta em que Clovis, que nao havia engolido a proibi9ao que the fora feita de tocar no vaso, passando uma revista militar, reconhece 0 guerreiro que 0 havia impedido de par a mao no dito cujo. Ent1io, pegando seu grande machado, 0 born Clovis racha 0 cranio do guerreiro, dizendolhe: "Lembra-te do vasa de Soissons." Temos ai, exatamente, o momenta em que aquele que devia ser apenas urn magistrado civil - Clovis - mantem a forma militar do seu poder, mesmo para resolver a questao civil. Serve-se justamente de urna revista militar, ou seja, de urna forma que manifesta 0 carater absoluto de seu poder, para resolver urn problema que deveria ser apenas urn problema civil. 0 monarca absoluto nasce, pois, no momenta em que a forma militar do poder e da disciplina come9a a organizar 0 direito civil. A segunda opera9ao, mais importante, pela qual 0 poder civil vai assurnir a forma absoluta e esta: de urn lado, pois, o poder civil recorre ao povo gaules para formar urn bando de mercenarios. Mas constitui-se outra alian9a, que dessa feita e a alian9a entre 0 poder monarquico e a antiga aristo-
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cracia gaulesa. Eis como Boulainvilliers faz sua analise. Ele diz isto: no fundo, quando os francos chegaram, quais foram, entre os gauleses, as camadas da popula9ao que mais sofreram? Nao tanto, pois, os camponeses (os quais, ao contrfuio, viram seus impostos em moeda se transformarem em tributos em especie), mas a aristocracia gaulesa, cujas terras foram, claro, confiscadas pelos guerreiros germiinicos e francos. Essa aristocracia e que acabou sendo efetivamente espoliada. Ela sofreu com isso, e 0 que e que ela fez? Ja nao lhe restava senao urn tinico refUgio, porquanto ela ja nao tinha suas terras e 0 proprio Estado romano havia desaparecido; tinha urn Unico abrigo, que era a Igreja. Foi assim que a aristocracia gaulesa refugiou-se na Igreja; ela nao so desenvolveu 0 aparelho da Igreja, mas ai, atraves da Igreja, ela, de urn lado, aprofundou, estendeu sua influencia sobre o povo mediante todo 0 sistema de cren9as que ela fazia circular; ela desenvolveu igualmente, na Igreja, seus conhecimentas de latim e, terceiro, nela cultivou 0 direito romano que era urn direito de forma absolutista. De sorte que, ine: vitavelmente, quando os soberanos francos tiveram, de urna parte, de apoiar-se no povo contra a aristocracia germiinica e, de outra, de fundar urn Estado (em todo caso uma monarquia) do tipo romano, que melhores aliados eles poderiam encontrar do que aqueles homens que tinham tanta influencia sobre 0 povo, de urn lado, e que, de outro com 0 latim conheciam tao bern 0 direito romano? Foram' naturalment~ os aristocratas gauleses, foi a nobreza gaulesa refugiada na Igreja que se tornou a aliada natural dos novos monarcas , no mesma momento em que estes tentavam constituir seu absolutismo. E foi assim que a Igreja, com 0 latim, com 0 direito romano, com a pratica judiciaria, tornou-se a grande aliada da monarquia absoluta. Ha em Boulainvilliers, como voces veem, todo urn destino importante que e dado ao que se poderia chamar de lin-
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gua dos saberes, 0 sistema lingua-saber. Ele mostra como a aristocracia guerreira foi posta it margem por urna alian9a entre a monarquia e 0 povo, por intermedio da Igreja, do latim e da pratica do direito. 0 latim tomou-se lingua de Estado, lingua de saber e lingua juridica. E, se a nobreza perdeu seu poder, foi na medida em que pertencia a outro sistema lingiiistico. A nobreza falava as linguas germanicas, nao conbecia 0 latim. De sorte que, no momenta em que todo 0 novo sistema de direito estava sendo implantado par ordena90es em latim, ela nem sequer compreendia 0 que Ihe estava acontecendo. E compreendia-o tao pouco - e era tao importante que nao compreendesse - que justamente a Igreja, de um lado, e 0 rei, do outro, fizeram todo 0 possivel para que a nobreza continuasse ignorante. Boulainvilliers faz toda uma historia da educa9ao da nobreza mostrando que, se a Igreja, por exemplo, insistiu tanto na vida no alem como a unica razao de estar aqui neste mundo, foi essencialmente para fazer as pessoas bem-educadas acreditarem que, de fato, nada do que se passava aqui era importante e que 0 essencial do destino delas devia passar-se do outro lado. E foi assim que aqueles germanos, tao itvidos de possuir e de dominar, aqueles grandes guerreiros louros tao apegados ao presente, foram aos poucos sendo transformados em pessoas tipo cavaleiros, tipo cruzados, que negligenciavam inteiramente 0 que se passava em suas proprias terras e em seu proprio pais, e se encontraram espoliados de sua fortuna e de seu poder. As Cruzadas, como grande caminbada para 0 alem, sao para Boulainvilliers a expressao, a manifesta9ao do que se passava quando essa nobreza ficou inteiramente voltada para 0 mundo do alem, enquanto no lado de ca, au seja, em suas proprias terras, no momento em que estavam em Jerusalem, que e que se passava? 0 rei, a Igreja, a antiga aristocracia gaulesa manipulavam as leis em latim que deviam espolia-Ios de suas terras e de seus direitos.
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Oai 0 apelo de Boulainvilliers - a que? Essencialmente - e isto percorre toda a sua obra -, nao e justamente, como era 0 caso, por exemplo, dos historiografos parlamentares (e sobretudo populares) ingleses do seculo XVII, it revolta dos nobres espoliados de seus direitos. Ao que a nobreza e convidada e, essencialmente, it reabertura do saber: reaberlura de sua propria memoria, tomada de consciencia, recupera9ao do conbecimento e do saber. E a isso que Boulainvilliers convida, em primeira insmncia, a nobreza: "V6s nao recuperareis 0 poder se nao recuperardes 0 estatuto dos saberes de que fostes espoliados - ou melhor, que vos jamais havieis procurado possuir. Pois, de fato, sempre havieis combatido sem vos dar conta de que a partir de certo momento a verdadeira batalha, pelo menos no interior da sociedade, ja nao passava pelas armas e sim pelo saber." Nossos ancestrais - diz Boulainvilliers - tiveram a vaidade caprichosa de 19norar 0 que eram. Houve urn esquecimento perpetuo de si mesmo, que parece provir da imbecilidade ou do feiti90. Retomar consciencia de si, descobrir as fontes do saber e da memoria significa denunciar todas as mistifica90es da historia. E sera retomando consciencia de si inserindo-se de novo na trama do saber, que a nobreza ~odera voltar a ser urna for9a, colocar-se como sujeito da historia. Colocar-se como urna for9a na historia implica, pois, como
primeira fase, retomar consciencia de si e reinserir-se na ordem do saber. Ai esta certo nllinero de temas que eu isolei nas obras consideraveis de Boulainvilliers e que me parecem introduzir urn tipo de analise que evidentemente vai ser fundamental para todas as analises historico-politicas desde 0 seculo XVIII ate hoje. Importancia dessas analises, por que? Primeiro pe!a primazia gera! que nelas concedida it guerra. Mas eu creio que 0 que e sobretudo importante, uma vez que a primazia concedida it guerra nessas analises e a forma que a
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narrativa de guerra assume nelas, e 0 papel que Boulainvilliers faz essa narrativa de guerra desempenhar. Pois eu creio que para utilizar, como ele faz, a guerra como analisador gera! da sociedade, Boulainvilliers faz a guerra passar por tres generaliza~5es sucessivas ou sobrepostas. Primeiro, ele a generaliza com rela9ao aos fundamentos do direito; segundo, ele a generaliza com rela9ao a forma da batalha; terceiro, ele a generaliza com rela9ao ao fato da invasao e ao outro fato reciproco da invasao que e a revolta. Sao essas tres generaliza90es que agora eu gostaria de situar um pouco. Primeiro, generaliza9ao da guerra com rela9ao ao direito e aos fundamentos do direito. Nas analises anteriores, as dos protestantes franceses do seculo XVI, dos parlamentaristas franceses do seculo XVII e dos parlamentaristas ingleses da mesma epoca, a guerra e essa especie de episodio de ruptura que suspende 0 direito e 0 subverte. A guerra e 0 barqueiro que permite ir de um sistema de direito para outro. Em Boulainvilliers, a guerra nao desempenha esse papel, a guerra nao interrompe 0 direito. A guerra, na verdade, en-
valve inteiramente
0
direito, envolve mesmo, inteiramente,
o direito natural, a ponto de deixa-Io irreal, abstrato e de certo modo ficticio. De que a guerra tenha envolvido inteiramente 0 direito natural, a tal ponto que esse direito nao seja mais do que uma abstra9ao inutilizavel, Boulainvilliers da tres provas; da andamento a essa ideia de tres formas. Primeiro, no modo historico, ele diz isto: pode-se percorrer a historia tanto quanto se quiser, em todos os sentidos, pois como quer que seja nunca se encontrarao direitos naturais. Em nenhuma sociedade, seja ela qual for, ha direitos naturais. 0 que os historiadores acreditavam descobrir, por exemplo entre os saxoes ou entre os celtas, isto e, um tipo de pequena praia, de pequena ilha de direito natural, tudo isso esta inteiramente errado. Em toda parte so se encontra algo que e, quer a propria guerra (sob os franceses houve a inva-
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sao dos francos, sob os galo-romanos houve a invasao dos germanos), quer ainda desigualdades que traduzem guerras e violencias. Assim e que os gauleses, por exemplo, ja estayam divididos entre aristocratas e nao-aristocratas. Entre os medas, entre os persas, voces encontram igualmente uma aristocracia e um povo. Isso prova com evidencia que houve, por tras disso, lutas, violencias e guerras. E, alias, todas as vezes que se veem as diferen9as entre aristocracia e povo atenuar-se numa sociedade ou num Estado, pode-se ter certeza de que 0 Estado vai entrar em decadencia. Grecia e Roma perderam seus estatutos, e desapareceram mesmo como Estados, desde que sua aristocracia entrou em decadencia. Logo, em toda parte desigualdades, em toda parte violencias que fundamentam desigualdades, em toda parte guerras. Nao hi sociedades que possam perdurar sem essa especie de tensao belicosa entre uma aristocracia e uma massa de povo. Agora, a aplica9ao teorica dessa mesma ideia e a se·guinte. Boulainvilliers diz: pode-se, e claro, conceber uma especie de liberdade primitiva antes de qualquer domina9ao, de qualquer poder, de qualquer guerra, de qualquer servidao, mas essa liberdade que se pode conceber entre individuos que nao teriam entre si nenhuma rela9ao de domin~ao, essa liberdade em que todo 0 mundo, em que todas as pessoas seriam iguais umas com rela9ao as outras, esse par liberdade-igualdade so pode ser, na realidade, algo sem for9a e sem conteudo. Porque... 0 que e a liberdade? A liberdade nao consiste, e claro, em impedir-se de invadir a liberdade dos outros, pois, nesse momento, ja nao seria uma liberdade. Em que consiste a liberdade? A liberdade consiste em poder tomar, em poder se apropriar, em poder aproveitar, em poder comandar, em poder obter a obediencia. 0 primeiro criterio da liberdade e poder privar os outros da liberdade. Para que serviria e em que consistiria, concretamente,
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fata de ser
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livre, se nao se pudesse justamenre invadir a liberdade dos outros? Essa e a primeira expressao da liberdade. A liberdade, para Boulainvilliers, e portanto 0 contrano da igualdade. E 0 que vai se exercer pela diferen,a, pela domina,ao, pela guerra, por todo urn sistema de rela,oes de for,a. Vma liberdade que nao se traduz numa rela,ao de for,a desigualitaria s6 pode ser uma liberdade abstrata, impotente e fraca. Dai uma especie de aplica,ao, a um s6 tempo hist6rica e te6rica, dessa ideia. Boulainvilliers diz (e ai ainda, esquematizo muito): admitarnos que 0 direito natural tenha efetivamente existido em dado momento, de certa forma no momento fundador da hist6ria, um direito em que as pessoas seriam livres, de uma parte, e iguais. A fraqueza dessa liberdade e tamanha, ja que e precisarnente uma liberdade abstrata, ficticia, sem conteudo efetivo, que ela s6 pode desaparecer diante da for,a hist6rica de uma liberdade que funciona como desigualdade. E, se e verdade que existiu em algum lugar, ou num instante qualquer, algo como essa liberdade natural, como essa liberdade igualitaria, como esse direito natural, ele nao pode resistir it lei da hist6ria, que faz que a liberdade s6 seja forte, s6 seja vigorosa e s6 seja plena, se for a liberdade de alguns garantida it custa dos outros; s6 se houver uma sociedade que garanta a desigualdade essencia!. A lei igualitaria da natureza e fraca em face da lei desigualitaria da hist6ria. Logo, e normal que a lei igualitaria da natureza tenha cedido 0 lugar, e definitivamente, para a lei desigualitaria da hist6ria. Por ser 0 direito original e que 0 direito natural nao e fundador, como dizem os juristas, mas excluido pelo vigor maior da hist6ria. A lei da hist6ria e sempre mais forte do que a lei da natureza. E isso que Boulainvilliers sustenta quando diz que a hist6ria conseguiu finalmente criar uma lei natural de antltese entre a liberdade e a igualdade, e que essa lei natural e mais forte do que a lei inscrita naquilo a que chamam 0 direito natura!. A maior
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for,a da hist6ria em compara,ao it for,a da natureza: e isso, finalmente, que faz que a hist6ria tenha envolvido inteiramente a natureza. A natureza ja nao pode falar quando a hist6ria come,a, pois, na guerra entre a hist6ria e a natureza, a vencedora e sempre a hist6ria. Ha uma rela,ao de for,a entre natureza e hist6ria, e essa rela,ao de for,a e definitivarnente em favor da hist6ria. Logo, 0 direito natural nao existe, ou existe apenas como vencido: e sempre 0 grande vencido da hist6ria, e "0 outro" (e como os gauleses diante dos romanos, como os galo-romanos diante dos germanos). A hist6ria e a germanidade, se voces preferirem, com rela,ao it natureza. Portanto, primeira generaliza,ao: a guerra envolve inteiramente a hist6ria, em vez de ser simplesmente sua desordena,ao e sua interrup,ao. Segunda generaliza,ao da guerra, com rela,ao it forma da batalha. Para Boulainvilliers, e verdade que a conquista, a invasao, a batalha ganha ou perdida, fixam uma rela,ao de for,a; mas, de fato, essa rela,ao de for,a que se expressa na batalha foi, no fundo, estabelecida antes, e por algo que nao as batalhas antecedentes. 0 que estabelece a rela,ao de for,a e 0 que faz que uma na,ao va ganhar uma batalha e a outra perde-la, 0 que e? Pois bern, e a natureza e a organiza,ao das instituii;5es militares,
e0
exercito,
sao
as instituir;oes
militares. Elas sao importantes, de uma parte, porque permitem, claro, obter vit6rias e tarnbem porque permitem articular a sociedade por inteiro. No fundo, para Boulainvilliers, 0 importante, 0 que vai de fato fazer que a guerra va ser 0 principio de analise de uma sociedade, 0 que para ele e determinante numa organiza,ao social e 0 problema da organiza,ao militar ou, pura e simplesmente, este: quem possui as armas? A organiza,ao dos germanos repousa essencialmente no fato de que alguns - os leudes - tinharn as armas e os Qutros nao as tinham. 0 que caracteriza 0 regime da Galia franca e que se tomou 0 cuidado de retirar as ar-
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mas dos gauleses e de reserva-Ias aos germanos (os quais deviam ser sustentados, enquanto homens de armas, pelos gauleses). As altera,5es come,aram a ocorrer quando essas leis de distribui,ao das armas numa sociedade come,aram a
se embaralhar, quando os rornanos recorreram a mercenarios, quando os reis francos organizararn milicias, quando Filipe Augusto recorreu a cavaleiros estrangeiros, etc. Foi a partir desse momento que a organiza,ao simples, que permitia aos germanos, e apenas aos gennanos, au aaristocracia guerreira, possuir armas, foi embaralhada. Ora, esse problema da posse das armas - e .0 nesse sentido que ele pode servir de ponto de partida para urna analise geral da sociedade - de urn lado .0 ligado, claro, a problemas tecnicos. Por exemplo, quem diz cavaleiros diz lan,as, armaduras pesadas, etc., mas diz igualmente urn exercito pOlleD numeroso de homens ricas. Quem diz, ao contnirio, arqueiros, armaduras leves, vai dizer exercito nurneroso. A partir dai, vemos delinear-se toda urna serie de problemas economicos e institucionais: se ha urn exercito de cavaleiros, urn exercito pesado e pOlleD numeroso de cavaleiros, entao os poderes do rei sao for,osamente limitados, pois urn rei nao pode pagar 0 exercito tiio dispendioso dos cavaleiros. Sao os proprios cavaleiros que serao obrigados a se sustentar. Em compensayao, com urn _exercito de infantaria, tern-se urn exercito numeroso, que os reis podem pagar; dai 0 crescimento do poder momirquico, mas ao mesma tempo aumento do fisco. Portanto, voces veem que, dessa vez, ja nao .0 como resultado da invasao que a guerra deixaria sua marca nurn corpo social, mas que, por intermedio das institui,5es militares, ela acaba tendo efeitos gerais sobre a ordem civil inteira. 0 que, por conseguinte, serve de analisador da sociedade ja nao .0 somente a especie de dualidade simples invasores/invadidos, vencedores/vencidos, lembran,a da batalba de Hastings ou lembran,a da invasiio dos francos. Ja nao
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eesse mecanismo binario simples que marcara com a chancela da guerra
0
corpo social inteiro, mas uma guerra
COD-
siderada alem e aquem da batalba, a guerra como maneira de fazer a guerra, como maneira de preparar e de organizar a guerra. A guerra entendida como distribui,ao das armas,
natureza das armas, tecnicas de combate, recrutamento, retribui,ao dos soldados, impostos destinados ao exercito; a guerra como institui9ao intema e nao mais como evento bruto da batalha: .0 isso que, nas analises de Boulainvilliers, .0 operador. Se ele consegue fazer a historia da sociedade francesa, .0 seguindo perpetuamente 0 fio que, por tras da batalha e por tras da invasao, faz aparecer a institui,ao militar e, mais alem da institui,ao militar, 0 conjunto das institui,5es e da economia do pais. A guerra .0 uma economia geral das armas, urna economia dos homens armados e dos homens desarmados, nurn dado Estado, e com todas as series institucionais e econ6micas que derivam dai. E essa formidavel generaliza,ao da guerra com rela,ao ao que ela ainda era entre os historiadores do seculo XVII que, .0 evidente, confere a Boulainvilliers a importante dimensao que eu tento Ihes mostrar. Enfim, terceira generaliza,ao da guerra na analise de Boulainvilliers, nao com rela,ao ao fato da batalha, mas, com rela,ao ao sistema invasao-revolta, que eram os dois grandes elementos que se fazia intervir para distinguir a guerra nas sociedades (por exemplo, na historiografia inglesa do seculo XVII). 0 problema de Boulainvilliers nao .0, pois, simplesmente distinguir quando houve invasao, quais foram os efeitos da invasao; tampouco consiste simplesmente em mostrar se houve ou nao revolta. Mas 0 que ele quer fazer .0 mostrar como certa rela,ao de for,a, que fora manifestada pela invasao e pela batalha, pouco a pouco, e obscuramente, se inverteu. 0 problema dos historiografos ingleses era distinguir em toda parte, em todas as institui,5es, onde
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estavam os fortes (os normandos) e onde estavam os fracos (os saxoes). 0 problema de Boulainvilliers e saber como, pois, os fortes se tomaram fracos e como os fracos se tornaram fortes. Eesse problema da passagem da for,a para a fraqueza e da fraqueza para a for,a que vai constituir 0 essencial de sua am\lise. Essa analise e essa descri,ao da mudan,a, Boulainvilliers vai faze-las a partir daquilo que se poderia denomi-
nar a determinac;ao dos mecanismos internos de inversao, cujos exemplos se podem encontrar facilmente. Com efeito, o que deu for,a it aristocracia franca - bern no come,o daquilo a que logo se chamara a Idade Media - foi 0 que? Foi o fato de que, tendo invadido e ocupado a Galla, os francos se atribuiram, a eies proprios e diretamente, terras. Logo, eies eram diretamente proprietarios das terras e recebiam por isso rendas em especie, que asseguravam, de urn lado, a calma da popula,ao camponesa e, de outro, a propria for,a da cavalaria. Ora, e precisamente isso, ou seja, 0 que fazia a for,a deles, que pouco a pouco vai tornar-se 0 principio da fraqueza deles, por causa dessa dispersao dos nobres em suas terras e pelo fato de que, sustentados para fazer a guerra pelo sistema de tributos, eies foram, de uma parte, afastados da proximidade com 0 rei que eles haviam criado e, de Dutra, s6 se ocuparam com a guerra, e com a guerra entre si. Em conseqiiencia, negligenciaram tudo quanto podia ser a educa,ao, a instru,ao, 0 aprendizado do latim, 0 conhecimento. Todo esse conjunto de coisas vai se tomar 0 principio da impotencia deles. Inversamente, se voces tomam 0 exemplo da aristocracia gaulesa, no inicio da invasao franca, ela estava no ul.timo grau da fraqueza: cada proprietano gaules fora espollado de tudo. E era isso precisamente, essa fraqueza, que hlStoricamente se tornou a for,a deles, por urn desenvolvimento necessario. 0 fato de serem expulsos das terras os encami-
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nhou, portanto, para a Igreja, e isso Ihes deu urna influencia sobre 0 povo, mas igualmente conhecimentos de direito. Foi isso que, pouco a pouco, os deixou em condi,oes de estarem mais proximos do rei, como conselheiros do rei e, por conseguinte, de tomarem a por a mao num poder politico e nurna riqueza economica que Ihes haviam escapado outrora. A forma, os elementos que constituiam a fraqueza da aristocracia gaulesa foram ao mesmo tempo, e a partir de certo momento, os principios de sua reviravolta. o problema que Boulainvilliers analisa nao e, portanto: quem foi vencedor e quem foi vencido, mas quem se tornou forte e quem se tornou fraco? Por que 0 forte se tornou fraco, e por que 0 fraco se tornou forte? Isto quer dizer que a historia aparece agora como sendo essencialmente urn calculo das for,O$. Na mesma medida em que vai ser preciso fazer uma descri,ao dos mecanismos das rela,oes de for,a, essa analise vai necessariamente levar a que? Ao fato de que a grande dicotomia simples vencedores/vencidos ja nao vai ser exatamente pertinente para a descri,ao de todo esse processo. A partir do momento em que 0 forte se torna fraco
e
0
fraco se tarna forte, vai haver novas oposi<;oes, novas
divagens, novas distribui,oes: os fracos vao se aliar entre si, os fortes vao procurar a alian,a de alguns contra alguns
outros. 0 que era ainda, na epoca das invas5es, uma especie de grande batalha maci,a, exercito contra exercito, francos contra gauleses, normandos contra sax5es, essas duas grandes massas nacionais vao se dividir, se transformar por multiplos canais. E vao aparecer entao lutas diversO$, com reviravoltas de frente, alian,O$ conjunturais, reagrupamentos mais ou menos permanentes: alian,a do poder monarquico com a antiga nobreza gaulesa; apoio desse conjunto no povo; ruptura do entendimento tacito entre os guerreiros francos e os camponeses gauleses quando os guerreiros francos, empobrecidos, vaa aumentar suas exigencias e exigir tribu-
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tos mais elevados, etc. Todo esse pequeno sistema de apoios, de alian9as, de conflitos intemos, e isso agora que vai, de certo modo, generalizar-se nurna forma de guerra, que os historiadores, ate 0 seculo XVII, ainda concebiam essencialmente no modo do grande enfrentamento da invasao. Ate 0 seculo XVII a guerra era mesmo, essencialmente, a guerra de urna massa contra outra massa. Boulainvilliers, por sua vez, faz a rela9ao de guerra penetrar em toda a rela9aO social, vai subdividi-Ia por mil canais diversos e mostrar a guerra como urna especie de estado permanente entre grupos, frentes, unidades tMicas, de certo modo, que se ci-
vilizam uns aos outros, se op5em uns aos
Dutros, OU,
ao
contrario, se aliam uns com os outros. Ja nao ha essas grandes massas estaveis e multiplas, vai haver urna guerra multipla, nurn sentido urna guerra de todos contra todos, mas urna guerra de todos contra todos nao mais, de modo algum, e evidente, no sentido abstrato e - creio eu - irreal que Hobbes apresentava quando falava da guerra de todos contra todos e tentava mostrar como nao e a guerra de todos contra todos que e operadora no interior do corpo social. Em Boulainvilliers, ao contrario, vamos ter uma guerra generalizada, que vai percorrer tanto todo 0 corpo social quanto toda a historia do corpo social; mas nao, e evidente, como guerra dos individuos contra os individuos, mas como guerra de grupos contra grupos. E e essa generaliza9ao da guerra que e, acho eu, caracteristica do pensamento de Boulainvilliers. Eu gostaria de terminar dizendo-Ihes isto. Essa generaliza9ao triplice da guerra leva a que? Ela leva ao seguinte: a que, gra9as a ela, Boulainvilliers chegou ao ponto em que os historiadores do direito [... J' Para aqueles historiadores
* lnterrupl;ao nas grava<;oes. 0 manuscrito diz explicitamente: "Num sentido, e sempre realmente 0 analogo ao problema juridico: como nasce a
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que narravam a historia no interior do direito publico, no interior do Estado, a guerra era pois, essencialmente, a ruptura do direito, 0 enigma, a especie de massa escura ou de acontecimento bruto que curnpria mesmo toma-Io como ele era, e que nao era, nao somente, principio de inteligibilidade - nao se tratava disso - mas, ao contrario, principio de ruptura. Ai, ao contrario, e a guerra que vai precipitar urn tipo de gabarito de inteligibilidade na propria ruptura do direito e que vai, pois, perrnitir determinar a rela9ao de for9a que sustenta permanentemente certa rela9ao de direito. Boulainvilliers vai, assim, poder integrar esses acontecimentos - que antigamente eram apenas violencia e apresentados em
sua massividade -, essas guerras, essas invasoes, essas mudan9as, em toda urna camada de conteudos e de profecias que envolvem a sociedade inteira (ja que isso toca, como
voces viram, ao direito, aeconomia, ao sistema fiscal,
are-
ligiao, as cren9as, a instru9ao, a pratica da lingua, as institui90eS juridicas). A historia, a partir do proprio fato da guerra e a partir da analise que se faz em termos de guerra, vai poder relacionar todas essas coisas: guerra, religiao, politica, costumes e caracteres, e vai ser, pais, urn principia de inteligibilidade da sociedade. A guerra e que deixa a sociedade inteligivel em Boulainvilliers e, penso eu, a partir dai, em todo 0 discurso historico. Quando eu falo de gabarito de inteligibilidade, nao quero dizer, e claro, que 0 que Boulainvilliers disse e verdadeiro. Pode-se mesmo, verossimilmente, demonstrar que tudo 0 que ele disse, pe9a por pe9a, e errado. Simplesmente, eu diria que se pode demonstrar isso. Por soberania. Mas dessa feita ja nao se trata de ilustrar pela narrativa historica a continuidade de uma soberania que e legitima porque continua de urn extre· rno a Dutro no elemento do direito. Trata-se de dizer como nasce a institui9aO singular, a figura hist6rica modema do Estado absoluto atraves do jogo de rela90es de fon;a que sao uma especie de guerra generalizada entre as na90es."
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exemplo, 0 discurso que era feito no seculo XVII sobre as origens troianas ou sobre a emigra,ao dos francos que teriam deixado a Galia em dado momento, sob urn certo Sigovegio, e que teriam voltado mais tarde, nao se pode dizer que ~eja pertinente ao regime de verdade ou de erro que e 0 nosso. E inatribuivel para nos em termos de verdade ou de erro. Em compensa,ao, 0 gabarito de inteligibilidade exposto por Boulainvilliers instaurou - creio eu - urn certo regime, urn certo poder de divisao verdade/erro, que se pode aplicar ao discurso do proprio Boulainvilliers, e que pode fazer dizer, alias, que seu discurso e falso, em seu conjunto, e falso em seu detalhe. E mesmo, se voces quiserem, totalmente falso. Ainda assim foi esse gabarito de inteligibilidade que foi estabelecido para nosso discurso historico. E e a partir de uma inteligibilidade desse tipo que nos, daqui para a frente, podemos dizer 0 que e verdadeiro ou errado no discurso de Boulainvilliers. E sobre isso tambem que eu gostaria de insistir, e que, fazendo a rela,ao de for,a intervir como uma especie de guerra continua no interior da sociedade, Boulainvilliers podia recuperar - mas dessa vez em termos historicos - todo urn tipo de analise que se encontrava em Maquiave!. Mas, em Maquiavel, a rela,ao de for,a era essencialmente descrita como tecnica politica a ser posta entre as maos do soberano. Dai em diante, a rela,ao de for,a e run objeto historico que alguem que nao 0 soberano - ou seja, algo como uma na,ao (a maneira da aristocracia ou mais tarde da burguesia, etc.) - pode situar e deterrninar no interior de sua historia. A rela,ao de for,a, que era run objeto essencialmente politico, se torna agora run objeto historico, ou melhor, run objeto historico-politico, ja que e analisando essa rela,ao de for,a que, por exemplo, a nobreza vai poder tomar consciencia de si mesma, reencontrar seu saber, tornar a ser uma for,a politica no campo das for,as politicas. A constitui,ao
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de run campo historico-politico, 0 funcionamento da historia na luta politica foram tornados possiveis a partir do momenta em que, num discurso como 0 de Boulainvilliers, essa rela,ao de for,a (que era de certo modo 0 objeto exclusivo das preocupa,oes do Principe) pOde tornar-se objeto do saber para urn grupo, uma na.;ao, uma minaria, uma classe, etc. A organiza,ao de run campo historico-politico come,a assim. 0 funcionamento da historia na politica, a utiliza,ao da politica como ca!culo das rela,oes de for,a na historia, tudo isso se integra aqui. Outra observa,ao ainda. Eque, como voces veem, chega-se a iMia de que a guerra foi no fundo a matriz de verdade do discurso historico. "Matriz de verdade do discurso historical' quer dizer 0 seguinte: a verdade, contrariamente ao que a filosofia ou 0 direito quiseram fazer acreditar, nao comeya, a verdade e 0 logos nao comec;am onde cessa a violencia. Ao contrario, foi quando a nobreza come,ou a travar sua guerra politica, a urn so tempo contra 0 terceiro estado e contra a monarquia, foi no interior dessa guerra e pensando na historia como guerra, que algo como 0 discurso historico que conhecemos agora pOde estabelecer-se. Penultima observa,ao: voces sabem que hi run lugarcomum que pretende que sejam as classes em ascensao que trazem ao mesmo tempo os valores do universal e a potencia da racionalidade. Muito esfor,o foi feito para tentar demonstrar que era a burguesia que havia inventado a historia, ja que a historia - todos sabem - e racional e ja que a burguesia do seculo XVIII, classe ascendente, trazia consigo 0 universal e 0 raciona!. Pois bern, eu acho que se tern, quando se olham as coisas run pouco mais de perto, 0 exemplo de uma classe que, na mesma medida em que estava em plena decadencia, despojada de seu poder politico e economico, implantou runa certa racionalidade historica de que a burguesia em seguida, 0 proletariado depois, se apossarao. Mas
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eu nao direi que e porque estava em decadencia que a aristocracia francesa inventou a historia. E porque ela fazia a guerra que pOde atribuir-se, precisamente, sua guerra como objeto, sendo a guerra a urn so tempo 0 ponto inicial do discurso, a condi,ao de possibilidade da emergencia de urn discurso historico e 0 referencial, 0 objeto para 0 qual se volta esse discurso, sendo a guerra, ao mesmo tempo, aqui10 a partir de que 0 discurso fala e aquilo de que ele fala. Enfim, derradeira observa,ao: se Clausewitz pOde urn dia dizer, urn seculo depois de Boulainvilliers e por conseguinte dois seculos depois dos historiadores ingleses, que a guerra era a politica continuada por outros meios, e porque houve alguem que, no seculo XVII, na virada do seculo XVII para 0 XVIII, pOde analisar, expor e mostrar a politica como sendo a guerra continuada por outros meios.
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Boulainvilliers e a constitui9iio de urn continuo histori-
co-politico. -
a historicismo. -
Tragedia e direito publico. -
A administraroo central da historia. - Problematica das Luzes e genealogia dos saberes. - As quatro opera90es do saber disciplinar e seus efeitos. - A filosofia e a clenda. - 0 disciplinamento dos saberes.
Falando-lhes de Boulainvilliers, eu nao queria de modo algum mostrar-lhes que com ele come,ava algo como a historia, ja que, afinal de contas, nao ha razao para dizer que a historia nasce antes com ele do que, por exemplo, com os juristas do seculo XVI que haviam examinado os monurnentos do direito publico; do que com os parlamentares que ao longo de todo 0 seculo XVII haviam pesquisado, nos arquivos e na jurisprudencia do Estado, 0 que poderiam ser as leis fundamentais do reino; do que com os beneditinos que haviam sido os grandes colecionadores de codices desde 0 fim do seculo XVI. De fato, 0 que se constituiu no inicio do seculo XVIII, com Boulainvilliers, foi algo ~ creio eu ~ que e urn campo historico-politico. Em que sentido? Primeiro, neste: tomando a na,ao, ou melhor, as na,oes, como objeto, Boulainvilliers analisou - sob as institui,oes, sob os acontecimentos, sob os reis e sob 0 poder deles - algo diferente, essas sociedades por conseguinte, como se dizia na epoca, em que se ligavam os interesses, os costumes e as leis ao mesmo tempo. Portanto, tomando esse objeto, ele praticava uma dupla conversao. De uma parte, fazia (e creio que era a
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primeira vez que isso sucedia) a historia dos suditos - ou seja, passava para 0 outro lado em rela,ao ao poder; come,ava a dar status na historia a algo que se tomara no seculo XIX, com Michelet, a historia do povo ou dos povos l . Ele descobria certa materia da historia que era 0 outro lado da rela,ao de poder. Mas analisava essa nova materia da historia nao
como uma substancia inerte, mas como uma fon;a ou for,as, pois 0 proprio poder nao passava de uma delas, uma especie de for,a singular, a mais estranha dentre todas as for,as que lutavam entre si no interior do corpo social. 0 poder e aquele do pequeno grupo dos que 0 exercem mas nao tern for,a; e, no entanto, esse poder, afinal de contas, esse poder se toma a mais forte de todas as for,as, uma for,a a qual nenhurna outra pode resistir, salvo violencia ou revolta. 0 que Boulainvilliers descobria era que a historia nao devia ser a historia do poder, mas a historia desse par monstruoso, estranho em todo caso, cujo enigma nenhuma fic,ao juridica podia reduzir ou analisar exatamente, isto e, par formado pelas for,as originarias do povo e a for,a finalmente constituida de alguma coisa que nao tern for,a mas que e, porem, o poder. Deslocando 0 eixo, 0 centro de gravidade, de sua analise, Boulainvilliers fazia algo importante. Sobretudo, porque ele definia 0 principio daquilo que se poderia denominar o cariller relacional do poder: 0 poder nao e uma propriedade, nao e urna potencia; 0 poder sempre e apenas urna rela,ao que so se pode, e so se deve, estudar de acordo com termos entre os quais atua essa rela,ao. Portanto, nao se pode fazer nem a historia dos reis nem a historia dos povos, mas a historia daquilo que constitui, urn em face do outro, esses dois termos, dos quais urn nunca e infinito e 0 Dutro nunca ezero. 1. J. Michelet, Le peuple, Paris, 1846.
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Fazendo essa historia, definindo 0 cariller relacional do poder e analisando-o na historia, Boulainvilliers recusava - e e esse, acho eu, 0 outro aspecto de sua opera,ao - 0 mode10 juridico da soberania que fora, ate entao, a tinica maneira que se tinha de pensar a rela,ao entre 0 povo e 0 monarca, ou ainda entre 0 povo e os que govemam. Nao e em termos juridicos de soberania, mas em termos historicos de domina,ao e de jogo entre as rela,oes de for,a que BouIainvilliers descreveu esse fenameno do poder. E foi nesse campo que ele colocou 0 objeto de sua analise historica. Fazendo isso, atribuindo-se como objeto urn poder que era essencialmente relacional e nao adequado a forma juridica da soberania, definindo, pois, urn campo de for,as onde atua a rela,ao de poder, Boulainvilliers tomava como objeto do saber historico a mesma coisa que fora analisada por MaquiaveF, mas em termos prescritivos de estrategia - de urna estrategia vista somente do lado do poder e do Principe. Dirao que Maquiavel fez outra coisa que dar ao Principe conselhos, serios Oll ironicos - essa ja e uma Dutra questao-, na gestao e na organiza,ao do poder; e que, afinal de contas, 0 proprio texto do Principe e repleto de referimcias historicas. Dirao tambem que Maquiavel fez os Discursas sabre a primeira decada de Tita Livia, etc. Mas, na verdade, em
2. N. MaquiaveI, Ii Principe, Roma, 1532; Discorsi sopra la prima deca di Tita Livia. op. cit.; Dell'arte della guerra, Floreo9a, 1521; lstoriefiorentine, Floreoya, 1532. Sao numerosissimas as traduyoes francesas de 0 Principe. Os outros textos podem seT lidos na ediyao de E. Barincou (Maquiavel, <Euvres completes, Paris, Gallimard, "Bibiioteque de la Pleiade", 1952) que utilizou e atualizou as antigas traducoes de J. Guiraudet (1798). Foucault
tratara de Maquiavel sobretudo em dois ensaios, '''Dmnes et singulatim' ..." (1981) e "The political Technology of Individuals" (1982); ver tambem a aula no Col1ege de France de 1~ de fevereiro de 1978 sobre "A 'govemabilidade'" (textos citados supra, aula de 21 de janeiro, nota 13).
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Maquiavel, a historia nao e 0 dominio no qual ele vai analisar rela90es de poder. A historia, para Maquiavel, e simplesmente urn lugar de exemplos, uma especie de coletanea de jurisprudencia ou de modelos taticos para 0 exercicio do poder. A historia, para Maquiavel, sempre se limita a registrar rela90es de for9a e calculos ocasionados por essas rela90es. Em compensa9ao, para Boulainvilliers (e e isso, acho eu, o importante), a rela9ao de for9a e 0 jogo do poder sao a propria substancia da historia. Se ha historia, se ha acontecimentos, se OCOrre alguma coisa cuja memoria se pode e se precisa guardar, e precisamente na medida em que atuam entre os homens rela90es de poder, rela90es de for9a e certo jogo de poder. A narrativa historica, por conseguinte, e 0 calculo politico tern para Boulainvilliers exatamente 0 mesmo objeto. Sem duvida a narrativa historica e 0 calculo politico nao tern a mesma finalidade, mas aquilo de que falam, aquilo de que se trata na narrativa e no calculo, esta exatamente em continuidade. Logo, temos em Boulainvilliers, creio eu, pela primeira vez, urn continuo historico-politico. Pode-se dizer tambern, noutro sentido, que Boulainvilliers abriu urn campo historico-politico, pela razao que se segue. Eu lhes disse, e acho que e fundamental para compreender a partir de que Boulainvilliers falava, que para ele se tratava de considerar, como critico, 0 saber dos intendentes, essa especie de analise e de programa de govemo que os intendentes ou, de urn modo geral, a administra9ao publica monarquica, propunham incessantemente ao poder. Boulainvilliers, e verdade, se opoe radicalmente a esse saber, mas reimplantando no interior de seu proprio discurso, e para faze-las funcionar para seus fins pessoais, as proprias analises que se encontram nesse saber dos intendentes. Trata-se de confisca-lo e de faze-lo funcionar contra 0 sistema da monarquia absoluta, que era ao mesmo tempo 0 lugar de nascimento e 0 campo de utiliza9ao desse saber administrativo, desse saber dos intendentes, des-
se saber economico.
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E, no fundo, quando Boulainvilliers analisa atraves da historia toda urna serie de rela90es precisas entre, se voces quiserem, organiza9ao militar e fisco, ele nada mais faz senao aclimatar, ou melhor, utilizar, para suas analises historicas, urna forma de rela9ao, urn tipo de inteligibilidade, urn modelo de rela90es que eram exatamente aqueles que 0 saber administrativo, 0 saber fiscal, 0 saber dos intendentes haviam definido por sua vez. Por exemplo, quando Boulainvilliers explica a rela9ao que ha entre 0 mercenarismo, a eleva9ao do fisco, 0 endividamento campones, a impossibilidade de comercializar os produtos da terra, ele nada mais faz senao retomar, mas na dimensao historica, 0 que na epoca estava em questao entre os intendentes ou financistas do reinado de Luis XlV. Voces encontrarn exatarnente as mesmas especula90es, por exemplo, em pessoas como Boisguilbert' ou Vauban'. A rela9ao entre endividamento rural e ennquecimento urbano foi igualmente uma discussao essencial em todo 0 final do seculo XVII e no inicio do seculo XVIII. Portanto, e realmente 0 mesmo modo de inteligibilidade que se encontra no saber dos intendentes e nas analises historicas de Boulainvilliers, mas ele e 0 primeiro a ter feito esse tipo de rela9ao funcionar no interior do dominio da narrativa historica. Em outras palavras, Boulainvilliers faz funclOnar como principio de inteligibilidade da historia 0 que ate entiio era apenas 0 principio de racionalidade na gestao do Estado. 0 fato de a historia e a gestao do Estado entrarem 3. Pierre Ie Pesant de Boisguilbert, Le derail de fa France, s.1., 1695; Factum de fa France (1707), in Economistes financiers du XV/IIe siide, Paris, 1843; Testament politique de M. de Vauban, Marechal de France, s.1:, 1707, 2 voL; Dissertation sur 1a nature des richesses, de l 'argent et des tnhuts, Paris, s.d. 4. Sebastien Ie Prestre de Vauban, Methode generale et facile pourlaire Ie denombrement des peuples, Paris, 1868; Projet d 'une dixme royale, 5.1., 1707.
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em continuidade e, acho eu, urn fenomeno capital. A utilizac;ao do modelo de racionalidade administrativa do Estado como gabarito de inteligibilidade especulativa da hist6ria, e isso que constitui 0 continuo hist6rico-politico. Urn continuo que vai fazer com que, dai em diante, falar da hist6ria e analisar a gestao do Estado podera se fazer segundo 0 mesmo vocabulario e segundo 0 mesmo gabarito de inteligibilidade ou de calculo. ereio, por fim, que Boulainvilliers constituiu urn continuo hist6rico-politico na medida em que, quando narra, ele tern urn projeto precise e especifico: trata-se realmente, para ele, de tomar a dar i! nobreza urna mem6ria que ela perdeu e, ao mesmo tempo, urn saber que ela sempre menosprezou. Tomando-Ihe a dar mem6ria e saber, 0 que Boulainvilliers quer fazer e tomar a dar-Ihe forc;a, reconstituir a nobreza como forc;a no interior das forc;as do campo social. Em conseqiiencia, para Boulainvilliers, tomar a palavra na area da hist6ria, contar urna hist6ria, nao e simplesmente descrever uma relac;ao de forc;a, nao e simplesmente reutilizar, em proveito da nobreza, por exemplo, urn calculo de inteligibilidade que era, ate enta~, 0 do govemo. Trata-se de modificar, com isso mesmo, em seu proprio dispositive e em seu equilibrio atual, as relac;oes de forc;a. A hist6ria nao e simplesmente urn analisador ou urn decifrador das forc;as, e urn modificador. Em conseqiiencia, 0 controle, 0 fato de ter razao na ordem do saber hist6rico, em resumo, dizer a verdade da hist6ria, e por isso mesmo ocupar urna posic;ao estrategica decisiva. Para resumir tudo isso, pode-se dizer que a constituic;ao de urn campo hist6rico-politico se traduz pelo fato de que se passou de urna hist6ria que ate entao tinha como func;ao dizer 0 direito narrando as fac;anhas dos her6is ou dos reis, suas batalhas, suas guerras, etc., passou-se de urna hist6ria que
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dizia 0 direito narrando as guerras, para uma hist6ria que agora faz a guerra decifrando a guerra e a luta que perpassam todas as instituic;oes do direito e da paz. Logo, a hist6ria tomou-se urn saber das lutas que se estende por si mesmo e funciona num campo de lutas: combate politico e saber hist6rico estao, dai em diante, ligados urn ao outro. E, se por certo e verdade que nunca houve enfrentamentos que nao fossem acompanhados de recordac;oes, de memoriais, de diversos rituais de memoriza<;ao, eu efeio que agora, a partir do seculo XVIll - e e ai que a vida e 0 saber politicos comec;am a inserir-se nas lutas reais da sociedade -, a estrategia, 0 calculo imanente a essas lutas vao articular-se baseados nurn saber hist6rico que e decifrac;ao e anilise das forc;as. Nao se pode compreender a emergencia dessa dimensao especificamente modema da politica sem compreender como o saber hist6rico tomou-se, a partir do seculo XVIll, urn elemento de luta: a urn s6 tempo descric;ao das lutas e arma na luta. Logo, organizaC;ao desse campo hist6rico-politico. A hist6ria nos trouxe a ideia de que estamos em guerra, e fazemos a guerra atraves da hist6ria. A este respeito - estando isto fixado -, duas palavras antes de retomar essa guerra que e travada atraves da hist6ria dos povos. Uma, primeiro, a prop6sito do historicismo. Todos sabem, e claro, que 0 historicismo e a coisa mais horrorosa do mundo. Nao hi! filosofia digna desse nome, nao hi teoria da sociedade, nao hi epistemologia urn pouco superior ou elevada que nao devam, evidentemente, lutar radicalmente contra a mediocridade do historicismo. Ninguem ousaria confessar que e historicista. E eu creio que se poderia mostrar facilmente como, desde 0 seculo XIX, todos os grandes fi16sofos foram, de uma maneira ou de outra, antihistoricistas. Poderiamos mostrar, acho eu, iguaimente, como
todas as ciencias humanas so se sustentam, e talvez no limite
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so existam, por serem anti-historicistas 5• Poderiamos mostrar tambem como a historia, a disciplina historica, em seus recursos (que tanto a encantam) seja a uma filosofia da historia, seja a uma idealidade juridica e moral, seja as ciencias humanas, procura escapar ao que poderia ser sua inclina,ao fatal e interior ao historicismo. Mas 0 que e esse historicismo, de que todo 0 mundo, trate-se da filosofia, das ciencias humanas, da historia, desconfia tanto? Que e esse historicismo que se deve a qualquer pre,o conjurar e que a modernidade filosofica, cientifica e mesmo politica, sempre tentou conjurar? Pois bem, eu creio que 0 historicismo nada mais e senao 0 que acabo precisamente de evocar: esse no, essa dependencia incontormivel da guerra a historia e, reciprocamente, da hist6ria a guerra. 0 saber historico, por mais longe que va, jamais encontra nem a natureza, nem 0 direito, nem a ordem, nem a paz. Por mais longe que va, 0 saber historico so encontra o indefinido da guerra, isto e, as for,as com suas rela,oes e seus enfrentamentos, e os acontecimentos nos quais se decidem, de uma maneira sempre provisoria, as rela,oes das for,as. A historia encontra apenas a guerra, mas, essa guerra, a historia jamais pode domina-Ia inteiramente; a historia jamais pode contornar a guerra nem encontrar suas leis fundamentais, nem impor seus limites, pura e simplesmente porque a propria guerra sustenta esse saber, passa por esse saber, atravessa-o e determina-o. Esse saber sempre e apenas uma arma na guerra, ou ainda urn dispositivo tatico no interior dessa guerra. A guerra se trava, portanto, atraves da historia, e atraves da historia que a narra. E, de seu lado, a historia nunca pode decifrar senao uma guerra que ela propria faz ou que passa por ela. 5. Sabre
0
anti-historicismo do saber contemporaneo, cf. em especial
Les mots et les choses, op. cit., cap. X, § IV.
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Pois bem, eu creio que esse no essencial entre 0 saber historico e a prMica da guerra, e, grosso modo, 0 que constitui 0 nucleo do historicismo, esse nucleo ao mesmo tempo irredutivel e que sempre se tem de expurgar, por causa dessa ideia que foi relan,ada sem parar de um ou dois milenios para eli e a que se pode chamar "platonica" (se bem que sempre convem desconfiar dessa atribui,ao geral ao pobre Platao de tudo quanta se quer banir); essa ideia que verossimilmente se encontra ligada a qualquer organiza,ao do saber ocidental: a de que 0 saber e a verdade nao podem nao pertencer ao registro da ordem e da paz, que jamais se pode encontrar 0 saber e a verdade do lado da violencia, da desordem e da guerra. A proposito dessa ideia (seja ela plat6nica ou nao, pouco importa) de que 0 saber e a verdade nao podem pertencer a guerra, mas so podem ser da ordem e da paz, eu acho que 0 que e importante e que 0 Estado moderno a reimplantou profundamente em nossa epoca mediante o que se poderia denominar 0 "disciplinamento" dos saberes no seculo XVIII. E e essa ideia que nos torna insuportavel o historicismo, que nos torna insuportavel aceitar algo como uma circularidade indissociavel entre 0 saber historico e as guerras que sao ao mesmo tempo narradas por ele e que, porem, 0 perpassam. Logo, problema e, se voces preferirem, primeira tarefa: tentar ser historicistas, ou seja, analisar essa rela,ao perpetua e incontornavel entre a guerra narrada pela historia e a hist6ria perpassada par essa guerra que ela narra. I'<: nesta linha que tentarei enta~ continuar esta pequena historia dos gauleses e dos francos que eu comecei. I'<: isso quanta a primeira observa,ao, quanta a primeira digressao a proposito desse historicismo. Segunda coisa: um tema que acabei de abordar M pouco, isto e, 0 disciplinamento dos saberes no seculo XVIII, ou melhor, se voces preferirem, por um outro prisma, uma obje,ao que se pode fazer. Colocando assim a historia, a historia das guerras e a
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guerra atraves da historia como 0 grande aparelho discursivo pelo qual se fez no seculo XVIII a critica do Estado faz~n~o ~,essa ,relayao guerralhistoria a condiyao de emer~en Cla da polltlCa [...] a ordem tinha, pois, como funyao restabelecer a continuidade em seu discurso. * [No momenta em que os juristas se interrogavam sobre os arqUlvos para conhecer as leis fundamentais do reino delineava-se uma historia dos historiadores que nao era 0 ~an to do poder sobre si mesmo. Nao convem esquecer que no seculo XVII, e nao somente na Franya, a tragedia era uma das grandes formas rituais nas quais se manifestava 0 direito pUbli,~o e ,se de~atiam seus problemas, Pois bern, as tragedlaS hlstoncas de Shakespeare sao tragedias do direito e do rei, essencialmente centradas no problema do usurpador e da decadencia, do assassinio dos reis e do nascimento de urn ser novo constituido pela coroayao de urn rei. Como urn individuo podeni receber pela violencia, pela intriga, pelo assaSSllllO e a guerra um poderio publico que deve fazer reinar a paz, a justiya, a ordem e a felicidade? Como a ilegitimidade podeni produzir a lei? Ao passo que na mesma epoca a teoria e a historia do direito se empenhavam em tecer a continuidade sem ruptura do poder publico, a tragectia de Shakespeare, p~r ,sua vez, se aferra]6, ao contrario, a essa chaga, a essa especle de ferida repetida que 0 corpo da realeza traz desde que ha morte violenta dos reis e adventos de sobera~ nos ilegitimos. Eu creio, portanto, que a tragectia shakespeariana e, ao menos por urn de seus eixos, uma especie de
* 0 ajustamento do sentido a partir da graval;ao foi dificil. De fato as 18 primeiras paginas do manuscrito foram recolocadas no final no desenr~lar do curso. 6. 0 texto entre colchetes foi estabelecido segundo 0 manuscrito de M. Foucault.
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cerimonia, de ritual de memorizayao dos problemas do direito publico. Poderiamos dizer a mesma coisa da tragedia francesa, a de Comeille, e lalvez mais ainda da de Racine, justamente, E, alias, de um modo geral, acaso a tragedia grega tarnbem nao e sempre, essencialmente, uma tragedia do direito? Eu creio que ha dependencia fundamental, essencial, entre a tragedia e 0 direito, entre a tragedia e 0 direito publico, bern como, verossirnilmente, ha dependencia essencial entre 0 romance e 0 problema da norma, A tragedia e 0 direito, o romance e a norma: talvez se devesse olhar tudo isso, Em todo caso, a tragedia na Franya no seculo XVII e, ela tambem, uma especie de representayaO do direito publico, uma represenlayao historico-juridica do poder publico. Com uma diferenya, claro - e e essa a diferenya fundamental entre ela e Shakespeare (genialidade a parte) -, de urn lado, na tragectia classica francesa em geral so se trata dos reis antigos. Codificayao ligada, por certo, a prudencia politica. Mas, afinal de conlas, tampouco se deve esquecer que, entre todas as razoes dessa referencia a Antiguidade, ha 0 seguinte: 0 direito monarquico no seculo XVII na Franya, e sobretudo sob Luis XlV, considera-se, por sua forma e mesmo pela continuidade de sua historia, como situando-se em linha direta com relayao as monarquias antigas, E realmente 0 mesmo tipo de poder e 0 mesmo tipo de monarquia, e substancial e juridicamente a mesma monarquia que encontramos em Augusto ou Nero, no limite em Pirro e depois em Luis XlV. Por outro lado, na tragedia classica francesa, hi referencia a Antiguidade, mas presenya tambem dessa instituiyao que parece de certo modo limitar os poderes trigicos da tragedia e faze-la cair num teatro da galantaria e da intriga: a presenya da corte, Tragedia da Antiguidade e tragedia da corte, Mas que e a corte, senao precisamente - e isto de uma forma incontestivel em Luis XIV -, tambem ai, uma especie de aula de direito publico? A corte tern essencial-
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mente como fun9ao constituir, organizar urn lugar de manifesta9ao cotidiana e permanente do poder monarquico em seu esplendor. No fundo, a corte e essa especie de opera9ao ritual permanente, recome9ada dia ap6s dia, que requalifica urn individuo, urn homem particular, como sendo 0 rei, como
senda
0
monarca, como senda
0
soberano. A corte, em seu
ritual mon6tono, e a opera9ao incessantemente renavada pela qual urn homem que se levanta, que passeia, que come, que
tern seus amores e suas paixoes, e ao mesma tempo, atraves
disso, a partir disso e sem que nada disso seja de algum modo eliminado, urn soberano. Tomar seu amor soberano, tornar sua alimenta9ao soberana, tomar soberanos seu despertar e seu deitar: e nisso que consiste a opera9ao especifica do ritual e do cerimonial da corte. E, ao passo que a corte requalifica incessantemente 0 cotidiano como soberano, como a pessoa de urn monarca que e a substiincia mesma da mo-
narquia, a tragedia faz isso, de certo modo, em sentido inverso: a tragedia desfaz e recompoe, se voces quiserem, 0 que o ritual cerimonial da corte estabelece a cada dia. A tragedia classica, a tragedia raciniana, 0 que e que ela faz? Ela tern como fun9ao - em todo caso esse e urn de seus
eixos - constituir 0 avesso da cerimonia, mostrar a cerimonia rasgada, 0 momento em que 0 detentor do poderio pUblico, 0 soberano, vai-se decompondo aos poucos em homem de paixao, em homem de c6lera, em homem de vingan9a, em homem de amor, de incesto, etc., e em que 0 problema e saber se, a partir dessa decomposi9ao do soberano em homem de paixao, 0 rei-soberano podera renascer e recomporse: morte e ressurrei9ao do corpo do rei no cora9ao do monarca. E e esse 0 problema juridico, muito mais do que psicol6gico, que e apresentado pela tragedia raciniana. Nessa medida, vOCes compreendem bern que Luis XlV, ao pedir a Racine que se tomasse seu histori6grafo, nada mais fazia senao continuar na linha daquilo que era a historiografia da
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monarquia ate enmo, ou seja, cantar 0 pr6prio poder, mas ao mesmo tempo permitia tambem a Racine continuar na mesrna fun9ao que havia exercido quando escrevia tragedias. Solicitava-Ihe, no fundo, que escrevesse, como histori6grafo, 0 quinto ato de urna tragedia feliz, ou seja, a eleva9ao do homem privado, do homem de corte e de cora9ao, ate 0 ponto em que se toma chefe de guerra e monarca, detentor da soberania. Confiar sua historiografia a urn poeta tritgico nao era em absoluto, no fundo, sair da ordem do direito, nao era trair de modo aIgum a velha fun9ao da hist6ria, que era dizer 0 direito, e dizer 0 direito do Estado soberano. Era-por urna necessidade vinculada ao absolutismo do rei - retornar, ao contrario, a fun9ao mais pura e mais elementar da historiografia regia, nessa monarquia absoluta da qual nao se pode esquecer que, por urna especie de estranho remergulho no arcaismo, ela fazia da cerimonia do poder urn momenta politico intenso, e em que a corte, como cerim6nia do poder, era urna aula cotidiana de direito publico, urna manifesta9ao cotidiana de direito publico. Compreende-se que a hist6ria do rei possa ter retomado assim sua forma pura, sua forma magico-poetica de certo modo. A hist6ria do rei nao podia nao voltar a ser 0 canto do poder sobre si mesmo. Logo, absolutismo, cerimonial da corte, ilustra9ao do direito publico, tragedia classica, historiografia do rei: tudo isto, acho eu, pertencia a urn mesmo conjunto. Perdoem-me essas especula90es sobre Racine e a historiografia. Pularnos urn seculo (justarnente 0 seculo que foi inaugurado por Boulainvilliers) e tomarnos 0 derradeiro dos monarcas absolutos com seu derradeiro histori6grafo, Luis XVI e Jacob-Nicolas Moreau, sucessor longinquo de Racine, de quem euja Ihes disse algumas palavras e que era 0 administrador, 0 ministro da hist6ria que Luis XVI havia nomeado por volta dos anos 1780. Se 0 compararmos com Racine,
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quem e Moreau? Paralelo perigoso, mas que talvez nao seja desfavonivel a quem voces acham. Moreau e 0 defensor erudito de wn rei, claro, que teni, em sua vida, urn certo munero de ocasioes de ser defendido. Defensor, e exatamente esse 0 papel que ele tem quando e nomeado, hi pela decada de 1780 - nurn momento em que, justamente, os direitos da monarquia sao atacados em nome da hist6ria, e isto de horizontes bem diferentes, nao somente do lado da nobreza, mas dos parlamentares, mas da burguesia tambem. Foi 0 momento em que a hist6ria se tornou, justamente, 0 discurso pelo qual cada "na9ao", entre aspas, e em todo caso cada ordem, cada c1asse, valoriza seu pr6prio direito; 0 momento em que a hist6ria se tornou, se voces preferirem, 0 discurso geral das lutas politicas. Nesse momento, portanto, cria9iio de urn Ministerio da Hist6ria. E e quando voces me diriio: a hist6ria escapou realmente a esse ponto ao Estado, ja que se ve, urn seculo depois de Racine, aparecer urn histori6grafo que e pelo menos tiio ligado ao poder do Estado, ja que ele tern verdadeiramente, ele exerce, como acabei de dizer, uma fun9iiO, se niio ministerial, pelo menos administrativa? De que se tratava entiio nessa cria9iio, nessa administra9iio central da hist6ria? Tratava-se de armar, nessa batalha politica, 0 rei, na medida em que ele niio passa, afinal de contas, de urna for9a dentre outras, e atacada pelas outras. Tratava-se tambem de tentar estabe1ecer urn tipo de paz irnposta nessas lutas hist6rico-politicas. Tratava-se de codificar de urna vez por todas esse discurso da hist6ria para que ele pudesse integrar-se apnitica do Estado. Dai as tarefas que haviam sido confiadas a Moreau: cotejar os docurnentos da administra9iio publica, po-los a disposi9ao da pr6pria administra9iio publica (primeiro a da fazenda, depois as outras) e, enfirn, abrir esses docurnentos, esse tesouro de docurnentos, a pessoas que seriam pagas pelo rei para fazer ossa pes-
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quisa7• Com a diferen9a, portanto, de que Moreau nao e Racine, de que Luis XVI nao e Luis XlV, e de que se esta longe da descri93.0 cerimoniosa da passagem do Reno - qual e a diferen9a entre Moreau e Racine, entre a antiga historiografia (a que encontramos em seu ponto, de certo modo, mais puro no final do seculo XVII) e essa especie de hist6ria de que 0 Estado esta se incumbindo e cujo controle esta assumindo no final do seculo XVIII? Podemos dizer que a hist6ria deixou de ser urn discurso do Estado sobre si mesmo desde que talvez se tenba largado a historiografia de corte para cair nurna historiografia de tipo administrativo? Eu acho que a diferen9a e consideravel e, em todo caso, que requer ser medida. E ai entiio, nova digressiio, se voces quiserem. 0 que distingue 0 que se poderia denominar a hist6ria das ciencias da genealogia dos saberes e que a hist6ria das ciencias se situa essencialmente num eixo que e, em linhas gerais, 0 eixo conbecimento-verdade, ou, em todo caso, 0 eixo que vai da estrutura do conbecimento a exigencia da verdade. Em contraste com a hist6ria das ciencias, a genealogia dos saberes se situa nurn eixo que e diferente, 0 eixo discurso-poder ou, se voces preferirem, 0 eixo pratica discursiva-enfrentamento de poder. Ora, parece-me que, quando a aplicamos a esse periodo privilegiado por carradas de razoes, que e 0 seculo XVIII, quando a aplicamos a essa area, a essa regiiio, a genealogia dos saberes tem primeiro de desmantelar, antes de mais nada, a problematica das Luzes. Ela tem de desmantelar 0 que na epoca (e, alias, no seculo XIX e ainda no XX) 7.0 resultado desse enorme trabalho realizado
pOf J.~N.
Moreau se
encontra em Principes de morale, de politique et de droit public... , op. cit. Para uma ilustra~ao dos criterios utilizados por J.-N. Moreau na preparal;ao desse trabalho, e para a sua historia, cf. tambem 0 Plan des travaux litteraires ordonnes par sa Majes/e... , op. cit.
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foi descrito como 0 progresso das Luzes, a 1uta do conhecimento contra a ignorancia, da razao contra as quimeras, da experiencia contra os preconceitos, dos raciocinios contra 0 erro, etc. Tudo isso, que foi descrito e simbolizado como a caminhada do dia dissipando a noite, e disso que e preciso, acho eu, livrar-se: [e preciso, em compenSa93.0,] perceber no curso do seculo XVIII, em vez dessa rela93.0 entre dia e noite, entre conhecimento e ignorancia, algo muito diferente: urn imenso e multiplo combate, nlio, pois, entre conhecimento e ignorancia, mas urn imenso e multiplo combate dos saberes uns contra os outros - dos saberes que se opoem entre si por sua morfologia pr6pria, por seus detentores inimigos uns dos outros e por seus efeitos de poder intrinsecos. Vou usar aqui urn ou dois exemplos que me afastarlio provisoriamente da hist6ria - 0 problema, se voces preferirem, do saber tecnico, tecnol6gico. Costuma-se dizer que 0 seculo XVIII e 0 seculo de emergencia dos saberes tecnicos. De fato, 0 que se passou no seculo XVIII foi algo muito diferente. Primeiro, a existencia plural, polimorfa, mUltipla, dispersa, de saberes diferentes, que existiam com suas diferen9as conforme as regiOes geogra£icas, conforme 0 porte das empresas, das oficinas, etc. - estou falando de conhecimentos tecnol6gicos, nlio e? -, conforme as categorias sociais, a eduCa93.0,a riqueza daqueles que os detinham. E tais saberes estavam em luta uns com os outros, uns diante dos oUlros, nurna sociedade em que 0 segredo do saber tecnol6gico valia riqueza e em que a independencia desses saberes, uns em rela93.0 aos oUlros, significava tamoom a independencia dos individuos. Portanto, saber mUltiplo, saber-segredo, saber que funciona como riqueza e como garantia de independencia: era nesse fracionamento que funcionava 0 saber tecnol6gico. Ora, II medida que se desenvolveram tanto as for9as de produ93.o quanto as demandas economicas, 0 valor desses saberes aumentou, a luta desses saberes uns com rela-
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93.0 aos outros, as delimita90es de independencia, as exigencias de segredo, tomaram-se mais fortes e, de certo modo, mais tensas. Nessa mesma ocasi3.o, desenvolveram-se processos de anexa93.o, de confisco, de aprOpria93.0 dos saberes menores, mais particulares, mais loeais, mais artesanais, pelos maiores, eu quero dizer os mais gerais, os mais industriais, aqueles que circulavam mais faciimente; urna especie de imensa luta economico-politica em tomo dos saberes, a prop6sito desses saberes, a prop6sito da dispers3.o e da heterogeneidade deles; imensa luta em tomo das indu90es economicas e dos efeitos de poder ligados II posse exclusiva de urn saber, II sua dispers3.o e ao seu segredo. E nesta forma de saberes mUltiplos, independentes, heterogeneos e secretos que se deve pensar 0 que foi chamado de desenvolvimento do saber tecnol6gico do seculo XVIII; e nessa forma de multiplicidade, e n3.o no progresso do dia sobre a noite, do conhecimento sobre a ignoriincia. Ora, nessas lutas, nessas tentativas de anexa93.0 que S3.0 ao mesmo tempo tentativas de generaliza93.0, 0 Estado vai intervir, direta ou indiretamente, mediante, acho eu, quatro procedimentos. Primeiro, a elimina93.0, a desquaiifica93.0 daquilo que se poderia charnar de pequenos saberes inuteis e irredutiveis, economicamente dispendiosos; elimina93.0 e desqualifica93.0, portanto. Segundo, normaliza93.0 desses saberes entre si, que val permitir ajuslli-los uns aos outros, faze-los comunicar-se entre si, derrubar as barreiras do segredo e das delimita90es geogrMicas e tecnicas, em resurno, tomar intercambhiveis n3.o s6 os saberes, mas tambem aqueles que os detem; normaliza93.0, pois, desses saberes dispersos. Terceira opeTa93.o: classifica93.0 hienirquica desses saberes que perrnite, de certo modo, encaixa-los uns nos outros, desde os mais especificos e mais materiais, que serno ao mesmo tempo os saberes subordinados, ate as formas mais gerais, ate os saberes mais formals, que serno a urn s6 tempo as
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formas envolventes e diretrizes do saber. Portanto, classifica9iiO hierarquica. E, enfim, a partir dai, possibilidade da quarta opera9iio, de urna centraliza9iio piramidal, que perruite 0 controle desses saberes, que assegura as sele90es e permite transruitir a urn so tempo de baixo para cima os conteudos desses saberes, e de cima para baixo as dire90es de conjunto e as organiza90es gerais que se quer fazer prevalecer. A esse movimento de organiza9iio dos saberes tecnologicos correspondeu toda urna serie de pnlticas, de empreendimentos, de institui90es. A Enciclopedia, por exemplo. Habituaram-se aver na Enciclopedia apenas seu lado de oposi9iiO politica ou ideologica monarquia e a urna forma, pelo menos, de catolicismo. De fato, seu interesse tecnologico niio deve ser atribuido a urn rnaterialismo filos6fico, mas realmente a urna opera9iio, a urn so tempo politica e econ6mica, de homogeneiza9iio dos saberes tecnologicos. As grandes investiga90es sobre os metodos do artesanato, sobre as tecnicas metalfugicas, sobre a extra9iio mineira, etc. - essas grandes investiga90es que se desenvolveram desde meados ate 0 fun do seculo XVlIl - corresponderam a esse empreendimento de normaliza9iio dos saberes tecnicos. A existencia, a cria9iio ou 0 desenvolvimento de grandes escolas, como a das Minas ou das Obras Publicas, etc., permitiram estabelecer niveis, cortes, estratos, ao mesmo tempo qualitativos e quantitativos, entre os diferentes saberes, 0 que permitiu a hierarquiza9iio deles. E, enfim, 0 corpo de inspetores, que em toda a superficie do reino deram informa90es e conselhos para a organiza9iio e a utiliza9iio desses saberes tecnicos, assegurou a fun9iio de centraliza9iio. Poderiamos dizer a mesrna coisa tambem - usei 0 exemplo dos saberes tecnicos - a proposito do saber medico. Toda a segunda metade do seculo XVlIl viu desenvolver-se todo urn trabalho de homogeneiza9iio, normaliza9iio, classifica9iio e centraliza9iio, ao mesmo tempo, do saber medico. Como conferir urn con-
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teudo e uma forma ao saber medico, como impor regras homogeneas a pratica dos tratamentos, como impor essas regras popula9iio, menos, alias, para faze-la compartilhar esse saber do que para torOlI-lo aceitivel a ela? Isso foi a cria9iio dos hospitais, dos dispensarios, da Sociedade Real de Medicina, a codifica9iio da profissiio medica, toda urna enorme campanha de higiene publica, toda urna enorme campanha tambem sobre a higiene dos recem-nascidos e das crian9as, etc. 8 No fundo, em todos esses empreendimentos, dos quais eu Ihes citei somente dois exemplos, tratava-se de quatro coisas: sel~iio, normaliza9iio, hierarquiza9iio e centraliza9iio. Siio essas as quatro opera90es que podemos ver em andamento nwn estudo urn pouco detalhado daquilo que e denominado 0 poder disciplinar'. 0 seculo XVlIl foi 0 seculo do disciplinamento dos saberes, ou seja, da organiza9iio interna de cada saber como uma disciplina tendo, em seu campo proprio, a urn so tempo criterios de sele9iio que permitem descartar 0 falso saber, 0 nao-saber, formas de normaliza9iio e de homogeneiza9iio dos conteUdos, forrnas de hierarquiza9iio e, enfim, urna organiza9iio interna de centraliza9iio desses saberes em torno de urn tipo de axiomatiza9iio de fato. Logo, organiza9iio de cada saber como disciplina e, de outro lado, escalonamento desses saberes assim disciplinados do interior, sua intercomunica9iio, sua distribui9iio, sua hierar-
a
8. Sabre os procedimentos de nonnalizallao no saber medico, podemos citar 0 conjunto dos textos de M. Foucault que vao de Naissance de fa clinique. Une archeologie du regard medical (Paris, PUP. 1963) as conferencias brasileiras sobre a histOria da medicina em 1974 (cf. Dits et ecrits, III, n'!' 170, 196 e 229) e, enfun, a analise do policiamento medico em "La politique de la sante au XVIIIe siecle" (1976 e 1979) (in Dits et ecrits, ITI, n~ 168 e 257). 9. Sabre 0 poder disciplinar e seus efeitos sabre 0 saber, veT em particular Surveiller et punir. Naissance de la prison, Paris, Gallimard, 1975.
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quiza,ao reciproca nwna especie de campo global ou de disciplina global a que chamam precisamente a "ciencia". A ciencia niio existia antes do seculo XVIII. Existiam ci'mcias, existiam saberes, existia tambem, se vOCes quiserem, a filosofia. A filosofia era justamente 0 sistema de organiza,ao, ou melhor, de comunica,ao, dos saberes uns em rela,ao aos outros - e e nesta medida que ela podia ter wn papel efetiYO, real, operacional, no interior do desenvolvimento dos conhecimentos. Aparece agora, com 0 disciplinamento dos saberes, em sua singularidade polimorfa, ao mesmo tempo 0 fato e a regra que agora estiio incorporados na nossa cultura e que se chama "ciencia". Desaparece, creio eu, nesse momento, e pelo mesmo motivo, de wn lado 0 papel ao mesmo tempo fundamental e fundador da filosofia. A filosofia, dai em diante, j a nao tera nenhwn papel efetivo para desempenhar no interior da ciencia e dos processos de saber. Desapareee ao mesmo tempo, e reciprocamente, a mathesis, como projeto de uma ciencia universal que serviria tanto de instrumento formal quanta de fundamento rigoroso a todas as ciencias. A ciencia, como dominio geral, como policiamento disciplinar dos saberes, tomou 0 lugar tanto da filosofia quanto da mathesis. E doravante ela vai formular problemas especificos ao policiamento disciplinar dos saberes: problemas de classifica,ao, problemas de hierarquiza,ao, problemas de vizinhan,a, etc. Dessa mudan,a consideravel do disciplinamento dos saberes e do abandono, em conseqiiencia, tanto do discurso filosOfico operante na ciencia quanto do projeto interne as ciencias de mathesis, 0 seculo XVIII so tomou consciencia, voces sabem, sob a forma de wn progresso da razao. Mas eu acho que apreendendo bern que, sob aquilo que se denominou 0 progresso da razao, 0 que se passava era 0 disciplinamento de saberes polimorfos e heterogeneos, e que se pode compreender certo nillnero de coisas. Primeiro, 0 apareci-
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mento da Universidade. E claro, nao 0 aparecimento no sentido estrito, ja que as universidades tinham sua fun,ao, seu papel e sua existencia muito antes. Mas, a partir do fim do seculo XVIII e do inicio do seculo XIX - a cria,ao da universidade napoleonica se situa precisamente ai -, aparece algo que e como wna especie de grande aparelho uniforme dos saberes, com suas diferentes categorias e seus diferentes prolongamentos, seu escalonamento e seus pseudopodes. A universidade tern sobretudo wna fun,ao de sele,ao, nao tanto das pessoas (afinal de contas, isso nao e muito importante, essencialmente), mas dos saberes. 0 papel da sele,ao, ela 0 exerce com essa especie de monopolio de fato, mas tambem de direito, que faz que wn saber que nao nasceu, que nao se formou no interior dessa especie de campo institucional, com limites alias relativamente instaveis, mas que constitui em linhas gerais a universidade, os organismos oficiais de pesquisa, fora disso, 0 saber em estado selvagem, 0 saber nascido alhures, se ve automaticamente, logo de saida, se nao totalmente excluido, pelo menos desclassificado a priori. Desaparecimento do cientista-amador: e wn fato conhecido nos seculos XVIII-XIX. Portanto: papel de sele,ao da universidade, sele,ao dos saberes; papel de distribui,ao do escalonamento, da qualidade e da quantidade dos saberes em diferentes niveis; esse e 0 papel do ensino, com todas as barreiras que existem entre os diferentes escal5es do aparelho universit:irio; papel de homogeneiza,ao desses saberes com a constitui,ao de wna especie de comunidade cientifica com estatuto reconhecido; organiza,ao de wn consenso; e, enfim, centraliza,ao, mediante 0 carater direto ou indireto, de aparelhos de Estado. Compreende-se 0 aparecimento, pois, de algo como a universidade, com seus prolongamentos e suas fronteiras incertas, no inicio do seculo XIX, a partir do momento em que, justamente, se operou esse por em disciplina os saberes, esse disciplinamento dos saberes.
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Segundo fato que se pode compreender a partir dai: 0 que seria como que uma mudan~a na forma do dogmatismo. A partir do momento em que OCOrre uma forma de controle no mecanismo, portanto na disciplina interna dos saberes mediante um aparelho a isso destinado; a partir do moment~ em que se tem essa forma de controle, voces compreendem que se pode perfeitamente renunciar a algo que seria a ortodoxia dos enunciados. Ortodoxia onerosa, ja que essa velha ortodoxia, esse principio, que funcionava como modo de funcionamento religioso, eclesiastico, de controle sobre 0 saber, tinha de acarretar a condena~ao, a exclusao de certo nUmero de enunciados que eram cientificamente verdadeiros e cientificamente fecundos. Essa ortodoxia - que incidia sobre os proprios enunciados, que selecionava os que eram conformes e os que nao eram conformes, os que eram aceita,:eis e os q.ue nao eram aceitaveis -, a disciplina, 0 disclphnamento Interno dos saberes que e implantado no seculo XVII vai substituir essa ortodoxia por outra coisa: um controle que nao incide, pois, sobre 0 conteudo dos enunciados, sobre sua conformidade OU nao com certa verdade mas sobre a regularidade das enuncia~oes. 0 problema secl ~ber quem falou e se era qualificado para falar, em que mV~1 se sltua esse enunciado, em que conjunto se pode coloca-Io, em que e em que medida ele e conforme a outras formas e a outras tipologias de saber. Isso permite ao mesmo tempo, de um lado, um liberalismo num sentido se nao indefinido, pelo menos muito mais amplo quanto ~o proprio conteudo dos enunciados e, do outro, um controle infinitamente mais rigoroso, mais abrangente, mais amplo em sua superficie de apoio, no nivel mesmo dos procedimentos da enuncia~ao. E, com isso, deduz-se dal naturahnente uma possibilidade de rota~ao muito maior dos enunciados, um de~gaste ~uito mais rapido das verdades; dai um desbloqueio eplstemologlCO. Asslm como a ortodoxia incidente sobre 0
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conteudo dos enunciados pOde ser um obstaculo il renova~ao do estoque dos saberes cientificos, assim tambem, em compensa~ao, 0 disciplinamento no nivel das enuncia90es permitiu uma velocidade de renova9ao dos enunciados muito maior. Passou-se, se voces preferirem, da censura dos enunciados para a disciplina da enuncia9ao, ou ainda, da ortodoxia para algo a que eu chamaria a "ortologia", e que e a forma de controle que se exerce agora a partir da disciplina. Bem! Eu me perdi um pouco em tudo isso... Estudamos, pudemos mostrar, como as tecnicas disciplinares de poder!O, consideradas em seu nivel mais tenue, mais elementar, consideradas no nive! do proprio corpo dos individuos, haviam conseguido mudar a economia politica do poder, haviam-lhe modificado os aparelhos; como tambem essas tecnicas disciplinares de poder incidentes sobre 0 corpo haviam provocado nao so um aCUmulo de saber, mas tambem individuado dominios de saber possiveis; e, depois, como as disciplinas de poder aplicadas aos corpos haviam feito sair desses corpos sujeitados algo que era uma ahna-sujeito,
urn "eu", uma psique, etc. Tudo isto, tentei estudar no ano passado ll . Eu penso que agora deveriamos estudar como ocorreu uma outra forma de disciplinamento, de por em disciplina, contemporaneo do primeiro, que nao incide sobre os corpos mas incide sobre os saberes. E poderiamos mostrar, acho eu, como esse disciplinamento incidente sobre os saberes provocou um desbloqueio epistemologico, uma nova forma, uma nova regularidade na prolifera9ao dos saberes. Poderiamos mostrar como esse disciplinamento organizou um novo modo de rela9ao entre poder e saber. Poderiamos 10. Cf. em especial 0 curso no College de France, anos 1971-1972: Theories et institutions penales e 1972-1973: La societe punitive, no prelo. II. Cf. 0 curso no College de France, anos 1974-1975: Les anormaux,
no prelo.
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mostrar, enfim, como, a partir desses saberes disciplinados, apareceu urna regra nova que ja nao e a regra da verdade, mas a regra da ciencia. Tudo isto nos afasta urn pouco da historiografia do rei, de Racine e de Moreau. Poderiamos retomar a analise (mas nao 0 farei aqui) e mostrar como, no momento em que, justamente, a hist6ria, 0 saber hist6rico, entrava nurn campo geral de combate, a hist6ria se encontrava, mas por outras razoes, na mesma situa~ao, no fundo, que esses saberes tecnol6gicos de que eu lhes falava h:i pouco. Tais saberes tecno16gicos, em sua dispersao, em sua morfologia pr6pria, em sua regionaliza~ao, em seu caciter local, com 0 segredo que os rodeava, eram a urn s6 tempo 0 motivo e 0 instrumento de urna luta economica e de urna luta politica; e, nessa luta geral dos saberes tecnol6gicos uns contra os outros, 0 Estado interviera com urna fun~ao, com urn papel de disciplinamento: ou seja, a urn s6 tempo, de sele~ao, de homogeneiza~ao, de hierarquiza~ao, de centraliza~ao. E 0 saber hist6rico, por sua vez, por razoes totalmente diferentes, entrou, aproximadamente na mesma epoca, nurn campo de lutas e de batalhas. Nao mais por razoes diretamente economicas, mas por razoes de luta, e de luta politica. Quando, de fato, 0 saber hist6rico, que ate enta~ fizera parte desse discurso que o Estado, ou 0 poder, fazia sobre si mesmo, quando ele foi enucleado em rela~ao a esse poder e quando se tornou urn instrumento de luta politica, ao longo de todo 0 seculo XVIII, da mesma forma e pela mesma razao houve tentativa, de parte do poder, de retoma-Io e de disciplina-Io. A cria~ao, no fim do seculo XVIII, de urn Ministerio da Hist6ria, a cr\a~ao do grande acervo de arquivos que, alias, ia se tornar a Ecole des Chartes' no seculo XIX, aproximadamente con• Escola superior destmada a formalfao de especialistas em documentos antigos. (N. do T.)
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temporanea da cri~o da Escola de Minas, da Escola de Obras PUblicas - a Escola de Obras PUblicas e urn pouco diferente, pouco importa - corresponde, tambem ela, a esse disciplinamento do saber. Trata-se, para 0 poder monarquico, de disciplinar 0 saber hist6rico, os saberes hist6ricos, e de estabelecer assim urn saber de Estado. S6 que, com esta diferen~a em rela~ao ao saber cientifico: que, na mesma medida em que a hist6ria era realmente - acho eu - urn saber essencialmente antiestataI, entre a hist6ria disciplinada pelo Estado, tornada conteudo do ensino oficial, e essa hist6ria ligada as lutas, como consciencia dos sujeitos em luta, houve urn enfrentamento perpetuo. 0 enfrentamento nao foi reduzido pelo disciplinamento. Enquanto, na ordem da tecnologia, pode-se dizer que, em linhas gerais, 0 disciplinamento operado no decorrer do seculo XVIII foi eficaz e bem-sucedido, em compensa~ao, no que se refere ao saber hist6rico, houve disciplinamento, mas esse disciplinamento nao s6 nao impediu, mas acabou fortalecendo, atraves de todo urn jogo de lutas, de confiscos, de contesta~oes reciprocas, a hist6ria nao estatal, a hist6ria descentralizada, a hist6ria dos sujeitos em luta. E, nesta medida, voces tern perpetuamente dois niveis de consciencia e de saber hist6rico, dois niveis, claro, que vao ficar cada vez mais defasados urn em rela~ao ao outro. Mas essa defasagem jamais impedir:i a existencia de urn e de outro: de urna parte, urn saber efetivamente disciplinado sob forma de disciplina hist6rica, de outra, urna consciencia hist6rica polimorfa, dividida e combatente, que nada mais e que 0 outro aspecto, a outra face da consciencia politica. E urn pouco dessas coisas, ja no fim do seculo XVIII e no inicio do seculo XIX, que eu tentarei Ihes falar.
AULA DE 3 DE MARCO DE 1976 Generalizariio tatica do saber hist6rico. - ConstituifCio,
Revoluriio e historia dc/iea. - 0 selvagem e 0 barbaro. - rres filtragens do barbara: taacas do discurso historico. - Questoes de metoda: 0 campo epistemico e 0 anti-historicismo da burguesia. - Reativariio do discurso historico na Revolufiio. - Feudalismo e romance gatica.
A ultima vez, eu Ihes mostrei como fora formado, constituido, urn discurso hist6rico-politico, urn campo hist6ricopolitico em tomo da rea9lio nobili3r:ia do inicio do seculo XVIII. Agora eu gostaria de me colocar noutro ponto do tempo, ou seja, ao redor da Revolu9lio Francesa, nurn dado momento em que se pode apreender, creio eu, dois processos. De urna parte, ve-se como esse discurso, que fora originalmente Iigado il rea9lio nobili3r:ia, se generalizou, nlio tanto, nlio somente pelo fato de que se teria tornado a forma de certo modo regular, can6nica, do discurso hist6rico, mas tambem na medida em que se tomou urn instrumento tatico que ja nlio era utilizavel somente pela nobreza, e sim, em ultima analise, nurna estrategia ou noutra. 0 saber hist6rico, de fato, ao longo do seculo XVIII, claro que por meio de certo nUmero de modifica90es nas proposi90es fundamentais, tomou-se por fim urna especie de arma discursiva utilizavel, exibivel por todos os advers3r:ios do campo politico. Em surna, eu gostaria de Ihes mostrar como esse discurso hist6rico nlio deve ser tornado como a ideologia ou 0 produto ideol6gico da nobreza e de sua posi9lio de classe, e que
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nao e de ideologia que se trata; trata-se de outra coisa, que tento justamente identificar, e que seria, se voces quiserem, a tMica discursiva, urn dispositivo de saber e de poder que, precisamente, enquanto tMica, pode ser transferivel e se torna finalmente a lei de forma9ao de urn saber e, ao mesmo tempo, a forma comurn it batalha politica. Logo, generaliza9ao do discurso da hist6ria, mas enquanto tMica. o segundo processo que vemos delinear-se no momento da Revolu9ao e 0 modo como essa tatica abriu-se em tres dire90es, correspondentes a !res batalhas diferentes, que acabaram produzindo tres tMicas, tambem elas diferentes: urna que e centrada nas nacionalidades, e que vai se encontrar essencialmente em continuidade, de urn lado, com os fen6menos da lingua, e, por conseguinte, com a filologia; a outra que e centrada nas classes sociais, tendo como fen6meno central a domina9ao econ6mica: por conseguinte, rela9ao fundamental com a economia politica; enfim, urna terceira dire9ao, que dessa feita vai ser centrada nao mais nas nacio-
nalidades, nem nas classes, mas na ra'1a, tendo, como fenomyno central, as especifica90es e sele90es biol6gicas; portanto, continuidade entre esse discurso hist6rico e a probleIruitica biol6gica. Filologia, economia politica, biologia. Falar, trabalhar, viver l . E tudo isso que vamos ver reinvestir-se ou rearticular-se em tOIDO desse saber hist6rico e das taticas que !he sao ligadas. A primeira coisa de que gostaria de !hes falar hoje e, pois, dessa generaliza9ao tatica do saber hist6rico: de que forma ela se deslocou de seu lugar de nascimento, que era a
1. Trata-se aqui, visivelmente, da retomada e da reformulaciio "genealogica" dos campos do saber e das formas de discursividade cuja analise "arqueoI6gica" Michel Foucault havia desenvolvido em Les mots et les choses (op. cit.).
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rea9ao nobiliaria no inicio do seculo XVIII, para se tomar esse instrumento geral de todas as lutas politicas, de qualquer ponto de vista que as consideremos, do fun do seculo XVIII? Primeira questao, razao dessa polivalencia tatica: como e por que esse instrumento tao especifico, esse discurso afinal tao singular, que consistia em cantar 0 louvor dos invasores, p6de se tomar urn instrumento geral nas taticas enos enfrentamentos politicos do seculo XVIII? Eu creio que a razao disso, podemos encontra-la na dire9ao que se segue. Portanto, Boulainvilliers fizera da dualidade nacional 0 principio de inteligibilidade da hist6ria. Inteligibilidade queria dizer tres coisas. Tratava-se primeiro, para Boulainvilliers, de descobrir 0 conflito inicial (bata!ha, guerra, conquista, invasao, etc.), 0 conflito inicial, 0 nucleo belicoso do qual podiam derivar as outras batalhas, as outras lutas, todos os outros enfrentamentos, seja a titulo de conseqiiencia direta, seja por urna serie de deslocamentos, de modifica90es, de reviravoltas nas rela90es de for9a. Logo, uma especie de grande genealogia das lutas atraves de todos os diferentes combates que haviam sido registrados pela hist6ria. Como descobrir a luta fundamental, como reatar 0 fio estrategico de todas essas batalhas? A inteligibilidade hist6rica que Boulainvilliers queria introduzir significava igualmente que se tratava niio s6 de descobrir essa batalha nuclear fundamental e a maneira pela qual os outros combates derivavam dela, mas que curnpria tambem localizar as trai90es, as alian9as antinaturais, as asmcias de uns e as covardias dos outros, todas as preteri90es, todos os calculos inconfessaveis, todos os imperdoaveis esquecimentos que haviam tornado possivel essa transforrna9ao e, ao mesmo tempo, de certo modo, a adultera9ao dessa rela9ao de for9a e desse enfrentamento fundamentais. Tratava-se de fazer urn tipo de grande exame hist6rico ("de quem e 0 erro?"), e, portanto,
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nao s6 de reatar 0 flo estrategico, mas lambem de tra9ar, atraves da hist6ria, a linha as vezes sinuosa, mas ininterrupta, das partilhas morais. Terceiro, essa inteligibilidade hist6rica queria dizer outra coisa: tratava-se, para alem de todos esses deslocamentos taticos, para alem de todas essas malversa90es hist6rico-morais, de redescobrir, de trazer outra vez it luz, certa rela9ao de for9a que fosse a urn s6 tempo a boa e a verdadeira. A verdadeira rela9ao de for9a - no sentido de que se tratava de redescobrir certa rela9ao de fOf9a que nao era ideal, que era real, que era efetivamente registrada, inserida pela hist6ria no decorrer de certa prova de for9a decisiva que fora, nessa ocorrencia, a invasao da Galia pelos francos. Logo, urna certa rela9ao de for9a que fosse historicamente verdadeira, historicamente real, e, em segundo lugar, que fosse urna boa rela9ao de for9a, porque ela seria desembara9ada de todas as altera90es que as trai90es, os diferentes deslocamentos a fizeram sofrer. 0 tema dessa busca de inteligibilidade hist6rica era este: tratava-se de redescobrir urn estado de coisas que fosse urn estado de for9a em sua retidao original. E, esse projeto, voces 0 encontram forrnulado claramente por Boulainvilliers e por seus sucessores. Boulainvilliers dizia, por exemplo: trata-se de lembrar nossos usos presentes em sua verdadeira origem, de descobrir os principios do direito comurn da na9ao e de examinar 0 que foi mudado na seqiiencia do tempo. E du Buat-Nan9ay, urn pouco mais tarde, deveria dizer: e de acordo com 0 conhecimento do espirito primitivo do governo que se deve revigorar certas leis, moderar aquelas cujo vigor excessivo poderia alterar 0 equilibrio, restabelecer a harmonia e as rela90es. Portanto, tres tarefas nessa [especie] de projeto de analise da inteligibilidade da hist6ria: reatar 0 fio estrategico, tra9ar 0 fio das divisoes morais e restabelecer a retidiio de algo a que se pode chamar 0 ponto constituinte da politica e
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da hist6ria,
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momenta de constitui9ao do reino. Eu digo
"ponto constituinte", "momento de constitui93.0", para evitar urn pouco, sem todavia apaga-Ia totahnente, a palavra "constitui9aO". De fato, e mesmo de constitui9ao, voces estiio vendo, que se trata: faz-se hist6ria para restabelecer a constitui9ao, mas a constitui9ao de modo algum entendida como urn conjunto explicito de leis que teriam sido forrnuladas em dado momento. Tampouco se trata de reencontrar uma especie de conven9ao juridica fundadora, que teria sido acertada, no tempo ou no arquitempo, entre 0 rei, entre 0 soberano e seus suditos. Trata-se de reencontrar algo que tern, portanto, consistencia e situa9aO hist6rica; que nao e tanto da ordem da lei quanta da ordem da for9a; que 000 e tanto da ordem do escrito quanta da ordem do equilibrio. Algo que e urna constitui9aO, mas quase como a entenderiam os medicos, ou seja: rela9ao de fOf9a, equilibrio e jogos de propor90es, dissimetria estavel, desigualdade congruente. Ede tudo isso que falavam os medicos do seculo XVIII quando evocavam a "constitui9ao"'. Essa ideia de constitui9ao, na literatura hist6rica que se ve forrnar-se em torno da rea9ao nobiliaria, e, de certo modo, medica e militar ao mesmo tempo: rela9ao de for9a entre 0 bern e 0 mal, rela9ao de for9a lambem entre os adversarios. Esse momenta constituinte que se trata de reencontrar, deve-se alcan9a-Io pelo conhecimento e pelo restabelecimento de urna rela9ao de for9a fundamental. Trata-se de instaurar uma constitui9ao que seja acessivel nao pelo restabelecimento de velhas leis, mas por algo que seria
2. A doutrina medica da "constitui93.0" tern uma tonga historia, mas aqui M. Foucault se refere decerto Ii teona anatomopato16gica fonnulada no secuto XVIII, a partir de Sydenham, Le Brun, Bardeu, e que sera desenvolvida, na primeira metade do seculo XIX. por Bichat e pela Escola de Paris (cf. Naissance de la ciinique, op. cit.).
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uma revolu~ao das for~as - revolu~ao no sentido em que, precisamente, se trata de passar do auge da noite para 0 auge do dia, do ponto mais baixo para 0 ponto mais alto. 0 que foi possivel, a partir de Boulainvilliers - e eu acho que e isso 0 fundamental -, foi 0 acoplamento dessas duas no~5es, a de constitui~ao e a de revolu~ao. Enquanto na literatura hist6rico-juridica, que fora essencialmente ados parlamentares, entendia-se por constitui~ao essenclalmente as leis fundamentais do reino, ou seja, um aparelho juridico, algurna coisa da ordem da conven~ao, ficava evidente que essa volta da constitui~ s6 podia ser 0 restabelecimento, de certo modo decis6rio, das leis trazidas de volta it plena luz. A partir do momento, ao contrano, em que a constitui~ao ja niio e uma estrutura juridica, um conjunto de leis, mas uma rela~ao de for~a, fica muito claro que essa rela~ao niio pode ser restabelecida a partir do nada; s6 se pode restabelece-Ia se existir algo como um movimento ciclico da hist6ria, se existir, em todo caso, algo que permita fazer a hist6ria girar em torno de si mesma e traze-Ia de volta a seu ponto inicial. Em conseqiiencia, voces veem que se reintroduz ai, com essa ideia de uma constitui~ao que e medico-militar, ou seja, rela~ao de for~a, algo como uma filosofia da hist6ria ciclica, a ideia, em todo caso, de que a hist6ria se desenvolve de acordo com circulos. E, por isso, eu digo que essa ideia "se introduz". Para dizer a verdade, ela se reintroduz ou, se voces preferirem, 0 velho tema milenarista da volta das coisas se acopla a um saber hist6rico articulado. Essa filosofia da hist6ria como filosofia do tempo ciclico se torna possivel a partir do seculo XVIII, desde que se puseram em ~iio as duas no~5es, de constitui~ao e de rela~ao de for~a. Com efeito, em Boulainvilliers, voces veem aparecer, creio que pela primeira vez, no interior de um discurso hist6rico articulado, a ideia de uma hist6ria ciclica. Os impe-
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rios, dizia Boulainvilliers, crescem e caem em decadencia da forma como a luz do sol ilumina 0 territ6ri03 • Revolu~ao solar, revolu~ao da hist6ria: voces veem que as duas coisas agora estiio ligadas. Portanto, temos esse par, esse vinculo de tres temas - constitui~ao, revolu~ao, hist6ria ciclica: ai esta, se voces quiserem, um dos aspectos do instrumento tatico que Boulainvilliers inventara. Segundo aspecto: procurando 0 ponto constituinte - que seja born e verdadeiro - na hist6ria, 0 que e que Boulainvilliers quer fazer? Trata-se, para ele, de recusar procurar esse ponto constituinte na lei, claro, mas tambem de recusar procura-Io nanatureza: antijuridicismo (e do que acabei de lhes falar ha pouco), mas igualmente antinaturalismo. 0 grande adversano de Boulainvilliers e de seus sucessores sera a natureza, sera 0 homem natural; ou ainda, se voces preferirem, 0 grande adversario desse genero de analise (e e nisso 3. Em Essai surla noblesse de France contenant une dissertation sur son origine et abaissement (obm redigia por volta de 1700 e editada em 1730 in Continuation des memoires de litterature... ,.t. IX, op. cit.), a prop6sito do "declinio", da "decadencia" da antiga RaIna, Boulainvilliers reconhece que esse e "urn destino comum a todos os Estados de tonga dura(jao", e acrescenta: "... 0 mundo e 0 joguete de uma sucessao continua; por que a nobreza e suas vanta~ gens estariam fora da regra comum?" Nao obstante, a prop6sito dessa suces~ sao, ele pensa que "dos nossos muitos filhos, alguem abrini essa obscuridade em que vivemos para devolver ao nosso nome seu antigo brilho" (p. 85). Quanta a ideia de cielo, encontramo-la mais na mesma epoea em Scienza nuova (Napoles, 1725) de G. B. Vico. Em Astrologia mondiale (1711) de Boulainvilliers, editada porRenee Simon em 1949, e formulada a ideia "pre-hegeliana", poderiamos dizer, da ''transferencia das monarquias de uma regiao e de uma na~ao para outra". Trata-se ai, para Boulainvilliers, de uma "ordem" que ''nao tern, todavia, nada de fixo, porquanto nao ha sociedade sempre duradoura e os Imperios mais vastos e mais temidos estao sujeitos a destruir~se por meios iguais aqueles que os formaram; muitas vezes nascem outras sociedades, no proprio seio deles, que usam por seu turno de fo~a e de persuasao, fazem conquistas sobre as antigas e as sujeitam por sua vez" (pp. 141~2).
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tambem que as analises de Boulainvilliers viio se tornar instrumentais e taticas), e 0 homem natural, e 0 selvagem, entendido em dois sentidos: 0 selvagem, born ou mau, esse homem natural que os juristas ou os te6ricos do direito criaram, antes da sociedade, para constituir a sociedade, como elemento a partir do qual 0 corpo social podia constituir-se. Procurando 0 ponto da constitui9iio, Boulainvilliers e seus sucessores niio tentavam reencontrar esse selvagem, anterior, de certo modo, ao corpo social. 0 que eles tambem querem conjurar e esse outro aspecto do selvagem, esse outro homem natural que e 0 elemento ideal, inventado pelos economistas, esse homem que niio tern hist6ria nem passado, que s6 e movido por seu interesse e que troca 0 produto de seu trabalho por outro produto. 0 que 0 discurso hist6rico-politico de Boulainvilliers e de seus sucessores quis, pois, conjurar foi, a urn s6 tempo, 0 selvagem te6rico-juridico, 0 selvagem saido de suas florestas para contratar e fundar a sociedade, e foi igualmente 0 selvagem homo oeconomicus que e destinado atroca e ao escambo. Esse par, no fundo, do selvagem eda troca e, creio eu, absolutamente fundamental, nao s6 no pensamento juridico, nao s6 na teoria do direito no seculo XVIII; mas e tambem esse par do selvagem e da troca que vamos encontrar continuamente, desde 0 seculo XVIII e a teoria do diieito ate a antropologia dos seculos XIX e XX. No fundo, esse selvagem, nesse pensamento juridico do seculo XVIII, bern como no pensamento antropol6gico dos seculos XIX e XX, e essencialmente 0 homem da troca; e 0 trocador, 0 trocador dos direitos ou 0 trocador dos bens. Enquanto trocador dos direitos, ele funda a sociedade e a soberania. Enquanto trocador dos bens, ele constitui urn corpo social que e, ao mesmo tempo, urn corpo economico. Oesde o seculo XVIII, 0 selvagem e 0 sujeito da troca elementar. Pois bern, foi no fundo contra esse selvagem (cuja importiincia era grande na teoria juridica do seculo XVIII) que 0
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discurso hist6rico-politico, inaugurado por Boulainvilliers, construiu urna outra personagem, que e tao elementar, se voces quiserem, quanto 0 selvagem dos juristas (e logo dos antropologistas), mas que e constituido de modo muito diferente. Esse adversario do selvagem e 0 barbaro. o barbaro se opOe ao selvagem, mas de que maneira? Primeiro, nisto: no fundo, 0 selvagem e sempre selvagem na selvageria, com outros selvagens; assim que esta nurna rela9iiO de tipo social, 0 selvagem deixa de ser selvagem. Em compensa9ao, 0 barbaro e alguem que s6 se compreende e que s6 se caracteriza, que s6 pode ser definido em compara9iio a urna civiliza9iio, fora da qual ele se encontra. Niio h:i barbaro, se nao h:i em algum lugar urn ponto de civiliza9iiO em compara9ao ao qual 0 barbara e exterior e contra 0 qual ele vern lutar. Urn ponto de civiliza9iio - que 0 barbaro despreza, que 0 barbaro inveja - em compara9ao ao qual 0 barbaro se encontra nurna rela9iio de hostilidade e de guerra permanente. Niio h:i barbaro sem urna civiliza9ao que ele procura destruir e da qual procura apropriar-se. 0 barbaro e sempre 0 homem que invade as fronteiras dos Estados, e aquele que vern topar nas muralhas das cidades. 0 barbaro, diferentemente do selvagem, nao repousa contra urn pano de fundo de natureza ao qual pertence. Ele s6 surge contra urn pano de fundo de civiliza9iio, contra 0 qual vern se chocar. Ele niio entra na hist6ria fundando urna sociedade, mas penetrando, incendiando e destruindo urna civiliza9iio. Portanto, eu creio que 0 primeiro ponto, a diferen9a entre 0 barbaro e 0 ;elvagem, e essa rela9ao com urna civiliza9iio, portanto com urna hist6ria previa. Niio h:i barbaro sem urna hist6ria previa, que e a da civiliza9ao que ele vern incendiar. E, de outra parte, 0 barbaro nao e 0 vetor de trocas, como 0 selvagem. 0 barbaro e essencialmente vetor de algo muito diferente da troca: e 0 vetor de domina9iio. 0 barbaro, diferentemente do selvagem, se apodera, se apropria; pratica niio a
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ocupa9iio primitiva do solo, mas a rapina. Isto quer dizer que sua rela9iio de propriedade e sempre secundliria: sempre se apodera apenas de urna propriedade previa; da mesma forma, poe os outros a seu servi90, manda outros cultivarem a terra, manda cuidarem de seus cavalos, prepararem suas armas, etc. Sua liberdade, tambem ela, so repousa na liberdade perdida dos outros. E, na rela9iio que mantem com 0 poder, o barbaro, diferentemente do selvagem, jamais cede sua liberdade. 0 selvagem e aquele que tern entre as miios urna especie de superabundiincia de liberdade, que ele acaba cedendo para garantir sua vida, sua seguran9a, sua propriedade, seus bens. 0 barbaro, por sua vez, nunca cede sua liberdade. E, quando se atribui urn poder,. quando se atribui urn rei, quando elege urn chefe, ele 0 faz niio, em absoluto, para diminuir sua propria parte de direitos, mas, ao contrlirio, para multiplicar sua for9a, para ficar mais forte em suas rapinas, para ficar mais forte em seus roubos e em seus estupros, para ser urn invasor mais certo de sua propria for9a. .E como multiplicador de sua propria for9a individual que 0 barbaro instala urn poder. Isto quer dizer que 0 modelo de govemo, para 0 barbaro, e urn govemo necessariamente militar, que niio repousa em absoluto nesses contratos de cessiio civil que caracterizam 0 selvagem. Foi essa personagem do barbaro que, acho eu, a historia do tipo da de Boulainvilliers p6s em cena no seculo XVIII. Compreende-se entiio muito bern por que 0 selvagem, apesar de tudo, mesmo quando se the reconhecem algumas maldades e alguns defeitos, no pensamento juridico-antropologico de nossos dias e ate nas utopias bucolicas e americanas que encontramos agora, 0 selvagem, como voces sabern, e sempre born. E como niio seria born, ja que tern precisamente como fun9iio trocar, dar - dar, e claro, da melhor maneira possivel para seus interesses, mas nurna forma de reciprocidade em que reconhecemos, se voces quiserem, a
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forma aceitavel, e juridica, da bondade? 0 barbaro, em compensa9iio, niio pode niio ser mau e maldoso, mesmo que se lhe reconhe9am qualidades. Ele so pode ser cheio de arrogiincia e desurnano, ja que niio e, justamente, 0 homem da troca e da natureza; ele e 0 homem da historia, e 0 homem da pilhagem e do incendio, e 0 homem da domina9iio. "Urn povo altivo, brutal, sem patria, sem lei", dizia Mably (que, porem, amava muito os barbaros); ele tolera violencias atrozes, pois para ele elas estiio na ordem das coisas publicas4 . No barbaro, a alma e grande, nobre e altiva, mas sempre associada a velhacaria e a crueldade (tudo isto esta em Mably). De Bonneville dizia, falando dos barbaros: "esses aventureiros [...] so respiram a guerra [...] a espada era 0 direito deles e eles 0 exerciam sem remorsos"5. E Marat, tambem ele grande amigo dos barbaros, os diz "pobres, grosseiros,
sem comercio, sem artes, mas livres"6. Romem d.a natureza, o barbaro? Sim e niio. Niio, no sentido de que esta sempre ligado a urna historia (e a urna historia previa). 0 barbaro surge contra 0 pano de fundo de historia. E, se ele se reporta a natureza, dizia du Buat-Nan9ay (que visava ao seu inimigo intimo, Montesquieu), se e 0 homem natural, e que a 4. "Urn povo altivQ, brutal, sem patria, sem lei [ ... ] Os franceses podiam tolerar, da parte de seu chefe, algumas violencias atrozes mesmo, porque elas estavam na ordem dos costumes publicos" (G.-B. de Mably, Observations sur ['histoire de France, Paris, 1823, cap. I, p. 6; 1~ ed. Genebra, 1765). 5. N. de Bonneville, Histoire de l'Europe moderne depuis !'irruption des peuples du Nord dans I'Empire romainjusqu'u fa paix de 1783, Genebra, 1789, voL I, l~ parte, cap, I, p. 20, A citayao tennina assim: "a espada era 0 direito deles, e eles 0 exerciam sem remorsos, como 0 direito da natureza". 6. "Pobres, grosseiros, sem comercio, sem artes, sem industria, mas livres" (Les chafnes de f'esclavage. Ouvrage destine u developper Ies noirs aUentats des princes contre Ie peuple, Paris, ano I, cap. "Des vices de la constitution politique"; cf. reed. Paris Union Generale d'Editions, 1988, p, 30).
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natureza das coisas e 0 que? E a rela9ao do sol com a lama que ele faz secar, e a rela9ao do carda com 0 asno que dele se alimenta7• Nesse campo hist6rico-politico, em que 0 saber das armas e constantemente utilizado como instrumento politico, eu creio que se pode conseguir caracterizar cada urna das grandes tMicas que vao ser estabelecidas no seculo XVIII, pelo modo como se faz atuar os quatro elementos que estayam presentes na anaIise de Boulainvilliers: a constitui9ao, a revolu9ao, a barbarie e a domina9ao. No fundo, 0 problema vai ser 0 de saber: como vai se estabelecer 0 ponto de jun9aO 6tirno entre a fUria da barbarie, de urn lado, e 0 equilibrio dessa constitui9ao que se quer encontrar? Como fazer que atuem, numa organiza9ao correta das for9as, 0 que 0 barbara pode trazer consigo de violencia, de liberdade, etc.? Que e preciso, noutras palavras, conservar, e que e preciso descartar do barbaro para fazer que funcione uma constitui9aO justa? Que e preciso encontrar, de fato, de barbarie util? o problema e, no fundo, a filtragem do barbara e da barbarie: como se deve filtrar a domilla9ao barbara para consumar a revolu9ao constituinte? E este problema, e sao as diferentes solu90es para esse problema da filtragem necessaria da barbarie para a revolu9aO constituinte, e isso que vai definir no campo do discurso hist6rico, nesse campo hist6rico-politico - as posi90es taticas dos diferentes grupos, dos diferentes interesses, dos diferentes centros da batalha - seja a nobreza ou 0 poder monarquico, seja a burguesia ou as diferentes tendencias da burguesia. Eu creio que todo esse conjunto de discursos hist6ricos, no seculo XVIII, e dominado pelo seguinte problema: 7. Cf. L. G. conde du Buat-Nanc;ay, elements de lapolitique... , op. cit., voL I, liv. I, cap. I-IX: "De l'egalite des hommes". 0 contexto dessa citayao (se e que e uma), que nao pudemos encontrar, poderia ser esse.
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nao, em absoluto, revolu9aO ou barbarie, mas revolu9aO e barbarie, economia da barbarie na revolu9ao. Verei nao urna prova, mas urna especie de confirma9ao de que e este 0 problema, nurn texto que alguem me entregou ou~o dia, no momento em que eu estava saindo da aula. E um texto de Robert Desnos, que mostra perfeitamente bem como, ate no seculo XX ainda, esse problema - eu ia dizer: socialismo ou barbarie' - revolu9aO ou barbarie e urn problema falso, e que o verdadeiro problema e: revolu9ao e barbarie. Pois bem, tomarei como testemunho esse texto de Robert Desnos, que, suponho, foi publicado em La revolution surrealiste, nao sei, pois faltam referencias. Eis 0 texto. Ate parece saido diretamente do seculo XVIII: "Oriundos do Leste tenebroso, os civilizados continuam para 0 Oeste a mesma marcha de Atila, de Tamerlao e de tantos outros desconhecidos. Quem diz civilizados diz antigos barbaros, ou seja, bastardos dos aventureiros da noite, ou seja, aqueles que 0 inimigo (romanos, gregos) corrompeu. Expulsos das orlas do Pacifico e das encostas do Himalaia, 'essas grandes companhias', infieis it sua missao, encontram-se agora diante daqueles que os expulsaram nos dias nao muito longinquos das invasoes. Filhos de Kalmuk, netos dos hunos, dispam-se urn pouco dessas roupas copiadas do vestuario de Atenas e de Tebas, das coura9as apanhadas em Esparta e em Roma, e apare9am nus como seus pais em cima de seus pequenos cavalos. E voces,
8. M. Foucault alude aqui ao gropo de reflexao que, a partir de 1948, comeyara a reunir-se em toma de Cornelius Castoriadis e que, a partir de 1949, publicara Socialisme ou barbarie. A revista deixara de ser publicada no n? 40, em 1965. Impulsionados por Castoriadis e por Claude Lefort, trotskislaS dissidentes, militantes, intelectuais (dentre os quais Edgard Morin, JeanFranc;ois Lyotard, Jean Laplanche, Gerard Genette, etc.) desenvolviam temas tais como, por exemplo, a critica do regime sovietico, a questao da democracia direta, a critica do reformismo, etc.
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nonnandos lavradores, pescadores de sardinhas, fabricantes de sidIa, subarn wn pouco nesses barcos arriscados que, mais alem do circulo polar, tra~ararn wna longa esteira antes de atingir esses prados Umidos e essas florestas abundantes de ca~a. Matilha, reconhe9a seu·dono! Acreditava fugir dele, desse Oriente que a expulsava investindo-a do direito de destrui9ao que voce nao soube conservar, e eis que voce 0 encontra de costas, uma vez terminada a volta ao mundo. Pe90-lhe, nao imite 0 cao que quer agarrar a cauda, correra perpetuarnente atnis do Oeste, pare. Preste-nos conta wn pouco de sua misslio, grande exercito oriental, tornado hoje Os Oeidentais.''9 Pois bern, concretamente, para tentar ressituar os diferentes discursos hist6ricos e as raticas politicas a que eles se prendem, Boulainvilliers havia introduzido ao mesmo tempo, na hist6ria, 0 grande barbaro louro, 0 fato juridico e hist6rico da invasao e da conquista violenta, a apropria9ao das terras e a sujei~ao dos homens e, enfim, wn poder monarquico extremamente limitado. De todos esses ~os maci90S e solidarios que constituiam a irruP9ao do fato da barbane na hist6ria, quais os que vao ser descartados? E 0 que vai se conservar para reconstituif a rel~ao correta de for9a que deve sustentar 0 reino? Tomarei tres grandes modelos de filtro. Houve muitos outros no seculo XVIII; tomo estes porque foram politicamente, e tambem epistemologicamente sem duvida, os mais ifnportantes; correspondem cada qual a tres posi90es politicas bern diferentes. Privneira filtragem do barbaro, a mais rigorosa, a filtragem absoluta, a que consiste em tentar nao deixar passar nada do barbaro para a hist6ria: trata-se, nesta posi9ao, de
. 9. R. Desnos, "Description d'une revoltc prochaine", La Revolution sumaJiste, n~ 3, 15 de abril de 1925, p. 25. Reed.: La revolution sumo/iste (1924-1929). Pari" 1975.
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mostrar que a monarquia francesa nao tern atnis de si uma invasao gerrnlinica que a teria introduzido e que teria sido, de certo modo, sua portadora. Trata-se de mostrar que tampouco a nobreza tern como ancestrais os conquistadores vindos do outro lado do Reno, e que, portanto, os privilegios da nobreza - que a colocam entre 0 soberano e os outros suditos - ou the foram concedidos tardiamente, ou ela os usurpou mediante algwn meio obscuro. Em suma, em vez de reportar a nobreza privilegiada a wna horda barbara fundadora, trata-se de esquivar esse nucleo barbaro, de faze-lo desaparecer e de deixar de certo modo a nobreza em suspenso - de fazer dele uma cria9ao tardia e superficial a wn s6 tempo. Essa tese e, claro, a tese da monarquia, a que voces encontram em toda wna serie de historiadores, que vai de Dubos lO a Moreau". Essa tese, articulada nwna proposi9ao fundamental, resulta aproximadamente nisto: pura e sifnplesmente, os francos - diz Dubos, diril em seguida Moreau - no fundo sao wn mito, wna ilusao, wna cria9ao total de Boulainvilliers. Os francos nao existem: isto quer dizer que, primeiro, nao houve em absoluto invasao. De fato, que e que se passou? Houve invasOes, mas feitas por outros: invasao dos butgUndios, invasao dos godos, contra as quais os romanos nada podiam. E foi contra essas invasoes que os romanos recorreram - mas a titulo de aliados - a wna pequena popula9ao
10. Cf. 1.-B. Dubos, Histoire critique de l'etablissement de la monarchiejran9aise dans Ies Gaules, Paris, 1734. 11. cr. J.-N. Moreau, Lefons de morale, de po/itique et de droit public, puisees dans I'his/oire de 10 monarchie, Versalhes, 1773; Expose historique des administrations populaires aux plus anciennes epoques de notre monarchie, Paris. 1789; Exposition et defense de notre constitution monarchique franfaise. prechJees de /'Bistoire de toutes nos assembIees nationales. Paris. 1789.
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que tinha alguns meritos militares e que eram precisamente os francos. Mas os francos nao foram recebidos, de modo algum, como invasores, como grandes barbaros suscetiveis de domina9ao e de rapina, mas como pequena popula9ao, aliada e uti!. De sorte que eles receberam imediatamente os direitos de cidadania; nao so os converteram imediatamente em cidadaos galo-romanos, mas lhes deram os instrumentos de poder politico (e, a esse respeito, Dubos lembra que Clovis, afinal de contas, foi consul romano). Portanto, nem invasao nem conquista, mas imigra9ao e alian9a. Nao houve invasao, mas nem sequer se pode dizer que houve urn povo franco, com sua legisla9ao e seus costumes. Primeiro, pura e simplesmente, porque eles eram muito pouco nurnerosos diz Dubos, para poder tratar os gauleses "como turco a mou: ro"12 e impor-lhes seus proprios Mbitos e seus proprios costumes. Eles nem sequer podiam, perdidos como estavam nessa rnassa galo-romana, manter seus proprios Mbitos. Portanto, eles literalmente dissolveram-se. E, alias, como nao se teriam dissolvido nessa sociedade e nesse aparelho politico galo-romano, urna vez que nao tinham realmente nenhurn conhecimento nem da administra9ao publica nem do governo? Ja a arte da guerra deles, Dubos pretende que a tinham copiado dos romanos. Em todo caso, os mecanismos da administra9ao publica que eram, diz Dubos, admiraveis na Galia romana, os francos nao tiveram 0 cuidado de destrui-los. Nada da Galia romana foi desnaturado pelos francos, diz
12. Velha expressao que significa "tratar alguem como as turcos tratavam as mauros". Dubos escreve: "Queira 0 leitor concordat em prestar aten900 ao humor natural dos habitantes da GaIia., que em nenhum seculo passaram por esrupidos nem por covardes, sem lan;:ar mao de outras provas; ver-se-a bern que e impassivel que urn punhado de francos tenha tratado como lurea a mouro urn milhao de romanos das GaIias" (Histoire critique..., vol. IV, liv. VI, pp. 212-3).
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Dubos. A ordem triunfou. Logo, os francos foram absorvidos e seu rei ficou simplesmente, de certo modo, no topo, na superficie do edificio galo-romano apenas penetrado por alguns imigrantes de origem gerrnanica. Apenas 0 rei ficou, pois, no topo do edificio, rei que herdou precisamente direitos cesareos do imperador romano. 1sto quer dizer que nao se teve, em absoluto, como acreditava BouIainvilliers, urna aristocracia de tipo barbaro mas, logo de saida, urna monarquia absoluta. E foi vanos seculos mais tarde que ocorreu a ruptura; que ocorreu algo analogo it invasao, mas urna especie de invasao interna 13. Ai, a analise de Dubos se desloca para 0 fim dos carolingios e 0 inicio dos Capetos, onde localiza urn enfraquecimento do poder central, desse poder absoluto de tipo cesareo, de que os merovingios se tinham beneficiado no inicio. Em compensa9ao, os oficiais delegados pelo soberano outorgam-se cada vez mais poder: 0 que era de sua al9ada administrativa, eles transforrnaram em feudos, como se fosse propriedade deles. E e assim que nasce, a partir dessa decomposi9ao do poder central, urna coisa, que e 0 feudalismo: feudalismo que vOCes veem que e urn fenomeno tardio, de modo algum ligado it invasao, mas it destrui9ao interna do poder central, e que constimi urn efeito, que tern os mesmos efeitos que urna invasao, mas urna invasao que teria sido feita do interior por pessoas que usurparam urn poder do qual eram simplesmente delegados. "0 desmembramento da soberania e a mudan9a dos oficios em senhorias produziram" e urn texto de Dubos que eu leio para voces - "efeitos totalmente semelhantes aos da invasao estrangeira, elevaram entre 0 rei e 0 povo urna casta dominadora e fizeram da Galia
13. No tocante acritica de Boulainvilliers em Dubos, cf. ibid., caps. 8 e 9.
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uriJ. verdadeiro pais de conquista."14 Esses tres elementos -
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tocracia, mas de uma aristocracia, como voces veem, artificial e completamente protegida, completamente independente da invasao franca e da barbarie que ela trazia consigo. Entiio, e contra essa conquista, contra essa usurpayiio, contra essa invasao interior, que vao se desencadear as lutas: 0 monarca de urn lado, as cidades igualmente, que haviam guardado a liberdade dos municipios rornanos, vao lutarjuntos contra os feudais. Voces tern ai, nesse discurso de Dubos, de Moreau e de todos os historiadores monarquistas, a inversiio, peya por peya, do discurso de Boulainvilliers, tendo, porem, esta importante transformayao: 0 foco da analise historica se desloca por causa da invasao, e dos primeiros merovingios, para este outro fato que foi 0 nascimento do feudalismo e dos primeiros Capetos. Voces veem tambem - e isso e importante - que a invasao da nobreza e analisada niio como 0 efeito de urna vitoria militar e a irrupyao da barbarie, mas como 0 resultado de urna usurpayao interna. 0 fato da conquista e sempre afrrmado, mas despojado tanto de sua paisagem barbara quanto dos efeitos de direito que a vitoria militar podia acarretar. Os nobres nao sao barbaros, sao escroques, escroques politicos. E essa a primeira posiyao, a primeira utilizayao uitica - por inversao - do discurso de Boulainvilliers.
Outra filtragem agora, outra filtragem do barbaro. Trata-se, nesse outro tipo de discurso, dessa feita, de dissociar urna liberdade germiinica, ou seja, uma liberdade barbara, do carater exclusivo dos privilegios da aristocracia. Em outras palavras, trata-se - e nisso essa tese, essa tatica, vai ficar muito proxima da de Boulainvilliers - de continuar a valorizar, contra 0 absolutismo romano da monarquia, as liberdades que os francos e os barbaros trouxeram consigo. Os bandos hirsutos, vindos do outro lado do Reno, entraram de fato na Galia e trouxeram consigo suas liberdades. Mas esses bandos hirsutos nao eram germanos guerreiros constituindo urn nueleo aristocnitico, que ia manter-se como tal no corpo da sociedade galo-romana. Houve uma inundayiio de guerreiros, siro, mas trata-se, de fato, de todo urn povo em armas. A forma politica e social que se introduziu na Galia nao foi a de urna aristocracia, foi, ao contnirio, a de uma democracia, da mais ampla democracia. E entao essa tese, voces encontram em Mablyl" em Bonneville l6 e em Marat ainda, em Les chaines de I'esclavage [As correntes da escravidao]. Portanto, democracia barbara dos francos, que nao conheciam forma alguma de aristocracia, que so conheciam urn povo igualitario de soldados-cidadaos: "Urn povo altivo, brutal", diz Mably, "sem patria, sem lei"l', no qual cada soldado-cidadao so vivia do saque e niio queria ser incomodado por nenhum castigo. Sobre esse povo, nenhuma autoridade continua, nenhuma autoridade razoavel ou constituida. Pois bern, segundo Mably, foi essa democracia brutal, barbara, que se estabeleceu na Galia. E, a partir dai, a partir desse estabelecimento, uma serie de processos: essa avidez, esse
14. Apenas a Ultima frase parece ser uma cital;30: depois de ter falado das usurpa90es dos oficiais momirquicos e da conversao das comissoes dos duques e condes em dignidades hereditirias, Dubas escreve: "Foi entao que as G
15. G.-B. de Mably, Obsell'ations sur I'histoire de France, op. cit. 16. N. de Bonneville, Histoire de I'Europe moderne depuis /'irruption des peuples du Nord. .. , op. eft. 17. G.-B. de Mably, Observations... , op. cit., p. 6.
invasao, conquista, dominayao - que caracterizavam, segundo Boulainvilliers, 0 que sucedeu no momento dos francos, Dubos os reencontra, rnas como fenomeno interno, devidos
ao nascimento, ou correlativos ao nascimento, de uma aris-
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egolsmo dos barbaros francos, que era qualidade quando se tratava de transpor 0 Reno e de invadir a Galla, toma-se defeito asslm que eles se instalam; os francos ja niio se ocupam senao de pilhagens e de apropriac;5es. Negligenciam tanto 0 exercicio do poder quanto as assembleias de marc;o ou de maio que controlavam a cada instante, a cada ano, 0 poder monarquico. Portanto, deixam 0 rei agir, deixam constituir-se tambem, acima deles, uma monarquia que tende a tomar-se absoluta. E 0 elero, decerto ignorando todos esses ardis segundo Mably -, interpreta os costumes germiinicos em termos de direito romano: creem-se suditos de urna monarquia, enquanto eram de fato 0 corpo de uma republica. Quanto aos funcionarios oficiais do soberano, eles tambern assurnem cada vez mais poder, de sorte que se esta deixando a democracia geral que fora trazida pela barbarie franca e entrando nurn sistema a urn s6 tempo monarquico e aristocratico. E urn lento processo, contra 0 qual hi, todavia, urn momenta de reac;ao. E quando Carlos Magno, sentindo-se justamente cada vez mais dominado e ameac;ado pela aristocracia, ap6ia-se de novo nesse povo que os reis precedentes haviam menosprezado. Carlos Magno restaura 0 Campo de Marte e as assembleias de maio; deixa todos entrarem nessas assembl6ias, meSilla os nao-guerreiros. Logo, curto instante de volta ademocracia gennanica, e mais tarde, depois desse interregno, retomada do lento processo que faz desaparecer a democracia - e duas figuras gemeas vao nascer. De uma parte, a de uma monarquia, a de [Hugo Capeto]. E como a monarquia consegue estabelecer-se? Na medida em que, contra a democracia barbara e franca, os aristocratas aceitam escolher urn rei que vai tender cada vez mais para o absolutismo; mas, por outro lado, como recompensa dessa sagrac;ao regia operada pelos nobres na pessoa de Hugo Capeto, os Capetos vao dar como feudo aos nobres as alc;adas administrativas e os cargos de que haviam sido encarre-
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gados. E, em conseqiiencia, mediante uma curnplicidade entre os nobres que fizeram 0 rei e 0 rei que fez 0 feudalismo que nasce, acima da democracia barbara, a figura gemea da monarquia e da aristocracia. Contra 0 pano de fundo da democracia germanica, ternos, pais, esse duplo processo. Eclaro, a aristocracia e a monarquia absoluta brigarao urn dia, mas nao convem esquecer que elas sao, no fundo, irmas gemeas. Terceiro tipo de discurso, terceiro tipo de analise, terceira titica ao mesmo tempo, que e no fundo a mais sutil e a que ted a fortuna historica maior, se bern que, na mesma epoca em que foi formulada, ela 0 tenha tido decerto com infinitamente menos brilho do que a tese de Dubos ou a de Mably. Trata-se, nessa terceira operac;ao titica, de distinguir no fundo duas barbaries: uma, ados germanos, que vai ser a barbarie rna, aquela de que e necessaria emancipar-se; e depois urna barbarie boa, a barbarie dos gauleses, que e a unica realmente portadora de liberdade. Com isso, fazem-se duas operac;5es importantes: de urn lado, vai-se dissociar liberdade e germanidade, que haviam sido unidas por Boulainvilliers; e, do outro, vai-se dissociar a romanidade e 0 absolutismo. Isto quer dizer que vao se descobrir na Galia romana esses elementos de liberdade acerca dos quais todas as teses precedentes haviam admitido mais ou menos que haviam sido importadas pelos francos. Em linhas gerais, se voces quiserem, enquanto a tese de Mably era obtida por urna transformac;ao da tese de Boulainvilliers, desagregaC;ao democritica das liberdades germanicas, obtem-se a nova tese, que e a de Brequigny 18, de ChapsaP9, etc., por uma intensifica18. L. G. O. F. de Brequigny, Dip/ornata, chartae, epistolae et alia monumenta ad resfranciscas speclantia, Paris, 1679-1783; Ordonnances des rois de France de la troisieme race, Paris, 1. XI, 1769, e t. XII, 1776. 19. J.-F. Chapsal, Discours sur fa feodalite et l'allodialilli, suivi de Dissertations sur leji-anc-alleu des coutumes d'Auvergne, du Bourdonnais, du Nivernois, de Champagne, Paris, 1791.
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,ao e urn deslocamento daquilo que fora, de certo modo, registrado urn pouco marginalmente por Dubos, quando dissera que contra 0 feudalismo se levantaram juntos 0 rei e depois as cidades, as cidades que haviam resistido a usurpa,ao feudal. A tese de Brequigny, de Chapsal, a que vai se tomar, por sua importancia, a tese dos historiadores burgueses do seculo XIX (de Augustin Thierry, de Guizot), consiste em dizer que, nO fundo, 0 sistema politico dos romanos tinha dois pIanos. Claro, no nivel do governo central, da grande administrac;ao publica romana, lida-se, pelos menos desde 0 Imperio, com urn poder absoluto. Mas os romanos haviam deixado aos gauleses as liberdades originarias que eram deles. De sorte que a Galia romana e, em certo sentido, uma parte desse grande imperio absolutista, mas .0 igualmente salpicada, penetrada, de toda urna serie de focos de liberdade que sao, no fundo, as velhas liberdades gaulesas ou celticas, que os romanos deixaram intocadas e que vao continuar a funcionar nas cidades, naqueles famosos municipios do Imperio romano, cnde, com uma forma que alias e mais ou menos copiada da velha cidade romana, as liberdades arcaicas, as liberdades ancestrais dos gauleses e dos celtas vao continuar a funcionar. A liberdade (e e pela primeira vez, acho eu, que isso aparece nessas analises historicas) .0, pois, urn fenomeno compativel com 0 absolutismo romano; e urn fen6meno gaules, mas e sobretudo urn fenomeno urbano. A liberdade pertence as cidades. E .0 precisamente na medida em que pertence as cidades que essa liberdade vai poder lular e tomar-se uma for,a politica e historica. Sem duvida, essas cidades romanas vao ser destruidas quando se produz a invasao dos francos e dos germanos. Mas os francos e os germanos, camponeses nomades, em todo caso barbaros, menosprezam as cidades e se instalam no campo aberto. Portanto, as cidades se reconstituem, menosprezadas que eram pelos ffarreos, e
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se beneficiam naquele momento de urn novo enriquecimento. Quando se instala 0 feudalismo, no final do reinado dos carolingios, .0 claro que os grandes senhores laico-eclesiasticos vao tentar passar a mao nessa riqueza reconstituida das cidades. Mas .0 ai que as cidades, tendo adquirido forc;a atraves da historia gra,as as suas riquezas, as suas liberdades, gra,as tambem a comunidade que formavam, vao poder lutar, resistir, revoltar-se. E sao todos esses grandes movimentos de revolta das comunas, que vemos desenvolveremse desde os primeiros Capetos e que acabariio por impor, tanto ao poder monirquico quanto a aristocracia, 0 respeito de seus direitos e, ate certo ponto, suas leis, seu tipo de economia, suas formas de vida, seus costumes, etc. 1550 nos seculos XV e XVI. Voces estao vendo que dessa vez temos urna tese que, muito mais do que as teses anteriores, muito mais ate do que a de Mably, vai poder ser a tese do terceiro estado, ja que e a primeira vez que a historia da cidade, a historia das institui,oes urbanas, a historia lambem da riqueza e de seus efeitos politicos, vao poder ser articuladas no interior da analise historica. 0 que e feito, ou ao menos esbo,ado, nessa historia e urn terceiro estado que se forma nao simplesmen-
te pelas concess6es do rei, mas gray3s a sua energia, a sua riqueza, ao seu comercio, gra<;as a urn direito urbano muito elaborado, copiado em parte do direito' romano, mas igualmente articulado com base na antiga liberdade, ou seja, na antiga barbarie gaulesa. Desde ja, e pela primeira vez, a romanidade que sempre tivera no pensamento historico e politico do seculo XVIII a cor do absolutismo e que sempre estivera do lado do rei, vai colorir-se de liberalismo. E, longe de ser a forma teatral na qual 0 poder monarquico vai refletir sua historia, a romanidade, gra,as a essas analises de que lhes estou falando, vai ser urn objeto da propria burguesia. A burguesia vai poder recuperar a romanidade, sob a forma
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do municipio gala-romano, como sendo, de certo modo, seu foro de nobreza. A municipalidade galo-romana e a nobreza do terceiro estado. E e essa municipalidade, essa forma de autonomia, de liberdade municipal, que 0 terceiro estado vai reclamar. Tudo isso, e claro, deve ser ressituado no debate que ocorreu no seculo XVIII em torno, justamente, das liberdades e das autonomias municipais. Remeto voces, par exemplo, ao texto de Turgot que data de 1776 20 . Mas voces veem que, por essa mesma razao, a romanidade vai poder, as vesperas da Revolu,ao, despojar-se de todas as conota,5es monarquistas e absolutistas que haviam sido suas ao longo do seculo XVIII. Vai poder haver uma romanidade liberal, a qual, por conseguinte, vai tentar voltar mesmo quem nao e monarquista, mesmo quem nao e absolutista. Pode-se voltar a romanidade, mesmo quando se e burgues. E voces sabem que a Revolu,ao nao se privani disso. Outra importiincia tambem desse discurso de Brequigny, de Chapsal, etc., e que ele permite, voces estao venda, urn formidavel alargamento do campo hist6rico. No fundo, com os historiadores ingleses do seculo XVII, mas tambem com Boulainvilliers, partiu-se do pequeno nucleo que era a fato da invasao, daquelas algumas decadas, daquele seculo, em todo caso, durante 0 qual as hordas barbaras haviam tornado de assalto a Galia. E voces veem que, pouco a pouco, assistimos a todo urn alargamento. Ja se viu, por exemplo, com Mably, a importancia que tinha urna personagem como Carlos Magno; como tambem, com Dubos, a analise hist6rica se havia estendido para as primeiros Capetos e para a feudalismo. E eis que agora, com as analises de Brequigny, de Chapsal, etc., a foco, 0 dominio do saber historicamente util e politicamente fecundo vai, de urn lado, estender-se para a
20. R.-J. Turgot, Memoire sur les municipaliMs, Paris, 1776.
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alto, porquanto se remonta ate a organiza,ao municipal dos romanos e, finalmente, ate as velhas liberdades gaulesas e celticas; formidavel subida para tras. De outro lado, a hist6ria vai, para baixo, estender-se atraves de todas as lutas, atraves de todas as revoltas comunais que, desde a inicio do feudalismo, vao levar ao advento, parcial em todo caso, da burguesia como for,a econ5mica e politica, nos seculos XV e XVI. Dai em diante e urn milenio e meio de hist6ria que vai se tornar 0 campo do debate hist6rico e politico. 0 fato juridico e hist6rico da invasao agora se fragmentou completamente, e lidamos com urn imenso campo de lutas generalizadas que cobrem, pois, 1500 anos de hist6ria, com atores tao variados quanta os reis, a nobreza, 0 clero, os soldados,
os oficiais mom\rquicos,
0
terceiro estado, os burgueses, as
camponeses, as habitantes das cidades, etc. E urna hist6ria que se ap6ia sabre institui,5es como as liberdades romanas as liberdades municipais, a Igreja, a educa,ao, a comercio: a lingua e assim por diante. Fragmenta,ao geral do campo da hist6ria; e e precisamente nesse campo que os historiadores do seculo XIX vao retomar 0 trabalho. Voces me dido: por que todos esses detalhes, por que essa introdu,ao dessas diferentes titicas no interior do campo da hist6ria? E verdade que eu poderia ter, pura e simplesmente, passado diretamente para Augustin Thierry, para Montlosier e para todos as que, a partir dessa instrurnenta,ao do saber, tentaram pensar 0 fenameno revolucionario.
Demorei-me nisso por duas raz6es. Primeiro, por uma razao de metoda. Como voces estao vendo, pode-se muito bern situar como, a partir de Boulainvilliers, constitui-se urn discurso historico e politico cuja area de objetos, cujos elementos pertinentes, cujos conceitos, cujos metodos de analise sao muito proximos uns dos outros. Formou-se uma especie de discurso hist6rico no decorrer do seculo XVIII que e comum a toda uma serie de historiadores contudo
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muito opostos em suas teses bern como em suas hipoteses ou em seus sonhos politicos. Pode-se perfeitamente, sem ruptura nenhurna, percorrer toda essa rede de proposi90es fundamentais que esteiam cada tipo de analise; todas as transforma90es pelas quais se pode passar de urna hist6ria que [louva] os francos (como Mably, como Dubos) para urna hist6ria, ao contrario, da democracia franca. Pode-se muito bern passar de uma dessas hist6rias para a outra situando algumas transforma90es muito simples nas proposiyoes fundamentais. Ternos, pais, uma trama epistemica muito densa de todos os discursos hist6ricos, sejam quais forem afinal as teses hist6ricas e os objetivos politicos que eles se proponham. Ora, essa trama epistemica ser tao densa nao significa de modo algum que todo 0 mundo pense da mesma forma. Essa e mesma, pelo contnirio, a condiyao para que se possa nao pensar da mesma forma, e a condi9ao para que se possa pensar de uma forma diferente e para que essa diferen9a seja politicamente pertinente. Para que os diferentes sujeitos falem, possam ocupar posi90es taticamente opostas, para que possam, uns em face dos outros, encontrar-se em posiy3.o de adversarios, para que, em conseqiiencia, a oposi9ao seja uma oposi9ao tanto na ordem do saber quanta na ordem da politica, era justamente preciso
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regularidade do campo epistemico, e a homogeneidade no modo de forma9ao do discurso, que vai deixa-lo utilizavel nas lutas que, quanta a elas, sao extradiscursivas. Era por
essa razao de metodo, portanto, que insisti nessa distribui9ao das diferentes tMicas discursivas no interior de urn campo hist6rico-politico coerente, regular e formado de maneira muito densa21 . lnsisti nisso tambem por outra razao - uma razao de fato - que diz respeito ao que se passou no momenta mesmo da Revolu9ao. Trata-se disto: il parte a ultima forma de discurso de que acabo de lhes falar (a de Brequigny ou de Chapsal, etc.), voces estao venda que, no fundo, os que tinham menos interesse em investir seus projetos politicos na hist6ria eram, claro, as pessoas da burguesia ou do terceiro estado, porque retornar il constitui9aO, pedir a volta a algo como urn equilibrio de for9as, implicava de certo modo que se estivesse seguro de, no interior dessa rela9ao de for9a, encontrar-se a si mesma. Ora, era bern evidente que
0
ter-
assim afrantados, funcionarem como conjuntos taticos dife-
ceiro estado, a burguesia nao podiam muito, em todo caso antes de meados da ldade Media, situar-se a si mesmos como sujeitos hist6ricos nesse jogo de rela90es de for9a. Enquanta se interrogavam os merovingios, as carolingios, as invasoes francas ou ainda mesmo Carlos Magno, como se poderia encontrar algurna coisa que fosse da ordem do terceiro estado ou da burguesia? Dai 0 fato de que a burguesia, contrariamente ao que se diz, foi, no seculo XVlII, certamente a mais reticente, a mais relutante il hist6ria. Profundamente, a aristocracia e que foi hist6rica. A monarquia 0 foi, os parlamentares igualmente. Mas a burguesia ficou
rentes em estrategias globais (em que nao se trata simplesmente de discurso e de verdade, mas igualmente de poder, de status, de interesses economicos). Em outras palavras, a reversibilidade tatica do discurso depende diretamente da homogeneidade das regras de forma9ao desse discurso. E a
21. Esta passagem e uma pel;a significativa para ser incorporada a documental;3.0 do debate e das controversias suscitadas pelo conceito de episteme, elaborado por Foucault em Les mots et fes choses (op. cit.) e retomado em L 'archeofogie du savoir (op. cit.), cap. IV, § VI.
que houvesse esse campo muito denso, essa rede muito densa que regularizasse 0 saber hist6rico. Quanto mais regularmente formado e 0 saber, mais e possivel, para os sujeitos que nele falam, distribuir-se segundo linhas rigorosas de afrontamento, e mais e possive! fazer esses discursos,
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muito tempo anti-historicista, ou anti-historiadora, se voces preferirem. Esse carater anti-historiador da burguesia, nos 0 vemos manifestar-se de duas formas. Primeiro, durante toda a primeira parte do seculo XVIII, a burguesia foi, antes, favoravel ao despotismo esclarecido, ou seja, a uma certa forma de modera,ao do poder monarquico, que nao repousava porem na historia, mas numa limita,ao devida ao saber, a filosofia, a tecnica, a administra,ao publica, etc. E depois, a burguesia, na segunda parte do seculo XVIII, sobretudo antes da Revolu,ao, tentou escapar ao historicismo ambiente reclamando uma constitui,ao, que nao fosse justamente uma re-constituic;ao, mas fosse essencialmente, se nao anti-historica, pelo menos a-historica. Dai, voces compreendem, 0 recurso ao direito natural, 0 recurso a algo como 0 contrato social. 0 rousseaunismo da burguesia no final do seculo XVIII, antes e no inicio da Revolu,ao, era exatamente uma resposta ao historicismo dos outros sujeitos politicos que lutavam nesse campo da teoria e da analise do poder. Ser rousseauniano, apelar precisamente ao selvagem, apelar ao contrato, era escapar a toda essa paisagem que era definida pelo barbaro, por sua hist6ria e por suas relac;5es com a civilizac;ao. E claro, esse anti-historicismo da burguesia nao ficou inalterado; ele nao impediu toda uma rearticula,ao da historia. No momento da convoca,ao dos Estados-Gerais, voces veem que os Cademos de Queixas estao cheios de referencias hist6ricas, mas as principais delas sao,
e 6bvio, as da
propria nobreza. E foi simplesmente para responder a multiplicidade dessas ref"rencias feitas as capitulares, ao edito de Pistes22 , as praticas merovingias ou carolingias, que a bur-
zero
0
22. Num coocHio realizado em Pistes (au Pitres), cujas resolw;:5es tranome de Edito de Pistes, sob a influencia do arcebispo Hincmar, cui-
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guesia, por sua vez, reativou toda uma serie de saberes historicos, de certo modo a titulo de replica polemica a multiplicidade das referencias historicas que voces encontram nos Cademos da Nobreza. E depois voces tern uma segunda reativa,ao historica que e, sem duvida, mais importante e mais interessante. Era a reativa,ao, na propria Revolu,ao, de certo nllmero de momentos ou de formas historicas que funcionaram, se voces preferirem, como fatos da historia, cuja volta ao vocabulario, as institui,oes, aos signos, as manifesta,oes, as festas, etc., permitia dar uma figura visivel a uma Revolu,ao compreendida como ciclo e como volta. E foi assim que voces tiveram duas grandes formas historicas reativadas na Revoluc;ao, a partir mesmo, de eerte
modo, desse rousseaunismo juridico que fora 0 fio diretor durante muito tempo. De uma parte, reativa,ao de Roma, melhor, reativa,ao da cidade romana, ou seja, tanto da Roma arcaica, republicana e virtuosa, quanta da cidade galo-romana, com suas liberdades e sua prosperidade: dai a festa romana, como ritualiza,ao politica dessa forma historica que vinha, a titulo de constitui,ao, de certo modo fundamental, das liberdades. Outra figura reativada, a figura de Carlos Magno, de quem voces viram 0 papel que the dava Mably e que e tornado como ponto de jun,ao entre as liberdades francas e as liberdades galo-romanas: Carlos Magno, 0 homem que convocava 0 povo para 0 Campo de Marte; Carlos Magno soberano-guerreiro, mas ao mesmo tempo protetor do comercio e das cidades; Carlos Magno rei germiinico e imperador romano. Houve todo urn sonho carolingio que se
dou~se da organiz39ao do sistema monetario, ordenou-se a demo1i9ao dos castelos construidos pelos senhores e concedeu-se a virias cidades 0 direito de cunhar moeda. A assembleia instruiu tambem 0 processo de Pepino II, rei da Aquitania, que foi declarado despojado de seus Estados.
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desenvolveu ja no lU1CIO da Revolu,ao, que atravessou a Revolu,ao e do qual se fala muito menos do que da festa romana. 0 Campo de Marte, a festa de 14 de julho de 1790 e uma festa carolingia; ela se passa precisamente no Campo de Marte, e era uma certa rela,ao do povo assim reunido com seu soberano, essa rela,ao de modalidade carolingia, que ela permitia, ate certo ponto, reconstituir ou reativar. E, em todo caso, essa especie de vocabulario historico implicito que esta presente na festa de julho de 1790. E a melhor prova disso, alias, e que num clube de jacobinos, em junho de 1790, algumas semanas antes da festa, alguem havia pedido que Luis XVI fosse, no decorrer dessa festa, destituido de seu titulo de rei, que se substituisse esse titulo de rei pelo de imperador, e que se gritasse Ii sua passagem nao "Viva 0 rei!" mas "Luis, 0 imperador!", pais, quem e imperador "imperat sed non regit", comanda mas naD governa, e imperador e nao e rei. Cumpria, dizia tal projeto23 , que Luis XVI voltasse do Campo de Marte com a coroa imperial na cabe,a. E e, claro, no ponto de confluencia desse sonho carolingio (urn pouco desconhecido) com 0 sonho romano que vamos encontrar, claro, 0 imperio napoleonico. Outra forma de reativa,ao historica no interior da Revo]u,ao: a execra,ao do feudalismo, daquilo a que Antraigues, nobre aliado Ii burguesia, chamava "0 mais espantoso flagelo com que 0 ceu, em sua colera, pudesse castigar uma na,ao livre"24. Pois bern, essa execra,ao do feudalismo assume varias formas. Primeiro, 0 retorno puro e simples da tese de Boulainvilliers, da tese da invasao. E voces encon-
23. Tratawse de uma m09ao apresentada na sessao de 17 de junho de 1790 (cf. F.-A. Aulard, La societe des jacobins, Paris, 1889-1897, t. I, p. 153). 24. E. L. H. 1., conde de Antraigues, Memoires sur la constitution des Etats provinciaux, impressa em Vivarois, 1788, p. 61.
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tram assim textos - este e do padre Proyart: "Senhores francos, somos mil contra urn: fomos por bastante tempo vossos vassalos, tarnai-vas os nossos, apraz-nos reaver 0 patrim6nio de nossos pais."" E isso que 0 padre Proyart queria que o terceiro estado dissesse Ii nobreza. E Sieyes, em seu famoso texto ao qual eu vollarei da proxima vez, dizia: "Por que nao mandar embora para as florestas da Franconia todas essas familias que conservam a louca pretensao de ser oriundas da ra,a dos conquistadores e de ter herdado direitos de conquiSla?"26 E, em 1795 ou 1796, nao me lembro mais, Boulay de la Meurthe dizia, depois dos grandes movimentos de emigra,ao: "Os emigrados representam os vestigios de uma conquista de que a na,ao francesa pouco a pouco libertou-se."27 Voces veem que aqui se formou algo que tamb"m vai ser importante bern no inicio do seculo XIX, ou seja, a reinlerpreta,ao da Revolu,ao Francesa e das lutas politicas e sociais que a perpassaram, em termo de historia das ra~as. E e igualmente do lado dessa execra,ao do feudalismo que se deve por certo recolocar a valoriza,ao ambigua do gotico que vemos aparecer nos famosos romances medievais da epoca da Revolu,ao; esses romances que sao a urn so tempo romances de terror, de pavor e de misterio, mas igualmente romances politicos, pois sao sempre narrativas de abuso de poder, de extorsoes; e a fabula de soberanos injustos, de se25. 1.-B. Proyart, Vie du Dauphin pere de Louis XV, Paris/Lyon, 1782, vol. I, pp, 357-8. Citado in A. Devyver, Le sang epure... , op. cit., p. 370. 26. E,-J. Sieyes, Qu 'est-ce que Ie Tiers-Etat?, ed. citada. cap. II, pp. 10·1. A frase comelVa, no texto, assim: "Por que nao destituiria ele [0 Terceiro Estado]. .." 27. Cf. A.·I, Boulay de la Meurthe, Rapport presenfe Ie 25 Vendemiaire an VI au Conseil des Cinq-Cents sur les mesures d'osfracisme, d'exil, d'expulsion les plus con venables aux principes de justice et de liberti:, ef les plus propres consolider la republique. Citado in A. Devyver, Le sang epure... , op. cit., p. 415.
a
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nhores implacaveis e sanguinitrios, de padres arrogantes, etc.
o romance g6tico e um romance de fic,ao cientifica e politica: fic,ao politica na medida em que se trata de romances essencialmente centrados no abuso de poder, e de fic,ao cientifica na medida em que se trata da reativa,ao, no plano do imaginario, de todo urn saber sobre 0 feudalismo, de todo um saber sobre 0 g6tico que tem, no fundo, urn seculo de idade. Nao foi a literatura, nao foi a imagina,ao que introduziram, no final do seculo XVIII, como uma novidade ou como um renascimento absoluto esses temas do g6tico e do feudalismo. Eles se inseriram, de fato, na ordem do imaginario na mesma medida em que esse g6tico e esse feudalismo foram 0 m6bil de uma luta agora secular no plano do saber e das formas de poder. Muito antes do primeiro romance g6tlCO, quase um seculo antes, brigava-se em torno do que eram, hist6rica e politicamente, os senhores, seus feudos, seus poderes, suas formas de domina,ao. Todo 0 seculo XVIII foi, no plano do direito, da hist6ria e da politica, impregnado pelo problema do feudal. E foi somente no momento da Revolu,ao - portanto um seculo depois desse enorme trabalho no plano do saber e no plano da politica - que finalmente houve uma reassull9aO, imagimiria, nesses romances de fic,ao cientifica e politica. Nesse dominio, voces tiveram entao, por essa razao, 0 romance g6tico; mas tudo isso deve ser recolocado nessa hist6ria do saber e das tMicas politicas que ele permite. Pois bem, entiio, da pr6xima vez, eu lhes falarei da hist6ria como retomada da Revolu,ao.
AULA DE lODE MARC;O DE 1976 Reelaborar;iio politico do ideia de nar;iio no Revolur;i:io: Sieyes. - Conseqiiencias tearicas e efeitos sabre 0 discurso historico. - as dois gabaritos de inteligibilidade do nova leoria: dominar;iio e totalizar;iio. - Montlosier e Augustin Thierry. - Nascimento do dialetica.
Eu creio que no seculo XVIII 0 discurso da hist6ria, essencialmente ele e quase s6 ele, e que fizera da guerra 0 analisador principal, e quase exclusivo, das rela,oes politicas; o discurso da hist6ria, portanto, e nao 0 discurso do direito, e nao 0 discurso da teoria politica (com seus contratos, seus selvagens, seus homens das pradarias ou das florestas, seus estados da natureza, a luta de todos contra todos, etc.); nao foi isso, foi 0 discurso da hist6ria. Entao, eu gostaria agora de mostrar como, e de uma forma um pouco paradoxal, e a partir da Revolu,ao que esse elemento da guerra, constitutivo mesmo da inteligibilidade hist6rica do seculo XVIII, vai ser, se nao eliminado do discurso da hist6ria, pelo menos reduzido delimitado, colonizado, implantado, repartido, civilizado ~e voces preferirem, e ate certo ponto apaziguado. E que, afinal de contas, a hist6ria (tal como a havia narrado Boulainvilliers, ou du Buat-Nan,ay, pouco importa) fizera surgir 0 grande perigo; 0 grande perigo de que fiquemos presos numa guerra infindavel; 0 grande perigo de que todas as nossas rela,oes, sejam elas quais forem, sejam sempre da ordem da domina,ao. E e esse duplo perigo, da guer-
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ra infindavel como pano de fundo da histaria e da rela,ilo da domina,ilo como elemento principial da politica, que vai ser, no discurso histarico do seculo XIX, reduzido, repartido em perigos regionais, em episadios transitarios, retranscrito em crises e em violencias. Porero mais ainda, acho ell, mais essencialmente, esse perigo vai ser destinado a uma especie de apaziguamento final, nilo no sentido do equilibrio born e verdadeiro que os historiadores do seculo XVIII haviam buscado, mas no sentido de reconcilia,ilo. Essa inversilo do problema da guerra no discurso da histaria, eu nilo creio que seja 0 efeito do transplante ou, de certo modo, do controle assumido por uma filosofia diale" tica sobre a histaria. Eu creio que houve algo como uma dialetiza,ilo interna, uma autodialetiza,ilo do discurso historico que corresponde, e claro, ao seu emburguesamento. E 0 problema seria saber como, a partir desse deslocamento (se nilo dessa decadencia) do papel da guerra no discurso histarico, essa rela,ilo de guerra dominada assim no interior do discurso histarico vai reaparecer, mas com urn papel negativo, de certo modo exterior: urn papel nilo mais constitutivo da histaria, mas protetor e conservador da sociedade; a guerra nilo mais como condi,ilo de existencia da sociedade e das rela,5es politicas, mas condi,ilo de sua sobrevivencia em suas relayoes politicas. Vai aparecer, nesse momento, a ideia de uma guerra interna como defesa da sociedade contra os perigos que nascem em seu praprio corpo e de seu pr6prio corpo; e, se voces preferirem, a grande reviravolta do histarico para 0 biolagico, do constituinte para 0 medico no pensamento da guerra social. Entao, hoje, eu vou tentar descrever esse movimento de autodialetiza,ilo e, por conseguinte, de emburguesamento, da histaria, do discurso histarico. Eu tentei lhes mostrar, da ultima vez, como e por que, no campo hist6rico-politico que fora constituido no seculo XVIII, era a burguesia, cuja
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posi,ilo era em ultima analise a mais dificil, que tinha mais dificuldade para utilizar 0 discurso da histaria como arrna no combate politico. Gostaria de Ihes mostrar, agora, como veio 0 desbloqueio, nilo, em absoluto, porque a burguesia de certo modo se atribuiu ou reconheceu uma histaria, mas a partir de algo bern particular que foi a reelabora,ilo nilo histarica, mas politica, dessa famosa no,ilo de "na,ilo" que a aristocracia convertera no sujeito e no objeto da histaria no seculo XVIII. Foi deste papel, ou seja, da reelabora,ilo politica da na,ilo, da ideia de na,ilo, que se fez uma transforma,ilo que tornou possivel urn novo tipo de discurso hist6rico. Tomarei, se nilo exatamente como ponto inicial, pelo menos como exemplo dessa transforrna,ilo, evidentemente, 0 famoso texto de Sieyes sobre 0 terceiro estado, texto que, como voces sabem, formula as tres quest5es: "Que e 0 Terceiro Estado? Tudo. Que ele foi ate agora na ordem politica? Nada. o que ele exige ser? Tornar-se alguma coisa nela."l Texto ao mesmo tempo famoso e desgastado, mas que, creio eu, quando 0 olhamos urn pouco mais de perto, traz certo numero de transforma,5es essenciais. A propasito da na,ilo (volto a coisas ja ditas para resumi-Ias), voces sabem que, em linhas gerais, a tese da monarquia absoluta era a de que a na,ilo nilo existia, ou de que pelo menos, se existia, ela sa podia existir na medida em que encontrava sua condi,ilo de possibilidade, e sua unidade substancial, na pessoa do rei. Ha na,ilo nilo porque ha urn grupo, uma multidilo, urna multiplicidade de individuos que habitariam numa terra, que teriam a mesma lingua, os mesmos costumes, as mesrnas leis. Nao e isso que faz a nayao. o que faz a na,ilo e que hi individuos que, uns ao lado dos DutrOS, nao sao mais do que individuos, nao formam sequer
1. E.-J. Sieyes, Qu 'esf-ce que Ie Tiers.Etat?, ed. citada, p. 1.
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urn conjunto, mas tern, todos, cada qual individualmente, uma certa rela91io, a urn so tempo juridica e fisica, com a pessoa real, viva, corporal do rei. E 0 corpo do rei, em sua rela91io fisico-juridica com cada urn de seus suditos, que faz 0 corpo da na9ao. Urn jurista do final do seculo XVII dizia: "cada particular representa urn s6 individuo em relayao ao rei"*. A na91io n1io forma corpo. Ela reside por inteiro na pessoa do rei. E e dessa na91io - mero efeito juridico, de certo modo, do corpo do rei, que so tinha sua realidade na realidade linica e individual do rei - que a rea91io nobiliiria havia tirado urna multiplicidade de "na90es" (ao menos duas, em todo caso); e, a_partir dai, ela havia estabelecido, entre essas na90es, rela90es de guerra e de domina91io; fizera 0 rei passar para 0 lado dos instrumentos de guerra e de domina91io de urna na91io sobre a outra. N1io e 0 rei que constitui a na91io; e urna na91io que se atribui urn rei precisamente para lutar contra as outras na90es. E essa historia, escrita pela rea91io nobiliiria, fizera dessas rela90es a trama da inteligibilidade historica. Com Sieyes, vamos ter urna defini91io totalmente diferente, ou melhor, urna defini91io desdobrada, da na91io. De urna parte, urn estado juridico. Sieyes diz que para que haja
uma nac;ao sao necessanas duas coisas: uma lei cornUID e urna legislatura'. E isso quanto ao estado juridico. Esta primeira defini91io da na91io (ou melbor, de urn primeiro conjunto de condi90es necessirias para que a na91io exista) exige portanto, para que se possa falar da na91io, muito menos do que exigia a defini91io da monarquia absoluta. Isto quer dizer que, para que haja na91io, n1io e necessario que haja urn rei. Nem se-
* Manuscrito,
antes de "cada particular": "0 rei representa a nal;.3.0 e dada como citada in P. E. Lemontey, (Euvres,
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quer e necessario que haja urn governo. Antes mesmo da forma91io de qualquer governo, antes do nascimento do soberano, antes da delega91io do poder, a na91io existe, contanto que ela se tenha atribuido uma lei comum, por meio de uma instancia que ela qualificou para atribuir as leis e que e precisamente a legislatura. Logo, a na91io e muito menos do que requeria a defini91io da monarquia absoluta. Mas e, por outro lado, muito mais do que 0 exigido pela defini91io da rea91io nobiliaria. Para esta, para a historia tal como a escrevia Boulainvilliers, bastava, para que houvesse uma na91io, que houvesse homens agrupados por urn certo interesse, e que houvesse entre eles urn certo llUmero de coisas em cornuro, como os costumes, os Mbitos, eventualmente uma lingua. Para que haja uma na91io, segundo Sieyes, deve haver, portanto, leis explicitas e instancias que as formulem. 0 par lei-legislatura e a condi9ao formal para que haja na91io. Mas essa e apenas a primeira etapa da defini91io. Para que uma na9ao subsista, para que sua lei seja aplicada, para que sua legislatura seja reconhecida (e isto n1io so no exterior, pelas outras na90es, mas no interior mesmo), para que ela subsista e prospere como condi91io n1io mais formal de sua existencia juridica, mas como condi91i0 historica de sua existencia na historia, eprecise Dutra coisa, e precise outras condi90eS. E e nestas condi90es que Sieyes se detem. S1io as condi90es de certo modo substanciais da na91io, e Sieyes ve dois grupos delas. Acima de tudo, 0 que ele denomina "trabalhos", ou seja, primeiro a agricultura, segundo 0 artesanato e a industria, terceiro 0 comercio, quarto as artes liberais. Porem, aIem desses "trabalhos", e precise 0 que ele denomina "fun90eS": e 0 exercito, e a justi9a, e a Igreja e e a administra91io publicaJ . "Trabalhos" e "fun90es": diriamos,
int~ira e". Esta passagem
Pans, t. Y, 1829, p. 15. 2. "Vma lei comum e uma representalVao comum, Nal;ao" (ibid., p. 12).
e isso que faz uma
3. "Que e precise para que uma Na<;:ao subsista e prospere? Trabalhos particulares e fuo<;:oes publicas" (ibid., p. 2: cf. cap. I, pp. 2-9).
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decerto com mais verossimilhan~a, "fun~5es" e "aparelhos" para designar esses dois conjuntos de requisitos histaricos da na~ao. Mas 0 importante e precisamente que seja nesse nivel de fun~5es e de aparelhos que sejam definidas as condi~5es da existencia histarica da na~ao. Ora, fazendo isso, acrescentando a essas condi~5es juridico-formais da na~ao, condi~5es histarico-funcionais, eu creio que Sieyes inverte (e e a primeira coisa que se pode assinalar) a dire~ao de tadas as analises que haviam sido feitas ate entao, seja no sentido da tese monarquista, seja nurna dire~ao do tipo rousseauniana. Com efeito, enquanto havia reinado a defmi~ao juridica da na~ao, no fundo esses elementos que Sieyes isola como condi~ao substancial da na~ao - a agricultura, 0 comercio, a industria, etc. - 0 eram? Nao eram a condi~ao para que a nar;ao existisse; erarn, ao contnirio,
0
efeito da existencia
da na~ao. Era precisamente quando os homens, distribuidos individualmente na superficie da terra, no limite da floresta ou nas pradarias, queriam desenvolver sua agricultura, ter urn comercio, pader ter entre si re1ac;oes de tipo economica, que se atribuiam urna lei, urn Estado ou urn govemo. Isto quer dizer que todas essas fun~5es so eram, na realidade, da ordem da conseqiiencia ou, em todo caso, da ordem da finalidade, em compara~ao a constitui~ao juridica da na~ao; e era apenas quando essa organiza~ao juridica da na~ao estava adquirida que essas fun~5es podiam manifestar-se. Quanto aos apareIhos - como 0 exercito, a justi~a, a administra~ao publica, etc. -, eles tampouco eram a condi~ao para que a na~ao existisse; eram, se nao os efeitos dela, pelo menos seus instrumentos e sua garantia. Uma vez constituida a na~ao e que se podia atribuir-se algo como urn exercito ou urna justi~a. Ora, voces estao vendo que Sieyes inverte a analise. Faz esses trabalhos e essas fun~5es, ou essas fun~5es e esses aparelhos, passarem antes da na~ao - antes, se nao historicamente, pelo menos na ordem das condi~5es de existencia.
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Uma na~ao so pode existir como na~ao, so pode entrar e subsistir na hist6ria, se e capaz de comercio, de agricultura, de artesanato; se tem individuos suscetiveis de formar urn exercito, urna magistratura, urna igreja, urna administra~ao publica. Isto quer dizer que urn grupo de individuos pode sempre reunir-se, pode sempre atribuir-se leis e urna legislatura; pode atribuir-se uma constitui~ao. Se ele nao tem essas capacidades de praticar 0 comercio, 0 artesanato, a agricultura, de formar urn exercito, uma magistratura, etc., jamais ele sera, historicamente, uma na<;3.o. Ele 0 sera, talvez, juridicamente, mas nunca historicamente. Nunca
e0
contrato, nem a lei, nem 0 consenso, que podem ser realmente criadores de na~ao. Mas, inversamente, pode perfeitamente acontecer que urn grupo de individuos tenha com que, tenha a capacidade historica de formar seus trabalhos, de exercer suas fun~5es, apesar de jamais ter recebido urna lei comurn e uma legislatura. Elas estarao, de certo modo, essas pessoas, de posse dos elementos substanciais e funcionais da na~ao; nao estarao de posse de seus elementos fonnais. Serao capazes de na<;ao; nao serao uma nac;ao. Ora, a partir dai, pode-se analisar - 0 que Sieyes faz o que se passa na Fran~a no final do seculo XVlII, segundo ele. Ha, de fato, uma agricultura, urn comercio, urn artesanato, artes liberais. Quem garante essas diferentes fun~5es? o terceiro estado, e 0 terceiro estado somente. Quem faz funcionar 0 exercito, a igreja, a administra~ao publica, ajusti~a? E claro, em certos cargos importantes, encontram-se pessoas que pertencem
a aristocracia,
mas, em nove decimos
desses aparelhos, e 0 terceiro estado, segundo Sieyes, que garante seu funcionamento. Em compensal;ao, esse terceiro
estado que, efetivamente, assume em si as condi~5es substanciais da na~ao, nao recebeu 0 estatuto formal delas. Nao hi na Fran~a leis comuns, mas uma serie de leis das quais umas se aplicam
anobreza, outras ao terceiro estado, outras
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ao clero, etc. Nao hi leis comuns. Nao ha legislatura tampouco, porque as leis ou as ordena,Des sao fixadas por urn sistema que Sieyes chama "aulico"4, 0 sistema da corte, ou seja, do arbitrio monarquico. Dessa analise, creio que se pode tirar certo nllinero de conseqiiencias. Vmas, e claro, sao de ordem imediatamente politica. Sao imediatamente politicas nisto: e que, como se vi" a Fran,a nao e urna na,ao,ja que the faltam as condi,Des formais, juridicas, da na,ao; leis comuns, legislatura. E, no entanto, ha na Franc;a "uma" nac;ao, isto e, urn grupo de individuos que trazem em si a capacidade de garantir a existencia substancial e historica da na,ao. Essas pessoas sao portadoras das condi,Des historicas de existencia de urna na,ao e da na,ao. Dai a formula central do texto de Sieyes, que so se pode compreender precisamente numa compara,ao polemica, explicitamente polemica, com as teses de Boulainvilliers, de du Buat-Nan,ay, etc., e que e: "0 Terceiro Estado e uma na,ao completa."5 Essa formula quer dizer 0 seguinte: esse conceito de nac;8.o, que a aristocracia quisera reservar para urn grupo de individuos que so tinham para si algo como costumes e urn estatuto comuns, nao e suficiente para cobrir 0 que e a realidade historica da na,ao. Mas, por outro lade, 0 conjunto estatal constituido pelo reino da Fran,a nao e realmente urna na,ao, na medida em que nao abrange exatamente as fun,Des historicas que sao necessarias e suficientes para constituir urna na,ao. Onde vamos encontrar, por conseguinte, 0 Dueleo hist6rico de uma nac;ao, que sera "a" nac;ao? No terceiro estado, e no terceiro estado somente. Por si so, 0 terceiro estado e condi,ao historica da
existencia de uma nac;ao, mas de urna na<;ao que, voces veem,
4. Cf. ibid., cap. II, p. 17. 5. Cf. ibid., cap. I, p. 2.
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deveria, de direito, coincidir com 0 Estado. 0 terceiro estado e urna na,ao completa. 0 qU(l constitui a na,ao esta nele. Ou ainda, se quisermos traduzir essas mesmas proposi,Des de Dutra maneira: "Tuda 0 que e nacional e nossa", diz 0 terceiro estado, "e tudo 0 que e nosso e nac;ao"6. Essa formula,ao politica, da qual Sieyes nao e 0 inventor nem 0 tinico formulador, vai, claro, ser a matriz de todo urn discurso politico que, como voces bern sabem, ainda nao esta esgotado agora. A matriz desse discurso politico apresenta, ereio eu, duas caracteristicas. Primeiro, certa rela,ao nova da particularidade com a universalidade, uma certa rela,ao que e exatamente 0 inverso daquela que havia caracterizado 0 discurso da rea,ao nobiliaria. No fundo, a rea,ao nobiliaria fazia 0 que? Ela extraia do corpo social, constituido pelo rei e seus suditos, ela extraia da unidade monarquica urn certo direito singular, selado pelo sangue, afirmado na vitoria: 0 direito singular dos nobres. E ela pretendia, seja qual for a constitui,ao do corpo social que a rodeava, guardar para a nobreza 0 absoluto e singular privilegio desse direito; portanto, extrair, da totalidade do corpo social, esse direito particular e faze-Io funcionar em sua singularidade. Aqui, vai se tratar de coisa muito diferente. Vai se tratar de dizer, ao contrario (e 0 que 0 terceiro estado vai dizer): "Nao passamos de uma na,ao entre outros individuos. Mas essa na,ao que nos constituimos e a tinica que pode constituir efetivamente a na~ao. Talvez nao sejamos, nos sozinhos, a totalidade do corpo social, mas somos capazes de trazer conosco a fun,ao totalizadora do Estado. Somos suscetiveis de universalidade estatal." E entao, segunda caracteristica
a
6. "0 Terceiro abarca tudo quanta pertence nayao; e tudo quanto nao Terceiro nao pode ser visto como sendo da nayao. Que e 0 Terceiro? Tudo" (ibid., p. 9).
e0
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desse discurso, vamos ter uma inversao do eixo temporal da reivindicayao. Dai em diante, nao e em nome de urn direito passado, estabelecido quer por urn consenso, quer por uma vitoria, quer por uma invasao, que vai se articular a reivindicayao. A reivindicayao vai poder se articular a partir de urna virtualidade, de urn futuro, de urn futuro que e iminente, que ja esta presente no presente, pois se trata de urna certa funyao de universalidade estatal, ja assegurada por "uma" nayao dentro do corpo social, a qual, em nome disso, exige que seu estatuto de nayao unica seja efetivamente reconbecido, e reconbecido na forma juridica do Estado. Ai esm, se voces quiserem, 0 que se refere as conseqiiencias politicas deste tipo de anilise e de discurso. Vamos ter conseqiiencias te6ricas tambem, que sao as seguintes. Voces estao vendo que 0 que define, nessas condiyoes, uma nayao nao e seu arcaismo, sua ancestralidade, sua relac;ao com 0 passado; e sua relayao com alguma coisa diferente, sua relayao com 0 Estado. Isso quer dizer varias coisas. Primeiro, que a nayaa se especifica nao essencialmente em comparaC;aa a outras nac;oes. 0 que caracteriza "a" nayaa DaD e uma relayao horizontal com outros grupos (que seriam nayoes diferentes, nayoes adversas, opostas oujustapostas). 0 que vai caracterizar a na<;3o e uma relac;ao, ao contnirio, vertical, que vai desse corpo de individuos, suscetiveis de constituir urn Estado, ate a existencia efetiva do pr6prio Estado. E ao longo desse eixo vertical nayao/Estado, ou virtualidade estatallrealidade estatal, que a nayao vai ser caracterizada e situada. Isto quer dizer tambem que 0 que constitui a forya de urna nayao nao e tanto seu vigor fisico, suas aptidoes militares, de certo modo sua intensidade barbara, que os historiadores nobiliirios do inicio do seculo XVIII quiseram descrever. 0 que constitui agora a forya de uma nayao e algo como capacidades, virtualidades que, todas elas, se ordenam na figura do Estado; uma nayao sera forte, tanto
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mais forte quanto mais capacidades estatais ela detiver, em relayao a ela. Isto quer dizer tambem que a peculiaridade de urna nayao nao e tanto dominar as outras. 0 que vai constituir 0 essencial da funyao e do papel hist6rico da nayao nao sera exercer sabre as outras nac;oes uma relac;ao de domina9aO; sera alga diferente; sera administrar a si mesma, gerir, govemar, assegurar, por si, a constituic;ao e 0 funcionamento da figura e do poder estatais. Nao dominayao, mas estatizayao. A nayao ja nao e, portanto, essencialmente urn parceiro em relayoes barbaras e belicosas de dominayao. A nayao e 0 nucleo ativo, constitutivo, do Estado. A nayao e0 Estado ao menos em pontilhado, e 0 Estado na medida em que ele esta nascendo, formando-se e encontrando suas condiyoes hist6ricas de existencia num grupo de individuos. Ai esHlo, se voces quiserem, as conseqiiencias teoricas no nivel daquilo que se entende por nayao. Conseqiiencias agora para 0 discurso hist6rico. 0 que vamos ter, agora, eurn discurso hist6rico que reintroduz, e ate certo ponto recoloca em seu centro, problema do Estado. E, nisso, vamos ter urn discurso hist6rico que, ate certo ponto, se aproximara daquele discurso hist6rico tal como existia no seculo XVII, e do qual tentei lhes mostrar que era, essencialmente, uma certa maneira, para 0 Estado, de fazer urn discurso sobre si mesmo. Esse discurso que tinba funyoes justificadoras, lirurgicas: era 0 Estado narrando seu pr6prio passado, ou seja, estabelecendo sua pr6pria legitimidade, e fortalecendo-se, de certo modo, no plano de seus direitos fundamentais. Era isso 0 discurso da hist6ria no seculo XVII ainda. Foi contra ele que a reayao nobiliaria havia lanyado seu petardo, e esse tipo de discurso hist6rico, no qual a nayao era, precisamente, aquilo com 0 que se podia decompor a unidade estatal e mostrar que, sob a aparencia formal do Estado, existiam outras foryas que, justamente, nao eram as foryas do Estado, mas as foryas de urn grupo particular, que tinba sua hist6ria par-
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ticular, sua rela<;ao com 0 passado, suas vit6rias, seu sangue, suas rela,5es de domina,ao, etc. Agora, vamos ter urn discurso da historia que se aproxima do Estado e que ja nao sera, em suas fun,5es essenciais, antiestatal. Mas, nessa nova historia, nao se tratani de fazer 0 Estado enunciar urn discurso que sera 0 dele proprio e 0 de sua justifica,ao. Vai se tratar de fazer a historia das rela,5es que se tramam eternamente entre a na,ao e 0 Estado, entre as virtualidades estatais da na,ao e a totalidade efetiva do Estado. Isso permite escrever urna historia que, claro, nao sera derivada do circulo da revolu,ao e da reconstitui,ao, da volta revolucionadora it ordem primitiva das coisas, como era 0 caso no seculo XVII. Mas vamos ter, agora, ou poderemos ter, urna historia do tipo retilineo, em que 0 momento decisivo sera a passagem do virtual para 0 real, a passagem da totalidade nacional para a universalidade do Estado, uma historia, por conseguinte, que estara polarizada para 0 presente e para 0 Estado ao mesmo tempo; urna historia que culmina nessa iminencia do Estado, da figura total, completa e plena do Estado no presente. E isto vai permitir tambem - segunda coisa - escrever urna historia em que a rela,ao das for,as que sao postas em jogo nao sera urna rela,ao do tipo guerreiro, mas urna rela,ao do tipo inteiramente civil, se voces quiserem. Eclaro, na analise de Boulainvilliers, eu tentei Ihes mostrar como 0 enfrentamento das na,5es nurn mesmo corpo social se dava por intermedio de institui,5es (da economia, da educa,ao, da lingua, do saber, etc.). Mas essa utiliza,ao das institui,5es civis estava ali apenas a titulo de instrumento para urna guerra que continuava a ser fundamentalmente urna guerra; eram apenas os instrurnentos de urna domina,ao que continuava a ser sempre urna domina,ao de tipo guerreiro, do tipo da invasao, etc. Vamos agora, ao contrario, ter uma historia em que a guerra - a guerra para a domina,ao -
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sera substituida por uma luta que e, de certo modo, de outra subsmncia: nao urn enfrentamento arrnado, mas urn esfor,o, uma rivalidade, uma tensao direcionada para a universalidade do Estado. 0 Estado e a universalidade do Estado e que vao ser, a urn so tempo, 0 mobil e 0 campo de batalha da luta; em conseqiiencia, luta que, na mesma medida em que nao tera como finalidade e como expressao a domina,ao, mas tera como objeto e espa,o 0 Estado, sera essencialmente civil. Ela vai se desenrolar essencialmente atraves e em dire,ao da economia, das institui,5es, da produ,ao, da administra,ao. Vamos ter uma luta civil, em compara,ao it qual a luta militar, a luta sangrenta, so pode ser urn momento excepcional, ou uma crise, ou urn episodio. A guerra civil, longe de ser 0 pano de fundo de todos os enfrentamentos e das lutas, nao passara, de fato, de urn episodio, de uma fase de crise, em compara<;ao a uma luta que agora vai ser preciso considerar em termos DaD de guerra, nao de domina<;ao, nao em termos militares, mas em termos civis. E eu acho que e ai que se coloca uma das quest5es fundamentais da historia e da politica, nao somente do seculo XIX, mas ainda do seculo XX. Como se pode compreender uma luta em terrnos propriamente civis? Isso que chamamos a luta, a luta economica, a luta politica, a luta pelo Estado, pode ser efetivamente analisado em termos nao guerreiros, em termos propriamente economico-politicos? Ou devemos descobrir, por tras disso, algo queOseria, justamente, 0 pano de fundo indefinido da guerra e da domina,ao, que os historiadores do seculo XVIII haviam tentado assinalar? Em todo caso, a partir do seculo XIX e a partir dessa redefini,ao da no,ao de na,ao, teremos uma historia que vai procurar, de encontro ao que se fazia no seculo XVIII, 0 pano de fundo civil da luta dentro do espa,o do Estado que deve substituir 0 pano de fundo guerreiro, militar, sangrento, da guerra que os historiadores do seculo XVIII haviam assinalado.
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Ai esta, se voces quiserem, 0 que diz respeito as condi,oes de possibilidade desse novo discurso historico. Concrelamente, qual forma in1 assumir essa nova historia? Eu creio que, se quisermos situa-la de uma forma global, podemos dizer que ela vai se caracterizar pelo jogo, pelo ajustamento, de dois gabaritos de inteligibilidade que se justapoem, se
entrecruzam, ate certo ponto, e se corrigem reciprocamente.
o primeiro e 0
gabarito de inteligibilidade que havia sido constituido e utilizado no seculo XVIII. Isto quer dizer que, na historia tal como vamos ve-la escrita por Guizot, Augustin Thierry, Thiers, Michelet tambem, vai se propor, no inicio, uma rela,ao de for,a, uma rela,ao de luta, e isto na propria for,a que the reconheciam ja no seculo XVIII: ou seja, a guerra, a batalha, a invasao, a conquista. Os historiadores, digamos, do tipo ainda aristocratico como Montlosier7 (mas tambem Augustin Thierry, mas tambem Guizot) se propoem sempre essa luta como matriz, se voces quiserem, de uma historia. A. Thierry, por exemplo, diz: "Acreditamos ser uma na<;ao, e somas duas na<;oes na mesma terra, duas na<;oes inimigas em suas recorda90es, inconciliaveis em seus projetos: uma outrora conquistou a outra." E, claro, alguns dos senhores passaram para 0 lado dos vencidos, mas 0 resto,
au seja, aqueles que continuaram a ser as senhores,
0
resto,
"tao alheio a nossas afei,oes e a nossos costumes quanta se tivesse chegado ontem entre nos, tao surdo a nossas palavras de liberdade e de paz quanta se nossa linguagem the fosse desconhecida, como a linguagem de nossos antepassados 0 era dele, 0 resto segue seu caminho sem se preocupar com o nosso"8 E Guizot diz tambem: 'OM mais de treze seculos,
a
7. F. de Reynaud, conde de Montlosier, De fa monarchie franraise depuis son etablissement jusqu'a nosjours. Paris, 1814, vol. I-III. 8. A. Thierry, "Sur l'antipathie de race qui divise la nation fraol;aisc", Le censeur europeen, 2 de abril de 1820, compilado in Dix ans d'eludes historiques, Paris, 1835, p. 292.
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a Fran9a continha dois povos, urn povo vencedor e urn povo vencido"9. Temos mesmo, portanto, ainda nesse momento, o mesmo ponto inicial, do seculo XVIII.
0
mesmo gabarito de inteligibilidade
Mas, a esse primeiro gabarito, acrescenta-se urn outro, que completa e inverte ao mesmo tempo essa dualidade originaria. E um gabarito que, em vez de funcionar a partir de um ponto de origem que seria a primeira guerra, a primeira
invasao, a primeira dualidade nacional, funciona, ao contnirio, regressivamente, a partir do presente. Esse segundo gabarito e precisamente aquele que foi tornado possivel pela reelabora,ao da ideia de na,ao. 0 momento fundamental ja nao e a origem, 0 ponto inicial da inteligibilidade, nao e 0
elemento arcaico; e, ao contr:irio, 0 presente. E temos ai, acho eu, urn fenomeno importante, que e a inversao do valor do
presente no discurso historico e politico. No fundo, na historia e no campo historico-politico do seculo XVIII, 0 presente era sempre 0 momenta negativo, era sempre algo oco,
calma aparente, esquecimento. 0 presente era 0 momenta em que, atraves de uma por,ao de deslocamentos, de trai,oes, de modifica,oes das rela,oes de for,a, 0 estado primitivo de guerra havia sido como que embaralhado e achava-se irreconhecivel; nao so irreconhecivel, mas profundamente esquecido mesmo por aqueles que teriam tido proveito, porem, em utiliza-Io. A ignorancia dos nobres, sua distra,ao, sua pregui,a, sua avidez, tudo isso fizera que eles tivessem esquecido a rela,ao de for,a fundamental que definia a rela,ao deles com os outros habitantes de suas terras. E, alem disso, 0 discurso dos c1erigos, dos juristas, dos administradores do poder monarquico, havia encoberto essa rela,ao de
9. Cf. F. Guizot, Du gouvernement de fa France depuis fa Restauration et du ministere aCluel, Paris, 1820, p. I.
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for,a inicial, de sorte que 0 presente era, para a historia do seculo XVIII, sempre 0 momenta do profundo esquecimento. Dai a necessidade de sair do presente por urn despertar, violento e subito, que devia passar, primeiro e acima de tudo, pela grande reativa,ao do momenta primitivo na ordem do saber. Despertar da consciencia, a partir desse ponto de esquecimento extremo que era 0 presente. Ao contrario, agora, no gabarito de inteligibilidade da historia, a partir do momenta em que a historia e polarizada pela rela,ao na,ao/Estado, virtualidade/atualidade, totalidade funcional da na,aoluniversalidade real do Estado, voces veem bern que 0 presente vai ser 0 momento mais cheio 0 momento da maior intensidade, 0 momenta solene em q~e se faz a entrada do universal no real. Esse ponto de contato do universal e do real num presente (urn presente que acaba de suceder e que vai suceder), na iminencia do presente, e isso que Ihe vai dar, a urn s6 tempo, 0 valor, a intensidade, e que vai constitui-lo como principio de inteligibilidade. 0 presente ja nao e 0 momenta do esquecimento. 13, ao contrario, 0 momenta em que vai brilhar a verdade, aquele em que 0 obscuro, ou 0 virtual, vai revelar-se em plena luz. 0 que faz que 0 presente se tome, ao mesmo tempo, revelador e analisador do passado. Eu ereio que a hist6ria, tal como a vemos funcionar no seculo XIX, ou pelo menos na primeira metade do seculo XIX, utiliza os dois gabaritos de inteligibilidade: aquele que se estende a partir da guerra inicial, que vai atravessar todos os processos historicos e que os anima em todos os seus desenvolvimentos; e tarnhem outro gabarito de inteligibilidade que vai remontar da atualidade do presente, da realiza,ao totalizadora do Estado, ao passado, que reconstitui sua genese. De fato, esses dois gabaritos nunca funcionam urn sem 0 outro: sempre sao utilizados quase em concorrencia, vaa sempre urn de encontro ao outro, sobrepoem-se mais ou
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menos, entrecruzam-se parcialmente em suas fronteiras. Temos, no fundo, urna hist6ria que e escrita, de urn lado, em forma de domina,ao - tendo, como segundo plano, a guerra e, de outro lado, em forma de totaliza,ao - tendo, do lado do presente, na iminencia, em todo caso, daquilo que se passou e daquilo que se vai passar, a emergencia do Estado. Portanto, urna historia que se escreve, a urn s6 tempo, em termos de come,o dividido e em termos de conclusao totalizadora. E eu creio que 0 que define a utilidade, a utilizabilidade politica do discurso hist6rico e a maneira no fundo pela qual se faz funcionar, urn em rela,ao ao outr~, esses ga: baritos; a maneira pela qual se vai privilegiar urn ou 0 outro. Em linhas gerais, 0 privilegio concedido ao primeiro gabarito de inteligibilidade - 0 do come,o dilacerado - vai fomecer uma hist6ria que diremos, se voces concordarem, reacionaria, aristocrMica, de direita. 0 privilegio concedido ao segundo - ao momenta presente da universalidade - vai fornecer uma hist6ria que sera uma hist6ria do tipo liberal ou burguesa. Mas, de fato, nenhuma dessas duas hist6rias cada qual com sua posi,ao tMica pr6pria, podera eximir-s~ de utilizar, de urna maneira ou de outra, os dois gabaritos. Eu gostaria, para tanto, de Ihes dar dois exemplos: urn extraido de uma historia tipicamente de direita, tipicamente aristocratica, que, ate certo ponto, trilhava a linha direta daquela do seculo XVIII, mas que, de fato, a desloca consideravelmente e faz, apesar de tudo, que funcione 0 gabarito de inteligibilidade que se estende a partir do presente. 0 outro sera urn exemplo inverso: ou seja, nurn historiador considerado liberal e burgues, mostrar 0 jogo desses dois gabaritos, e mesmo desse gabarito de inteligibilidade a partir da guerra, que nao e porem, para ele, absolutamente privilegiado. o primeiro exemplo, portanto: uma hist6ria do tipo de direita, aparentemente dentro da linha da rea,ao nobiliaria do seculo XVIII, e aquela que foi escrita no inicio do seculo
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XIX por Montlosier. Nurna historia como essa encontramos, no inicio, urn privilegio das rela90es de domina9ao: e sempre essa rela9ao da dualidade nacional, essa rela9ao de domina9ao caracteristica da dualidade nacional, que vamos encontrar ao longo de toda a historia. E 0 livro, os livros de Montlosier sao salpicados de invectivas do seguinte genero, que ele dirige ao terceiro estado: "Ra9a de libertos, ra9a de escravos, povo tributario, licen9a vos foi outorgada para serdes livres, mas nao para serdes nobres. Para nos tudo e de direito, para vos tudo e de favor. Nao somos de vossa comunidade, somas urn todo por nos mesmos." E, at tambem, voces encontram 0 famoso tema de que eu lhes falava a proposito de Sieyes. No mesmo sentido, Jouffroy escrevia numa revista qualquer (nao sei mais qual) urna frase como esta: "A ra9a setentrional se apoderou da Galia sem dela extirpar os vencidos; ela legou aos seus sucessores as terras da conquista para govemar, e os homens da conquista para reger." 10 A dualidade nacional e afirmada por todos esses historiadores que sao, grosso modo, emigrados, que voltam a Fran9a e reconstituem de certo modo, no momenta da rea9ao ultra, uma especie de momento privilegiado da invasao. Mas, olhando-a mais de perto, a analise de Montlosier funciona de modo muito diferente daquele que se via no seculo
10. Michel Foucault aludc aqui a Achille Jouffroy d'Abbans (17901859). Partidario dos Bourbons, publicou em L 'Observaleur artigos favoraveis ao direito divino, ao parler absoluto e ao ultramontanismo. Depois da queda de Carlo,s X, publicou urn jamal, La legitimite, cuja difusao foi proibida na Fraoya. E autor, entre outras, de uma brochura: Des idees liherates du Franr;ais (1815); de uma narrativa da Revoluyao: Les Jastes de l'anarchie (1820): e de uma obm hist6rica sabre a Oalia: Les siecles de la monarchie franr;aise (1823). A citaya.o de Jouffroy esta em L 'observateur des colonies. de fa marine, de la politique. de fa litterature et des arts, IX fasciculo, 1820, p. 299. cr. A. Thierry, "Sur l'antipathic de race...", art. cit.
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XVIII. Montlosier fala de uma rela9ao de domina9ao que resulta de urna guerra, claro, ou melhor, de urna multiplicidade de guerras, que ele nao procura, no fundo situar. E diz: o essencial nao e tanto 0 que se passou na hora da invasao dos francos, porque, na verdade, as rela90es de domina9ao existiam muito antes e sao muito mais multiplas do que isso. Na GaIia, bern antes mesmo da invasao romana, ja havia urna rela9ao de domina9ao entre uma nobreza e urn povo que era tributario. Esse era 0 resultado de urna guerra antiga. as romanos chegaram, trazendo sua guerra consigo, mas trazendo igualmente urna rela9ao de domina9ao entre sua aristocracia e as pessoas que nao passavam de clientes desses ricos, desses nobres ou desses aristocratas. E, ai tambem, rela9ao de domina9ao resultante de uma velha guerra. E depois chegaram os germanos com sua propria rela9ao intema de sujei9ao entre os que eram guerreiros livres e os outros que nao passavam de suditos. Portanto, afinal, 0 que se constituiu no inicio da Idade Media, na aurora do feudalismo, nao foi a sobreposi9ao pura e simples de urn povo vencedor e de urn povo vencido, mas a mescla de tres sistemas de dornina9ao intema; 0 dos gauleses, 0 dos romanos e 0 dos germanos 11 . No fundo, a nobreza feudal da Idade Media nao e mais que a mescla dessas tres aristocracias, que se constituiram nurna nova aristocracia e exerceram urna rela9ao de domina9ao sobre pessoas que eram, por sua vez, a mescla dos tributarios gauleses, dos clientes romanos e dos suditos germanos. De sorte que temos urna rela9ao de domina9ao entre algo que era urna nobreza, que era uma na9ao, mas que era tambern a na9ao inteira, ou seja, a nobreza feudal; e depois (no exterior dessa na9ao, como objeto, como parceiro de sua
11. F. de Reynaud, conde de Montlosier, De la monarchie fran~aise. op. cit., liv. I, cap. I, p. 150.
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rela,ito de domina,ito), vamos ter todo urn povo de tributarios, de servos, etc., que sito, na realidade, nito a outra parte da na,ito, mas que estito fora da na,ito. Portanto, Montlosier faz funcionar urn monismo no plano da na,ito, e em proveito da nobreza, e depois urn dualismo no plano da domina,ito. Ora, em compara,ito a isso, qual vai ser 0 papel, segundo Montlosier, da monarquia? Pois bem, 0 papel da monarquia foi 0 de constituir, a partir dessa massa fora da na,ito _ e que era 0 resultado, a mescla dos suditos germanos, dos clientes romanos, dos tributarios gauleses -, uma nal;ao, urn outro povo. Ai esta 0 papel do poder regio. A monarquia libertou os tributarios, concedeu direitos as cidades, tomouas independentes da nobreza; ela libertou mesmo os servos e criou pe,a por pe,a algo de que Montlosier diz que era urn novo povo, igual em direito ao antigo povo, ou seja, a nobreza, e muito superior em nilmero. 0 poder regio, diz Mondosier, constituiu uma classe imensa 12.
Ha, nesse tipo de analise, a reativa,ito, claro, de todos os elementos que vimos ser utilizados no seculo XVIII, mas com urna modifica,ito fundamental: e que, voces estito venda, os processos da politica, tudo que se passou desde a Idade Media ate 0 seculo XVII e 0 seculo XVIII, para Montlosier, nao consiste simplesmente em modificar, em deslocar as rela,oes de for,a entre dois parceiros que teriam sido dados logo de saida e que teriam sido postos frente a frente desde a invasao. De fato, 0 que aconteceu foi a cria,ao, no interior de um conjunto que era mono-nacional e por inteiro concentrado em torno da nobreza, de algo diferente: a cria,ao de urna nova na,ao, de um novo povo, daquilo que Montlosier chama de urna nova classe lJ • Fabrica,ao em con12. Cf. ibid., !iv. III, cap. 11, pp. 152 13. Cf. ibid., loco cit.
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seqiiencia, de uma classe, de classes, no interior do corpo
social. Ora, a partir dessa fabrica,ao de urna nova classe, 0 que vai acontecer? Pois bem, 0 rei se serve dessa nova classe para arrancar da nobreza seus privilegios economicos e politicos. Que meios emprega? Ai tambem, Montlosier repete o que seus predecessores disseram: mentiras, trai,oes, alian,as antinaturais, etc. 0 rei utiliza tambem a for,a viva dessa nova classe; utiliza as revoltas: revoltas das cidades contra os senhores, rebeliao dos camponeses contra os proprietarios das terras. Ora, por tras de todas essas revoltas, diz Montlosier, que se deve ver? 0 descontentamento dessa nova classe, e claro. Mas sobretudo a mao do rei. 0 rei e que animava todas as revoltas, porque cada revolta enfraquecia 0 poder dos nobres e, por conseguinte, fortalecia 0 poder dos reis, que obrigavam as Dobres a fazer concess5es. E, alias,
por um processo circular, cada medida regia de liberta,ao aumentava a arrogancia e a for,a do novo povo. Cada con-
cessao que 0 rei fazia a essa nova classe acarretava novas revoltas. Ha, pais, urn vinculo essencial, em tada a hist6ria da Fran,a, entre a monarquia e a revolta popular. Monarquia e revolta popular sao intimamente ligadas. E a transferencia para a monarquia de todos os poderes politicos que a nobreza havia possuido outrora se faz essencialmente pela arma dessas revoltas, dessas revoltas preparadas, animadas, em todo caso sustentadas e favorecidas, pelo poder monarquico. A partir dai, a monarquia arroga 0 poder apenas a si, mas s6 pode faze-lo funcionar, s6 pode exerce-lo recorrendo a essa nova classe. Confiani, pais, sua justi9a e sua administra9ao publica a essa nova dasse, que se ve, assim, incumbida de todas as fun,oes do Estado. De sorte que 0 derradeiro momenta do processo s6 pode ser, e claro, a revolta Ultima: aquela em que 0 Estado inteiro, tendo caido nas maos dessa nova classe, nas maos do povo, escapa ao poder momirquico. J8. nao vaa ficar, frente a frente, senao urn rei, que
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na realidade s6 tern como poder aquele que Ihe foi dado pelas revoltas populares, e, do outro lado, urna classe popular que tern entre as maos todos os instrumentos do Estado. Derradeiro epis6dio, derradeira revolta, que se faz contra quem? Pois bern, contra aquele que esqueceu que era 0 derradeiro aristocrata a ainda possuir poder: 0 rei. A Revolu9ao Francesa se mostra portanto, na analise de Montlosier, como 0 derradeiro epis6dio desse processo de transferencia que constituiu 0 absolutismo monarquico 14 • A conclusao dessa constitui9ao do poder monarquico e a Revolu9ao. A Revolu9aO derrubou 0 rei? De modo algum. A Revolu9ao concluiu a obra dos reis, expressou literalmente a verdade dessa obra. A Revolu9ao deve ser lida como a conclusao da monarquia: conclusao tragica, talvez, mas conclusao politicamente verdadeira. E a cena de 21 de janeiro de 1793 talvez tenha decapitado 0 rei; decapitou-se 0 rei, mas coroou-se a monarquia. A Conven9ao e a verdade da monarquia posta a nu, e a soberania, arrancada da nobreza pelo rei, esta agora, de urna forma absolutamente necessaria, nas maos de urn povo que vern a ser, diz Montlosier, 0 herdeiro legitimo dos reis. Montlosier, aristocrata, emigrado, acirrado adversario da menor tentativa de liberaliza9ao sob a Restaura9ao pode escrever isto: "0 povo soberano: que nao o censurem com demasiado amargor. Ele limitou-se a consurnar a obra dos soberanos seus predecessores." Portanto, o povo e 0 herdeiro, e 0 herdeiro legitirno, dos reis; limitou-se a consurnar a obra dos soberanos, seus predecessores. Seguiu, ponto por ponto, a estrada que the fora tra9ada pelos reis, pelos parlamentos, pelos homens da lei e pelos cientistas. De sorte que se tern em Montlosier, voces estiio venda, emoldurando de certa forma a pr6pria analise hist6rica, a for-
14. Ibid., liv. II, cap. II, p. 209.
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mula9ao de que tudo partiu de urn estado de guerra e de urna rela9ao de domina9ao. Temos, nessas reivindica90es politicas da epoca da Restaura9ao, a afirma9ao de que a nobreza deve reaver seus direitos, recuperar os bens nacionalizados, reconstituir as rela90es de domina9ao que ela havia exercido outrora em rela9ao ao povo inteiro. E claro, ha essa afirma9ao, mas voces veem que 0 discurso hist6rico que e feito, em seu nucleo, em seu conteudo central, e urn discurso hist6rico que faz 0 presente funcionar como momento pleno, momento da efetua9ao, momenta da totaliza9ao, momenta a partir [do qual] todos os processos hist6ricos que entabularam as rela90es entre a aristocracia e a monarquia chegam finalmente a seu ponto ultimo, derradeiro, a seu momento pleno, aquele em que se constitui urna totalidade estatal entre as maos de urna coletividade nacional. E, nessa medida, pode-se dizer que esse discurso - sejam quais forern os temas politicos ou os elementos de analise que se referem a hist6ria de Boulainvilliers ou de du Buat-Nan9ay, ou sao diretamente transplantados dela - funciona na verdade com base em outro modelo. Agora eu gostaria de examinar, para terminar, outro tipo de hist6ria, diretamente oposta. E a hist6ria de Augustin Thierry, adversario explicito de Montlosier. Nele, 0 ponto da inteligibilidade da hist6ria vai ser, e claro, de forma privilegiada, 0 presente. Explicitamente, 0 segundo gabarito, aquele que vai partir do presente, do presente pleno, para revelar os elementos e os processos do passado, e que sera utilizado. Totaliza9ao estatal: e isso que deve ser projetado sobre 0 passado; e deve-se fazer a genese dessa totaliza9ao. A Revolu9ao e precisamente, para Augustin Thierry, esse "momento pleno": de urna parte, a Revolu9ao - diz ele - e, claro, 0 momenta da reconcilia9ao. Ele coloca essa reconcilia9ao, essa constitui9ao de urna totalidade estatal, na famosa cena em que Bailly, como voces sabem, ao acolher os repre-
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sentantes da nobreza e do clero no mesmo local em que estavam os do terceiro estado, respondeu: "Ai esm a familia reunida."15 Portanto, partamos desse presente. 0 momento atual e o da totalizayao na forma do Estado. Seja como for, essa totalizayao s6 pOde ocorrer no processo violento da Revoluyao, e esse momenta pleno da reconciliayao traz ainda a fisionomia e os trayos da guerra. E Augustin Thierry diz que a Revoluyao Francesa nada mais e, no fundo, do que 0 derradeiro epis6dio de urna luta que durou mais de treze seculos, a luta entre os vencedores e os vencidos1 6. Entao, todo 0 problema da analise hist6rica, para Augustin Thierry, vai ser 0 de mostrar como uma luta entre vencedores e vencidos pOde atravessar toda a hist6ria e conduzir a urn presente que, justamente, ja nao tern a forma da guerra e de urna dominayao dissimetrica, que continuariam as precedentes ou que as inverteriam noutro sentido; e 0 de mostrar de que forma essa guerra pOde levar a genese de urna universalidade em que a luta, ou a guerra em todo caso, tern de desaparecer. Como e que, das duas partes, pode haver urna que foi portadora de universalidade? E esse 0 problema da hist6ria, para Augustin Thierry. E sua analise, entao, vai consistir em descobrir a origem de urn processo que e duelo, no inicio, mas que sera monista e universalista ao meSilla tempo, no final. 0 essencial do enfrentamento, para Augustin Thierry, e justamente que 0 que sucedeu, claro, encontra seu ponto
15. A. Thierry, Essai sur l'histoire de laformation et des progres du Tjers~Etat, in (Euvres completes, t. Y, Paris, 1868, p. 3. Thierry escreve; "A
famBia esrn completa." 16. Cf. em especial A. Thierry, "Sur l'antipathie de race...", art. cit., e "Histoire veritable de Jacques Bonhonune", Le censeur europeen, maio de 1820, artigo igualmente compilado in Dix ans d'etudes historiques, op. cit.
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de origem em algo como urna invasao. Mas, se houve luta e enfrentamento ao lange de toda a Idade Media, e ate no momento atual, nao foi, no fundo, porque vencedores e vencidos se enfrentaram atraves das instituiyoes; foram, na realidade, dois tipos economico-juridicos de sociedade que se constituiram e entraram em rivalidade urn com 0 outro pela administrayao e pela posse do Estado. Tivemos, antes mesmo da constituiyao da sociedade medieval, urna sociedade rural, organizada depois da conquista e de acordo com urna forma que vai ser, muito cedo, a do feudalismo; e depois, em face disso, urna sociedade urbana que, por sua vez, tinha urn modelo romano e urn modelo gaules. E, no fundo, 0 enfrentamento e, nurn sentido, 0 resultado da invasao e da conquista, mas e essencial, substancialmente, a luta entre duas sociedades, cujos conflitos vao ser, por momentos, conflitos armadas, mas, quanta ao essencial, urn enfrentamento de ordem politica e economica. Guerra, talvez, mas guerra do direito e das liberdades de urn lado, contra a divida e a riqueza do outro. Esses enfrentamentos entre dois tipos de sociedade pela constituiyao de urn Estado, e isso que vai ser 0 motor fundamental da hist6ria. Ate os seculos IX-X, as cidades e que saem perdendo nesse enfrentamento, nessa luta pelo Estado e pela universalidade do Estado. E depois, a partir dos seculos X-XI, renascimento, ao contnirio, das cidades, que ocorre a partir do modele italiano no Sui, a partir do modelo n6rdico nas regiaes do Norte. Nova forma, em todo caso, de organizayao juridica e economica. E, se a sociedade urbana prevalece, finalmente, nao e em absoluto porque teria obtido algo como urna vit6ria militar, mas, pura e simplesmente, porque tern a seu favor, e cada vez mais, nao somente a riqueza, mas a capacidade administrativa, e tambem uma moral, uma certa maneira de viver, uma certa maneira de ser, uma vontade, instintos inovadores - diz Augustin Thierry-,
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wna atividade tambem, que the dame for9a bastante para que suas institui90es deixem, wn dia, de ser locais e se tornem, enfim, as pr6prias institui90es do direito politico e do direito civil do pais. Universaliza9ao, por conseguinte, a partir nao de wna rela9ao de domina9ao, que teria se virado inteiramente a seu favor, mas peio fate de que todas as fun90es constitutivas do Estado estao, nascem em suas maos, ou passam, em todo caso, por suas maos. E a essa for9a, que .0 a for9a do Estado e ja nao .0 a for9a da guerra, a burguesia nao dani wn usa guerreiro, ou s6 dara urn uso guerreiro quando, realmente, for for9ada a isso. E dois grandes episOdios, duas grandes fases, nessa hist6ria da burguesia e do terceiro estado. Primeiro, quando 0 terceiro estado sente que tern entre as maos todas as for9as do Estado, 0 que ele vai propor, pois bern, .0 wna especie de pacto social iI nobreza e ao clero. E .0 assim que se constituem, a wn s6 tempo, a teoria e as institui90es das tres ordens. Mas .0 wna unidade facticia, que nao corresponde verdadeiramente iI realidade da rela9ao de for9a, nem iI vontade da parte adversa. De fato, 0 terceiro estado ja tern todo 0 Estado na mao, e a parte adversa, ou seja, a nobreza, nem sequer quer reconhecer wn direito qualquer ao terceiro estado. .E nesse momento que come9a, no seculo XVIII, wn novo processo, que vai ser urn processo mais violento de enfrentamento. E a Revolu9ao sera precisamente 0 ultimo epis6dio de guerra violenta, que reativa, claro, os antigos conflitos, mas que .0, de certo modo, apenas 0 instrwnento militar de wn conflito ou de wna luta que nao sao da ordem guerreira, que sao essencialmente da ordem civil e que tern como objeto e como espa90 0 Estado. 0 desaparecimento do sistema das tres ordens, os abalos violentos da Revolu9aO, tudo isso s6 constitui, no fundo, wna linica coisa: a hora em que 0 terceiro estado, tornado na9ao, tornado a na,ao, mediante absor9ao de todas as fun,oes estatais, vai efetivamente incumbir-
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se, ele sozinho, da na9ao e do Estado. Constituir sozinho a na9ao e incwnbir-se do Estado quer dizer assegurar as fun90es de universalidade que fazem que desapare9am, por isso mesmo, tanto a dualidade antiga quanto todas as rela90es de domina9ao que puderam funcionar ate enmo. A burguesia, o terceiro estado, torna-se portanto 0 povo, torna-se portanto o Estado. Ele tern a for9a do universal. E 0 momento presente - aquele em que escreve Augustin Thierry - .0 precisamente 0 momento desse desaparecimento das dualidades, das na90es, das classes tambem. "Imensa evolu,ao", diz Augustin Thierry, "que fez desaparecer sucessivamente do solo onde vivemos todas as desigualdades violentas ou ilegitimas, 0 senhor e 0 escravo, 0 vencedor e 0 vencido, 0 senhor eo servo, para mostrar, afinal, no lugar deles wn mesmo povo, wna lei igual para todos, wna na9ao livre e soberana."17 Voces estao vendo que com analises como esta, de wna parte, temos claro a evacua9ao ou, em todo caso, a delimita9ao estrita da fun,ao da guerra como analisador dos pro·cessos hist6rico-politicos. A guerra ja nao .0 senao momentiinea e instrwnental em compara9ao a enfrentamentos que, por sua vez, nao sao do tipo belicoso. Segundo, 0 elemento essencial ja nao .0 essa rela,ao de domina9ao que agiria de uns a outros, de wna na9ao a outra, de wn grupo a outro: a rela9ao fundamental .0 0 Estado. E voces estao vendo, afinal, como, no interior de analises como essas, vemos delinear-se algo que .0, eu diria, imediatamente assimilavel, imediatamente transferivel, a urn discurso filos6fico do tipo dialetico. A possibilidade de wna filosofia da hist6ria, ou seja, 0 aparecirnento, no inicio do seculo XIX, de wna filosofia que
17. A. Thierry, Essai sur l'histoire... du Tiers-Etat, in op. cit., p. 10. A citayao, inexata, foi restabelecida no texto de acordo com 0 original.
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encontrani na hist6ria, e na plenitude do presente, 0 momento
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em que 0 universal se expressa em sua verdade, voces veem que essa filosofia, eu nao digo que e preparada, digo que ja funciona no interior do discurso hist6rico. Houve urna autodialetiza9ao do discurso hist6rico que foi feita independentemente de qualquer transferencia explicita, ou de qualquer utiliza9ao explicita, de urna filosofia dialetica para 0 discurso hist6rico. Mas a utiliza9ao, pela burguesia, de urn discurso hist6rico, a modifica9ao, pela burguesia, dos elementos fundarnentais da inteligibilidade hist6rica que ela havia recolhido do seculo XVIII, foi, ao mesmo tempo, urna autodialetiza9ao do discurso hist6rico. E voces compreendem como, a partir dai, entre discurso da hist6ria e discurso da filosofia, puderam estabelecer-se rela90es. No fundo, a filosofia da hist6ria nao existia, no seculo XVIII, seniio como especula9ao sobre a lei geral da hist6ria. A partir do seculo XIX, come9a algo novo e, creio eu, fundamental. A hist6ria e a filosofia vao formular esta questao em comum: 0 que, no presente, traz consigo 0 universal? 0 que, no presente, e a verdade do universal? Essa e a questao da hist6ria, essa e igualmente a questiio da filosofia. Nasceu a dialetica.
Do poder de soberania ao poder sabre a vida. - Fazer viver e deixar morrer. - Do homem-corpo ao homem-espe· cie: nascimento do biopoder. - Campos de aplica~ao do biopoder. - A populafiio. - Da morte, e da morte de Franco ~m especial. - Articulafoes da disciplina e da regulamentarQo: a cidade operaria, a sexualidade, a norma. - Biopoder e racismo. - Fun90es e areas de aplicQfiio do racismo. - a nazismo. - a socialismo.
Cumpre, pois, tentar terminar, fechar urn pOUCO 0 que eu disse este ano. Eu havia tentado expor urn pouquinho 0 problema da guerra, encarada como gabarito de inteligibilidade dos processos hist6ricos. Parecera-me que essa guerra fora concebida, inicial e praticamente durante todo 0 seculo XVIII ainda, como guerra das ra9as. Era urn pouco essa hist6ria da guerra das ra9as que eu queria reconstituir. E tentei, da ultima vez, mostrar-lhes como a pr6pria n09ao de guerra fora finalmente eliminada da analise hist6rica pelo principio da universalidade nacional*. Eu gostaria agora de lhes mostrar como 0 tema da ra9a vai, nao desaparecer, mas ser retomado em algo muito diferente que e 0 racismo de Estado. E entao e 0 nascimento do racismo de Estado que eu gostaria de )hes narrar urn pouquinho hoje, pelo menos de situar o problema para voces. . . Parece-me que urn dos fen6menos fundamentals do seculo XIX foi, e 0 que se poderia denominar a assun9ao da * Manuscrito, a frase prossegue; depois de "nacional": "na epoca da RevolUl;ao".
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vida pelo poder: se voces preferirem, urna tomada de poder sobre 0 homem enquanto ser vivo, urna especie de estatiza9iio do biologico ou, pelo menos, uma certa inclina9iio que conduz ao que se poderia chamar de estatiza9iio do biologico. Creio que, para compreender 0 que se passou, podemos nos referir ao que era a teoria classica da soberania que, em ultima analise, serviu-nos de pano de fundo, de quadro para todas essas analises sobre a guerra, as ra9as, etc. Na teoria classica da soberania, voces sabem que 0 direito de vida e de morte era urn de seus atributos fundamentais. Ora, 0 direito de vida e de morte e urn direito que e estranbo, estranho ja no nivel teorico; com efeito, 0 que e ter direito de vida e de morte? Em certo sentido, dizer que 0 soberano tern direito de vida e de morte significa, no fundo, que ele pode fazer morrer e deixar viver; em todo caso, que a vida e a morte DaD sao desses fenomenos naturais, imediatos, de eerto modo originais ou radicais, que se localizariam fora do campo do poder politico. Quando se vai urn pouco rnais alem e, se voces quiserem, ate 0 paradoxo, isto quer dizer no fundo que, em rela9iio ao poder, 0 sudito niio e, de pleno direito, nem vivo nem morto. Ele e, do ponto de vista da vida e da morte, neutro, e e simplesmente por causa do soberano que o sudito tern direito de estar vivo ou tern direito, eventualmente, de estar morto. Em todo caso, a vida e a morte dos suditos so se tomam direitos pelo efeito da vontade soberana. Ai esta, se voces quiserem, 0 paradoxa te6rico. Paradoxo teorico que deve se completar, evidentemente, por urna especie de desequilibrio pratico. Que quer dizer, de fato, direito de vida e de morte? Niio, e claro, que 0 soberano pode fazer viver como pode fazer morrer. 0 direito de vida e de morte so se exerce de urna forma desequilibrada, e sempre do lado da morte. 0 efeito do poder soberano sobre a vida so se exerce a partir do momento em que 0 soberano pode matar. Em ultima analise, 0 direito de matar e que detem
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efetivamente em si a propria essencia desse direito de vida e de morte: e porque 0 soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida. E essencialmente urn direito de espada. Niio M, pois, simetria real nesse direito de vida e de morte. Niio e 0 direito de fazer morrer ou de fazer viver. Niio e tampouco 0 direito de deixar viver e de deixar morrer. E 0 direito de fazer morrer ou de deixar viver. 0 que, e claro, introduz urna dissimetria flagrante. E eu creio que, justamente, urna das mais maci9as transforma90es do direito politico do seculo XIX consistiu, niio digo exatamente em substituir, mas em completar esse velho direito de soberania - fazer morrer ou deixar viver - com outro direito novo, que niio vai apagar 0 primeiro, mas vai penetra-lo, perpassa-lo, modifica-lo, e que vai ser urn direito, ou melhor, urn poder exatamente inverso: poder de "fazer"
viver e de "deixar" marrero 0 direito de soberania e, portan-
to, 0 de fazer morrer ou de deixar viver. E depois, este novo direito e que se instala: 0 direito de fazer viver e de deixar morrer.
Essa transforma9iio, e claro, niio se deu de repente. Podese segui-la na teoria do direito (mas ai serei extremamente rapido). Voces ja veem, nos juristas do seculo XVII e sobretudo do seculo XVIII, formulada essa questiio a proposito do direito de vida e de morte. Quando os juristas dizem: quando se contrata, no plano do contrato social, ou seja, quando os individuos se reunem para constituir urn soberano, para delegar a urn soberano urn poder absoluto sobre eles, por que 0 fazem? Eles 0 fazem porque estiio premidos pelo perigo ou pela necessidade. Eles 0 fazem, por ~onseguinte, para proteger a vida. E para poder viver que constituem urn soberano. E, nesta medida, a vida pode efetivamente entrar nos direitos do soberano? Niio e a vida que e fundadora do direito do soberano? E niio pode 0 soberano reclamar efetivamente de seus suditos 0 direito de exercer sobre eles 0
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poder de vida e de morte, ou seja, pura e simplesmente, 0 poder de mata-los? Nao deve a vida ficar fora do contrato na medida em que ela e que foi 0 motivo primordial, inici~l e fundamental do contrato? Tudo isso e uma discussao de filosofia politica que se pode deixar de lado, mas que mostra bern como 0 problema da vida come,a a problematizar-se no campo do pensamento politico, da analise do poder politico. De fato, 0 nivel em que eu gostaria de seguir a transforma,ao nao e 0 nivel da teoria politica, mas, antes, 0 nivel dos mecanismos, das tecrucas, das tecnologias de poder. En-
tao, ai, topamos com coisas familiares:
e que, nos seculos
XVII e XVIII, viram-se aparecer tecnicas de poder que eram essencialrnente centradas no corpo, no corpo individual. Eram todos aqueles procedimentos pelos quais se assegurava a distribui,ao espacial dos corpos individuais (sua separa,ao, seu alinhamento, sua coloca,ao em serie e em vigiliincia) e a organiza,ao, em tomo desses corpos individuais, de todo urn campo de visibilidade. Eram tambem as tecrucas pelas quais se incurnbiam desses corpos, tentavam aurnentar-Ihes a for,a uti! atraves do exercicio, do treinamento, etc. Eram igualmente tecnicas de racionaliza,ao e de economia estrita de urn poder que devia se exercer, da maneira menos onerosa possivel, mediante todo urn sistema de vigiliincia, de hierarquias, de inspe,oes, de escritura,oes, de relatorios: toda essa tecnologia, que podemos chamar de tecnologia disciplinar do trabalho. Ela se instala ja no final do seculo XVII e no decorrer do seculo XVIIII. Ora, durante a segunda metade do seculo XVIII, eu creio que se ve aparecer algo de novo, que e uma outra tecnologia de poder, nao disciplinar dessa feita. Vma tecnologia de poder que nao exclui a primeira, que nao exclui a tecnica
1. Sabre a questao da tecnologia disciplinar, ver Surveiller et punir, op. cit.
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disciplinar, mas que a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utiliza-la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente gra,as a essa tecnica disciplinar previa. Essa nova tecnica nao suprime a tecnica disciplinar simplesmente porque e de outro nivel, esta noutra escala, tern outra superficie de suporte e e auxiliada por instrumentos totalmente diferentes. Ao que essa nova tecruca de poder nao disciplinar se aplica e - diferentemente da disciplina, que se dirige ao corpo - a vida dos homens, ou ainda, se voces preferirem, ela se dirige nao ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao ho-
mem ser vivo; no limite, se voces quiserem, ao homem-especie. Mais precisamente, eu diria isto: a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia que se instala se dirige a multiplicidade dos homens, nao na medida em que eles se resurnem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrario, urna massa global, afetada por processos de conjunto que sao proprios da vida, que sao processos como 0 nascimento, a morte, a produ,ao, a doen,a, etc. Logo, depois de urna primeira tomada de poder sobre 0 corpo que se fez consoante 0 modo da individualiza,ao, temos uma segunda tomada de poder que, por sua vez, nao e individualizante mas que e massificante, se voces quiserem, que se faz em dire,ao nao do homem-corpo, mas do homem-especie. Depois da anatomo-politica do corpo hurnano, instaurada no decorrer do seculo XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo seculo, algo que ja nao e uma anatomo-politica do corpo hurnano, mas que eu chamaria de urna "biopolitica" da especie hurnana. De que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolitica, nesse biopoder que esm se instalando? Eu lhes dizia em duas palavras agora ha pouco: trata-se de urn con-
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junto de processos como a propor9ao dos nascimentos e dos obitos, a taxa de reprodu9ao, a fecundidade de urna popula9ao, etc. Sao esses processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que, justamente na segunda metade do seculo XVIII, juntamente com urna por9ao de problemas economicos e politicos (os quais nao retorno agora), constituiram, acho eu, os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa biopolitica. E nesse momento, em todo caso, que se lan9a mao da medi9ao estatfstica desses fenomenos com as primeiras demografias. E a observa9ao dos procedimentos, mais ou menos espontaneos, mais ou menos combinados, que eram efetivamente postos em execU9ao na popula9ao no tocante a natalidade; em surna, se voces preferirem, 0 mapeamento dos fenomenos de controle dos nascimentos tais como eram praticados no seculo XVIII. Isso foi tambem 0 esb090 de urna politica de natalidade ou, em todo caso, de esquemas de interven9ao nesses fenomenos globais da natalidade. Nessa biopolitica, nao se trata simplesmente do problema da fecundidade. Trata-se tambem do problema da morbidade, nao mais simplesmente, como justamente fora 0 caso ate entiio, no nivel daquelas famosas epidemias cujo perigo havia atormentado tanto os poderes politicos desde as profundezas da Idade Media (aquelas famosas epidemias que eram dramas temporitrios da morte multiplicada, da morte tornada iminente para todos). Nao e de epidemias que se trata naquele momento, mas de algo diferente, no final do seculo XVIII: grosso modo, aquilo que se poderia chamar de endemias, ou seja, a forma, a natureza, a extensao, a dura9ao, a intensidade das doen9as reinantes nurna popula9ao. Doen9as mais ou menos dificeis de extirpar, e que nao sao encaradas como as epidemias, a titulo de causas de morte mais freqiiente, mas como fatores permanentes - e e assim que as tratam - de subtra9ao das for9as, diminui9ao do tempo de trabalho, baixa de energias, custos economicos, tanto por causa da produ9ao nao realizada quan-
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to dos tratamentos que podem custar. Em surna, a doen9a como fenomeno de popula9ao: niio mais como a morte que se abate brutalmente sobre a vida - e a epidemia - mas como a morte permanente, que se introduz sorrateiramente na vida, a corroi perpetuamente, a diminui e a enfraquece. Sao esses fenomenos que se come9a a levar em conta no final do seculo XVIII e que trazem a introdu9ao de urna medicina que vai ter, agora, a fun9aO maior da higiene publica, com organismos de coordena9ao dos tratamentos medicos, de centraliza9ao da informa9ao, de normaliza9ao do saber, e que adquire tambem 0 aspecto de campanha de aprendizado da higiene e de medicaliza9ao da popula9ao. Portanto, problemas da reprodu9ao, da natalidade, problema da morbidade tambem. 0 outro campo de interven9ao da biopolitfca vai ser todo urn conjunto de fenomenos dos quais uns sao universais e outros sao acidentais, mas que, de uma parte, nunea sao inteiramente compreensiveis, mesmo que sejam acidentais, e que acarretam tambem conseqiiencias anaIogas de. incapacidade, de por individuos fora de circuito, de neutrahza9aO, etc. Sera 0 problema muito importante, ja no inicio do se.oulo XIX (na hora da industrializa9ao), da velhice, do mdividuo que cai, em conseqiiencia, para fora do campo de capacidade, de atividade. E, da outra parte, os acidentes, as enfermidades as anomalias diversas. E e em rela9ao a estes fenomenos ~ue essa biopolitica vai introduzir nao somente institui90es de assistencia (que existem faz muito tempo), mas mecanismos muito mais sutis, economicarnente mUlto malS racionais do que a grande assistencia, a urn so tempo maci9a e lacunar, que era essencialmente vinculada a Igreja. Vamos ter mecanismos mais sutis, mais racionais, de seguros, de poupan9a individual e coletiva, de seguridade, etc.' 2. Sabre todas essas questoes, ver 0 Curso no College de France, anos 1973-1974: Le pouvoir psychiatrique, no prelo.
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Enfim, ultimo dominio (enumero os principais, em todo caso os que aparecerarn no final do seculo XVIII e no inicio do XIX; haveni muitos outros depois): a preOCUpa9aO com as rela90es entre a especie humana, os seres humanos enquanto especie, enquanto seres vivos, e seu meio, seu meio de existencia - sejam os efeitos brutos do meio geognifico, climatico, hidrografico: os problemas, por exemplo, dos pantanos, das epidemias ligadas a existencia dos pantanos durante toda a primeira metade do seculo XIX. E, igualmente, 0 problema desse meio, na medida em que nao e um meio natural e em que repercute na popula9ao; um meio que foi criado por ela. Sera, essencialmente, 0 problema da cidade. Eu Ihes assinalo aqui, simplesmente, alguns dos pontos a partir dos quais se constituiu essa biopolitica, algumas de suas praticas e as primeiras das suas areas de interven9aO, de saber e de poder ao mesmo tempo: e da natalidade, da morbidade, das incapacidades biol6gicas diversas, dos efeitos do meio, e disso tudo que a biopolitica vai extrair seu saber e definir 0 campo de interven9aO de seu poder. Ora, em tudo isso, eu creio que hi certo numero de coisaS que sao importantes. A primeira seria esta: 0 aparecimento de urn elemento - eu ia dizer de uma personagem - novo, que no fundo nem a teoria do direito nem a pratica disciplinar conhecem. A teoria do direito, no fundo, s6 conhecia 0 individuo e a sociedade: 0 individuo contratante e 0 corpo social que fora constituido pelo contrato voluntario ou implicito dos individuos. As disciplinas lidavam praticamente com 0 individuo e com seu corpo. Nao e exatarnente com a sociedade que se lida nessa nova tecnologia de poder (ou, enfim, com 0 corpo social tal como 0 definem os juristas); nao e tampouco com 0 individuo-corpo. Eurn novo corpo: corpo multiplo, corpo com inumeras cabe9as, se nao infinito pelo menos necessariarnente numerivel. E a n09aO de "popula9aO". A biopolitica lida com a popula9aO, e a popula9aO
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como problema politico, como problema a um s6 tempo cientifico e politico, como problema biol6gico e como problema de poder, acho que aparece nesse momento. Segundo, 0 que e importante tarnbem - afora 0 aparecimento desse elemento que e a popula9aO - e a natureza dos fenamenos que sao levados em considera9aO. Voces estao venda que sao fenomenos coletivos, que s6 aparecem com seus efeitos econamicos e politicos, que s6 se tornam pertinentes no nivel da massa. Sao fenamenos aleat6rios e im-
previsiveis, se os tomarmos neles mesmos, individualmente, mas que apresentam, no plano coletivo, constantes que e facil, ou em todo caso possive!, estabelecer. E, enfim, sao fenamenos que se desenvolvem essencialmente na dura9ao, que devem ser considerados num certo limite de tempo relativarnente longo; sao fenamenos de serie. A biopolitica val se dirigir, em suma, aos acontecimentos aleat6rios que OCOfrem numa popula9aO considerada em sua dUra9aO. A partir dai - terceira coisa, acho eu, importante -, essa tecnologia de poder, essa biopolitica, vai implantar mecanismos que tern certo numero de fun9aes muito diferentes das fun90es que erarn as dos mecanismos disciplinares. Nos mecanismos implantados pela biopolitica, vai se tratar sobretudo, e claro, de previs5es, de estimativas estatisticas, de medi90es globais; vai se tratar, igualmente, nao de modificar tal fenameno em especial, nao tanto tal individuo, na medida em que e individuo, mas, essencialmente, de intervir no nivel daquilo que sao as determina90es desses fenamenos gerais, desses fenamenos no que eles tern de global. Vai ser preciso modificar, baixar a morbidade; vai ser preciso encompridar a vida; vai ser preciso estimular a natalidade. E tratase sobretudo de estabelecer mecanismos reguladores que, nessa popula9aO global com seu campo aleat6rio, vao poder fixar urn equilibrio, manter uma media, estabelecer uma especie de homeostase, assegurar compensa((oes; em suma,
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de instalar mecanismos de previdencia em tomo desse aleatorio que e inerente a uma popula~ao de seres vivos, de otimizar, se voces preferirem, urn estado de vida: mecanismos, como voces veem, como os mecanismos disciplinares, destinados em suma a maximizar for~as e a extrai-Ias, mas que passam por caminhos inteiramente diferentes. Pois ai nao se trata, diferentemente das disciplinas, de um treinamento individual realizado por urn trabalho no proprio corpo. Nao se trata absolutamente de ficar ligado a um corpo individual, como faz a disciplina. Nao se trata, por conseguinte, em absoluto, de considerar 0 individuo no nivel do detalhe, mas, pelo contnirio, mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenbam estados globais de equilibrio, de regularidade; em resumo, de levar em conta a vida, os processos biologicos do homem-especie e de assegurar sobre eles nao uma disciplina, mas uma regulamenta~a03. Aquem, portanto, do grande poder absoluto, dramlitico, sombrio que era 0 poder da soberania, e que consistia em poder fazer morrer, eis que aparece agora, com essa tecnologia do biopoder, com essa tecnologia do poder sobre a "popula~ao" enquanto tal, sobre 0 homem enquanto ser vivo, um
parler continuo, cientifico, que
e 0 parler de "fazer viver".
A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que agora aparece um poder que eu chamaria de regulamenta~ao e que
consiste, ao contnirio, em fazer viver e em deixar morrer. Eu creio que a manifesta~ao desse poder aparece concretamente nessa famosa desqualifica~ao progressiva da morte, na qual os sociologos e os historiadores se debru~aram com tanta freqiiencia. Todo 0 mundo sabe, sobretudo desde
3. Michel Foucault voltanl a todos esses mecanismos sobretudo no Cursa no College de France, anos 1977-1978: Securite, terri/oire et population e 1978-1979: Naissance de fa biopolitique, no preto.
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certo nllinero de estudos recentes; que a grande ritualiza~ao publica da morte desapareceu, ou em todo caso foi-se apagando, progressivamente, desde 0 fim do seculo XVIII ate agora. A tal ponto que, agora, a morte - deixando de ser uma daquelas cerimonias brilhantes da qual participavam os individuos, a familia, 0 grupo, quase a sociedade inteira - tornou-se, ao contnirio, aquilo que se esconde; ela se tomou a coisa mais privada e mais vergonbosa (e, no limite, e menos o sexo do que a morte que hoje e objeto do tabu). Ora, eu creio que a razao por que, de fato, a morte tomou-se assim essa coisa que se esconde nao estit numa especie de deslocamento da angUstia ou de modifica~ao dos mecanismos repressivos. Esm numa transfo~1io das tecnologias de poder. o que outrora conferia brilho (e isto ate 0 final do seculo XVIII) it morte, 0 que the impunha sua ritualiza~ao t1io elevada, era 0 fato de ser a manifesta~ao de uma passagem de um poder para outro. A morte era 0 momento em que se passava de um poder, que era 0 do soberano aqui na terra, para aquele outro poder, que era 0 do soberano do alem. Passavase de uma inst1incia de julgamento para outra, passava-se de um direito civil ou publico, de vida e de morte, para um direito que era 0 da vida etema ou da dana~ao etema. Passagem de um poder para outro. A morte era igualmente uma transmissao do poder do moribundo, poder que se transmitia para aqueles que sobreviviam: ultimas palavras, ultimas recomenda~oes, ultimas vontades, testamentos, etc. Todos esses fenomenos de poder e que eram assim ritualizados. Ora, agora que 0 poder e cada vez menos 0 direito de fazer morrer e cada vez mais 0 direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no "como" da vida, a partir
do momento em que, portanto, 0 poder intervem sobretudo nesse nivel para aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiencias, dai por diante a morte, como termo da vida, e evidentemente 0 termo, 0
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limite, a extremidade do poder. Ela esta do lado de fora, em rela9ao ao poder: e 0 que cai fora de seu dominio, e sobre 0 que 0 poder so tera dominio de modo geral, global, estatistieo. Isso sobre 0 que 0 poder tem dominio nao e a morte, e a mortalidade. E, nessa medida, e normal que a morte, agora, passe para 0 iimbito do privado e do que ha de mais privado. Enquanto, no direito de soberania, a morte era 0 ponto em que mais brilhava, da forma moos manifesta, 0 absoluto poder
do soberano, agora a morte vai sef, ao contnirio, to em que
0
0 momen~
individuo escapa a qualquer poder, volta a Sl
mesma e se ensimesma, de certa modo, em sua parte
malS
privada. 0 poder ja nao conhece a morte. No sentido estrito, o poder deixa a morte de lado. Para simbolizar rudo isso, tomemos, se voces quiserem, a morte de Franco, que e um evento apesar de tudo muito, muito interessante, pelos valores simb6licos que faz atuar, uma vez que moma aquele que tinha exercido 0 direito soberano de vida e de morte com a selvageria que voces conhecem, 0 mais sanguinario de todos os ditadores, que havia feito reinar de modo absoluto, durante quarenta anos, 0 dlreito soberano de vida e de morte e que, na hora que ele mesma vai morfer, entra nessa especie de novo campo do poder sobre a vida que consiste nao so em organizar a ~ida, DaD so em fazer viver, mas, em suma, em fazer 0 mdlvlduo viver mesmO alem de sua morte. E, mediante urn poder que nao e simplesmente proeza cientifica,. mas efetivamen;e exercicio desse biopoder politico que fOl mtroduzldo no seculo XIX , faz-se tao bem as pessoas viverem que se consegue . faze-las viver no mesmo momento em que elas devenam, biologicamente, estar mortas ha muito tempo. Foi assim que aquele que havia exercido 0 poder absoluto de Vida e de morte sobre centenas de milhares de pessoas, aquele mesmo caiu sob 0 impacto de urn poder que organizava tao bem a vida, que olhava tao pouco a morte, que ele nem sequer per-
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cebeu que ja estava morto e que 0 faziam viver apos sua morte. Eu creio que 0 choque entre esses dois sistemas de poder, 0 da soberania sobre a morte e 0 da regulamenta9ao da vida, acha-se simbolizado nesse pequeno e alegre evento. Eu gostaria agora de retomar a compara9ao entre a tecnologia regulamentadora da vida e a tecnologia disciplinar do corpo de que eu lhes falava agora ha pouco. Temos portanto, desde 0 seculo XVIII (ou em todo caso desde 0 fim do seculo XVIII), duas tecnologias de poder que sao introduzidas com certa defasagem cronologica e que sao sobrepostas. Uma tecnica que e, pois, disciplinar: e centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula 0 corpo como foco de for9as que e preciso tomar uteis e doceis ao mesmo tempo. E, de outro lado, temos urna tecnologia que, por sua
vez,
e centrada DaD no corpo, mas na vida; uma tecnologia
que agrupa os efeitos de massas proprios de uma popula9ao , que procura controlar a serie de eventos fortuitos que podem
Dearrer numa massa viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso em compensar seus efeitos. E uma tecnologia que visa portanto nao 0 treinamento individual mas pelo equilibrio global, algo como uma homeostase: a' segu~ ran9a do conjunto em rela9ao aos seus perigos intemos. Logo, urna tecnologia de treinamento oposta a, ou distinta de, urna tecnologia de previdencia; urna tecnologia disciplinar que se distingue de urna tecnologia previdenciaria ou regulamenta-
dora; uma tecnologia que emesmo, em ambos os casas, tec-
nologia do corpo, mas, nurn caso, trata-se de urna tecnologia em que 0 corpo e individualizado como organismo dotado de capacidades e, no outro, de uma tecnologia em que os corpos sao recolocados nos processos biologicos de conjunto. Poderiamos dizer isto: tudo sucedeu como se 0 poder, que tinha como modalidade, como esquema organizador, a soberania, tivesse ficado inoperante para reger 0 corpo eco-
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namico e politico de uma sociedade em via, a urn so tempo, de explosao demogcifica e de industrializa9ao. De modo que it velha meciinica do poder de soberania escapavam muitas coisas, tanto por baixo quanto por cima, no nivel do detalhe e no nivel da massa. Foi para recuperar 0 detalhe que se deu urna primeira acomoda9ao: acpmoda9ao dos mecanismos de poder sobre 0 corpo individual, com vigiliincia e treinamento - isso foi a disciplina. Eclaro, essa foi a acomoda9ao mais facil, mais comoda de realizar. E por isso que ela se realizou mais cedo - ja no seculo XVII, inicio do seculo XVIII - em nivellocal, em formas intuitivas, empiricas, fracionadas, e no iimbito limitado de institui90es como a escola, 0 hospital, 0 quartel, a oficina, etc. E, depois, voces tern em seguida, no final do seculo XVIII, urna segunda acomoda9ao, sobre os fenomenos globais, sobre os fenomenos de popula9ao, com os processos biologicos ou bio-sociologicos das massas hurnanas. Acomoda9ao muito mais dificil, pois, e claro, ela implicava orgaos complexos de coordena9aO e de centraliza9ao. Temos, pois, duas series: a serie corpo - organismo disciplina - institui90es; e a serie popula9ao - processos biologicos - mecanismos regulamentadores* - Estado. Urn conjunto organico institucional: a organo-disciplina da institui9ao, se voces quiserem, e, de outro lado, urn conjunto biologico e estatal: a bio-regulamenta9ao pelo Estado. Nao quero fazer essa oposi9ao entre Estado e institui9ao atuar no absoluto, porque as disciplinas sempre tendem, de fato, a ultrapassar 0 ambito institucional e local em que sao consideradas. E, depois, elas adquirem facilmente uma dimensao estatal em certos aparelhos como a policia, por exemplo, que e a urn so tempo urn aparelho de disciplina e urn apare* Manuscrito, no Jugar de "regulamentadores": "previdenciarios".
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Iho de Estado (0 que prova que a disciplina nem sempre e institucional). E, da mesma forma, essas grandes regula90es globais que proliferaram ao longo do seculo XIX, nos as encontramos, e claro, no nivel estatal, mas tambem abaixo do nivel estatal, com toda urna serie de institui90es subestatais, como as institui90es medicas, as caixas de auxilio, os seguros, etc. Essa e a primeira observa9ao que eu queria fazer. Por outro lado, esses dois conjuntos de mecanismos, urn disciplinar, 0 outro regulamentador, nao estao no mesmo nivel. Isso lhes permite, precisamente, nao se excluirem e poderem articular-se urn com 0 outro. Pode-se mesmo di-
zer que, na maioria dos casas, os mecanismos disciplinares de poder e os mecanismos regulamentadores de poder, os mecanismos disciplinares do corpo e os mecanismos regulamentadores da popula9ao, sao articulados urn com 0 outro. Urn ou dois exemplos: examinem, se quiserem, 0 problema da cidade, ou, mais precisamente, essa disposi9ao espacial pensada, concebida, que e a cidade-modelo, a cidade artificial, a cidade de realidade utopica, tal como nao so a sonharam, mas a constituiram efetivamente no seculo XIX. Examinem algo como a cidade operaria. A cidade operana, tal como existe no seculo XIX, 0 que e? Ve-se muito bern como ela articula, de certo modo perpendicularmente, mecanismos disciplinares de controle sobre 0 corpo, sobre os corpos, por sua quadricula, pelo recorte mesmo da cidade, pela localiza9ao das familias (cada uma numa casal e dos individuos (cada urn num comodo). Recorte, por individuos em visibilidade, normaliza9ao dos comportamentos, especie de controle policial espontiineo que se exerce assim pela propria disposi9ao espacial da cidade: toda urna serie de mecanismos disciplinares que e facil encontrar na cidade operaria. E depois voces tern toda uma serie de mecanismos que sao, ao contrano, mecanismos regulamentadores, que incidem sobre a POpula9ao enquanto tal e que permitem, que induzem
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comportamentos de poupan,a, por exemplo, que sao vinculados ao habitat, a loca,ao do habitat e, eventualmente, a sua compra. Sistemas de seguro-saude ou de seguro-velhice; regras de higiene que garantem a longevidade 6tima da popula,ao; press5es que a pr6pria organiza,ao da cidade exerce sobre a sexualidade, portanto sobre a procria,ao; as press5es que se exercem sobre a higiene das familias; os cuidados dispensados as crian,as; a escolaridade, etc. Logo, voces tern mecanismos disciplinares e mecanismos regulamentadores. Considerem urn outro dominio - enfim, nao inteiramente outro -; considerem, noutro eixo, algo como a sexualidade. No fundo, por que a sexualidade se tomou, no seculo XIX, urn campo cuja importitncia estrategica foi capital? Eu creio que, se a sexualidade foi importante, foi por uma por,ao de raz5es, mas em especial houve estas: de urn lado, a sexualidade, enquanto comportamento exatamente corporal, depende de urn controle disciplinar, individualizante, em forma de vigilitncia permanente (e os famosos controles, por exemplo, da masturba,ao que foram exercidos sobre as crian,as desde 0 fim do seculo XV1Il ate 0 seculo XX, e isto no meio
familiar, no meio escolar, etc., representam exatamente esse lado de controle disciplinar da sexualidade); e depois, por outro lado, a sexualidade se insere e adquire efeito, por seus efeitos procriadores, em processos biol6gicos amplos que concemem nao mais ao corpo do individuo mas a esse elemento, a essa unidade multipla constituida pela popula,ao. A sexualidade esta exatamente na encruzilhada do corpo e da popula,ao. Portanto, ela depende da disciplina, mas depende tambem da regulamenta,ao. A extrema valoriza,ao medica da sexualidade no secu10 XIX teve, assim creio, seu principio nessa posi,ao privilegiada da sexualidade entre organismo e popula,ao, entre corpo e fen6menos globais. Dai tambem a ideia medica segundo a qual a sexualidade, quando e indisciplinada e irre-
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gular, tern sempre duas ordens de efeitos: urn sobre 0 corpo, sobre 0 corpo indisciplinado que e imediatamente punido por todas as doen,as individuais que 0 devasso sexual atrai sobre si. Vma crian,a que se masturba demais sera muito doente a vida toda: puni,ao disciplinar no plano do corpo. Mas, ao mesmo tempo, uma sexualidade devassa, pervertida, etc., tern efeitos no plano da popula,ao, urna vez que se sup5e que aquele que foi devasso sexualmente tern uma hereditariedade, urna descendencia que, ela tambem, vai ser perturbada, e isso durante gera,5es e gera,5es, na setima gera,ao, na setima da setima. E a teoria da degenerescencia4 : a sexualidade, na medida em que esta no foco de doen,as individuais e uma vez que esta, por outro lado, no nucleo da degenerescencia, representa exatamente esse ponto de articula,ao do disciplinar e do regulamentador, do corpo e da popula,ao. E voces compreendem entao, nessas condi,5es, por que e como urn saber tecnico como a medicina, ou meIhor, 0 conjunto constituido por medicina e higiene, vai ser no seculo XIX urn elemento, nao 0 mais importante, mas aquele cuja importancia sera consideravel dado 0 vinculo que estabelece entre as influencias cientificas sobre os processos biol6gicos e organicos (isto e, sobre a popula,ao e 4. M. Foucault se refere aqui a teoria, elaborad.a na Fran9a, em meados do seculo XIX, pelos alienistas, em especial por B.-A. Morel (Traite des degenerescences physiques, intellectuelles et morales de l'espece humaine, Paris, 1857; Traite des maladies mentales, Paris, 1870), por V. Magnan (Le{:ons cliniques sur les maladies mentales, Paris, 1893) e por M. Legrain & V. Magnan (Les degeneres, eta! mental et syndromes episodiques, Paris, 1895). Essa teoria da degenerescencia, fundamentada no principio da transmissibilidade da tara chamada "hereditaria", foi 0 nueleo do saber medico sobre a loucura e a anonnalidade na segunda metade do seculo XIX. Muito cedo adotada pela medicina legal, ela teve efeitos consideraveis sobre as doutrinas c as praticas eugenicas e nolo deixou de influenciar toda uma literatura, toda uma criminologia e toda uma antropologia.
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sobre 0 corpo) e, ao mesmo tempo, na medida em que a medicina vai ser uma tecnica politica de interven9ao, com efeitos de poder proprios. A medicina e urn saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre 0 corpo e sobre a popula9ao, sobre 0 organismo e sobre os processos biologicos e que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores. De urna forma mais geral ainda, pode-se dizer que 0 elemento que vai circular entre 0 disciplinar e 0 regulamentador, que vai se aplicar, da mesma forma, ao corpo e it popula9ao, que permite a urn so tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatorios de urna multiplicidade biologica, esse elemento que circula entre
urn e outro
e a "norma". A Donna e 0
que pode tanto se
aplicar a urn corpo que se quer disciplinar quanta a uma popula9ao que se quer regulamentar. A sociedade de normaliza((ao nao e, pais, nessas condi\=oes, uma especie de sociedade disciplinar generalizada cujas institui95es disciplinares teriam se alastrado e finalmente recoberto todo 0 esp~o essa nao e, acho eu, senao uma primeira interpretal;ao, e insuficiente, da ideia de sociedade de normaliza9ao. A sociedade de normaliza9ao e urna sociedade em que se cruzam, conforme uma articula9ao ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulamenta9ao. Dizer que 0 poder, no seculo XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos que 0 poder, no seculo XIX, incumbiu-se da vida, e dizer que ele conseguiu cobrir toda a superficie que se estende do orgilnico ao biologico, do corpo it popula9ao, mediante 0 jogo duplo das tecnologias de disciplina, de urna parte, e das tecnologias de regulamenta9ao, de outra. Portanto, estamos num poder que se incurnbiu tanto do corpo quanta da vida, ou que se incurnbiu, se voces preferirem, da vida em geral, com 0 polo do corpo e 0 polo da popula9ao. Biopoder, por conseguinte, do qual logo podemos localizar os paradoxos que aparecem no proprio limite de
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seu exercicio. Paradoxos que aparecem de urn lado com 0 poder atomico, que nao e meramente 0 poder de matar, segundo os direitos que sao concedidos a todo soberano, milhOes e centenas de milhOes de homens (afinal de contas, isso e tradicional). Mas 0 que faz que 0 poder at5mico seja, para 0 funcionamento do poder politico atual, urna especie de paradoxa dificil de contomar, se nao totalmente incontomavel, e que, no poder de fabricar e de utilizar a bomba atOmica, temos a entrada em cena de urn poder de soberania que mata mas, igualmente, de urn poder que e 0 de matar a propria vida. De sorte que, nesse poder atomico, 0 poder que se exerce, se exerce de tal forma que e capaz de suprimir a vida. E de suprimir-se, em conseqiiencia, como poder de assegurar a vida. Ou ele e soberano, e utiliza a bomba atomica, mas por isso nao pode ser poder, biopoder, poder de assegurar a vida, como ele 0 e desde 0 seculo XIX. Ou, noutro limite,
voces tern 0 excesso, ao contnirio, nao mais do direito soberano sobre 0 biopoder, mas 0 excesso do biopoder sobre 0 direito soberano. Esse excesso do biopoder aparece quando a possibilidade e tecnica e politicamente dada ao homem, nao so de organizar a vida, mas de fazer a vida proliferar, de fabricar algo vivo, de fabricar algo monstruoso, de fabricar - no limite - virus incontrolaveis e universalmente destruidores. Extensao formidavel do biopoder que, em contraste com 0 que eu dizia agora ha pouco sobre 0 poder atomico, vai ultrapassar toda a soberania hurnana. Desculpem-me esses longos percursos a respeito do biopoder, mas eu creio que e contra esse pano de fundo que se pode encontrar 0 problema que eu havia tentado expor. Entao, nessa tecnologia de poder que tern como objeto e como objetivo a vida (e que me parece urn dos tra90s fundamentais da tecnologia do poder desde 0 seculo XIX), como vai se exercer 0 direito de matar e a fun9ao do assassinio, se e verdade que 0 poder de soberania recua cada vez mais e
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que, ao contrfuio, avanya cada vez mais 0 biopoder disciplinar ou regulamentador? Como urn poder como este pode matar, se e verdade que se trata essencialmente de aurnentar a vida, de prolongar sua durayiio, de multiplicar suas possibilidades, de desviar seus acidentes, ou entiio de compensar suas deficiencias? Como, nessas condiyoes, e possivel, para urn poder politico, matar, redamar a morte, pedir a morte, mandar matar, dar a ordem de matar, expor morte niio so seus inimigos mas mesmo seus proprios cidadiios? Como esse poder que tern essencialmente 0 objetivo de fazer viver pode deixar marrer? Como exercer 0 parler da morte, como exercer a funyiio da morte, num sistema politico centrado no biopoder? E ai, creio eu, que intervem 0 racismo. Niio quero de modo algum dizer que 0 racismo foi inventado nessa epoca. Ele existia hi muito tempo. Mas eu acho que funcionava de outro modo. 0 que inseriu 0 racismo nos mecanismos do Estado foi mesmo a emergencia desse biopoder. Foi nesse
a
momento que 0 racismo se inseriu como mecanismo fundamental do poder, tal como se exerce nos Estados modemos, e que faz com que quase niio haja funcionamento moderno do Estado que, em certo momento, em certo limite e em certas condiyoes, niio passe pelo racismo. Com efeito, que e 0 racismo? E, primeiro, 0 meio de introduzir afinal, nesse dominio da vida de que 0 poder se incumbiu, urn corte: 0 corte entre 0 que deve viver e 0 que deve morrer. No continuo biologico da especie humana, 0 aparecimento das rayas, a distinyiio das rayas, a hierarquia das rayas, a qualificayiio de certas rayas como boas e de outras, ao contnirio, como inferiores, tudo iS80 vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biologico de que 0 poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da populayiio, uns grupos em relayiio aos outros. Em resumo, de estabelecer urna cesura que seni do tipo biologico no interior de urn dominic considerado como senda precisamente urn dominio
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biologico. Isso vai permitir ao poder tratar urna populayiio como uma mistura de ra~as OU, mais exatamente, tratar a especie, subdividir a especie de que ele se incumbiu em subgrupos que seriio, precisamente, rayas. Essa e a primeira funyiio do racismo: fragmentar, fazer cesuras no interior desse continuo biologico a que se dirige 0 biopoder. De outro lado, 0 racismo teni sua segunda funyiio: teni como papel permitir uma relayiio positiva, se voces quise-
rem, do tipo; "quanta mais voce matar, mais voce fani marrer", ou "quanto mais voce deixar morrer, mais, por iS80 mesmo, voce viveni". Eu diria que essa relayiio ("se voce quer viver, e preciso que voce faya morrer, e preciso que voce possa matar") afinal niio foi 0 racismo, nem 0 Estado modemo, que inventou. :E a rela9ao guerreira: "para viver, e preciso que voce massacre seus inimigos". Mas 0 racismo faz justamente funcionar, faz atuar essa relayiio de tipo guerreiro "se voce quer viver, e preciso que 0 outro morra" - de uma maneira que e inteiramente nova e que, precisamente, e compativel com 0 exercicio do biopoder. De uma parte, de fato, 0 racismo vai permitir estabelecer, entre a minha vida e a morte do outro, urna relayiio que niio e urna relayao militar e guerreira de enfrentamento, mas urna relayiio do tipo biologico: "quanto mais as especies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os individuos anormais forem eliminados, menos degenerados haveni em relayiio especie, mais eu - niio enquanto individuo mas enquanto especie - viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar". A morte do outro niio e simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha seguranya pessoal; a morte do outro, a morte da raya ruim, da raya inferior (ou do degenerado, ou do anormal), 0 que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura. Portanto, rela<;ao nao militar, guerreira ou politica, mas relayao biologica. E, se esse mecanismo pode atuar e por-
a
e
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que os inimigos que se trata de suprimir nao sao os adversirios no sentido politico do termo; sao os perigos, extemos ou intemos, em rela9ao it popula9ao e para a popula9ao. Em outras palavras, tirar a vida, 0 imperativo da morte, so e admissivel, no sistema de biopoder, se tende nao it vitoria sobre os adversirios politicos, mas it elimina9ao do perigo biologico e ao fortalecimento, diretarnente ligado a essa elimina9ao, da propria especie ou da ra9a. A ra9a, 0 racismo, e a condi9ao de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normaliza9ao. Quando voces tern urna sociedade de normaliza9ao, quando voces tern urn poder que e, ao menos em toda a sua superficie e em primeira instincia, em primeira linha, urn biopoder, pois bern, 0 racismo e indispensivel como condi9ao para poder tirar a vida de alguem, para poder tirar a vida dos outros. A fun9ao assassina do Estado so pode ser assegurada, desde que 0 Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo. Voces compreendem, em consequencia, a importfu1cia eu ia dizer a importincia vital - do racismo no exercicio de urn poder assim: e a condi9ao para que se possa exercer 0 direito de matar. Se 0 poder de normaliza9ao quer exercer 0 velho direito soberano de matar, ele tern de passar pelo racismo. Ese, inversamente, urn poder de soberania, ou seja, urn poder que tern direito de vida e de morte, quer funcionar com os instrumentos, com os mecanismos, com a tecnologia da normaliza9ao, ele tambem tern de passar pelo racismo. E claro, por tirar a vida nao entendo simplesmente 0 assassinio direto, mas tarnbem tudo 0 que pode ser assassinio indireto: 0 fato de expor it morte, de multiplicar para alguns 0 risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte politica, a expulsao, a rejei9ao, etc. A partir dai, eu creio que se pode compreender certo nillnero de coisas. Pode-se compreender, primeiro, 0 vinculo que rapidamente - eu ia dizer imediatamente - se estabele-
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ceu entre a teoria biologica do seculo XIX e 0 discurso do poder. No fundo, 0 evolucionismo, entendido num sentido lato - ou seja, nao tanto a propria teoria de Darwin quanto o conjunto, 0 pacote de suas n090es (como: hierarquia das especies sobre a more comurn da evolu9ao, luta pela vida entre as especies, sele9ao que elimina os menos adaptados)-, tomou-se, com toda a naturalidade, em alguns anos do seculo XIX, niio simplesmente urna maneira de transcrever em termos biologicos 0 discurso politico, niio simplesmente uma maneira de ocultar urn discurso politico sob urna vestimenta cientifica, mas realmente urna maneira de pensar as rela90es da coloniza9iio, a necessidade das guerras, a criminalidade, os fenomenos da loucura e da doen9a mental, a historia das sociedades com suas diferentes classes, etc. Em outras palavras, cada vez que houve enfrentamento, condena9ao it morte, luta, risco de morte, foi na forma do evolucionismo que se foi for9ado, literalmente, a pensi-los. E pode-se compreender tambem por que 0 racismo se desenvolve nessas sociedades modernas que funcionam baseadas no modo do biopoder; compreende-se por que 0 racismo vai irromper em certo numero de pontos privilegiados, que sao precisamente os pontos em que 0 direito a morte e necessariamente requerido. 0 racismo vai se desenvolver primo com a colonizar;:ao, ou seja, com 0 genocidio colonizador. Quando for preciso matar pessoas, matar popula90es, matar civiliza90es, como se poderi faze-lo, se se funcionar no modo do biopoder? Atraves dos temas do evolucionismo, mediante urn racismo. A guerra. Como e possivel niio so travar a guerra contra os adversanos, mas tambem expor os proprios cidadiios it guerra, fazer que sejam mortos aos milh5es (como aconteceu justamente desde 0 seculo XIX, desde a segunda metade do seculo XIX), seniio, precisamente, ativando 0 tema do racismo? Na guerra, vai se tratar de duas coisas, dai em diaute:
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destruir nao simplesmente 0 adversano politico, mas a ra,a adversa, essa [especie] de perigo biologico representado, para a ra,a que somos, pelos que estao a nossa frente. E claro, essa e apenas, de certo modo, uma extrapola,ao biologica do tema do inimigo politico. No entanto, mais ainda, a guerraisto e absolutamente novo - vai se mostrar, no final do seculo XIX, como uma maneira nao simplesmente de fortalecer a propria ra,a eliminando a ra,a adversa (conforme os temas da sele,ao e da luta pela vida), mas igualmente de regenerar a propria ra,a. Quanto mais numerosos forem os que morrerem entre nos, mais pura sera a ra,a a que pertencernos.
Voces tern ai, em todo casa, urn racismo da guerra, novo no final do seculo XIX, e que era, acho eu, necessitado pelo fato de que urn biopoder, quando queria fazer a guerra, como poderia articular tanto a vontade de destruir 0 adversario quanta 0 risco que assumia de matar aqueles mesmos cuja vida ele devia, por defini,ao, proteger, organizar, multiplicar? Poderiamos dizer a mesma coisa a proposito da criminalidade. Se a criminalidade foi pensada em termos de racismo foi igualmente a partir do momenta em que era preciso tamar passivel, nurn mecanismo de biopoder, a condena,ao a morte de urn criminoso ou seu isolamento. Mesrna coisa com a loucura, mesma coisa com as anomalias diversas. Em linhas gerais, 0 racismo, acho eu, assegura a fun,ao de morte na economia do biopoder, segundo 0 principio de que a morte dos outros e 0 fortalecimento biologico da propria pessoa na medida em que ela e membro de uma ra,a ou de uma popula,ao, na medida em que se e elemento numa pluralidade unitaria e viva. Voces estao vendo que ai estamos, no fundo, muito longe de um racismo que seria, simples e tradicionalmente, desprezo ou odio das ra,as umas pelas outras. Tambem estamos muito longe de urn racismo
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que seria uma especie de opera,ao ideologica pela qual os Estados, ou uma classe, tentaria desviar para urn adversano mitico hostilidades que estariam voltadas para [eles] ou agitariam 0 corpo social. Eu creio que e muito mais profundo do que uma velha tradi,ao, muito mais profundo do que uma nova ideologia, e outra coisa. A especificidade do racismo modemo, 0 que faz sua especificidade, nao esta ligado a mentalidades, a ideologias, a mentiras do poder. Esta ligado atecnica do poder, atecnologia do poder. Esta ligado a isto que nos coloca, longe da guerra das ra,as e dessa inteligibilidade da historia, num mecanismo que permite ao biopoder exercer-se. Portanto, 0 racismo e ligado ao funcionamento de urn Estado que e obrigado a utilizar a ra,a, a elimina,ao das ra,as e a purifica,ao da rap para exercer seu poder soberano. A justaposi,ao, ou melhor, 0 funcionamento, atraves do biopoder, do velho poder soberano do direito de morte implica 0 funcionamento, a introdu,ao e a ativa,ao do racismo. E e ai, ereio eu, que efetivamente ele se enraiza. Voces compreendem entae, nessas condi90es, como e por que os Estados mais assassinos sao, ao mesma tempo, for,osamente os mais racistas. E claro, ai temos de tomar 0 exemplo do nazismo. Afinal de contas, 0 nazismo e, de fato, o desenvolvimento ate 0 paroxismo dos mecanismos de poder novos que haviam sido introduzidos desde 0 seculo XVIII. Nao ha Estado mais disciplinar, claro, do que 0 regime nazista; tampouco ha Estado onde as regulamenta,oes biologicas sejam adotadas de uma maneira mais densa e mais insistente. Poder disciplinar, biopoder: tudo isso percorreu, sustentou a muque a sociedade nazista (assun,ao do biologico, da procria,ao, da hereditariedade; assun,ao tambem da doen,a, dos acidentes). Nao ha sociedade a urn so tempo mais disciplinar e mais previdenciaria do que a que foi implantada, ou em todo caso projetada, pelos nazistas. 0 controle das eventualidades proprias dos processos biologicos era urn dos objetivos imediatos do regime.
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Mas, ao mesmo tempo que se tinha essa sociedade universalmente previdenciaria, universalmente seguradora, universalmente regulamentadora e disciplinar, atraves dessa sociedade, desencadeamento mais completo do poder assassino, ou seja, do velho poder soberano de matar. Esse poder de malar, que perpassa todo 0 corpo social da sociedade nazista, se manifesta, antes de tudo, porque 0 poder de matar, 0 poder de vida e de morte e dado nao simplesmente ao Estado, mas a toda uma serie de individuos, a uma quantidade consideravel de pessoas (sejam os SA, os SS, etc.). No limite, todos tern 0 direito de vida e de morte sobre 0 seu vizinho, no Estado nazista, ainda que fosse pelo comportamento de dem\ncia, que permite efetivamente suprimir, ou fazer suprimirem, aquele que esta a seu lado. Portanto, desencadeamento do poder assassino e do poder soberano atraves de todo 0 corpo social. 19ualmente, pelo fato de a guerra ser explicitamente posta como urn objetivo politico - e nao meramente, no fundo, como urn objetivo po-
litico para obter certo numero de meios, mas como uma especie de fase ultima e decisiva de todos os processos politicos -, a politica deve resultar na guerra, e a guerra deve ser a fase final e decisiva que vai coroar 0 conjunto. Em conseqiiencia, nao e simplesmente a destrui,ao das outras ra,as que e 0 objetivo do regime nazista. A destrui,ao das outras ra,as e uma das faces do projeto, sendo a outra face expor sua pr6pria ra,a ao perigo absoluto e universal da morte. 0 risco de morrer, a exposi,ao it destrui,ao total, e urn dos principios inseridos entre os deveres fundamentais da obediencia nazista, e entre os objetivos essenciais da politica. E preciso que se chegue a urn ponto tal que a popula,ao inteira seja exposta it morte. Apenas essa exposi,ao universal de toda a popula,ao it morte podera efetivamente constitui-la como ra,a superior e regenera-la definitivamente perante as ra,as que tiverem sido totalmente exterminadas ou que serao definitivamente sujeitadas.
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Tern-se, pais, na sociedade nazista, esta coisa, apesar de tudo, extraordinma: e urna sociedade que generalizou absolutamente 0 biopoder, mas que generalizou, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar. Os dois mecanismos, 0 classico, arcaico, que dava ao Estado direito de vida e de morte sabre seus cidadaos, e 0 novo mecanisme organizado em tomo da disciplina, da regulamenta,ao, em surna, 0 novo mecanismo de biopoder, vern, exatamente, a coincidir. De sorte que se pode dizer isto: 0 Estado nazista toruou absolutamente co-extensivos 0 campo de uma vida que ele organiza, protege, garante, cultiva biologicamente, e, ao mesmo tempo, 0 direito soberano de matar quem quer que seja - nao s6 os outros, mas os seus pr6prios. Houve, entre as nazistas, uma coincidencia de urn biopoder generalizado com urna ditadura a urn s6 tempo absoluta e retransmitida atraves de todo 0 corpo social pela formiditvel jun,ao do direito de matar e da exposi,ao it morte. Temos urn Estado absolutamente racista, urn Estado absolutamente assassino e urn Estado absolutamente suicida. Estado racista, Estado assassino, Estado suicida. !sso se sobrepoe necessariamente e resultou, e claro, ao mesmo tempo na "solu,ao final" (pela qual se quis eliminar, atraves dos judeus, todas as outras ra,as das quais os judeus eram a urn s6 tempo 0 simbol0 e a manifesta,ao) dos anos 1942-1943 e depois no telegrama 71 pelo qual, em abril de 1945, Hitler dava ordem de destruir as condi,oes de vida do pr6prio povo alemao5 .
5. Hitler, ja em 19 de marc;:o, tamara disposic;:oes para a destruic;:ao da infra-estrutura logistica e dos equipamentos industriais da Alemanha. Tais disposic;:oes estao enunciadas em dais decretos, de 30 de marc;:o e de 7 de abril. Sabre esses decretos, cf. A. Speer, Erinnerungen, Berlim, PropylaenVerlag, 1969 (trad. fr.: Au creur du Troisieme Reich, Paris, Fayard, 1971). Foucault certamente leu a obra de J. Fest, Hitler, Frankfurt/BerlimlViena,
Verlag Ullstein, 1973 (trad. fro Paris, Gallimard, 1973).
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SolU9ao final para as outras ra9as, suicidio absoluto da ra9a [alema]. Era a isso que levava essa meciinica inscrita no funcionamento do Estado modemo. Apenas 0 naZlsmo, e claro, levou ate 0 paroxismo 0 jogo entre 0 direito soberano de matar e os mecanismos do biopoder. Mas tal jogo esta efetivamente inscrito no funcionamento de todos os Estados. De todos os Estados modemos, de todos os Estados capitalistas? Pois bem, nao e certo. Eu creio que justamente - mas essa seria uma outra demonstra9ao - 0 Estado SOClalista, 0 socialismo, tao marcado de racismo quanta 0 funcionamento do Estado moderno, do Estado capitalista. Em face do racismo de Estado, que se formou nas condi90es de que Ihes falei, constituiu-se um social-racismo que nao esperou a forma9ao dos Estados socialistas para aparecer. 0 socialismo foi, logo de saida, no seculo XIX, um raClsmo. E seja Fourier", no inicio do seculo, sejam os anarquistas no final do seculo, passando por todas as formas de SOClallsmo, voces sempre veem neles urn componente de racismo. Ai, e muito diftcil para mim falar disso. Falar disso de qualquer jeito e fazer uma afirma9ao que nao admite replica. Demonstra-Io para voces implicaria (0 que eu quena fazer) uma outra bateria de aulas no fim. Em todo caso, eu gostaria simplesmente de dizer isto: de um modo geral, pareceme - ai urn pOlleD uma conversa informal - que 0 socialismo, na medida em que nao apresenta, em primeira ins~ancia, os problemas economicos ou juridicos do tipo de propnedade ou do modo de produ9ao - na medida em que, em conseqiiencia, 0 problema da meciinica do poder, dos mecanismos
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6. De Ch. Fourier, ver sobretudo a esse respeito: Theorie des quatre mouvements et des destinees generales, Leipzig [Lyon], 1808; Le nouveau monde industriel et soctetaire, Paris, 1829; La fausse industrie morcelie, repugnante. mensongere, Paris, 1836,2 vol.
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do poder, nao e apresentado e analisado por ele -, [0 socialismo, pais,] nao pade deixar de reativar, de reinvestir esses mesmos mecanismos de poder que vimos constituirem-se atraves do Estado capitalista ou do Estado industrial. Em todo caso, uma coisa e certa: e que 0 tema do biopoder, desenvolvido no fim do seculo XVIII e durante todo 0 seculo XIX, nao s6 nao foi criticado pelo socialismo mas lambem, de fato, foi retomado por ele, desenvolvido, reimplantado, modificado em certos pontos, mas de modo algum reexaminado em suas bases e em seus modos de funcionamento. A ideia, em Suma, de que a sociedade ou 0 Estado, ou 0 que deve substituir 0 Estado, tem essencialmente a fun9ao de incumbir-se da vida, de organiza-Ia, de multiplica-Ia, de compensar suas eventualidades, de percorrer e delimitar suas chances e possibilidades biol6gicas, parece-me que isso foi retomado tal qual pelo socialismo. Com as conseqiiencias que isso tem, uma vez que nos encontramos num Estado socialista que deve exercer 0 direito de matar ou 0 direito de eliminar, ou o direito de desqualificar. E e assim que, inevitavelmente, voces VaG encontrar 0 racismo - nao 0 racismo propriamente etnico, mas 0 racismo de tipo evolucionista, 0 racismo biol6gico - funcionando plenamente nos Estados socialistas (tipo Uniao Sovietica), a prop6sito dos doentes mentais, dos criminosos, dos adversarios politicos, etc. Isso e tudo quanto ao Estado. o que me parece interessante tambem, e que faz tempo me e problem:\tico, e que, mais uma vez, nao e simplesmente no plano do Estado socialista que se encontra esse mesmo funcionamento do racismo, mas tambem nas diferentes formas de analise ou de projeto socialista, ao longo de todo 0 seculo XIX e, parece-me, em toma do seguinte: cada vez que um socialismo insistiu, no fundo, sobretudo na transforma9ao das condi90es economicas como principio de trans-
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forma,iio e de passagem do Estado capitalista para 0 Estado socialista (em outras palavras, cada vez que e1e buscou 0 principio da transforma,iio no plano dos processos economicos), ele nao necessitou, pelo menos imediatamente, de racismo. Em compensa,iio, em todos os momentos em que o socialismo foi obrigado a insistir no problema da luta, da luta contra 0 inimigo, da elimina,iio do adversano no pr6prio interior da sociedade capitalista; quando se tratou, por conseguinte, de pensar 0 enfrentamento fisico com 0 adversario de classe na sociedade capitalista, 0 racismo ressurgiu, porque foi a unica maneira, para urn pensamento socialista que apesar de tudo era muito ligado aos temas do biopoder, de pensar a raziio de matar 0 adversario. Quando se trata simplesmente de elimina-lo economicamente, de faze-lo perder seus privi1egios, niio se necessita de racismo. Mas, quando se trata de pensar que se vai ficar frente a frente com ele e que vai ser preciso brigar fisicamente com ele, arriscar a pr6pria vida e procurar mata-lo, foi preciso racismo. Em conseqiiencia, cada vez que voces veem esses 80cialismos, farmas de socialismo, momentos de socialismo que acentuam esse problema da luta, voces tern 0 racismo. E assim que as formas de socialismo mais racistas foram claro, 0 blanquismo, a Comuna, e foi a anarquia, muito mai~ do que a social-democracia, muito mais do que a Segunda Internacional e muito mais do que 0 pr6prio marxismo. 0 racismo socialista s6 foi liquidado, na Europa, no fim do seculo XIX, de uma parte pela domina,iio de uma social-democracia (e, temos mesmo de dizer, de urn reformismo ligado a essa social-democracia) e, da outra, por certo numero de processos como 0 caso Dreyfus na Fran,a. Mas, antes do caso Dreyfus, todos os socialistas, enfim os socialistas em sua extrema maioria, eram fundamentalmente racistas. E eu creio que eram racistas na medida em que (e terminarei nes-
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te ponto) niio reavaliaram - ou admitiram, se voces preferirem, como sendo 6bvio - esses mecanismos de biopoder que o desenvolvimento da sociedade e do Estado, desde 0 seculo XVlII, havia introduzido. Como se pode fazer urn biopoder funcionar e ao mesmo tempo exercer os direitos da guerra, os direitos do assassinio e da fun,iio da morte, senao passando pelo racismo? Era esse 0 problema, e eu acho que continua a ser esse 0 problema.
Resumo do curso*
* Publicado no Annuaire du College de France, 76 e annee, Histoire des systemes de pensee, annee 1975-1976, 1976, pp. 361-6. Republicado in Dits et ecrits, 1954·1988, ed. par D. Defert & F. Ewald, colab. 1. Lagrange, Paris, Gallimard, "Bibliotheque des sciences humaines", 1994,4 vol.; cf. III, n? 187, pp. 124-30.
Para realizar a analise concreta das rela,5es de poder, deve-se abandonar 0 modelo juridico da soberania. Este, de fato, pressup5e 0 individuo como sujeito de direitos naturais ou de poderes primitivos; prop5e-se 0 objetivo de explicar a genese ideal do Estado; enfim, faz da lei a manifesta,iio fundamental do poder. Dever-se-ia tentar estudar 0 poder niio a partir dos termos primitivos da rela,iio, mas a partir da propria rela,iio na medida em que ela e que determina os elementos sobre os quais incide: em vez de perguntar a sujeitos ideais 0 que puderam ceder de si mesmos ou de seus poderes para deixar-se sujeitar, deve-se investigar como as rela,5es de sujei,iio podem fabricar sujeitos. Assim tambem, em vez de buscar a forma UIlica, 0 ponto central do qual derivariam todas as formas de poder por conseqiiencia ou desenvolvimento, deve-se primeiro deixa-Ias valer em sua multiplicidade, em suas diferen,as, em sua especificidade, em sua reversibilidade: estuda-Ias, pois, como rela,5es de forc;a que se entrecruzam, remetem umas as outras, convergem ou, ao contrario, se op5em e tendem a anular-se. Enfim, em vez de conceder urn privilegio il lei como manifesta,iio de
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poder, e preferivel tentar localizar as diferentes tecnicas de coer,ao por ele empregadas. Se e preciso fazer a analise do poder coincidir com 0 esquema proposto pela constitui,ao juridica da soberania, se e preciso pensar 0 poder em termos de rela,oes de for,a, deve-se por isso decifra-lo segundo a forma geral da guerra? A guerra pode valer como analisador das rela,oes de for,a? Essa questao abrange varias outras: - deve a guerra ser considerada urn estado de coisas primeiro e fundamental em rela,ao ao qual todos os fenomenos de domina,ao, de diferencia,ao, de hierarquiza,ao sociais deverao ser considerados como derivados? - os processos de antagonismos, de enfrentamentos e de lutas entre individuos, grupos ou classes dependem em ultima instancia dos processos gerais da guerra? - 0 conjunto das no,oes derivadas da estrategia ou da tMica podem constituir urn instrumento valido e suficiente para analisar as rela,oes de poder? - as instituic;5es militares e guerreiras, de uma forma geral os procedimentos praticados para travar a guerra, sao, de perto ou de longe, direta ou indiretamente, 0 nucleo das institui,oes politicas? - mas a questao que se deveria formular primeiro seria esta: como, desde quando e como come,ou-se a imaginar que e a guerra que funciona nas rela,oes de poder, que urn combate ininterrupto perturba a paz e que a ordem civil e fundamentalmente uma ordem de batalha? Foi essa a questao formulada no curso deste ano. Como se enxergou a guerra na filigrana da paz? Quem procurou no ruido e na confusao da guerra, na lama das batalhas, 0 principio de inteligibilidade da ordem, das institui,oes e da hist6ria? Quem pensou primeiro que a politica era a guerra continuada por outros meios?
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RESUMO DO CURSO
• Aparece urn paradoxo ao primeiro olhar. Com a evolu,ao dos Estados desde 0 inicio da Idade Media, parece que as praticas e as institui,oes de guerra seguiram urna evolu9ao vislvel. De uma parte, elas tiveram tendencia a concentrar-se entre as maos de urn poder central que era 0 Unico a ter
o direito e os meios da guerra; por essa razao mesma, elas se apagaram, nao sem lentidao, da rela,ao de homem com homem, de grupo com grupo, e urna linha de evolu,ao as conduziu a ser cada vez mais urn privilegio de Estado. De outra parte, e em conseqiiencia, a guerra tende a tornar-se 0 apanagio profissional e tecnico de urn aparelho militar ciosamente definido e controlado. Nurna palavra: urna sociedade inteiramente perpassada de rela,oes guerreiras foi sendo substituida aos poucos por urn Estado dotado de institui,oes militares. Ora, mal estava terminada essa transforma,ao e apareceu urn certo tipo de discurso sobre as rela,oes entre a sociedade e a guerra. Formou-se urn discurso sobre as rela,oes entre a sociedade e a guerra. Urn discurso hist6ricojuridico - muito diferente do discurso filosOfico-juridico ordenado ao problema da soberania - faz da guerra 0 pano de fundo permanente de todas as institui,oes de poder. Esse discurso apareceu pouco tempo depois do fim das guerras de Religiao e no inicio das grandes lutas politicas inglesas do seculo XVII. Segundo tal discurso, que foi ilustrado na Inglaterra por Coke ou Lilburne, na Fran,a por Boulainvilliers e mais tarde por du Buat-Nan,ay, foi a guerra que presidiu ao nascimento dos Estados: mas nao a guerra ideal - a imaginada pelos fil6sofos do estado natural-, mas guerras reais e batalhas efetivas; as leis nasceram em meio a expedi,oes, a conquistas e a cidades incendiadas; mas a guerra continua tambem a causar estragos no interior dos meca-
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nismos do poder, ou pelo menos a constituir 0 motor secreto das institui<;oes, das leis e da ordem. Sob os esquecimentos, as Husoes ou as mentiras que nos fazem crer em necessidades naturais ou nas exigencias fundamentais da ordem, deve-se encontrar a guerra: ela e a cifra da paz. Ela divide permanentemente 0 corpo social inteiro; coloca cada urn de n6s num campo ou no outro. E essa guerra, nao basta encontra-la como urn principio de explica<;ao; e preciso reativa-la, faze-Ia deixar as formas latentes e surdas em que ela prossegue sem que a percebamos bern e leva-Ia a uma bataIha decisiva para a qual devemos preparar-nos, se quisermos ser vencedores. Atraves dessa tematica caracterizada de urna maneira muito vaga ainda, pode-se compreender a importancia dessa forma de analise.
1. 0 sujeito que fala nesse discurso nao pode ocupar a posi<;ao do jurista ou do fil6sofo, ou seja, a posi<;ao do sujeito universal. Nessa luta geral de que fala, ele esm for<;osamente de urn lado ou do outro; esta no meio da batalha, tern adversarios, combate por uma vit6ria. Sem duvida, procura fazer valer 0 direito; mas trata-se de seu direito - direito singular marcado por uma rela<;ao de conquista, de domina<;ao ou de ancianidade: direitos da ra<;a, direitos das invasoes triunfantes ou das ocupa<;oes milenares. E, se ele fala tambern da verdade, e daquela verdade perspeetiva e estrategica que Ihe permite granjear a vit6ria. Portanto, temos ai urn discurso politico e hist6rico que tern pretensao il verdade e ao direito, mas excluindo-se a si pr6prio, e explicitamente, da universalidade juridico-filos6fica. Seu papel nao e aquele com que os legisladores e os fil6sofos sonharam, de S610n a Kant: estabelecer-se entre os adversanos, no centro e acima da confusao, impor urn armisticio, fundar uma ordem que reconcilie. Trata-se de expor urn direito atingido de dissimetria e que
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funciona como privilegio para ser mantido ou restabelecido, trata-se de fazer valer uma verdade que funciona como urna arma. Para 0 sujeito que faz semelhante discurso, a verdade universal e 0 direito geral sao ilusoes ou ciladas. 2. Trata-se, ademais, de urn discurso que inverte os valores tradicionais da inteligibilidade. Explica<;ao por baixo, que nao e a explica<;ao pelo mais simples, pelo mais elementar e mais claro, mas pelo mais confuso, pelo mais obscuro, pelo mais desordenado, pelo mais votado ao acaso. 0 que deve valer como principio de decifra<;ao e a confusao da violencia, das paixoes, dos 6dios, das desforras; e tambern 0 tecido das circunstiincias miudas que fazem as derrotas e as vit6rias. 0 deus eliptico e sombrio das batalhas deve ilurninar as longas jornadas da ordem, do trabalho e da paz. o furor deve explicar as harmonias. Assim e que, no principio da hist6ria e do direito, farao valer uma serie de fatos brutos (vigor fisico, for<;a, tra<;os de carater), urna serie de acasos (derrotas, vit6rias, sucessos ou insucessos das conjura<;oes, das revoltas ou das alian<;as). E e somente acima desse enredamento que se delineara urna racionalidade crescente, ados calculos e das estrategias - racionalidade que, il medida que se sobe e que ela se desenvolve, fica cada vez mais fragil, cada vez mais maldosa, cada vez mais ligada il
ilusao,
a quimera, a mistificayiio. Portanto, temos at exata-
mente 0 contrano dessas anillises tradicionais que tentam encontrar sob 0 acaso de aparencia e de superficie, sob a brutalidade visivel dos corpos e das paixoes, urna racionalidade fundamental, permanente, vinculada por essencia ao justo e ao bern. 3. Esse tipo de discurso se desenvolve inteiramente na dimensao hist6rica. Nao empreende avaliar a hist6ria, os governos injustos, os abusos e as vioIencias pelo principio
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ideal de uma razao ou de uma lei; mas revelar, ao contnirio, sob a forma das institui90es ou das legisla90es, 0 passado esquecido das lutas reais, das vitarias ou das derrotas dissimuladas, 0 saugue seco nos cOdigos. Atribui-se como campo de referencia 0 movimento infindavel da histaria. Mas elhe possivel, ao mesmo tempo, apoiar-se nas formas miticas tradicionais (a era perdida dos graudes ancestrais, a iminencia dos tempos novos e das desforras milenares, a vinda do novo reino que apagara as antigas derrotas): e urn discurso que sera capaz de trazer tanto a nostalgia das aristocracias que se extinguem quanta 0 ardor das desforras populares. Em suma, em contraste com 0 discurso filosOfico-juridico que se ordena pelo problema da soberauia e da lei, esse discurso que decifra a permanencia da guerra na sociedade e urn discurso essencialmente histarico-politico, um discurso em que a verdade funciona como arma para uma vitaria partidaria, urn discurso sombriamente eritico e ao meSilla tempo intensamente mitico.
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o curso deste auo foi dedicado ao aparecimento desta forma de analise: como a guerra (e seus diferentes aspectos, invasao, batalha, conquista, vitaria, rela90es dos vencedores com os vencidos, pilhagem e apropria9ao, subleva90es) foi utilizada como urn aualisador da histaria e, de um modo geral, das rela90es sociais? II Deve-se de inicio descartar algumas falsas paternidades. E sobretudo a de Hobbes. 0 que Hobbes denomina a guerra de todos contra todos nao e em absoluto uma guerra real e histarica, mas um jogo de representa90es pelo qual cada qual mede 0 perigo que cada qual representa para si, calcula a vontade que os outros tern de lutar e avalia 0 risco que ele praprio assumiria se tivesse recorrido a for9a. A
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soberauia - trate-se de uma "republica de institui9ao" ou de uma "republica de aquisi9ao" - se estabelece, nao por um fato de domina9ao belicosa, mas, ao contrario, por um cMculo que permite evitar a guerra. Para Hobbes, a nao-guerra e que funda 0 Estado e Ihe da sua forma. 2! A histaria das guerras como matrizes dos Estados foi decerto esb09ada no seculo XVI, no final das guerras de Religiao (na Frau9a, por exemplo, em Hotman). Mas foi sobretudo no seculo XVII que se desenvolveu esse tipo de aualise. Na Inglaterra, primeiro, na oposi9ao parlamentar e entre os puritanos, com a ideia de que a sociedade inglesa, desde 0 seculo XI, e uma sociedade de conquista: a monarquia e a aristocracia, com suas institui~oes proprias, seriam de importa9ao normanda, enquanto 0 povo saxao teria, nao sem dificuldade, conservado alguns vestigios de suas liberdades primitivas. Contra esse pano de fundo de domina9ao guerreira, historiadores ingleses como Coke ou Selden reconstituem os principais episadios da histaria da Inglaterra; cada um deles e aualisado quer como uma conseqiiencia, quer como uma retomada do estado de guerra historicamente primeiro entre duas ra9as hostis e que diferem por suas institui90es e por seus interesses. A revolu9aO de que tais historiadores SaO contemporiineos, testemunhas e as vezes protagonistas seria, assim, a derradeira batalha e a desforra dessa velha guerra. Encontra-se uma aualise do mesmo tipo na Fran9a, porem mais tardiamente, e sobretudo nOs meios aristocniticos do fim do reinado de Luis XVI. Boulainvilliers fomecera a formula9ao mais rigorosa dela: mas, dessa feita, a histaria e narrada e os direitos sao reivindicados em nome do
vencedor; a aristocracia francesa, atribuindo-se uma origem germanica, outorga-se urn direito de conquista, portauto de posse eminente sobre todas as terras do reino e de domina9ao absoluta sobre todos os habitautes gauleses ou roma-
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EM DEFESA DA SOClEDADE
nos; mas ela se atribui tambem prerrogativas em rela9ao ao poder monarquico que s6 teria sido estabelecido na origem por seu consentimento e deveria sempre ser mantido dentra dos limites entao fixados. A hist6ria assim escrita ja nao e, como na Inglaterra, a hist6ria do enfrentamento perpetuo entre vencidos e vencedores, tendo, como categoria fundamental, a subleva9ao e as concessoes arrancadas, sera a hist6ria das usurpa90es ou das trai90es do rei com rela9ao a nobreza da qual ele e oriundo e de seus conluios antinaturais com urna burguesia de origem galo-ramana. Esse esquema de analise retomado por Freret e sobretudo por du BuatNan9ay foi motivo de toda urna serie de polemicas e a ocasiao de pesquisas hist6ricas consideraveis ate a Revolu9ao. o importante e que 0 principio da analise hist6rica seja buscado na dualidade e na guerra das ra9as. E a partir dai e por interrnedio das obras de Augustin e de Amedee Thierry que vao se desenvolver no seculo XIX dois tipos de decifra9ao da hist6ria: urn se articulara a partir da luta de classes, o outro, do enfrentamento biol6gico.
Situariio do curso
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Ministrado de 7 de janeiro a 17 de man;o de 1976, entre o lan,amento de Surveiller et punir [Vigiar e punir] (fevereiro de 1975) e 0 de La volante de savoir [A vontade de saber] (outubro de 1976), este curso ocupa, no pensamento e nas pesquisas de Foucault, uma posi,ao especifica, estrategica poderiamos dizer: e uma especie de pausa, de momento de interrup,ao, de virada, decerto, em que ele avalia 0 caminho percorrido e tra,a as linhas das pesquisas vindouras. Em Em defesa da sociedade, Foucault apresenta, na abertura do curso, e em forma de balan,o e de levantamento, os delineamentos gerais do poder "disciplinar" - poder que se aplica singularmente aos corpos pelas tecnicas da vigiliincia, pelas puni,5es normalizadoras, pela organiza,ao pan6ptica das institui,5es punitivas - e esbo,a no final do curso o perfil daquilo a que chama 0 "biopoder" - poder que se aplica globalmente it popula,ao, it vida e aos vivos. Foi na tentativa de estabelecer uma "genealogia" desse poder que Foucault se interrogou depois sobre a "governabilidade", poder que se exerceu, desde 0 fim do seculo XVI, atraves dos dispositivos e das tecnologias da razao de Estado e do "po-
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liciamento". A questiio das disciplinas Foucault havia consagrado 0 curso de 1972-1973 (La sociere punitive [A sociedade punitiva]), de 1973-1974 (Le pouvoir psychiatrique [0 poder psiquilitrico]), de 1974-1975 (Les anarmaux [Os anormais]) e, enfim, a obra Surveiller et punir; il governabilidade e ao biopoder ele consagraril 0 primeiro volume de Histaire de la sexualite [Hist6ria da sexualidade] (La volante de savoir, dezembro de 1976) e, em seguida, 0 curso de 1977-1978 (Securite, territoire et population [Seguran,a, territ6rio e popula,iio]), de 1978-1979 (Naissance de la biopolitique [Nascimento da biopolitica]) e 0 inicio do curso de 1979-1980 (Du gouvernement des vivants [Do governo dos vivos]). Como a questiio dos dois poderes, de sua especificidade e de sua articula,iio, era central nesse curso - junto com a da guerra como "analisador" das rela,oes de poder e a do nascimento do discurso hist6rico-politico da luta das ra,as-, pareceu oportuno, para tentar "situa-la", evocar alguns pontos que, parece-nos, deram azo a mal-entendidos, a equivocos, a falsas interpreta,oes, a falsifica,oes algumas vezes. Trata-se, de uma parte, do nascimento da problematica do poder em Foucault; trata-se, de outra parte, do funcionamento dos dispositivos e tecnologias do poder nas sociedades liberais enos totalitarismos, do "dialogo" com Marx e Freud, a prop6sito dos processos de produ,iio e da sexualidade e, enfim, a questiio das resistencias. Empregaremos depoimentos diretos, tirados sobretudo dos textos reunidos em Dits et ecrUs' . Cumpre, niio obstante, salientar que a documenta,iio completa sobre a questiio do poder, dos poderes, niio estaci disponivel antes do termino da publica,iio dos
* Abrevia9ao das referencias a Dits et ecrits
=
DE, volume, n~ do art.:
pagina(s).
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SITUA9AO DO CURSO
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cursos e que, portanto, sera preciso esperar ate entiio para tentar fazer um balan,o definitivo dela. Foucault nunca dedicou um livro ao poder. Esbo,ou varias vezes seus delineamentos essenciais; explicou-se incansavelmente; niio foi avaro de advertencias e de esclarecimentos. Ao contrario, estudou seu funcionamento, seus efeitos, seu "como", em numerosas analises hist6ricas que pode realizar sabre os hospicios, a loueura, a medicina, as prisoes, a sexualidade, 0 "policiamento". A questiio do poder se espraia, pois, ao longo de todas essas analises, forma um s6 todo com elas, e-Ihes imanente e, por isso mesmo, e-lhes indissociavel. Como a problemitica se enriqueceu sob a pressiio dos acontecimentos e ao longo de seu desenvolvimento interno, seria viio querer inseri-la a qualquer pre,o numa coerencia, numa continuidade linear e sem falhas. Trata-se antes, cada vez, de um movimento de retomada: Foucault, por um procedimento que the e pr6prio, nunca parou ate 0 fim da vida de "reler", de tornar a situar e de reinterpretar seus antigos trabalhos il luz dos ultimos, numa especie de reatualiza,iio incessante. E por isso mesmo que ele sempre se defendeu de ter querido propor uma "teoria geral" do poder, que niio deixaram de Ihe atribuir, no que concerne, por exemplo, ao "panoptismo". Sobre as rela,oes verdade/poder, saber/poder, ele dizia em 1977: "... essa camada de objetos, melhor, essa camada de rela,oes, e dificil de apreender; e como niio se tem teoria geral para apreende-las, eu sou, se voces quiserem, um empirista cego, isto quer dizer que estou na pior das situa,oes. Niio tenho teoria geral e tampouco tenho instrumento seguro" (DE, III, 216: 404). A questiio do poder, dizia ele ainda em 1977, "come,ou a colocar-se em sua nudez" por volta dos anos 1955, contra 0 pano de fundo dessas "duas sombras gigantescas", dessas "duas heran,as negras" que foram, para ele e para a sua gera,iio, 0 fascismo e 0 stalinismo. "A niio-analise do fascismo e um dos
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fatos politicos importantes destes ultimos trinta anos." (DE, III, 218: 422.) Se a questao do seculo XIX foi a da pobreza - dizia ele -, a questao colocada pelo fascismo e pelo stalinismo foi a do poder: "pouquissimas riquezas" de urn lado, "excesso de poder" do outro (cf. DE, III, 232: 536). Desde os anos trinta, nos circulos trotskistas, havia-se analisado 0 fenomeno burocr:\tico, a burocratiza9ao do Partido. A questao do poder e retomada nos anos cinqiienta, a partir, pois, das "heran9as negras" do fascismo e do stalinismo; nesse momenta e que teria ocorrido a clivagem entre a antiga teo-
ria da riqueza, nascida do "escandalo" da miseria, e a problematica do poder. Sao os anos do relatorio Kruchev, do inicio da "desestaliniza~ao", da revolta hungara, da guerra da Argelia. As rela90es de poder, os fatos de domina9ao, as praticas de sujei9ao nao sao especificos dos "totalitarismos", perpassam da mesma forma as sociedades denominadas "democraticas", aquelas que Foucault estudou em suas pesquisas hist6ricas. Que rela9ao ha entre sociedade totalitaria e sociedade democratica? Em que a racionalidade politica delas, a utiliza9ao que fazem das tecnologias e dispositivos do poder se parecem ou se distinguem? A prop6sito disso, Foucault dizia em 1978: "As sociedades ocidentais, de urn modo geral as sociedades industriais e desenvolvidas do fim deste seculo, sao sociedades que sao penetradas por essa inquieta9ao surda, ou mesmo por movimentos de revolta totalmente explicitos que questionam essa especie de superprodU9ao de poder que 0 stalinismo e 0 fascismo decerto manifestaram no estado nu e monstruoso." (DE, III, 232: 536.) E, urn pOlleD acima, na mesma conferencia: "E claro, fascismo e stalinismo correspondiam ambos a uma conjuntura precisa e bern especifica. Decerto fascismo e stalinismo produziram seus efeitos em dimensoes desconhecidas ate entao e que podemos esperar, se nao pensar racionalmente, que
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naO as conh.eceremos mais de novo. Fen6menos singulares, por consegumte, mas nao se deve negar que em militos pontos f~sclsmo e stalinismo simplesmente prolongaram toda urna sene de mecan,smos que ja existiam nos sistemas sociais e politicos do Ocidente. Afinal de contas, a organiza9ao dos grande~ parlldos,.0 desenvolvimento de aparelhos policiais, a eXlstencla de tecmcas de repressao como os campos de trabalho, tudo isso e uma heran9a realmente constituida das s?cledades ocidentais liberais que 0 stalinismo e 0 fascismo so llveram de fazer deles." (Ibid., pp. 535-6.) . ,~sslm, havena, entre "sociedades liberais" e Estados totahtanos, urna filia9ao bern estranha, do nonnal ao patol6gleO, ao monstruoso mesmo, sobre a qual curnpriria, cedo ou tarde, mterrogar-se. Ainda em 1982, a prop6sito dessas duas "doen9as" do poder, dessas duas "febres" que foram 0 fasClsmo e 0 stalinismo, Foucault escrevia: "Vma das numerosas razoes que fazem com que elas sejam tao desconcertan-
tes para nos e que, a despeito de sua singularidade historica elas nao sao inteiramente originais. a fascismo e 0 stalinis~
mo. ut~lizaram e ampliaram os mecanismos ja presentes na
malOna das outras sociedades. Nao somente isso, mas, apesar de sua loucura intema, e1es utilizaram, numa larga medida, as ideias e os procedimentos de nossa racionalidade politica." (DE, IV, 306: 224.) Transferencia de tecnologias e prolongamento, pois, adoenl;a, aloucura, sem contar a monstruosidade. "Continuidade" tambem do fascismo e do stalinismo, nas biopoliticas de exclusiio e de extennina9ao do politicamente perigoso e do etnicamente impuro - biopoliticas introduzidas ja no seculo XVIII pelo policiamento medico e assumidas, no seculo XIX, pelo darwinismo social, pelo eugenismo, pelas teorias medico-Iegais da hereditariedade, da degenerescencia e da ra9a; e ler-se-ao, a esse respeito, as considera90es de Foucault na ultima aula, a de 17 de mar90, de Em defesa da sociedade. Afinal de contas, um
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dos objetivos, sem duvida 0 objetivo essencia], desse curso e mesmo a analise da utiliza,ao que 0 fascismo, sobretudo (mas 0 stalinismo tambem), deu as biopoliticas raciais no "governo dos vivos" pelo vies da pureza de sangue e da ortodoxia ideol6gica. Foucault manteve, a prop6sito das rela,5es entre poder e economia politica, uma especie de "dialogo ininterrupto" com Marx. Com efeito, Marx nao ignorava a questiio do poder e das disciplinas, ainda que nos atenbamos apenas as analises do primeiro livro de 0 capital (sobre a "jornada de trabalho", "a divisao do trabalho e a manufatura", "as maquinas e a grande industria") e a do ultimo livro sobre 0 "processo de circula,ao do capital"; (cf. DE, IV, 297 [a. 1976]: 182-201, esp. 186 ss.); assim tambem Foucault nao ignorava, por sua vez, as coer,5es exercidas pelos processos economicos sobre a organiza,ao dos espa,os disciplinares. Mas, em Marx, as rela,5es de domina,ao parecem estabelecer-se, na fabrica, unicamente mediante 0 jogo e os efeitos da rela,ao "antagonista" entre 0 capital e 0 trabalho. Para Foucault, ao contrario, essa rela,ao s6 teria sido possivel pelas sujei,5es, pelos treinamentos, pelas vigiliincias produzidas e administradas previamente pelas disciplinas. A esse respeito, dizia ele; "... quando se necessitou, na divisao do trabalho, de pessoas capazes de fazer isto, de outras capazes de fazer aquilo, quando se teve medo tambem de que movimentos populares de resistencia, ou de inercia, ou de revolta viessem transtornar toda essa ordem capitalista que estava nascendo, enta~ foi preciso uma vigilancia precisa e concreta sobre todos os individuos, e creio que a medicaliza,ao de que eu falava esta ligada a isso" (DE, III, 212: 374). Portanto, nao seria a burguesia "capitalista" do seculo XIX que teria inventado e imposto as rela,5es de domina,ao; ela as teria herdado dos mecanismos disciplinares dos seculos XVII e XVIII, e s6 teria necessitado utiliza-las, mudar-lhes
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a dire,ao, intensificando algumas ou atenuando outras:
"Nao ha, pais, urn foeo u.nico de oode sairiam como que por emana,ao todas essas rela,5es de poder, mas urn emaranhamento de rela,5es de poder que, em surna, torna possivel a domina,ao de uma classe sobre a outra, de urn grupo sobre o outro." (Ibid., p. 379.) "No fundo", eSCreve ainda Foucault em 1978, "e verdade que a questao que eu forrnulava, eu a forrnulava ao marxismo bern como a outras concep,5es da hist6ria e da politica, e ela consistia nisto: as rela,5es de poder nao representam, em compara,ao, por exemplo, com as rela,5es de produ,ao, urn nivel de realidade totalmente complexo e relativamente, mas somente relativamente, independente?" (DE, III, 238: 629.) E poder-se-ia entiio perguntar se 0 "capitalismo", modo de produ,ao em que vern inserir-se essas relac;oes de poder, naD representou por seu turno urn grande dispositivo de codifica,ao e de intensifica,ao dessas rela,5es "relativamente autonomas" pelas segmenta,5es, pelas hierarquias, pela divisao do trabalho estabelecidas nas manufaturas, nas oficinas e nas fabricas, pe-
las relac;oes decerto "economicas" e conflituosas entre a for,a de trabalho e 0 capital, mas tambem, e sobretudo, pelas regulamenta,5es disciplinares, pela sujei,ao dos corpos, pelas regula,5es sanitarias que adaptaram, intensificaram, dobraram essa for,a as coer,5es economicas da produ,ao. Nao seria 0 trabalho, portanto, que teria introduzido as disciplinas, mas, fiuito pele contnirio, as disciplinas e as normas que teriam tornado possivel 0 trabalho tal como ele se organiza na economia chamada capitalista. Poder-se-ia dizer 0 mesmo a prop6sito da "sexualida-
de" ("dialogo", dessa vez, mas num tom mais acalorado, com a medicina do seculo XIX e sobretudo com Freud). Foucault nunca negou a "centralidade" da sexualidade nos discursos e nas praticas medicas a partir do inicio do seculo XVIII. Mas descartou a ideia, anunciada por Freud e depois teorizada
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pelo "freudo-marxismo", de que essa sexualidade s6 teria sido negada, recalcada, reprimida; muito pelo contririo, ela teria ocasionado, segundo Foucault, toda uma prolifera,ao de discursos eminentemente positivos pelos quais, na realidade, se exerceu esse poder de controle e de normaliza,ao dos individuos, dos comportamentos e da popula,ao, que e 0 biopoder. A "sexualidade" nao seria, pois, 0 receptaculo dos segredos de onde se faria surgir, desde que se soubesse detecta-los e decifra-Ios, a verdade dos individuos; ela e, antes, 0 dominio no qual, desde a campanha contra 0 onanismo das crian,as surgida na Inglaterra na primeira metade do seculo XVIII, se exerceu 0 poder sobre a vida em duas formas, a da "ani\tomo-politica do corpo humano" e a da "biopolitica da popu]a,ao". Em tomo da sexualidade teriam vindo articular-se, assim, apoiando-se e refon;ando-se reciprocamente, os dois poderes, 0 das disciplinas do corpo e 0 do govemo da popula,ao. "As disciplinas do corpo e as regulamenta,6es da popula,ao constituem os dois polos" - escrevia ele em La volante de savoir - "em torno dos quais se desenvolveu a organiza,ao do poder sobre a vida. A implanta,ao, no decorrer da idade classica, dessa grande tecnologia com dupla face - anat6mica e biologica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e olhando para os processos da vida - caracteriza um poder cuja mais alta fun,ao talvez ja nao seja doravante a de matar, mas a de investir a vida de parte a parte" (p. 183). Dai a importancia do sexo, nao como deposito de segredos e fundamento da verdade dos individuos, mas, antes, como alvo, como "mobil politico". Com efeito, "de um lado ele depende das disciplinas do corpo: treinamento, intensifica,ao e distribui,ao das for,as, ajustamento e economia das energias. Do outro, ele depende da regula,ao das popula,6es, por todos os efeitos globais por ele induzidos [...] Utilizam-no como matriz das disciplinas e como principio das regula,6es" (ibid., pp. 191-2)Y;
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Portanto, 0 que faz a especificidade e a importancia do trabalho e da sexualidade, 0 que faz tambem que tenham sido "investidos", "superinvestidos" pelos discursos da economia politica, de um lado, e pelo saber medico, do outro, e que neles, atraves deles, vieram conjugar-se, intensificando assim suas ascendencias e seus efeitas, tanto as rela'\toes do poder disciplinar quanta as tecnicas de normaliza,ao do biopoder. Esses dois poderes nao constituiriam, pois, como se disse as vezes, duas "teorias" no pensamento de Foucault, uma exclusiva da outra, uma independente da outra, uma sucessiva aDutra, mas, antes, dais modos conjuntos de funcionamento do saber/poder, tendo, e verdade, focos, pontos de aplica,ao, finalidades e mobeis especificos; 0 treinamento dos corpos, de uma parte, a regula,ao da popula,ao, da Dutra. Ler-se-ao, a esse respeito, as amilises de Foucault sobre a cidade, a norma, a sexualidade na aula de 17 de mar,o de Em defesa da sociedade, e 0 capitulo final "Direito de morte e poder sobre a vida", de La volante de savoir. Onde ha poder, ha sempre resistencia, sendo urn co-extensivo ao outro: "...desde que ha urna rela,ao de poder, ha uma possibilidade de resistencia. Nunca somos pegos na armadilha pelo poder: sempre podemos modificar-lhe 0 dominio, em determinadas condi,6es e segundo uma estrategia precisa" (DE, III, 200: 267). 0 campo no qual se espraia 0 poder nao e, pois, 0 de uma domina,ao "sombria e estave]": "Em toda parte estamos em luta [...] e, a todo instante, vamos da rebeliao a domina,ao, da domina,ao a rebeliiio, e e toda essa agita,iio perpetua que eu gostaria de tentar fazer que aparer;a." (DE, III, 216: 407.) 0 que carac-
teriza 0 poder, em seus escopos e em suas manobras, seria portanto menos uma potencia sem limites do que uma especie de inefidcia constitutiva: "0 poder niio e onipotente, onisciente, ao contrario", dizia Foucault em 1978 a respeito das analises realizadas em La volante de savoir. "Se as rela-
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90es do poder produziram formas de investiga9ao, de analises dos modelos de saber, foi precisamente" - acrescentava ele - "porque 0 poder nao era onisciente, mas porque era cego, porque estava num impasse. Se se assistiu ao desenvolvimento de tantas rela90es de poder, de tantos sistemas de controle, de tantas formas de vigilancia, foi precisamente porque 0 poder era sempre impotente." (DE, III, 238: 629.) Sendo a hist6ria 0 ardil da razao, nao seria 0 poder 0 ardil da hist6ria, aquele que sempre ganba? - perguntava-se ele ainda em La volante de savair. Muito peio contrario: "Isso seria desconbecer 0 carater estritamente relacional das rela90es de poder. Elas s6 podem existir em fun9ao de uma multiplicidade de pontos de resistencia: estes desempenbam, nas rela90es de poder, 0 papel de adversano, de alvo, de apoio, de saliencia onde se agarrar. Esses pontos de resistencia estao presentes em toda parte na rede do poder" (p. 126). Mas essa resistencia, essas resistencias, como se mani-
festam, que formas assurnem, como sao analisaveis? Ha que salientar, a esse respeito e acima de tudo, isto: se 0 poder, como Foucault diz nas duas primeiras aulas do curso, s6 se desenvolve e s6 se exerce nas formas do direito e da lei, se nao e algo que se toma ou que se troca, se nao se constr6i a partir de interesses, de uma vontade, de uma inten9ao, se nao se origina no Estado, se nao e, pois, dedutivel e inteligivel a partir da categoria juridico-politica da soberania (mesmo que 0 direito, a lei e a soberania possam representar uma especie de codifica9ao, de fortalecimento mesmo desse poder - cf. DE, III, 218: 424; 239: 654), tampouco a resistencia, entao, nao e da ordem do direito, de urn direito, e vai a muito mais alem, pois, do ambito juridico daquilo a que se chamou, desde 0 seculo XVII, 0 "direito de resistencia": ela nao se fundamenta na soberania de urn sujeito previo. Poder e resistencias se enfrentam, com taticas mutaveis, m6veis, ffildtiplas, num campo de rela90es de for9a cuja 16gica e menos
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aquela, regulamentada e codificada, do direito e da soberania, do que aquela, estrategica e beiicosa, das lutas. A rela9ao entre poder e resistencia esta menos na forma juridica da soberania do que naquela, estrategica, da luta que enta~ curnprira analisar. Essa e uma linba de for9a desse curso, numa epoca em que Foucault se interessava muito pelas institui90es militares e pelo exercito (cf. a esse respeito, DE, III, 174: 89; 200: 268; 229: 515; 239: 648, e mais tarde, em 1981, IV, 297: 182-201). A pergunta que ele se fazia entao era esta: essas lutas, esses enfrentamentos, essas estrategias serao analisaveis na forma binana e maci9a da domina9ao (dominantesl dominados) e, portanto, em ultima instiincia, da guerra? "Deve-se entao", escrevia ele em La volonte de savoir, "inverter a f6rmula e dizer que a politica e a guerra prosseguida com Dutros meios? Talvez, se se quisesse manter sempre
uma distiincia entre guerra e politica, dever-se-ia adiantar, ao contriirio, que essa multiplicidade das reia90es de for9a pode ser codificada - em parte e jamais totalmente - seja na forma da 'guerra', seja na forma da 'politica': essas seriam duas estrategias diferentes (mas prontas para cair urna na outra) para integrar essas rela90es de for9a desequilibradas, heterogeneas, instaveis, tensas" (p. 123). Objetando aos marxistas, a prop6sito do conceito de "luta das classes", 0 fato de se terem interrogado mais sobre 0 que e a classe do que sobre 0 que e a luta (cf. DE, III, 200: 268;206:310-311), ele afirmava: "0 que eu gostaria de discutir, a partir de Marx, nao pertence ao problema da sociologia das classes, mas ao metoda estrategico referente illuta. E ai que se arraiga meu interesse por Marx, e e a partir dai que eu gostaria de formular os problemas." (DE, III, 235: 606.) As rela90es entre guerra e domina9ao, Foucault ja havia consagrado a aula de lOde janeiro do Curso de 1973 sobre A saciedade punitiva. Nela denuncia a teoria de Hobbes
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sobre a "guerra de todos contra todos", analisa as rela,oes entre guerra civil e poder e descreve as medidas de defesa tomadas pela sociedade contra 0 "inimigo social" que, desde o seculo XVIII, 0 criminoso se tornou. Em 1967 e 1968, como lembra Daniel Defert em sua "Cronotogia" (DE, I: 30-32), Foucault lia Trotski, Guevara, Rosa Luxemburgo e Clausewitz. A proposito dos escritos dos Black Panthers, que estava lendo na mesma epoca, ele dizia numa carta: "Eles desenvolvem urna analise estrategica liberta da teoria marxista da sociedade" (ibid., p. 33). Numa carta de dezembro de 1972, diz querer empreender a analise das rela,oes do poder a partir da "mais denegrida das guerras: nem Hobbes, nem Clausewitz, nem luta das classes, a guerra civil" (ibid., p. 42). Enfim, em agosto de 1974, noutra carta, escreve ainda: "Meus marginais sao incrivelmente familiares e iterativos. Vontade de me ocupar de outras coisas: economia politica, estrategia, politica" (ibid., p. 45). Sobre a eficacia do modelo estrategico para a analise das rela,oes de poder, Foucault parece, nao obstante, ter hesitado muito: "as processos de domina,ao nao serao mais complexos, mais complicados do que a guerra?" perguntava-se ele nurna entrevista de dezembro de 1977 (DE, III, 215: 391). E, nas perguntas dirigidas a revista Herodote (juIho-setembro de 1976), ele escrevia: "A no,ao de estrategia e essencial quando se quer fazer a analise do saber e de suas rela,oes com 0 poder. Sera que ela implica necessariamente que atraves do saber em questao se faz a guerra?/ A estrategia nao permite analisar as rela,oes de poder como tecnica de dominar;iio?/ au devemos dizer que a domina,ao nao passa de urna forma continuada da guerra?" (DE, III, 178: 94.) E acrescentava, urn pouco mais tarde: "A reta,ao de for,a na ordem da politica e uma reta,ao de guerra? Pessoalmente, por ora nao me sinto pronto para responder de urn modo definitivo com sim ou com nao." (DE, III, 195: 206.)
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A tais questoes
e consagrado, essencialmente, 0
curso
que publicamos aqui. Nele Foucault analisa os ternas da guerra e da domina,ao no discurso historico-politico da luta das ra,as nos Levellers e nos Diggers ingleses e em Boulainvilliers: com efeito, suas narrativas da domina,ao dos normandos sobre os saxoes, depois da batalha de Hastings, e dos francos germiinicos sobre os gato-romanos depois da invasao da Galia, sao fundamentadas na historia da conquista, que eles opoem as "fic,oes" do direito natural e ao universalismo da lei. E ai, e nao em Maquiavet ou em Hobbes, segundo Foucault, que teria origem urna forma radical de historia, que fala de guerra, de conquista, de domina,ao e que funciona como arma contra a realeza e a nobreza na Inglaterra, contra a realeza e 0 terceiro estado na Fran,a. Foucault, que retoma aqui, direta ou indiretamente, urna tese formulada em 1936, nurn contexto teorico-politico e com objetivos totalmente diferentes, por Friedrich Meinecke em Die Entstehung des Historismus, chama de "historicismo" esse discurso historico-politico da conquista: discurso de lutas, discurso de batalhas, discurso de ra,as. A "dialetica", no seculo XIX, teria codificado, e portanto "neutralizado", essas lutas, depois do uso dado a elas por Augustin Thierry em suas obras sobre a conquista normanda e sobre a forma,ao do terceiro estado, e antes que 0 nazismo utilize a questao racial nas politicas de discrimina,ao e de extermina,ao que se conhecem. E, se e verdade que esse discurso historico-politico obriga 0 historiador a aderir a urn campo ou ao outro, afastando-se da posi,ao "mediana" - a posi,ao "de irbitro, de juiz, de testemunha universal" (DE, III, 169: 29) que foi a do filosofo, de Solon a Kant -, se e verdade tambern que esses discursos nascem na guerra e nao na paz, ainda assim a reta,ao biniria, introduzida nesses discursos pelos fatos de domina,ao, e que 0 modelo da guerra explica, nao parece justificar totalmente nem a multiplicidade das
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lutas reais suscitadas pelo poder disciplinar nem, e ainda menos, os efeitos de govemo sobre os comportamentos produzidos pelo biopoder. Ora, e mesmo para a analise deste ultimo tipo de poder que se orientavam as pesquisas de Foucault depois de 1976, e talvez seja essa uma das razoes, se nao de abandonar, pelo menos de por em discussao posteriormente a problematica da guerra que ainda esta no centro de Em defesa do sociedade. Num real que e "poHlmico", "nos lutamos todos contra todos", dizia ele em 1977 (DE, III, 206: 311). Mas essa afirma,ao, aparentemente hobbesiana, nao deve iludir. Nao e 0 grande enfrentamento binmo, a forma intensa e violenta que as lutas assumem em certos momentos, mas somente em certos momentos, da hist6ria: os enfrentamentos codificados na forma da "revolu,ao". Ii antes, no campo do poder, urn conjunto de lutas pontuais e disseminadas, uma multiplicidade de resistencias locais, imprevisiveis, heterogeneas que 0 fato maci,o da domina,ao e a l6gica binaria da guerra nao conseguem apreender. No fim de sua vida, em 1982, num texto que e um pouco seu "testamento" filos6fico, em que ele tentava, como costumava fazer - e isso alias que parece ser uma das "figuras" de seu pensamento -, repensar e dar nova perspectiva a todas essas questoes it luz de seus ultimos trabalhos, Foucault escrevia que seu prop6sito nao fora 0 de "analisar os fenomenos de poder, nem de lam;ar as bases de uma analise assim", mas, antes, produzir "uma hist6ria dos diferentes modos de subjetiva,ao do ser humano em nossa cultura". 0 exercicio do poder consistiria entao, segundo ele, sobretudo em "conduzir condutas", de acordo com 0 modo da pastora,ao crista e da "govemamentalidade". "0 poder", escrevia ele, "no fundo, e menos da ordem do enfrentamento entre dois adversarios, ou do compromisso de um com 0 outro, do que da ordem do 'governo'" (DE, IV, 306: 237). E coneluia (mas 0 texto deve ser
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lido por inteiro) a prop6sito dessas rela,oes entre poderes e lutas: "Em suma, toda estrategia de enfrentamento sonha tornar-se estrategia de poder; e toda rela,ao de poder tende, tanto se segue sua propria linha de desenvolvimento quanto se se choca com resistencias frontais, a tornar-se estrategia ganhadora." (Ibid., p. 242.) Foucault levantara a questiio do poder ja em L'histoire de 10 folie, poder esse que e ativo e se exerce atraves das tecnicas administrativas e estatais do "grande encerramento" dos individuos perigosos (os vagabundos, os criminosos, os loucos). Ela sera retomada, no inicio dos anos setenta, nos cursos no College de France sobre a produ,ao e os regimes da verdade na Grecia antiga, sobre os mecanismos punitivos na Europa desde a Idade Media, sobre os dispositivos de normaliza,ao da sociedade disciplinar. Mas, no segundo plano de tudo isso, hi 0 contexto politico-militar, as "circunstancias hist6ricas", como as chamava Canguilhem, dos conflitos intemacionais e das lutas sociais, na Fran,a, depois de 1968. Dessas circunstancias, nao podemos refazer aqui a historia. Lembremos brevemente, para rememorar, que eram os anos da Guerra do Vietna, do "Setembro Negro" (1970) na Jordania, da agita,ao estudantil (1971) em Portugal contra 0 regime de Salazar, tres anos antes da "Revolu,ao dos Cravos", da ofensiva terrorista do IRA (1972) na Irlanda, da recrudescencia do conflito entre arabes e israelenses com a guerra do Kippur, da normaliza,ao da Checoslovaquia, do regime dos coroneis na Grecia, da queda de Allende no Chile, dos atentados fascistas na Itilia, da greve dos mineiros na Inglaterra, da agonia feroz do franquismo na Espanha, da tomada de poder pelos khmers vermelhos no Camboja, da guerra civil no Libano, no Peru, na Argentina, no Brasil e em numerosos Estados africanos. o interesse de Foucault pelo poder tern sua origem aqui: na vigilancia, na aten,ao e no interesse com que ele seguia
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Eo nazismo - acrescentava ele - nada mais faria que "ligar",
o que Nietzsche denominava "die grosse Politik": a ascensao dos fascismos em quase toda parte no mundo, as guerras civis, a instaurayao das ditaduras militares, os objetivos geopoliticos opressivos das grandes potencias (dos Estados Unidos no Vietna, notadamente); ele se enraiza tambem, e sobretudo, em sua "pnitica politica" dos anos setenta, que Ihe havia permitido apreender ao vivo, in loco, 0 funcionamento do sistema carcerano, observar 0 destino reservado aos detentos, estudar suas condiyoes materiais de vida, denunciar as praticas da administrayao penitenciana, apoiar os conflitos e as revoltas em todo lugar onde rebentavam. Quanto ao racismo, foi urn tema que apareceu e que foi abordado nos seminanos enos cursos sobre a psiquiatria, sobre as puniyoes, sobre os anormais, sobre todos esses saberes e pniticas em que, em torno da teoria medica da "degenerescencia", da teoria medico-legal do eugenismo, do darwinismo social e da teoria penal da "defesa social", elaboram-se, no seculo XIX, as tecnicas de discriminayao, de isolamento e de normalizayao dos individuos "perigosos": a aurora precoce das purificayoes etnicas e dos campos de trabaIbo (que urn criminalista frances do final do secuIo XIX, 1. Leveille, por ocasiao de urn Congresso Internacional Penitenciano em Sao Petersburgo, aconselhava a seus colegas russos construirem na Siberia, como lembra 0 proprio Foucault; cf. DE, III, 206: 235). Nasceu urn novo racismo quando 0 "saber da hereditariedade" - ao qual Foucault planejava consagrar suas futuras pesquisas, em seu texto de candidatura ao College de France (cf. DE, I, n? 71: 842-846) - se acoplou com a teoria psiquiatrica da degenerescencia. Dirigindo-se a seu auditorio, ele dizia no fim de sua ultima aula (18 de maryO de 1975) do curso de 1974-1975 sobre Os anormais: "Voces veem como a psiquiatria pode efetivamente, a partir da nOyao de degenerescencia, a partir das analises da hereditariedade, ligar-se, ou melhor, dar azo a urn racismo."
por sua vez, esse novo racismo, como meio de defesa interna da sociedade contra os anormais, ao racismo elnico que era endemico no seculo XIX. Contra 0 pano de fundo da guerra, das guerras, das lutas e revoltas desses anos em que, como se diz, "0 tempo estava quente", Em defesa da sociedade bern poderia ser entao 0 ponto de encontro, a junyao, a articulayao do problema politico do poder e da questao historica da raya: a geneaiogia do racismo a partir dos discursos historicos sobre a luta das rayas, nO seculo XVII e no secuio XVIII, e suas transforrnayoes no secuIo XIX e no seculo xx. Sobre a guerra, essa guerra que atravessa 0 campo do poder, poe as foryas em contronto, distingue amigos e adversanos, engendra dominayoes e revoltas, poderiamos evocar urna "lembranya de inf"ancia" de Foucault, tal como ele mesmo contava, nurna entrevista de 1983, a respeito do "terror" de que fora tornado, em 1934, por ocasiao do assassinato do chanceler Dollfuss: "A ameaya da guerra era nosso pano de fundo, 0 contexto de nossa existencia. Depois veio a guerra. Muito mais do que as cenas cia vida familiar, sao esses acontecimentos concernentes ao mundo que constituem a substiincia da nossa memoria. Digo 'nossa' memoria, porque estou quase certo de que a maioria dos jovens e das jovens franceses da epoca viveram a mesma experiencia. Pesava urna ameaya sobre a nossa vida privada. Talvez seja essa a razao pela qual sou fascinado pela historia e pela relayao entre a experiencia pessoal e os acontecimentos em que nos inserimos. Eesse, penso eu, 0 nueleo de meus desejos teoricos." (DE, IV; 336: 528.) Quanto it "conjuntura intelectual" dos anos que precedem 0 curso, anos marcados pela crise do marxismo e pela ascensao do discurso neoliberal, e dificil, se nao impossivel, saber a que obras Foucault faz referencia, implicita ou explicitamente, em Em defesa da sociedade. Desde 1970 foram
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traduzidas e publicadas obras de M. Weber, H. Arendt, E. Cassirer, M. Horkheimer e T. W Adorno, A. Soljenitsyn. Vma homenagem explicita e prestada, no curso, a Anti-(Edipe de G. Deleuze e F. Guatari. Foucault nao mantinha, ao que parece, uma caderneta de leituras e, de outro lado, nao gostava do debate de autor com autor: it polemica, ele preferia a problematiza~ao (cf. DE, IV, 342: 591-598). Tambem nao podemos fazer senao urna ideia conjetural sobre a sua maneira de ler os livros, de utilizar a docurnenta~ao, de explorar as fontes (haveria todo urn trabalho a fazer sobre isso, sobre a "fitbrica" de seus livros). Tampouco sabemos muito bern como preparava seus cursos. 0 que publicamos aqui, e cujo manuscrito pudemos consultar gra~as it cortesia e it ajuda de Daniel Defert, e quase inteiramente redigido. Nao obstante, nao corresponde ao que foi efetivamente pronunciado: sao "blocos de pensamento" que serviam a Foucault de pista, de referencia, de fio condutor, e a partir dos quais em geral ele improvisava, desenvolvendo e aprofundando este ou aquele ponto, antecipando este curso ou voltando itquele outro. Temos tambem a impressao de que nao procedia com urn plano inteiramente preestabelecido, mas, antes, a partir de urn problema, de problemas, e que 0 curso se desenrolava portanto "fazendo-se", por urna especie de engendra~ao interior, com bifurca~6es, antecipa~6es, abandonos (por exemplo, a aula prometida sobre a "repressao" que ele nao dara e retomara em La volante de savoir). No tocante ao seu trabalho, it sua maneira de trabalhar, Foucault escrevia em 1977: "Nao sou urn fi1osofo nem urn escritor. Nao fa~o urna obra, fa~o pesquisas que sao historicas e politicas ao mesmo tempo; sou arrastado muitas vezes por problemas que encontrei nurn livro, que nao pude resolver nesse livro, tento, pois, tram-los no livro seguinte. Ha tambem fenomenos de conjuntura que fazem que, em dado momento, tal problema pare~a ser urn problema urgente, politicamente urgente, na atualidade, e, por
SITUA9AO DO CURSO
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causa disso, me interessa." (DE, Ill, 212: 376-377.) Quanto
ao "metoda", e a respeito de L'archeologie du savoir, ele dizia: "Nao tenho metodo que aplicaria da mesma forma a dominios diferentes. Ao contrano, eu diria que e urn mesmo campo de objetos, urn dominio de objetos que tento isolar utilizando instrumentos que encontro au eric, no mesma momenta em que estou fazendo minha pesquisa, mas sem privilegiar de modo algurn 0 problema do metodo." (DE, Ill, 216: 404.) A vinte anos de distitncia, este curso nada perdeu de sua atualidade e de sua urgencia: e 0 descarte das teorias juridicas e das doutrinas politicas, incapazes de explicar bern as rela~6es de poder e as rela~6es de for~a no enfrentamento dos saberes e nas lutas reais; e uma releitura da epoca das Luzes em que se deveria ver a desqualifica~ao dos saberes "menores" em proveito da centraliza9ao, da normalizay3.o, do disciplinamento de saberes dominantes, em vez do progresso da Razao; e a critica da ideia segundo a qual a historia seria uma inven~ao e uma heran~a da burguesia ascendente no seculo XVIII; e 0 elogio acentuado do "historicismo", dessa historia que fala de conquistas e de domina~6es, uma "historia-batalha", no verdadeiro sentido da palavra, que se construiu a partir da luta das ra~as em oposi~ao ao direito natural; e, enfim, desde a transforma~ao dessa luta no seculo XIX, a formula~ao de urn problema, aquele da regulamenta~ao biopolitica dos comportamentos, aquele, como memoria recente e horizonte proximo, do nascimento e do desenvolvimento do racismo e do fascismo. Os leitores de Foucault, habituados its suas mudan~as de cenario, its suas modifica~6es das perspectivas com rela~ao its ideias dominantes e aos saberes estabelecidos, nao ficarao surpresos. Quanto aos especialistas, so podemos sugerir-Ihes que nito esque~am que este texto nao e urn livra, mas urn curso, e que devem portanto toma-Io como tal: nao urn trabalho de erudi~ao mas,
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antes, a formula91io de um problema "urgente", 0 do racismo, e a abertura de uma pista, 0 esb090 de um tra9ado genealogico, para tenlaf repensa-Io. Como le-Io entao? Poderiamos para isso lembrar, como conclusao, 0 que Foucault dizia em 1977; "A questiio da ~ilosofia e a questao deste presente que somos nos mesmos. E por isso que hoje a filosofia e inteiramente politica e inteiramente historiadora. Ela e a politica imanente it historia, e a historia indispensavel it politica." (DE, III, 200; 266.)
• Quanto aos estudos que Foucault poderia ter consultado, para a prepara9ao deste curso, ficamos apenas nas hipoteses. As fontes sao citadas nas notas, mas e praticamente impossivel saber se se trata de uma leitura direta ou de um emprestimo de uma obra de segunda mao. Uma bibliografia "cientifica" so poderia ser estabelecida a partir das notas que Foucault tomava cuidadosamente, uma cita9ao por folha, com referencias bibliogrificas, edi9ao, pagina; mas ele as classificava depois tematicamente, e nao como documenta9ao para este ou aquele volume, para este ou aquele curso. Esse trabalho de reconstitui9aO da "biblioteca" de Foucault est:i por fazer, e ultrapassa, em todos os casos, 0 ambito desta nota. Para abrir pistas e para orientar os leitores e os futuros pesquisadores, limitamo-nos a assinalar, por ora, algumas obras que se reportam a questoes levantadas no curso e que estavam disponiveis na epoca em que Foucault 0 preparava.
• "mito troiano" e hist6ria das ral;as: Th. Simar, Etude critique sur la formation de la doctrine des races, Bruxelas, Lamertin, 1922; 1. Barzun, The French Race, Nova York, Columbia University Press, 1932;
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SlTUA9AO DO CURSO
M. Bloch, "Sur les grandes invasions. Quelques positions de problemes", Revue de synthese, 1940-1945; G. Huppert, The Idea ofPerfect History; Historical Erudition and Historical Philosophy in Renaissance France, Urbana, University of Illinois Press, 1970 (trad. fr.: L'idee de I'histoire parfaite, Paris, Flarnmarion, 1973); L. Poliakov, Histoire de I'antisemitisme, III: De Voltaire Wagner, Paris, Calmann-Levy, 1968, e Le mythe aryen, Paris, Calmann-Levy, 1971; c.-G. Dubois, Celtes et Gaulois au XVI' siecle. Le developpement d'un mythe litteraire, Paris, Vrin, 1972; A. Devyver, Le sang epure. Les prejuges de race chez les gentilshon;mes fran,ais de ['Ancien Regime, 1560-1720, Bruxelas, Editions de l'Universite, 1973; A. louanna, L'idee de race en France au XVI' siecle et au debat du XVII' siecle, tese defendida em junho de 1975 na Universidade de Paris IV e difundida pelas Editions Champion em 1976. Assinalemos tambem que 0 problema da historiografia das ra9as fora apresentado, depois de Meinecke, por G. Lukacs no VII capitulo de Die Zerstorung der Vernunji, Berlim, Aufbau Verlag, 1954 (trad. fr.: La destruction de la raison, Paris, I.:Arche, 1958-1959), e em Der historische Roman, Berlim, Aufbau Verlag, 1956 (trad. fr.: Le roman historique, Paris, Payot, 1965). Lembremos igualmente, sobre a questao do mito troiano, dois antigos trabalhos alemaes; E. Luthgen, Die Quellen und der historische I#rt der friinkischen Trojasage, Bonn, R. Weber, 1876, e a tese de M. Klippel, Die Darstellung des friinkischen Trojanersagen, Marburg, Beyer und Hans Knecht, 1936.
a
• Levellers e Diggers: 1. Frank, The Levellers, Cambridge Ma., Harvard University Press, 1955; H. N. Brailsford, The Levellers and the English Revolution (editado por Ch. Hill), Londres, Cresset
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Press, 1961, e sobretudo Ch. Hill, Puritanism and Revolution, Londres, Seeker & Warburg, 1958; do mesmo autor, Intellectual Origins ofthe English Revolution, Oxford, Clarendon Press, 1965, e The World Turned upside down, Londres, Temple Smith, 1972.
• a ideia imperial romana e a "translatio imperii" da Idade Media ao Renascimento: F. A. Yates, Astraea. The Imperial Theme in the Sixteenth Century, Londres-Boston, Routledge and Kegan Paul, 1975 (trad. fr.: Astraea, Paris, Boivin, 1989). • Boulainvilliers: R. Simon, Henry de Boulainvilliers, historien, politique, philosophe, astrologue, Paris, Boivin, 1942, e Un revolte du grand sieele, Henry de Boulainvilliers, Garches, Ed. du Nouvel Humanisme, 1948.
• A discussao entre "romanistas" e "germanistas" a prop6sito da monarquia francesa, da historiografia e da "constitui91io" no seculo XVIII: E. Carcassonne, Montesquieu et Ie probleme de la constitution fran,aise au XVIII' sieele, Paris, PUF, 1927 (Genebra, Slatkine Reprints, 1970); L. Althusser, Montesquieu. La politique et l'histoire, Paris, PUF, 1959.
SITUA<;AO DO CURSO
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Reizov, L'historiographie romantique fran,aise (1815-1830), Editions de Moscou, 1957; S. Mellon, The Political Uses of History in French Restoration, Stanford, Ca., Stanford University Press, 1958; M. Seliger, "Augustin Thierry: Racethinking during the Restoration", Journal ofHistory ofIdeas, XIX, 1958; R. N. Smithson, Augustin Thierry: Social and Political Consciousness in the Evolution ofHistorical Method, Genebra, Droz, 1972.
• 0 "anti-semitismo" da esquerda francesa no seculo XIX: R. F. Byrnes, Antisemitism in Modern France, Nova York, H. Fertig, 1969 Wed. 1950); Rabi [w. Rabinovitch], Anatomie dujudafsmefran,ais, Paris, Ed. de Minuit, 1962; L. Poliakov, Histoire de I'antisemitisme, III, Paris, CalmannLevy, 1968. Foucault talvez conhecesse os inilmeros trabaIhos de E. Silbemer reunidos em volume com 0 titulo Sozialisten zur Judenfrage, Berlim, Colloquium Verlag, 1962, e a obra de Zosa Szajkowski, Jews and the French Revolutions of1789, 1830 and 1848, Nova York, Ktav Pub!. House, 1970 (reed. 1972). • Assinalemos enfim a publica91io por Gallimard, em fevereiro de 1976, dos dois volumes de R. Aron, Penser la guerre, Clausewitz. ALESSANDRO FONTANA
• A. Thierry e a historiografia na Fran9a durante a Restaura91io e sob a Monarquia de Julho: P. Moreau, L'Histoire en France au XIX' sieele, Paris, Les Belles Lettres, 1935; K. 1. Carrol, Some Aspects of the Historical Thought ofAugustin Thierry, Washington, D. C., Catholic University of American Press, 1951; F. Engel-Janosi, Four Studies in French Romantic Historical Writings, Baltimore, Md., Johns Hopkins University Press, 1955; B.
e
MAURO BERTANI
INDICE DAS NOC;;OES E DOS CONCEITOS
Absolutismo: 211; (- da monarquia francesa): 141-4; (- do rei): 138, 147; (-romano): 141-3, 168, 173; (constitui93.0 do - momirquico): 278; (dissociay3.o entre - e romanidade): 244-6 (nascimento do - entre os francos): 183 Acaso(s) (- no principio da hist6ria): 64. Administra~iio publica: 154-5, 165-6; (- segundo Boulainvilliers): 154-5; (conhecimentos da - e historia): 162-3; (saber da -): 152-7. Adversario
(eliminayao do - no socialismol: 314. America: 102 Analise existencial: 8. Amilise(s) (- hist6rica e economico-politica): 175. (- hist6rico-politicas e guerra): 185-6; Analistas: 77-80. Anarquismo (- e racismo): 312. Anatomo-politica (- do corpo humano): 289. Anomalia(s): 308; (nascimento do problema da -): 291. Anorrnais (elimina9ao dos individuos -): 305. Anti-lEdipe: 9. Anti-historicismo (- da burguesia): 251-3.
354 Antipsiquiatria: 8, 18. Anti-semitismo: 99-101; (- religioso): 101. Antropologia
(- nos seculos XIX e XX): 232. Aparelho(s) (- de aprendizagem): 52; (- de Estado): 298-9; (- de poder): 52. (- escolar): 51-2; (- militar): 55. Apocalipse: 67. Aristocracia: 182-3, 192; (- e hist6ria): 251; (- e liberdade barbara): 243-4; (- e rei): 156-8; (- franca e parler momirquico): 181-2; (-gaulesaelgreja):183,192; (- guerreira): 176, 181-2; (- inglesa): 114; (nascimento da - segundo Dubos): 241-2. Arqueologia: 16. Atenas: 126. Babi16nia: 86. Barbarie (- e constitui,ao): 236; (- e democracia): 243-5; (- e revolu,ao): 237; (desaparecimento da-): 238-9; (filtragem da -): 236-9; (irrup,ao da - na hist6ria): 238.
EM DEFESA DA SOCIEDADE
Barbaro: 10-4, 19, 27, 178, 233-8, 240-4; (- e selvagem): 228-35; (~na historiografia
europeia):
178. Batalha(s): 23, 58-9, 106, 1089, III, 189-91; (- e nascimento das leis): 58. Beneditinos: 199. Biblia: 82-3; (- e discursos de insurrei,ao): 83-6, 90-1. Binario(a) (ver tambem: Divisao); (concep,ao - da sociedade): 59; (esquema - na ac;ao politica e na pesquisa hist6rica): 131. (oposir;ao - no corpo social): 100; Binarismo (- social): 86. Biologia (ra,a, sele,Des biol6gicas, -): 226. Biol6gico (estatiza,ao do -): 286. Biopoder: 289, 294, 296, 3029,311-5; (-, direito de matar e Estados modemos): 311; (excesso do - sabre
0
direito
soberano): 303; (fabrica,ao do vivente pelo -): 303; (paradoxos do -): 303; (racismo e Estado no -): 306;
iNDlCE DAS NOC;DES E DOS CONCEITOS
(tecnologia do -): 294; (tecnologias regulamentadoras do -): 297. Biopolitica: 289-94; (- da especie hurnana): 289; (mecanismos da -): 293-4. Bio-regulamenta,ao: 298. Burguesia: 36-9, 159, 197,248, 251-3,282-4; (- e constitui,ao): 252; (- e despotismo esclarecido): 252; (-ena,ao): 168; (-, relac;oes de forc;a e constitui,ao): 251; (anti-historicismo da -): 197, 252; (fun,Des de universalidade da-): 283.
Campo epistemico (regularidade do -): 251. Campo hist6rico-politico: 236, 251; (constituir;30 de - com Boulainvilliers): 199,204. Capitalismo (- industrial): 43. Cidade (- operaria): 299; (reativaC;30 d.a - gale-romana): 253. Cidade(s) (- modelo): 299-300; (problema da - no seculo XIX): 292, 299-300.
355
Ciencia(s): 45, 218; (- como policiamento disciplinar dos saberes): 218; (- e poder): 14-5; (- humanas e anti-historicismol: 205-6; (hist6ria das -): 213-4; (projeto de urna - universal): 217-8. Classe(s): 168; (- e classes em Montlosier): 276-7; (- sociais, dominac;ao economica, economia politica): 226; (inimigo de -): 97; (luta das -): 26, 92; (luta de - e conflito de ra,a): 72-3; (na,ao e -): 161. Coen;5es (- disciplinares): 44-7. College de France: 3. Colonialismo (- interno do Ocidente): 121. Coloniza,ao: 121, 307 (ver tambem: Domina((ao; Pnitica colonial); (direito da -): 120; (politica europeia da -): 71. Comportamento(s) (medicaliza,ao dos -): 46. Conhecimento(s): 12-3,35; (- e verdade): 213; (- sobre 0 Estado): 151; (- sobre 0 governo): 151;
356
EM DEFESA DA SOCIEDADE
(hierarquiza<;:iio cientifica do -): 13. Conquista: 113-5, 117-8, 121, 123-4,127,129,132,281; (- e discurso hist6rico): 113; (- e francos): 178; (- e govemo segundo os Levellers): 129;
(- e rela,aes de propriedade segundo os Levellers): 129; (- normanda): 115; (direito de - na Inglaterra): 115. Consciencia: 272; (- hist6rica): 87, 93, 98; (nova tomada cia - de 5i entre a nobreza): 185. Conservadorismos sociais (estrategia global dos -): 73. Constitui,ao: 165,229-32,251; (- e barbarie): 236; (- e burguesia): 251; (- fund~mental segundo Hotman): 144. Contradi<;ao
(l6gica da -): 69. Contra-hist6ria: 76, 80-5, 92-5, 98. Contrato: 20-2, 252, 287; (- e funda,ao da sociedade): 232; (- e opressao): 24; (- na teoria do direito): 292; (discurso do - em Hobbes): 114. Controle: 39; (- sobre 0 corpo): 300-1.
iNDICE DAS NOr;OES E DOS CONCEITOS
Corpo social: 28, 44, 81-2, 100, 190,232,309-10. Corpo(s): 35, 42-3; (- e disciplina): 221, 289, 298,300,302; (- e poder): 42, 292; (- e saberes): 221; (- individual nas tecnologias disciplinares): 298; (- multiplo como objeto do biopoder): 292;
(- e barbarie): 243-4; (- parlamentares): 42; (volta a- germanica segundo Mably): 243. Derrota(s) (causas internas da-): 175; (narrativa das -): 82. Descontinuidade: 16. Desejo(s) (medicaliza,ao dos -): 46. Despotismo esclarecido (- e burguesia): 252. Desrazao (- e verdade): 65. DiaJetica: 68-9, 72; (- como pacifica<;ao autoritaria do discurso historicopolitico): 69; (- e sujeito universal): 69; (- e totaliza,ao): 69: (- e verdade reconciliada): 69; (- hegeliana): 69; (nascimento da -): 283-4. Diferen,a(s) (- em Hobbes): 103-7; (-, guerra e hist6ria segundo Boulainvilliers): 188-9. Diggers: 118, 127, 129-30. Direita: 163-4;
(- nas tecnologias previden-
ciarias): 297; (- no principie da hist6ria): 64; (-, norma e popula,ao): 302; (distribui,ao espacial dos individuais): 288. Corte (- e soberano): 210. Critica: 7-11. Cursors) (hist6rico dos - de M. Foucault): 4-6. (que e urn - ?): 3-4; Defesa
(- da sociedade): 26, 73; (- da sociedade e guerra): 258; (- da sociedade e racismo):
(pensamento de - oa Fran-
73. Degenerados (- e especie): 305. Degenerescencia (teoria da -): 73, 301. Democracia(s) (- barbara dos francos): 243-4;
,a): 162. Direito(s): 30-2,41,43,45-7, 60-1,107-8,118-21,136-41, 150, 156-7, 169-70, 172-3, 257, 286-8, 303, 309-11; (- absoluto e revoltas): 132; (- antidisciplinar): 47;
1
357
(- civil e forma militar do
poder): 182; (- comum da na,ao): 228; (-e guerra): 150, 194-5, 204-5; (- e hist6ria): 60-1, 168-9, 204-5,211; (- e hist6ria da nobreza): 157-8; (- e poder): 19-20,29-30; (- e soberania normanda): 119; (- da coloniza,ao): 120; (- da conquista na Inglaterra): 115; (- da nobreza): 147, 170; (- de matar): 286-8, 303-7; (- de matar, Estados modernos e biopoder): 312; (- do povo na 1nglaterra): 118; (- imperial): 172; (- mOTIClrquico na Fran9a no seculo XVll): 209; (- natural): 188,252; (- nonnando segundo os Levellers): 129;
(- publico): 44-5,136,140-1, 148-9,164,167,195,211; (- romano): 41, 137, 146; (- saxao): 124-6, 170; (fundamentos do - e guerra segundo Boulainvilliers): 186-9; (sistemas opostos de - na Inglaterra): 169; (teoria do -): 31,41,44,232, 292.
358 Disciplina(s): 44-8, 292, 294, 298-9 (ver tambem: Coerl'iio; Poder); (- da enuncial'iio): 221; (- e bio-regulamental'iio): 298; (- e corpo): 221, 288-9; (- e institui<;oes): 298; (- e saberes): 221; (corpo nas -): 292; (discurso das -): 45-6. Disciplinamento (- como contrale da regularidade das enuncia\=oes):
220-1. (- do saber hist6rico): 222-3; (- dos saberes): 207, 216-22; Discurso da guerra das rar;as:
80-1,97-8. Discurso das ral'as: 80-1,97-8. Discurso historico-politico: 56-
9, 62-8; (- como discurso de perspectiva): 61; (generalizal'iio do -): 225; (sujeitodo-): 61; (verdade no -): 61. Discurso juridico-filos6fico: 569,67-9; (- e historicismo politico): 130-3; (universalidade no -): 62. Discurso racista: 75, 94-6 (ver
tambem Racismo). Discurso(s) (- critico): 68; (- da hist6ria): 257-9;
EM DEFESA DA SOCIEDADE
(- da revolta): 85-6; (- de insurreil'iio e Biblia): 82-6, 90, 92; (- de oposil'iio): 89; (- do direito): 257; (- do Estado sobre 0 Estado): 160; (- do rei): 118-20; (- e Jutas): 251; (- filos6fico do tipo dialetico): 284; (- mitico): 68; (- revolucionario): 91-8; (- revolucionario e racismo): 97; (- teo16gico-racial entre os Levellers e os Diggers): 130; (emburguesamento do-): 258; (enfrentamentos dos -): 250; (medicaliza<;iio dos -): 46. Discurso(s) cientifico(s): 14-5; (efeitos de poder do -): 14-9; (institucionalizac;ao dos -): 14. Discurso(s) hist6rico(s): 90-2; (- como conjuntos taticos diferentes): 250; (- como instrumento tatico):
225; (- e burguesia): 284; (- e conquista): 113; (- e Estado): 268; (- e poder): 250; (- e presente): 279-80; (- e verdade): 250; (- na real'iio nobiliaria): 267; (- no seculo XV111): 267;
359
iNDICE DAS NO<;OES E DOS CONCElTOS
(auto-dialetiza<;iio do -): 258, 284; (dialetiza<;iio interna do -): 258; (proposir;oes
fundamentais
do -): 250; (trama epistemica do -): 250; (transformal'oes no -): 250; (virtual e real no -): 268. Dispositivos
(- de dominal'iio): 51; (- de poder): 19. Divisiio(oes): 228; (- binaria): 89. Doenl'a(s): 301; (- como fenomeno de popu-
Ial'iio): 290-1. (- e sexualidade): 301; (- mental): 307; Dominal'iio: 24, 31-4, 36, 40, 44,51-3, 109-10, 118, 131, 172,187,226,275-6; (- barbara): 236; (- burguesa): 36-8; (- colonial): 75; (- e barbaro): 233-4; (- e direito): 31-2, 40, 172; (- e hist6ria): 132-3,273; (- e liberdade entre os fran-
cos): 177-8; (- e poder): 201; (- e poder segundo os Diggers): 130-1; (- e racionalidade): 64; (- romana): 172-3; (- segundo Boulainvilliers): 268-9;
(dispositivos de -): 51; (operadores de -): 51-3; (ordem da- e political: 257-8; (sistemas da - intema em
Montlosier): 276-7. Dualidade (- das na<;oes no Estado): 141. (- nacionaI): 139,227,274; (- nacional em Montlosier):
274-6; (- nacional original segundo
A. Thierry e Guizot): 270-1 ; (- racial na Inglaterra): 150; Dualismo
(- nacional na Franl'a): 151. Economia
(- e poder): 19-21; (- e saberes miJltiplos): 215. Economia politica: 226. Elimina~ao
(- do perigo bioI6gico): 73, 306; (- dos individuos anorrnais):
305. Encyclopedie (- e
homogeneiza~ao
dos sa-
beres tecnicos): 216. Enfrentamento(s): 11, 18, 22, 281; (- das ral'as): 72-3; (- dos discursos): 250; (- dos grupos sob 0 Estado): 161-2; (- entre hist6rias): 222-3; (- fisico no socialismo): 314.
360 Enuncia9ao (disclpllna da -): 221. Enunciado(s): 220-1. Esparta: 126. Especie (- e degenerados): 305; (fortalecimento da ra<;a e da -): 305. Estado(s): 34, 39, 44, 95-6. 1009,265-9,272-4,277-8,281-3, 298-9,309-13,315; (- de aquisl<;iio): 108-9; (- de institui<;iio): 108-9; (- e bio-regulamenta<;iio): 298; (- e disciplinamento dos saberes): 207-8; (- e dlscurso historico): 26970; (- e guerra): 55-6, 58-9, 102-3, 107-8; (- e historia): 212-3, 222-3; (- e na<;iio): 168-9, 266-8, 272; (- e popula<;iio): 298-9; (- e saberes): 215-6; (- e saberes tecnoI6gicos): 222; (administra<;iio do - e inteliglbllidade da hlstoria): 203-4; (analise do -): 100; (aparelhos de -): 40, 298-9; (constitui<;:ao de urn - e 50cledades segundo A. Thierry): 280-1; (constitui<;iio do -): 111-2, 148; (critica do -): 208;
iNDICE DAS NOr;OES E DOS CONCElTOS
EM DEFESA DA SOCIEDADE
Feudos (origem dos -): 146. Filologia (-, lingua, naclonalidades): 226. Filosofia: 28, 218; (- da historia): 230-1, 283-4; (- do seculo XIX e anti-hlstoricismo): 205-6; (- e guerra das ra<;as): 71-2; (- e historia): 283-4; (- e saberes): 218. (- political: 28, 112-3; Filosofia grega (posi<;iio mediana na -): 61.
(discurso do - sabre 0 -): 159; (fun<;iio totalizadora do -): 265; (fun<;oes constitutivas do -): 282; (funda<;iio do - do tipo romano pelos rels francos): 183;
(nascimento e decadencia dos -): 140-1; (racionalidade administrativa do -): 204; (racismo de -): 73,96-8,285, 306,312; (saber do - sobre 0 -): 154. Estatiza9ao (- do biologico): 298. Estrangelro(s) (expulsiio dos-): 117. Estrategla(s): 52-3; (- globals): 52, 250. Evolucionlsmo: 72, 307. Exclusiio: 101; (mecanismos de -): 38. Exercito: 27, 55, 190-1.
Fil6sofo (- personagem da paz): 62. Fisco
(- e organizac;ao nobiliiria): 203-4. For<;a(s): 66,105-6,187-8,2002, 228-30, 234 (ver tambem: Rela<;iio das -). Fran<;a: 91, 135-8, 140; (- e na<;iio): 264; (- segundo Sieyes): 264; (continuidade entre Rama e a -): 137-8. Francos: 88, 91, 136, 138-40, 146, 150, 177, 180, 243-6, 275; (- e propriedade da Galia): 192; (- e soberania rcmana): 17981 ; (- na Galia segundo Mably): 243-4;
Feudallsmo: 88, 146, 181,256; (- segundo Mably): 244-5; (execrac;ao do - durante a Revolu<;iio): 255-6; (inicia do - segundo Boulainvilliers): 178; (invenc;ao do - segundo Boulainvilliers): 180-1; (nascimento do - segundo Dubos): 241-2.
d
361
(- na historiografia momirquica): 240-1;
(aliaoc;a entre remanos e -): 239-41; (democracla barbara dos -): 243-4; (mito dos -): 239; (origem genmlnica dos -): 139. Freudismo: 50.
Freudo-marxismo: 50.
Fuhrer: 67, 97. Galia: 145-7, 170-6, 178-81; (- franca): 180; (- prlmitiva): 146; (- romana): 146,245; (- segundo Boulainvilliers): 173-4; (- segundo Montlosier): 274-
6; (mito da - romana): 173. Gauleses: 88, 91, 142, 145-7, 149, 163; (liberdades orlginais dos -): 246. Genealogia(s): 13-9; (- como anticiencias): 14. (- da nobreza francesa): 91; (- das lutas em Boulainvilliers): 227-8; (- dos saberes): 19; Genocidio: 302. Germanos: 140, 147, 162, 167, 173,189-90,275-6; (- segundo Montlosier): 275. Govemo(s): 129, lSI;
362 (- despotico seguodo Boulainvilliers): 172; (- e guerra segundo os Levellers e os Diggers): 12931; (- e na~ao): 267; (espirito primitivo do -): 228. Guerra(s): 3, 22-7, 53-6, 58-9, 85,92,99,101-14,121,12930, 146, 176, 178-9, 181-2, 194-5,257-8,260,273,2803,307-10; (- como analisador da sociedade segundo Boulainvilliers): 186,189; (- como analisador das rela~6es de poder): 53-4, 102; (- como analisador das rela~6es politicas): 257; (- como cifra da paz): 59; (- como conclusao da politica no nazismo): 310; (- como condi<;ao de sobrevivencia da sociedade): 258; (- como estado perrnanente segundo Boulainvilliers):
194; (- como gabarito de inteligibilidade dos processos historicos): 285; (- como matriz da verdade do discurso historico): 197; (- como matriz das tecnicas de domina~ao): 53; (- como principia de inteligibilidade da sociedade): 195;
EM DEFESA DA SOCIEDADE
(- como rela<;ao social per-
manente): 56; (- como trama ininterrupta da historia): 70; (- de Religiao): 141; (- de todos contra todos): 102-3; (- e biopoder): 308; (- e continua~ao da political: 55; (- e corpo social): 190, 194; (- e direito): 194-5,204-5; (- e Estado(s»: 55-6, 102-3, 107-8; (- e fundamentos do direito segundo Boulainvilliers):
186-9; (- e historia): 66, 194-8; (- e institui~6es de poder): 56; (- e lei): 58-9, 129-30; (- e nascimento dos Estados): 58; (- e poder): 3, 22-6, 129, 132; (- e poder politico): 56-9, Ill;
(- e political: 55, 198; (- e regenera~ao da ra~a): 307-8; (- e revolta): 55; (- e revolu~ao): 282-3; (- e soberania): 111-2; (- e universalidade): 280-1; (- nas amilises hist6rico-po-
liticas do soculo XVlll): 185-6; (- permanente): 59, 102; (- primitiva): 103-4;
iNDICE DAS NO,;(JES E DOS CONCEITOS
(- segundo A. Thierry): 270; (- segundo Boulainvilliers): 186, 194, 268; (denega~ao da - em Hobbes): 111-4; (efeitos gerais da - sabre a
ordem civil): 190-1; (elimina<;ao da - na nova historia): 269; (estado de -): 105-8; (estatiza~ao da -): 55-6; (pratica da - e saber historico): 205-8; (pniticas e institui~6es de -): 55; (redu~ao da - no discurso da historia): 257-8, 282-3; (rela~6es de -): 100-1. .Guerra civil: 130, 280-2. Guerra das ra~as: 100,285 (ver tambem: Luta das ra~as; Ra~a(s»;
(- como matriz da guerra
social): 70; (- e racismo modemo): 309; (discurso da -): 75, 81-2, 889,92-3; (filosofia e -): 71; (teoria da -): 71; (transcri<;ao biol6gica da teoria da -): 71. Guerra social: 71-2, 258. Higiene: 97, 300; (- e medicinal: 301-2.
363
Historia: 61, 65, 93, 99, 133, 164-6, 195-7, 202-8, 230, 249-51, 255,272-4, 307(ver tambem: Contra-hist6ria; Discurso hist6rico; Genealogia(s); Saber historico); (- biblica da servidao e dos exilios): 90; (- ciclica): 230-1; (- como calculo das for~as): 193; (- como contra-saber da nobreza): 157-8, 196-7; (- como retomada da Revolu~ao): 256; (- como saber antiestata!): 223; (- como saber das lutas): 153; (- da burguesia): 282-3; (- da Iuta das ra~as): 87,94, 99; (- de tipo biblico e discurso de oposi~ao): 82-5,89,91; (- e barbaro): 233-4; (- e burguesia): 197,252-3; (- e conhecimentos da administra~ao publica): 162-3, 165-6; (- e constitui~ao): 228-30; (- e decifra~ao da verdade): 83-4; (- e direito): 60-1, 167-8, 204-5, 210-1; (- e direito publico): 148-50; (- e Estado): 212-3, 222-3; (- e filosofia): 283-4;
364
EM DEFESA DA SOCIEDADE
(- e fon;a): 66, 199-202; (-e guerra): 66, 194-7,2045,257; (- e guerra segundo Boulainvilliers): 186-9; (- e historicismo): 205-7; (- e luta das ra,as): 80-3; (- e luta politica): 222-3; (-emonarquia): 163-6,251-2; (- e natureza segundo Boulainvilliers): 188-9; (- e politica nos seculos XIX e XX): 269; (- e poder): 66, 76-80, 83-4; (- e saber do soberano): 162-3; (- e soberania): 80, 85, 167; (- e universalidade juridical: 61 ; (- genealogica): 77;
(- mitico-Iendaria dos romanos): 82; (- mitico-religiosa dos judeus): 82; (- na luta politica): 196-7; (- romana da soberania): 91; (- segundo Boulainvilliers): 199-204; (- segundo Maquiavel): 201-2; (discurso da -): 257-8; (ensino de -): 149; (filosofia da -): 230-1,283-4; (fun,6es da -): 75-80, 83; (gabaritos de inteligibilidade da nova -): 270-3; (inteligibilidade da - e racio-
nalidade na
administra~ao
do Estado): 203-4;
(lei da - e direito natural): 188-9; (lei nao igualitaria da -): 188-9; (ministerio da -): 164-6, 212, 222; (nova -): 169; (principio da -): 64;
(narrativa da - e administra,ao do Estado em Boulainvilliers): 203-4; (narrativa da - e exercicio do poder): 159-60; (sujeito da -): 159-60, 168; (verdade da - e posic;ao estrategica): 204.
Historicidade (- indo-europeia): 86-7, 93. Historicismo: 205-7; (- dos Levellers e dos Diggers): 127-8; (- dos parlarnentaristas Ingleses): 127-8;· (- e historia): 205-6; (aoti- - e ciencias humanas): 205-6; (aoti- - e filosofia do seculo XIX): 205-6. Historicismo politico: 132-3;
(- e discurso juridico-filos6fico): 132-3; (elimina,ao do - em Hobbes): 132-3; (elogio do -): 132-3. Historiografia: 178; (- do rei): 21 0-1, 222;
iNDICE DAS NOr;:i)ES E DOS CONCElTOS
(- e tragedia): 21 0-1; (- protestante): 167.
Homem ((((-
da troca): 232; -especie): 289, 292, 294; natural): 231; vivo): 286, 289, 292, 294;
(regulamentac;ao dos proces50S bio16gicos do - -especie): 296-7. Homo oeconomicus: 232. Ideologia: 40. Igreja: 155,159; (- e aristocracia gaulesa): 182-3; (- e nobreza gennanica): 184;
(alianr;a entre - e monarquia franca): 183-4. Imperium (- romano): 137. Individuo(s): 34-5; (- corpo): 292; (- e poder): 34-5. Inimigo(s): 306; (- de c1asse): 97-8; (- de ra,a): 97-8. Institui,ao(6es): 10, 27, 31-2, 54, 189-91, 298; (- e disciplina): 298; (- e Estado): 298; (- e !utas reais): 113. (- psiquiatrica): 8, 18;
Internamento: 36. Invasao(6es): 120, 140, 148, 150,167,174,228,239,246, 274;
365
(- e direito publico): 148; (- e poder monarquico): 148; (- segundo A. Thierry): 280-1; (- segundo Dubos): 239-41; (inversao da lese da -): 254-5; (origem gennanica da -): 142.
Irracionalidade (- fundamental e verdade): 65. Jerusalem: 83, 86. Judeus: 101, 126,311 (vertambern: Ra,ajudia); (hist6ria mitico-religiosa dos -): 82. Lei(s): 77,161,261,263-4; (- como instrumentos de poder segundo os Levellers): 127; (- como legitimidade fundamental): 50; (- comum): lIS; (- comum e estatutos regios): lIS; (- e conquista): 127; (- e constitui,ao): 230; (- e guerra): 58, 129-30; (- e lutas reais): 113; (- fundamentais dos gennanos): 143; (- na Fran,a segundo Sieyes): 264; (- original do povo saxao): 125; (- saxas): 124, 130;
366
(- saxas e soberania normanda): 121-2; (batalhas e nascimento das ~): 58-9. Levellers: 118, 127, 130. Leviata: 34, 40,102, 107. Liberalismo (romanidade do -): 247-8. Liberdade(s): 170, 177, 187-8, 234, 246, 248-9;
EM DEFESA DA SOC/EDADE
luta): 56-9; (- da burguesia): 248-9;
(- da nobreza contra a monar-
quia e a burguesia): 170-1; (- de(as) classe(s): ver Classe(s)); (- dos saberes tecnologicos): 222; (- e submissiio): 24; (- fundamental segundo Bou(- primitiva segundo Boulainvilliers): 227-8; lainvilliers): 187; (- politica e saber historico): (constitui,ao das -): 253; 112-3, 196-7; (dissocial;ao entre - e germa(- politicas inglesas do secllnidade): 245-6. 10 XVll): 56-9; Lingua(s): 226; (fundo civil da - e Estado pa(- e direito na Inglaterra): ra os historiadores do se115; culo XIX): 269; (- e sistema do saber em (problema da - no socialisBoulainvilliers): 183-4. mol: 314-5; (- latina e pnitica do direito): (teoria da - pela vida): 72. 184; Luta das ra,as: 26, 92-4, 118 Logos: 197. (ver tambem: Ra,a(s)); Loucura: 36-9, 307-8; (- e historia): 80-4; (medicaliza,ao da -): 38. (discurso da -): 75-6, 81-2, Luta(s): 93-8, 113, 166, 205, 84,94-5; 212,251; (discurso da - convertido em (- civil e luta militar segundiscurso do poder): 72-3; do a nova historia): 268-9; (historia da -): 84-5, 94. (- civis na Inglaterra): 114; Luzes (~como matriz de uma his(problematica das -): 213. toria): 269; (~como tensao voltada auniMagna Carta: 117, 124, 129. versalidade do Estado): Marxismo: 8-9, 14-5, 19,314. 268-9; Materialismo historico: 133. (- da aristocracia francesa Mathesis contra a monarquia abso(desaparecimento da -): 218.
iND/CE DAS NOr;:r)ES E DOS CONCE/TOS
Medicaliza,ao: 38, 46, 291. Medicina (ver tambem: Tecnicas medico-normalizadoras); (- como saber-poder): 302; (- como tecnica political: 302; (- e constitui,ao): 229; (- e higiene): 301. (- e higiene publica): 291; (papel da -): 46. Memoria: 83; (- hist6rica das revoltas na Inglaterra): 117; (- perdida da nobreza): 204. Metodo (precau,oes de -): 29, 32, 34-5,40. Minoria: 16. Mito (- troiano): 87, 135-7, 145. Monarquia: 164-6, 251, 276-8; (- absoluta): 241; (~absoluta inglesa): 114; (- absoluta na Fran,a): 170; (- absoluta segundo Mably): 244; (- administrativa): 41; (- constitucional segundo Hotman): 143-4; (- e aristocracia segundo Mably): 244; (-e revollas populares): 277-8; (- feudal): 41; (- francesa): 148; (- francesa e invasao gennanica): 239; (- universal dos Habsburgo): 137-9;
367
(- universal na Fran,a): 147; (alian,a entre - franca e Igreja): 183; (papel da - em Montlosier): 276. Morbidade: 290-2. Mortalidade: 296; (processo de -): 290, 293. Morte: 110,285-8,291,295-7; (- de Franco): 296; (- do outro e racismo): 305; (- e biopoder): 296, 303, 305; (desqualificayao progressiva da -): 294; (direito de -): 286-7; (exposiyao it - e racismo): 306. Na,ao(oes): 160-1, 167-70,25967; (- e burguesia): 169; (- e classe): 161; (~e Estado): 168-9, 266-8, 272; (- e na,oes segundo a nobreza): 259-60; (- e nobreza segundo Montlosier): 274-6; (~era,a): 161; (- e terceiro estado): 264-6, 282-3; (- estrangeiras dentro do Estado): 141; (-, lei e legislatura): 261-4; (- segundo a monarquia absoluta): 260;
368
EM DEFESA DA SOCIEDADE
(- segundo a rea,ao nobiliaria): 259-60; (- segundo Boulainvilliers):
261,268-9; (- segundo Sieyes): 260-5; (- sujeito e objeto da nova historia): 168; (criterios da existencia da -): 168; (defini,ao juridica da -): 262; (duas - na 1nglaterra): 16970; (homogeneidade da - francesa): 150-1; (luta entre as -): 166; (nobreza e -): 161. Nacionalidade(s): 168; (-, lingua e filologia): 226; (movimentos das - na Eu-
ropa): 71. Narrativa(s) (- da hist6ria e exercicio do
poder): 159-60; (- das derrotas): 81-2; (- das origens): 136. (- do direito): 137; (- normandas): 115-7; (- saxas): 115-7; Narrativa historica: 160, 168; (- e caleul0 politico): 202. Natalidade (fen6menos globais de -): 290,293. Natureza, natural: 231; (- e historia segundo Bou-
lainvilliers): 188-9;
(estado -): 104; (homem -): 173. Nazismo: 19,96-7; (biopoder no -): 309-12; (exposi,ao a destrui,ao total e-): 310; (extenninayao das ra9as e -): 310; (guerra, conclusao da politica no -): 310; (poder disciplinar e -): 311; (ra<;a superior segundo 0 -): 310; (sociedade disciplinar e previdenciciria no -): 310; (suicidio absoluto da ra9a e -): 311. Neutralidade (- e verdade): 60-1. Nobreza: 155-7, 161-2, 16870, 197; (- administrativa gala-romana): 172-3; (- e consciencia de si): 185, 196-7; (- e na,ao segundo Montlosier): 274-6; (- e racionalidade hist6rica): 196; (- e saber do rei): 154-8; (- feudal em Montlosier): 274-6; (- gaulesa e rei): 192-3; (- germanica e Igreja): 183-4; (- segundo Boulainvilliers): 153-4, 185;
iNDICE DAS NOr;:OES E DOS CONCEITOS
(esquecimento de si pela -): 185; (genealogia da - francesa): 91; (inven,ao tardia da -): 239; (luta da - contra a monarquia e a burguesia): 170; (memoria perdida da -): 204; (rebaixamento da - pelos romanos): 172-3; (reconstitui<;ao da - como for,a): 204; (ruina da -): 158-9; (saber negligenciado pela -): 204. Norma: 45, 73, 302; (~ entre poderes disciplinar e regulamentador): 302. Normaliza,ao: 46 (ver tambom: Tecnicas medico-nonnaliza-
doras); (- da sociedade): 73; (- dos comportamentos): 299; (sociedade de -): 46, 302, 306. Norman yoke: 128. Normandismo: 129. Normandos: 88, 91, 117, 11924, 129-30, 192; (invasao e conquista da In-
glaterra pelos -): 179-81. Ordem: 63,79, 85; (- civil contra ordem de batalha): 54. Organiza9ao militar (- e ocupa,ao franca): 181-2; (- e sociedade): 189-91.
369
Origem(ns) (narrativa das -): 135-6. Ortologia (- como disciplina da enuncia,ao): 221. Dutro (rela,ao de tipo biologico entre eu e 0 -): 304-5.
Paixoes (- no principio da historia): 64. Particularidade (- e universalidade no discurso politico): 265-6. Patrimonio biol6gico (perigos para 0 -): 73. Paz (- e verdade): 61-2. Perigo(s) (- e defesa da sociedade): 258; (- internos): 297; (- para 0 patrim6nio biologico): 73; (elimina,ao dos ~ biologicos): 73, 306; (inimigos enquanto - para a popuia,ao): 306; (no,ao de - biologico): 97, 101; (ra,a como - biologico): 72-3, 100-1,308. Poder(es): 19-36,38-47,49-54, 58-9, 66, 76, 78-9, 84-5, 92, 110, 121, 132, 199-202,246, 286-9,294-9,302-7,309-10;
-
ii
370
EM DEFESA DA SOCIEDADE
(med.nica do - nos seculos (- assassino): 309-10; XVII e XVIII): 42; (_ atornico e biopoder): 303; (mecanismos de -): 28, 30-1, (_ de soberania): 294, 298, 36,59; 303; (re1a~iio(5es) de -): 51-2, (-disciplinar): 47, 217, 309; 200-1 ; (_ e contrato): 20-1, 24; (sistema indo-europeu de re(_ e defesa da sociedade): 26; presenta~iio do -): 78-80, (- e direito): 19-20, 29; 85-6; (_ e discurso hist6rico): 250; (taticas do -): 39-40; (_ e dornina~iio): 34,40; (tecnicas de - e corpo): 287-8; (_ e domina<;;ao segundo os (tecnicas disciplinares de -): Diggers): 130-1; 221-2; (_ e institui~oes): 32-3, 46-7; (tecnicas e tecnologias de -): (_ e re1a~iio de for~a): 23, 35-6,287-8; 199-200; (unidade do - na teoria da (_ e repressiio): 22-4, 48, 50; soberania): 52-3. (_ e saber): 17,40,46; Poder politico: 41, 286-8; (- e sujeito): 50; (_ e guerra): 41, 56-9, Ill, (- e verdade): 28; 151 ); (_ individualizante): 288-9; (concep~iio juridica e liberal (_ psiquiatrico): 25,40; do -): 19-20; (- regio): 30-1; (concep~iio marxista do -): (analise do -): 21-2, 32-6, 19-20. 36-40; Policia: 97, 298. (carater relaciona! do - segun- Politica: 20, 22, 55,197-8,257; (_ como continua<;;ao da guerdo Bou1ainvilliers): 200-1; (cerirnonia do -): 208-9; ra): 55; (- do Principe): 70; (circula~iio do -): 34-5; (_ e hist6ria nos seculos XIX (continuidade do -): 76-7, e XX): 269; 84-5; (constitui~iio da-): 172; (discurso do - e teoria biolo(tim da -): 23. gica): 306-7; Popu1a~iio: 290-1, 293-4, 306-8; (dispositivos de -): 19; (_ como objeto dos mecanis(fonna rni1itar do - e organizamos regu1arizadores): 302; ~iio do direito civil): 182; (-, corpo e nonna): 302-3; (limites do -): 28;
jNDICE DAS NOt:;OES E DOS CONCElTOS
(- e bio-regulamenta~iio): 292-3,298; (- e Estado): 298; (medicaliza~iio da -): 291. Potencia(s) (- e poderes): 49. Povo(s): 89, 91,182,243-4; (- e reis entre os francos segundo Mab1y): 243-4; (- e soberano durante a Revolu~iio): 253-4;
(- soberano e reis segundo Montlosier): 278-9; (direitos do - na Ing1aterra): 118. Presente: 271-3; (- como principia de inteligibilidade): 272; (- e discurso hist6rico): 279; (- e esquecimento do estado primitivo de guerra): 271; (- segundo A. Thierry): 279; (desdobramento do -): 143; (valor do - no discurso historico-politico): 271.
Previdencia (mecanismos de -): 293-4; (tecnologia biopolitica de -): 297. Previdencia(s): 298; (mecanismos de -): 291; (sistemas de -): 300. Principe: 201; (saber do -): 151-2. Produ~iio
(- capitalista): 37.
371
Propriedade
(relar;oes de - e conquista segundo os Levellers): 12930. Psicanalise: 10,14-5. Psiquiatria (ver: Institui~iio psiquiatrica). Pureza (- da ra~a): 95, 101, 305, 308.
Purificar;ao (- da ra~a): 309. (- permanente e racismo): 73; Ra~a(s):
95 (ver tambem: Guerra das -; Luta das -); (- adversa como perigo bio16gico): 307-8; (- como perigo bioI6gico): 307-8; (- em guerra e racismo de Estado): 97-8; (- inferior): 305; (- judia como perigo bio16gico): 100-1; (- no sentido medico-bioI6gico): 89,94-5; (- superior no nazismo): 310; h sele~5es bio16gicas, bio10gia): 226; (binarismo das -): 26; (conceito de -): 26; (conflito de - e guerra de classe): 71-2; (desdobramento de urna -): 72-2;
372 (destruiyao da -
EM DEFESA DA SOCIEDADE
adversa):
307-8; (discurso das -): 80-1, 97-8; (elimina,ao das -): 308-9; (enfrentamento das -): 71-2; (extenninac;iio das - no nazismo): 310; (fortalecimento da - e da especie): 25; (guerra das -): 71-2, 100-1, 285, 308-9; (guerra e regenerayao de sua propria -): 307-8; (inimigo de -): 97-8; (integridade da -): 94-5; (luta das -): 22-3, 92-6, 117-8; (prote,ao biologica da -): 94-5; (regenera9ao da - e guerra): 307-8; (sub- -): 89; (sub- - e perigos biologicos): 72-3; (suicidio absoluto da - no nazismo): 312; (superioridade da -): 94-5; (teoria das -): 71-2, 118. Racionalidade (- e domina,ao): 64; (- e ilusao): 64; (- estrategica): 64; (- historica e nobreza): 197-8; (potencia da -): 197-8. Racismo: 75, 94-7, 99 (ver tambern: Discurso racista); (- biologico): 96-7; (- biologico-social): 72;
(- como ideologia): 39-40; (- da guerra): 308-9; (- e anarq~ismo): 311; (- e biopoder): 303-7; (- e coloniza,ao): 307; (- e defesa da sociedade): 72-3; (- e direito de morte, de matar): 306-9; (- e discurso revolucionirio): 95-6; (- e Estado): 308-9; (- e fortalecimento de uma popula,ao): 308-9; (- e fuoc;ao assassina do Estado no biopoder): 306; (- e genocidio colonizador): 307; (- e guerra): 307-8; (- e na,ao): 161; (- e purifica<;;iio pennanente): 72-3; (-e socialismo): 312-5; (- e tecnologia do poder): 308-9; (- moderno e guerra das ra,as): 308-9; (-religioso): 100-1; (- socialista e social-democracia): 314-5; (- tradicional): 308-9; (exposic;iio a morte no -): 306; (historia do -): 99-100. Racismo de Estado: 72-3,96-8, 285,309;
iNDICE DAS NOr;xJES E DOS CONCEITOS
(- e ra,as em guerra): 97. (- sovi6tico): 97; Rea9ao nobiliaria: 164. Reconciliac;iio (- e guerra): 279-80; (- e revolu,ao): 279-82. Rei: 30-2, 152-8, 176, 178-9, 181-2,241; (- e aristocracia segundo Mably): 244-5; (- e direito cesareo): 241; (- e imperador): 254; (- e pavo entre os francos segundo Mably): 244-5; (- e revoltas): 278-9; (- enquanto magistrado civil): 181-2; (~orpo do - e suditos): 25960; (direito do -): 137; (historiografia do -): 21 0-1, 222-3. Reich: 97; (Terceiro -): 67. Relac;iio de domina<;iio (ver: Domina<;ao). Rela,ao de(as) for,a(s): 22-4, 53,104-5,108-9,112,188-9, 204,227-30; (- como objeto hist6rico-politico): 196-7; (- como substancia da hist6ria): 202; (- e rela,6es de verdade): 61-2; (- fundamental na nova historia): 271-2;
373
(- segundo Boulainvilliers): 196-7; (- segundo Maquiavel): 196. Representa,ao(6es): 106-8; (jogo das - ca!culadas): 105-6. Repressao (- e poder): 21-5,47-8,50-1; (conceito de -): 21-3, 38, 47-8; (noc;ao de - na analise politico-psicologica): 50. Republica (- de aquisi,ao): 108-11; (- de institui,ao): 107-8, Ill. Revolta(s): 117, 129, 131-2,247, 249,277; (- e abusos): 124; (- e direito absoluto): 132; (- e guerra): 129-30; (- raciais): 117-8; (- segundo Bou1ainvilliers): 192; (discurso da -): 85-6. Revolu,ao: 42, 91, 93, 230; (- burguesa inglesa): 56; (- como cielo e como volta): 253. (- da historia): 230-1; (- e barbarie): 236-8; (- e constitui,ao): 228-30; (- e guerra): 281-2; (- e reconcilia,ao): 279-80; (- e romanidade): 247-8; (- francesa): 225-6, 278; (- francesa e hist6ria das ra,as): 255-6; (- francesa e monarquia): 278-9; (- inglesa): 89, 124, 128;
374 Roma: 83, 86-8, 98, 136-9, 143; (continuidade entre - e a Fran,a): 137-8; (louvor de -): 167; (reativa,ao da - republicana durante a Revolu,ao): 253. Romance (- e norma): 209. (- gotico): 255-6; Romanidade (- como mobil para a burguesia): 247-8. (- e liberalismo): 247-8; (- e revolu,ao): 247-8; Romanos: 142, 172-4, 240-2, 246; (sistema juridico-politico dos -): 147; (sistema politico dos - segundo a historiografia dos seculos XVllI-XIX): 246-7. Rousseaunismo (- da burguesia): 253. Ruptura (- profetica): 82; (momento da - do direito publico): 167. Saber (- administrativo): 158-9; (- do escrivao): 157-9; (- do Estado sobre 0 Estado): 153-4; (- do intendente): 158-9; (- do principe): 151-2; (-do rei): 154-7; (- do rei e nobreza): 154-7;
EM DEFESA DA SOCIEDADE
(- do soberano e historia): 162-3; (- e desordem): 207; (- e ordem): 207; (- e paz): 207; (- e poder): 18,40,46; (- e sujeitos): 250; (- e violencia): 207; (- juridico): 157-8; (-local e diferencial): 12; (- medico no seculo XVllI): 216-7; (- negligenciado pela nobreza): 204; (- ocidental e ideia platonical: 207; (- tecno16gico no seculo XVIII): 213-6; (aparelhos e instrumentos de -): 38-9; (apelo il recupera,ao do por Boulainvilliers): 185; (critica do - do intendente em Boulainvilliers): 202; (disciplinamento dos -): 207, 217-23; (sistema do - e lingua em Boulainvilliers): 183-4; (utiliza,ao do - administrativo contra a monarquia absoluta): 202. (volta do -): 11-3; Saber/Poder: 155, 226; (- administrativo): 163; (- segundo Boulainvilliers): 185.
INDICE DAS NOr;OES E DOS CONCEITOS
375
Saberes (colonizay3o do - pela mo(- e corpo): 221-2; narquia): 165-6; (- e disciplina): 221-2; (reativa,ao dos - pela bur(- e Estado): 215-6; guesia): 252; (- multiplos e economia): (regulariza,ao do -): 250; 214-5; (taticas do -): 226-7; (- tecnicos): 214-6; (valor politico do -): 165-6. (- tecnologicos multiplos): Sax6es: 91,117,122,126,192. 222; Sele,6es biologicas: 226. (centraliza,ao dos -): 216-7; Selvagem: 232-4; (combate dos - na epoca das (- e barbaro): 233-4; Luzes): 213-4; (- e troca): 234. (disciplinarnento dos -): 217Servidao 23; (historia biblica da -): 90-1; (efeitos de poder dos -): 214; (historia da -): 85-6. (genealogia dos -): 13-6, Sexualidade 213-4; (-, corpo e popula,ao): 300; (hierarquiza,ao dos -): 216-7; (- e doen,as): 300-2; (insurrei,ao dos -): 12-3; (controle da -): 36-9; (insurreiyao dos - sujeita(controle disciplinar da -): dos): 11; 300; (tuta econ6mico-politica em (medicaliza,ao da -): 38; torna dos - no securo (regulamenta,ao da -): 300; XVllI): 214-5; (valoriza,ao medica da -): (normaliza,ao dos -): 215-6. 300-2. Saber(es) historico(s): 161,201, (vigilancia da -): 300; 205-6; (- como arma discursiva): Sistema indo-europeu (- de representa,ao do poder): 225; 78-80, 85-6. (- como anna na guerra): Soberania: 30-2, 79, 85, 99, 206-8; 108-15, 137, 167; (- como arma political: 165-6; (- como instrumento de luta (- de aquisi,ao): 108-10; entre a nobreza): 162-3; (- de institui,ao): 107-8; (- das guerras): 113; (- do Estado): 95-6; (- e guerra): 206; (- do pavo entre os genna(- e luta political: 113, 205; nos): 143; (- na Europa): 91-2; (- do rei da Fran,a): 137;
EM DEFESA DA SOCfEDADE
376 (~e
pavo segundo Montlosier): 278-9; (- e vontade): 113-4; (- na tragectia classical: 21 0-1; (- nonnanda e leis saxas): 121-2; (- racismo e Estado): 308-9; (- romana e francos): 178-81; (- romana): 173-4; (modelo juridico da -): 4952,200-1 ; (poder de -): 294, 298, 303; (rela<;ao(5es) de -): 109; (teoria da -): 34, 40-4, 4952,285-7, Soberano: 102; (- como homem de paixao em Racine): 210-1; (- e morte): 285-7; (- e pavo durante a Revolu-
<;ao): 253-4; (- e sUdito): 285-7; (constitui<;ao do -): 287-8; (direitos do - na Inglaterra): 117-8; (individualidade fabricada do -): 107-8; (saber do - e historia): 162-3. Social-democracia (- e
liquida~ao
do racismo
socialista): 314-5. Social-racismo: 312. Socialismo: 312-4; (- e biopoder): 312-5; (- e mecanica do poder): 312-3; (- e racismo): 312-5; (- incumbencia da vida): 312-5;
(enfrentamento fisico no -):
312-5; (eliminaf;ao do adversario no -): 312-5. Sociedade: 160, 258 (ver tambern: Defesa da -); (- e constitui<;ao de urn Es-
tado segundo A. Thierry): 281-2; (- e norrnaliza<;ao): 45-6, 305-6; (- e organiza<;ao militar): 18992; (- urbana e capacidade administrativa): 281-2; (concep<;ao binaria da -): 5960; (estmtura binaria da -): 5960, 94-5. Sofista
(discurso do -): 68. Soissons
(historia do vaso de -): 179, 182. Stalinismo: 19.
SUdito(s)/Sujeito(s): 49-52; (- da historia): 159-62, 168; (- do discurso hist6rico-politico): 60-1; (- e poder): 286; (- e saber): 250; (- e soberania): 113; (- e soberano): 286; (- guerreador): 63; (- que fala na historia): 15960, 167-8; (- unive,sal e dialetico): 69; (ausencia de - neutro na 50ciedade): 60;
iNDfCE DAS NOr;:DES E DOS CONCEfTOS
(constitui<;5es dos -): 35; (fabrica<;ao dos -): 52; (nobreza como - da hist6ria segundo Boulainvilliers):
185. Sujei<;ao(5es): 26; (procedimentos de -): 32-6, 40; (rela<;oes de -): 51-2; (tecnicas de -): 52.
377
(- estatal): 279-80; (- nacional e universalidade
do Estado): 268. Totalizayao
(- e dialetica): 68-9; (- e historia): 272-3. (- estatal segundo A. Thierry): 279-80; (- nacional): 280; Trabalho (tecnologia disciplinar do -):
Tatica(s): 53 (- de intimida<;ao): 105. (- discursivas): 251; (- discursiva e ideologia): 225-6; Tecnicas (- disciplinares de poder): 221; (- medico-normalizadoras): 96. Tecnologia(s) (- disciplinar): 297, 302; (-regulamentadora): 297, 302. (- previdenciaria): 297; Tempo (organiza<;ao do -): 88.
27. Tragedia(s) (- de Racine): 209; (- e historiografia): 210-1;
Teona bio16gica
(- e verdade): 284; (entrada do - no real): 272; (potencia do - e burguesia): 283; (valor do -): 197. Universalidade (- do Estado e totalidade nacional): 268; (- e guerra): 281; (- e particularidade no discurso politico): 265;
(- e discurso do poder): 307. Terceiro Estado: 170,251,2645,282-3; (- como sujeito hist6rico): 251; (- e universalidade estatal): 265; (- segundo Sieyes): 258-60, 261-2. Totalidade
(- francesa como liy30 e ce rimonia de direito publiR
co): 208-9; (- grega): 209; (- historicas): 208; (lei e ilegitimidade nas -):
208. Transviado: 95, 97. Troca: 232-3, 235. Troia: 87, 135-6. Universal
378 (- estatal): 281; (- estatal no terceiro estado): 265; (- no discurso juridico-filosofico): 62; (fun,5es de - da burguesia): 282-3. Universaliza9ao (- e sociedade burguesa): 282. Universidade (aparecimento e funl;ao da -): 218-9. Vencedores/vencidos: 109, 1112, 114, 118, 120, 190, 193, 271,275,280,283. Verdade (- como arma): 68-9; (- e conhecimento): 213; (- e desordem): 207; (- e desrazao): 65; (- e dialetica): 68-9; (- e dissimetria): 61-2; (- e guerra): 207; (- e guerra no discurso historico): 197; (- e irracionalidade fundamental): 65; (- e ordem): 207; (- e paz): 207; (- e poder): 28; (- e universal): 283-4; (- e violencia): 207; (- no discurso hist6rico-politico): 60-1;
EM DEFESA DA SOCIEDADE
(decifra,ao da - e historia): 82-3; (dependencia da - it paz e it neutralidade): 61-2; (discurso da -): 28; (divisao entre verdade e erro): 196; (efeitos da -): 28; (produ,ao da -): 28; (regime da -): 196; (rela,5es de - e rela,5es de for,a): 61-2. Vida: 94, 109-10, 285-9, 291, 294-7,301-7,313; .(- e biopoder): 296-7; (problema da - no pensamento politico): 288; (proter;ao da - e contrato social): 287;
(tecnologia regulamentadora da -): 297; (teoria da luta pela -): 72. Violencias: 92. Virus (fabrica,ao de - incontrolaveis e destruidores pelo biopoder): 303. Visibilidade (campo de -): 288; (colocar;ao em - dos individuos): 299. Vivo (fabrica,ao do ser - pelo biopoder): 303.
INDICE ONOMASTICO
Alexandre, 0 Grande: 67. Antraigues (E. L. H. L. d'): 254. Arlur: 116 Atila: 237. Audiger (P.): 145-6. Augusto: 190. Aulard (F.-A.): 254. Bacon (N.): 126. Bailly (1. S.): 279. Barincou (E.): 201. Berlin (1.): 116. Bichat (X.): 229. Binswanger (L.): 8. Blackwood (A.): 120, 124. Boisguilbert (P. de): 203. Bonneville (N. de): 235, 243. Bordeu (T.): 229. Bossuet (1. B.): 175. Boulainvilliers (H. de): 57, 135, 152-6, 169-60, 167, 171-81, 183-9, 191-204,211,227-8,
230-4,236,238-9,241-4,245, 248-9, 254, 257, 261, 264, 268,279. Boulay de Ia Meurthe (A. J.): 255. Bouquet (M.): 136. Boutillier (1.): 137. Brequigny (L. G. O. F. de): 245-6, 248, 251. Bruto: 87, 117. Buat-Nan,ay (L. G. du): 154, 159, 163, 171, 228, 235-6, 257,264,279. Buonarroti (F. M.): 57-8. Caligula: 172. Carlos Magno: 67, 148-9, 163, 244,248, 253. Carlos Martelo: 149. Carlos V, 120. Carlos X: 274. Cassirer (E.): 63. Castoriadis (C.): 237.
380 Cesar (J.): 136, 138, 142, 147, 172. Chapsal (J.-F.): 245-6, 248, 251. Chretien de Troyes: 116. Churchill (W. S.): 123. Clausewitz (K. von): 3, 22-3, 54-5, 198. Clovis: 81, 84, 146, 149, 163, 176,179,182,240. Coke (E.): 57, 122, 124-5. Comeille (P.): 209. Courtet (A. V.): 58. Crooke (A.): 34. Daniel (S.): 124. Darwin (Ch.): 71, 307. Davies (G.): 128. Defert (D.): 8. Deleuze (G.): 9, 16. Desnos (R.): 237-8. Devyver (A.): 153, 171, 178, 255. Dreyfus (A.): 314. Dubos (J.-B.): 239-42, 245-6, 248,250. Dumezil (G.): 78. Eduardo, 0 Confessor: 67, 116, 121. Eneas: 87. Engels (F.): 92-3. Estaing (J. d'): 57, 171. Ewald (F.): 8. Fenelon (F. de): 152. Ferguson (A.): 175. Fest (J.): 311.
EM DEFESA DA SOClEDADE
iNDICE ONOMASTICO
Filipe Augusto: 190. Fourier (Ch.): 312. Franco: 87. Franco (F.): 296. Fredegano (pseudo): 135. Frederico Barba-Roxa: 67. Frederico 11: 67. Freret (N.): 57, 177. Freud (S.): 22.
Guilherme,
0
Jaime I: 118-9. Jordanis: 147. Jouffroy d' Abbans (A. F. L. ): 274. Juquin (P.): 18. Justiniano: 137.
Montlosier (F. de): 155, 171, 249,257, 270, 274-8. Moreau (J.-N.): 164-5, 211-3, 222,239,242. Morel (B.-A.): 301. Morin (E.): 237.
Kant (1.): 62-3.
Nero: 209. Nietzsche (F.): 24, 177-8. Nowel (R.): 124.
Lagrange (J.): 8. Laplanche (J.): 237. Lefort (C.): 237. Legrain (M.): 301. Lilbume (J.): 57, 128. Luis XIV: 70, 89, 91,147,1512,203,209-11,213. Luis XVI: 163,211,213,254. Lyotard (J.-F.): 237.
Genette (G.): 237. Gibbon (E.): 175. Gregoire de Tours: 149, 179. Grotius (H.): 148. Guattari (F.): 9, 16.
Conquistador: 84,
115, 120-4, 128. Guiraudet (J.): 121. Guizot (F.): 93, 165, 169,246, 270-1.
Mably (G.-B. de): 235, 243-5, 247-8,250,253. Magnan (V.): 301. Maquiavel (N.): 26, 69-70, 175, 196,201-2. Marat (J.-P.): 163,235,243. Marcuse (H.): 9. Mario: 172. Marx (K.): 92-3, 116. Marx-Aveling (E.): 116. Mehring (F.): 116. Meroveu: 148-9. Michelet (J.): 89, 200. Miguet (F. A. M.): 89. Moises: 126. Monmouth (G. de): 116-7. Montagu (E. W.): 175. Montesquieu (C.-L. de): 175, 235.
Haller (W.): 128. Haroldo: 116, 121, 123. Harrison (W.): 124. Hegel (G. W. F.): 22. Heidegger (M.): 8. Henrique V11: 115. Hill (Ch): 127. Hitler (A.): 311. Hobbes (Th.): 26, 34, 59, 70, 99, 102-14, 121, 132-3, 148. Holinshed (R.): 124. Hom (A.): 125. Hotman (F.): 139-45. Hugo Capeto: 153, 244. Huisman (D.): 8. Husser! (E.): 8.
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381
Overton (R.): 128. Panofsky (E.): 86. Paris (P.): 136. Pasquier (E.): 140. Pepino: 149. Petrarca (F.): 86, 98, 167. Pirro: 209. Platao: 207. Priamo: 87. Proyart (L.-B.): 255. Pufendorf(S.): 148. Racine (J.): 209, 210-3, 222. Reich (W.): 9, 22, 24, 37. Reiche (R.): 37. Rhenanus (B.): 140. Richelieu: 144, 147. Ronsard (P. de ): 135. Rousseau (J.-J.): 41. Sabine (G. H.): 130. Scott (W.): 116. Selden (J.): 124, 126. Serres (J. de): 144. Shakespeare (W.): 208-9.
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382 Siagrio: 179. Sieyes (E.-J.): 57, 169,255,257, 259-65,274. Simon (R.): 231. Solon: 62. Speed (J.): 124. Speer (A.): 311. Sydenham (T.): 229. Tacito: 147. Tamerlao: 237. Tarault (J.-E.): 145. Thierry (Amedee): 51. Thierry (Augustin): 43, 71, 93, lI6, 136-8, 165, 169, 246, 249,257,270,279-81,283. Thiers (L.-A.): 94, 270.
EM DEFESA DA SOCIEDADE
Tillet (J. du): 144. Tito Livio: 76,79, 82. Turco: 87. Turgot (R.-J.): 248. Vauban (S. de): 203. Vernant (J.-P.): 61. Viard (1.): 136. Vico (G. B.): 231. Vidal-Naquet (P.): 61. Wace (R.): 116. Wade (1.): 93. WaIT (1.): 127. Weber (A.): 8. Weydemeyer (J.): 93. Winstanley (G.): 130.
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